(17)Diego Mesti

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244 O éthos da música e da cidade grega Diogo Norberto Mesti 1 RESUMO: Do ponto de vista histórico, a música na Grécia é importante em três momentos: (i) no intuitivo dos aedos arcaicos, (ii) no teórico de Damão e (iii) no legislativo em Platão e Aristóteles. O presente artigo explica a origem de uma postura filosófica que nasceu nessa época: a necessidade da música na educação da primeira infância para manter os costumes (éthos) dos cidadãos de acordo com os valores da cidade. Para tanto, toma-se como paradigma a reflexão de Platão e de Aristóteles sobre o papel da música na educação e evidencia-se a adoção que ambos fazem da mousiké na educação dos jovens, a partir de critério filosóficos. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia Antiga; Música; éthos; Educação. ABSTRACT: From the historic point of view, music in Greece is important in three moments: (i) the intuitive one of archaic aedos, (ii) the theoretical one of Damon and (iii) the legislative one with Plato and Aristotle. This article explains the origin of a philosophical posture that was born with the Greek: the tacit need for music in education during the first childhood to maintain the costums of the citizens (éthos) according to the values of the city. In order to do that, we use the philosophical reflection of Plato and Aristotle on the role of music in education and the use that both make of the music in youngsters education, as of philosophical criteria. KEY WORDS: Ancient Philosophy; Music; ethos; Education. 1. Introdução O objetivo deste trabalho, cujo estudo se faz a partir da noção de éthos, é explicar algumas reflexões filosóficas sobre a educação musical. Convém destacar que, antes da tese de que a música preserva os costumes, há outra subjacente, a de que as músicas tocadas em certas cidades refletem os hábitos de seus cidadãos. É nessa via de mão dupla, onde a música 1 Doutorando em Filosofia Antiga UFMG e Professor de Filosofia do Direito na Faculdade de Ciências Jurídicas de Diamantina, MG. [email protected]

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Tese de mestrado em música, na Universidade Estadual de Campinas, ênfase em violino.

Transcript of (17)Diego Mesti

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    O thos da msica e da cidade grega

    Diogo Norberto Mesti1

    RESUMO: Do ponto de vista histrico, a msica na Grcia importante

    em trs momentos: (i) no intuitivo dos aedos arcaicos, (ii) no terico de

    Damo e (iii) no legislativo em Plato e Aristteles. O presente artigo

    explica a origem de uma postura filosfica que nasceu nessa poca: a

    necessidade da msica na educao da primeira infncia para manter os

    costumes (thos) dos cidados de acordo com os valores da cidade. Para

    tanto, toma-se como paradigma a reflexo de Plato e de Aristteles sobre

    o papel da msica na educao e evidencia-se a adoo que ambos fazem

    da mousik na educao dos jovens, a partir de critrio filosficos.

    PALAVRAS-CHAVE: Filosofia Antiga; Msica; thos; Educao.

    ABSTRACT: From the historic point of view, music in Greece is important

    in three moments: (i) the intuitive one of archaic aedos, (ii) the theoretical

    one of Damon and (iii) the legislative one with Plato and Aristotle. This

    article explains the origin of a philosophical posture that was born with the

    Greek: the tacit need for music in education during the first childhood to

    maintain the costums of the citizens (thos) according to the values of the

    city. In order to do that, we use the philosophical reflection of Plato and

    Aristotle on the role of music in education and the use that both make of

    the music in youngsters education, as of philosophical criteria.

    KEY WORDS: Ancient Philosophy; Music; ethos; Education.

    1. Introduo

    O objetivo deste trabalho, cujo estudo se faz a partir da noo de

    thos, explicar algumas reflexes filosficas sobre a educao musical.

    Convm destacar que, antes da tese de que a msica preserva os costumes,

    h outra subjacente, a de que as msicas tocadas em certas cidades refletem

    os hbitos de seus cidados. nessa via de mo dupla, onde a msica

    1 Doutorando em Filosofia Antiga UFMG e Professor de Filosofia do Direito na Faculdade de Cincias

    Jurdicas de Diamantina, MG. [email protected]

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    reflete os hbitos da alma e pode mant-los na cidade, que ser visto como

    a discusso filosfica sobre o thos devedora da Msica. Por isso, no

    exagero defender que a possibilidade de virtudes morais est vinculada ao

    efeito de alegria, de tristeza, de euforia ou de mpeto, que a msica causa.

    Em geral, a virtude da msica est na escolha do momento apropriado para

    o seu uso na educao.

    A educao dos aedos arcaicos dependente da memria auditiva

    dos gregos, o nico elemento eficiente para a manuteno de um saber em

    uma poca anterior escrita. Essa inteligncia auditiva o paradigma

    para a reflexo que Plato e Aristteles fazem sobre o incio e os

    fundamentos da educao. Eles levantam a hiptese de que o thos de uma

    comunidade gera, pela msica, disposies morais nos indivduos. Alm

    disso, os filsofos afirmam que se deve prestar ateno nos tons

    predominantes que caracterizam a msica e em como essas tonalidades dos

    modos gregos se ligam ao contedo do discurso (logos) que transmitido.

