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Peleja
Se entendermos os “movimentos culturais modernos” como associações orgânicas
fundadas em manifestos afirmativos, que expõem diretrizes objetivamente definidas,
exigindo engajamento político dos participantes e unidade de ação nas “missões” que se
propõem a cumprir, identificaremos aí referências estéticas e simbólicas que, em associação
direta com as proposições políticas adotadas, devem fundamentar as produções e as
performances artísticas dos sujeitos filiados.
Articulada sob esta proposta organizativa, a afirmação de nacionalidade se destacou
como motivação permanente da grande maioria das movimentações culturais e intelectuais
no Brasil, onde a necessidade de autodefinição pelas peculiaridades que nos distinguiriam
do estrangeiro esteve guiando desde as construções ideais do “ser nacional” realizadas pelo
romantismo do século XIX até as reações antiimperialistas dos movimentos culturais de
esquerda, na década de 1960. Ou seja, no cerne de todos esses discursos, mesmo
consideradas as inegáveis diferenças de contextos e concepções, estavam o que entendiam
por “nacional” e “popular”, dois dos principais referenciais identitários da modernidade,
que aí se associaram a construções narrativas que contribuíram para sua legitimação
enquanto representação do ideário coletivo.
De acordo com as reflexões de Renato Ortiz (Ortiz, 1985), um ideal de povo se
manteve no centro destas definições de nacionalidade, seja como detentor das tradições
originárias e autênticas da nação, seja como sujeito por excelência das possibilidades de
transformação. No entanto, tal potencial precisaria ser evidenciado e direcionado pela ação
de alguma vanguarda comprometida com o estabelecimento de um vínculo estreito entre o
popular e o nacional. Afirmou-se assim, uma relação de dependência entre a preservação da
memória do país e a conservação dos valores populares, como se estivessem na mesma
instância de significação. Ortiz apresenta uma análise do pensamento social brasileiro a
partir desta associação que se estabeleceu entre a problemática da cultura popular e a
identidade nacional, investigando suas mais variadas formas de expressão.
Segundo o sociólogo, indianismo, mestiçagem, regionalismo, desenvolvimentismo,
entre outras, foram, então, noções que fundamentaram a discussão acerca da relação
exterior/interior na formação da identidade cultural brasileira e as reivindicações de
independência em relação à dominação colonialista, contra a qual se deveria reagir pela via
da auto-representação.
Na primeira metade do século XX, uma marcada visão de progresso colocou, ainda,
os nacionalismos entre um desejo de universalidade e a afirmação das particularidades,
dilema vivido por várias vertentes do pensamento moderno, particularmente nos países
periféricos. As diferenças entre as nações eram compreendidas por contraposição, num
movimento que opôs avanço a atraso e hierarquizou as diversidades culturais.
Assim exposta, a construção da identidade nacional se mostra como um processo de
seleção e ordenação de signos, efetivado sob a mediação de agentes encarregados da
interpretação dos elementos locais reunidos e de sua articulação com uma dimensão global.
Esta função intermediária foi assumida pelos principais intelectuais brasileiros que, em
relação direta ou indireta com o Estado, “confeccionam uma ligação entre o particular e o
universal”, com o intuito de promover a modernização autônoma da nação (Ortiz, Op. Cit.,
p. 139).
Tais apontamentos acerca da busca de representação cultural do país por parte dos
movimentos de cunho nacional se apresentam aqui como chave para abrir uma discussão
que pretende dar conta do complexo significado da adoção pelo Manguebit da proposta de
"cooperativa cultural" como forma de organização e atuação, o que implica diferenças
substanciais em relação à postura que referenciou as experiências coletivas nesta área até os
anos sessenta.
A afirmação de nacionalidade não está no centro das preocupações daquela
movimentação, que acontece sob a consciência de que as formações de culturas nacionais
na modernidade ocidental se deram pela via da suplantação de diferenças internas e da
criação de narrativas históricas, literárias e publicitárias que traçaram imagens, construíram
cenários e determinaram sentido – enquanto ordem e direção – para as instituições,
mentalidades e comportamentos circunscritos aos territórios dos Estados. Discursos que
operaram pela via da “invenção de tradições” e que, nos termos colocados por Hobsbawn
(Hobsbawn, 1985), definem-se por um complexo processo de construção de símbolos,
criação de mitos e consolidação de rituais destinados a forjar unidades, manter coesões e
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fundar ideologias baseadas na idéia de que as nações seriam pontos de identificação
naturais e primordiais.
Estas formulações aparecem aos articuladores do Manguebit como fala da elite
dominante, fruto da associação que fazem entre elementos culturais selecionados de acordo
com seus interesses conservadores. Lógica dentro da qual também operam os
regionalismos, ao prezarem pela conformação de tradições que justifiquem a permanência
das elites locais no poder.
Ao desnaturalizarem tais referências identitárias, os mangueboys recolocam a
discussão acerca da relação exterior/interior na formação da cultura nacional, condenando a
tendência da maioria dos movimentos modernos de polarizarem essas duas instâncias, que
deveriam ser tomadas em termos relacionais. Realizam a interconexão entre diversos signos
e matrizes culturais, deglutindo fragmentos das culturas populares tradicionais e da cultura
pop de maneira autônoma, criativa e livre de hierarquizações. A hibridização, o sincretismo
e a mestiçagem, que aparecem como formas de mediação cultural nas sociedades
colonizadas, se manifestam de maneira produtiva no Manguebit, por suas propostas não
estarem comprometidas com a afirmação de essências regionais ou especificidades
nacionais.6
Atentam, então, para a necessidade de diluir as rupturas estabelecidas, para que, a
partir de uma compreensão mais livre das diversidades, a proposta de “integrar o planeta
mangue no circuito pop mundial” possa enfim se manifestar em sua plenitude.
Expressando-se pelo “cruzamento das etnias periféricas”, desautorizam a idéia de essência
cultural, desnaturalizam as identidades e reforçam a própria autonomia criativa (Zero
Quatro, 1994).
Por fim, a existência de uma raiz nacional de onde poderia partir um discurso de
descolonização é negada pelo Manguebit. A relativização das distinções clássicas entre
categorias culturais, da forma como foi colocada por esse núcleo de jovens recifenses, nos
6 Daniel Berson Sharp (Sharp, 2001), na dissertação A Satellite Dish in the Shantytown Swamps: Musical Hybridity in the ‘New Scene’ of Recife, Pernambuco, Brazil, investiga o modo como a nova cena musical recifense se insere nos debates acerca das identidades nacional e regional, por meio da consideração das heranças simbólicas tradicionais exibidas em suas misturas sonoras. O autor empreende um diálogo crítico com a tese do etnomusicólogo Philip Andrew Galinsky (Galinsky, 1999), “Maracatu Atômico”: Tradition, and posmodernity in the movement and “new music scene” of Recife, Pernambuco, Brazil , que identificou na nova cena musical do Recife uma tendência pós-moderna – presente em todo o mundo ocidental contemporâneo – de forjar novas identidades culturais.
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induz a repensar as teorias sociológicas de subdesenvolvimento e dependência, e a revisar
os binarismos que tradicionalmente mediaram a compreensão das relações entre
colonizadores e colonizados.
Na voz de Fred Zero Quatro (Zero Quatro, 1994), líder da banda “mundo livre s/a”,
os “mangueboys” afirmaram: “Não temos complexos terceiro-mundistas, estamos atentos
para o colapso da modernidade”. Ocuparam as fronteiras, lugares de acontecimento do
híbrido, pontos de onde melhor se avista a ambivalência fundada pelas disputas de poder
simbólico travadas durante as experiências coloniais e as possibilidades aí abertas para o
questionamento do discurso do dominador.
O Manguebit pode, assim, ser reconhecido como iniciativa de desvio e
transfiguração de tal discurso. Combater a metrópole utilizando-se de sua própria
linguagem, agir nas fissuras do modelo imposto, mostrar sua fragilidade enquanto caminho
único são, como nos apontou Silviano Santiago (Santiago, 1978), as formas de transgressão
muitas vezes adotadas pelos artistas críticos das nações subordinadas na iniciativa de
desconstrução da ordem colonialista. Ironicamente, a colonização fundara a mestiçagem
nas sociedades dominadas, o que subverte a noção de unidade e forja a possibilidade de
distorção do processo de dominação. Este teria sido o principal desvirtuamento provocado
pelas culturas subalternas na intenção civilizadora dos colonizadores estrangeiros.
Partindo de tal constatação, Nestor Garcia Canclini (Canclini, 1998) definiu o
caráter híbrido que assumiu o processo de modernização das nações latino-americanas,
afirmando que as “mesclas interculturais” constituíram uma heterogeneidade temporal, na
qual se baseia a atual consciência da fragilidade e da inadequação dos modelos de
desenvolvimento impostos. Desta forma, uma aproximação entre as manifestações político-
culturais assim geradas e as formulações da crítica pós-colonial contemporânea pode nos
ser esclarecedora. As reflexões de Homi Bhabha acerca desta nova perspectiva de
abordagem social concluem que:
A crítica pós-colonial á testemunha das forças desiguais e irregulares de representação cultural envolvidas na competição pela autoridade política e social a partir da reordenação dos signos tradicionais dentro da ordem do mundo moderno. As perspectivas pós-coloniais emergem do testemunho colonial dos países do Terceiro Mundo e dos discursos das minorias dentro das divisões geopolíticas de Leste e Oeste, Norte e Sul. Elas intervêm naqueles discursos ideológicos da modernidade que tentam dar uma “normalidade” hegemônica ao desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas das nações, raças,
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comunidades, povos. Elas formulam suas revisões críticas em torno de questões de diferença cultural, autoridade social e discriminação política a fim de revelar os momentos antagônicos e ambivalentes no interior das “racionalizações” da modernidade. (Bhabha, 1998, p. 239)
Ou seja, se dão como proposta de revisão de categorias, atestando a perda de
validade das noções estabelecidas pela modernidade histórica e a necessidade de
reconsideração da temporalidade projetada pela historicidade moderna. Fundadas sob signo
da transição, buscam, para além da revisão de conceitos ultrapassados, a identificação do
ethos no qual a nova realidade está inserida. Colocam-se no espaço das margens e seguem
as trajetórias dos deslocamentos, tomando o indeterminismo como caráter de uma
disposição social que tem recriado sensibilidades políticas e redirecionado estratégias
críticas.
Dito isto, podemos reafirmar que a cultura contemporânea cada vez mais se
apresenta enquanto teoria, contribuindo para localização do Manguebit por este, em sua
dinâmica de organização e criação, retomar a dimensão cotidiana da transmissão cultural,
induzindo-nos a admiti-la como “produção irregular e incompleta de sentido e valor”, nem
sempre recuperável por narrativas totalizantes e constantemente reconstruída “no ato da
sobrevivência social” (Idem, p. 240).
Em contradição com as propostas de preservação de tradições – quando estas são
entendidas como mera afirmação da autenticidade nacional –, as estratégias de resistência
cultural apresentadas pelo Manguebit teriam sido forjadas sob o signo da
transnacionalidade, e devem ser compreendidas como exercícios de “tradução” – conceito
adotado por Bhabha para definir as trocas culturais no contexto complexo das sociedades
globalizadas. O Manguebit expressa desta forma os termos de uma ordem social diversa da
que fundou os movimentos até então atuantes no Brasil.
