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18anos Personagem da vida real A vida de Marcos Vinícius Galdino da Silva daria um filme – e ele tem apenas 18 anos. A história do menino é fortemente marcada por episódios tão violentos quanto dramáticos, que tiram o fôlego de quem os ouve. Quando ele finaliza a primeira parte do relato, é quase um alívio perceber que o “final feliz” é, na verdade, o começo: o garoto, que aos 14 anos virou soldado do Terceiro Comando, uma das facções do tráfico, no Rio, conseguiu o feito de sair vivo e mudar de vida, e começa a desenhar planos para o futuro. Hoje ele é aluno do curso de audiovisual da Central Única das Favelas (Cufa) e, para se sustentar, trabalha lá mesmo, como recepcionista e office boy. “Sobrevivi a diversos ataques do Caveirão, que é o carro blindado da Polícia Militar aqui do Rio, e passei por situações de trocas de tiro de mais de uma hora, vendo tijolos se despedaçarem a poucos centí- metros de mim, assim, bem perto do meu corpo. Não sei quantas pessoas vi morrer, mas foi para mais de 50. Lembro que num único dia (era até Dia das Mães) foram 12 moleques de uma vez só”, lembra Galdininho, como é conhecido. Marcos Vinícius está na Cufa há um ano e nove meses. Ganha R$ 500,00 mensais. No tráfico, ganhava o mesmo valor. Só que por semana. Aos 14 anos, além do salário de R$ 2 mil, foi seduzido por promessas de ter poder no morro em que vivia e trabalhava, além de muitas mulheres. Cedo percebeu que a vida é curta para aproveitar o que vem do crime – para os soldados do tráfico, a morte sempre pode estar na próxima viela ou surpreendê-lo no próximo beco. Sozinho aos 14 A entrada de Marcos Vinícius no crime foi rápida – no ritmo de trailer de filme de aventura. Foi agredido pelo padrasto bêbado e no dia seguinte já não morava na mesma casa que a mãe e os cinco irmãos. Apesar da coragem para enfrentar a vida sozinho, o herói dessa aventura muito real era um garoto – tinha apenas 14 anos. Marcos Vinícius Galdino da Silva Central Única das Favelas (Cufa) Rio de Janeiro, capital

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18anos

Personagem da vida real

A vida de Marcos Vinícius Galdino da Silva daria um filme – e ele temapenas 18 anos. A história do menino é fortemente marcada porepisódios tão violentos quanto dramáticos, que tiram o fôlego de quemos ouve. Quando ele finaliza a primeira parte do relato, é quase um alívioperceber que o “final feliz” é, na verdade, o começo: o garoto, que aos 14anos virou soldado do Terceiro Comando, uma das facções do tráfico,no Rio, conseguiu o feito de sair vivo e mudar de vida, e começa adesenhar planos para o futuro. Hoje ele é aluno do curso de audiovisualda Central Única das Favelas (Cufa) e, para se sustentar, trabalha lámesmo, como recepcionista e office boy.

“Sobrevivi a diversos ataques do Caveirão, que é o carro blindadoda Polícia Militar aqui do Rio, e passei por situações de trocas de tirode mais de uma hora, vendo tijolos se despedaçarem a poucos centí-metros de mim, assim, bem perto do meu corpo. Não sei quantaspessoas vi morrer, mas foi para mais de 50. Lembro que num únicodia (era até Dia das Mães) foram 12 moleques de uma vez só”, lembraGaldininho, como é conhecido.

Marcos Vinícius está na Cufa há um ano e nove meses. GanhaR$ 500,00 mensais. No tráfico, ganhava o mesmo valor. Só que porsemana. Aos 14 anos, além do salário de R$ 2 mil, foi seduzido porpromessas de ter poder no morro em que vivia e trabalhava, além demuitas mulheres. Cedo percebeu que a vida é curta para aproveitar oque vem do crime – para os soldados do tráfico, a morte sempre podeestar na próxima viela ou surpreendê-lo no próximo beco.

