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    PAUL CELAN

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    Paul Celan, Viena 1947-48

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    Ttulo: Arte Potica

    P au l C ela n

    Arte PoticaOMeridiano e outros textos

    Traduo deJoo Barrento e Vanessa Milheiro

    Posfcio e notas deJoo Barrento

    Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1971 Edies Cotovia, Lda., Lisboa, 1996Concepo grfica de Joo Botelho

    ISBN 972-8028-67-9 Cotovia

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    ndice

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    Edgar Jen e o sonho do sonho 11Contraluz 23Resposta a um inqurito da Librairie Flinker, Paris(1958) 29Alocuo na entrega do Prmio Literrio da CidadeLivre e Hansetica de Bremen 31Dilogo na montanha 35O Meridiano 41Carta a Hans Bender 65Resposta a um inqurito da Librairie Flinker, Paris(1961) 69Resposta a um inqurito da revista "Der Spiegel" 71Alocuo na Asociao de Escritores Hebraicos 73Posfcio 75Bibliografia 85

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    A poesia j n o s e im p e, expe-se .Paul Celan26 de Maro de 1969

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    Edgar Jen e o sonho do sonho'(1948)

    Espera-se de mim que diga algumas palavras queouvi no fundo do mar, onde tanta coisa silenciada < ' ; .tanta coisa acontece. Abri uma brecha nas obstruese objeces da realidade e encontrei-me diante doespelho do mar. Tive de esperar um pouco at que elese estilhaasse e eu pudesse entrar no grande cristal domundo interior. Tendo sobre mim a grande estrela infe-rior dos desconsolados descobridores, segui Edgar Jensob os seus quadros.Mesmo sabendo que tinha uma viagem penosa pelafrente, fiquei desnorteado quando quis seguir uma dasestradas, sozinho e sem guia. Uma das estradas! Eraminmeras estas estradas e cada uma convidava-me apercorr-Ia, cada uma oferecia-me um par de olhosdiferentes para observar o espao belo e selvagem dooutro lado, o mais fundo, do ser. No admira que nessemomento, vendo ainda com os meus velhos olhosobstinados, me tenha posto a fazer comparaes para

    1 O texto foi escrito para o c atlogo de uma exposio do pintorEdgar Jen (Der Traum vom Traume. Com 30 reprodues e uma notaprvia de Otto Basil. Viena: Agathon 1948). Reimpresso na revistaDie Pestsliule(Viena), Vol. 1(1972-73), Nr. 1, pp. 22-25

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    ARTE POT1CA

    poder escolher. Mas a minha boca estava acima dosmeus olhos e era mais audaz, porque muitas vezes tinhafalado no sono, tinha-se-me antecipado e gritou-me oseu sarcasmo: "Meu velho merceeiro das identidades!O que que viste e conheceste, pertinaz doutor datautologia? Diz l, o que que conheceste beira dessanova estrada? Uma tambm-rvore ou uma quase-rvore,no ? E agora vais buscar todo o teu latim paraescreveres uma carta ao velho Lineu? Vai antes buscarum par de olhos ao fundo da tua alma e pe-nos aopeito - e ento sabers o que aqui se d a ver".Ora, acontece que eu' sou aI um ue ama as.Qalavras sin elas. Na verdade, antes de iniciar estaviagem, _tinha com reendido ue s havia maldade efalsidade nesse mundo ue eu tinha abandonado. Masacreditava que, se chamasse as coisas elo seu nome,conseguiria abalar os seus alicerces .. Sabia que talempresa pressupunha o re. resso a uma in, enuidadeincondicional. Eu via esta ingenuidade como uma viso,original e purificada, da escria de sculos de velhasmentiras sobre este mundo. Ocorre-me aqui umaconversa com um amigo, que surgiu a partir do ensaiode Kleist Sobre o Teatro de Marionetas.' Como poderia,porm, ser recuperada essa graa original cuja existnciaserve de ttulo ao ltimo, e por isso tambm inultra-passvel, captulo da Histria da humanidade? O meu

    2 O ensaio de Kleist tem traduo portuguesa: As Marionetas.Trad. de Lus Bruhein eAnbal Fernandes. Lisboa: Hiena 198812

    EDGAR JEN E O SONHO DO SONHO

    amigo interpretava-o assim: por meio de uma purificaoracional da nossa vida psquica inconsciente, podamosreconquistar essa originalidade que foi a do princpio, eque tambm no fim poderia dar sentido a esta vida etorn-Ia digna de ser vivida. Nesta perspectiva, princpioe fim coincidiam, e qualquer coisa como o luto peloprimeiro pecado original ganhou voz. Era precisoderrubar o muro que separa o hoje do amanh, e oamanh tornar-se-ia novamente no ontem. Deveriadominar a razo, ser restitudo s palavras, e porconseguinte s coisas, s criaturas e aos acontecimentos,o seu sentido verdadeiro, lavando-as com a gua rgiada razo. Uma rvore deveria tornar-se novamentervore e o seu ramo, do qual em centenas de guerras sependuraram rebeldes, num ramo florido, quando fossepnmavera.

    Revelava-se aqui a primeira das minhas objeces.Na verdade, ela mais no era do que a constatao deque o acontecido era mais do que um acrescento ao quej , mais do que um atributo mais ou menos difici lmenteeliminvel da substncia das coisas; era, sim, algumacoisa que mudava na sua essncia esta substncia, umforte precursor de uma permanente transformao.O meu amigo insistia. Mesmo na torrente daevoluo humana, afirmou, era capaz de distinguir aconstante da vida psquica, de identificar os limites doinconsciente, e tudo se resolveria quando a razodescesse s profundezas e trouxesse superfcie a guado poo escuro. Tambm este poo tinha o seu fundo,

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    que era alcanvel; e se superfcie estivesse tudo bempreparado para receber as guas das profundezas ebrilhasse o sol da justia, j muito do trabalho estariafeito. Mas como que poderemos chegar a esse ponto,se tu e outros como tu nunca abandonam as profundezase esto sempre em dilogo com as fontes obscuras?

    Compreendi que se tratava de uma censura dirigida minha profisso de f numa posio que, por identi-ficar o mundo e as suas instituies como uma prisopara o homem e o seu esprito, tudo queria fazer paraderrubar os muros dessa priso. Mas ao mesmo tempotambm compreendi qual o caminho que essa consta-rao me prescrevia. Tornou-se claro ara mim gue ohomem no s adecia agrilhoado vida exterior, comotambm se encontrava amorda ado e iml2ossibilitadode falar - e ao dizer "falar" estou a rel2ortar-me destaforma, a toda a esfera dos meios de eXl2resso humana.or ue as suas alavras estos e movimentos)emiam sob o eso milenrio de uma honestidadefingida e deformada - e haveria algo de mais desonestodo ue afirmar ue, no fundo, tais alavras de algummodo, ainda eram as mesmas? E, or conse uinte, tivetambm de reconhecer ue uilo ue, no mais fundoda sua interioridade, desde tem os imemoriais tentavaencontrar a sua ex resso, se tinha vindo untar tambma cinza de significados extintos, e no al2enas esta!Como oderia a ora sur ir o novo ue o mesmo dizer o uro? Das mais remotas regies do esprito pode-ro vir palavras e figuras, imagens e gestos oniricamente

    velados e orurrcarnente desvelados, e quando seencontrarem uns com os outros no seu curso alucinantee nascer a centelha do maravilhoso, no momento em queo espanto se unir extrema estranheza, eu olharei nosolhos a nova claridade. Ela olha-me de um modo estranho,pois, embora eu a tenha conjurado, ela vive do lado del das imagens do meu pensamento desperto, a sua luzno a luz do dia e ela habitada por figuras que noreconheo, antes conheo numa viso primeira. O seu pesopossui uma gravidade diferente, a sua cor fala para umnovo par de olhos com os quais as minhas plpebrasfechadas se presentearam uma outra, o meu ouvidotransferiu-se para o meu tacto, onde aprende a ver; o meucorao, agora que habita a minha fronte, experimentaas leis de um movimento novo, incessante e livre. Si o osmeus sentidos errantes ara o novo mundo do es ritoe vivo a liberdade. A ui, onde sou livre, reconhe otambm como fui cruelmente en anado do outro lado.Ora, durante uma ltima pausa mental, escutei-mea mim prprio antes de me ter aventurado na viagempelo fundo do mar e seguido Edgar Jen sob os seusquadros.

    "Uma vela abandona um olhd',' Uma nica vela?No, eu vejo duas. Mas a primeira, que tem ainda a cor

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    3 O texto comenta, a partir daqui, quatro quadros, com os t tulos:"Uma vela abandona um olho", "Filho da aurora boreal", "O marvermelho atravessa a terra" e "Vamos jurar no sono". Os quadros voreproduzidos nas pginas seguintes, para facilitar a compreenso doensaio, que sem essavisualizao se torna ainda mais hermtico.

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    escolhos, um monumento de gelo nos acessos do marinterior que tambm um mar de lgrimas ondulantes.Como ser o outro lado deste rosto? Cinzento, comoaquela terra que ainda avistamos? Mas voltemos ... snossas velas. A primeira regressar caverna vazia dosolhos, que v de forma estranha. Talvez tambmprossiga a sua viagem, na direco inversa, para o olhoque do outro lado se fixa no cinzento ... E assim estebarco se transforma em mensageiro, mas a suamensagem no promete muito. E o segundo barco, cujavela leva um olho incandescente, a menina-da-olhoflamejante no campo negro da certeza? Ns embarcamosdormindo. Assim vemos o que fica por sonhar.