Um outro importante aspecto a ser levado em consideração na dissociação entre a
agitação cultural ocorrida na cidade do Recife na década de 1990 e as implicações que o
termo "movimento" impõe, é a ausência de uma definição estética aglomeradora da arte aí
produzida. Como afirma Fred Zero Quatro, a inexistência de precedentes na história
cultural do país de uma movimentação coletiva fundada na diversidade formal de suas
expressões causou confusões na caracterização do Manguebit, tanto pela imprensa, quanto
pelo público:
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No começo chegou a ser uma coisa meio desconcertante para a imprensa especializada, porque sempre que se falou em cenas ou movimentos pop no mundo, sempre havia uma batida básica ali, que se tornava uma marca registrada. Mas no caso do Recife a gente colocou, desde o princípio, que não devia ser uma batida só. Diferente, por exemplo, da Bahia, diferente da Jamaica e de outras cenas que apareceram. Nós até fazemos essa metáfora com o mangue, porque ele é um dos ecossistemas mais ricos em biodiversidade do mundo, é o berço da maioria das espécies marinhas, e a cidade do Recife também tem essa característica cultural de ser o berço de um monte de músicas e manifestações folclóricas, como o maracatu, a ciranda, o coco, a embolada e o frevo, então, nos primeiros manifestos7, já tinha essa história de preservar a diversidade, de tentar resistir a essa lógica da cópia que impera na sociedade de consumo. Para nós, é a diversidade em primeiro lugar. (Zero Quatro, http://www.sambanoise. hpg.ig.com.br/falecida.html)
A música produzida pelas bandas associadas ao Manguebit não se define, portanto,
nem por uma base rítmica específica, nem tampouco pela mistura obrigatória de
sonoridades diversas. O já comentado caráter multiforme da cultura urbana contemporânea,
assim como o destaque da colagem como meio de construção simbólica que tem refundado
identidades interculturais, se associam diretamente às misturas de estilos e gêneros, às
remixagens, às citações e apropriações operadas pela música pop. No entanto, uma
movimentação que conseguiu aglomerar artistas e grupos tão diversos, para além da
abertura de possibilidades estéticas apresentadas pelas combinações sonoras, teve que
oferecer a oportunidade de projeção de trabalhos identificados com as mais variadas
correntes. Como confirma Renato L., jornalista e DJ, um dos articuladores da cooperativa:
No começo, chamávamos a história apenas de mangue, não tinha essa de bit ou beat. Depois, Fred 04 fez a música Mangue Bit8 e parte da imprensa começou a se referir ao lance com o acréscimo do bit e daí também era fácil confundir com o beat, de batida. E a coisa fugiu ao nosso controle. Jamais a gente queria chamar aquilo de movimento, achávamos o termo muito pretensioso. Ainda hoje há uma grande preocupação minha e dos outros (Fred, a galera da Nação Zumbi etc) de preservar, dentro desse rótulo, o sentido da diversidade. Mostrar que se você identificar o mangue como a vibe [vibração, sentimento] do Recife, dentro desse sentido cabe o hardcore da Devotos: ele é tão legitimamente pernambucano quanto o coco, acredito. (Lins, Renato. http://.terra.com.br/manguenius/artigos/ctudo-entrevista-renatol.htm)
7 “Caranguejos com cérebro” foi o primeiro release de apresentação das idéias da “cooperativa mangue”, tomado como manifesto pela imprensa cultural e divulgado pela primeira vez no Jornal do Commercio de Recife, em 1991. Posteriormente o “manifesto” foi publicado no encarte do CD Da lama ao caos, primeiro da banda Chico Science e Nação Zumbi, lançado pela Sony Music em 1994. “Quanto vale uma vida”, considerado o segundo manifesto, foi escrito logo após a morte de Chico Science, e novamente divulgado pelo Jornal do Commercio de 21/02/1997. Ambos foram escritos por Fred 04 e se encontram anexados a este trabalho.8 Gravada no CD da "mundo livre s/a": Samba Esquema Noise, Abril Music, 1994.
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E o símbolo original que articula toda imagem atrelada ao Manguebit é denominado
Chamagnathus Granulatus Sapiens, o “homem-caranguejo”. Criado pela dupla multimídia
Dolores & Morales9 como personagem dos quadrinhos publicados no encarte do CD Da
Lama ao Caos, o crustáceo pensante protagoniza a estória de uma metamorfose
kafikaniana, na qual recifenses se transformam em caranguejos com cérebro depois de
consumirem cerveja fabricada com a água contaminada dos manguezais.
Temos fome de informação. Na imagem de Josué somos "caranguejos com cérebro", como os pescadores que ele descreve no livro "Homens e Caranguejos". Eles pescam e comem caranguejos para depois excretá-los num ciclo caótico. Fazemos uma música caótica. (Science In: Giron, 1994)
Como nos aponta Chico Science, uma mutação parecida já havia sido narrada pelo
médico pernambucano Josué de Castro 10 em seu livro Homens e Caranguejos, publicado
em 1967. Por ser Recife uma cidade cruzada por rios e erguida sobre manguezais, a relação
de proximidade entre a população e este ecossistema virou, nas mãos daquele cientista,
temática de uma mistura de romance com tratado geopolítico sobre a fome nos centros
urbanos periféricos. A mutação identificada por Castro nas periferias pobres do Recife se
dá em termos mais realistas:
Cedo me dei conta deste estranho mimetismo: os homens se assemelham em tudo aos caranguejos. Arrastando- se, acaçapando- se como caranguejos para poderem sobreviver. Parados como os caranguejos na beira da água, ou caminhando para trás como caminham os caranguejos. (Castro, 2001, p. 10)
No entanto, as imagens construídas pelos idealizadores do Manguebit não se
associam às de Josué de Castro apenas pela utilização simbólica do caranguejo – que neste
caso serve à representação dos mangueboys como recicladores dos resíduos absorvidos no
fluxo cultural da cidade –, mas também pelo estabelecimento do Recife como cenário da
encenação de sua narrativa, e pela posição política combativa assumida a partir da
constatação de desigualdades extremas na estrutura socioeconômica da região.
9 Helder Aragão (atualmente conhecido como “DJ Dolores” e componente da Orquestra Santa Massa, grupo musical que mistura sons eletrônicos com temas populares) e Hilton Lacerda, produtores que aliaram seus trabalhos de DJ, roteirista e web desiner na construção da “cena mangue”.10 Cientista, professor universitário, publicou os estudos Geografia da fome (1946) e Geopolítica da fome (1951). Idealizou uma série de políticas públicas voltadas a melhoria das condições de vida e saúde da população em diversos países e foi presidente do Conselho da ONU para Agricultura e Alimentação.
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O termo "Mangue", todavia, foi em princípio pensado por Chico Science para
batizar a batida criada por ele a partir da fusão dos toques do maracatu com o compasso do
rap. Posteriormente, o conceito foi ampliado pelo coletivo dos mangueboys (sendo o bit
acrescentado por Fred Zero Quatro) na definição de uma proposta mais abrangente. O que
deveria implicar a reformulação cultural do Recife por meio do incentivo à criação e da
construção de meios que pusessem em evidência a produção artística das diversas áreas nas
quais se aventuravam. A origem é narrada por Renato L.:
Estávamos reunidos no bar Cantinho das Graças, quando Chico chegou dizendo: “Fiz uma jam session com o Lamento Negro11, aquele grupo de samba-reggae, peguei um ritmo de hip hop e joguei no tambor de maracatu... Vou chamar essa mistura de mangue”. Aí todo mundo sugeriu: “Não, cara! Não vamos chamar de mangue só uma batida ou limitar ao som de uma banda. Empresta esse rótulo pra todo mundo, porque todos estão a fim de fazer alguma coisa...” Então foram surgindo idéias de todos os lados. Foi realmente uma viagem coletiva. (Lins In: Foca, http://www.officina.digi.com.br)
No que diz respeito às transformações implementadas no campo da música pop
pelas bandas de maior destaque na cena mangue, o "maracatu atômico" da "Nação Zumbi",
e o "samba esquema noise" da "mundo livre s/a" podem, de certa maneira, ter se revertido
em parâmetro formal para as composições das gerações posteriores. Porém, a iniciativa dos
mangueboys nos coloca diante da possibilidade de produção cultural autônoma, que se vale
de fontes e formas de expressão das mais variadas procedências sem se submeter às centrais
de distribuição de sentido, ou seja, dialogando de maneira crítica com diversos fluxos
culturais. O primeiro “manifesto”, que sintetizou as propostas dos idealizadores do
Manguebit, publicado pela imprensa pernambucana em 1991, foi inicialmente pensado
como um release – texto de apresentação e divulgação das idéias dos artistas envolvidos
com o projeto –, e assumiu certo caráter publicitário, confirmado por sua posterior
divulgação no encarte de um CD comercializado.
Escrito por Fred Zero Quatro, implicou reivindicação de revivamento da cultura
recifense então em fase de marasmo. Neste texto, a estaticidade do tradicionalismo
conservador e a pasteurização estética promovida pela indústria cultural são contrapostas à
fertilidade dinâmica dos mangues do Recife, que estariam “entre os ecossistemas mais
11 Bloco de samba-reggae ligado ao grupo cultural “Daruê Malungo” (“companheiro de luta”), sediado na comunidade de Chão de Estrelas, bairro da Zona Norte do Recife. Chico travou contato com os músicos do Lamento Negro por intermédio de Gilmar Bola Oito, percussionista do bloco que depois se tornou integrante da “Nação Zumbi”.
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produtivos do mundo”. Estes se apresentariam – enquanto promotores da percepção da
diversidade, e não enquanto sistema orgânico – como metáfora das transformações
pretendidas pelo grupo.12
Na primeira parte do manifesto, a ênfase está posta sobre a pluralidade e riqueza
cultural da cidade, que é associada à produtividade dos manguezais que a cortam. Os
mangues, “símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza”, seriam fontes inesgotáveis de
vida criativa, assim como a movimentação inaugurada pelos que "assinaram" o manifesto e
se posicionaram contra as castrações excludentes e discriminatórias que vinham sofrendo.
Ainda hoje, as questões do manifesto estão postas, e Fred Zero Quatro, seu principal
formulador, reconhece a atualidade das propostas ali colocadas:
O que eu acho legal naquele manifesto é que ele consegue ser bem abrangente e ter uma consistência atemporal, porque a maior parte dos princípios que tinham ali que eram a diversidade e da alegoria dos manguezais como berçário de milhões de espécies como Recife e suas bandas. Isso permanece forte lá em Recife e é o que a gente acredita, o que a gente mantém como princípio até para combater essa lei do pensamento único na indústria cultural brasileira. As rádios e agora até a MTV obedecem à lógica da cópia e da clonagem do pensamento único em detrimento da diversidade. E o mangue existe para isso para tentar resistir e enfrentar essa lógica perversa. (Zero Quatro In: Adelson Luna, www.sambanoise.hpg.ig.com.br/fred04entrev.htm)
Num segundo momento, a declaração de uma consciência política ativa no que diz
respeito à situação de degradação ecológica e social da cidade toma conta do texto.
Questiona-se a idéia moderna de progresso e as vantagens da auto-afirmação do Recife
como metrópole regional. Nesse exercício crítico, o manifesto recupera na história da
cidade, o trajeto de sua experiência de exploração e depredação, lembrando que o Recife
exibia na época “o maior índice de desemprego do país”, tendo a maioria da população
morando em favelas e alagados e se apresentando, segundo o Institut Population Crisis
Commitee de Washington, como “a quarta pior cidade do mundo para se viver”. 13
12 Cláudio Moraes de Souza (Souza, 2002), na dissertação “Da Lama ao Caos”: a construção da metáfora mangue como elemento de identidade/identificação da cena recifense, identifica os mecanismos de simbolização e as formas de apreensão da cultura apresentadas pelo Manguebit, incluindo-o no movimento de reordenação social que estaria reconsiderando o conceito de identidade nos termos da globalização. Segundo Souza, uma “metáfora mangue” teria articulado a leitura de uma geração acerca da realidade cultural híbrida que funda sua produção artística, e uma atitude flâneur os teria permitido construir imagens de si e da cidade do Recife.13 Pesquisa divulgada na edição do Jornal do Commercio de 26/11/1990.
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O texto termina colocando o Manguebit como resposta a tal situação de degradação
e como proposta de intervenção transformadora, que por meio de um “choque violento”
geraria um efeito motivador na vida cultural estagnada. O estímulo viria da aplicação de
uma alta voltagem de energia e faria reviver a produção local, conectando as “boas
vibrações dos mangues” com o global representado pela “rede mundial de circulação de
conceitos pop”, ou seja, com as referências urbanas e as expressões artísticas internacionais
às quais os mangueboys tinham acesso por habitarem uma cidade-porto. “Imagem símbolo:
uma antena parabólica enfiada na lama”. Fred Zero Quatro comenta o impacto causado fora
do Recife pelo inesperado cosmopolitismo dos "meninos da província":
(...) estavam com uma visão muito preconceituosa pelo fato de a gente ter vindo do Nordeste. Era engraçado porque a gente veio falando de realidade virtual, de teoria do caos, de world music. Uma coisa bem urbana, porque a formação da gente era urbana. Ninguém esperava que viesse de Recife alguma coisa com a nossa consistência. (Zero Quatro, www.velotrol.com.br/volotrol110/fred04.htm)
Essa formação urbana, no entanto, foi condenada pela mesma corrente
tradicionalista que já havia entrado em choque com os tropicalistas pernambucanos mais de
vinte anos antes.14 A tão condenada "descaracterização do maracatu" rendeu muita
polêmica, não somente entre Ariano Suassuna e Chico Science, mas entre os defensores da
“autenticidade da cultura regional” e aqueles que pretendiam se dissociar da imagem
tradicionalista que a idéia de Nordeste evocava. O Manguebit procura desnaturalizar a
noção de ruralidade e rusticidade que costuma identificar a região, comumente tomada
como espaço de sobrevivência do passado. Um tradicionalismo louvado pelas elites locais
em seu esforço de conservação de estruturas sociais.