Sozinho aos 14

A entrada de Marcos Vinícius no crime foi rápida – no ritmo de trailerde filme de aventura. Foi agredido pelo padrasto bêbado e no diaseguinte já não morava na mesma casa que a mãe e os cinco irmãos.Apesar da coragem para enfrentar a vida sozinho, o herói dessaaventura muito real era um garoto – tinha apenas 14 anos.

Marcos Vinícius Galdino da Silva

Central Única das Favelas (Cufa)Rio de Janeiro, capital

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Para se sustentar, Galdininho começou a trabalhar como ajudanteem uma barraca de comida na favela de Acari, zona norte do Riode Janeiro, onde nasceu e se criou. Recebia R$ 50,00 por semana, osuficiente para bancar um quartinho na comunidade. No barraco,havia apenas um colchão fino. O dinheiro não dava para mais nada.Depois de alguns meses dando duro, o negócio começou a ir mal eo garoto atrasou o aluguel. Antes de ser despejado, procurou umconhecido que já havia sido recrutado pelo tráfico.

“Na primeira semana, trabalhei quatro dias e faturei R$ 350,00.Eu era novo. Ficava todo bobo de segurar uma pistola e as meninasapareciam”, narra. Franzino, Galdininho diz ter ganhado postura dehomem ao circular com uma pistola nove milímetros e duas granadasM-16 na cintura. A pistola é largamente utilizada por exércitos domundo inteiro e conhecida por seu poder de transfixação – umúnico tiro é capaz de perfurar o primeiro inimigo (ou obstáculo) eainda atingir o segundo. As granadas, por sua vez, espalhamestilhaços por um raio de 15 a 25 metros. “Eu levava cargas de crackpara vender diretamente aos viciados e, por isso, estava semprecom muito dinheiro. E os policiais sabem que quem carrega ‘a bolsa’está com o dinheiro”, diz.

Galdininho estava sempre pronto para o combate. Mesmoquando passava 24 horas acordado, em vigília. O “expedientenormal” ia das 19 horas às 7 da manhã. Não foram poucas as vezesem que teve de “virar”, devido a incursões policiais ao longo dodia – quando deveria estar dormindo.

Sentença de morte

Foi como soldado do Terceiro Comando, mas de “folga” – desar-mado e sem “flagrante” (drogas) – que passou por uma das situaçõesque considera mais críticas. Abordado por policiais militares, foicolocado sob a mira de três fuzis. Chegou a ouvir a ordem que sooucomo sentença de morte: “Senta e abaixa a cabeça”. “Tive certezade que morreria”, relata Marcos Vinícius.

Foi salvo pela chegada de duas irmãs, uma cunhada e dois sobrinhos.Elas tinham bíblias nas mãos e conseguiram convencer os policiais,apesar da desconfiança, que impera entre moradores das favelas etiras, de que Galdininho não era traficante. Em outra ocasião, tevede pular três muros em sequência. “Até hoje não sei como consegui”.

O episódio que fez Marcos Vinícius sair do tráfico foi uma perse-guição policial da qual participaram ele e dois companheiros. Ostrês fugiam na maior correria e, ao chegar ao final de uma viela,viram que havia duas opções – esquerda e direita. Os dois com-panheiros decidiram à esquerda. Ele, sozinho, optou pela direita. Sónosso personagem sobreviveu.

Criada em Cidade de Deus, Rio de Janeiro, após, 11 anosde existência, a Cufa está representada em 27 estadosbrasileiros e em sete países. O que era um movimento

hip hop, virou a voz organizada dos jovens da periferia.

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Garra

No dia seguinte, devolveu as armas, o rádio e as drogas que ainda carregava. Era seu pedido de demissão. “Nãosei o que fiz com todo o dinheiro que ganhei. Ganhava e gastava com a mesma facilidade”, diz Galdininho. Passoudois dias escondido na casa da família, que o acolheu depois do afastamento durante o período de um ano emque viveu como traficante. No terceiro dia, conseguiu o emprego na Cufa. “Minha vida recomeçou no meu primeirodia de trabalho”, reconhece.

Depois de concluir o curso de audiovisual, o rapaz pretende começar o de informática, a fim de ampliar aspossibilidades de trabalho. Ao sair da Cufa, à noite, o rapaz faz supletivo “para recuperar o tempo perdido”, comoele mesmo diz. Está no 9º ano.