    *do olho, no poder avanar, eu sei, ela retrocede. Pareceser muito difcil este retrocesso: como uma cascatangreme, caa a gua deste olho, mas aqui em baixo (lem cima), a gua corre tambm para a montanha, a velaescala ainda a encosta ngreme deste perfil branco quemais no possui do que este olho sem menina-da-olho,e que, por no possuir mais nada a no ser precisamenteisto, pode mais e sabe mais do que ns. Pois este perfilde uma mulher cujo cabelo um pouco mais azul do quea sua boca que olha para cima (num espelho, para nsinvisvel, em posio oblqua sobre ela, esta bocareconhece-se a si prpria, examina a sua expresso econsidera-a certa) - este perfil uma barreira de

    Quantos so os que sabem ser infinito o nmerodos seres criados? Que o criador de todos eles ohomem? lcito comear j a cont-Ias? Existem j,sem dvida, aqueles que sabem ser possvel ofereceruma flor a uma pessoa. Mas quantos sabem tambmque se pode oferecer uma pessoa a um cravo? E qualdestas coisas consideram mais importante? Mais do queum ficar incrdulo se lhe falarem do filho da auroraboreal.

    Incrdulos ainda hoje, quando afinal h tanto tempoj os cabelos de Berenice pendem sob as estrelas. Mas aaurora boreal tem agora um filho, e Edgar Jen foi oprimeiro a v-Ia. Ele passa, gigantesco, l onde o homem

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    da velha realidade, no gueramos ouvir o grito dohomem, o nosso er rio rito, mais alto do ue antes,mais estridente? Olhai: este espelho interior obriga tudoa tomar partido. "O mar d e s an gu e a tr av es sa a t er ra " : ermase encanecidas as colinas da vida. O fantasma da guerrapercorre os pases de ps descalos. Tem garras como asaves de rapina ou dedos dos ps como o homem!

    est gelado e preso nas florestas cobertas de neve do seudesespero. As rvores no lhe so obstculo, passa porcima delas, envolve-as tambm no seu largo manto, fazdelas os seus companheiros, com ele chegaro tambms portas da cidade onde se espera o grande irmo. Que ele aquele por quem se espera, isso v-se nos seus olhos- eles viram o que todos viram, e mais.*

    multiforme, e o que agora? Uma tenda de sanguesuspensa no ar. Quando desce, ns moramos entreparedes de sangue e farrapos de sangue. Onde o sangueboceja podemos continuar a olhar e a ver outras formas,semelhantes, de vapores de sangue. Alm diso, somostambm alimentados: uma das garras escavou um poode sangue onde tambm ns, os perdidos, podemos vera nossa imagem reflecrida. Sangue no espelho de sangue puta beleza, dizem-nos ...Aquilo que Edgar Jen aqui faz pela primeira veztomar forma - ser que isso s habita aqui? Noueramos ns tambm reconhecer melhor o esadelo

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    Contraluz'(1949)

    o corao ficou escondido no escuro e duro como..L edra filosofa!.*

    Era Primavera, e as rvores voaram para os seuspssaros.*

    Tantas vezes o cntaro artido vai fonte at ueesta seca.*

    Fala-se em vo de justia enguanto o maior dosnavios de guerra no se deseedaar contra a fronte deum afo ado.*

    1 Publicado no jornal Die Tat, deZurique, em 12 de Maro de1949.

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    ARTE POTICA CONTRALUZ

    Quatro estaes do ano e nenhuma quinta para sedecidir por uma delas.*

    Quando o general ps a cabea ensanguentada dorebelde aos ps do seu soberano, este teve um acessoviolento de clera. "Como te atreveste a empestar asala do trono com o cheiro do sangue?", gritou, e o gene-ral estremeceu.Abriu-se, ento, a boca da cabea decepada e contoua histria dos lilases."Demasiado tarde", opinaram os ministros.Um cronista posterior corrobora esta opinio.

    Era to grande o seu amor por ela que teriaconseguido levantar a tampa do caixo - se a flor queela a colocou no fosse to pesada.

    * *o abrao dela durou tanto que o amor desesperoudeles.

    *

    Quando desceram o enforcado do patbulo, os seusolhos ainda no tinham perdido o brilho. Depressa ocarrasco tratou de os fechar. No entanto, os circunstantestinham-se apercebido disso e baixaram os olhos devergonha.Mas, nesse momento, o patbulo julgou ser umarvore, e como ningum tinha os olhos abertos, no possvel comprovar se, de facto, ele tambm no o tersido.

    *Tinha chegado o dia do juzo e, para se procurar amaior das infmias, a cruz foi pregada em Cristo.

    Enterra a flor e e o homem sobre esta cam a. **

    *

    Ele ps na balana virtudes e VICIOS, culpa einocncia, boas e ms qualidades, porque queriacertezas antes de se julgar a si prprio. Mas os pratos dabalana, com tais pesos, mantinham-se mesma altura.Como queria a todo o custo chegar a uma concluso,

    A hora saltou do relgio, ps-se frente dele eordenou-lhe que andasse certo.

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    ARTE POTICA CONTRALUZ

    fechou os olhos e andou vezes sem conta volta dabalana, ou num sentido ou no outro, at j no saberem qual dos pratos estava este ou aquele peso. Depoiscolocou, s cegas, num dos pratos a sua deciso de sejulgar a si prprio.Quando voltou a abrir os olhos, um dos pratos tinha,na verdade, baixado, mas j no era possvel reconhecerqual dos dois, se o prato da culpa, se o da inocncia.( lM '~ , 1 Isto deixou-o zangado, recusou-se a ver nisso umatf' i~0) vantagem e pronunciou a sua sentena, sem, contudo,

    cf).)tY poder evitar a sensao de estar eventualmente acometer uma injustia.

    *Ele ensinava as leis da gravidade, produzia provasobre prova, mas s encontrava orelhas moucas. Elevou--se ento nos ares e ensinou as leis, pairando - agoraj acreditavam nele, mas ningum se admirou quando

    ele no regressou do ar.

    *No te iludas: no esta ltima candeia que dmais luz - foi a escurido em redor que se aprofundou. .mais em SImesma.

    *"Tudo corre": tambm este pensamento. E no fazele parar tudo de novo?

    *Ela virou as costas ao espelho, pOlS detestava avaidade do espelho.

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    Resposta a um inqurito da Librairie Flinker,Paris'(1958)

    (O inqurito d ir ig ia-s e a p e rs on alidades da F iloso fia e d aL itera tu ra , com o in tu ito de obter in fo rm a es sobr e os seustr aba lho s epro jectos em cu rs o)Agradeo o vosso inqurito sobre os meus trabalhose projectos actuais. Ao fazer isso, porm, esto a dirigiras vossas perguntas a um autor cujas publicaes atagora se limitaram a trs livros de poesia. Se eu quisercingir-me ao assunto s posso, portanto, tentar dar uma

    resposta enquanto poeta ..Al2oesia alem segue, julgo eu, caminhos diferentesdos da francesa. Trazendo na memria o gue h de maissombrio, tendo sua volta o ue h de mais roblem:tico, or mais gue actualize a tradio em ue se insere,ela . no conse _ue falar a linwgem g~uns ouvidosbenevolentes 12arecem ainda eS12erardela. A sua lingua-gem tornou-se mais sbria, mais factual, desconfia do"b I " d dei E' ,o , tenta ser ver a eIra. ortanto - se me e er-mido rocurar a minha exeresso no cam o do visual,

    1 Publicado no Almanach 1958da Librairie Franaiseet rrangereFlinker, Paris, 1958, p. 45. Reproduzido no jornal Die Welt(Hamburgo), de 22 de Novembro de 1970.

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    ARTE POTICA

    no erdendo de vista a olicromia de uma retensaactualidade - uma linguagem "mais cinzenta", umaw , N S I U J L < i~'4 . lin ua em ue, entre outras coisas, tambm uer ver a(~~~'\ sua "musicalidade" situada num lugar onde ela j no

    Ik~ . \ - L tenha nada em comum com a uela "harmonia" ue,J . n - { . . l ; \ , ) . .~ o W(~} maIS ou menos desQreocu adamente, se ouv1u com o

    c : . 9 f M ue h de mais terrvel, ou ecoou a seu lado.

    Alocuo na entrega do Prmio Literrioda Cidade Livre e Hansetica de Bremen(1958)

    Na nossa lngua, denken (pensar) e danken (agra-decer) so palavras da mesma raiz. Quem lhes seguir osentido, depara com o campo semntico de gedenken(lembrar), eingedenk sein (rernernorar), Andenken(recordao), Andacht (devoo). Permitam-me que vosagradea a partir daqui.A regio de onde venho - e por que desvios! masexiste tal coisa, desvios? -, essa regio de onde venhoter convosco provavelmente desconhecida para amaior parte dos presentes. I a regio onde tem origem1 A regio a Bucovina, hoje territrio da Ucrnia, Celan nasceu

    em 1920 na cidade de Czernowirz (ver mapa, p. 32), na altura j romena,e que at 2a Guerra era, um dos centros mais importantes da culturajudaica do Leste europeu. Sobre a literatura da Bucovina, ver o catlogoda exposio organizada pela Casa da Literatura de Berlim In d er Sp rac beder Mor der. Ei ne Li tera tur au s Czernoioitz; Bu ko wina (Na Lngua dos Assas-sinos. Uma literatura de Czernowitz, Bucovina), ed. Ernest Wichnere Herbert Wiesner. Berlim: Literaturhaus 1993; o volume coleccivoDie Bukow in a. Stud ien zu einer versunken en Lan dscha ft (A Bucovina.Estudos sobre uma regio desaparecida), cd. Dietmar GoltschnigglAnton Schwob, Tbingen: Francke 1990; e a antologia de poesiaorganizada por Amy Colin e Alfred Kittner, Versunkene D ic htung derBukowina. Eine Anthologie deu tscher Lyrik (Poesia Desaparecida daBucovina, Uma Antologia de Poesia Alem). Munique: Fink 1993.