    2. Como a msica afeta a alma?

    O ponto de partida deste estudo a cultura grega dos aedos. Para se

    chegar at a relao entre virtude, filosofia e msica, preciso se deter nos

    cantores que no so apenas poetas, mas tambm guerreiros. O centauro

    Quirn o paradigma arcaico do guerreiro musicalizado que paira pelos

    cantos da Ilada. Ele o lendrio mestre de Aquiles, que lhe ensina o

    manejo das armas e o tocar da lira. Msico-curador, mestre de Aquiles e de

    outros heris, pode personificar a ligao inseparvel que a msica tem

    com a arte de curar sob a forma de encantamento (NASCIMENTO, 2001,

    p. 159). Motivado por essa musicalizao associada s tticas de batalha,

    Aquiles, na Ilada, capaz de afastar sua tristeza por meio da msica:

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    cantando e acompanhando-se pelo phrminx (que um instrumento de

    cordas da antiguidade grega) (ibidem).

    Nesses e em outros casos, a msica serve tanto para consolar os

    homens tristes, quanto para restaurar o vigor do exrcito abatido. Essas

    aplicaes especficas, dentre inmeras outras,2 tornam a msica essencial

    para a cidade, visto que ela tranquiliza os bebs, d vigor aos jovens e

    robustez aos adultos. H uma longa histria de como a msica era usada

    nas comunidades arcaicas e, com o advento da escrita, foi inevitvel que

    ela se tornasse objeto de reflexo filosfica nas cidades gregas.

    Basicamente, eram estes os questionamentos a que os filsofos queriam

    responder: a msica pode refletir os costumes de uma cidade? E, no caso de

    uma resposta positiva, eles tambm se perguntavam quais seriam os efeitos

    psquicos e polticos das diversas formas de musicalidade?

    O uso que os gregos fazem da msica nasce de um duplo sentido

    existente em nmos: a saber, o esttico e o tico. No tocante ao sentido

    esttico, uma norma significa, na teoria musical grega, certos grupos

    meldicos que serviam como unidades estruturais para compor melodias

    mais extensas, isto , grupos de ritmo que se repetem e criam o que se

    chama de cadncia ou linearidade de uma msica. Por isso esses grupos

    eram denominados pelos gregos de nmos, plural nomi, e representavam

    toda a fora dinmica da msica (NASSER, 1997, p. 242, 246).

    Srbom, ao tratar da sensao (aisthsis) grega da sonoridade,

    retoma a ideia dos sensveis comuns utilizada por Aristteles para

    esclarecer como o movimento pode ser percebido. O movimento do som

    no impe a sua matria naquele que o percebe, pois apenas suas formas e

    qualidades aparecem na mente daquele que percebe (SRBOM, 1994, p.

    2 Para mais detalhes sobre a msica grega antiga e algumas fontes que se preservaram desse perodo, vide

    Gamberini (1962), que apresenta uma extensa documentao da msica grega at o medievo.

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    37). O sentido comum do movimento sintetiza as informaes recebidas

    pelos diferentes sentidos em algo complexo e de origem mltipla. como

    perceber o bumbo tanto pelo barulho, quanto pelo impacto provocado em

    nosso corpo. Tem-se, dessa forma, segundo Srbom (ibidem, p. 38), uma

    imagem do mundo dos particulares. De certo modo, o nmos da msica,

    assim como o movimento rtmico, pode ser visto como um sentido comum

    das percepes dos tons musicais, que conjuga as partes entre si gerando

    padres rtmicos dentro das melodias. Em outras palavras, como assevera

    Srbom (ibidem, p. 41): as qualidades particulares formadas na mente do

    ouvinte so os ritmos e as harmonias, e esses ritmos possuem qualidades

    ticas.

    E quanto ao sentido tico, como esses nomi da msica representam

    e afetam eticamente a alma? A tese de que a msica afeta o psiquismo

    humano est pautada na possibilidade de ela ser oriunda da prpria alma,

    assim como, para Plato, a prpria cidade um reflexo similar da alma de

    seus governantes.3 A msica promove uma intermediao da alma cidade

    e da cidade alma dos jovens. E, por ser imitao, no se pode confundir o

    produto da imitao com aquilo que foi imitado. Assim sendo, as

    composies de msica so imagens do carter porque o ouvinte sabe que

    elas no so nem reais e genunos signos de um carter e nem o carter em

    si mesmo; elas so apenas similares a ele (SRBOM, 1994, p. 44).

    A msica (com seu nmos, ritmo e harmonia) representa o thos das

    pessoas de uma comunidade e corrobora para que os eth sejam mantidos

    na cidade. Desse modo, foi por intermdio de uma fala rtmica e carregada

    dos nomi que os aedos encontraram a primeira forma de manuteno e

    3 Para ficar restrito a apenas um comentador dos antigos que se refere atualidade, sem entrar no

    problema da msica no ser mais considerada, atualmente, imagem da alma e imitao de sentimentos,

    vale citar Srbom (1994, p. 37): Em nosso tempo, ao contrrio dos antigos, no natural olhar composies musicais como imagens de algo ou dizer que ouvimos imagens.

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    transmisso de seus costumes. A partir disso, estudiosos concluram que a

    poesia foi a primeira forma de legislar,4 pois, embora ela no tenha

    criado o conjunto de valores que permitiu o surgimento da vida em

    sociedade, ela criou o meio para preserv-los e trasmiti-los em uma poca

    anterior escrita. com o advento da escrita que os filsofos gregos

    passaram a legislar sob bases mais estveis a respeito dos costumes

    religiosos at os musicais.