Marcos Vinícius é um garoto de garra – mostrou isso ao sair de casa ainda menino e agora, quando estáreinventando a vida. A Cufa tem como uma de suas marcas revelar e impulsionar talentos e, principalmente, daroportunidade a milhares de jovens com histórias tão dramáticas como a de Galdininho.

Recomeço

Em 11 anos de existência, o que era apenas um grupo de jovens que gostavam de hip hop, ligados pelo fato devirem das periferias e dos morros, transformou-se em uma espécie de “multinacional” do bem. A Cufa, nascidana Cidade de Deus, zona oeste do Rio de Janeiro, está representada em 27 estados brasileiros e em outros paísescomo Austrália, Alemanha, Argentina, Chile, Estados Unidos, Hungria e Uruguai. “O mais interessante é que nãohá brasileiros em todos os países em que há Cufa”, diz a cantora Nega Gizza, que, entre outras funções, é porta-voz da instituição.

A primeira aula do curso de audiovisual, em 2001, foi dada pelo diretor Cacá Diegues. “A favela não se enxergavano cinema, nos vídeos, na TV, e também não participava do processo. Estávamos excluídos de tudo. Além de nãose ver, a favela não fazia”, lembra Gizza. “Agora, temos muita história de gente que conseguiu se encontrar comesses cursos e hoje tem a própria produtora, ganha sua grana”, diz ela. “Quando atraímos os jovens para as oficinasde teatro, break, graffiti, DJ, skate, artesanato, informática ou basquete de rua, usamos esse período que passamoscom eles para falar de inclusão social, levar valores, apontar novos rumos possíveis”, explica Gizza.

A principal amálgama do grupo, atualmente, é o basquete de rua. Em abril, um egresso das quadrasimprovisadas sob viadutos das grandes cidades do país virou o primeiro representante brasileiro no lendário timedos Harlem Globetrotters. Wilson de Melo, de 26 anos, assinou contrato de um ano com o time de exibicionistasamericano – mais um menino nascido no Brasil que merecia um filme sobre sua história.

O happy end que a Cufa oferece para muitos jovens é, na verdade, uma oportunidade de recomeçar. Não háfinal mais feliz do que poder refazer a vida depois de um, de dois, ou sabe-se lá de quantos tropeços.

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Levantamento feito pela UNESCO e peloMinistério da Justiça intitulado “Mortes ma-tadas por armas de fogo no Brasil de 1979 a2003” revelou que um em cada três jovens quemorria no país fora ferido por bala. Segundoas estatísticas, das 550 mil vítimas fatais porarmas de fogo no período, 205.722 – mais de44% – tinham de 15 a 24 anos. O quadro eratão grave que a sociedade se mobilizou parapressionar o Congresso Nacional a aprovar oEstatuto do Desarmamento – a campanhaBrasil sem Armas estimulava o cidadão a en-tregar voluntariamente suas armas em postosde coleta.

Graças à iniciativa, entre 2003 e 2004,houve uma redução de 8,2% no número demortes causadas por arma de fogo no Brasil –o equivalente a mais três mil vidas poupadas.Os dados são da pesquisa “Impacto da cam-panha do desarmamento no índice nacionalde mortalidade por arma de fogo”, do Minis-tério da Saúde. Em 22 de dezembro de 2003, opresidente da República sancionou o Estatutodo Desarmamento, restringindo a circulaçãode armas em todo o território nacional.

Além da violência letal, durante o ano de2003, a população brasileira, majoritariamenteconcentrada nas regiões sul e sudeste do Bra-sil, foi apresentada à dura realidade de meni-nos e meninas do semiárido nordestino. Estetambém foi um ano em que a desigualdadesocial figurou em relatórios e pesquisas queocuparam farto lugar na mídia. Ficou evidentequal era o perfil dos brasileiros nascidos nasclasses mais altas e como eram os brasileirosnascidos em condições vulneráveis.