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    A regio de onde venho~ URSS

    ~UCRANIA

    ROMNIA

    1920 - A Bucovina era parte da Romnia de ento.

    uma parte no insignificante daquelas histrias hass-dicas que Martin Buber nos voltou a contar a todos emalemo. Era - se me dado completar de alguma formaeste esboo topogrfico que, de muito longe, agorarevejo -, era uma terra onde viviam homens e livros.A, nessa antiga provncia da monarquia habsbrgica,agora cada no esquecimento da Histria, veio pela pri-meira vez ao meu encontro o nome de Rudolf Alexan-der Schrder, ao ler a Ode m it d em Granatap feL (Ode daRom), de Rudolf Borchardt. E a Bremen ganhou32

    xr.ocucxo EM BREMEN

    tambm para mim um perfil prprio, associado spublicaes da "Bremer Presse't.?Mas Bremen, dada a conhecer atravs de livros edos nomes daqueles que escreviam e editavam livros,manteve a aura do inacessvel.O acessvel, suficientemente distante, aquilo a que

    se queria ter acesso, chamava-se Viena. Sabem bem oque se passou depois, durante anos, com essa acessibi-lidade.No meio de tantas erdas, uma coisa ermaneceuacessvel, prxima e salva - a lngua.Sim, a esar de tudo, ela, a ln ua,salvo. Mas de ois teve de atravessar o seu r rio vaziode res ostas, o terrvel emudecimento, as mil trevas deum discurso letal. Ela fez a travessia e no gastou umar.alavra com o ue aconteceu, mas atravessou essesacontecimentos. Fez a travessia e de reemer ir"enri uecida" com tudo isso. Nesses anos e nos

    se uintes tentei escrever oemas nesta ln ua: ara falar,ara me onentar, ara saber onde me encontrava e ondeisso me iria levar ara fazer o meu rojecto de realidade.2 A Ode da Rom (que Celan admirava muito) uma epstolapotica endereada pelo poeta decadente e estericistaRudolfBorchardt(1877-1945) a RudolfAlexanderSchr der em 1907.Ambos semoviam,nos comeos do sculo, no crculo de amigos de Hugo vonHofmannsthal. A "Brerner Presse" foi uma editora biblifila quecomeou a editar, ainda sob osauspcios de Borchardr e Schrder, em1913, precisamente com uma obra de Hofmannsthal, Weg e un dBegegnunge n (Caminhos e Encontros).

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    ARTE POTICA

    Foi, como podem ver, acontecimento, movimento,estar sem re a caminho, foi a tentativa de encontrarum rumo. E se pergunto qual o seu sentido, entopenso que terei de dizer a mim prprio que nesta per-gunta tambm fala a pergunta sobre o sentido dosponteiros do relgio. ,(r~J V \ H " Porque o poema no intemporal. E certo ue

    l J c i M~~ P-foclama uma p-retenso de infinito, p-rocura actuaratravs dos tem os - atravs deles, mas no p-ara almdeles.--Ooema, sendo como uma forma de manifes-f'fi-~u ;; !ao da linguagem e, por conseguinte, na sua essnciaIe5\et.a:\", ,~~ialgico ode ser uma mensagem na garrafa, lanada/1)' \ dGo .}"J'v" Vq ao mar na convico - decerto nem sempre mUlto#J esperanada - de um dia ir dar a aI uma raia, talveza uma raia do corao. Tambm neste sentido~120emas esto a caminho - tm um rumo.Para onde? Em direco a algo de aberto, de ocup-

    vel, talvez a um tu apostrofvel, a uma realidade apostro-fvel. Penso que, para o poema, o que conta so essasrealidades. E acredito ainda que raciocnios como esteacompanham, no s os meus prprios esforos, mastambm os de outros poetas da gerao mais nova. Sogs esforos de guem, sobrevoado or estrelas ue soobra humana de guem, sem tecto, tambm nestesentido at a ora nem sonhado e 120risso desp-rote idoda forma mais in uietante, vai ao encontro da ln uacom a sua existncia, ferido de realidade e em busca derealidade.

    Dilogo na montanha'(1959)

    Um dia tardinha, o Sol, e no apenas ele, tinha-seposto, ia andando, saiu da casinha e ia andando o judeu,judeu e filho de judeu, e com ele ia o seu nome, o indi-zvel, ia e vinha, arrastando-se, fazia-se ouvir, vinha debengala, vinha sobre a pedra, ests a ouvir-me?, tu estsa ouvir-me, sou eu, eu, eu e aquele que tu ouves, julgasouvir, eu e o outro - ele ia andando, pois, podia ouvir--se, ia andando um dia tardinha, quando muita coisase tinha posto j, ia sob o cu de nuvens, ia pela sombra,a prpria e a estranha - porque o judeu, tu bem o sabes,que tem ele que verdadeiramente lhe pertena, que nolhe tenha sido cedido, pedido emprestado e no devol-vido? - Ele ia ento andando, e vinha, vinha pela estra-da fora, bela e incomparvel estrada, ia andando, comoLenz, pela montanha, ele, a quem tinham deixado habi-tar l em baixo, onde o seu lugar, nas terras baixas,ele, o judeu, vinha andando, andando.Pela estrada fora, era por onde vinha, pela belaestrada. E quem achas tu que veio ao seu encontro? Ao

    I O "Dilogo" foi escrito em Agosto de 1959, no Engadin (cf.nota 23 a "O Meridiano'', P:61), e publicado pelaprimeira vez nare-vistaNeue Runtchau(Berlim etc.),VaI.71 (1960), Nr. 2, pp. 199-202.

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    ARTE POTICA OlLOGO NA MONTANHA

    seu encontro veio o seu primo, primo e irmo, um quartode vida de judeu mais velho que ele, vinha caminhando,alto, vinha, ele tambm, pela sombra, a emprestada-porque, pergunto e volto a perguntar, quem, daquelesque Deus deixou que fossem judeus, vem pela es~radafora com o que quer que seja de seu? Ele vinha, vinha,alto, vinha ao encontro do outro, o grande ao encontrodo pequeno, e o judeu Pequeno fez calar a sua bengaladiante da bengala do judeu Grande.E assim se calou tambm a pedra, e fez-se silnciona montanha por onde eles iam, este e aquele.Havia silncio, pois, l em cima na montanha. Mas osilncio no durou muito, por ue uando o judeu vem~aminhando e encontra outro, no dura muito tem~o osilncio, nem na montanha. Pois judeu e natureza so coisasdistintas, ainda e sem re, ho'e tambm agui tambm.E a esto eles, os dois irmos, esquerda o lrio-turcoem flor, selvagem, em flor como em lugar nenhum, e direita ergue-se, em p, o rapncio, e dianthus superbus,o cravo-renda, no anda muito longe. Mas eles, osirmos, Deus seja acusado, no tm olhos. Ou melhor:tambm eles tm olhos, mas h um vu sua frente, sua frente no, atrs deles, um vu ondeante; mal entrauma imagem, fica logo presa nas malhas, e logo apareceum fio que comea a fiar, a envolver a imagem, um fiodo vu; vai fiando e envolvendo a imagem e gera umfilho com ela, meio imagem e meio vu.Pobre lrio-turco, pobre ra pncio! Eles a esto, osdois irmos, no meio de uma estrada na montanha, e a

    bengala em silncio, e a pedra em silncio, e o silnciono silncio, nenhuma palavra se calou ali, nenhumafrase, apenas uma pausa, um espao vazio no meio daaldeia, uma clareira, e tu vs todas as slabas em crculo sua volta; lngua e boca so estes dois, como antesforam, e dos olhos pende-lhes o vu, e vs, pobres devs, vs no estais nem de p nem em flor, vs noexistis, e Julho no Julho.

    Que faladores! Tm qualquer coisa para dizer umao outro, tambm agora, com a lngua a bater atabalhoa-damente contra os dentes e os lbios a no quereremarredondar-se! Bom, que falem ento .Vieste de longe, vieste at aqui Vim. Vim como tu vieste.Bem sei.Sabes. Sabes e vs: a Terra dobrou-se aqui em cima,dobrou-se uma vez e duas vezes e trs vezes, e abriu-seao meio, e no meio h uma gua, e a gua verde, e overde branco, e o branco vem ainda mais de cima,vem dos glaciares, podia dizer-se, mas no se deve, que essa a lngua que vale aqui, o verde com o branco ldentro, uma lngua nem para ti nem para mim - pois,pergunto eu, a quem se destina ela, a Terra? A ti no sedestina, o que eu digo, nem a mim - uma lngua, isso ento, sem Eu e sem Tu, s Ele, s Isso, percebes,s Eles, e nada rnais.Percebo, percebo. Afinal vim de longe, afinal vimcomo tu vieste.Bem sei.

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    Sabes e queres perguntar-me: e vieste, apesar detudo, apesar de tudo vieste at aqui - porqu e paraqu?