Ao narrar o processo de “invenção do Nordeste” como universo simbólico e
categoria de análise, o historiador Durval Albuquerque Jr. (Albuquerque Jr., 1999)
contextualiza a criação e consolidação do recorte regional, que não deve ser tomado como
objeto fora da dinâmica de transformações sociais, mas como identidade espacial criada
14 Segundo o jornalista José Teles, foi contra o caráter conservador e elitista da "cultura regional" que se articulou, no final dos anos sessenta, um movimento tropicalista entre intelectuais e artistas do Recife, João Pessoa e Natal. Referenciado nas idéias apresentadas pelos manifestos “O Que É o Nosso Tropicalismo ou Vamos Desmascarar o Nosso Subdesenvolvimento”, “Inventário do Feudalismo Cultural Nordestino” e “Porque Somos e Não Somos Tropicalistas”, todos publicados pela imprensa local no ano de 1968, o grupo condenou “o marasmo cultural da província” e questionou seus princípios conservadores (Teles, 2000, p. 111).
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num momento histórico específico: o período pós-proclamação da República. Segundo o
historiador, foi nesta ocasião que as oligarquias das províncias do Norte começam a
articular um discurso unificador diante de sua perda de poder político. A partir do
agrupamento de experiências, memórias e signos de origens diversas fundou-se uma
narrativa que terminou por estabelecer os traços definidores da Região Nordeste e
determinar sua “essência”. Compôs-se uma unidade cultural e geográfica e criou-se uma
"visibilidade" e uma "dizibilidade" a seu respeito.
Essa articulação entre poder e linguagem e sua distribuição espacial orientam o
entendimento da região como domínio: território da vigência de determinados valores e de
exercício do mando de uma elite sociopolítica. O discurso regionalista, que recorta e produz
espacialidade pela construção de narrativas, gerou a afirmação de uma “nordestinidade” a -
histórica, permanente, imutável, numa associação estreita entre o caráter da região e a
cultura de seu povo.
No decorrer de tais processos, a identificação das raízes originais do Nordeste,
entendido como espaço de sobrevivência da autêntica cultura brasileira, geralmente se
voltou para uma dimensão folk, que evoca a “pureza cultural” reconhecida nos grupos
populares e afirma a atemporalidade dos “costumes” que os definem. Uma narrativa que
distancia a trajetória popular das dinâmicas de transformação da história, e se associa ao
mecanismo de criação e articulação de tradições rituais e simbólicas colocadas a serviço da
manutenção de estruturas sociais. De acordo com Hobsbawn, estas “tradições inventadas”
são construções “cujo propósito principal é a socialização, a inculcação de idéias, sistema
de valores e padrões de comportamento” (Hobsbawn, Op. Cit.p. 17).
O lugar do popular em tais discursos é também posto em questão pelo Manguebit, já
que, além de se atrelarem aos interesses políticos mencionados, determinam muitas vezes o
imobilismo das manifestações culturais e subordinam sua legitimação a missões intelectuais
de preservação. Diante da impossibilidade de estabelecimento de fronteiras rígidas entre
popular, culto e massivo, o Mangue se expressa pelas linguagens impuras, formadas nos
entrecruzamentos promovidos pelos processos de migração, mestiçagem e urbanização.
Em última instância, os defensores da tradição acreditam que as manifestações
populares não têm capacidade de resistir ao confronto com a indústria cultural e com as
intervenções externas. Argumento desmontado pela experiência do Manguebit que, ao
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invés de desarticular, fortaleceu as expressões populares tradicionais, chamando atenção de
seu público para a riqueza e dinamicidade estética de tais manifestações, e se revertendo
num exemplo eficiente de subversão dos meios modernos de construção de hegemonia
cultural.
Além disso, as modificações das práticas populares, quando vinculadas às
transformações socioculturais, não implicam necessariamente extinção, mas rearticulação e
atualização revigoradoras de suas formas de manifestação, pois, como afirma Canclini,
“nem a modernização exige abolir as tradições, nem o destino fatal dos grupos tradicionais
é ficar de fora da modernidade” (Canclini, 1998, p. 339). A esse respeito, argumenta Zero
Quatro:
Eu acho que a maneira mais fácil de você matar uma cultura é estagná-la. Tem muitas manifestações e gêneros de Recife que foram dizimados. Coisas que passaram de pai pra filho, sem ter nenhuma relação com a evolução cultural da cidade e foram ficando cada vez mais restritas. E quando o último cara desistiu, o negócio morreu. Hoje em dia, há toda uma geração de adolescentes em Recife, que está louca para conhecer maracatu. Então maracatu é uma coisa que vai permanecer por muito tempo ainda e eu acho que Chico deu uma grande contribuição para isso. O que ainda falta acontecer no Brasil é abrir espaço para que os autênticos representantes da cultura tradicional tenham acesso à tecnologia. Tem o caso de Chico, mas Chico não se propõe a fazer uma coisa tradicional, ele se propõe a envenenar e redimensionar a coisa. Mas têm algumas figuras aqui no Brasil que se apropriam de uma cultura tradicional e fazem uma coisa popularesca, entendeu? (Zero Quatro In: Lins e Seibel, 1996)
Uma posição mais adequada à realidade urbano-periférica do Recife é ocupada pelo
Manguebit. Pregam um diálogo simétrico entre artistas de variadas procedências,
assumindo uma atitude “receptiva”, que busca absorver influências, “enriquecendo e
aperfeiçoando sua [própria] linguagem e seus procedimentos criativos”; e uma iniciativa
“entusiasta/incentivadora”, que reivindica o respeito à autonomia dos artistas populares por
meio da promoção do acesso ao instrumental tecnológico de produção e gravação e aos
meios modernos de divulgação e comercialização dos seus trabalhos. Condenam, por fim, a
postura “atravessadora” identificada em muitos músicos pernambucanos:
Você pode se aproximar daqueles músicos [populares] e não resistir à tentação de se apropriar da sua herança e sabedoria, tentando reproduzir com todos os detalhes a sua técnica e copiando descaradamente o seu som, em benefício próprio (mas em nome da tradição, é claro). Enfim, difundindo sem o menor escrúpulo mundo afora uma versão mais “educada” do que a original - pouco importando que os “mestres” permaneçam ignorados, isolados em sua ingenuidade, desinformação e miséria. É o que eu chamo – sempre chamei
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– de pilhagem. Quem quiser que vista a carapuça... (Zero Quatro, http://www.manguetronic.com.br)
Tema recorrente no debate acerca da cultura pernambucana, a questão dos usos
estéticos e políticos da arte popular já havia sido tratada por uma pesquisa publicada em
Recife na década de 1970 (Maurício, Cirano e Almeida, 1978). Em uma leitura
marcadamente marxista, seus autores abordam a relação entre artistas populares e
produtores culturais na Região Metropolitana, desde a criação do Movimento de Cultura
Popular, fundado durante a administração de Miguel Arraes na década de 1960, até o
Movimento Armorial, articulado por Ariano Suassuna, quando diretor do Departamento de
Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco, no início da década de 70.
Levantam questionamentos acerca do discurso de preservação das raízes populares,
considerando os interesses de classe que poderiam estar atuando em tais formas de
mediação.15
Com uma visão não muito diversa, Fred Zero Quatro reconhece, nas objeções de
Suassuna ao trabalho de Chico Science, a adoção de uma “postura aristocrática” recorrente
entre os encarregados da política cultural no Estado:
Ele é padrinho da Orquestra Armorial, e com essa postura aristocrática, eles se julgam donos da cultura popular, mas sempre acham que a cultura popular precisa de certos filtros acadêmicos para poder ser vendida para a classe média. (Zero Quatro, www.velotrol.com.br/velotrol110/fred04/fred02htm)
Em entrevista aos autores de Arte popular e dominação, Suassuna se defende das
acusações de praticar um preservacionismo conservador em relação às expressões da arte
popular, embora admita a importância da função de arquivamento e musealização da
cultura atribuída aos folcloristas:
É difícil julgar com isenção a si mesmo, mas quanto a mim, não creio que “pesquise o pastoril, cordel, etc” para “colocá-los em museus ou publicá-los para o consumo das elites pensantes”. Esse é o trabalho dos folcloristas – e, aliás, eles prestam um bom serviço (...) (Suassuna In: Maurício, Cirano e Almeida, Op. Cit., p. 47)
15 O próprio Suassuna é, neste estudo, alvo de uma das denúncias de apropriação cultural. Francisco Sales Areda, cordelista paraibano, é autor do folheto “O homem da vaca e o poder da fortuna” e, em entrevista aos pesquisadores, diz não ter sido consultado quanto à utilização de seus versos em uma peça homônima escrita por Suassuna, embora a contenda tenha sido resolvida, segundo o depoimento do próprio poeta, assim que o escritor teve informações sobre Francisco e o procurou para negociar os direitos autorais. (Maurício, Cirano e Almeida, Op. Cit., pp. 90-91).
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No entanto, o contexto cultural contemporâneo que redefine os universos populares,
inviabiliza e desautoriza os esforços de preservação baseados numa concepção de folclore
como saber originário do povo, fundado no costume e na tradição e direcionado para a
construção identitária e integradora da nação.
Como foi dito, a constatação da crescente urbanização das sociedades periféricas e a
afluência cultural das massas decorrente desse processo, assim como o questionamento da
homogeneidade das identidades fundadas sob o signo da nação, estão redefinindo o
entendimento das culturas populares no Brasil. Uma reordenação que nos permite refletir a
respeito da dinâmica das relações entre temporalidades e matrizes culturais diversas – em
interação por contradição ou apropriação – que envolvem a modernização de nações
subalternas. A idéia de mestiçagem cultural deve ser então atualizada, distanciada de sua
conotação totalizadora para, enfim, conseguir dar conta das multiplicidades que nos tem
constituído. Imbuído de tal intuito, Jesús Martin-Barbero redefine o caráter das formações
culturais latino-americanas a partir:
(...) da mestiçagem, que não é só aquele fato racial do qual viemos, mas a trama hoje de modernidade e descontinuidades culturais, deformações sociais e estruturas do sentimento, de memórias e imaginários que misturam o indígena com o rural, o rural com o urbano, o folclore com o popular e o popular com o massivo. (Martin-Barbero, 2001, p. 16)
Com essa consciência, o Manguebit se alimenta não de expressões extintas ou
isoladas, mas atuantes, misturadas, e que emergem dos anacronismos e da complexidade da
cultura urbana. Um universo dinâmico, onde toda manifestação está inserida no processo de
constituição do massivo como uma das formas de atuação e meios de expressão do popular.
Na cidade do Recife, o Mangue absorve e reprocessa a arte das revistas em quadrinhos, os
recursos estéticos e políticos do hip-hop, as estratégias publicitárias do punk, as
possibilidades da tecnologia musical, o colorido das roupas compradas nas feiras, a
inventividade dos pregões de camelô, a força do maracatu, a malícia e a ironia das
emboladas. Tudo em prol da produção de uma arte pop criativa, subproduto da indústria
cultural. 16 Com isso, prega a inauguração de uma nova sensibilidade política, voltada para
a apreensão da multiplicidade, da simultaneidade e da simetria entre tais elementos. Uma
16 Em Chico Science: A rapsódia afrociberdélica, Moisés Neto (Neto, 2000) explora o pós-modernismo na obra do músico e aponta para as intertextualidades atuantes na “cena mangue”.
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percepção que ultrapasse as operações dicotômicas, complexificando a compreensão das
contradições, apropriações e recriações culturais.
O “espírito antropofágico” fundado pelo modernismo brasileiro em sua luta contra o
colonialismo cultural é constantemente evocado na caracterização desse tipo de postura. No
entanto, se quisermos apreender os ecos da antropofagia oswaldiana sobre as propostas do
Manguebit, devemos ter como referência um entendimento claro da distinção entre os
contextos e das diferenças entre as intenções que os moveram.
Segundo Silviano Santiago (Santiago, 1991), em Oswald de Andrade a proposta de
“redescoberta do Brasil” estava associada à incorporação do espírito vanguardista moderno,
portanto, o contato cultural com a Europa foi visto como aprimoramento intelectual e
movimento necessário para se pensar a realidade local em interação com os princípios de
modernidade que se pretendeu adotar.
Descompromissado com ufanismos e tradicionalismos, Oswald condenou a
reprodução do que chamou de "macumba para turista", que seria a pura externalização das
características primitivas da nacionalidade brasileira por meio do apelo ao exotismo nativo.