O estudo “Crianças e adolescentes no

semiárido brasileiro” (UNICEF, 2003) mos-

trou que, em 95% das cidades do semiárido –

2003

Um em cada três jovens morre por

arma de fogo no país; Estatuto do

Desarmamento é sancionado

Especial Criança Esperança homenageia Roberto Marinho

e apoia Brasil com menos armas de fogo

uma extensa região que corta nove estados

do Nordeste, a parte setentrional de Minas

Gerais e o norte do Espírito Santo –, a mor-

talidade infantil era superior à média na-

cional. Mais de 390 mil adolescentes (10,15%)

eram analfabetos e os que concluíam o ensino

fundamental levavam cerca de 11 anos para

fazê-lo. Cerca de 75% de crianças e adoles-

centes viviam em famílias cuja renda per ca-pita não chegava a meio salário mínimo, e

quase a metade delas não tinha acesso a rede

geral de água, poço ou nascente.

De acordo com o relatório “Situação da

infância e adolescência no Brasil” (UNICEF,

2003), as crianças que viviam entre os 20%

mais pobres da população iam menos à es-

cola do que as pertencentes às famílias mais

ricas: entre 12 e 17 anos, 20% das mais pobres

não estudavam, contra 4% das mais ricas.

Raça

O mesmo estudo mostrava, ainda, que os

adolescentes negros tinham menos oportuni-

dades de estudar do que os brancos, assim

como as pessoas com deficiência.

Outro fator que influenciava considera-

velmente o bem-estar e o desenvolvimento de

crianças e adolescentes era a escolaridade de

suas mães – quanto menos tempo de estudo

as mulheres haviam tido, maiores as chances

de seus filhos serem pobres, não frequentarem

as aulas, ficarem doentes e não terem acesso

a saneamento básico. Muitos deles também

começavam precocemente a contribuir com o

orçamento doméstico: entre os filhos de mães

que não estudaram, 13% trabalhavam. Entre

as crianças e os jovens cujas mães tinham

ao menos 11 anos de estudo, por sua vez, ape-

nas 3% estavam no mercado.Na televisão, artistas consagrados partici-

param de campanha do Ministério da Edu-cação contra a evasão escolar, que chegavaa 10% ao ano. No mesmo ano, foi inau-gurado em Olinda, Pernambuco, no bairrode Rio Doce, o quarto Espaço Criança Espe-rança, com o intuito de beneficiar dois miljovens e crianças. Assim como os outros trêsmunicípios (Rio de Janeiro, São Paulo e BeloHorizonte), o Espaço de Olinda fica em umbairro marcado pela exclusão social e temuma particularidade: em Rio Doce, havia altoíndice de crimes cometidos contra crianças.Somados, os quatro Espaços Criança Espe-rança passaram a atender diretamente cercade seis mil crianças e adolescentes.

Homenagem

No ano da morte de Roberto Marinho,o jornalista foi homenageado no especialCriança Esperança, realizado no Ginásio doIbirapuera. O aniversário de 450 anos da ca-pital paulista, que seria comemorado noano seguinte, também foi lembrado, assimcomo o nome de Gabriela Prado, adolescenteassassinada no metrô do Rio de Janeiro, quevirou símbolo de uma ampla campanha pelapaz. O programa abordou a desnutrição, afome e a violência que assombravam as crian-ças e os adolescentes brasileiros, e apoiou acampanha pelo desarmamento.

De sua criação até o ano de 2003, o Criança

Esperança havia arrecadado mais de R$ 130

milhões, apoiando cerca de 4,8 mil projetos e

beneficiando mais de 2,7 milhões de crianças

e adolescentes brasileiros.

CO

NTEXTO

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“Antes de tudo, é preciso destacar a credibilidade do trabalho do Criança Esperança nesses 25 anos.Só com muito profissionalismo e coragem se faz algo tão grandioso, capaz de mobilizar um país,estimular a discussão sobre nossos jovens e crianças e, de fato, melhorar vidas. Para mim, é uma honrafazer parte dessa história e poder ajudar a Rede Globo e a UNESCO, parceiras e grandes responsáveispelo sucesso do Criança Esperança. Acredito que projetos como esse, que têm entre seus pilares aeducação e o aprendizado, são a base para um Brasil melhor.”

Foto

: Divu

lgaçã

o

Nizan Guanaes Presidente da Associação de Empreendedores Amigos da UNESCO

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