    Porqu e para qu ... Por ue tinha de conversar,talvez comi _o ou conti o, tinha de conversar, com aboca e com a lngua, e no s com a ben ala. Pois ...com uem conversa ela, a bengala? Conversa com aQedra, e a edra - com uem conversa ela?Com uem, meu irmo, h-de ela conversar? Elano conversa, fala, e uem fala, meu irmo, no conversacom nin um, fala or ue nin _um o ouve, ningum eNin _um, e de ois ele ue diz, ele e no a sua boca, eno a sua lngua ele e aQenas ele diz: ests a ouvir]Ests a ouvir, diz ele - eu sei, meu irmo, eusei ... Ests a ouvir, diz ele, eu estou presente, estou aqui,cheguei. Cheguei com a bengala, eu e nenhum outro,eu e no ele, eu com a minha hora, a imerecida, eu, aquem o destino atingiu, eu, a quem o destino no atingiu,eu, com memria, eu, o de fraca memria, eu, eu, eu ...Diz ele, diz ele ... Ests a ouvir, diz ele ... E oEsts-a-ouvir, com certeza, o Ests-a-ouvir, esse nodiz nada, esse no responde, porque o Ests-a-ouvir o dos glaciares, aquele que se dobrou trs vezes, e noo fez para os homens ... O Verde-e-Branco alm, o dolrio-turco, o do rapncio ... Mas eu, meu irmo, eu queestou aqui, no meio desta estrada onde no o meulugar, hoje, agora que ele se ps, ele e a sua luz, eu aquicom a sombra, a prpria e a estranha, eu - eu, que teposso dizer:

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    . . DILOGO NA MONTANHA- Estive deitado sobre a pedra, naquele tempo, tusabes, nos ladrilhos de pedra; e ao meu lado estavamdeitados outros que eram como eu, outros que no eramcomo eu e eram iguaizinhos, os meus irmos; estavamali deitados e dormiam, dormiam e no dormiam, esonhavam e no sonhavam, e no me amavam e eu no

    os amava, porque eu era um, e quem que quer amarUm, e eles eram muitos, muitos mais do que os que aliestavam deitados minha volta, e quem que podequerer am-los todos? E, no to escondo, eu no osamava, queles que no me podiam amar, eu amava avela que ardia ali esquerda num canto, amava-a porqueela ia desaparecendo ao arder, no porque el a iadesaparecendo ao arder, porque ela, essa era a vela dele,a vela que ele, o pai das nossas mes, tinha acendido,porque nessa noite comeava um dia, um determinadodia que era o stimo, o stimo a que se seguiria oprimeiro, o stimo e no o ltimo; eu, meu irmo, noos amava, eu amava v-los desaparecer medida queiam ardendo, e, sabes, desde essa altura no amei maisnada;nada, mesmo nada; ou talvez aquilo quedesaparecia ao arder como aquela vela naquele dia, nostimo e no ltimo; no no ltimo, no, porque eu estouaqui nesta estrada que dizem bela, e sou eu, junto dolrio-turco e do rapncio, e cem passos adiante, ali aondeposso chegar, o pinheiro sobe at ao zimbro, eu vejo-o,vejo-o e no vejo, e a minha bengala falou pedra, e aminha bengala est calada agora, e a pedra, dizes tu,

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    sabe falar, e no meu olho h o vu, ondeante, h vusondeantes, e se levantas um cai logo o segundo, e aestrela - verdade, ela est agora sobre a montanha-, se quiser entrar vai ter de celebrar bodas e em brevedeixar de ser ela para ser meio vu, meio estrela, e eusei, eu sei, meu irmo, eu sei que me encontrei contigoaqui, e que conversmos muito, e as dobras alm, tusabes que elas no esto l para os homens nem parans, que fomos andando e nos encontrmos, ns aquisob a estrela, ns, os judeus que vieram, como Lenz,pela montanha, tu o Grande e eu o Pequeno, tu faladore eu falador, ns, com as nossas bengalas, ns, com os.nossos nomes, os indizveis, ns com a nossa sombra, aprpria e a estranha, tu aqui e eu aqui - .- eu aqui, eu; eu, qe te posso dizer, que te podenadizer tudo isto; eu, que no to digo e no to disse; eu,com o lrio-turco esquerda, eu, com o rapncio, eucom a que desapareceu a arder, a vela, eu com o dia, eucom os dias, eu aqui e eu ali, eu, acompanhado talvez- agora! - pelo amor dos no amados, eu a caminhode mim aqui em cima.

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    o meridiano'(1960)

    Minhas Senhoras e meus Senhores!A arte, esto lembrados, a arte como umamarioneta, um ser jmbico de cinco ps e - estacaracterstica, por via da aluso a Pigmalio e suacriatura, est tambm mitologicamente documentada- sem descendncia.'Sob esta forma ela objecto de uma conversa quetem lugar num quarto, num quarto e no na Conciergerie.Uma conversa que - esta a impresso com que sefica - poderia ser continuada indefinidamente, se nadase intrometesse nela.Mas h qualquer coisa que se intromete.A arte volta a aparecer. Volta a aparecer numa outraobra de Georg Bchner, no Woyzeck, no meio de outragente, sem nome, e - se me permitido recorrer p~raeste efeito a uma expresso cunhada por MoritzHeinemann para A Morte de Danton - a uma "luz deIDiscurso de agradecimento do Prmio Georg Bchner,Darmstadt, 22 de Outubro de 1960. Publicado pela primeira veznoJahrbuch der Deutschen Akademie for Sprache und Dichtung 1960.Heidelberg 1961, pp. 74-88.2 Cf Dantons Tod(AMortede Danton),Acto lI, Cena 3.

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    tempestade ainda mais lvida". A mesma arte volta aentrar em cena, neste outro tempo muito diverso,apresentada por um charlato, e j no, como na referidaconversa, relacionvel com a criao "ardente", "efer-vescente" e "radiosa"," mas antes ao lado da criatura edo "Nada" que essa criatura "traz consigo" - desta veza arte surge em figura de macaco, mas trata-se da mesmaarte, que reconhecemos imediatamente "pelo casaco epelas calas"."E ela - a arte - chega ainda com uma terceiraobra de Bchner at ns, com L e nc io e L en a. O tempoe a luz so aqui irreconhecveis, afinal estamos "em fugapara o paraso", "todos os relgios e calendrios" seroem breve "estilhaados" ou ento "proibidos'? - maspouco antes disso so ainda apresentadas "duas pessoasde ambos os sexos", chegam "dois autmatos mundial-mente famosos" e um indivduo que de si prprio dizque "talvez o terceiro e o mais estranho dos dois"desafia-nos, "com voz roufenha", a admirar o que temosdiante dos olhos: " s arte e mecanismo, s papeloe engrenagens!"6

    3 Id., ibid.4 Cf. Woyzeck , cena 3. As referncias scenas de Woyzeck seguem

    a ordenao da chamada "verso i n q u a rt o ", considerada pela ediocrtica de Werner R. Lehmann como a "ltima verso" (aquela em quea primeira cena a intitulada "Campo aberto. A cidade ao longe"). Acena 3 intitula-se , nesta verso, "Barracas de feira . Luzes. Povo".

    5 Cf. L eo nc e u n d L en a (L e nc io e L en a) , Acto I1I , cena 3.6 Id., ibid.

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    O MERIDIANO

    A arte aparece aqui com mais acompanhantes doque antes, mas - e isso salta vista .- est no seuelemento, a mesma arte de sempre, a arte que jconhecemos. Valrio? apenas um outro nome para ocharlato.A arte, minhas Senhoras e meus Senhores, com tudo ( : : : r k

    aquilo que j seu e tudo o que est para vir, tambm UJ--Oum problema. Um problema, como estamos a ver, f i J t : w - < . } .'I . , di e"tC/iA-O"mutave , resistente e perene, que o mesmo e izer, '/eterno.Um problema que permite que um mortal, Camille,e algum a quem s a morte d sentido, Danton,encadeiem sem cessar palavras e mais palavras. Falarda arte fcil.Mas quando se fala da arte h tambm semprealgum que est presente e... no presta ateno ao quese diz.Para ser mais exacto: algum que ouve e escuta e

    olha ... e depois no sabe do que se esteve a falar. Masque ouve quem fala, que o "v falar", que apreendeulinguagem e figura, e ao mesmo tempo tambm - quemduvidaria disso quando se trata de uma obra como esta?- a respirao, ou seja um sentido e um destino.Esse algum, sabei-lo h muito, tantas vezes citado,e no por mero acaso, vem todos os anos ter convosco- esse algum Lucile."7Valrio: a personagem da pea L e n c io e L e na , o realista ocioso,o bobo que chega a Ministro.S Celan parece relacionar aqui a personagem d' A M o rt e d e D a nt on ,

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    Aquilo que se intromete na conversa impe-se s:mcontemplaes, entra connosco na praa da Revoluao,d "as carruagens vo chegan o e param .Os passageiros esto todos presentes, no faltaningum, Danton, Camille, os outros. Todos eles tm,tambm aqui, palavras, palavras artsticas, e usam-nascom eficcia, fala-se - e para isso Bchner quase sprecisa de citar - de um ir-para-a-morte colectivo,Fabre pretende at ser capaz de morrer "duplamente",todos esto altura - apenas umas quantas vozes,"algumas vozes" sem nome, acham que tudo aquilo "j

    h 'do "9aconteceu antes eles provoca te 10 .E aqui, onde tudo chega ao fim, nos longos mo~e~-tos em que Camille - no, no ele, no ele prop:1Omas um dos que fez a viagem -, quando este Camillemorre de morte teatral, quase diramos jmbica, umamorte que s duas cenas mais tarde podemos sentircomo sua, a partir de uma palavra que lhe to estranha

    e to prxima -, quando volt~ de Cam~lle o.patt!,coe o sentencioso confirmam o tnunfo da manoneta edo "arame", nessa altura Lucile volta a estar presente;Lucile, cega para a arte, a mesma para quem a linguagemtem algo de pessoal e perceptvel, reaparece com o seu"Viva o Reil'""

    E que palavra, depois de todas as que foram ditasda tribuna (que o cadafalso)! uma contra- alavra, a alavra ue faz rom e~o "arame", a Qalavra ue' no se curva diante dos"cavalos de arada nem dos ilares da Histria", 11 umacto de liberdade. um asso. certo que, primeira vista, isto pode soar -provavelmente no por acaso, tendo em conta aquiloque agora, hoje, eu arrisco dizer sobre o assunto - auma profisso de f no ancient rgme.Mas aqui no se trata - e permitam que algumque cresceu tambm com as obras de Pietr Kropotkin eGustav Landauer'? o saliente expressamente neste

    IiCitao de uma carta de Bchner noiva (sem data, posteriora 10 de Maro de 1834). O contexto o seguinte: "Tenho andado aestudar a histria da Revoluo. Senti-me como que aniquilado sob oterrvel peso do fatalismo da Histria. Encontro na natureza humanauma espantosa igualdade, nas relaes humanas uma violnciainevitvel, inerente a todos e a ningum. Cada indivduo apenasespuma nacrista da onda, a grandeza um puro acaso, a fora do gnioum jogo de fantoches, uma luta ridcula contra uma lei de ferro;reconhec-Ia o mximo que podemos alcanar, domin-Ia impossvel. Deixei de me curvar diante dos grandes nomes e dospilares da Histria. Habituo o olhar aosangue. Mas no sou nenhumalmina de guilhotina. O tem que ser uma daspalavrasde maldio quepresidiu ao baptismo do Homem. A sentena: 'os males viro, e aidaqueles por quem eles passem', aterradora. O que que em nsmente, mata, rouba?No quero dar seguimento a estespensamentos."

