12.:Layout 1criancaesperanca.globo.com/platb/files/2091/theme/12.cap12.pdf · menores de 5 anos...

6
Mudando a história Aline Cristina Oliveira Cavalcanti tem 12 anos. Frequenta aulas de teatro, viola, violino e cidadania. “Ela está no 6º ano do Ensino Fundamental e tem notas excelentes”, diz a mãe, Lucivânia Oliveira, sem disfarçar o orgulho. “Gosto de tudo”, diz Aline, sem conseguir eleger sua atividade preferida. Essa seria uma agenda até certo ponto comum de uma menina de classe média, da região sudeste do Brasil. Mas Aline é uma garota criada na periferia de Belém do Pará, cidade com um dos mais baixos Índices de Condições de Vida (ICV) do país – o indicador criado pela Fundação Getúlio Vargas que mescla dados do IBGE à pesquisa de satisfação da população em relação à oferta de serviços públicos essenciais. Belém do Pará, conhecida pela beleza das suas mangueiras, com frequência aparece na mídia por outro motivo: prostituição infantil e violações recorrentes aos direitos das crianças e dos adolescentes. Nos anos 1990, surgiram as primeiras denúncias de meninas escravizadas sexualmente nos garimpos do Pará e de meninas prostituídas em um dos principais cartões-postais da cidade: o mercado do Ver-o-peso. Nos anos 2000, a imprensa denunciou a triste situação das chamadas “meninas balseiras” da ilha de Marajó, que trocavam sexo com marinheiros por garrafas de combustível – algumas das envolvidas tinham apenas 7 anos. Em 2008, o Brasil, estarrecido, viu uma adolescente de 15 anos acusada de furto permanecer presa durante 26 dias numa cela com homens, na cidade de Abaetetuba, a apenas 97 quilômetros da capital paraense. Durante o período, ela foi estuprada diversas vezes. No decorrer do processo, ficou claro que policiais e a juíza sabiam do que ocorria na cela. Aline Cristina Oliveira Cavalcanti Movimento República de Emaús Belém, Pará 12anos

Transcript of 12.:Layout 1criancaesperanca.globo.com/platb/files/2091/theme/12.cap12.pdf · menores de 5 anos...

Mudando a história

Aline Cristina Oliveira Cavalcanti tem 12 anos. Frequenta aulas deteatro, viola, violino e cidadania. “Ela está no 6º ano do EnsinoFundamental e tem notas excelentes”, diz a mãe, Lucivânia Oliveira, semdisfarçar o orgulho. “Gosto de tudo”, diz Aline, sem conseguir eleger suaatividade preferida. Essa seria uma agenda até certo ponto comum deuma menina de classe média, da região sudeste do Brasil. Mas Aline éuma garota criada na periferia de Belém do Pará, cidade com um dosmais baixos Índices de Condições de Vida (ICV) do país – o indicadorcriado pela Fundação Getúlio Vargas que mescla dados do IBGE àpesquisa de satisfação da população em relação à oferta de serviçospúblicos essenciais.

Belém do Pará, conhecida pela beleza das suas mangueiras, comfrequência aparece na mídia por outro motivo: prostituição infantil eviolações recorrentes aos direitos das crianças e dos adolescentes. Nosanos 1990, surgiram as primeiras denúncias de meninas escravizadassexualmente nos garimpos do Pará e de meninas prostituídas em umdos principais cartões-postais da cidade: o mercado do Ver-o-peso.

Nos anos 2000, a imprensa denunciou a triste situação daschamadas “meninas balseiras” da ilha de Marajó, que trocavam sexocom marinheiros por garrafas de combustível – algumas das envolvidastinham apenas 7 anos. Em 2008, o Brasil, estarrecido, viu umaadolescente de 15 anos acusada de furto permanecer presa durante 26dias numa cela com homens, na cidade de Abaetetuba, a apenas 97quilômetros da capital paraense. Durante o período, ela foi estupradadiversas vezes. No decorrer do processo, ficou claro que policiais e a juízasabiam do que ocorria na cela.

Aline Cristina Oliveira Cavalcanti

Movimento República de EmaúsBelém, Pará

12anos

12.:Layout 1 10/4/10 7:37 PM Page 90

12.:Layout 1 10/4/10 7:37 PM Page 91

92

menores de 5 anos –, um número estarrecedor; assimcomo é estarrecedor o fato de que, entre os acusados, hátodo tipo de gente – inclusive quem deveria resguardar ainfância: conselheiro tutelar, vereador, deputado estadual,médico e padre.

“Há casos em que crianças são trazidas do interior coma promessa de virem a Belém para estudar e sãoescravizadas como empregadas domésticas ou exploradassexualmente”, conta Nazaré Araújo, coordenadorapedagógica da ONG, que tem cinco linhas de ação: aeducação não formal, a formação profissional, a proteçãojurídico-social e mobilização social. Sob os dois últimosfocos, é impossível falar das conquistas da infânciabrasileira, como a criação do Estatuto da Criança e doAdolescente, em 1990, sem citar o trabalho do Emaús, que,desde a década de 1980, trabalhou na formação doMovimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua eorganizou I Encontro Nacional de Meninos e Meninos eRua, em Brasília, em 1986.