    Com o tempo, o arcabouo de influncias da msica tornou-se

    complexo e inigualvel, tanto do ponto de vista pedaggico quanto do

    comunitrio e do filosfico. Isso porque a msica possui uma enorme

    abrangncia de estilos, consequentemente, existem msicas que despertam

    vcios quando utilizadas no momento inoportuno, ou virtudes, no momento

    oportuno.5

    A reao das emoes s melodias significa um despertar de

    diferentes movimentos psquicos a partir da cadncia da msica que

    influencia o thos da alma. em razo da cadncia e dos sentidos tico

    (relacionado virtude) e esttico (relacionado ao prazer) de nmos que a

    msica gera um thos. O nmos musical, se seguido fielmente, torna-se o

    ritmo da msica e esse, por sua vez, cria uma harmonia e um hbito na

    alma. Nasser, comentando o momento em que Plato diz preferir Apolo e

    os instrumentos apolneos,6 salienta que isso ocorre porque a msica

    advinda da ctara, por uma sonoridade litrgica em dedicao a Apolo,

    imprime um thos viril, grave e majestoso, em razo das leis de sua

    harmonia que inspiram linearidade. Alm desse thos da ctara, a harmonia

    4 MOUTSOPOULOS, 1989, p. 177.

    5 Para Plato, os estilos chorosos so os de base ldia; o adequado aos banquetes so os jnios e, tambm,

    o ldio; e o dos guerreiros, o drio e o frgio (Repblica, III 398e). 6 Repblica, III 399.

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    drica tambm representa o esprito guerreiro que Plato desejava para a

    deslumbrada Atenas.7

    A educao inicial que Plato concebe para os jovens guardies no

    original, pois assume a forma de ensinar j utilizada pelos aedos arcaicos.

    Trata-se da Mousik,8 que, para os gregos, diz respeito a qualquer arte que

    esteja sob a gide das Musas as deusas da musicalidade. A poesia de

    Homero , antes de tudo, um canto com base em um ritmo alexandrino da

    lngua falada, que recorre a imagens e a termos cultos para preservar a

    mtrica de seus versos. Esse canto tem, na Teogonia, o ar como meio de

    propagao de sua beleza, e seu som se espalha como o cheiro do lrio.9 A

    fora da voz existe em funo da sua capacidade de soar agradvel, pois a

    beleza imaterial do som das Musas invisvel e elas manifestam-se

    unicamente como o canto e o som da dana a esplender dentro da Noite.10

    A filosofia, ao trazer a discusso da cadncia da msica para o thos da

    cidade, moraliza a beleza e os efeitos desse canto.

    O aparecimento das Musas na Teogonia mostra que o papel

    primordial da msica o de alegrar Zeus, e no o de aconselhar ou instruir

    o gnero humano. Mesmo assim, a instruo do homem e a formao de

    um hbito por intermdio da msica adquiriram grande relevncia nas

    leituras que a filosofia fez da cultura musical grega. As Musas, em razo de

    sua ascendncia, possuem um papel instrutivo e didtico11

    herdado pela

    7 NASSER, 1997, p. 247.

    8 Mousik, na Repblica, j foi traduzido tanto por Literatura, no sentido mais amplo do termo, quanto por

    cultura. Com isso, os tradutores quiseram evidenciar a relao lingustica fundamental que a mousik

    estabelecia entre os gregos, em termos mais especficos, a sua relao significante. Por isso, a msica

    pode ser vista tambm como signo, inclusive de modo a servir de paradigma para os signos da linguagem. 9 Teogonia, v. 7-14.

    10 TORRANO, 2002, p. 23.

    11 Saber da associao entre as Musas e a Memria incita-nos, de imediato, a tecer um sentido didtico

    originado pela necessidade de manuteno de uma tradio. As perspectivas didticas dessa gnese

    maternal da Memria se apoiam na repetio como principal meio de manuteno dos costumes. O

    encantamento da poesia oral est justamente na marca inesquecvel que fica na memria, no prazer de

    repetir aquilo que se decorou. Por isso o que se exige um mtodo de linguagem repetvel (quer dizer, modelos sonoros acusticamente idnticos) que, contudo, seja capaz de alterar o contedo para expressar

  • 250

    conjugao entre a Memria (me das Musas) e a seleo de Zeus (pai

    delas). As musas devem ter cautela em no cantar tudo, pois elas tambm

    devem esquecer os males e promover a lembrana prazerosa dos detalhes

    das batalhas vitoriosas, como se percebe nos versos da Teogonia que

    cantam o nascimento das Musas: Na Piria, gerou-as, da unio do Pai

    Cronida e Memria, / rainha das colinas de Eleutera, para oblvio de males

    e pausa de aflies.12

    Assim, as Musas tambm esto destinadas a esquecer e seu papel de

    proporcionar prazer no est relacionado a uma lembrana onisciente capaz

    de detalhar todas as coisas e cantar todos os assuntos. Tudo se resume a

    saber o momento apropriado para determinada msica, ou seja, a msica

    inapropriada em dada situao pode causar desprazer ou um prazer vicioso.

