2. A época de ouro do comissário de café; 3. A decadência ... · e na praça de Santos, pelo...

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1. Introdução,· 2. A época de ouro do comissário de café; 3. A decadência do comissário; 4. O comissário sem herdeiros. Roberto Perosas" * O autor agradece ao Núcleo de Pesquisas e Publicações - NPP, da EAESP/FGV, bem como à Finep, pelos recursos oferecidos que permitiram a realização deste trabalho. ** Pro fessor do Departamento de Planejamento e Análise Econômica Aplicados à Administração (PAE) da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas. Rev. Adm. Emp., Rio de Janeiro, 1. INTRODUÇÃO Durante o longo período do século passado em que a economia cafeeira se assentava sobre o regime de tra- balho escravo, e mesmo nas duas décadas seguintes, ao final da escravidão, nas lavouras de café, o mecanismo de financiamento da produção vinculava-se profunda- mente à comercialização do produto. Adquiria em tal sistema um papel central a presença do comerciante de café, das praças de Santos e do Rio de Janeiro. E o fa- zendeiro de café, nessas mesmas circunstâncias, de- pendia, em grande medida, do "seu" comerciante de Santos ou do Rio. Tal dependência do fazendeiro possuía um caráter duplo: dependia do comerciante para a realização dos seus lucros através da venda do produto; e precisava igualmente deste último para obter os recursos finan- ceiros necessários à produção. Consistia, pois, não apenas na comercialização - já que este é o seu papel - a natureza especial das funções exercidas pelo co- merciante na economia cafeeira. O que o diferenciava de um comerciante comum era o fato de exercer,· ao mesmo tempo, a atividade de financiador da lavoura. É bem verdade que a importância dos recursos fi- nanceiros na lavoura de café é considerável, devido a duas circunstâncias especiais. Trata-se, primeiramen- te, de uma cultura permanente que exige um período relativamente longo para sua formação. As variedades de café, correntes no começo do século, produziam seus primeiros frutos somente no quarto ano, após o plantio, e, mesmo essa colheita inicial, era modesta. A lavoura era considerada formada e, em plena pro- dução, apenas no seu quinto ou sexto ano de vida. Em conseqüência, os gastos com a formação exigiam uma inversão de recursos cujos primeiros retor- nos tardariam longo tempo a aparecer. A segunda ra- zão prende-se às elevadas exigências do trato cultural do cafezal. São necessárias diversas carpas durante o ano (um cafezal bem tratado exigia na época em torno de seis carpas ao ano) para conservar a lavoura "no limpo" e assim preservar a produtividade da planta, bem como outras tarefas necessárias para manter essa mesma produtividade. É assim evidente que, se o re- gime de trabalho envolver remuneração monetária da força de trabalho, a lavoura exige, e muito, capital de giro para sua operação. 63 Tais observações merecem atenção quando se busca explicar a dependência do fazendeiro de café diante do comerciante na época. Pois, como em toda atividade produtiva no sistema capitalista, seria razoável supor que a principal fonte de financiamento de capital resi- da nos lucros gerados na produção. Em outras pala- vras, o auto financiamento deveria se constituir na base principal do financiamento da atividade. Contudo, tal não se dava na lavoura cafeeira até pelo menos a crise de superprodução, do final do século XIX e princípio deste, e, em parte, a razão encontrava-se na menciona- da exigência de recursos da lavoura para sua formação e operação. 20(1): 63-78, jan/mar. 1980 Comércio e financiamento na lavoura de café de são Paulo no início do século

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1. Introdução,·2. A época de ouro do comissário de

café;3. A decadência do comissário;4. O comissário sem herdeiros.

Roberto Perosas"

* O autor agradece ao Núcleo dePesquisas e Publicações - NPP, da

EAESP/FGV, bem como à Finep,pelos recursos oferecidos quepermitiram a realização deste

trabalho.

* * Pro fessor do Departamento dePlanejamento e Análise Econômica

Aplicados à Administração (PAE) daEscola de Administração de Empresas

de São Paulo, da Fundação GetulioVargas.

Rev. Adm. Emp., Rio de Janeiro,

1. INTRODUÇÃO

Durante o longo período do século passado em que aeconomia cafeeira se assentava sobre o regime de tra-balho escravo, e mesmo nas duas décadas seguintes, aofinal da escravidão, nas lavouras de café, o mecanismode financiamento da produção vinculava-se profunda-mente à comercialização do produto. Adquiria em talsistema um papel central a presença do comerciante decafé, das praças de Santos e do Rio de Janeiro. E o fa-zendeiro de café, nessas mesmas circunstâncias, de-pendia, em grande medida, do "seu" comerciante deSantos ou do Rio.

Tal dependência do fazendeiro possuía um caráterduplo: dependia do comerciante para a realização dosseus lucros através da venda do produto; e precisavaigualmente deste último para obter os recursos finan-ceiros necessários à produção. Consistia, pois, nãoapenas na comercialização - já que este é o seu papel- a natureza especial das funções exercidas pelo co-merciante na economia cafeeira. O que o diferenciavade um comerciante comum era o fato de exercer,· aomesmo tempo, a atividade de financiador da lavoura.

É bem verdade que a importância dos recursos fi-nanceiros na lavoura de café é considerável, devido aduas circunstâncias especiais. Trata-se, primeiramen-te, de uma cultura permanente que exige um períodorelativamente longo para sua formação. As variedadesde café, correntes no começo do século, produziamseus primeiros frutos somente no quarto ano, após oplantio, e, mesmo essa colheita inicial, era modesta. Alavoura era considerada formada e, em plena pro-dução, apenas no seu quinto ou sexto ano de vida.Em conseqüência, os gastos com a formação exigiamuma inversão de recursos cujos primeiros retor-nos tardariam longo tempo a aparecer. A segunda ra-zão prende-se às elevadas exigências do trato culturaldo cafezal. São necessárias diversas carpas durante oano (um cafezal bem tratado exigia na época em tornode seis carpas ao ano) para conservar a lavoura "nolimpo" e assim preservar a produtividade da planta,bem como outras tarefas necessárias para manter essamesma produtividade. É assim evidente que, se o re-gime de trabalho envolver remuneração monetária daforça de trabalho, a lavoura exige, e muito, capital degiro para sua operação.

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Tais observações merecem atenção quando se buscaexplicar a dependência do fazendeiro de café diante docomerciante na época. Pois, como em toda atividadeprodutiva no sistema capitalista, seria razoável suporque a principal fonte de financiamento de capital resi-da nos lucros gerados na produção. Em outras pala-vras, o auto financiamento deveria se constituir na baseprincipal do financiamento da atividade. Contudo, talnão se dava na lavoura cafeeira até pelo menos a crisede superprodução, do final do século XIX e princípiodeste, e, em parte, a razão encontrava-se na menciona-da exigência de recursos da lavoura para sua formaçãoe operação.

20(1): 63-78, jan/mar. 1980

Comércio e financiamento na lavoura de café de são Paulo no início do século

Havia, ainda, uma segunda razão para a dependên-cia do fazendeiro junto ao comerciante. A função decomercialização do café era extremamente especializa-da, pois envolvia o preparo de ligas de diversos tiposde produtos, uma atenção especial com a bebida e ou-tras características que refletiam as exigências das de-mandas externas, de diversas procedências. O comér-cio concentrava-se, inclusive por essas razões, nos por-tos de Santos e do Rio de Janeiro. Assim sendo, ao fa-zendeiro não restava senão a entrega de todas essasresponsabilidades ao comerciante de sua confiança,criando-se laços comerciais que acabavam por atingiro campo do financiamento da produção.

Durante um longo período, que vai dos primórdiosda economia cafeeira ao final do século passado, pre-valeceu essa relação de dependência entre fazendeiro ecomerciante de café. A expansão violenta da lavoura,seguindo-se à introdução do trabalho livre do imigran-te, vai transformar essa situação radicalmente. A fun-ção financiadora do comerciante declina, muito embo-ra, como será visto adiante, nenhum outro sistema definanciamento tenha tomado seu lugar antes dos anos30, deixando inclusive espaço para os mesmos comer-ciantes exercerem as mesmas funções até os últimosanos 20, ainda que em escala relativamente mais redu-zida. É de se supor, dessa forma, que o auto financia-mento passou a ter uma importância crescente, à medi-da que a economia cafeeira caminhava para a criseaberta em 1929.

64As partes seguintes do trabalho vão examinar em

maior profundidade as questões acima delineadas. Nasegunda parte é analisado o sistema de comércio e fi-nanciamento da lavoura de café, que prevalece até o fi-nal do século passado. Em seguida, busca-se apontaras razões da sua crise, para finalmente concluir com oestudo das condições novas, criadas pelo declínio dosistema tradicional.

2. A ÉPOCA DE OURO DO COMISSÁRIO DECAFÉ

"As relações entre o comerciante e o produtor assenta-vam principalmente na necessidade de fornecer o pri-meiro a massa de recursos indispensáveis para o desen-volvimento das operações de cultura a cargo do segun-do durante o período da formação dos cafezais e pos-teriormente na rotação anual das colheitas, com aobrigação taxativa da consignação do produto para aamortização dos adiantamentos e dos ônus que lhessão correlatos."!

Um conjunto de circunstâncias a cercar o mecanis-mo de comercialização e financiamento da lavoura decafé, no início do século atual, transparece da observa-ção acima, escrita em 1923. Em particular, deve serdestacada a ênfase do relacionamento entre o comer-ciante e o fazendeiro: não se tratava simplesmente deuma intermediação comercial, e sim de uma relaçãocomplexa na qual a função financiadora do primeiroadquiria um relevo especial. Cabia ao comerciante afunção de prover ao fazendeiro os recursos necessários

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para a formação da lavoura e para o trato e a colheitado cafezal. Em outras palavras, cabia ao comerciantefornecer os recursos, considerados indispensáveis pelo.autor citado, para a formação do capital fixo e de giro.da produção.

Era o comerciante, pois, o banqueiro da lavoura.Na ausência de um sistema bancário, público ou priva-do, ligado diretamente à produção, o comerciante decafé chamava para si o papel fundamental de suprir ocrédito necessário. Em contrapartida, exigia reciproci-dade do fazendeiro: a produção era entregue aos seuscuidados, que consistiam no preparo e na venda docafé, ganhando uma comissão que na época era fixadaem 3"10 do valor da venda. O comerciante fornecia ocrédito ao fazendeiro; em troca, adquiria um clientecativo.

E, quem era o comerciante de café, cuja importân-cia era mais ampla do que a de um simples interme-diário? Durante todo o século passado, ainda sob o re-gime de escravidão nas fazendas de café, esse papel decomerciante-banqueiro da produção era exigido pelocomissário. "O sistema geral de venda de café no esta-do de São Paulo, desde os mais remotos tempos a quenos chega a tradição, era, depois de transportado oproduto ao porto do mar, consigná-lo a um comer-ciante que, por uma comissão sobre o valor da venda,transferia-o a um exportador que, por sua vez, o co-locava no mercado consumidor". O comissário conti-nuou a exercer suas funções, sem perder sua importân-cia, até pelo menos os primeiros anos do século XX. E,mesmo depois, o comissário conservou ainda parte dasua importância, até a crise de 1929, na ausência de umsistema bancário ligado à produção: "Era, embora emestado rudimentar, o mesmo comerciante que hoje de-signamos por comissário, e que, com pequenas varia-ções naturais da evolução dos tempos, perdura aténossos dias, como principal agente de negócios decafé, no que toca ao produtor, em nosso porto deexportação. "2

A observação acima citada foi feita por volta de1927. Isto significa dizer que o comissário ainda con-servava um papel relevante até os últimos anos 20 dopresente século, apesar das transformações ocorridas apartir do começo do século e que implicaram o seu re-lativo desgaste no comércio do café e no financiamen-to da produção. Contudo, a função exercida pelo co-missário era indispensável ao empreendimento docafé, tal qual constituído, até a crise dos anos 30. Poressa razão, investigar as condições que motivaram oprogressivo afastamento do comissário, no seu papelessencial, do centro dos negócios do café, implica es-clarecer a nova situação, onde atores diferentes pas-sam a desempenhar antigas funções. Antes disso,porém, é preciso examinar mais atentamente a nature-za dessas funções, a maneira especial como eram exer-cidas e as condições que impuseram, na prática, essemecanismo.