“Houve uma época em que trabalhávamos mais comcrianças e adolescentes que estavam na condição devítima. Hoje atendemos a esse público e, ao mesmo tempo,trabalhamos com prevenção”, diz Ana Lúcia da SilvaBarreira, coordenadora dos projetos de socialização eeducadora do Emaús desde 1979.

Evolução

Na década de 1970, quando o Emaús surgiu, estavavoltado, sobretudo, para os jovens trabalhadores do

Oportunidade

Nesse contexto, onde a gravidez na adolescência(assim como a evasão escolar) faz parte do cotidiano, aagenda de Aline representa uma oportunidade queatende pelo nome de Movimento República de Emaús,uma instituição pioneira no trabalho junto a crianças eadolescentes em situação de rua, e expostos à violênciae à exploração sexual. Nem da aula de cidadania, amenina tenta escapar e traz o discurso na ponta dalíngua: “A gente não está na rua se envolvendo compessoas más. Estamos sempre em alerta. Somoseducados para não brigar com os colegas e para entrarem coisas boas”, diz.

A mãe de Aline diz que a menina tem muitasoportunidades no Emaús. “No período de férias, por ela,seria o dia inteiro no projeto. E eu estou achando ótimo,porque vejo que ela está se desenvolvendo, gostando,aprendendo. É um compromisso, faz ela acordar cedopara ir”, diz a mãe, sinalizando que também faz suaparte em casa: “Mostro as coisas que saem no jornalpara ela”.

CPI da Pedofilia

Em fevereiro de 2010, a Assembleia Legislativa do Paráaprovou o relatório final da CPI da Pedofilia, que consumiuum ano de trabalho. Os deputados concluíram que maisde 100 mil casos de violência, abuso e exploração sexualforam registrados naquele estado só nos últimos cincoanos – um quinto deles, ou seja, 20 mil, praticados contra

12.:Layout 1 10/4/10 7:37 PM Page 92

93

mercado Ver-o-peso, no centro da cidade. Em seguida, incorporou os outros bairros e deixou de ter apenas o trabalhoinfantil como foco, incluindo as vítimas da exploração sexual. Atualmente, duas mil pessoas são beneficiadas pelasatividades – 400 crianças e adolescentes de forma direta. Entre os 70 profissionais envolvidos no projeto, vinte dedicam-se ao atendimento das mães, com cursos de geração de renda ou atendimento psicológico. “Atender a mãe ajuda acriança, estreita os laços de família”, avalia Ana Lúcia.

O Emaús trabalha com jovens de até 18 anos e oferece uma série de atividades, como reforço em matemática eportuguês, além de aulas de informática para aumentar sua empregabilidade. “Nossa intenção é gerar oportunidade”,sustenta Nazaré. Nayane Nunes da Encarnação, de 17 anos, passou pelo Emaús e agora participa, numa parceria como Sesi/Senai, de um curso profissionalizante de auxiliar de administração. “Quando eu puder abrir meu ateliê de costura,vou saber tomar conta do negócio”, planeja.

“Deixamos nos meninos a marca indelével do Emaús”, diz Ana Lúcia, sem medo de parecer arrogante. Emaús é acidade onde Jesus, ressuscitado, caminhou com dois discípulos, mas só foi reconhecido por eles ao dividir um pão. “Amensagem que queremos passar é a da solidariedade, do acolhimento”, resume Nazaré. Multiplicar essa ideia vemsendo a fórmula encontrada para ajudar a combater os números assustadores que ilustram o drama das criançasexploradas da Amazônia.

Movimento República de Emaús tem tradição na luta em prol dos direitos da infância. Atua no Pará, onde há muitasdenúncias de violações aos direitos dessa população.

12.:Layout 1 10/4/10 7:37 PM Page 93

94

Brasília já estava silenciosa quando cinco

jovens de classe média alta passaram por um

ponto de ônibus na Asa Sul, bairro também

de classe média alta, e viram um homem dor-

mindo em um banco da parada. Jogaram um

litro de álcool no corpo adormecido e atearam

fogo ao índio pataxó Galdino Jesus dos Santos,

de 45 anos, que chegara um dia antes à capital

federal para participar de manifestações pelo

Dia do Índio. Ele era líder do povo Hã-Hã-Hãe

e morreu com 95% do corpo queimado. Os ra-

pazes alegaram estar “brincando”, porque te-

riam achado que a vítima era “apenas um

mendigo”. Dos cinco envolvidos, apenas um

dos rapazes era menor de idade, embora todos

fossem muitos jovens.

Passaram-se quatro anos até sair uma sen-

tença de homicídio qualificado. Conforme o

olhar da Justiça à época do crime, não teria

havido discernimento por parte dos acusados.

O episódio teria sido uma fatalidade.

A repercussão do caso Galdino revelou

outras atrocidades cometidas por gangues e

grupos de jovens brasilienses, como a queima

de mendigos, os arrombamentos de carros e

os espancamentos de travestis, prostitutas e

gays. Segundo o Ministério da Saúde, houve

um crescimento de 702% nas taxas de homi-

cídios cometidos por jovens do Distrito Fede-

ral entre 1979 e 1995.