    Ser que essa seleo de certos contedos no um indcio de ponderao

    e ajuizamento subjacentes ao deleite do canto delas? No existiria nesse

    esquecimento um prottipo da seleo que Plato prope para os versos de

    algumas msicas em determinadas circunstncias? Nas Musas, j pulsa o

    primeiro impulso do pensamento racional,13 o de seleo do que se deve

    narrar e contar. Alm dessa racionalidade seletiva, antecipa-se, tambm, o

    prazer com as coisas boas e o esquecimento ou silenciamento dos males e

    erros. Por um lado, enquanto as musas deleitam os deuses, elas escolhem

    no narrar certos acontecimentos em que eles perdem batalhas ou

    enfrentaram dificuldades. Pelo lado oposto, Plato, decide no narrar certos

    acontecimentos violentos aos meninos enquanto os instrui, pois aquilo que

    diversos sentidos. A soluo descoberta pelo crebro antigo constitui em converter o pensamento em fala

    rtmica (HAVELOCK, 1996b, p. 15). Esse elemento rtmico fundamental para a memria foi o que demarcou o nascimento daquilo que chamamos poesia [...] que era o instrumento para o estabelecimento de uma tradio cultural e do esquecimento dos males (ibidem). 12

    Teogonia, v. 53-55. 13

    TORRANO, 2001, p. 18.

  • 251

    pode deleitar os adultos, as mulheres e os deuses, como as atrocidades e

    brigas entre amigos nas guerras, no necessariamente educa os jovens.

    3. A msica e a cidade

    Os filsofos, ao aceitarem o modo arcaico de educar a alma, tornam-

    se herdeiros da racionalidade e da escolha que as musas fazem de no

    narrar tudo: eles tambm escolheram algumas msicas e contedos e se

    esqueceram de outros. Nem todos os hbitos e contedos inspirados pelas

    Musas so aceitos por Plato e sua recusa da lamentao de Aquiles, por

    exemplo, tem a seguinte justificativa: deve-se evitar mostrar as

    lamentaes de um heri com o vigor e a coragem de Aquiles, assim como

    se deve evitar a msica lamentosa, pois ela incentiva um hbito indesejvel

    nos guerreiros e no guardio da constituio da cidade. A imoralidade de

    partes dos textos de Homero, como daqueles deuses e filhos em guerra

    exilando os prprios pais, tambm recusada pelas disposies que geram

    nos jovens quando ouvem isso. Eles poderiam achar que comum o

    desrespeito e a agresso ao pai ou ao prprio filho, como quando Zeus

    expulsou Hefsto do Olmpo por ele ter tentado defender sua me da ira de

    Zeus.

    O poeta o executante do canto por ser o intermedirio entre as

    Musas e a sua audincia,14

    mas no o autor.15

    Se Homero e Hesodo

    puderam dizer que so os preferidos das Musas, pois cantam porque elas

    assim o quiseram, por que Plato tambm no poderia dizer o mesmo? Esse

    dizer, contudo, mais complexo. A filosofia no deseja o acolhimento de

    todas as Musas, apenas de algumas dentre as nove: Calope, que cuida da

    14

    Cf. Plato, on. 15

    HAVELOCK, 1996a, p. 100.

  • 252

    eloquncia, e Urnia, que se ocupa das coisas do cu. Isso ocorre porque

    todo mestre, inclusive o filsofo, tem vontade de ser ouvido como se o seu

    discurso fosse emitido por um msico. E mesmo que essa vontade fique

    resguardada em um silncio inconsciente, ela d mostras de sua fora na

    reflexo sobre o uso da msica na educao infantil.

    Aristteles quem formula com mais clareza a importncia de se

    legislar sobre a msica. No livro VIII da Poltica, ele detalha as melodias

    ticas (thos) e harmonias da mesma espcie a serem usadas na educao

    (1342a25-30). Isso herana do momento em que Scrates fala, na

    Repblica, que no poder ser um bom conhecedor das qualidades da

    msica se no voltar sua ateno para as virtudes e os vcios humanos que

    esto em sua origem. A razo para esse crculo de origem e fim entre a

    msica que imita e afeta a alma explicada por Aristteles:

    precisamente nos ritmos e nas melodias que nos deparamos com as

    imitaes mais perfeitas da verdadeira natureza da clera e da mansido, e

    tambm da coragem e da temperana, e de todos os seus opostos e outras

    disposies morais (1340a20). Essas imitaes tem grandes efeitos sobre

    ns, o que se observa na prtica: quando uma msica toca e nosso

    estado de esprito se altera consoante a msica que escutamos (idem).

    Diante do exposto, a teoria da mimesis aristotlica ganha uma dimenso

    musical fundante e anterior ao desenho pintado com cor,16

    porque o modo

    como a msica afeta os homens um modo mais comunitrio do que

    individual.

    16

    Como nota Srbom, retomando a passagem de um texto cuja autoria de Aristteles ainda discutida,

    Problematas, h um trecho em que ele mostra o privilgio da msica e a sua importncia para a educao.

    Isso explica porque o filsofo foi levado a tratar da msica no ltimo livro da sua Poltica e porque a

    msica to importante para a cidade: por que a audio a nica percepo que afeta o carter moral? Pois toda melodia, mesmo se no tiver palavras, sempre tem carter; mas nenhuma cor, cheiro ou gosto

    possui isso Cf. XIX.27 Aristotle: Problems) (SRBOM, 1994, p. 42).

  • 253

    A reflexo sobre o thos da msica tambm depende do estudo sobre

    seu pthos. O primeiro pensador grego que estudou como os ritmos e as

    melodias afetavam a alma foi Damo, uma figura respeitada e citada tanto

    por Plato, na Repblica, quanto por Aristteles, na Poltica. Foi inspirado

    nesse reconhecimento unnime que Moutsopoulos arriscou uma diviso do

    conhecimento dos efeitos da Msica em eras pr e ps-damonianas.