Ao citar um trabalho de Paulo Porto Alegre, de1878, Taunayescrevia: "pelos anos em que ele escre-veu, não havia ainda casas exportadoras e só co-

missárias. Eram os comissários, os banqueiros dos la-vradores. Concentravam, em seus armazéns, as colhei-tas que as tropas faziam descer do planalto ao litoral".E, em seguida, afirmava que "não havendo créditoagrícola no Brasil, via-se o comissário forçado a servircomo banqueiro da lavoura".' O comissário ocupa,pois, um espaço deixado pela inexistência do créditoagrícola no país. E como era possível ao comissário fi-nanciar a formação das lavouras e o custeio das mes-mas? Continua Taunay: "Os bancos emprestavam sobo crédito do comissário, de sua firma ou pessoal, sobletras endossadas por outros comerciantes, poisrecusavam-se, sistematicamente, a aceitar endossos delavradores, de modo que se criavam interdependênciascomerciais perigosas e por vezes rulnosas't.s Dessa for-ma, as função de intermediário financeiro, exercidapelo comissário, equivalia a um tipo de especializaçãodo sistema bancário, já que este último, nas condiçõesvigentes na época, não possuía vínculo financeiro coma produção de café.

De que forma era possível ao comissário o que eravedado ao fazendeiro? Isto é, quais as característicasque permitiam ao comissário obter crédito junto aosbancos, enquanto aos fazendeiros esse mesmo créditoera negado? Uma razão básica residia no fato de que ocrédito, durante todo o século passado e até 1930, erabasicamente constituído de empréstimos pessoais. Emconseqüência, o conhecimento e as relações pessoaisassumiam relevância na concessão do financiamento.O comércio comissário situava-se, dessa forma, emposição privilegiada junto aos bancos, enquanto os fa-zendeiros encontravam enorme dificuldade neste as-pecto. E isto porque as casas comissárias, em São Pau-lo, localizavam-se na praça de Santos, centro docomércio interno e de exportação de café, e assimmantinham um relacionamento constante com os ban-cos que, mesmo quando sediados em São Paulo (ca-pital), atuavam diretamente nas atividades comerciaisde Santos. Ao contrário, os fazendeiros tinham poucaoportunidade de manter qualquer relacionamento comos bancos, pois residiam em regiões distantes de San-tos e da capital.

Evidentemente, essa razão faz sentido apenas na cir-cunstância especial de um sistema bancário pouco de-senvolvido, onde se contavam nos dedos o número deagências. Estas, concentravam-se na capital do Estadoe na praça de Santos, pelo menos até os anos 20 dopresente século. É o que se conclui da informação deque "em 1918, os bancos nacionais, em São Paulo,

1 dispunham de 11 agências no interior do estado. Emi- 1924 esse número subiu a 53, para atingir 88 agênciasL em 1927. O Banco do Brasil em 1918 contava 28 agên-. cias, das quais quatro ficavam no estado de São Paulo., Em 1927 o principal estabelecimento bancário brasilei-

ro dispõe de 70 agências, das quais 16 em nosso esta-do"." Assim, a abertura de agências dos bancos nacio-nais e do Banco do Brasil no interior de São Paulo, Oque aproximaria os bancos dos fazendeiros, somentetoma vulto nos anos 20.

Existiam ainda outras razões que possibilitavam aoscomissários o acesso ao crédito bancário. Encontra-se

entre elas, seguramente, o fato de que não era inco-mum encontrar-se vínculos entre a pessoa do co-missário e as casas comissárias e bancos nacionais. -Oconselheiro Antonio Prado, por exemplo, além degrande fazendeiro na região de Ribeirão Preto e Ser-tãozinho desde o final do século passado, era pro-prietário, juntamente com outros membros da suafamília, de uma casa comissária em Santos, a Prado &Chaves." ao mesmo tempo, possuía um dos mais im-portantes bancos da época."

A razão principal, contudo, para o acesso dos co-missários ao financiamento bancário, bem como a ine-xistência de um vínculo efetivo entre os bancos e os fa-zendeiros no começo do século atual, residia naprópria natureza da empresa do café. De um lado, oscapitais da época, fossem eles nacionais ou estrangei-ros, estavam aplicados basicamente no grande negócioque era o comércio do café. Era na esfera dacomercialização onde se faziam os negócios relevantes,sendo o café uma das mercadorias de maior valor nocomércio internacional. E era também no mesmocomércio, onde eram acumuladas as fortunas e pros-peravam as empresas. A produção de café, evidente-mente, proporcionava lucros ao fazendeiro. Mas segu-ramente encontrava-se no comércio do café a oportu-nidade mais lucrativa, não somente no âmbito domés-tico do país, mas também nas exportações.

Por outro lado, as condições para que o comércio seafirmasse sobre a produção do café eram dadas pelascaracterísticas dessa última. Pois, do mesmo modoque na transição do capitalismo comercial à manufatu-ra na Europa, e, posteriormente para a grande indús-tria, onde o capital encontraria sua mais rentávelaplicação na produção quando, entre outras razões, amão-de-obra pressionava por salários mais elevados,assim também pode ser entendida a forma com o capi-tal encontrava oportunidades mais lucrativas naprodução agrícola. A lavoura de café do início doséculo não contou com qualquer crise mais séria de es-cassez de mão-de-obra. O mercado de trabalho para aprodução de café funcionava adequadamente para ofazendeiro, resolvida que foi a questão da mão-de-obra, a partir dos anos 70 do século passado, com aabundante imigração européia. Além disso, tambémnão existia um possível obstáculo que pudesse entravara expansão da produção do café, e que era a questãoda terra, já que vastas regiões do estado de São Paulonão se encontravam ainda ocupadas, podendo vir a sercultivadas no futuro, ainda mais na presença de umarede ferroviária que se expandia na medida da necessi-dade mesma da ocupação das terras novas. Assim sen-do, a lavoura do café, e portanto a produção, possuíaamplas condições de crescimento no estado, sem en-frentar obstáculos de monta. Em conseqüência, osmétodos produtivos rudimentares continuariam a serperfeitamente adequados, sem reclamar qualquermudança que exigisse absorção de recursos de capital,para o prosseguimento da empresa do café, onde o ca-pital encontrava sua aplicação mais lucrativa na esferacomercial.

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Comércio e financiamento de café

Era o comissário, portanto, atuando entre o fazen-deiro e o exportador, quem possuía acesso ao créditobancário. E visto que a formação da lavoura e aprodução de café necessitavam de financiamento, cou-be ao comissário ocupar o espaço deixado pela inexis-tência de vínculos diretos entre o fazendeiro e os ban-cos. A contrapartida ao crédito, fornecido pelo co-missário, como se viu, era a entrega da produção decafé do fazendeiro à casa comissária, que auferia umacomissão de 3070 sobre o valor do café vendido ao ex-portador (ou ao ensacador, como se verá adiante).Diante da inexistência de um sistema formal de créditoagrícola, o acesso aos recursos financeiros tornava ofazendeiro cativo do comércio comissário.

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Não era, contudo, um "cativeiro" dificil de supor-tar. A se dar crédito aos escritos da época, as relaçõesentre o fazendeiro e o comissário foram, durante lon-go tempo, não apenas amistosas, mas igualmentetranscendiam os limites de uma simples relação denegócios. "A 'organização comissária, eles a vazaramem moldes de pasmosa simplicidade, mas que tinha avirtude de se ajustar aos seus costumes de então; ao fi-to do lucro mesclaram eles uma forte dose do senti-mentalismo das relações de família, do viver patriarcalque levavam. O comissário não se limitou a ser o co-merciante incumbido da venda do café do fazendeiro eo seu fornecedor de capitais; era também o mentor, oparente ou amigo mais avisado que lhe impunhamoderação nas despesas, sofreava-lhe a audácia noscometimentos e o assistia, em suma, nas principaisemergências da vida com os seus conselhos, os seus re-cursos, o seu prestígio e as suas relações pessoais.Achou-se assim a classe comissária investida das fun-ções, que por muito tempo manteve, de reguladora daatividade dos lavradores, disciplinando-a na explora-ção das lavouras existentes e estabelecendo-lhe a justamedida na expansão de novas culturas."!

E como agia "o mentor, o parente ou amigo maisavisado" em que se transformou o comissário? Entremuitas coisas, o comissário "servia para tudo: darhospedagem permanente aos filhos, aos sobrinhos, aosparentes do comitente, distribuir-lhes mesada para osestudos, comprar-lhes roupas, livros, mandar acom-panhá-los aos teatros, centros de diversões, enfim,assisti-los nas menores causas. Vinham também os co-mitentes hospedar-se na casa comercial e as mesas docorrespondente assumiam proporções do hotéis"."

A ação do comissário junto ao fazendeiro ultrapas-sava, pois, os limites comerciais. Além do fornecimen-to de crédito e da venda do café do fazendeiro, o co-missário encarrega-se da prestação de inúmeros servi-ços pessoais àquele, adquirindo dessa forma a condi-ção de amigo e conselheiro do fazendeiro.

Evidentemente, as relações de amizade encontravamviabilidade e fundamento nas bases de interesses co-muns. Fossem divergentes os objetivos econômicos defazendeiros e comissários, as relações pessoais deixa-riam de existir. Deve-se buscar, portanto, no relacio-namento comercial, a base de um sistema de relaçõesmais amplo.

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E O relacionamento comercial entre a casa co-missária e a fazenda principiava, nunca é demais repe-tir, pelo fornecimento de crédito ao fazendeiro, tantopara a formação da lavoura, quanto para o custeio dafazenda. Os juros cobrados pelo comércio comissáriosobre tais adiantamentos - essa é a expressão maisapropriada - variavam entre 9 e 12070 ao ano. Ao quetudo indica, ao fazer o repasse do crédito bancário aofazendeiro, o comissário não auferia lucro. Isto é, a ta-xa cobrada ao fazendeiro era a mesma cobrada pelobanco à casa comissária. E assim, como o dinheirofornecido ao fazendeiro tomava a forma de adianta-mento para cobrir as despesas ao longo do ano agríco-la, também o empréstimo bancário era pouco formali-zado: "os bancos emprestavam sob 'crédito pessoal'do comissário (firma social ou individual), a 'desco-berto', mediante simples conta corrente, depois sob le-tras da terra, ainda depois sob letras com endosso, ra-ramente com outras garantias".!? Assim sendo, a es-trutura do sistema informal de crédito assumia essaforma dos dois lados, do banco ao comissário e desteao fazendeiro.