    12 O russoKropotkin (1842-1921) e o alemo Landauer (1870--1919) soduas destacadas figuras da histria do anarquismo europeu.45

    Lucile, com a Diana Lucina da mitologia latina, deusa da luz nocturnaque tambm presidia aosritos do parto e do Ano Novo.9 Cf. A Morte deDanton, Acto IV, cena 8.10 Cf. A Morte deDanton, Acto IV,cena 9.

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    momento - de prestar homenagem a uma qualquermonarquia, nem a um ontem que se quer conservar.A homena em a ui a aI o ue testemunha aRresena do humano - majestade do absurdo.E isso, minhas Senhoras e meus Senhores, no temnome certo nem fixo, mas julo ue ... a oesia."Ah, a arte!"13 Como esto vendo, fiquei preso aesta palavra de Camille. possvel - tenho plena conscincia disso - leresta palavra de diversas maneiras, h vrios acentos quelhe servem: o agudo da actualidade, o grave dahistoricidade - tambm literria -, o circunflexo -um sinal de expanso - do eterno.Eu escolho - porque no tenho escolha - oagudo.A arte - "ah, a arte!" - possui, ao lado da suacapacidade de transformao, tambm o dom daubiquidade: pode encontrar-se tambm no Lenz, e

    tambm a - permito-me destacar isto -, como n' AMorte de Danton, sob forma episdica." mesa, Lenz recuperou a boa disposio: falava--se de literatura, estava no seu ambiente ... ""... O sentimento de que aquilo que foi criado temvida estava acima das duas coisas, e era o nico critrioem matria de arte ... "14

    Destaquei apenas duas frases: a minha mconscincia em relao ao acento grave obriga-me desdej a chamar a vossa ateno para o facto. Esta passagemtem, antes do mais, relevncia histrico-literria, preciso saber l-Ia em articulao com a j referidaconversa em A Morte de Danton, a concepo estticade Bchner encontra aqui a sua expresso, a partir daquichegamos, deixando o fragmento de Bchner sobreLenz, a Reinhold Lenz, o autor das Anotaes sobre oTeatro .'? e atravs dele, do Lenz histrico, ainda maisatrs, ao "largissez l'Art" de Mercier," literariamenteDe literatura se falou, estava no seu elemento. O perodo 'idealista'dava os primeiros passos e tinha em Kaufmann um fervoroso adepto.Lenz combatia vigorosamente o novo iderio. Dizia: 'Os poetas dequem se fala que reproduzem a realidade no fazem a menor ideia doreal, embora no deixem de ser mais suportveis do que os outros, osque pretendem transfigur-Io'. Dizia tambm: 'Deus fezprovavelmente o mundo tal como deve ser, pouco natural que osnossos balbuceios consigam melhor resultado. Na medida das foraque tivermos, devemos esforar-nos por imitar a criao de Deus. Avida o principal, e tudo o que precisamos; pouco monta que sejabela ou feia. O sentimento de que alguma coisa se criou com vida estacima da beleza ou da fealdade; em matria de arte, o nico critrio".(Lenz, trad. de Ernesto Sarnpaio, Lisboa: Hiena 1994, pp. 40-41).

    15 O "Lenz histrico" o dramaturgo Johann Michael ReinholdLenz (1751-1792), paladino do teatro anticlassicisra, adorado r deShakespeare e autor de uma violenta diatribe contra o aristorelisrno,asAnmerkungen berdas Theater(Anotaessobreo Teatro), de 1774.

    16 Louis Sbastien Mercier (1740-1814): dramaturgo francs, umdos primeiros autores de dramas burgueses, e tambm de uma dasutopias mais conhecidas do sculo XVIII, L'An 2440 (I770). Foi

    13 Cf. A Morte deDanton, Il, 3.14 A citao, que surge aqui truncada, s se compreende melhor

    se inserida no seu contexto: " mesa, Lenz recuperou o bom humor.

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    to influente. Esta passagem abre perspectivas, antecipao Naturalismo e Gerhart Hauptmann, e nela devemostambm procurar e podemos encontrar as razes sociaise polticas da obra de Bchner.Minhas Senhoras e meus Senhores, o eu no deixarde mencionar coisas deste teor, talvez tranquilize, sebem que apenas momentaneamente, a minha conscin-cia, mas mostra-vos ao mesmo tempo - e com issovolta a tranquilizar-se a minha conscincia - que noconsigo libertar-me de uma obsesso que para mim temuma ntima ligao com a arte.Procuro-a tambm aqui no Lenz, e permito-mechamar a vossa ateno para isso.Lenz, ou seja Bchner, usa - "ah, a arte!" -palavras muito desprezveis ao referir-se ao "idealismo"e s suas "marionetas de pau". E contrape-lhes -seguem-se as linhas inesquecveis sobre a "vida das maisnfimas criaturas", os "estremecimentos", as "aluses",o "jogo expressivo to subtil que mal se d por ele" -o natural e criatural. E ilustra esta sua concepo daarte com uma vivncia:"Quando, ontem, ia subindo a encosta do vale, viduas raparigas sentadas numa pedra: uma delas apanhavao cabelo ao alto, a outra ajudava-a; e os cabelos loiroscaam, soltos, e o rosto era plido e srio, e ao mesmotempo to jovem, e o vestido preto, e a outra to cheiamembro da Conveno, onde defendeu posies moderadas,insurgindo-se contra a pena de morte para Lus XVI. Foi preso duranteo Terror, mas libertado depois da morte de Robespierre.

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    O MERIDIANO

    de cuidados ... As mais belas e comoventes obras dosvelhos mestres alemes mal do uma ideia desta cena.Desejar-se-ia por vezes ser uma cabea de Medusa parapoder transformar em pedra um grupo como este, edepois correr a chamar toda a gente."Reparem bem, minhas Senhoras e meus Senhores:C~Desejar-se-ia ser uma cabea de Medusa", Rara ...~reender o natural en uanto natural or meio da arte!Desei ar-se-ia atente-se, o ue se diz nesta_Rassa em e no eu dese' aria.Isso significa uma retirada da esfera do humano,uma sada ara um domnio voltado ara o humano ~in uietante - o mesmo onde a fi ura do macaco osautmatos, e com eles ... ah, tambm a arte, arecemestar em casa.No fala assim o Lenz histrico. o de Bchnerquem assim fala, ouvimos aqui a voz do prprioBchner: 12araele, a arte continua a ter, tambm aqui,

    al o de in uietante.Minhas Senhoras e meus Senhores: escolhi o acentoagudo, e no pretendo iludir-vos nem iludir-me quantoa est~ minha interrogao sobre a arte e a poesia _uma Interrogao entre muitas outras. Com ela devoter ido ao encontro de Bchner, a partir de mim prprio,embora de forma no deliberada, para tentar encontrara sua prpria interrogao.Mas, como esto vendo, o "tom roufenho" deValrio faz-se ouvir nitidamente de cada vez que a arteentra em cena.

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    AI{rE P TICA

    17 Cf. Le nz, trad. portuguesa, p. 45.

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    o MERlDlANO

    Ao ler isto penso em Lucile; leio: ele, ele prprio.uem traz a arte diante dos olhos e no sentido - ri I - c. L hist d L ,LcontinUO a rerenr-me a IStona e enz - es uece- vse de si. A arte rovoca um distanciament~ Eu. A jJ5& ',t)),.

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    AIt'l'E rol?TlcA

    do lugar da poesia, em nome da libertao, em nome dopasso em frente.O Lenz de Bchner, minhas Senhoras e meus Senhores,ficou como fragmento. Teremos ns, para sabermos qual adireco da sua existncia, de procurar o Lenz histrico?"A sua existncia era para ele um fardo necessrio.- E assim foi vivendo ... "18Aqui acaba a narrativa.Mas a poesia procura, como Lucile, ver a figura nadireco que ela segue, a oesia antecipa-se-nos. Nssabemos para onde vai o sentido da sua vida, como elevai vivendo.''A morte", l-se numa obra sobre Jakob MichaelReinhold Lenz publicada em Leipzig em 1909, escritapor um professor de Moscavo de nome M. N. Rosanov,"a morte no se fez esperar muito no seu papellibertador. Na noite de 23 para 24 de Maio de 1792Lenz foi encontrado sem vida numa rua de Moscavo.Foi enterrado a expensas de um nobre. Desconhece-sea sua ltima morada."Era assim que ele ia vivendo.Ele: o verdadeiro Lenz, o Lenz de Bchner, a figurade Bchner, a personagem que tivmos oportunidadede conhecer na primeira pgina da narrativa, aquele Lenzque "a vinte de Janeiro atravessava a montanha"19 ele- no o artista, no aquele que se ocupa das coisas daarte, ele enquanto Eu.