Sendo assim, a validade do que seria exteriorizado teria que estar submetida à reformulação
da nacionalidade efetuada pela devoração do elemento estrangeiro. A “antropofagia”
funcionou como processo constante de seleção e exclusão que deveria orientar a
recolonização modernista voluntária, ativa, nacional e universalizadora, includente,
consciente da situação de subordinação e movida pelo esforço de superação da anacronia
em relação às nações já completamente modernizadas. Perspectiva que condenou a
homogeneização e afirmou a coexistência de diferentes tempos, ordens sociais,
sensibilidades e visões de mundo no universo cultural brasileiro.
O que o mangue apreende desta percepção é um compromisso de transformação que
opera pela incorporação de culturas antes negligenciadas e pelo diálogo constante com a
produção cultural global, sem, no entanto, tomar a nação como principal referencial
simbólico, nem assumir a missão vanguardista de apontar os caminhos da modernização
brasileira. 17
17 Neste sentido, ver a dissertação de Roberto Azoubel da Mota Silveira (Silveira, 2002), Mangue: uma ilustração da grande narrativa pós-moderna, que parte das reordenações narrativas desenvolvidas pelo Mangue – configuradas principalmente pela inclusão de grupos e linguagens tradicionalmente marginalizados pelo discurso ocidental – para localizar e compreender a definição e o papel das movimentações culturais no contexto da pós-modernidade.
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Além de ampliada – pela flexibilização dos critérios seletivos adotados pelo
modernismo –, a dimensão antropofágica é atualizada – pela absorção de elementos da
cultura pop contemporânea, pela utilização das possibilidades de criação apresentadas pelo
instrumental tecnológico posto a serviço da produção cultural, pela apropriação dos meios
massivos de produção, divulgação e comercialização da arte, e pela inserção no contexto
sociocultural da globalização. Como afirma Annateresa Fabris:
Se a proposta do “Manifesto Antropófago” era proclamar a originalidade da cultura brasileira numa inversão proposital da lógica colonialista, não é com esse quadro de referências que se deparam os artistas e intelectuais das últimas décadas do século 20. Longe de ser uma construção nacional, a cultura afigura-se cada vez mais como um processo de montagem multinacional, como uma atividade gestada em diversos centros, para a qual os referentes tradicionais de identidade estão perdendo importância diante do caráter transnacional das tecnologias e do consumo de mensagens e produtos simbólicos. Neste momento, as análises relativas à cultura não podem levar em conta apenas a problemática da diferença, mas abrir-se cada vez mais ao fenômeno do hibridismo, da transação intercultural. (Fabris, 1998)
De acordo com Stuart Hall (Hall, 2001), a mundialização aparece como fenômeno
atrelado ao capitalismo moderno, que fundou tanto as nacionalidades quanto as exigências
globais de interação, no entanto, a intensificação das relações interculturais aparece como
uma tendência pós-moderna, no momento em que as nações já não são mais o único veio
dos fluxos entre os povos. Seguindo o mesmo raciocínio, Renato Ortiz (Ortiz, 2000)
apontou para a formação de uma “cultura internacional-popular” desenhada por objetos e
símbolos desterritorializados, que não implicam uma narrativa fundadora e coerente, mas
uma compilação de elementos multinacionais fragmentados, que acentuam a sensação de
desenraizamento, ou de pertencimento globalizado.
No entanto, uma concepção de mundo formado por países diferenciados e
autônomos, construídos sobre tradições autocentradas e imunes às transformações globais,
ainda fundamenta a associação imediata entre memória e nação, dificultando a aceitação da
existência de uma cultura mundializada, supostamente destituída de referenciais coletivos
que possam determinar a identidade de um grupo. Isto não bloqueia a percepção da
insuficiência das categorias tradicionais de identidade na reprodução da sociedade de
consumo, que além de manipular valores, costumes e condutas pré-existentes, fundou
novos símbolos, criou demandas, estabeleceu normas, laços e mentalidades sociais, até
constituir-se como sistema. Elementos internacionalizados, frutos da modernidade
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industrial, configuram a “cultura popular-internacional”, construindo imagens
comercializáveis a partir de uma ideologia globalizante que se empenha em abarcar
diferentes grupos, classes e nações, criando necessidades universais de consumo.
Como já foi dito, a análise da produção artística do Manguebit não pode deixar de
considerar as intertextualidades, os diálogos, as adaptações e apropriações como forma de
construção estética e afirmação política na pós-modernidade, além da citação de
referenciais globais e imagens desterritorializadas como um dos elementos que determinam
a inteligibilidade de seus trabalhos. Fragmentos de memória partilhados, manipulação de
imagens-lembrança que podem estar localizadas nos cenários mais diversos ou híbridos,
caracterizam a bricolagem gerada no Mangue. No entanto, sua iniciativa de criação de um
produto cultural de consumo se deu por inspiração na elaboração da “imagem punk” pelo
produtor Malcom McLaren e pela estilista Viviene Westwood.
Inspirados na atitude e no visual da juventude londrina do final da década de 1970,
o casal formulou uma cena pop que incluiu a confecção das roupas e adereços, a construção
do vocabulário, a criação do cenário e a definição do som que iriam responder ao niilismo,
à agressividade e à descrença nos modelos sociais e estéticos exibidos pela geração punk
(Essinger, 1999).
Com a mesma inventividade, os mangueboys de primeira hora processaram as
demandas por alternativas culturais da juventude recifense e criaram a “cena mangue”. No
entanto, a postura anarquista, posteriormente adotada pelos punks, de negação do sistema
capitalista e das formas de atuação cultural por ele geradas, não foi adotada em sua
radicalidade pelo Manguebit. Este preferiu lançar mão das possibilidades apresentadas pela
indústria cultural para projetar-se como alternativa no mercado pop:
Fora a música, a cena buscou usar outras formas de expressão, como o linguajar, o vocabulário de mangueboy, do aratu e do caritó. Tem também o lance do visual, de misturar, por exemplo, chapéu de palha com adereços eletrônicos, e essa imagem símbolo, que é uma parabólica na lama do mangue. Isso tudo ajudou a estimular um monte de bandas novas, com linguagens bem diversificadas. Hoje eu acho que é bem mais fácil conseguir um espaço do que há dez anos, por causa dessa trincheira que a gente abriu e desse satélite que a gente ajudou a lançar (Zero Quatro In: Milena Andrade, http:// www.sambanoise.hpg.ig.com.br/hpg.ig.com.br/entrev.htm).18
18 A dissertação de Paula de Vasconcelos Lira (Lira, 2000) Uma antena parabólica enfiada na lama: Ensaio de diálogo complexo com o imaginário do mangueBit, se funda em uma etnografia detalhada que articula todos estes elementos, na análise da construção da cena pop recifense como organização de um sistema simbólico complexo, fundado na diversidade das expressões e linguagens que se articulam sob o signo do
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As estratégias publicitárias estão aqui subordinadas ao interesse maior de promover
a diversidade, subvertendo, pela via da apropriação dos meios massivos, o movimento de
homogeneização seguido pela indústria cultural. A maioria dos formuladores da cena
mangue era estudante ou profissional da área de comunicação e designer, o que com certeza
contribuiu para o sucesso de suas investidas publicitárias. Apelaram para a construção de
cena como forma de intervir na realidade por meio da ficção e da virtualidade pós-
modernas, e travaram uma relação de negociação com o mercado cultural na tentativa de
tornar acessíveis suas produções.
Um dos elementos constitutivos do que se identificou como movimento punk é a
lógica do “faça você mesmo”, que partiu da crítica ao comercialismo capitalista para a
criação de circuitos underground de circulação de informação. Lição aprendida pelos
militantes do movimento hip-hop, que a aplicam no processo de produção e distribuição de
seus trabalhos, com o objetivo de criar espaços de divulgação e garantir a qualidade do que
veiculam.
O mecanismo de mediação na “cultura hip-hop” opera pela construção de formas de
“se fazer ouvir”, pela conquista de espaços de intervenção reconhecidos inclusive no
âmbito do consumo (Herschmann, 2000). Também distante do rumo que tomou o
movimento punk, os militantes do movimento hip-hop se apropriam dos mecanismos da
indústria cultural na busca de inclusão social, entendendo o acesso igualitário aos bens
culturais e materiais como forma de promover democracia. Postura que aponta para a
importância estratégica de se subverter as relações de consumo pela diversificação da oferta
de produção estética e pela facilitação do acesso a informações e decisões. Atentam, assim,
para as possíveis contribuições que estas transformações podem trazer para o exercício
pleno da cidadania.
O Manguebit se associa a esta vertente da cultura pop e cria programas de rádio e
televisão, produtoras de vídeo e cinema, selos e gravadoras independentes, sites, revistas e
Manguebit. Toma as manifestações artísticas como parte deste sistema, fragmentos que possibilitam a compreensão da ordem geral por contê-la em sua constituição. Enfatiza assim, a indissociação entre os vários aspectos apresentados pela cena mangue, a dialética entre ordem e caos que movimenta as relações culturais por ela apresentada, assim como as representações e os mitos fundados por seus ciclos criativos.
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fanzines. 19 20 No interior deste circuito desenvolve-se a profissionalização dos trabalhos e
crescem as possibilidades de interferência na reformulação e democratização das políticas
públicas, devido ao destaque adquirido pelos mangueboys na vida cultural da cidade do
Recife. 21
Estas conquistas se deram associadas à tendência à comercialização das
diversidades tomada pela indústria cultural internacional. Caracterizam-se como um
processo de negociação simbólica e estética que se vale do gradativo reconhecimento das
produções regionais e de grupos minoritários, da agregação das grandes gravadoras com
selos independentes, e da flexibilização e diversificação da produção industrial inserida
num contexto de hibridismo cultural. Ou seja, o mangue, como um produto cultural de
consumo, também se insere no movimento de regionalização da produção, com suas
estratégia de mercadorização de elementos que respondam às identificações culturais
definidas pela pluralidade.
No entanto, apesar das formas de convivência contemporâneas estarem fundando
identidades transnacionais e apontando os caminhos da promoção da democracia cultural
nos centros urbanos pela via do multiculturalismo, persistem, também na formulação das
políticas oficiais, discursos territorializantes, que evocam a lealdade aos símbolos
tradicionais e se empenham na defesa de autenticidades locais. Enquadrando-se no que
afirma Canclini (Canclini, 1995) a respeito das políticas culturais urbanas na América
Latina, o Projeto Cultural Pernambuco-Brasil, apresentado por Ariano Suassuna como 19 A dissertação de Carolina Carneiro Leão (Leão, 2002) A maravilha mutante: Batuque, sampler e pop no Recife dos anos 90 é dedicada à análise das formas de articulação entre comunicação e crítica social promovidas pela a cena Manguebeat, estando esta associada aos signos da cultura pop e identificada com os mecanismos da cultura de massas. Toma as colagens de gêneros como definição estética desta movimentação cultural (adotando o termo samplear como conceito orientador) e procura localizar as intervenções da lógica de mercado em sua configuração.20 O barateamento e as facilidades de acesso à tecnologia permitiram a consolidação de uma produção local profissional e competitiva. No entanto, persistem as dificuldades de distribuição e divulgação pela resistência dos meios massivos no Brasil, ainda muito referenciados em critérios mercadológicos tradicionais.21 Talvez devido à pressão do que veio a representar o mangue em termos de afirmação identitária do Estado de Pernambuco e de rentabilidade econômica pelo turismo, várias gestões políticas associaram aos signos do Manguebit aos seus projetos. Chico Science é freqüentemente homenageado na programação oficial do carnaval, um dos eventos mais resguardados em termos de “autenticidade”, seu trabalho foi adotado pela Secretaria Municipal de Educação do Recife como tema principal do ano letivo de 2003 – Ano Letivo Chico Science: Um passo a frente e você já não está mais no mesmo lugar –, o governo do Estado publicou um disco com oito versões do hino pernambucano, entre elas uma “versão mangue”, composta por músicos de gêneros diversos, nem todos diretamente ligados à formação da cooperativa (Hino de Pernambuco, Recife: Secretaria Estadual de Cultura/CEPE Editora, 2002). O projeto de maior destaque, no entanto, foi o Acorda Povo, formulado por alguns dos articuladores do mangue e concretizado em parceria com a banda Devotos e as secretarias municipal e estadual de cultura, experiência que será abordada ainda neste capítulo.