Sendo informal, o sistema creditício se tornavaflexível e adequado ao fazendeiro. Se por acaso a co-lheita era pequena, ou ainda baixavam as cotações docafé no mercado internacional e os preços no mercadointerno, o pagamento do empréstimo era muitas vezespostergado para o fazendeiro. A flexibilidade docrédito pessoal que favorecia ao fazendeiro somenteera viável por ser igualmente flexível o crédito pessoal,"a descoberto", que os bancos forneciam ao co-missário.

As vantagens que um sistema de crédito como esseproporcionava tanto ao comissário quanto ao fazen-deiro eram evidentes. A este último, em particular, asituação era altamente favorável: possuía o crédito quenecessitava, a juros razoáveis e não elevados pelo co-missário que o repassava, e contava ainda com a ne-cessária flexibilidade para períodos de aperto financei-ro. Ao comissário, por sua vez, mesmo não auferindolucros no repasse, cabia a vantagem de assegurar parasi a colheita do fazendeiro, cuja comercialização lheporporcionava os lucros da sua atividade. Como serávisto mais adiante, o ponto fraco do sistema residia, apar de suas vantagens, precisamente no caráter pessoaldo crédito: na medida da expansão da lavoura e doconseqüente aumento do volume de negócios, as so-mas emprestadas cresciam e passavam a exigir garan-tias mais firmes, para se contrapor aos riscos mais ele-vados. Entretanto, mesmo essa debilidade do sistemaencontrava solução nos primeiros tempos da grandeexpansão da lavoura, a partir de meados dos anos 80do século passado: o aumento do número de casas co-missárias fazia com que os riscos maiores se diluíssementre um número maior de capitais. À parte possíveisexageros, as casas comissárias surgiram em grandenúmero, acompanhando a expansão dos negócios:Taunay chega a apontar cerca de 2.000 firmas co-missárias no Rio de Janeiro," Carlos de Miranda Jor-dão fala de 200.12

Os lucros do cormssano tinham origem na.intermediação comercial do café que lhe. era entregue,em consignação, pelo fazendeiro. Se o fornecimentode crédito à lavoura lhe assegurava a produção da mes-ma, é na manipulação do café e na sua venda que o co-missário aumentava seu capital. O sistema funcionavada seguinte forma: o café era entregue em consigna-ção à firma comissária; esta formava ligas, mesclandodiversos tipos de café, de vários fazendeiros, de modoa conseguir variações que alcançassem um valor maisalto na venda (muitas vezes essa função era exercidapelo ensacador, que trabalhava próximo ao comissa-rio); finalmente, o café era vendido ao exportador.

Em entrevista a um jornal do Rio de Janeiro em1927, um antigo comerciante de café nessa praça assimdescrevia o sistema: "havia até 15 anos passados trêsclasses distintas no comércio de café do Rio: - o co-missário, - o ensacador, - o exportador. O comis-sário recebia o café do interior. Adiantava dinheiroao fazendeiro, representando em face do produtoro papel de banqueiro. O fazendeiro, além dos jurosque variavam entre 9 e 120/0, pagava ao comis-sário uma comissão de 3% como, de resto, aconteceainda hoje. (... ) O ensacador comprava por contaprópria o café aos comissários. Era este intermediárioquem manipulava e classificava os tipos de café. ( ... ) Oexportador não fazia, como hoje, a classificação docafé para os mercados externos. Ele se limitava acomprá-lo já manipulado do ensacador para aexportação. Ensacador e comissário, por via de regra,eram ou brasileiros ou portugueses. O exportador erauma classe na sua quase totalidade constituída do ele-mento estrangeiro: ingleses, principalmente; franceses,quatro casas; e italianos, duas. Não tinham nenhumarmazém de depósito. Possuíam apenas escritórios.( ... ) Atualmente não existe mais a distinção entre ensa-cador e exportador. Há apenas duas classes de inter-mediários entre o produtor e o mercado exportador, eque são o comissário e o exportador. A existência ou-trora de uma classe intermediária entre o comissário eo exportador era vantajosa para aquele, pois que o en-sacador ajudava o comissário a resistir à desvaloriza-ção do produto. O ensacador era um interessado na al-ta, tanto quanto o comissário. E assim toda vez que ocafé tendia para baixa, era ele quem, por via de regra,ajudava o comissário obter crédito nos bancos; para ocafé não ia parar a preços não-remuneradores às mãosdo exportador ".n

O autor da entrevista referia-se ao comércio do caféde antes da República, e na praça do Rio de janeiro.Contudo, adianta que tal sistema prevaleceu até "1~anos passados", ou seja, até por volta de 1912. Se des-contado o papel do ensacador, que foi importante,principalmente no Rio de Janeiro no século passado;no essencial era esse o sistema presente na praça deSantos, no início do século atual.

Muitas são as informações importantes no depoi-mento transcrito. A primeira delas é o interesse altistado comissário e o interesse do exportador na baixa docafé. E é aí onde reside um ponto de convergência deinteresses do comissário e do fazendeiro. Ao 00-

missário, assim como ao fazendeiro, só interessava aalta, pois sua comissão repousava sobre o valor davenda. Ao exportador, ao contrário, era a baixa dopreço interno que interessava, pois ganhava nadiferença entre este preço e o preço de exportação.Nesse sentido, pode-se concluir que a casa comissáriaera o representante do fazendeiro, nas praças de San-tos e do Rio.

Outra informação importante diz respeito ao con-trole do comércio exportador. Da mesma forma que noRio, os maiores exportadores da praça de Santos eramestrangeiros. Analisando o período de 1895 e 1907, e"considerando-se que o total de sacas exportadas peloporto de Santos no período foi de 86.391.503 sacas,verifica-se que os dez maiores exportadores foram res-ponsáveis por mais de 70% das exportações. Dentreeles figura apenas uma empresa brasileira, a PradoChaves & Co., fundada em São Paulo, em 1887, porduas famílias de fazendeiros - os Silva Prado e os Pa-checo Chaves". Mesmo assim, essa firma brasileira foiresponsável pela exportação de 3.370 mil sacas, o queequivale a menos de 4% do total exportado noperíodo.«

O controle das casas exportadoras por firmas es-trangeiras era, pois, absoluto na praça de Santos. Emconseqüência, uma parcela considerável da renda gera-da na economia cafeeira era apropriada por capital es-trangeiro, sendo uma parte dessa mesma renda drena-da para o exterior. Na medida em que crescia a área deatuação das casas exportadoras (em detrimento das ca-sas comissárias, como será visto adiante) maior era acapacidade baixista do exportador e, portanto, maiora importância da renda apropriada e transferida parao estrangeiro. Isto era verdadeiro, ainda porque "omecanismo do comércio funcionava de tal modo que àqueda dos preços internacionais não se seguia umacorrespondente baixa dos preços no varejo. Este meca-nismo funcionou entre 1894-1904, provocando o au-mento da margem de comercialização dos interme-diários, que passou de 13,0 cents por libra-peso em1892-1895 para 17,4 cents por libra-peso em 1901-1904.15

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Em outros termos, os exportadores estrangeiros napraça de Santos exerciam um papel de oligopsônio so-bre vendedores que, por seu grande número (casas co-missárias), organizavam-se numa estrutura concorren-cial. Decorre desse fato um confronto desigual entrefracos interesses altistas e poderosos interesses baixis-tas, estes últimos se afirmando facilmente em períodosde superprodução como o que tem lugar no final doséculo passado e princípios deste.

Se os comissários trabalhavam pela alta das co-tações, e assim representavam interesses que eram seuse dos fazendeiros, ao mesmo tempo sua atividade in-cluía práticas que contrariavam interesses de pro-prietários de terra. Tal é o significado das manipu-lações que as casas comissárias faziam com o café emconsignação: os fazendeiros que produziam café dequalidade superior saíam perdendo com as ligas queeram feitas pelo comissário, quando então seu café era

Comércio e financiamento de café

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misturado com outros de qualidade inferior e, portan-to, alcançava preços mais baixos. Para o comissárioesta prática era necessária para encontrar colocaçãopara cafés que, de outro modo, não teriam mercado.Isto é, ao comissário interessava vender pelo maiorpreço, mas vender todos os cafés de que dispunha emconsignação. Entretanto, para o fazendeiro que envia-va a Santos um café fino, isto acarretava perdas.

Por outro lado, o sistema de café em consignaçãoem mãos da casa comissária, em contrapartida aocrédito fornecido ao fazendeiro, conferia a essa a pos-sibilidade de outras práticas que prejudicavam o fa-zendeiro. Assim, como o café vendido pelo comissárioao exportador era acompanhado de uma simples contade venda do comissário ao fazendeiro, relatando ascondições da venda e o crédito que o fazendeiro pos-suía em sua conta na casa comissária, nada impediaque esta última emitisse a conta de venda em data pos-terior à data em que foi de fato realizada a transação."

Tais práticas das casas comissárias, cuja generaliza-ção é obviamente impossível de ser avaliada, eram,contudo, motivo de queixas por parte dos fazendeiros.Essa reação veio à tona, como se poderia esperar, nosmomentos difíceis que tanto 'fazendeiros quanto co-missários atravessavam no final do século passado e'início do atual, com a superprodução e a queda dospreços do café.

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E foi nesses momentos difíceis que o mecanismo decomercialização e financiamento do café, baseado nocomissário, começa a mostrar-se inadequado para oempreendimento cafeeiro. É bem verdade que algumastentativas de formação de um sistema de créditoagrícola haviam sido realizadas desde o tempo doImpério. Anecessidade de um sistema financeiro alter-nativo já era sentida bem antes, principalmente porgrandes fazendeiros, interessados em realizar investi-mentos volumosos. Contudo, a questão da mão-de-obra assumia uma gravidade de tal ordem, na segundametade do século XIX, que absorvia a atenção integraldo capital cafeeiro.

3. A DECADÊNCIA DO COMISSÁRIO

Solucionado o problema da mão-de-obra, com aintervenção do Governo de São Paulo e, posterior-mente, do Governo federal financiando a imigraçãoeuropéia a partir dos anos 70 do século passado, a cria-ção de um novo sistema de financiamento da lavouraassume uma posição de destaque. Além disso, aintrodução do trabalho livre nas fazendas paulistas de-sencadeia um mecanismo expansionista sem preceden-tes na lavoura'? e, em conseqüência, vai mostrar maisclaramente a insuficiência do sistema de financiamen-to baseado no papel do comissário.