    Primeiramente, no perodo pr-damoniano, o canto com ritmo e sem

    qualquer palavra, entoado para amansar a clera de um beb ou acalmar

    seu sofrimento, delimita a origem da crena no tocante a influncia da

    msica sobre a alma (MOUTSOPOULOS, 1989, p. 176), que se desdobra

    em uma influncia da msica sobre a comunidade, com os aedos. Essa

    crena pr-damoniana perceptvel em Plato quando ele fala das mes

    moldando as almas de seus filhos ao cantarem os versos que conhecem

    (Repblica, II 377b). A noo de platto em grego precisa ao indicar as

    mes moldando (plattein) as almas das crianas por meio do canto dos

    mitos, muito mais do que os corpos delas com as mos (NASSER, 1997, p.

    131).

    Em segundo lugar, no perodo damoniano, Damo explora uma nova

    teoria do thos musical. Ele aprimora as antigas crenas sobre a formao

    da alma pela msica e se detm naquela alma que se encontra entre a

    produo e a recepo da mensagem sonora. No domnio da pedagogia,

    tanto ele quanto Plato depois ensaiaram a elaborao de um sistema

    positivo fundado sobre a concepo de reciprocidade entre a ao da

    educao moral e aquela da educao musical, assegurando o

    desenvolvimento dos cidados e a perenidade das cidades

    (MOUTSOPOULOS, 1989, p. 188, grifo nosso). Por meio de um

    refinamento dos estudos dos efeitos da msica e da atividade dos aedos,

    Damo conclui que na msica cantada para as crianas construdo o

  • 254

    carter da futura cidade onde elas iro habitar. Trata-se de uma relao

    profunda entre a msica das crianas e a sade das cidades. Com isso, ele

    esboou a teoria que mais tarde iria aparecer na legislao sobre a educao

    musical.

    E foi isso que aconteceu em Plato. A primeira lei da composio

    potica na Repblica sobre a composio musical: que os primeiros

    mitos que os jovens ouam sejam narrados de maneira mais bela possvel

    para que os levem na direo da virtude (III 378e). A mousik a maior

    referncia da educao moral, sendo exigido dos alunos alguns anos de

    dedicao ao estudo do canto e da lira, no para dominarem a tcnica, mas

    para se formarem (CERQUEIRA, 2007, p. 64, 68). Alm disso, a msica

    deve ser vista na antiguidade segundo o mesmo grau de importncia que o

    idioma de cada povo, podendo ser atribudo a ela o papel de fundar e

    desenvolver no s a educao, mas o prprio thos da poltica (NASSER,

    1997, p. 245).

    Em terceiro lugar, no perodo ps-damoniano, surge a legislao

    efetiva sobre a educao musical. O prprio Aristteles salienta, no livro

    VIII da Poltica, que ningum questiona a importncia de se legislar sobre

    a msica na educao, sobretudo porque os efeitos da educao musical

    devem estar de acordo com o regime poltico de determinada comunidade e

    qualquer alterao na msica logo sentida pela cidade. O Estagirita

    salienta que foi Slon quem prescreveu o ensinamento obrigatrio da

    msica nas cidades. Ele criou a ideia de que as leis da cidade deveriam ser

    apresentadas com prembulos musicais e sob a forma de poemas. Em

    linhas gerais, o perodo ps-damoniano est vinculado ao pr-damoniano

    por ser um aprimoramento legislativo deste, e por colocar na escrita a

    sabedoria musical descoberta pela oralidade.

  • 255

    3.1. Lei sobre a educao musical

    Tendo em vista que a msica pode formar um carter moral, a

    questo do divertimento e do prazer17

    na educao torna-se objeto de

    estudo da filosofia. Mas a aprendizagem desse contedo da msica

    apenas uma possibilidade,18

    e no uma certeza. Uma possibilidade do

    ouvinte se habituar virtude presente no ritmo musical, pois o que os

    gregos entendiam como harmonia proporcionada pela msica, hoje muitos

    chamam de equilbrio mental.

    Por um lado, esse equilbrio s pode ser gerado acidentalmente por

    um msico que queira divertir, como as musas cantando para os deuses

    depois da batalha; por outro lado, a possibilidade de gerar hbitos corretos

    mais provvel se a msica for tocada por um msico que tenha a inteno

    deliberada de formar um carter, aliando a diverso que a msica

    proporciona paidia que a escola pretende. H, contudo, um limite para a

    educao moral por meio da msica, o que pode ter um efeito contrrio ao

    17 Em termos tcnicos, retomando o texto Problematas, o autor se pergunta: porque todos apreciam

    ritmo e melodia, e em geral todas as consoantes?, respondendo na sequncia: diferentes tipos de sons nos agradam por seu carter moral, mas apreciamos ritmo porque ele possua arranjos ordenadamente

    numricos e nos transporta por ele em um costume ordenado; pois movimentos ordenados so

    naturalmente mais parecidos conosco do que um sem ordem, de modo que o timo est mais de acordo

    com a natureza (XIX.38 Aristotle: Problems) (SRBOM, 1944, p. 41). 18

    A questo da possibilidade aparece na Potica de Aristteles quando ele diz que o poeta deve imitar