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base de sua gestão na Secretaria Estadual de Cultura, esteve explicitamente guiado pela
delimitação territorial das referências simbólicas:
(...) o “Projeto Cultural Pernambuco-Brasil”, planejado para os quatro anos do governo Arraes, terá como centro a arte popular brasileira, ou aquela que, não sendo popular de origem, é, porém nacional por ser visceralmente ligada ao popular. (Suassuna, 1995a, p. 5)
A já mencionada associação entre nacional e popular construída pelo pensamento
social brasileiro é aqui reforçada pela ligação do projeto cultural com as concepções do
então governador, citado por Suassuna como co-autor de algumas de suas propostas. Em
um artigo publicado no Diário de Pernambuco em agosto de 1995, o secretário explicita
sua proximidade ideológica com Miguel Arraes:
Sempre afirmei que minhas idéias sobre cultura brasileira se assentam sobre dois fundamentos, o nacional e o popular, os mesmos que estão na base do “Projeto Cultural Pernambuco-Brasil”. (...) Por isso, vivia a espera de alguém que no Brasil, honestamente, eficazmente, tentasse efetivar, no campo da política, aquilo que eu sonhava para o da Cultura. Minha busca foi infrutífera ou extraviada, até que li o livro de Arraes “O Jogo do Poder no Brasil” (...) E Arraes conclui: é necessário consolidar “uma força nacional e popular, capaz de promover um amplo debate e de executar democraticamente a grande tarefa que se tem pela frente. É a tarefa que só o povo tem condições de executar. Para tanto, é necessário que detenha o poder. Embora todas as constituições declarem que ele emana do povo, o fato é que este nunca o exerceu. Cabe lutar para que isso seja uma realidade”. Como se vê, não foi por acaso que o governador Arraes me chamou para ser seu secretário da Cultura. Nem foi por acaso que eu aceitei. [grifos do autor]
O histórico político de Arraes nos permite evocá-lo como um dos promotores do
MCP na década de 1960, movimento que aliava formação cultural à transformação social,
motivado pela “demanda por uma consciência popular adequada ao real e possuída pelo
projeto de transformá-lo” (MCP, 1986, p. 51). Apresentada por uma vanguarda intelectual
que se propunha a identificar os verdadeiros interesses dos grupos subordinados, tal
perspectiva dissociou a categoria de “cultura popular” dos signos da tradição, atrelando-a a
vocação revolucionária do que Marilena Chauí (Chauí, 2000) denominou “cultura do
povo”. Esta noção, que pressupõe a divisão da sociedade em classes e se põe a serviço de
sua modificação, fundamentou a crítica da esquerda socialista da década de 60 ao “caráter
conservador” da apologia ao folclore e à tradição, em contraposição à defesa dos aspectos
“realmente ligados às intenções revolucionárias do povo”.
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Ao projetar a ação cultural do segundo mandato de Arraes como governador, Ariano
Suassuna reforça a proposta de direcionamento da política estatal pelas culturas populares,
sem, no entanto, compartilhar da concepção que atribui às expressões tradicionais o papel
de obstáculo aos movimentos de transformação social. O popular recuperado por Suassuna
é justamente aquele manifestado na “invenção dionisíaca e espetacular do Bumba- meu-
boi, do Mamulengo, da Nau Catarineta, do Pastoril” (Suassuna, 1977, p. 48). E é aí que se
encontram, segundo a “concepção armorial” do escritor, os signos da unidade nacional:
A unidade nacional brasileira vem do Povo, e a Heráldica popular brasileira está presente, nele, desde os ferros de marcar bois e os autos de Guerreiros do Sertão, até as bandeiras das Cavalhadas e as correntes azuis e vermelhas dos Pastoris da Zona da Mata. Desde estandartes de Maracatus e Caboclinhos até as Escolas de Samba, as camisas e as bandeiras dos Clubes de futebol do Recife ou do Rio. (Idem, p. 40)
Este memorial de símbolos e emblemas expressaria o espírito popular e identificaria
a autêntica arte regional e nacional: a arte “daquele que quer criar a partir da realidade que
o cerca” (Suassuna, 1962, p. 477). Sendo assim, em seu projeto político, Suassuna contesta
a idéia de progresso que norteia a visão eurocêntrica de arte e cultura, atentando para os
equívocos de análise nos quais se pode incorrer quando esta perspectiva é adotada
acriticamente. Afirma a origem local (regional/nacional) de toda obra, sendo a “qualidade”
(valor) e a “divulgação” (alcance) seus principais fatores de universalização. Por
conseqüência, taxa de preconceituosa a discriminação que sofre a arte voltada para a
afirmação identitária, desvalorizada por seu caráter nacionalista:
Assim, é também um mero preconceito considerar estreita e arcaica toda obra de arte que se preocupe com a identidade nacional. Não existem obras de arte universais: as que assim são consideradas, são apenas universalizadas pela qualidade e pela divulgação. (Suassuna, 1995a, p. 4)
Entende, ainda, a hierarquização entre arte erudita e popular em termos de
dominação cultural, afirmando que a distinção formal reconhecível entre as duas não deve
fundar nenhum tipo de assimetria. Os modelos estéticos impostos pelo processo de
colonização estariam, assim, arbitrariamente elevados à condição de superioridade pela
força das culturas hegemônicas, tanto estrangeiras quanto nacionais. Analisando a
constituição cultural brasileira, Suassuna reconhece estar na formação ibérica romanizada a
base das expressões artísticas eruditas, e em sua “reinterpretação” por negros e mestiços, a
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origem da cultura popular. Recupera, aqui, a associação popular/nacional, afastando-se da
delimitação por extrato ou grupo social para se orientar em direção à construção da
identidade coletiva, alcançada por um duplo trajeto: do erudito para o popular - do popular
para o erudito. A idéia de nação preza pela unidade, esvaziando as distinções de classe:
É por isso que, no Projeto não se faz qualquer discriminação entre arte “arcaica” e arte “moderna”, entre arte “nacional” ou “universal”, entre arte “erudita” e arte “popular”. Todas elas são encaradas como pertencentes a uma imensa fraternidade, na linha da riqueza e variedade das diversas etnias que compõe nossa população. A única restrição dirige-se contra os servis e imitadores, isto é, aqueles que, confundindo inovação com renovação, se curvam ansiosos de qualquer “novidade” que nos vêm de fora como se fosse verdadeiramente de vanguarda. (Suassuna, 1995a, p. 6)
A reunião dos contrastes exposta pelos elementos associados na citação acima
denuncia uma visão harmônica que subentende a existência de uma democracia cultural
enquanto vocação nacional, evidenciada na convivência pacífica e na complementaridade
entre gêneros, temporalidades, etnias e extratos sociais. A própria tese de livre docência de
Ariano Suassuna se localiza na linha da produção teórica nacional que buscou identificar o
caráter do país pela via da abordagem culturalista. O escritor desenvolve sua reflexão a
partir de obras selecionadas na literatura brasileira, publicadas entre os séculos XVI e XX,
tentado evidenciar a tendência à conciliação entre os povos mestiços do mundo, dos quais
os brasileiros seriam os representantes mais típicos. De acordo com o autor, “se
examinarmos o Povo brasileiro do ponto de vista de seu comportamento social, de sua
Psicologia, de sua História, de sua Arte, de sua Literatura, encontraremos sempre essa
tendência assimiladora e unificadora de contrários” (Suassuna, 1976, p. 5).
Motivados por esta afirmação, voltamos às reflexões de Marilena Chauí para nos
aproximamos da noção de que o reconhecimento da divisão social e das contradições de
classes não implica necessariamente a admissão do confronto entre elas. A autora identifica
no termo “popular” o signo neutralizador das desigualdades sociais, por sua associação
imediata com a idéia de nação:
Quando “do povo” ruma para “popular”, o adjetivo tende a deslizar para um outro que encobre efetivamente a contradição e a luta: o adjetivo “nacional”, cuja peculiaridade, sobejamente conhecida, consiste em deslocar a luta interna para um ponto externo à sociedade que permita a esta última ver-se imaginariamente unificada. (Chauí, Op. Cit., p. 42)
46
Suassuna parte da identificação das especificidades atribuídas aos grupos
subalternos, entendendo-os como elemento catalisador dos consensos em torno da
construção nacional. Acrescenta aí a crítica aos estrangeirismos, à efemeridade e ao
imediatismo das vanguardas modernas, e, por contraposição, deixa entrever a valorização
da tradição enquanto espaço do perene, manifestação do mítico atemporal, espírito de um
povo e inspiração para a verdadeira arte. Esta constatação deveria direcionar as ações do
Estado ao cultivo de tais tradições. O secretário atenta para os riscos de apropriações e
deturpações e determina os cuidados necessários “para que a oficialização e a burocracia
não prejudiquem, ou mesmo sufoquem, a beleza e a verdade da criação popular” (Suassuna,
1995a, p. 17). Expõe aí o reconhecimento de uma autenticidade na cultura popular que não
deve ser corrompida pela intervenção estatal.
O Movimento Folclórico Brasileiro, já estabelecia, em 1951, regras e limites à
intervenção de pesquisadores e às ações estatais de preservação, registro e divulgação das
manifestações culturais. Definiu o “fato folclórico” como expressão tradicional,
"essencialmente popular", espontânea e não institucionalizada. 22 Seu tratamento deveria se
dar com base no esforço de nacionalização do caráter regional de tais expressões, e estar
atrelado à iniciativa governamental de identificação de origem, conservação, organização,
catalogação, preservação e exposição do material recolhido. Acrescentou-se, no entanto,
que a intenção de difusão e vulgarização das expressões populares regionais não deveria
alterar sua autenticidade, nem deformar sua expressão primitiva, mantendo a fidelidade nos
processos de transposição. Como afirmaram Marcos e Maria Ignês Ayala:
Algumas interferências são consideradas descaracterizadoras ou mesmo ameaças à existência do folclore. A interferência representada pela “reconstituição”, pelo contrário, é pregada como uma necessidade. A diferença está em que a preservação procura manter os elementos de composição mais visíveis do “fato folclórico”. Temem-se não só as mudanças
22 As delimitações conceituais e metodológicas realizada pelo I Congresso Brasileiro de Folclore, reunido no Rio de Janeiro em agosto de 1951, tornam-se públicas por meio da divulgação de um documento que contém, “os princípios fundamentais, as normas de trabalho e as diretrizes que devem orientar as atividades do folclore brasileiro”. Ao inserir os estudos de cultura popular num campo cientifico (o da Antropologia), a Carta do Folclore Brasileiro identifica seu objeto e delimita seu campo de ação: “Constituem o fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular e pela imitação, e que não sejam diretamente influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam ou a renovação e conservação do patrimônio cientifico artístico humano ou a fixação de uma orientação religiosa e filosófica”. (Carta do Folclore Brasileiro, 1951, p. 77)
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das características mais evidentes do folclore, mas também as transformações sociais. Essa perspectiva, portanto, é claramente conservadora. (Ayala e Ayala, 1987, p. 19)
Pode-se reconhecer, assim, no interesses pelas manifestações da chamada cultura
popular uma atitude própria aos intelectuais da modernidade, que, movidos por um ideal
romântico de identidade, atribuem valor às expressões originais da cultura nacional de
acordo com critérios de antigüidade, conservação e espontaneidade, em contraste com a
efemeridade, ruptura e artificialidade da cultura moderna.
No decorrer dos anos 50, período de auge do Movimento Folclorista no Brasil, o
desenvolvimentismo se apresentou como o projeto econômico, político e cultural que
deveria dar conta da efetivação da unidade nacional tão desejada pelo setor intelectual e
pelos grupos dirigentes do país. Tal programa, que mobilizou considerável esforço político
e deveria decretar a suplantação do atraso nacional, associava medidas de modernização
comercial e industrial a concessões democráticas que deveriam ser garantidas pela
ampliação do sistema educacional. Em termos políticos, o projeto social a ser levado a cabo
pelos intelectuais se traduzia em um conjunto de reformas modernizantes (Ortiz, 1985).
Sendo assim, a definição do caráter folclórico a partir de sua natureza residual – que
aponta para resquícios de passado no presente – em detrimento de uma abordagem
contextual – que incluiria o popular na dinâmica de transformações históricas – recebeu
influências do positivismo, evolucionismo e difusionismo, que tendo se afirmado no Brasil
no final do século XIX, ainda se mostravam atuante na primeira metade do século XX. Isso
teria incentivado uma política de musealização e catalogação de fragmentos de
nacionalidade em extinção por culpa do processo irreversível, e na maioria dos casos
desejável, de modernização no país.