"A libertação trouxe consigo novos problemas de fi-nanciamento, que alteraram as relações entre os co-missários e os exportadores. Antes de 1888 os recursosfinanceiros necessários para o custeio da fazenda eramrelativamente pequenos, pois a parte mais importante

Revista de Administração de Emoresas

desse custeio - que era o pagamento da mão-de-obra_ praticamente não existia." 18 Essa afirmação é ape-nas parcialmente correta, e por duas razões: primeira-mente, como o próprio autor citado reconhece, o tra-balho livre já assumia grande importância em SãoPaulo, alguns anos antes da abolição do trabalho es-cravo; em segundo lugar, o autor omite a relevânciados gastos de expansão da lavoura e da imobilizaçãode recursos na compra de escravos, gastos estes queeram tão ou mais importantes que as despesas de cus-teio. Da mesma forma que o crédito de custeio, os in-vestimentos para expansão da lavoura e aquisição deescravos também eram financiados pelas casas co-missárias: "os comissários de café constituíam-se emrazões sociais com um certo capital, tendo por fim nãosó receber o produto enviado pelos fazendeiros de cafécomo, também, adiantar-lhes os recursos monetáriospara a exploração agrícola. Os adiantamentos em geralconsistiam em fornecimentos de fundos para serematendidas as operações das rotações anuais das dife-rentes carpas, dos auxílios nos períodos das colheitas edos demais encargos que pesam sobre a exploração atéa possibilidade da venda do produto no mercado. Mui-tos outros, porém, tinham caráter mais extensivo, por-que abrangiam somas que serviam para a formaçãodas próprias lavouras, o que desde logo mostrava quetais adiantamentos tinham de ser concedidos por u~prazo longo para lograrem amortizações lentas. Outracategoria de adiantamentos, operada em grande escalanos meados do século passado, era a que se faziatambém para a aquisição de braços ... " .I~

Assim sendo, se por um lado recursos financeirosadicionais se tornaram necessários para o custeio dasfazendas, de outro a introdução do trabalho livre veioeliminar a necessidade de recursos anteriormente exigi-dos para a aquisição de escravos. E, para relativizarainda mais a importância que o autor citado atribuiaos novos recursos para o custeio, deve-se acrescentarque "na medida em que o fazendeiro conseguia estabe-lecer uma 'conta-corrente' com seus colonos, o dinhei-ro funcionava simplesmente como unidade de conta esó era necessário para a liquidação dos saldos" .20

O mesmo autor afirma em seguida que outra fontenova de despesas que demandava financiamento era aconstrução de grande número de casas para os colonosnas fazendas, já que estes estavam "habituados a umpadrão de vida mais elevado que o do negro" .21 Semdúvida, o investimento realizado na construção das co-lônias deve ter sido considerável na época que prece-deu e se seguiu à abolição. Contudo, se a lavoura ca-feeira não houvesse sofrido qualquer expansão, tal in-vestimento seria transitório, pressionando temporaria-mente a demanda por financiamento. Realizada asubstituição completa do escravo, pelo trabalhador li-vre, esta demanda desapareceria com o investimento,ocasionando tão-somente uma crise temporária no me-canismo de financiamento.

Na realidade, o que parece explicar mais profunda-mente a crise surgida no sistema tradicional de finan-ciamento da lavoura é a própria expansão desta últi-ma. A produção de café no Brasil e, principalmente,

em São Paulo sofreu uma elevação gigantesca a partirde 1885, como se pode avaliar pelas médias anuais dosqüinqüênios a partir do ano citado:»

Período Brasil São Paulo

1886-1890 5,3 2,21891-1895 6,5 ' 3, 1 (em milhões de sacas)1896-1900 10,1 6,11901-1905 12,3 7,9

Em 20 anos, a produção paulista quase quadruplica.Esta enorme produção se torna ainda mais grave noano de 1906, quando uma safra excepcional eleva aprodução do estado para mais de 15milhões de sacas.

A enorme expansão da lavoura de café reflete a açãode circunstâncias específicas, que serão analisadas de-tidamente mais adiante. Contudo, basta dizer por oraque a formação de novas lavouras passa a receber, noperíodo citado, ênfase tão grande quanto o trato e acolheita das lavouras já formadas. Em outras pala-vras, produção de café e formação de lavouras consti-tuem dois grandes negócios para os fazendeiros a par-tir do advento do trabalho livre.

Com tamanha expansão da produção e das lavou-ras, o sistema tradicional do crédito através do co-missário entra em crise, e isto por razões indiretamenteligadas à abolição do regime escravo. Em primeiro lu-gar, o investimento necessário para a formação de la-vouras se eleva como nunca antes. Segundo: por forçada expansão da lavoura, as necessidades globais decusteio seguem o mesmo caminho do investimento.Não se trata, pois, de necessidades aumentadas decusteio e de investimento para substituir a mão-de-obra escrava, mas sim para expandir a lavoura. Emconseqüencia, a pressão por novos financiamentoseleva-se a tal ponto que torna impossível às firmas co-missárias o fornecimento adequado de crédito.

Diante dessa circunstância, o comissário não apenasaumenta sua dependência em relação aos bancos,co-mo também se torna incapaz de armazenar estoquesque anteriormente lhe proporcionavam um certo po-der de barganha diante das casas exportadoras.e Dian-te do crescimento excepcional da produção, e não pos-suindo mais capacidade financeira para retirar do mer-cado os imensos estoques que lhe eram consignados, aqueda dos preços internacionais não poderia ser evita-da. Em outras palavras, a superprodução gera um de-sequilíbrio entre a oferta e a procura externa do café,sem que qualquer mecanismo altista possa agora inter-vir.

No período anterior ao advento do trabalho livre nalavoura de café, a baixa das cotações do produto nomercado internacional gerava uma reação que, amédio prazo, acabava por ensejar um novo período dealta de preços: reduzia-se o preço da saca de café parao fazendeiro; este adiava planos de formação de novaslavouras; depois de alguns anos, a produção deixava

de crescer ou até mesmo se reduzia, em virtude da que-da da produtividade natural nas lavouras mais anti-gas, enquanto a procura se ampliava no mesmoperíodo. Em conseqüência, oferta e procura se equili-bravam novamente, o que propiciava uma reação nospreços do produto.

Esse mecanismo é parcialmente prejudicado no seufuncionamento, com a introdução do trabalho livre, eisto porque a expansão das lavouras começa a respon-der igualmente a um outro estímulo, além dos preçosdo produto. Na época do trabalho escravo, o auvo fi-xo da maior importância para o fazendeiro era exata-mente constituído pelos escravos que possuía, já queas terras tinham pouco valor. Por essa razão, eram osescravos que davam a medida da riqueza do fazendeiroe, particularmente importante, propiciavam a garantiapara os empréstimos realizados. Diante da nova si-tuação criada pelo fim do regime escravo, o único ati-vo que poderia vir a desempenhar as mesmas funçõesera a terra. Como será discutido mais adiante, o desen-volvimento dos empréstimos hipotecários com base degarantia na terra só ocorre, em escala reduzida, no fi-nal da década de 20, do século atual. Ora, esta é umaevidência considerável para se concluir que a terra nãoestava desempenhando as mesmas funções anterior-mente exercidas pelo escravo. O lento crescimento domercado de terras, devido à abundância de novas fron-teiras por onde pudessem as lavouras se expandir, pa-rece ser o principal responsável pelo fato.>

Contudo, se o valor de mercado da terra apresenta-va um desenvolvimento vagaroso, de outro lado umafazenda com lavoura formada passou a obter um gran-de valor de venda após a instituição do trabalho livredo colono. Enquanto um alqueire de terra nua alcança-va por volta de 1920cerca de 500$000 (quinhentos milréis), uma fazenda formada de 140alqueires e corri 200mil pés de café chegava a alcançar o valor de1:000:000$000 (um mil éontos de réis), o que resultaem mais de 7:000$000 (sete contos) o alqueire.P

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Por outro lado, o custo de formação de uma fazen-da, como a ilustrada no exemplo acima, não era eleva-do. Para continuar o exemplo, os seguintes custos sãomencíonadosss

Preparo do solo e plantação e formação de 200 milcafeeiros a 1$000 réis200:000$000Valo! de 100 alqueires de terras em cafezal, a500$000 réis50:000$000Valor de terras suplementares indispensáveis20:000$000Valor de 36 casas para colonos a 1:700$00061:200$000Casa paraadminístracão e dependências, inclusiveestábulos, currais, animais 40:000$000

- Instalação de máquinas 40:000$000- Administração durante quatro anos, despesas ge-

rais e imprevistos' 15:000$000Total Rs. 426:200$000

Comércio e financiamento de café

Como a fazenda possui 140 alqueires, o custo totalde formação, incluindo terras, atinge 3:000$000 (trêscontos) o alqueire. Dessa forma, o lucro que se obteriana formação de uma lavoura em quatro anos, seria de4:000$000 por alqueire. Ou seja, uma remuneração deinvestimento superior a 130070 no período de quatro oucinco anos de formação da lavoura.

Evidentemente, a formação de novos cafezaistratava-se de uma aplicação bastante rentável para ofazendeiro. Justifica-se, pois, que "a ênfase do em-preendimento econômico do café passa a ser a for-mação da fazenda" .27 Contudo, a estimativa acima re-presenta apenas parte do que de fato ocorria nos anos20, nas lavouras paulistas. Uma nova estimativa vaimostrar que, na prática, o custo de formação era mui-to mais baixo do que 3:000$000 o alqueire.

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Essa nova análise é feita pelo mesmo autor do exem-plo: "é freqüente contratar o fazendeiro com os colo-nos que lhe inspiram confiança a formação do novocafezal, durante quatro anos, cedendo-lhes, nesseperíodo de tempo, o fruto dessas novas lavouras (sic) epagando-lhes ainda, ao fim desse prazo, uma certa so-ma para cada cafeeiro assim formado. Outras vezes ocontrato contém as mesmas cláusulas, mas o prazo éelevado a cinco anos, pertencendo também aos colo-nos contratantes, durante todo ele, as colheitas que seproduzirem, não cabendo porém ao fazendeiro, nessecaso, dar-lhes nenhuma remuneração em dinheiro.(... ) Durante os quatro ou cinco anos, os colonos vi-vem principalmente do produto do milho (além do fei-jão, do arroz, da batata, etc ... em menor escala), culti-vados, conforme dissemos, entre os cafeeiros e que,graças à fertilidade do solo, oferece abundantes colhei-tas, vendidas diretamente ou utilizadas na criação e en-gorda de suínos e aves domésticas. Eis aí como, emprazo relativamente curto - quatro ou cinco anos -pode um proprietário de boas terras, no oeste de SãoPaulo, tornar-se possuidor de um belo e rendoso cafe-zal, mediante pequena paga, ou nenhuma?» (grifonosso).

Está, pois, descoberto o grande negocio da for-mação da lavoura: na prática, os custos não envolviamo pagamento da mão-de-obra. Isto significa, no exem-plo acima, que pelo menos metade dos custos de for-mação da lavoura não existiam. Como resultado, taiscustos aingiriam menos do que 1:500$000 o alqueire,cifra modesta se comparada ao valor de 7:000$000 oalqueire alcançado no mercado, por uma fazenda for-mada.

Para ser mais correto, todavia, o cálculo acima devemerecer outras considerações. Uma fazenda de cafénos anos 20 do século atual apresentava uma carac-terística de enorme relevância para a presente análise:ela era muito mais autônoma, tanto no seu processoprodutivo quanto no que diz respeito aos investimen-tos. Isto quer dizer simplesmente o seguinte:

grande parte dos insumos empregados era produ-zida internamente. Dessa forma, atribuir valor demercado a eles é incorrer em grave erro de ava-

Revista de Administração de Empresas

liação, já que a produção dos mesmos insumos -tijolos, madeira, alimentos, etc. - se fazia o custoreduzidíssimo. A razão principal para isso era,evidentemente, o processo peculiar de remune-ração dos trabalhadores, pelo qual o fazendeironão necessitava pagar grande parte do trabalhoexecutado; bem como o caráter rudimentar dastécnicas produtivas, baseadas intensamente no tra-balho, o que reforça a idéia anterior.

quanto às mercadorias que não eram produzidasinternamente, sua aquisição se realizava atravésdo armazém da fazenda, mantendo os colonos eoutros trabalhadores uma relação de conta-corrente com o mesmo armazém.

em conclusão, a economia era muito pouco mone-tarizada, sendo o dinheiro usado, conforme foivisto, muito mais como unidade de conta do queum meio de troca.