    no aquilo que acontece de fato como se fosse um historiador, mas o que pode acontecer. Aristteles faz

    isso ao mesmo tempo em que diz que a poesia mais filosfica do que a histrica, porque mais

    universal que a histria. Como observa Srbom, fcil notar que no s a poesia que consegue mostrar

    paradigmas universalizados do comportamento humano. Assim, a msica pode representar o carter por si mesma. A msica nos mostra diretamente, por suas imagens e imitaes, exemplos paradigmticos do

    carter (1994, p. 43). Em razo dessa explicao, pode-se compreender inclusive o motivo de Aristteles encerrar a Poltica de modo abrupto, dizendo que aquele assunto diz respeito possibilidade: H dois objetivos: o possvel e o conveniente, pois cada um deve aprender, sobretudo, o que possvel e

    conveniente, e isso se distingue segundo a idade, porque, por exemplo, aos debilitados pela idade no lhes

    ser fcil cantar os modos musicais mais agudos, pois a sua natureza lhes permite o mais relaxado. Por

    isso, entre alguns msicos, censura-se Scrates por ter excludo da educao os modos musicais

    relaxados, considerando-os embriagadores no como a bebida (que produz delrio bquico), mas por

    tornar as pessoas mais devagar. [...]. claro que devem fixar-se em trs referncias na educao: o justo

    meio, o possvel e o conveniente (1342b). O justo meio da tica, a possibilidade de desenvolver a virtude e a convenincia da msica para certas idades.

  • 256

    de harmonizao da alma, tornando o jovem fraco e frgil. Assim, para

    Aristteles, faz-se necessrio determinar at que ponto os jovens devem

    estudar msica, pois eles no precisam se tornar profissionais, nem

    competir em concursos, devem apenas saber ouvir bem.

    A questo central aqui diz respeito associao do prazer

    moralidade. Aristteles afirma que a msica fonte de prazer e pode nos

    direcionar para o mais virtuoso. Contudo, isso no ocorre por uma

    concepo usual de ensino e de transmisso, devido imaterialidade e

    abstrao da msica. A resposta de Aristteles sua prpria pergunta sobre

    o porqu da msica se incluir na educao se resume ao fato de ela

    proporcionar prazer. E ele confirma isso lembrando Homero: apenas o

    aedo deve ser convocado para o magnfico festim aludindo de seguida aos

    outros hspedes que convidam o aedo que a todos agradar (Poltica,

    1338a25). Por isso, aliando uma educao agradvel s disposies morais,

    o cio pode preencher um grande papel na educao. J que a msica

    pertence s coisas agradveis (e consistindo a virtude em experimentar

    com retido, a alegria, o amor ou o dio) evidente que nada mais

    necessrio aprender e tornar um hbito do que julgar com retido e alegrar-

    se com costumes dignos de belas aes (1340a10-25).

    A msica importante para as cidades, para a manuteno e para a

    mudana de certos sistemas polticos. Invariavelmente, todo movimento

    poltico tem seu canto de guerra, de vitria, de batalha e o seu hino. Vive-

    se, na prtica, aquilo que Plato e Aristteles afirmaram em seus estudos

    polticos: qualquer alterao na msica significa uma alterao na cidade.

    O que importa que algum que seja chamado para divertir os festins os

    aedos no caso dos antigos e os profissionais de hoje reconhecidos

    socialmente domine no s a prtica da produo, mas os efeitos

  • 257

    psicolgicos e polticos daquilo que produz, tendo conscincia de sua parte

    na formao dos homens e das cidades.

    Pensando na virtude da alma dos guardies, Plato, na Repblica, fez

    o conjunto de msicas passar por uma seleo, e permanecem aquelas que

    possam melhor contribuir para a formao da conduta moral do cidado

    (NASSER, 1997, p. 245). Isso ocorre para formar a harmonia da alma do

    guardio, fazendo com que a virtude exera sua influncia entre o prazer e

    a razo. Aristteles defende algo parecido: se a msica conduz de algum

    modo virtude, tal como ginstica confere ao corpo determinados

    atributos, tambm a msica pode conferir outros ao carter, se for capaz de

    o habituar [o homem] a um uso correto (Poltica, VIII 1339a20-25).

    Dentre todas as artes imitativas, a que mais se aproxima de um ensino da

    virtude a msica.

    Culturalmente falando, em sentido amplo, a musicalidade que

    permite o exerccio da poltica, tanto que os reis precisam, na Teogonia,

    dos dons das musas para guiar a cidade. A poltica grega arcaica depende

    da retrica fornecida pelas musas. O prprio rei (basilu) possui no tom e

    ritmo de sua prpria voz algo herdado da seduo que somente as Musas

    possuam. Como ocorre tambm em Plato, os guardies sem msica no

    tero a beleza e a seduo da eloquncia necessrias a um hbil poltico

    que deve preservar as leis da cidade.

    O relacionamento benfico entre as Musas e a filosofia passa pela

    recusa do filsofo grego em conceber que a moral pode ser ensinada, como

    pensavam os sofistas, ou que um dom natural, como aquele recebido

    pelos reis na Teogonia ou pelos poetas. Ao contrrio, os filsofos,

    refletindo sobre a msica, estabeleceram que a moral seja desenvolvida

    pela criao de um hbito musical no homem. E isso , em certa medida,

    uma resposta a aporia que aparece nas linhas iniciais do Menon: a virtude

  • 258

    coisa que se ensina ou se aprende pelo exerccio ou, ainda, se algo que

    advm da natureza? A resposta pode ser que a virtude resultado do

    exerccio de ouvir msica, o que cria um hbito moral equilibrado, nem to

    agudo e nem to grave, como o equilbrio da temperana mdia entre as

    trs partes da alma.