Já indicamos neste capítulo os termos da autodistinção de Ariano Suassuna em
relação à prática folclorista, que o escritor vê como meio de preservação e divulgação das
expressões populares. Mas entende que, para além disto, tais expressões deveriam ser
tomadas em sua vivacidade, não apenas como fonte de inspiração estética, mas como
indicador de formas ativas de sociabilidade. Suassuna procura, em seu trabalho de escritor,
“mostrar que a partir da Arte popular, é possível, no Brasil, procurarmos uma Arte
nacional, um pensamento nacional, e até uma teoria do poder brasileiro” (Suassuna, In:
Maurício, Cirano e Almeida, Op. Cit., p. 46).
48
No entanto, as reflexões de Luís Rodolfo Vilhena (Vilhena, 1997) acerca do
movimento folclórico brasileiro nos permitem compreender que na perspectiva dos
intelectuais aí envolvidos a cultura popular não apareceu apenas como objeto de pesquisa
classificatória, mas como caminho de identificação da identidade nacional. Tal constatação
se insere na discussão aqui levantada a respeito das formas de apreensão do povo como
elemento definidor do caráter da nação. Pioneiros na formulação de uma concepção
sistemática de cultura popular, os folcloristas fundaram os termos dos quais partiram as
diversas propostas de adequação e reordenação conceitual.
Alguns dos critérios estabelecidos por eles são absorvidos por Ariano Suassuna em
suas abordagens acerca das manifestações populares, como a afirmação de seu caráter
original, a concentração nas expressões rurais, a contraposição entre modelos hegemônicos
e subalternos de apreensão da realidade e construção de conhecimento, e os contrastes entre
saberes letrados e iletrados. Ao mesmo tempo, a preservação requerida pelo artista
implicaria assimilação e adoção de uma forma de existência ou convivência alternativa, e
não no seu isolamento, já que o que Suassuna persegue é a recuperação, ou melhor, a
incorporação do passado pelo presente. Ou seja, o escritor deseja que os aspectos estéticos
que identifica nas manifestações populares como de procedência arcaica (relativa à origem,
arquétipo), se revertam em projeto político e modelo social para o Brasil. Concepção que
também norteia seu entendimento da função do Estado no campo da cultura:
É por aí que se chega a definir o papel do Estado na cultura: apoiar as manifestações culturais que, sendo importantes, vitais mesmo, para o país, por sua própria natureza não têm condições de receber apoio do mercado – para repetir a idéia do atual Ministro da Cultura Francisco Weffort. (Suassuna, 1995a, p. 26)
Suassuna opina sobre o que é apropriado para a garantia da vitalidade cultural da
nação – em associação com os princípios exibidos pelo governo federal –, já que não faz
distinção entre as dimensões estadual, regional e nacional. Neste movimento, o Nordeste é
visto como lócus original da cultura brasileira e surge como tema privilegiado na defesa de
uma nacionalidade autêntica. Torna-se categoria fundamental de identificação do que deve
ser reconhecido como popular, e digno de receber investimentos públicos. O secretário
assumiu esta trajetória de busca das raízes nacionais com a convicção de que estaria
49
“fazendo o melhor para a Cultura brasileira, nordestina e pernambucana” (Suassuna, Idem,
p. 31).
Tal postura corrobora a idéia já esboçada neste trabalho de que as políticas estatais
de administração e preservação de patrimônio ainda estariam definidas pela submissão às
tradições que distinguem cada povo, confundidos com os habitantes de determinado
território. Entretanto, a articulação de memórias diversas pelo Estado moderno no processo
de composição de uma identidade nacional harmoniosa se encontra ameaçada quando as
cidades se apresentam como espaços onde se evidenciam a diluição das monoidentidades e
se desautorizam macropolíticas sociais e culturais. Torna-se latente o apelo da
heterogeneidade da população, das marcas impressas pela migração e da “multiplicidade
irredutível de linguagens e estilos de vida” (Canclini, 1995, p. 113). Considerando tal
realidade, Canclini reconhece que:
(...) as necessidades culturais de grandes cidades requerem políticas multisetoriais, adaptadas a cada zona, estrato econômico, grau de escolaridade e faixa etária, em suma, à complexa heterogeneidade do que se costuma simplificar como “público” (...) Talvez o ponto de partida para políticas urbanas seja não pensar a heterogeneidade como problema, mas sim como base para a pluralidade democrática. (Idem)
Segundo o autor, uma reordenação da concepção de cidadania deveria, ainda,
considerar o papel mediador das indústrias culturais e dos meios de comunicação de
massas, e se dedicar à compreensão de suas linguagens e à democratização de suas
produções. Deveria determinar também um novo direcionamento para as políticas de
promoção de culturas tradicionais, agora vistas em articulação com as condições de
internacionalização e com os signos da modernização. Ou seja, esgotadas, tanto a posição
da vertente marxista que limitou as possibilidades de interação cultural aos interesses de
classe nos anos 60, quanto a leitura política da corrente preservacionista que mais isola do
que reúne os grupos socioculturais da Nação, se faz necessária a busca por alternativas de
convivência que, sem negar os conflitos entre os diversos grupos, entenda a promoção da
democracia como uma questão de complexidade e pluralidade.
Sendo assim, a aplicação do Projeto Cultural Pernambuco-Brasil à capital
pernambucana não pôde deixar de provocar polêmicas e reações por parte dos diversos
grupos preteridos pelos seus critérios de favorecimento, embora estes não tenham sido, na
50
prática, aplicados com muita rigidez. 23 O programa chegou a ser contestado por um grupo
de intelectuais, artistas e produtores culturais através de um abaixo assinado. O texto do
documento diz:
Os Artistas, Intelectuais e Produtores Culturais em geral, abaixo assinados, vêm a público contestar e repudiar o programa cultural consubstanciado no texto “projeto Cultural Pernambuco-Brasil” elaborado e apresentado pelo Ilmo Sr Secretário de Cultura do Estado de Pernambuco, Dr Ariano Suassuna, e assessores, datado de maio de 1995. Tal programa de governo elimina um Direito Fundamental, inerente a todos que se dedicam à Produção Cultural nas suas variadas manifestações artísticas, ou seja, a Liberdade de Expressão (...) Desta forma, nos manifestamos contra qualquer tipo de ingerência do Estado, que venha a cercear os direitos e garantias fundamentais para o Exercício da Liberdade, em todas as suas formas de expressão. Não aceitamos, portanto, a imposição de qualquer tipo de linha estética e conduta artística. O “Projeto Cultural Pernambuco-Brasil” constitui, efetivamente, um retrocesso inadmissível para a Cultura Artística do Estado, por ser preconceituoso e ditatorial. 24
Ariano Suassuna responde aos ataques com o argumento de que um projeto
democrático deve deixar claros os critérios de seu juízo crítico, reconhecendo que as
seleções de manifestações associadas aos interesses políticos dos mandatos fazem parte de
qualquer atuação pública (Suassuna In: Moura, 1995). Defende-se por antecipação, no texto
do projeto, das esperadas acusações de “exclusivismo” e “radicalismo” afirmando não
serem os atores envolvidos em seu programa “indefinidos nem amorfos a ponto de ficarem
na rotina do simples e indiscriminado repasse das poucas verbas de que dispõem para apoio
à cultura brasileira” (Suassuna, 1995a, p. 31). Aplicando tais critérios políticos e estéticos à
identificação das expressões musicais dignas de receberem o apoio e os investimentos da
secretaria no decorrer de sua gestão, Suassuna propõe a realização de eventos que:
23 Em entrevista ao Jornal do Commercio, o secretário se defende: “Discordo dessas críticas. Nos últimos quatro anos o Estado de Pernambuco gastou R$ 42 milhões em assuntos culturais. Desses, apenas R$ 320 mil foram usados pela Secretaria de Cultura. O resto foi repassado pela Fundarpe, por outros órgãos ou por meio de renúncia fiscal de projetos aprovados pela Lei de Incentivo a Cultura. Ou seja, dos R$ 42 milhões, apenas R$ 30 mil foram submetidos à política cultural estabelecida por incentivo para a Secretaria. Vale ressaltar que as outras despesas tiveram a minha aprovação. Eu concordei que o governo gastasse dinheiro com projetos culturais que não se incluíram no meu plano de ação. Entre elas está o Festival de Cinema, patrocinado pela Telpe, a contratação de certas bandas para o festival de Garanhuns, a viagem de Chico Science a Nova York, a fita da banda Paulo Francis Vai Pro Céu?, que inclusive fazia uma piada colocando- me na capa ao lado de Paulo Francis. Então acho que houve uma abertura grande, com verbas para as mais diversas áreas” (Suassuna In: Barbosa, 1998).24 No documento constam nomes como o do escultor Abelardo da Hora, dos maestros Geraldo Menucci e Duda, dos artistas plásticos Sérgio Lemos, Tiago Amorim, Montez Magno, Jobson Figueiredo, do escritor Nelson Saldanha, do produtor Raimundo Campos e da cineasta Kátia Mensel. O texto foi publicado na íntegra pelo Diário de Pernambuco de 09/07/1995, em uma matéria intitulada “Quixote da cultura brasileira”, assinada pela jornalista Ivana Moura.
51
(...) apresentem aos meios de comunicação e ao público urbano instrumentistas populares como os de rabeca, percussão, viola e marimbau. Será ocasião para estudar e revalorizar os timbres e os ritmos da música feita pelo nosso Povo, tão rica de sugestões mas que, quase sempre servindo apenas de suporte a espetáculos e secundarizada perante a ação e os figurantes, não recebe a atenção que merece. Voltamos a lembrar que ela pode servir de roteiro a nossos compositores eruditos para a criação de uma música que expresse nosso País e nosso Povo. (Idem, p. 30)
Estas proposições já excluem, por princípio, a possibilidade de diálogo com o
Manguebit, por seus articuladores não se enquadrarem no perfil que Suassuna reconhece
nos “artistas populares”, e pela formação urbana dos mangueboys, que os aproxima das
expressões da música pop comercial, “rasa” e “alienante”, e os distancia da profundidade
que pode alcançar a música erudita “interessada”. Por fim, a definição do que deve ser
entendido como cultura popular, e conseqüentemente nacional, passa, assim, pelo crivo de
um intelectual acadêmico inserido na “cultura de elite” e que, imbuído de uma “missão
redentora”, detém poderes sobre os recursos públicos a serem investidos na produção
artística dos grupos que pretende abarcar. Desta forma, abriga experiências já consolidadas,
afirmando a possibilidade de apoio a iniciativas populares, desde que associadas aos
princípios estéticos adotados pela política cultural da Secretaria.
Suassuna apresenta um projeto fechado estética e politicamente, que prevê a criação
de companhias que executem idéias pré-concebidas, a serem coordenadas por antigos
parceiros da fase de construção do Movimento Armorial.25 Assim como quando ocupava o
cargo de diretor do Departamento de Extensão Cultural da UFPE, sua gestão pública é vista
como possibilidade de concretização das idéias propostas pelo movimento26:
25 O secretário indicou, por exemplo, o escritor Raimundo Carrero para a presidência da Fundarpe e o maestro Antônio Madureira para coordenar a área de música. Artistas atuantes no movimento Armorial desde a sua primeira fase.26 Colocadas em tais termos as linhas mestras do projeto, o adjetivo adotado para nomear os diferentes grupos que deveriam, a partir daí, concretizar as propostas nos âmbitos das diferentes expressões artísticas é representativo no que diz respeito a concepção estética do autor, já que “Romançal” é o nome atribuído por Ariano Suassuna à terceira fase do Movimento Armorial. O termo é definido na segunda versão do manifesto armorial como “romance ou romanço, aquele amálgama de latim ‘mal-falado’ e popular que deu origem às línguas românicas, ou neolatinas, inclusive o português, o Provençal, o Espanhol e o Galego” (Suassuna, 1977, p. 60). Valendo-se de grupos já existentes, ou prevendo a criação de novos, idealiza o Balé Romançal que deveria estudar os passos das danças populares para “criação de uma dança brasileira total”, uma fusão entre o popular e o clássico. O Conjunto Romançal de Câmara obedece à mesma lógica da proposta anterior – de fundação de uma música erudita nacional –, tendo por base não apenas as melodias, mas a própria instrumentação das canções populares (dos romances ibéricos aos galopes e repentes nordestinos). Juntaria-se a estes a Trupe Romançal de Teatro que, com base no teatro popular dos brincantes, deveria fundir encenação e dança na execução de um “teatro nacional e popular”. Propõe a criação do “Teatro-Circo Arraial”. O nome
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Vou procurar retomar o que já disse aqui antes, que no fundo, é uma retomada do Movimento Armorial, como sua busca de uma arte erudita, com fundamento no popular. A grande bandeira era e é o folheto, com suas três artes: na capa, a gravura, caminho da arte; narrativa do folheto, gerando outros caminhos literários; e a música de toda a história contada acompanhada por rabeca e viola. É a volta do movimento Armorial na sua essência. (Suassuna In: Oliveira, 1994)
Maria Thereza Didier (2000) localiza na atmosfera política e cultural dos primeiros
anos da década de 1970, a proposta de criação de uma arte nacional inspirada nas
expressões populares, traçada pelo Movimento Armorial. Fundado sob a vigência do AI 5,
de um nacionalismo autoritário e unificador e de um modelo desenvolvimentista que tinha
entre as estratégias de integração nacional a proposta de promoção econômica e social da
Região Nordeste, o projeto armorial se contrapunha aos princípios que fundamentavam os
programas governamentais de investimento na região que a tomavam como território
“miserável” e “atrasado”.