Para o ponto em discussão, essas características in-teressam no sentido do que os custos de formação e depreparação da fazenda eram, na prática, mais baixosdo que daria a entender uma atribuição de valor demercado. Desse forma, usando estimativas do próprioAugusto Ramos," verificasse que o custo de cons-trução inclui insumos produzidos na fazenda a um va-lor de 850$000: tijolos, pedras e madeira. Assim sen-do, e admitindo-se um custo de produção dos mesmosinsumos na fazenda de aproximadamente 1/3 do custode mercado, levado em conta por Augusto Ramos,conclui-se que o custo das construções deve mereceruma redução no seguinte montante:

- custo de mercado de uma casa: 1:700$000- valor a ser subtraído: 850$000 - 2/3 . 850$000= 570$000- custo efetivo: 1:700$000 - 570$000 = 1:130$000

Obtém-se, então, uma redução de 1/3 dos custos deconstrução. Refazendo-se agora os cálculos anteriores,o custo total de formação de lavoura atingiria apenas192:000$000, para uma fazenda de 140 alqueires, con-forme demonstração abaixo:

• Custo total segundo Augusto Ramos:• Menos:- Preparo do solo, plantação e

formação:e 1/3 do valor de 36 casas:- 1/3 do valor das demais

construções:Custo total efetivo:

426:000$000

200:000$00021:000$000

13:000$000192:000$000

Desse modo, o custo total de formação de uma fa-zenda de 140 alqueires, com 200 mil pés de café, eincluindo-se o valor das terras, atingia não mais do que1:370$000 o alqueire. Como esse mesmo alqueire for-mado valia cerca de 7:000$000 no mercado, a rentabi-lidade auferida pelo fazendeiro na formação de uma.fazenda atingia mais de 400% do capital investido.

Evidentemente, tão elevada rentabilidade levava osfazendeiros a expandir continuamente suas lavouras.Existe, entretanto, uma segunda razão para o cresci-mento dos cafezais: era de maior interesse dos colonoso plantio das suas roças entre os cafeeiros, e isto erapossível apenas nos cafezais em formação, já que naslavouras 'formadas o cultivo de alimentos prejudicavaa produtividade do café. Para se ter uma idéia da im-portância que o plantio intercalado das roças possuíapara os colonos, basta dizer que "em 1911, a pro-dução direta dos gêneros de subsistência era avaliada,em termos monetários, em 37% do ativo de umafamília, composta do casal e quatro filhos em con-dições de trabalhar" .30

As duas razões - a elevada rentabilidade da for-mação de lavouras e o interesse dos colonos na expan-são dos cafezais - são responsáveis pela expansão ver-tiginosa da economia cafeeira desde o final do séculopassado. Quanto à questão de se conhecer a importân-cia de cada uma, tudo indica que isto dependia dascondições do mercado do produto e do mercado detrabalho: quando baixava a rentabilidade da fazenda,em virtude da queda das cotações do café, obviamentecaía, da mesma maneira, a cotação de uma fazendaformada; por outro lado, a oferta de imigrantes, deter-minava o poder de barganha desses trabalhadores e,assim, sua capacidade para pressionar pela expansãodos cafezais.n

Por oferecer tão elevada rentabilidade, bem comopor ser do interesse dos colonos imigrantes, a for-mação de novas lavouras ganha um estímulo todo es-pecial com a introdução do trabalho livre na lavourapaulista. É por esta razão que o mecanismo que regu-lava os preços e a produção, tal como descrito ante-riormente, é parcialmente prejudicado no seu funcio-namento: a expansão das lavouras, e portanto a ele-vação da produção, passa a responder a um estímuloadicional, distinto daquele determinado pelos preçosdo produto no mercado internacional. Por essa razão,a crise de superprodução que se manifesta no final doséculo passado e início do atual não contava mais, co-mo antes, com a atuação das forças presentes para asua solução. O crescimento dos cafezais gerou o exces-so de produção, e em conseqüência a queda dospreços; esta, no entanto, não freiava a expansão poste-rior da lavoura que, por sua vez, contribuía ainda maispara a redução dos preços.

Diante desse quadro, as casas comissárias enfrenta-vam não apenas uma escassez de recursos para o finan-ciamento da lavoura que se expandia enormemente;para elas, o problema se agravava com a baixa, poisesta afetava seus lucros (e assim seus recursos internose a possibilidade de obter recursos dos bancos) e pro-vocava o postergamento das dívidas dos fazendeiros.

Não resta dúvida de que esta crise e suas carac-terísticas, distintas das anteriores, foram bem entendi-das por grandes fazendeiros, comissários, banqueirose homens do governo paulista. Afora a posição daque-les que se manifestavam do público, que jogavam aresponsabilidade pela expansão desmesurada sobre os

colonos,» todos eles compreenderam perfeitamente oprocesso que estavam vivendo, e estavam conscientesde que, prejudicado o mecanismo de mercado de de-fesa dos preços, outro mecanismo de defesa deveria seracionado em seu lugar.

Isto se dá com a intervenção do Estado de São Paulono mercado, adquirindo um grande estoque de café 33

para reduzir a pressão da oferta, intervenção esta queficou conhecida com o nome de "valorização docafé" .

A história do plano de valorização e sua análiseacha-se hoje bem documentada em diversos tra-balhos> e, além disso, sua discussão não cabe nopresente contexto. Contudo, importa aqui assinalarsua relevância: em primeiro lugar, como um mecanis-mo que substitui o sistema de defesa dos preços quedurante tão longo tempo funcionou a contento para ocapital ali investido; e, em seguida, como um sinalbastante claro das mudanças profundas que se realiza-vam na economia cafeeira e brasileira em geral.

A incapacidade revelada pelo antigo sistema de fi-nanciamento, no qual o comissário detinha um papelbásico, mostra que a empresa agrícola do café não es-tava preparada para o crescimento verificado com aintrodução do trabalho livre. O volume de recursos fi-nanceiros, agora exigidos pelo sistema, ultrapassa demuito a capacidade do sistema financeiro existente. Ea intervenção do Estado adquire o estatuto de "sal-vação da lavoura", no sentido literal da expressão,principalmente para os fazendeiros e demais pro-prietários do capital da época. 71

Constata-se, assim a incapacidade da economia ca-feeira de criar um sistema financeiro adequado às suasnecessidades, tais como estas se apresentavam no finaldo século. A questão a ser respondida é, pois, a seguin-te: qual é a origem dessa incapacidade? Ou, em outraspalavras: por que razão a economia cafeeira, e de resto,a economia brasileira da época, não conseguiu gerar,paralelamente à sua expansão, os mecanismos finan-ceiros que lhe permitissem avançar, sem a intervençãodireta do Estado?

A primeira observação a ser feita prende-se à na-tureza da economia brasileira do final do século einício do século XX. Trata-se de uma economia volta-da para fora, na qual o dinamismo do crescimento de-pende diretamente da procura pelos seus produtos deexportação, em particular o café. Nesse sentido, asmudanças que se processam na economia interna, es-pecialmente aquelas vinculadas com a introdução denovas técnicas de produção, respondem a exigênciasdo comércio externo, e não a injunções forjadas noprocesso de desenvolvimento econômico interno.

Em conseqüência, a formação dos diversos elemen-tos que compõem a economia brasileira e a economiacafeeira do início do século XX processa-se de maneiramuitas vezes inadequada, criando situações conflitan-tes e obstáculos que não podem ser superados peloprosseguimento simples da expansão da economia.

Comércio e financiamento de café

Um exemplo claro é evidenciado pela transcrição doregime de trabalho escravo ao trabalho livre. No caso,a abolição da escravidão no Brasil é principalmenteuma conseqüência da necessidade de novos mercadospara os produtos ingleses, o que levou à supressão dotráfico negreiro em 1850. Sem o tráfico, o abasteci--mento da economia cafeeira com mão-de-obra escravafica comprometido ainda mais, pelo aprofundamentoda exploração do trabalho do negro após 1850. Dessaforma, o período entre a supressão do tráfico e a abo-lição do trabalho escravo consiste necessariamente emtransição para o trabalho livre. No entanto, é somentecom a intervenção do estado, inicialmente de São Pau-lo e depois da União, que se torna possível efetuar amudança. Em outras palavras, a economia privada éincapaz de solucionar um problema imposto principal-mente por exigências externas, pois no seu funciona-mento não se preparara para esta transformação.

A expansão da lavoura, que se segue à introduçãodo trabalho livre, é um outro exemplo, com as conse-qüências que estão sendo analisadas nesse trabalho.Desencadeia-se um novo mecanismo de formação denovas lavouras, para cujo funcionamento a economiacafeeira não se encontrava preparada. Assim, a neces-sidade de um volume muito mais elevado de recursosfinanceiros para o financiamento da expansão choca-se com a impossibilidade de formação de um novo sis-tema financeiro adequado, por parte da empresa pri-vada na economia cafeeira.

72Para se entender a razão dessa incapacidade, é preci-

so considerar com mais detalhes as novas exigênciasque se faziam ao sistema financeiro. Estas prendem-seprincipalmente a dois aspectos: a estrutura do sistemae a quantidade de recursos necessários para o financia-mento da economia. O volume de recursos financeirosé o ponto crucial da incapacidade das casas co-missárias diante da nova situação. De acordo com aanálise anterior, não apenas o comissário não poderiacontinuar financiando a expansão da lavoura, em vir-tude da proporção que esta última assumira no finaldo século XIX, por falta de recursos; mas, igualmente,o mecanismo de defesa dos preços do café havia sidocomprometido seriamente pela perda do poder da bar-ganha do comissário, diante do exportador estrangei-ro. Isto significa simplesmente que, além da exigênciamaior de recursos financeiros que a lavoura impunha,grande parte desses recursos passou a ser apropriadapelas casas exportadoras estrangeiras, deixando, por-tanto, de voltar à circulação interna da economia. Ca-bia, dessa maneira, a implantação de um novo meca-nismo que fosse capaz de, simultaneamente, realizarasduas tarefas: aumentar o volume de recursos dis-poníveis ao financiamento e defender os preços doproduto, assegurando a apropriação de uma parcelamaior do excedente, por parte dos nacionais ou estran-geiros que aplicavam os recursos apropriados, interna-mente.

Por outro lado, esse novo mecanismo não poderiacontin uar operando nos moldes da estrutura anterior,e por uma razão muito simples: sendo o crédito do co-

Revista de Administração de Empresas

missário junto ao banco, e o do fazendeiro junto aocomissário de natureza estritamente pessoal, à medidaque o volume empregado em financiamentos se eleva-ca, os riscos cresciam de forma a preocupar os credo-res (bancos e comissários). Era preciso introduzir nessemomento uma nova estrutura que formalizasse garan-tias para os credores, diante do risco maior que se ori-.ginava das novas condições de financiamento.

4. O COMISSÁRIO SEM HERDEIROS

Se por um lado a intervenção do estado na comerciali-zação do café em 1906, tem por conseqüência a substi-tuição dos comissários na defesa das cotações do pro-duto, de outro, as medidas tomadas no sentido de criarum novo sistema financeiro não deram o resultado es-perado. A ação do estado contribui decisivamente pa-ra solucionar ao menos parte do problema da escassezde recursos financeiros: ao criar um mecanismo quefuncionava efetivamente na manutenção de cotaçõesremuneradoras ao capital cafeeiro, o estado evitou queuma grande parte do excedente fosse transferido paraexportadores estrangeiros. Além' disso, para a exe-cução do plano de valorização inicial, foi preciso con-tratar um empréstimo externo da ordem de 15milhõesde libras esterlinas, empréstimo este pago no longoperíodo de quase 10anos (até 1915), através de um im-posto em ouro, sobre cada saca exportada. Em conse-qüência, e, igualmente, através da atuação do estado,um volume maior de recursos é injetado na economiacafeeira. Para se ter uma idéia da magnitude desseempréstimo para a época, basta dizer que no primeirodecênio do século atual o valor médio anual das expor-tações brasileiras de café pouco excedeu a 24 milhõesde libras.»