    4. O delrio e a msica suprema

    O corpus platnico permite retraar, com a ajuda de certas

    indicaes, o desenvolvimento do pensamento filosfico a respeito da

    origem mdica e social da msica (MOUTSOPOULOS, 1989, p. 11).

    Conforme o autor (1989, p. 14), o canto a via recomendada a todos os

    cidados para harmonizarem suas almas e o centauro Quirn serve de

    modelo filosofia, quando ela utiliza o prazer de seu encanto

    racionalmente. Recorrendo ao Timeu, possvel admitir a existncia de um

    comrcio inteligente, no com vistas ao prazer irracional nica utilidade

    que presentemente lhe reconhecem mas para ajudar a combater a

    desarmonia interna que se estabeleceu na revoluo da alma e deixar essa

    em consonncia consigo mesma (Timeu, 47d-e). Em linhas gerais, a

    msica pode instaurar um prazer racional e at mesmo filosfico.

    A msica j moldava algum thos e um carter no indivduo muito

    tempo antes da primeira cidade. E o que ocorreu foi que a filosofia tambm

    desejou dispor de atributos semelhantes aos que foram dados aos reis e

    poetas, a saber, a bela voz. E por essa interseco entre o canto e a beleza,

    cujo elemento comum a Belavoz [a Musa chamada Calope], podemos ter

    uma definio mais clara e mais bem definida do que entendiam por belo

    os gregos arcaicos (TORRANO, 2001, p. 35).

  • 259

    No mito das cigarras, no Fedro, encontra-se toda a doutrina

    platnica sobre a msica (NASCIMENTO, 2001, p. 157). descrito nesse

    mito que os filsofos se tornam os preferidos de algumas Musas. Um

    detalhe em especial se destaca: por que so as cigarras que contam s

    Musas quem sero os filsofos? Na Ilada, dito o seguinte: bons

    oradores, semelhavam / a cigarras que, n rvore pousadas, / a selva

    adoam o canto (III, vv.130). Plato diz que as cigarras confessam tanto a

    Calope, a deusa que cuida da poesia pica e a mais velha, quanto a

    Urnia, quais so os homens que se dedicam filosofia e exercem a arte

    por elas protegida; porque essas duas cantam melodias mais belas do que

    todas as outras Musas, dirigem seu canto ao cu e fazem belos discursos

    sobre as coisas divinas assim como sobre as humanas (Fedro, 259b-d).

    As cigarras aparecem na Ilada como pacificadoras do selvagem e de

    uma busca animalesca que s atende aos instintos dos prazeres. Aspectos

    semelhantes aparecem na musicalidade, que necessria vida do guardio

    platnico de modo que o doce do canto da cigarra na selva como a msica

    para o guerreiro. O guardio platnico afinal rhtoros (III 396e) e deve

    utilizar a eloquncia com liberdade filosfica. E sendo esse o atributo de

    uma das Musas, ele no pode tornar-se inimigo delas: pois se for inimigo e

    no pensar como elas, para persuadir, jamais recorrer palavra, e tudo

    realizar brutalmente, por meio da fora, como um animal feroz, vivendo

    como ignorante nas mais grosseiras prticas e alheio, de todo, graa e ao

    sentido do equilbrio (Repblica, III 411e).

    Deve-se lembrar que Calope e toda pica so acompanhadas pela

    lira de Apolo. Isso no casual: Apolo foi apaixonado por Calope e, conta

    a mitologia, tiveram dois filhos. A escolha de Calope como uma das musas

    da filosofia se justifica pela relao com o thos que desperta a lira de

  • 260

    Apolo. Em outro lugar, Plato descreve a etimologia do nome Apolo19

    ligada cura do indivduo pela msica e, tambm, contemplao do cu

    pelo filsofo delirante justamente como uma paixo urnica.20

    Alm das cigarras, Scrates aborda, no Fedro, diversas vantagens

    do delrio que inspiram os deuses: o primeiro delrio de um tipo muito

    mais nobre que a sabedoria que vem dos homens; o segundo delrio,

    ocorrido em cerimnias religiosas expiatrias, purificador dos males da

    sade; e, por fim, o delrio causado pelas Musas transporta os jovens para

    um novo mundo celebrando as faanhas dos antigos (245). Esse novo

    mundo posto no futuro lida com a possibilidade de que a msica forme um

    carter quando usa som e lgos adequados.

    No Fdon, aquele desejo generalizado dos mestres se tornarem

    msicos fica explcito quando Scrates est morrendo. Cebete pede a

    Scrates que fale sobre a poesia que estava compondo desde que fora

    preso, algo que nunca fizera em toda sua vida. Scrates responde afirmando

    que o fazia para tentar desvendar qual era a ordem do sonho que lhe

    aparecia h muito tempo: componha e execute msica Scrates! Por ser a

    filosofia a mais nobre das msicas, Scrates chegou concluso de que j

    executava msica h muito tempo (61a3-4). Assim, o filsofo teve que se

    tornar msico para rivalizar com os poetas e tomar para si os efeitos que a

    Msica pode causar nos homens e nas cidades.