O movimento esteve delimitado pelo recorte espacial e simbólico configurado pelo
nordeste brasileiro, e partiu do cenário rural e sertanejo para construção de uma linguagem
que pretendia “assumir aquele caráter de comunhão com a realidade, através da região que
cerca o artista” (Suassuna, 1962, p. 481). E os artistas envolvidos com a construção
armorial eram todos de origem nordestina, mais especificamente do interior dos estados de
Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Norte, universos dos quais demonstram
guardar certa nostalgia, por serem filhos de famílias abastadas que adquiriram formação
universitária nas capitais e se estabeleceram profissionalmente no Recife (Santos, 1999).
No entanto, apesar da identificação com uma “nordestinidade” que os fez resistir
aos apelos da Região Sudeste e se situarem enquanto “intelectuais regionais”, os armoriais
se distanciam do regionalismo histórico por não adotarem uma posição militante em torno
da afirmação local, mas se apropriarem dos signos da literatura oral e da cantoria nordestina
como meio de construção de uma forma autêntica de criação. Segundo Idelette Santos, o
Armorial:
faz alusão aos arraiais de Canudos e Palmares e o espaço abrigaria os espetáculos a serem montados pelos grupos acima mencionados. Arraial, de acordo com o autor, seria um outro nome-conceito para a terceira fase do Movimento Armorial, que pelo que tudo indica, ofereceu as bases do projeto em questão.
53
(...) situa-se num quadro regional, o Nordeste, espaço geográfico, histórico e mítico, comum aos cantadores e aos armorialistas na afirmação, sempre renovada, de sua “nordestinidade”. Esta presença da região continua sendo um elemento fundamental da criação popular que o movimento Armorial adota, numa dimensão poética e pessoal mais do que sociológica, sem se tornar no entanto arauto de um regionalismo militante. (Idem, p. 19)
Mesmo assim, parece inegável a influência de Gilberto Freyre na vida intelectual do
Recife e na forma particular de conceber a nação e o papel das regiões na sua composição
por parte de Suassuna. No Manifesto Regionalista, Freyre declara sua intenção de divulgar
a existência de “um movimento de reabilitação de valores regionais e tradicionais desta
parte do Brasil” – a Região Nordeste –, e desenvolve sua concepção de nação articulada sob
a suposição de uma interação orgânica entre as diferentes regiões:
Pois são modos de ser - os caracterizados no brasileiro por suas formas regionais de expressão - que pedem estudo ou indagação dentro de um critério de inter-relação que, ao mesmo tempo em que amplie, no nosso caso, o que é pernambucano, paraibano, norte-rio-grandense, piauiense e até maranhense, ou alagoano, ou cearense em nordestino, articule o que é nordestino em conjunto com o que é geral e difusamente brasileiro ou vagamente americano. (Freyre, 1976, pp. 54-55)
Dito isto, a defesa da valorização da Região Nordeste aparece associada à
preservação da própria cultura nacional, já que aquela guardaria, apesar da constatada
situação de degradação, os elementos originais da identidade e da sociabilidade brasileiras.
Ao tecer uma análise sobre os ecos das idéias de Gilberto Freyre sobre sua obra, e
uma possível ligação do Armorial com o Movimento Regionalista, Suassuna diz preferir
adotar o conceito de “região” ao de “regionalismo”, devido ao esgotamento deste segundo
termo, que acabou abarcando uma diversidade muito grande de expressões com as quais
nem sempre se identificou. Usando o conceito de “região” o autor acredita poder operar
com maior liberdade, endossando o caráter flexível que atribui à questão e se desobrigando
de um comprometimento direto com os promotores do Movimento Regionalista. Afirma a
naturalidade que existe no fato da “obra viva” refletir a realidade da região em que está
inserido o artista, condenando, no entanto, a busca pelo pitoresco, já que “jamais valorizaria
uma arte pelo simples fato de ela ser regional e popular” (Suassuna, 1962, p. 477).
Segundo Suassuna, a cultura local deve se impor como fonte de criação artística e
esta deve estabelecer uma relação estreita entre o tradicional e o universal, apelando para a
atemporalidade dos mitos e para a universalidade dos arquétipos, qualidades que tornam
54
uma obra clássica. A região é, por fim, apresentada como mais um elemento de unidade e
força da nação, e não de fragmentação, e a Região Nordeste em especial, como lócus das
tradições mais originais e características, portanto, mais propícia a representar o nacional.
Desconstruíndo a noção evolucionista que localiza as tradições orais em estágios
ultrapassados da civilização humana, associando-as a um primitivismo ingênuo e
negligenciando seu valor estético, o Armorial opera pela elevação da produção popular à
condição de arte nacional. E o romanceiro nordestino reúne os elementos que
possibilitariam tal representação identitária. De acordo com a definição do “Manifesto
Armorial”:
A arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos folhetos do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus ‘cantares’, e com a xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e as forma das artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados. (Suassuna, 1974, p. 7)
Aponta os caminhos oferecidos pelos três elementos da literatura de cordel - poesia,
xilogravura e música que ponteia a recitação - para as diversas modalidades artísticas,
desde que seus autores estejam preocupados em atribuir um caráter nacional às suas obras.
A própria abertura do texto oral para as interferências criativas aparece como motivação
fundamental para a proposta armorial de inserção dos artistas eruditos no universo popular,
e corrobora a defesa das mestiçagens culturais.
Dentro da mesma lógica, a adoção do termo “armorial” por Suassuna se traduz num
esforço de simbolização da unidade entre os grupos nacionais. Adapta uma concepção
européia e medieval à paisagem e aos signos das “culturas populares nordestinas”,
identificadas por meio dos símbolos que figuram espírito do povo brasileiro:
Acontece que, sendo "armorial" o conjunto de insígnias, brasões, estandartes e bandeiras de um Povo, no Brasil a Heráldica é uma arte muito mais popular do que qualquer outra coisa. Assim, o nome que adotamos significava, muito bem, que nós desejávamos ligar-nos a essas heráldicas raízes da Cultura Popular brasileira. (Idem, p. 8)
É esse espírito que Suassuna busca extrair das fontes populares, que ao serem
descritas por ele em suas qualidades formais e morais, incorporam uma noção de povo
como grupo que produz determinadas formas e mentalidades a serem valorizadas e
55
reproduzidas. O escritor reforça, a partir de apontamentos sobre a música armorial, sua
concepção de cultura popular:
Nos centros mais populosos do Litoral, é difícil observar os resquícios da Música primitiva. É importante esse fato, porque essa música primitiva será o futuro ponto de partida para uma música erudita nordestina, como se observou atrás. No Sertão é fácil, porém estudá-la, pois ali a tradição é mais severamente conservada. A Música sertaneja se desenvolveu em torno dos ritmos que a tradição guardou. Não é ela penetrada de influências externas posteriores ao "período do pastoreio", continuando como uma sobrevivência arcaica coletiva que o povo mantém heroicamente. (Ibidem, p. 57)
Verdadeiramente popular é então o rural, mais especificamente o sertanejo:
primitivo, tradicional, e livre das influências externas. Critérios que excluem a cultura de
massa urbana recifense pela localização (litoral, próximo do porto, espaço de troca); e pela
ausência de originalidade e continuidade (corrompidas nos centros urbanos pela
miscigenação das culturas e pela rapidez das transformações). O Sertão se apresenta,
portanto, como cenário privilegiado para a coleta das matrizes estéticas favoráveis às
intenções armoriais. No entanto, o Armorial não preconiza a simples reprodução das
criações das artes populares, mas sua apropriação por artistas eruditos interessados na
construção de uma forma nacional:
Por um lado, estamos conscientes de que a Arte Armorial, partindo de raízes populares da nossa Cultura, não pode nem deve se limitar a repeti-las; tem de recriá-las e transforma-las de acordo com o temperamento e o universo particular de cada um de nós. Por outro lado, temos consciência de que, se conseguirmos expressar o que é nosso com a qualidade artística necessária, estaremos seguindo o único caminho capaz de levar à verdadeira Arte universal, aquela que, partindo do nacional, se universaliza pela boa qualidade. (Idem Ibidem, ps 62-63)
E neste trajeto do popular ao nacional, do nacional ao universal, uma unidade
intermediária é apreendida na categoria “povos castanhos da Rainha do Meio-Dia”. A
afirmação da proximidade entre os países da América Latina, deve-se tanto a uma posição
solidária em relação aos povos do Terceiro Mundo, quanto ao reconhecimento das
características estabelecidas pela colonização ibérica, instauradora das matrizes culturais
tão valorizadas por Suassuna. O escritor prega a busca do “espírito dos povos” na
formulação de políticas apropriadas a cada contexto sociocultural, o que o fez apontar, por
um bom tempo, a monarquia como modo mais adequado de organização para o Brasil, pois
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absorveria a estética das expressões populares tradicionais, e incorporaria o caráter afetivo
das relações sociais brasileiras.
O conceito de “socialismo cristão” também foi cunhado por Suassuna para explicar
sua filiação ao Partido Socialista Brasileiro, motivada pelo “sonho de justiça social que
existe desde os apóstolos”, com base “na fraternidade, na justiça e na liberdade” (Suassuna
In: Filho, 1993). Ao condenar a importação de modelos fundados em outras realidades ou
impostos pela dominação, apela para a associação dos povos subordinados:
Estamos conscientes ainda que, sendo fiéis ao Nordeste e ao Brasil, estamos sendo fiéis, também, à América Latina inteira, assim como à Etiópia ou à Índia, tão semelhantes a nós. É por isso que, em todo o nosso trabalho, tanto insistimos nessas raízes e nesse parentesco. Fazemos isso não porque reneguemos o que o Brasil tem de europeu, ou, mais precisamente, de mediterrâneo e ibérico: mas sim porque estamos convencidos de que somente fortalecendo aquele tronco cultural acima referido é que qualquer coisa que nos venha de fora passa a ser, em vez de uma influência que nos esmaga ou nos massifica num cosmopolitismo achatador e monótono, uma incorporação que nos enriquece. O Movimento armorial passará um dia, como é da natureza de qualquer movimento. (...) Mas, mesmo quando ele se extinguir como movimento, ficarão as obras armoriais que tiverem qualidade para resistir ao tempo, e ficará sua influência, seu rastro na Cultura brasileira. (Suassuna, 1974, p. 63)
Ariano Suassuna aparece então como principal articulador do Movimento Armorial.
Aglutina interesses comuns a uma geração de artistas nordestinos, identifica tendências e
promove um encontro de criação em torno dos signos da literatura de cordel. Numa
iniciativa de sensibilização dos artistas e do público, o Armorial realiza uma releitura do
universo popular, e funda uma nova poética. Mostra-se como uma referência estética
construída não como conceito, mas como “espírito”, e que, para além da permanência do
movimento enquanto organização, continua atuante em termos de linguagem artística. As
palavras do ator Antônio Nóbrega, um dos principais seguidores do “espírito armorial”,
confirmam essa leitura:
De lá para cá, além de ter feito espetáculos ligados a essa ideologia, tenho procurado refletir também o que é armorial, como o sinto hoje em dia. Uma das coisas mais interessantes que a cultura popular tem é essa faculdade de trazer para a gente a vivência do mito, do dionisíaco principalmente, do universo do feminino. Porque, se a gente olhar direitinho, toda arte do século XX teve um caminho muito conceitual. Uma arte em que há a primazia do intelecto (...) E nesse sentido, quando o Armorial fala em reinterpretar a cultura, está procurando recolocar o mito na vivência da arte. Isso para mim é de uma importância fundamental. (Nóbrega In: Lucas, 2002, p. 8)
57
Podemos, a partir daí, tentar complexificar a abordagem da experiência armorial,
compreendendo-a como uma das práticas possíveis dentro do movimento contemporâneo
de revisão de categorias estéticas e reelaboração de estratégias políticas. Quando seus
princípios são transplantados por Ariano Suassuna para um projeto de intervenção na
produção cultural pernambucana na década de 1990, passam a atuar como instrumental
crítico de apreensão de um período de agudas transformações sociais. A perspectiva
armorial permitiu ao Secretário identificar o processo de pasteurização desencadeado pela
indústria cultural, sem deixar, porém, de crer na capacidade de resistência e possibilidade
de reativação da criação por meio de uma relação vital entre os artistas e as tradições. Para
Suassuna, estas dizem muito mais respeito a uma construção do presente do que a uma
recuperação do passado.