A criação de um novo mecanismo de financiamentoda produção, contudo, era ums questão mais compli-cada. Pois não se tratava apenas de conseguir, da partedo fazendeiro, melhores condições de venda para o seuproduto. A ele era fundamental o custeio de sua lavou-ra, bem como os adiantamentos para a formação denovos cafezais.

A intervenção do estado limitou-se quase que exclu-sivamente à defesa do produto no mercado externo,conseguindo melhores cotações para o café. Ao ladodisso, foram tentadas duas outras medidas: a insti-tuição do crédito hipotecário, que posteriormente setransformou em crédito sobre penhora do fruto colhi-do ou pendente nas árvores; e a criação de armazénsgerais, a partir de 1903, que tinham como função rece-ber o café do fazendeiro e vendê-lo ao exportador dire-tamente em nome do fazendeiro.v recebendo desteuma comissão fixa por saca armazenada e vendida.

O crédito hipotecário, criado por volta de 1880, etransformado em crédito sobre penhora do produtoem 1885, acaba não resultando na solução para a ques-tão do financiamento da lavoura, precisamente pelamesma razão pela qual o comissário tinha acesso aosbancos: o crédito sendo pessoal, o risco em oferecê-lo

diretamente ao fazendeiro desconhecido dos bancos esujeito às condições instáveis da lavoura era elevadodemais. Dessa forma, quer sob hipoteca da terra, queratravés da penhora da produção colhida ou pendente,este tipo de financiamento não prosperou. Algumamodificação vai surgir apenas durante os anos 20 doséculo atual, com o desenvolvimento do Banco do Bra-sil e do Banco do Estado de São Paulo. Mesmo assim,como será visto a seguir, as somas totais desse tipo definanciamento eram: bastante modestas.

Os armazéns gerais não resolviam igualmente o fi-nanciamento da produção e sim proporcionavam umaalternativa ao fazendeiro para a comercialização da sa-fra. Nesse sentido, muitos fazendeiros que não se en-contravam satisfeitos com seu comissário, em virtudeda manipulação das ligas de café de diversas procedên-cias e da alegação de que o comissário emitia a contade venda em data posterior à realização da operaçãocom o exportador, dispunham agora de uma alternati-va mais segura, pois o armazém geral vendia em nomedele e sem qualquer manipulação do produto. Entre-tanto, apenas os fazendeiros que não possuíam dívidasjunto às casas comissárias poderiam dispor da alterna-tiva de comercialização representada pelo armazémgeral. É de se supor que tratavam-se de grandes fazen-deiros tão-somente, pois isto implicava dispensarna prática o crédito de custeio para formação de la-voura, que os comissários proporcionavam, ainda quede maneira insatisfatória e insuficiente. Conforme serávisto mais adiante, essa alternativa, que nada mais se-ria do que recorrer mais intensamente ao financiamen-to próprio, com recursos gerados pelos lucros da fa-zenda, parece ter sido largamente utilizada desde oinício do período de decadência do comissário.

Presume-se assim, que a criação dos armazéns geraistenha sido uma forma de proporcionar melhores con-dições de comercialização para os grandes fazendeiros,que podiam acumular recursos próprios para o custeioe assim não depender das casas comissárias. Assimsendo, o armazém geral não veio solucionar a questãodo financiamento de custeio e de investimento em no-vas lavouras, mas sim resolver certos problemas jámencionados, atinentes à antiga prática de comerciali-zação

No início dos anos 20, são criados os armazéns regu-ladores em diversas cidades do interior, com a finali-dade de controlar a entrada de café nas praças expor-tadoras. O armazém regulador funcionava da seguintemaneira: todo café produzido era entregue pelo fazen-deiro ao armazém regulador da sua região, localizadosempre junto a uma estação de estrada de ferro; com ofim de evitar a entrada de um volume muito grande decafé no porto e, em conseqüência, impedir que a ele-vação da oferta depreciasse o produto, os armazéns li-beravam quotas fixadas previamente, de sorte que aprodução chegava aos poucos, em Santos, e em outraspraças. Ao mesmo tempo, o fazendeiro recebia do ar-mazém o chamado "conhecimento" do despacho docafé, um título negociável junto a bancos para se obterfinanciamento.

As primeiras dificuldades no funcionamento dos ar-mazéns reguladores aparecem com as reclamações dosfazendeiros a respeito da demora do seu café para atin-gir Santos. Essa demora devia-se a duas razões: pri-meiramente, existia uma quota de entrada no porto,quota esta diversas vezes aumentada diante da pressãodos fazendeiros e intermediários; e, em segundo lugar,porque a ordem de transporte do café ao portoprendia-se à ordem cronológica de entrega do café noarmazém.

Por outro lado, surgiam críticas por parte dos fazen-deiros, a respeito do financiamento que obtinhamatravés do conhecimento. Como afirmava um autor daépoca, tratava-se de um crédito "tardio e perro " YTardio pelo fato de não chegar no momento necessáriopara o custeio, e sim depois da colheita, contra a entre-ga da produção; perro, "pelas dificuldades do lavra-dor para utilizá-lo. O lavrador há de precisar do crédi-to ao fazer os seus primeiros despachos decafé, e, co-mo os primeiros cafés despachados hão de ser os pri-meiros a entrar no mercado, os despachos posterioresserão acolhidos com desfavor para outras transaçõesde empréstimos ou de venda. Além disso, ao entrar ocafé no mercado, o lavrador para vendê-lo terá de pa-gar a dívida, embora não vencida, ou providenciar asubstituição da garantia, e aí estão mais dificuldades emais despesas". A substituição da garantia era ne-cessária porque o financiamento era concedido contrao café despachado, mas ainda de propriedade do fa-zendeiro. Ao consumar a venda, desaparecia a garan-tia do empréstimo. Ora, as únicas duas garantiaspossíveis, além do café estocado, eram a hipoteca dapropriedade ou o aval de um comerciante. Dessa for-ma, como a hipoteca era pouco utilizada, estava nova-mente o fazendeiro nas mãos dos intermediários.

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Os armazéns reguladores, além disso, contribuíampara fortalecer a posição dos exportadores, na medidaem que estes muitas vezes adquiriam o café estocadono armazém, antes de dar entrada no porto. Evidente-mente, isto acontecia por se encontrar o fazendeiro ne-cessitado de recursos que demoravam a vir, porque seucafé tardava a entrar em Santos; e, em conseqüência,criavam-se as condições para que o exportador pudes-se realizar "bons negócios", ou seja, pagavam ao fa-zendeiro um preço mais baixo do que aquele do merca-do de Santos.

A implantação dos armazéns reguladores prejudicaseriamente a posição das casas comissárias, como éfácil perceber. Entretanto, não resolve para o fazen-deiro o problema do crédito de custeio para expansãoda lavoura. Assim, a situação do sistema financeiro naeconomia cafeeira, durante as primeiras três décadasdo século atual, e, principalmente durante os anos 20,apresentava-se da seguinte forma: de um lado, o velhosistema pelo qual o comissário .era responsável pelocrédito ao fazendeiro encontrava-se em decadência;mas por outro, nenhum mecanismo financeiro alterna-tivo e que funcionasse a contento havia se firmado emseu lugar. Esta era claramente uma etapa de transição,e seguramente alguma modificação de profundidadeiria ser forjada pela economia cafeeira, não fosse a cri-

Comércio e financiamento .de café

se que se segue a 1929. Tal mudança já estava sendo es-boçada pela difusão de agências de bancos públicos eprivados no interior, mais próximas aos fazendeiros.Contudo, restava resolver a questão da garantia aocrédito, pois o empréstimo sobre a garantia do produ-to colhido não resolvia para o fazendeiro, pois se tra-tava de um crédito "tardio" enquanto que o financia-mento com a garantia hipotecária não era utilizado naépoca.

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Qual é a razão para que o empréstimo hipotecáriofosse tão pouco difundido? O mesmo autor acima cita-do afirmava que a hipoteca "é imprópria, onerosa evexatória para empréstimos anuais", de sorte que "aexigência real que o Banco faz, é a do endosso do co-merciante" .38 Evidentemente, o autor quis dizer que ahipoteca era imprópria, onerosa e vexatória para o fa-zendeiro. Pode-se presumir a existência de inúmerasdificuldades para a difusão do crédito hipotecário, in-clusive o despreparo do sistema bancário para atuareficientemente. e com flexibilidade, com tal tipo de fi-nanciamento. Pois o não pagamento do empréstimoimplicaria a alienação da propriedade por parte do fa-zendeiro, e os bancos se veriam pouco a pouco trans-formados em proprietários rurais. Pelas informaçõesdisponíveis, não só os bancos, mas também os co-missários, não desejavam uma situação como essa,vendo-se obrigados a operar fazendas recebidas comopagamentos de dívidas. Entretanto, essa situaçãoocorria porque o mercado de terras não se encontravadesenvolvido suficientemente, pois caso contrário aentrega da terra como pagamento de uma dívida nãoofereceria grandes dificuldades aos bancos: a posse daterra funcionaria de fato como garantia, pois sua ven-da posterior por parte do banco não apenas seria fácilcomo também poderia se realizar com lucros para esteúltimo.

Conforme discussão anterior, uma das conseqüên-cias mais importantes da introdução do trabalho livrena economia cafeeira foi a necessidade de se encontrarum substituto para o escravo, na garantia para os fi-nanciamentos da lavoura. Ora, a única alternativa se-ria a terra, de modo a se desenvolver o crédito com agarantia hipotecária. Para tanto, seria necessário que aterra adquirisse um valor de mercado suficientementeelevado, bem como condições mínimas para uma tran-sação fácil.

Ora, a preço médio da terra de boa qualidadesituava-se em torno de 500Sooo o alqueire, por volta de1920.39 Isto significa que, nessa época, com uma sacade café vendida em Santos a 140Sooo,40 pouco mais detrês sacas poderiam ser trocadas por um alqueire deterra de primeira. Pode-se concluir, assim, sem mar-gem de dúvida, o baixo preço da terra, na década dos20 do século atual. A razão para isso como foi já afir-mado anteriormente, era a abundância de terras novasexistentes no oeste do estado de São Paulo. É poucosurpreendente, dessa forma, que o crédito com garan-tia hipotecária da terra não tenha se desenvolvido:simplesmente a terra se constituía, para usar uma ex-pressão citada acima, numa garantia "perra" para osbancos.

Revista de Administração de Empresas

Ao lado disso, deve ser constatada a resistência dosfazendeiros em fornecer, como garantia a um emprés-timo, a sua fazenda formada. Pois, como foi visto, es-ta última já alcançava um valor de mercado razoavel-mente elevado no período. Contudo, uma lavoura for-mada exigia modestos investimentos do fazendeiro, desorte que a formação de novos cafezais era um negóciode elevada rentabilidade. Entregar esta lavoura, ou pe-lo menos correr o risco de entregá-la, como pagamentode uma dívida junto ao banco, certamente se consti-tuía numa alternativa pouco interessante para o fazen-deiro "possuir de um belo e rendoso cafezal". Não épor outra razão que o autor citado anteriormente a-firmava que a hipoteca "é imprópria, onerosa e ve-xatória para empréstimos anuais".