    18 Id, ibid, p.76.19 Esta frase a que abre a narrativa Lenz.

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    o MERlDIANOEncontraremos agora o lugar que era o do estranho,o lugar onde a pessoa conseguia libertar-se enquantoEu - um Eu de estranhamento? Encontraremos umtal lugar, um tal passo?" ... mas s vezes era-lhe desagradvel no poderandar de cabea para baixo."20 - este o Lenz.

    verdadeiramente, creio, ele e o seu passo, ele e o seu"Viva o Rei!"" ... mas s vezes era-lhe desagradvel no poderandar de cabea para baixo."Quem anda de cabea para baixo, minhas Senhorase meus Senhores, uem anda de cabe a ara baixo temo cu por abismo debaixo de si.Minhas Senhoras e meus Senhores: nos dias de hoje frequente apontar poesia a sua "obscuridade".Permitam-me que cite neste momento, sem maisdelongas - mas no se deu aqui subitamente umaabertura? -, uma frase de Pascal, uma frase que li h

    algum tempo num texto de Leo Chestov: Ne nousreprochez pas le manque de clart puisque nous en foisonsprofession! O que aqui temos parece-me ser, se no aobscuridade congnita, pelo menos aquela obscuridadeatribuda poesia, em nome de um encontro, a partirde uma distncia ou de uma estranheza - queporventura se inventaram a si prprias.Mas talvez existam, numa e na mesma direco,dois tipos de estranheza - muito prximos um do outro.20 Cf. Lenz; p. 23.

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    AI! 11, I'( )I~i'1 'A

    Lenz - OU seja Bchner - foi aqui um passo maislonge do que Lucile. O seu "Viva o Rei!" j no umafrase, um terrvel emudecimento que o deixa a ele -e a ns - sem respirao e sem palavras.~ S ( ) Poesia: ual uer coisa ue ode si nificar uma1/ 1 "WJfn ..",'J-- mudan a na res ira o. uem sabe se a oesia no faz

    \Jj (e~r(}ktfv\'o caminho - tambm o caminho da arte - com vista(e~~ '>V!~~ a uma tal mudana? Talvez ela consi a, . ue o estra-nho, ou seja o abismo e a cabea de Medusa, o abismo eos autmatos, arecem ir numa e na mesma direc o.- talvez ela consiga ento a distin uir entre estranhezae estranheza, talvez a cabea de Medusa se atrofierecisamente a, talvez recisamente a falhem osautmatos - neste breve e nico momento. Talveza ui, com o Eu - este Eu sur reendido e liberto a ui edeste m odo -, talvez a ui se liberte ainda um Outro.Talvez o oema sea ele r rio a anir desteonto ... e ossa a ora, deste modo no artstico e libertoda arte, seguir os seus outros caminhos, e assim tambmos caminhos da arte - se ui-Ios, se ui-Ios e voltar ase ui-los.Talvez.Talvez se possa dizer que em cada poema fica

    "t ,Iinscrito o seu "20 de Janeiro". Talvez o ue h de novor "fAtllN"\~YJlI,r \ nos oemas ue hoe se escrevem sea isto: gue a(\i{+ t~H J - da forrna rnai I .\1\.'~C ~ )'~ ue, a rorrna maIS c ara, se rocura manter VIva aI "" ~~ '1'~ ,. d . d,t. IiVV- a r { : > memona e taIS ata.s.hV ' ~ r ; : t i ) Mas no a partir de tais datas que se escreve oh~ . nosso destino? E escrevemo-nos em direco a que datas?

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    o MERIDIANO

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    !fhbJtfA/I..~e.k,A.AM(9vJ-ro; r

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    ARTE POTICA O MERIDIANO

    ( t . .~Jt1.ui~). . 0 ~1" isso, segundo creio, s indirectamente tem a ver com as, V~ dificuldades - que no devemos subestimar - da~.It01MAl4)escolha das palavras, com o mais acentuado declive da

    sintaxe ou o sentido mais desperto da elipse), o oemamostra, e isso indesmentvel, uma forte tendncia par?-o emudecimento.Ele afirma-se (permitam-me, depois de tantas for-mulaes radicais, mais esta), o oema afirma-se f!!ill:_em de si r ~12ara 120der subsistir, evoca-se erecu12era-se incessantemente, num movimento ue vaido seu -no ao seu Ainda-e-sem re.Este Ainda-e-sem re no ode ser outra coisa senouma fala. No lin ua em sem mais, ortanto, nem rova-velmente tambm "co-res ondncia" (E nt-s r ec hu n noplano da lin ua_em.Ele antes lin ua em actualizada liberta sob osigno de um I2rocesso de individuao radical, certo,mas ue ao mesmo tem o ermanece consciente dosJimites ue lhe so tra ados ela lin ua em, dasp-ossibilidades ue se lhe abrem na lin ua em.Esse Ainda-e-sem re do oema s ode serencontrado na oesia de guem no se es uece de uefala sob o ngulo de incidncia da sua existncia, da/1ua condi o criatural. .

    ''7 . Ento o oema seria - de forma ainda mais clarado gue at a ora - ling~a em, tornada fi ura, de umente singular, e, na sua essncia mais funda, presena eevidncia: .

    certo que o poema - o poema hoje - mostra (e o oema solitrio. solitrio e vai a caminho.uem o escreve torna-se arte inte rante dele.Mas no se encontrar o poema, precisamente porisso, e portanto j neste momento, na situao doencontro - n o m i st r io d o e n co n tr o ?O oema uer ir ao encontro de um Outro I2recisa

    desse Outro, de um nterlocuror. Procura-o e oferece-se-lhe.Cada coisa, cada indivduo , ara o oema ue sedi ri e ara o Outro fi ura desse Outro.A aten o ue o oema rocura dedicar a tudo a ui-10 c om ue se encontra, o seu sentido a uradssimo dorormenor, do erfil, da estrutura, da cor, mas tambmdas "comoes" e das "aluses" - tudo isso, ao Wrenso, no nenhuma con uista do olho ue diaria-mente concorre com a arelha ens cada vez mais12erfeitas (ou com elas corre), antes uma forma d~concentrao gue tem 12resentes todos os nossos dados ..''A aten o" - ermitam-me ue cite a ui, se~uindo.o ensaio de Walter Benjamin sobre Kafka, uma frase deMalebranche - "a aten -o a orao natural da alma" . .21

    O 120ema torna-se - e em gue condi es! - o.oema de um su'eito gue insiste em ser um su'eito der.erce o, atento a todos os fenmenos, e interro andoe a ostrofando esses fenmenos: e torna-se dilogQ,muitas vezes um dilo o desesl2erado.S no es a o desse dilo o se constitui o ue a ostrofado, e se concentra volta do Eu ue a ele se21 A citao vem do grande ensaio de Benjamin "Franz Kafka.

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    (r~J . . o ~ o - )ti

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    Lenz, parecia estar presente aquela mudana derespirao. Talvez tambm quando eu tentei agarrar-mequele lugar distante e espera de ser preenchido, eque acabou por apenas se tornar visvel na figura deLucile. E estivmos tambm outra vez, quando falmosda ateno dada s coisas e criatura, na proximidadedo aberto e da liberdade. E por fim na proximidade dautop1a.A oesia minhas Senhoras e meus Senhores - estamanifestao infinita de mortalidade e vanidade!Minhas Senhoras e meus Senhores, permitam-me,j que estou novamente no princpio, que volte a colocara mesma questo, de forma breve e a partir de um ngulodiferente.Minhas Senhoras e meus Senhores: h alguns anosescrevi uma quadra, assim:"Vozes vindas da vereda de urtigas: / / Vem at nsca m inhando sobre as m os.! Quem est sozinho com almpada,! tem apenas a mo para vos ler."22E h um ano, recordando um encontro gorado noEngadin, pus no papel uma pequena histria na qualum homem ia pela montanha, "como Lenz"."Em ambos os casos, tinha escrito o meu destino apartir de um "20 de Janeiro", do meu "20 de Janeiro".

    22 A citao corresponde segunda parte do poema de aberturado livro de Paul Celan Spra chgi tt er( G relh a de L inguagem) , de 1959.

    23 A "histria" o texto "Dilogo na Montanha", includo nestevolume. O encontro, que no chegou a ter lugar, era com o filsofoTheodor W Adorno.

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    E ento ... encontrei-me a mim prprio.Ser ento que, quando pensamos em poemas, serque seguimos tais caminhos com o poema? So essasvias apenas des-vios, caminhos nvios de ti a ti? Masso tambm, no meio de sabe-se l quantos outroscaminhos, caminhos nos quais a lngua ganha voz, soencontros, caminhos de uma voz para um Tu que recebe,caminhos da criatura, projectos de existncia, talvez,uma antecipao a ns prprios para nos encontrarmos,em busca de ns prprios ... Uma espcie de regresso acasa.Minhas Senhoras e meus Senhores, estou a chegarao fim - a chegar, com o acento agudo que decidi usar,ao fim de ... Lencio e L ena .E aqui, diante das duas ltimas palavras desta obra,tenho de ter cuidado.Tenho de evitar, como fez Karl Emil Franzas, oresponsvel por aquela "Primeira Edio Crtica eCompleta das Obras de Georg Bchner e do esplioManuscrito", publicada h oitenta e um anos pelaEditora Sauerlnder, de Francoforte do Meno -, tenhode evitar, como fez o m eu c ompa tr io ta K ar l E m il F ranzos,q u e v e nh o r e en c on tr a r a q u i, ler o "Commode" que a se usacomo se de um "Kommendes" se tratasse!"

    24 A passagem exige uma explicao para o lei tor portugus.Celan refere o final da pea Lenc io e Len a, em que a personagemValrio diz o seguinte: "E eu vou ser Ministro de Estado e vai sair umdecreto que quem fizer calos nas mos ser declarado interdito, quequem cair doente por trabalhar demais incorrer em crime, que todo

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    Agradeo esta distino, agradeo-vos por estemomento e este encontro.Os meus agradecimentos ao "Land" de Hessen, cidade de Darmstadt, Academia Alem de Lngua eLiteratura.Agradeo ao Presidente da Academia Alem deLngua e Literatura, agradeo-lhe a si, meu caro HermannKasack."Cara Marie Luise Kaschnitz." os meus agradeci-mentos.Minhas Senhoras e meus Senhores, agradeo-vos avossa presena.