Em 1997, o estudo “Traçando caminhos

numa sociedade violenta: a vida de jovens in-

fratores e seus irmãos não infratores”, do pes-

quisador Vicente P. Faleiros, ganhou a mídia,

como uma tentativa de explicar a violência

entre os jovens. Ele conversou com mães de

infratores em Recife e Rio de Janeiro e desco-

briu características em comum entre essas po-

1997

Em Brasília, jovens de classe média

queimam o índio Galdino;

no Rio de Janeiro, infratores fazem rebeliões

Renato Aragão faz campanha sobre certidão de nascimento gratuita

independentemente de comprovação da renda familiar

pulações: a maioria havia rompido relações

familiares, estava desempregada e havia pas-

sado por muitos fracassos escolares. Pertencer

ao crime organizado ou a uma gangue era

uma forma de desenvolver nova identidade.A UNESCO, por meio da representação do

Brasil, criou uma linha específica de pesquisa“Juventude, Violência e Cidadania”, reunindodiversos especialistas, para aprofundar o en-tendimento sobre a juventude no Brasil. Combase na série histórica de dados produzidospor esses trabalhos, oito anos depois, em 2005,a UNESCO também elaborou estratégias es-pecíficas de inclusão social voltadas para jo-vens, que tiveram como um dos resultados aqueda da violência letal na faixa etária.

É nesse contexto de comoção quanto aoscrimes cometidos por jovens que, em agostode 1997, foi realizada em Brasília a II Confe-rência Nacional dos Direitos da Criança e doAdolescente, para fazer a avaliação dos seteanos do ECA. Os participantes elaboraramuma espécie de declaração política sobre a ne-cessidade de manter crianças e adolescentescomo prioridade absoluta do país.

Mobilização municipal

Para combater a violência sexual, foi cria-

da a Comissão Interinstitucional da Região

Centro-Oeste de Combate à Exploração Sexual

de Crianças e Adolescentes (Circo), com a

participação de 1.628 municípios. O pro-

blema estava arraigado na sociedade. No

estado do Rio de Janeiro, um caso foi especial-

mente acompanhado: na zona rural de

Sapucaia, uma menina de 11 anos engravidou

após sofrer um estupro em meio à lavoura.

O aborto foi autorizado pela Justiça, mas,

no dia do procedimento, os pais da menina

voltaram atrás e determinaram que ela le-

varia a gestação adiante. Ela teve o filho e

deu a guarda da criança para os avós.

Num ano de notícias difíceis no Brasil,

crianças africanas morreram de Aids diante

das mesmas câmeras de TV que mostraram a

morte precoce da princesa Diana, que tantas

campanhas fez em prol dos pequenos daquele

lado do mundo.

Certidão gratuita

Não obstante tudo isso, 1997 também teve

boas notícias. Em uma parceria do UNICEF

com a Fundação Abrinq e a Pastoral da

Criança, foi lançado o programa Prefeito

Amigo da Criança, com apoio das fundações

Ford e David e Lucile Packard. Pela iniciativa,

os governantes assumiram o compromisso

de priorizar uma agenda para a infância, re-

cebendo, em troca, material para planeja-

mento e verificação dos resultados.

Outra boa notícia veio do Congresso Na-

cional, que aprovou a Lei nº 9.534, garantindo

gratuidade no registro civil e na primeira

certidão de nascimento a todas as crianças

brasileiras, independentemente da comprova-

ção da renda familiar.

Para que os cidadãos conhecessem o direi-

to recém-conquistado, Renato Aragão gravou

um spot sobre o assunto, que foi veiculado por

emissoras de TV de todo o país. O humorista

esteve à frente do programa Criança Esperan-

ça, apresentado naquele ano no Ginásio do

Ibirapuera, em São Paulo, com especial dedi-

cação ao ECA e aos direitos da infância e da

adolescência.

CO

NTEXTO

12.:Layout 1 10/4/10 7:37 PM Page 94

95

“Ao relembrar a trajetória do Criança Esperança, desde os heróicos anos 80, começaria destacando aimportante contribuição que o programa deu à criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, quandoa parceria da TV Globo ainda era com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Olhando aolongo desses 25 anos, não há duvida de que conseguimos criar uma ação mobilizadora. Contamos comas contribuições pessoais, que sempre foram a marca do programa, e hoje também temos doaçõesempresariais, importantes para o futuro do projeto. Mais recentemente, a partir da parceria com aUNESCO, intensificamos as campanhas de prestação de contas. Isso fortalece a credibilidade do programajunto à sociedade brasileira à medida que mostra, de forma transparente, como os recursos são aplicadosem todo o país. Esse tipo de iniciativa demonstra claramente a importância do programa e o fortalece.O Criança Esperança é o projeto social de maior abrangência da Rede Globo.”

Foto

: Zé P

aulo

Car

deal

/TV

Glob

o

Octávio FlorisbalDiretor-geral da TV Globo

12.:Layout 1 10/4/10 7:37 PM Page 95