O foco central de seu trabalho está na reconhecida persistência de formas e valores
pré-capitalistas e na conseqüente crítica ao espírito teleológico da modernidade que
apresenta o tradicional como resquício de uma realidade agonizante e esfacelada, e entrave
ao progresso inevitável. Ou seja, como uma ordem decadente vista sob a emergência das
inquestionáveis transformações em curso. Suassuna apresenta o pré-moderno como
componente das relações civis e políticas no Brasil ainda hoje.
De maneira não conflituosa, a atuação do secretário se dá sob a lógica organizativa
unificadora dos movimentos culturais defensores do nacional-popular. Submete as
possibilidades de criação a paradigmas estéticos restritos, entendendo as diversidades
apenas como variações das formas de expressão da nacionalidade e limitando a ação
cultural da Secretaria ao âmbito da produção artística e da sensibilização do público. Enfim,
noções modernas como “Movimento”, “Arte”, “Nação” e “Estado” permanecem como
categorias direcionadoras de sua política.
Nesse sentido, uma breve menção à experiência proporcionada pela implementação
do projeto Acorda Povo pode contribuir para o esclarecimento das diferenças de atuação
geradas sob os termos de uma "cena cultural". Formulado por Renato L., a produtora Alê
Oliveira e os músicos da Nação Zumbi e da Devotos, o projeto foi realizado inicialmente
em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura do Recife, depois adotado pela
FUNDARPE – Fundação de Arte de Pernambuco, ligada à Secretaria Estadual. Consistiu
58
numa programação diversificada e itinerante que levou oficinas de arte27, mostras de filmes
pernambucanos28 e shows de várias bandas e DJs29 para as periferias da Grande Recife30
entre os anos de 1999 e 2002. 31 Em seu catálogo de divulgação, os músicos das duas
bandas citadas assinam um texto introdutório onde narram os eventos dos quais
participaram:
E, assim, determinado espaço urbano quase abandonado ou mal aproveitado se transformava em ponto de encontro da coletividade, reavivando a memória do seu uso ou abrindo expectativas para o futuro próximo. Futuro que também acenava para grafiteiros, evangélicos, estilistas da terceira idade ou guitarristas de punk-rock recém saídos do primário, toda uma humanidade diversificada descobrindo ou revelando seu talento nas oficinas e nos shows. Uma prova a mais dos efeitos letais de duas armas poderosas contra a falta de esperança: Música e informação, combinadas na medida certa, devem estar sempre de andada pelas periferias desse mundo. (Acorda Povo, 2002)
A união dos promotores do Manguebit com os músicos da Devotos já aponta para
um esforço de traduzir as conquistas das movimentações culturais em mudanças sociais
concretas. Devotos é uma banda de hardcore formada por moradores do Alto José do Pinho,
comunidade do bairro de Casa Amarela – periferia do Recife – onde diversos grupos se
articularam desde a meados dos anos 80, em torno da chamada "cena do Alto". Para além
da promoção e divulgação das bandas envolvidas (onze, atualmente), os músicos do Alto
27 Moda, fotografia, pintura, desenho, grafitagem, reciclagem e dança. Ver: Carpeggiani, Schneider. “O Acorda Povo está maior e melhor”, Jornal do Commercio, Recife, 27/04/2001, Assumpção, Michelle. “Projeto Acorda Povo tem edição ampliada”, Diário de Pernambuco, Recife, 28/04/01, “Fique acordado para ver Devotos e Nação Zumbi”, Diário de Pernambuco, Recife, 05/05/2001, “Projeto leva arte para comunidades do Recife e Região Metropolitana”, Diário Oficial do Estado de Pernambuco, Recife, 27/09/2001.28 “Clandestina Felicidade”, de Beto Normal e Marcelo Gomes, “Simeão Martiniano”, de Hilton Lacerda e Clara Angélica, “Recife de Dentro Pra Fora”, de Kátia Mensel, “Maracatu, Maracatus”, de Marcelo Gomes, “O Velho, O Mar e O Lago”, de Camilo Calazans e vídeos como “A Perna Cabeluda” e “De Malungo pra Malungo” (Assumpção, 2001).29 Além das bandas citadas: “mundo livre s/a”, Mestre Ambrósio, Lia de Itamaracá, Faces do Subúrbio, Chão Chinelo, Querosene Jacaré, Eddie, Salvador Spider e a Incógnita Rap, Kaya na real, Supersonics, Bonsucesso Samba Clube, Comadre Fluorzinha, Matalanamão, Os Cachorros, Lula Quieroga, Testículos de Mary, Cascabulho, Jorge Cabeleira, Tânia Cristal Sistema X, Silvério Pessoa, Etnia, Hanagorik, Lamento Negro, Mônica Feijó, Dj Dolores e a Orquestra Santa Massa, Pra Mateuz Poder Dançar, Carranza, Mombojó Ragajá, A Ostenta, RDA, A Linha da Última Resistência, RMC, Erasto Vasconcelos, Cambio Negro HC, Distorção social, Vargas, LSD, Pindorama, Aborígenes, Junkers, Otto, Elite na Mira, Acauã, S Fardas, KZF, Dolores Del Fuego, El Matador, Ahuma, os DJs Bahiano, RenatoL, Jorge Du Peixe, Spider, Bruno Pedrosa, Alex, DJ Hum, Jacson Bandeira, Salvador, Rodrigo P-Funk, Lala K, Moacir Jacaré, Nutz, KSB, Tarzan, hd Mabuse, Fortex e Os Traficca (Acorda Povo, 2002).30 Neste caso: Recife, Olinda, Paulista, Jaboatão dos Guararapes, Camaragibe e São Lourenço da Mata.31 Entre outubro de 1999 e abril de 2000, sob a coordenação da administração municipal, e entre maio de 2001 e agosto de 2002, da administração estadual, ambas ocupadas pelo PSDB.
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José do Pinho se organizaram em prol do desenvolvimento da localidade fundando uma
ONG (Alto Falante) que conta com uma rádio comunitária e organiza eventos culturais e
oficinas de arte voltadas principalmente para crianças e adolescentes. No decorrer da
década de 90, um pouco devido à repercussão alcançada pelo Manguebit, a "cena do Alto"
ganhou notoriedade e tem sido citada pela imprensa pernambucana como exemplo bem
sucedido de associação entre arte e cidadania.32
Visando os mesmos resultados, os promotores do Acorda Povo reconhecem a
importância das favelas e periferias urbanas na configuração cultural da cidade e tomam
sua produção artística como meio de promoção social. Ao apontarem para a pluralidade do
público que atingiram, e para a possível efetivação da proposta de reversão da situação de
degradação local, evocam a força da criação enquanto intervenção transformadora,
distanciando-se do ideal de arte como vocação e utilizando suas linguagens como forma de
atuação política e meio de realização do desenvolvimento comunitário autônomo. 33 Neste
caso, a relação estratégica dos mangueboys com o Estado é explicitada por Lúcio Maia,
guitarrista da “Nação Zumbi”:
A partir do momento que a gente começou a ter um poder dentro de um jornal, digo não a gente da Nação Zumbi somente, mas a cena como um todo, inclusive toda a galera que começou a receber um respaldo da mídia, então os Governos não ficariam para trás, sabendo que há um poder de massa nesses veículos. (...) Então acho que se estou fazendo da minha forma, vendendo um conceito para as pessoas que estão na gestão e eles o bancam, fazendo do jeito que quero para quem eu quero... (...) No Acorda Povo dissemos de A a Z como queríamos que fosse feito o festival e o Governo só fez acrescentar, ajudando, ao invés de 10 bandas, contrataram-se 20. Tudo ficou nas nossas mãos. Acho essa a forma mais legal de agir. Ao mesmo tempo temos o respeito do pessoal do PT, do PFL, do PMDB etc. (Maia In: Belém, www.vitrolazwebzine.com.br)
32 No entanto, tal experiência não pode ser abarcada pela idéia de um movimento unificado da juventude recifense, já que, como apontou Canibal, vocalista e baixista da Devotos: "Não vejo mangue como um movimento, mas apenas uma movimentação de banda de vários estilos. Não dá para rotular grupos por estarem no mesmo contexto social e temporal (...) Nós acompanhamos a história, mas não fazemos parte dela" (Canibal In: Myra, 1999). Sobre a cena cultural do Alto José do Pinho, ver a dissertação de Ana Maria Ezcurra (Escurra, 2002) “As fugas musicais”: a movimentação das bandas do Alto José do Pinho, que analisa a relação de cooperação entre as bandas, a criação de laços de solidariedade comunitários e as formas de atuação políticas fundadas a partir da articulação entre arte e cidadania.33 Paulo César Menezes Teixeira (Teixeira, 2002), na dissertação “Um passo à frente e você já não está mais no mesmo lugar”: A geração mangue e a (re) construção de uma identidade regional, estuda as conexões entre o considerável desenvolvimento tecnológico contemporâneo e o surgimento de novas práticas sociais, manifestações culturais e formas de participação política. Apresenta um histórico dos processos de construção de identidades regionais e nacionais no Brasil e identifica o caráter das reformulações propostas pelos atores sociais identificados como “geração mangue”, que agiram por meio da desarticulação dos modelos tradicionais de identificação cultural e intervenção social.
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Podemos reforçar aqui a idéia de que a rejeição conservadora das inovações
apresentadas pelo Manguebit se reverteu em apoio político devido à repercussão pública
alcançada pela cena. Tudo ainda dentro da mesma lógica estatal de garantir o respaldo
popular pela afirmação de intenções democratizadoras. A atuação dos mangueboys se dá
novamente pela via do aproveitamento das brechas dos sistemas e pelo desligamento em
relação às ideologias partidárias, já que se centram em propostas objetivas e direcionadas,
reivindicando a atenção pública aos interesses expressados pelos próprios cidadãos,
independente das forças políticas que ocupem o poder.
No entanto, mesmo que reconheçamos os riscos políticos apresentados por tamanha
flexibilidade (e eles não são poucos), o caráter plurideológico desta experiência de
movimentação social não implica ausência de ideais comuns, ao contrário, permite que a
leiamos como uma crítica tanto ao sistema capitalista quanto às propostas socialistas de
organização, na medida em que extrapola as referências de classe, identificando várias
outras formas de opressão e fundando novos meios de subversão.
Não nos seria possível, nos limites deste trabalho, avaliar o alcance real do projeto,
nem identificar os resultados palpáveis de suas atividades. Porém, parece lícito reconhecer
que, agindo sobre a formação cultural da população, o Acorda Povo denunciou as relações
de dominação atuantes neste âmbito e, para além da participação política, reivindicou a
emancipação social e pessoal dos moradores das periferias, apontando para algumas
possibilidades de transformação concretas e imediatas. Ou seja, sem perder de vista as
utopias de reconstrução social, seguiram o caminho traçado pelo que Boaventura Santos
identificou como “novos movimentos sociais”, já que, ao intervirem na rotina das
comunidades, oferecendo o instrumental necessário para conquista de autonomia, visaram
“transformar o cotidiano das vítimas da opressão aqui e agora e não num futuro longínquo”
(Santos, 2001, p. 259).
Devemos, então, firmar nossa compreensão de que diferentes concepções de
organização e atuação cultural implicam projetos políticos diversos. Projetos traçados em
meio aos conflitos fundados pelo contexto contemporâneo. As variadas noções de popular
aparecem em nossa análise como viés particularizador das experiências abordadas. No caso
do Acorda Povo, evoca-se uma população plural e atuante, localizadas nas periferias do
planeta, e ansiosas pelo poder de intervenção. O Projeto Cultural Pernambuco - Brasil
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define o popular por uma unidade estética e simbólica e submete a participação à proposta
de resistência nacional. Esta compreensão foi alcançada por meio da análise de
interconexões culturais, que poderão ser melhor apreendidas através da interpretação das
imagens e símbolos articulados por Chico Science e Ariano Suassuna em suas construções
estéticas.
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