    27 O escri tor alemo Hermann Kasack era, em 1960, o Presidenteda Academia Alem de Lngua e Literatura, que atr ibui o PrmioBchner.

    28- escritora Marie Luise Kaschnitz coube fazer a /audat o naocasio da atribuio do prmio a Paul Celan.

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    Carta a Hans Bender(1960)

    Meu caro Hans Bender,Agradeo-lhe a sua carta de 15 de Maio e o amvelconvite para colaborar na sua antologia Mein Gedicht istmein Messer (O meu poema a minha faca). ILembro-me de h tempos lhe ter dito que assimue o oema verdadeiramente est a, o oeta volta alibertar-se da sua cum licidade ori inal. Hoje formulariaesta opinio de maneira completamente diferente, ouento tentaria diferenci-Ia; mas no fundo continuo ater esta - velha - opinio. claro que existe tambmo que hoje, to fcil e despreocupadamente, se designa

    de ofcio. Mas - permita-me esta reduo dopensamento e da experincia - o ofcio , como acorreco em geral, condio de toda a poesia. Este

    IA antologia em questo, que inclui a carta de Paul Celan, umaedio aumentada, em relao primeira, de 1955, e foi publicada pelaEditora List, de Munique, em 1961. A pginas 166 pode ler-se aseguinte nota do organizado r: "Paul Celan autorizou a publicaodesta sua carta pelo organizador da Antologia, com o desejo expressode que "ela fosse tomada por aquilo que : como uma carta dirigi da asi, com a data do dia de hoje (18 de Maio de 1960)".

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    ofcio no se faz, com certeza, sobre um cho dourado.?- quem sabe at se ele assenta sobre algum cho. Temos seus abismos e profundezas, e alguns - ah, mas euno fao parte deles - tm at um nome para isso.Ofcio - coisa das mos. E estas mos, por outrolado, s pertencem a um indivduo, isto , a um nicoser mortal que com a sua voz e o seu silncio busca umcaminho.S mos verdadeiras escrevem oemas verdadeiros.No vejo nenhuma diferena de rincl 10 entre uma erto de mo e um oema. E no nos venham com o" oien" e coisas assim. Isso significava, .untamentecom as suas roximidades e distncias, sem dvidaqual uer coisa totalmente diferente do ue no seucontexto actual.

    Existem, com certeza, exercicros no sentidoespiritual, caro Hans Bender! E para alm disso htambm, a cada esquina lrica, toda a espcie deexperincias com o chamado material verbal. Poemasso tambm oferendas - oferendas queles que soatenros." Oferendas que transportam um destino."C f I"rno se azem poemas.

    2 A frase s se compreende luz de um antigo provrbio segundoo qual um bom ofcio, uma vez aprendido, sempre rentvel. NosProvrb ios de Sebastian Franck (Frankfurt, 1560) ele citado na versoatribuda ao humanistaJohannesAgricola: "Um ofcio tem um chode ouro".

    3 Cf. nota 21 a "O Meridiano".

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    CARTA A HAN 131\NI)1\I(

    H anos atrs ude, or algum tem o, ver e, maistarde, a artir de uma certa distncia, observaratentamente como o "fazer" se vai transformando,atravs da factura, em contra-faco.4 Sim, isto tambmexiste, como deve saber ... No acontece or acaso.Vivemos sob cus sombrios e... existem oucos.seres humanos. Talvez or isso existam tam m tooucos oemas. As eS12eran as gue ainda me restamno so grandes; tento conservar aguilo gue me restou.Com os melhores votos, para si e para o s~utrabalho,Paul CelanParis, 18 de Maio de 1960

    4 O original explora um jogo de palavras que se procurou manter:a mac he n (o acto) / d ie Mache(o processo e o resultado) / Machenschaft(o fazer intriga, trama, manobra) corresponde "fazer" /"factura" /"contra-faco".

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    Resposta a um inqurito da Librairie Flinker,Paris'(1961)

    (O objectivo do in qur ito era o "Pr obl ema do b il in g ui smo ')As perguntas dirigem-se lngua, s ideias, poesia.Perguntas feitas em poucas palavras. Permitam-me quea minha resposta tenha uma forma igualmente lacnica.No acredito ue ha'a bilin uismo na oesia. Falarcom ln, ua bfide - isso sim, existe, tambm emdiversas artes ou artifcios da 12alavra e dos nossos dias,es ecialmente na ueles ue, numa feliz concordnciacom ores ectivo consumo cultural sabem estabelecer--se, de forma tanto oli ,lota como olcroma.Poesia - essa a inelutvel un icidade da lngua.

    No , ortanto - ermitam-me este lu, ar comum: a..l2oesia, tal como a verdade v-se ho' e freguentemente. na situao de no ir dar a lugar nenhum -, no ,portanto, a sua du plicidade.

    IPublicado no Almanach 1961 da Librairie Franaise et trangereFlinker, Paris 1961, P: 18.Reimpresso no jornal Die Ult(Hamburgo),de 21 de Novembro de 1970.

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    Resposta a um inqurito da revista DerSpiegel:(1968)

    (Partin d o d a p e rg u nta "possvel uma re vo lu o ?'; a r e vi st aDer Spiegel pe di a uma tomada de p o sio sob re a s eg u in tea lte rna tiv a for mu lada por Hans Magnus Enzensberger noThe Times Literary Supplement: De fa cto , hoje n o n os v emosconfron tad osc om o comun ismo, mas sim co m a re vol u o.Osistemapol tico da Rep b lica Fed eralj no tem con serto. O u e st amo s d ea c ord o c om ele, ou temos d e o s u bs tit uir p or um n ov o. Ter t iu m n ondab itur)Tenho ainda esperanas, no apenas em relao Repblica Federal e Alemanha, de que haja mudanas,transformaes. Elas no sero trazidas por sistemasalternativos, e a revoluo - a social e ao mesmo tempo (f.tV",,~~anti-autoritria - s pensvel a partir delas. Ela t : : : . ; ; -comea, na Alemanha, aqui e agora, com o indivduo. Tu t;Lyjd.,;o)

    E poupem-nos a uma quarta via.1 Publicado em: DER SPIEGEL fragte: 1st eine Revolutionunvermeidlich?42 Anrworten auf eine Alternative von Hans MagnusEnzensberger (DER SPIEGEL perguntou: a revoluo inevitvel?42 respostas a uma alternativa de Hans Magnus Enzensberger). Ham-burgo 1968. O ensaio de onde provm a citao de Enzensberger,"The Writer and Politics",forapublicado no TimesLiterarySupplementde 28 de Setembro de 1967.

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    Alocuo na Associao de EscritoresHebraicos'(1969)

    Vim visitar-vos a Israel porque precisei de o fazer.Depois de tudo o que vi e ouvi, domina-me umasensao rara, a impresso de ter feito o que devia -espero que no apenas em relao a mim prprio.Julgo ter uma ideia do que pode ser a solido judaica,e compreendo tambm, entre tantas outras coisas, oorgulho reconhecido por cada mancha verde plantadacom as nossas prprias mos, e que est pronta a servirde refrigrio a quantos por aqui passam; como entendotambm a alegria por cada palavra readquirida, que cadaum sente e preenche, que acorre para fortalecer aqueleque lhe dedicado. Entendo tudo isto, nestes tempos

    de auto-alienao e massificao generalizadas e cres-centes. E aqui, nesta paisagem exterior e interior, encon-tro muito da exigncia de verdade, da evidncia naturale da singularidade universal da grande poesia. E julgo terencontrado um interlocutor na deciso serena e segurade algum que busca afirmao no plano do humano.Agradeo a tudo isto, agradeo-vos.Telavive, 14 de Outubro de 1969.I Proferida a 14 (? ) de Outubro em Telavive. Publicada pela pri-

    meira vez na revista Die Stimme (Telavive), Agosto de 1970, p. 7.73

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    Joo BarrentoO mistrio do Encontro

    Ein Rd tse l ist Rein ent sprungenes. u m m istr io o q u e v em da s p ura s orig ens .(Hlderlin, O Reno)As pginas anteriores reunem quase todos os textosde prosa de Paul Celan at agora publicados, se excep-tuarmos algumas esparsas notas introdutrias aos poetasrussos Osip Mandelstam (desaparecido nos anos trinta,vtima no se sabe bem se de Estaline, se de Hitler) eAleksandr Blok. IA correspondncia ainda por publicarpoder eventualmente acrescentar mais algumas cintila-

    es a esta pequena constelao de textos, breves, mas debrilho intenso: num lacnico discurso de ocasio(Bremen, 1958) ou numa simples carta a umantologiador (Hans Bender, 1960), Celan conse _ue fixarue iluminam subitamente o Ser da oesia,IAsverses portuguesas seguem a edio alem dos GesammefteWrke (ed. de BedaAllemann e Stephen Reichert, Vol. IlI, Frankfurt/M.: 5uhrkamp Verlag 1983), que por sua vez se serviu, para a fixaodos textos alemes, das primeiras verses impressas, corrigidas. A"Alocuo na Associao de Escritores Hebraicos" segue a versomanuscrita utilizada pelo Autor na altura do discurso de Telavive.