A decadência do comissário não abre espaço, por-tanto, a um novo sistema de financiamento da lavouraaté os anos 30. Daí o motivo de os comissários, a des-peito de uma perda de posição junto ao fazendeiro,ocuparem nos anos 20 uma função de relativa impor-tância. Afirma um observador em 1927 que "segundocálculos recentes, o comércio comissário de Santosdeve adiantar a lavradores, anualmente, quantia nãoinferior a 500.ooo:oooSOOO" .41Essa soma é, evidente-mente, exagerada: primeiramente porque o autor dacitação era na época, ele próprio, um comissário emSantos; e, principalmente, pelos cálculos que serão de-monstrados mais adiante, quando será constatado queessa quantia equivale a mais de 70% das necessidadesde recursos anuaias da lavoura paulista.

Uma evidência mais confiável é fornecida pelo Sr.Alberto Veiga, secretário da Associação Comercial deSantos em 1922. Afirma o Sr. Veiga que, poucos anosantes de 1922, o comércio comissário de Santos forne-cia cerca de 250.oooSooo à lavoura anualmente e que,"graças aos bons preços do produto e à independênciafinanceira que uma parte da lavoura foi adquirida, ossuprimentos atuais para custeio rural serão, mais oumenos, de uma terça parte de que eram outrora, o queainda assim constitui capital volumoso para atenderàs necessidades agrícolas" .42

Chega-se assim à conclusão de que a decadência docomissário foi seguida por uma intensificação do usode recursos próprios dos fazendeiros, ou de parte de-les, para o custeio e investimento em suas proprieda-des. Um exemplo notável, por suas dimensões eprovável pioneirismo, pode ser encontrado na fazendaGuatapará, de Martinho Prado Jr., localizada em Ri-beirão Preto. Seu administrador, a partir do ano de1912, assim escrevia em 1927: "Para assegurar a boamarcha e a prosperidade de uma grande lavoura e daindústria cafeeira em geral são essenciais três fatores: ocrédito para o custeio, o suprimento de braços e osmétodos científicos de cultura. Crédito, o créditoagrícola, com juros módicos e prazos longos que, emoutros países, tem sido um dos principais propulsoresda riqueza pública," está, entre nós, na sua infância.Observando, em 1912, quando era precária e falha anossa organização financeira, apesar da fazenda nadadever, resolvemos fazer reservas, anualmente, a fim de

provermos, com os próprios recursos, ao nosso eleva-do custeio - hoje cerca de 1.800 contos por ano - eaos melhoramentos e reformas necessárias.t'+' A fa-zenda em questão contava com uma área de 6.354 al-queires e 1.765.498 pés de café, produzindo em 1927cerca de 40 mil sacas. As reservas acumuladas paracusteio atingiram, neste último ano, 5.700 contos, ouseja, mais de três vezes o custeio anual estimado peloadministrador.

A fazenda Guatapará não deveria se constituir emexceção. Obviamente, as possibilidades de contar comrecursos próprios para financiar a produção e o inves-timento na lavoura vinculavam-se à rentabilidade quea produção proporcionava ao fazendeiro. Dependiam,igualmente, do montante exigido pelas operaçõesanuais. Isto é, dos custos de produção e de formaçãode novas lavouras.

Entre 1921 e 1930 a lavoura de café no estado cres-ceu de 843.592 mil para 1.188.058 mil pés." Conse-qüentemente, o crescimento se deu a uma razão médiaanual de 40.000 mil pés. É razoável admitir que, porvolta de 1925, São Paulo contasse com um contingentede um bilhão de pés de café. Como a formação com-pleta da lavoura exigia quatro anos, sendo esta plena-mente formada somente no quinto ano, pode-se con-cluir que existiam, em 1925, cerca de 840.000 mil pésproduzindo e 160.000 mil em formação. A partir de es-tudos do custo de operação e formação da lavoura pa-ra a êpoca=, os cálculos para se avaliar as quantias exi-gidas pela lavoura paulista são os seguintes:

a) Necessidade anual de custeio de 840.000 mil pés- custo de produção de 1 arroba (15 quilos)12$000- produtividade média da lavoura paulista 60 arro-bas 1.000 pés- custo de produção de 60 x 840.000 = 50.400 mil ar-robas 50.400 mil x 12$000 = 604.800:000$000

b) Necessidade anual de financiamento para formaçãode lavouras (40.000 mil pés anuais)- custo de formação de 1pé de café- plantio $ 362- valor da terra $ 350- valor das benfeitorias $&_7uoo~ _- formação (4 anos) $ 160 1$412- administração e diversos $0:,._. ""'7,::,5 _

$235

Observação: plantio, valor da terra e valor da benfei-toria referem-se aos 40.000 mil pés novos anuais; for-mação, administração e diversos estão relacionados aocontingente total de cafezais ainda não produzindo, is-to é, 160.000 mil pés.

- custo total de formação- plantio + valor da terra + valor das benfeitorias1$412 por pé x 40.000 mil = 56.480:000$000- formação, administração e diversos$235 por pé X 160.000 mil = 37.600:000$000- Total 94.080:000$000

c) Necessidade anual de custeio + formação delavoura ..604.800:000$ + 94.080:000$ = 698.880:000$000

Chega-se assim a uma necessidade global de finan-ciamento na lavoura paulista em meados dos anos 20,de aproximadamente 700 mil contos de réis anuais.Mesmo que fosse descontada a metade da quantia esti-mada para a formação de novas lavouras, pois seu cus-to, na maior parte das vezes, não incluía o pagamentodos colonos (conforme foi discutido anteriormente),os recursos necessários para custeio e formação atingi-riam, anualmente, a cifra de 650 mil contos.

Comparando-se a este valor a quantia de 500 milcontos, que os comissários de Santos adiantariamanualmente à lavoura do estado, conforme indicaçãocitada acima, a conclusão seria de que o comércio co-missário, já em decadência, supriria ainda em 1925,mais de 7011,70 das necessidades de recursos dos fazen-deiros de São Paulo. Ora, essa informação não podeser considerada razoável, mesmo deixando de lado evi-dências que se opõem a ela.

A outra informação, do Sr. Alberto Veiga, indicariaum suprimento anual por parte dos comissários deSantos de cerca de 100 mil contos. Isto resulta na ne-cessidade de autofinanciamento de, aproximadamen-te, 550 mil contos, anualmente, Ou, admitindo-se su-primento de outras fontes - Banco do Estado de SãoPaulo e Banco do Brasil, basicamente da ordem de 100mil contos adicionais," ainda assim cerca de 450 milcontos caberiam aos recursos próprios dos fazendei-ros.

Torna-se interessante, com base nessas estimativas,verificar a capacidade de auto financiamento do fazen-deiro, na mesma época. Para tanto, é necessáriocalcular-se a rentabilidade de uma fazenda de café porvolta de 1925. Os dados disponíveis incluem o preço dasaca em Santos, bem como os custos de produção para1922. Existem evidências de que tais custos se elevaramnos anos 20, e por essa razão é preciso obter uma esti-mativa mais próxima da realidade para 1925.

Como não se dispõe de informações mais concretassobre o aumento dos preços dos insumos empregadosna produção, vamos admitir que todos os preços varia-ram na mesma proporção, ou aproximadamente, davariação da remuneração dos colonos, na lavoura pau-lista. Quanto a esta última existem dados do Departa-mento Estadual do Trabalho, cobrindo o período1911-1925, e para um grande número de municípiosdo estado. O procedimento empregado para o cálculodos custos foi o seguinte:

a) Para 1922, usou-se a estimativa da Augusto Ra-mos, que inclui tanto as despesas dentro, quanto forada fazenda (isto é, frete, sacaria, comissões, etc.). Se-gundo este autor, uma saca de café custava ao fazen-deiro em 1922 cerca de 48$000.48

b) Para os demais anos, obteve-se uma estimativa docusto de remuneração dos colonos a partir dos dados

Comércio e financiamento de café

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mensionados, do Departamento Estadual do Traba-lho. Estas estimativas foram comparadas com a esti-mativa para 1922 e, a partir daí, construiu-se um índi-ce de custos de produção para o período 1911-1925.Como os dados de remuneração da mão-de-obrareferem-se a duas modalidades, o pagamento pelo tra-to anual de 1.000 pés e a colheita de I alqueire de 50 li-tros (medida de volume), foi necessário encontrar umamedida única que expressasse, do ponto de vista do fa-zendeiro, a variação total dos custos. Para tanto,calculou-se uma média ponderada entre aas duas re-munerações, sendo os pesos distribuídos de acordocom a informação da estimativa de Augusto Ramos,para 1922.1sto é, 2/3 para o trato anual e 1/3 para acolheita;"

c) A estimativa da remuneração dos colonos deveriaser representativa de toda a lavoura do estado de SãoPaulo. Foram considerados, assim, as remuneraçõesmédias dos municípios de Campinas (zona antiga),Araraquara e Ribeirão Preto (zonas maduras) e, final-mente, Bauru e Rio Preto (zonas novas na época).

76

No que diz respeito aos preços de venda, os dadosindicam o preço médio anual, em Santos. Isto significaque se referem a todo o café destinado à exportaçãopor este porto em cada ano, incluindo, portanto, cafésde diversas qualidades e preços. Além disso, este preçomédio dá conta de possíveis flutuações ao longo doano, e que, para o propósito desse trabalho, é bastan-te adequado. Entretanto, é necessário encontrar não opreço de venda ao exportador, mas sim o preço recebi-do pelo fazendeiro. Com essa finalidade, é apresenta-da a seguir uma "conta de venda" de 1927 para, a par-tir das informações nela contidas, conhecer-se o preçolíquido pago ao fazendeiro (como foi visto, a conta devenda é a nota emitida pelo comissário ao fazendeiro,após a venda de um lote entregue aos cuidados do pri-meiroj.v

Quadro 1

SANTOS, do Julho de 1927.lllm.o Snr •................................

Prezado oenhor:Temos o pruer de dar ablixo I conta de venda n. 1.900, de lOS lacas. com 6.300 b. de caf~

que se serviu consilnar-nos cujo líquido escrltunmos em crédito desua prezada conta, valor pua .

VENDIDO A 30 DIAS

6639

Guiai MiDeiIu .s.co.. $ .

1:640$100

Quiloa DESCRIÇÃO Preço por Im •••••••-cia10 quilos •••..•-

3.9602.340

Caft chato bom poúdo .Caf6 chato bom .

28$000 11 :088$00025$800 6:037$200

105 6.300 ,..----1 17:125$200DESPESASMarca

Taxaouro .Freto .Carreto, _ue ••• goro. etc. a 1$ 500 . zN/comilllo 3% ...•..............

367$500601S600157$500515$500cs.a c. 105

Liquido creditado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 15:484$800

Apadecidoa, _ramos que o resultado d•••• oonta satisfaça plenamente e asuanlando suasnovas e prazadu ordens, noa firmamos com Ilta estima e conaidençlío.

DeV.er.. AttI. o Van.

Revista de Administração de Empresas

A conta mostra a venda de dois tipos de café, apreços distintos. O valor médio por 10 quilos foi de27$183, correspondente a um valor de 163$097 a saca.Este número é bastante próximo do preço médio para1927, que é de 170$401, conforme os dados que serãoapresentados a seguir. Por outro lado, são feitos diver-sos descontos: taxa ouro (para o Instituto do Café),frete, carreto, ensaque, seguro e a comissão de vendade 30;0. Ora, todas estas despesas, por conta do fazen-deiro, já estão incluídas no custo de produção. Dessaforma, muito embora o preço líquido recebido pelo fa-zendeiro seja cerca de 10% mais baixo, como mostra aconta, para efeito de estimativa da rentabilidade da fa-zenda, é indiferente o desconto do preço ou o acrés-címo no custo.