    19

    Cf. Nascimento (2001). No Crtilo, Scrates diz que no conhece nenhum outro nome [o de Apolo] que por si s fosse capaz de denotar as quatro qualidades do deus, abrangendo a todos em conjunto e, de

    algum modo, designando a arte da msica, da profecia, da medicina e a do arqueiro (405a). Esta abrangncia porque os gregos chamavam aquele que limpa os males de apoulon e que livra os homens

    da irregularidade da alma de apolon. Apolo est ligado s purgaes e purificaes, tanto da arte da medicina como da adivinhao, por meio de drogas ou processos mgicos que tem o objetivo nico de deixar puro o indivduo, tanto no corpo como na alma (405b). Alm destes aspectos, Apolo tambm deus da harmonia, que indica um movimento conjunto, tanto no cu, a que damos o nome de plo, como na harmonia do canto, denominada sinfonia, porque todos esses movimentos, como dizem os entendidos

    em Msica e Astronomia, so feitos em conjunto (405d). 20

    Uma outra forma de expresso potica parece ser recusada por Plato por ser cuidada por Euterpe.

    Assim, a forma de expresso potica dos ditirambos e a Musa Euterpe esto ligadas flauta do culto

    ditirmbico, que era uma poesia lrica cantada a Dionsio.

  • 261

    O objetivo educativo da Repblica, e especificamente o do livro VII,

    revela a crena na possibilidade de formar homens justos quando forem

    apresentados a novos hbitos desde pequenos. As artes matemticas, a

    astronomia e a harmonia ganhem espao privilegiado pela abstrao que

    demandam, depois da alma estar harmonizada em seus valores pelas

    msica. Diante do exposto, podem ser encontradas, inclusive, motivaes

    musicais para as disciplinas escolhidas para a formao do guardio na

    Repblica. Ao encerrar e interpretar a imagem da caverna no livro VII,

    Plato conduz o leitor a acreditar no seguinte: a reconduo (periagog)

    socrtica de jovens e as mensagens diretas aos homens fracassaram

    tragicamente. Resta iniciar a modificao dos hbitos de uma alma voltada

    para a sombra, o que se faz a partir de uma reorientao na primeira

    infncia, sobretudo por meio da msica e, tambm, pelas artes da medida,

    do clculo, da harmonia e da astronomia, as quais se vinculam s musas

    Urnia e Calope.

    A cpula entre msica e filosofia aparece constantemente na obra de

    Plato e isso se percebe com o currculo do guardio, no qual o olhar para

    as coisas abstratas da aritmtica, da geometria, da astronomia e da

    harmonia possuem fundamentos nas Musas (MOUTSOPOULOS, 1989, p.

    205). Tanto que, juntamente com as disciplinas dos guardies, a msica,

    como estudo terico dos fenmenos musicais, era considerada uma

    cincia pura que treinaria o esprito para a elevao e converso do esprito,

    para atingir a disciplina suprema, a dialtica ou a filosofia (CERQUEIRA,

    2007, p. 69). A harmnica, por exemplo, uma espcie de propedutica

    prpria filosofia, antecipando-lhe no somente em termos de abstrao,

    mas tambm de pretenso de formao de um tipo de carter.

    Do lado oposto queles que recorrem palavra, seduo e que tem

    afeio pelas Musas, possvel situar os amuss, que so aqueles homens

  • 262

    que s conseguem se relacionar com outros homens pela brutalidade.

    Observa-se, aqui, o sentido da reorientao inicial pela msica, quando, por

    meio das Musas, h um direcionamento filosfico do carter e da

    preferncia pelo apolneo. Desse modo, possvel considerar a mousik

    como cultura e base para a experincia de uma linguagem equilibrada e

    sensata desejvel para a atividade poltica.

    5. Filsofo legislador

    Portanto, seja qual for o modelo de maestria, o poltico ou o

    pedaggico, a ao de reorientar um bem de quem possui uma arte

    musical. Quando Plato fala do mdico verdadeiro e, tambm, do artista

    verdadeiro, deve-se lembrar que o msico, j sendo um artista, poderia ser

    tambm um mdico. O objetivo do filsofo se tornar um artista que,

    mesmo sem ser um exmio msico, seja capaz de recorrer a quem domina

    essa arte, como Damo, para legislar sobre ela, ou melhor, como Slon que

    colocava melodias nos promios de sua lei. O mesmo Slon que, na

    Repblica, diferentemente de Homero, era considerado como um poeta que

    sabe e conhece o que fala (599e).

    Os possveis efeitos da msica sobre nossas emoes tornaram-se um

    modelo para diversas reas da vida do homem e inspiraram todos os gregos

    que despertaram alguma disposio moral no outro: polticos, filsofos,

    retricos e pedagogos. V-se, portanto, como a msica e o msico

    inspiraram e ainda podem inspirar todo modelo de reorientao (periagog)

    da alma. Ao retomar, pela noo do thos, o sentido pedaggico e

    filosfico da msica, este artigo mostrou o espao que os filsofos gregos

    dedicaram para a reflexo sobre a legislao de uma educao musical,

    reflexo esta que pode ainda ser construda na atualidade.

  • 263

  • 264

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    ARISTTELES. Potica. Trad. Ana Maria Valente; prefcio de Maria

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