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    propor definies de uma pregnncia que vale porensaios inteiros. Mesmo a, nesses textos de circuns-tncia, --12rosade Celan semQre sui _eneris, anti- rosaica:exacta e 12rofunda, im12revisvel e associativa eU tica ehbrida. Tambm osensaios maiores, como "O Meridiano"(ainda um discurso de agradecimento) ou o "Dilogona Montanha" (um texto atravessado pela sombra deAdorno, o "judeu Grande", e onde ecoam, tanto anovela Lenz, de Bchner, como sobretudo motivos datradio e da condio judaica), associam, num ritmodeambulante e sobressaltado cuja estranheza a traduoprocura no apagar, o rigor da ideia deriva intertextual,e transformam-se assim, ainda e sempre, em grandespoemas. poeta at aos ossos e dor, Celan no uer,nem sabe, ser outra coisa. A interpretao dos textosde prosa, em particular dos dois referidos, ser, como ada sua poesia, sempre problemtica, rdua e aberta. Esta uma J20tica inse _ura de si, o discurso avan a e recua,tacteante, a alavra "talvez" sur e nove vezes numa s ina. O texto definitivo de "O Meridiano" o resduoda decantao difcil de um manuscrito enorme (notas,transcries, tentativas, entre Maio e Outubro de 1960),com cerca de trezentas pginas espera de divulgao,o que s acontecer depois de sado o volume respectivoda edio histrico-crtica em curso de publicao. A"arte potica" de Paul Celan contida neste discurso ,como a sua poesia, uma busca atormentada, um rede-moinhar labirntico volta de uma outra obra breve e inten-sa, a do poeta dramtico "da criatura" Georg Bchner,

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    que emprestou o nome ao maior prmio literrio alemo,que Celan recebe nesse ano de 1960. A caminhada, aoencontro do Outro do poema, do poema impossvel"que fala em nome de um Outro", s podia terminar,como termina dez anos mais tarde, beira do abismo,ou no -"poema absoluto" que no existe, na "majestadedo absurdo" (como nessa comdia grotesca dahumanidade que o Lencio e Lena de Bchner). Doabsurdo que , no poema como na tragdia, a sua lei denecessidade, e que lhe vem dessa paradoxal tendnciapara o emudecimento, do periclitante paradoxo de opoema ser solitrio e ir a caminho do Encontro com oOutro. Os ecos que aqui se ouvem podem ser umaresposta ao veredicto de Adorno sobre a(impossibilidade da) poesia depois de Auschwitz; masremontam tambm teologia de Schleiermacher e, maiscertamente, filosofia dialgica de matriz judaica, deBuber e Rosenzweig a Lvinas (mais de Lvinas que deBuber). por este trilho que segue, hoje, a minha leiturada potica de Paul Celan.No lugar desse Encontro no h, nem certezas nemapoteoses, mas apenas aquela imperceptvel "mudanade respirao" (Atemwende), testemunho da ateno doOutro ao poema, do poema ao respirar do mundo, "criatura" nele, utopia futura dele - apesar das u-topias terrveis deste sculo, lugares da Histria toinimaginveis que se transformam em no-lugares. Opoema , ento, em toda a sua complexidade e obscu-ridade, simples e "autntico" - mas o termo ter de

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    ser corrigido por outros, porque na poesia de Celan nosopram j, nem os ventos romnticos, nem o ontolo-gismo essencialista de Heidegger, em que a figura do"autntico" tem ainda um papel central. Digamos, poragora e com o prprio Celan, que o poema autnticocomo a mo que o escreve, uma espcie de regresso acasa: "S mos verdadeiras escrevem poemas verda-deiros, No vejo nenhuma diferena de princpio entreum aperto de mo e um poema" (carta a Hans Bender).

    M t l 1 ( n l r o O encontro com o Outro, que, ao contrrio de tantas~ ( ; f M t r o outras no percurso autotlico da modernidade, de< J . t Mallarm a Valry, determinante na potica de Paul

    n ' . . . r. ; Celan, configura-se aqui (de forma obsessiva nos textos~\'IIW,(~e.l v . d ") al b, .- maiores esta poeuca ,t como tam em acontece nafilosofia de Emmanuel Lvinas, enquanto forma de des--inter-esse, de relao necessria na ordem do ente e desada da ordem do Ser, da ontologia abstracta e neutra.Celan ultra assa as oticas do hermetismo mais uro(Ortega diria: mais desumano), tal como Lvinas superaa fenomenologia, de onde vem, e a ontologia, que aindaatravessa, a caminho de um re resso metafsica, uenele ser uma tica. Para o oeta, como ara o filsofo,al uma coisa de fundamental se l2assa na sua busca decom reenso do mundo, ue no da sim les ordemda com reenso com os meios da lin ua em, antesanterior a todas as ormas de com reenso verdadeira-mente humanas (do verdadeiramente humano): o encon tro.com o Outro. No como programa, no como mera no-meao, mas (afinal ainda na esteira do Heidegger tardio?)

    como "acontecimento" (Er-eignis) puro, incontornvel,necessrio. O termo alemo Ereignis contm o sentidode um acontecer prprio (egen), singular e concreto,visvel (na raiz do conceito est tambm o verbo augen,desaparecido na sua forma simples, e que significavaver, apreender com o olhar); e nele est tambm, noprefixo, a ideia de fora sbita que irrompe, uma quaserevelao de algo que vem de uma origem (a partculaEr- aparentada com aquela outra que tem o sentidode "origem": Ur-i. O rosto do Outro em Lvinas (nocomo forma, mas como "significa o sem contexto","sentido s Rara ele" e nele),2presensa incontornveldo Outro no acto de nascimento do oema em Celan(no como "destinatrio", mas como motor de uma es-crita que, no se lhe diri indo o contm do a estafilosofia a sua dimenso tica, a esta oesia a sua dimen-so verdadeiramente humana. Ser neste sentido que Idse pode dizer que estamos perante uma filosofia, e uma Voesia, das "vtimas", ensada e feita ara elas e comelas. impossvel resistir ao apelo, convocao impe-rativa do rosto do Outro, rosto sem rosto, porque, paraLvinas, ele est para l das formas plsticas. O aconte-cimento que o poema, que o pensar, no ento umacto de vontade (de vontade de compreender) que partede um Sujeito: ''A deposio da soberania pelo eu arelao social com outrm, a relao des-inter-essada.Escrevo-a com trs palavras para realar a sada do Serque ela significa" (E. Lvinas, tica e Infinito). O aconte-cimento , isso sim, um irromper do mundo do outro

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    pelo meu prprio mundo adentro, representa a priorida-de absoluta do acontecer sem nome antes da compreenso.Por issono pode haver, no h, formalismo ou maneirismonesta potica, arbitrariedade ou circunstancialismo ftilnesta tica. O apelo do Outro irresistvel, avassalador,provoca no Eu, vulnervel a ele e impotente peranteele, a total insegurana, juntamente com a convicoabsoluta de que esse Outro uma presena incontor-nvel, ainda que "virtual" ( isto que Celan quer dizercom o muito citado smile do poema como mensagemna garrafa, no Discurso de Bremen). A potica de Celan uma potica de oficiante da experincia ("o motornunca aqui a prpria linguagem, mas sempre esomente um eu que fala a partir do ngulo particular dasua existncia": p. 30), a filosofia de Lvinas, esse outro"judeu Grande" que Celan no menciona nunca, masque o seu duplo filosfico, uma filosofia dainalienvel responsabilizao em relao ao Outro(Lvinas, no entanto, usa como epgrafe para umcaptulo central do seu livro Au trem en t q u 'tre ou au-delde l 'essence , em 1974, um verso do poema de Celan"Louvor da Distncia": "Sou tu quando sou eu").Ora, para Paul Celan, como para EmmanuelLvinas, rosto e discurso esto ligados. Rosto , comose disse, essencialmente significao em si, e no forma.O rosto no "visto", o rosto fala, diz Lvinas. E odiscurso no , para Celan, expresso monolgica desentido nico, como o era para as poticas modernasdo hermetismo e do formalismo, at ao Gottfried Benn

    dos anos cinquenta, o de "Problemas da Poesia".Discurso "resposta" ou "responsabilidade", e esta ,para o filsofo e para o poeta, o fundamento da "relaoautntica". por isso que a potica de Paul Celan, sendosecundria em relao sua poesia, importante para aclarificar num sentido antittico do das leituras redutorasque nela apenas exploram a dimenso lingustico-for-mal. Porque aqui estamos claramente perante ~otica da relao do a elo do grande mistrio doEncontro, numa poesia da qual, paradoxalmente, se dizque feita "em causa prpria" - mas agora essa causa tambm a "alheia", no sendo, afinal, j alheia, nemsequer causa, porque o prprio do Prprio a atenoao Outro, porque "Eu sou tu quando sou eu". Lvinaschamaria a isto - a esta proposta de superao daclssica dualidade sujeito-objecto ~ uma potica dodizer . "Sempre distingui no discurso o dizere o dito . Queo dizer deve implicar um dito, uma necessidade (... )Ma s o d iz er o fa c to de , d i an te do r o st o, eu no fi ca r s imp l esment ea con temp l-lo - respondo-lhe' ( tic a e I n fi n it o. Sublinhadomeu). Celan prefere o paradoxo: "O poema solitrio. solitrio e vai a caminho".

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    BIBLIOGRAFIA

    A bibliografia selectiva, incluindo apenas algunsttulos mais relevantes para a compreenso da poticade Paul Celan.

    BARRENTO, JoolYvette Centeno, Introduo a: P.Celan, Sete Rosas M ais T arde. Antologia Potica.Lisboa: Livros Cotovia 21996BAUMANN, Gerhard, En twrje , Zu r P oesie und Poetik.Munique: Fink 1976BEVILACQUA, Giuseppe, "Introduzione" a: P.c., IaVer it d ella P oe si a. Torino: Einaudi 1993, pp. VIl--xxxv

    BRODA, Martine, D an s Ia m ais on d e p er so nn e. E ss ai s urP au l C elan , Paris: Cerf 1986BUHR, Gerhard, Celans Poe t ik. Gttingen: Vandenhoeck&Ruprecht 1976BURGER, Hermann, P au l C elan. A uf d er Su ch e nac h d erv e r lo r en en Sp rache. Frankfurt: Fischer 1989COLIN, Amy, Pau l Celan: H i s P o et ic T r ad it io n s. Ph.D.,Yale University 1982CO LIN, Amy, Pau l C ela n. H o llo gr amm e d er D un kelhei t .Munique: Fink 1993

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