A seguir, são apresentadas as estimativas de remu-neração dos colonos, em valor e em índices a médiaponderada entre as duas remunerações (que, porhipótese, admite-se como índice de custos para operíodo), o custo total de produção (incluindo despe-sas na fazenda e fora dela), o preço médio de venda e amargem de lucro do fazendeiro, por saca.

Quadro 2

RemunençlO do 0010n0 Custo deproduçio

Valor Iadíce=~~~Margem

saca por sacaAno Toto Colheita

Valor lÍJdice Valor I Iadíce

1911 84S 47 $513 53 24$ 49 53$875 30$1912 94$ 53 $573 59 26S 55 57$812 32$1913 I08S 60 $575 59 29$ 60 46$103 17$1914 94$ 53 $580 60 26$ 55 39S016 13$1915 100$ 56 $500 52 26$ 55 36$369 IOf1916 93$ 52 S550 57 26$ 55 45$188 19$1917 98$ 55 $'556 57 27$ 56 41$510 15$1918 98$ 55 $638 66 28$ 59 471390 19$1919 112$ 63 $780 80 33$ 69 94S612 62$1920 114$ 64 '$810 84 34S 71 74$703 41S1921 122$ 68 $820 85 36$ 74 82$395 46S1922 179$ '100 $970 100 48S 100 118S694 71$1923 180$ 101 $710 73 44$ 92 146S875 103$1924 212$ 118 $970 100 54$ 112 205S853 152$1925 270$ 151 1$185 122 68$ 141 215$109 147$1926 170$7001927 170$4011928 204$6201929 191$871

Fontes: a) Remunençlo de 001000: Boldúu do Departamento Estadual do Trabalho (em réis!1.000 pés e colhettade um alqueire de 501itJos)bl Gasto de pl'Oduçlo de 1922: Ramos, AUIUIf:~.op. cit•.p. 199.c Preço de venda: Taunay, Afl'ODJOde E. op. dto ap6nd.ice.

A safra paulista de 1925 superou II milhões de sa-cas. Contando com uma margem de lucro de 147$000por saca, isto resulta em um total de lucros para os fa-zendeiros de mais de 1.600 mil contos de réis. Assimsendo, a quantia de 450 mil contos, necessária para ocusteio e a formação de novas lavouras, quantia estaque deveria sair dos recursos próprios, é modesta,diante da elevadíssima rentabilidade da fazenda em1925.

O mesmo pode ser dito para todos os anos 20, parti-cularmente depois de 1922, conforme indicam os resul-tados apresentados na tabela. Mesmo não tendo sido

possível estimar a rentabilidade para os anos 1926-1929, tudo indica que esta última permaneceu elevada.De acordo com informações de um trabalho já citado,51 o custo de produção para 1927, considerando igual-mente as despesas fora da fazenda, estava em torno de70$ por saca. Isto significa quase o mesmo custo de1925. Mesmo admitindo-se uma elevação das despesasde produção, em 1928 e 1929, certamente o crescimen-to dos preços de venda da saca, em relação a 1927, deveter compensado o aumento dos custos. É razoável ad-mitir, portanto, uma margem mínima de lucro por sa-ca de 100$000 em todos os anos que se seguem a 1925.

Resulta desse fato a constatação de um período ex-tremamente favorável para o fazendeiro, durante pra-ticamente toda a década dos 20. Em conseqüência, aabundância de recursos próprios faz com que não sejasentida a ausência de um sistema de financiamento dalavoura. Explica-se, mesmo não levando em conta adiscussão anterior, o lento desenvolvimento do créditohipotecário durante os anos 20: simplesmente a de-manda da lavoura por financiamento, inexistia dianteda sua lucratividade excepcional. Seria preciso umanova crise de preços baixos no mercado internacional,para que a força econômica e política da lavoura decafé pressionasse e conseguisse obter um novo sistemade financiamento, no lugar do comissário, Entretanto,quando esta nova crise chega, a partir de 1929, levaconsigo precisamente o poder dos fazendeiros e sua ca-pacidade para influir sobre a política econômica.

Jordão, Carlos Miranda. Comércio de café. Sua importânciae evolução dos seus métodos. Influência exercida pelos interme-diários no desenvolvimento das operações. In Ramos, Augusto. OCafé no Brasil e no estrangeiro. Rio de Janeiro, Papo Santa Helena,1923.

2 Telles, Antonio de Queiroz. Sistemas adotados pelos fazendeirosde São P~ulo na venda do café. In O Café no segundo centenário desua introdução no Brasil. Rio de Janeiro, Departamento Nacionaldo Café, 1934,.v.2,p. 465.

3 Taunay, Affonso de E. Pequena história do café no Brasil. Rio deJaneiro, Edição do Departamento Nacional do Café, 1945. p. 173.

4 Idem. I

5 Macedo Soares, José Carlos de. Crédito e café. In O Café no se-gundo centenário de sua introduçõo no Brasil. op. cit. p. 329.

6 Furlan Jr., Antonio. Documentário histórico de Sertãozinho, Ser-tãozinho, Ed. Estabelecimento Gráfico Politipo Ltda, p. 77-8.

7 Silva, Sérgio. Expressão cafeeira e origens da indústria no Brasil.São Paulo, Alfa-Õmega, 1976. p. 59-60.

8 Lima, L. Zacharias de. A Politica do café em São Paulo. O Caféno segundo centenário de sua introdução no Brasil. op. cit. p. 170.

~ Guimarães, Arthur. O Comissário como banqueiro do produtorde café no interior. op. cit. na nota anteior, p. 458.

10 Guimarães, Arthur. op. cit. p. 460.

11 Taunay, Affonso de E. op cit. p. 174. A disparidade entre osnúmeros parece correr por conta de imprecisão de Taunay, que sebaseia no trabalho de Carlos Jordão para fazer a afirmação.

12 Jordão, Carlos de Miranda. A Ação dos comissários no comérciode café. op. cit. p. 398.

13 O autor da entrevista é o Sr. Margarido Pires. Veja o Mecanismodo comércio de café no mercado do Rio de Janeiro, antes e depoisda queda do império. op. cit. p. 543.

14 Fausto, Boris. Expansão do café e política cafeeira. O Brasil re-publicano. São Paulo, Difel, 1975. v.I, p. 211.

15 Idem, p. 213.

16 Para se ver exemplos de "contas de venda", consultar Serva,Mário Pinto. Distribuição das despesas no custo de produção docafé. op. cit. p. 469.

17 Para este ponto, consultar Martins, José de Souza. O Cativeiroda Terra. São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.Parte I; e Ramos, Augusto. op. cit. p. 210-1.

18 Delfim Netto, Antonio. O Problema do café no Brasil. Rio de Ja-neiro, Editora da Fundação Getulio Vargas, 1979. p. 17.

19 Jordão, Carlos de Miranda. A Ação dos comissários no comérciode café, op. cit. p. 398.

20 Delfim Netto, Antonio. op. cit. p. 17-8.

21 Idem, p. 17. O autor parece desconhecer que não se trata de umadiferença de padrão de vida, e sim da diferença fundamental entretrabalho livre e trabalho escravo.

22 Fonte dos dados: Anuário estatístico, Departamento Nacional doCafé, 19311.Para São Paulo, os dados indicam o café posto em San-tos.

23 Veja Delfim Netto, Antonio. op. cit. p. 18 7724 Consultar Souza Martins, José de. op. cit. p. 23 e sego

25 Veja Ramos, Augusto. op. cit. p. 199-202.

26 Idem.

27 Souza Martins, José de. op. cit. p. 33.

28 Ramos, Augusto. op. cit. p. 207-8.

29 Ramos, Augusto. op. cit. tabela situada entre as páginas 67 e 69.

30 Martins, José de Souza. op. cit, p. 84. citação de obra de Piccaro-lo Antonio. L 'Emigrazione italiana nello state di. S. Paulo. SãoPaulo, Livraria Magalhães, 1911. p. 60-2.

31 Além do autor acima, diversos outros trataram desse ponto. Aanálise mais detalhada é de Beiguelman, Paula. A Formação do po-vo no complexo cafeeiro: aspectos políticos. São Paulo, LivrariaPioneira Editora, 1968. p. 113-5. Ramos, Augusto. op. cit., trata doassunto várias vezes. Veja também Holloway, Thomas. Condiçõesde mercado de trabalho e organização do trabalho nas plantações naeconomia cafeeira de São Paulo, 1885-1915. In EstudosEconômicos, IPE-USP, 2 (6), dez. 1972.

32 Veja principalmente a citação de Paula Beiguelman das palavrasde Carlos Botelho na Assembléia Geral à Sociedade Paulista deAgricultura, Comércio e Indústria, em 1902. Beiguelman, Paula.op. cit. p. 114-5.

33 Cerca de 8,5 milhões de sacas no primeiro plano de 1906em dian-te. Veja Ramos, Augusto. op. cit. p. 535.

34 Consultar H. Holloway, Thomas. The Brazilian cofee valoriza-tion of 1906. Wisconsin, Logmark Editions. 1975. Veja ainda Faus-

Comércio e financiamento de café

to, Boris. op. cit.; Delfim Netto, Antonio. op. cito Como narrativados fatos, bem como a defesa do plano, veja Ramos, Augusto. op.cito p. 525-4!1. Augusto Ramos e seu irmão F. FerreiraRamos exer-ceram notável ínfluência no Plano de Valorização de 1906.

35 Calculado a partir dos dados de valor das exportações, apresenta-dos por Afonso de E. Taunay, op. cit,. tabela final.

36 Em relação ao crédito hipotecário e aos armazéns gerais, consul-tar Jordão, Carlos de Miranda. op. cito p. 399; e Telles, Antonio deQueiroz. op, citop. 466.

37 Zacharias de Lima, L. op. citop. 176.

38 Idem, p. 176.

39 Ramos, Augusto. op. cito p. 202. Para confirmação do valor daterra, consultar Boletim do Departamento Estadual do Trabalho,diversos números.

40 Fonte: Taunay, Affonso de E. op. citoapêndice estatístico.

41 Telles, Antonio de Queiroz. op. citop. 466.

42 Veiga, Alberto. Mecanismo de Comércio de café em Santos. InRamos, Augusto. op. citop. 481-2.

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Revista de Administração de Empresas

43 Por riqueza pública entenda-se, naturalmente, riqueza privada.

44 Lima, Antonio Alves de. Uma grande lavoura de café no estadode São Paulo. In O Café no segundo centenário de sua introduçãono Brasil. op. citop. 365.

45 Veja Fausto, Boris. op. citop. 242.

46 Ramos, Augusto. op. cito p. 196 e segoConsultar também Serva,Mário Pinto. op. citop. 469.

47 O Banco do Estado de São Paulo realizou empréstimos hipo-tecários com a lavoura em 1925 no valor de 13.857:100$000; e de pe-nhor agrícola no valor de 7.754:500$000. No total, portanto, poucomais de 20 mil contos. Veja Relatório Anual do Banco. In Boletimdo Instituto do Café. São Paulo, (7): 434-7, abr. 1927.

48 Ramos, Augusto. op. citop. 199.

49 Idem.

50 Fonte: Serva, Mario Pinto. op. citop. 471.

51 Serva, Mario Pinto. op. cito