Resumo Da Poetica Aristoteles

download Resumo Da Poetica Aristoteles

of 23

Transcript of Resumo Da Poetica Aristoteles

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    1/23147

    Extradodolivro

    (ISBN:978-972-990006-8)

    GilVicente,

    Aut

    odaVisitao,

    Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    Apndice A Leitura daPotica de Aristteles

    Segundo se conhece, aPotica de Aristteles foi pela primeira vez impressaem latim, numa traduo de Giorgio Valla, em 1498, e seria a partir desta traduo,ou por hiptese de uma verso da poca, um originalem grego, que se deveria

    estudar o seu rasto na obra de Gil Vicente. Na manifesta impossibilidade de o fa-zermos, realizmos diversas leituras da Potica, por tradues (interpretaes)diferentes do texto do filsofo grego. Nas tradues sobre as quais nos debrumos,embora diferentes, encontrmos sempre constantes, mas o facto de observarmosconceitos que so trabalhados ou interpretados do mesmo modo, nem sempre querdizer correco em relao ao pensamento do autor, porque tambm se verifica ofacto de j ter havido traduo da traduo, da traduo...

    O facto de um tradutor consultar outras tradues, tanto serve para corrigir osdefeitos da derivados como para os pronunciar ainda mais. Os conceitos envolvidosdevem ser procurados na poca do texto original, e este um trabalho muito mais

    complexo a que o tradutor tem de estar atento. Muito mais quando deparamos comum texto da Grcia antiga envolvendo aPotica ou a Arte em geral.

    A nossa alternativa foi apresentarmos um breve resumo da nossa interpretaodo texto daPotica, que realizmos a partir da leitura de vrias tradues do textode Aristteles. No se trata de uma traduo, nem sequer de transcries, mas deuma leitura resumida que fizemos a partir da anlise do texto (nos textos dispon-veis), tendo em vista a descrio da arte dramtica que faz o autor daPotica.

    Os textos da Potica de Aristteles, que serviram de base ao nosso resumo,

    esto em espanhol (www.librodot.com), em francs (www.livropolis.com) e emingls (Poetic of Aristotle, Ed. John Stockdale, Piccadilly, London, 1792, by HenryJames Pye).

    Em todo o caso, no deixmos de confrontar este texto com as seguintes ediesespanhol e em portugus, e em alguns casos muito pontuais fazemos referncia edio da Gulbenkian.

    Escuela de Filosofa, Universidad ARCIS. www.philosophia.clEdio da Gulbenkian de 2004, traduo de Ana Maria Valente.Edio da Imprensa Nacional, 7 Ed. 2003, traduo de Eudoro de Sousa.

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    2/23148

    GilVicente,Aut

    odaVisitao,Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    Alertas prvios

    Considerando que podemos estar a cometer algum grave erro de interpretao,

    para uma melhor aferio das anlises realizadas sobre as obras dramticas de GilVicente, apresentamos aqui um resumo, do que sobre a tragdia encontrmos naPotica. Utilizamos palavras mais actuais, sobretudo naqueles termos que, a nossover, melhor se adequam ao pensamento do autor dos autos. Teremos em especialateno questes como a mimesis, mas deixamos a sua discusso para outro lugarou ocasio mais apropriada, diremos apenas que, utilizamos o termo figuraremvez de imitar, e utilizamo-lo de uma forma operacional, nas situaes em que fi-gura no texto, como captar a realidade, comoformulao de uma ideia ou viso,que configura uma realidade de facto, ou possvel ou imaginria, etc., no apenas

    porque o consideramos tambm mais fivel aos desgnios do autor grego, masporque no contexto das vrias artes, tambm ele corresponde s nossas ideias sobrea generalidade das artes, do engenho e capacidade de inveno, sendo o termo que como oformularpara o exprimir melhor nos parece corresponder e adequaraos conceitos que envolvem as actividades e processos criativos do pensamentohumano. Pelo que ns hoje entendemos, quem querimitar,figura alguma coisa noseu pensamento figura uma imagem assim somos capazes de compreender queopensamento figurativo, deste ou de qualquer outro modo criado e desenvolvido,deve ter os seus mecanismos e procedimentos, como tambm as suas formas maisapropriadas de expresso, na construo e formulao de sistemas organizados emconjuntos estruturados pelas aces vividas, numa dinmica de imagens compostasem espaos e tempo prprios, pelos mais adequados meios utilizados e pelospro-cessos intrnsecos acumulados e estruturados na memria do ser pensante.

    H ainda a considerar o entendimento do termo catarsePurgar, ainda que em sentido figurado, o termo mais comum para traduzir (a

    catarse) a resoluo emocionalda situao dramtica derivada de uma tragdia.Contudo, pela Potica, na arte dramtica (no Teatro), nem a tragdia uma

    tragdia real, nem o temor nem a compaixo, so outros que no sejam os criados

    (figurados) na mente humana ao assistir a uma aco dramtica que desenvolveum drama trgico, numafigurao da realidade, e portanto,purgarresulta numafigura de estilo, diramos que de uma outra figura de estilo.

    O temore a compaixo trgicos, da arte dramtica, sofigurativos, no socausados pelas nossas prprias ligaes afectivas, so em cada momento, a possvelfigurao delas, sero sempre um resultado do nosso Ver, pela nossa leitura, danossafigurada entrada (imitada, vivida em pensamento) no mundofigurativo daaco dramtica da pea, da sua aceitao, vivncia e compreenso E assim sertambm a catarse que se deve produzir no nosso esprito, esta catarse vai acontecer

    com a tomada de conscincia (clarividncia) do nosso Ser quando alcanar Ver perceber e compreender o mago (a hiponia grega) da pea numa leitura com-

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    3/23149

    Extradodolivro

    (ISBN:978-972-990006-8)

    GilVicente,

    Aut

    odaVisitao,

    Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    pleta do seu mythos, com a resoluo da situaofigurativa criada na aco dra-mtica. O sentirdesta catarse (resoluo emocional) realiza-se no pensamento doleitor(espectador) da aco dramtica, porquantopensar e sentirso uma e mes-ma entidade. O seu sentido est na continuidade da aco dramtica e do seu de-

    senlace, encontra-se no desfecho que o criador da obra, atravs das peripcias,soube criar para fechar a pea, numa reviravolta capaz de resolver as situaesintroduzidas durante as partes precedentes, de suposto (porquefigurativos) temore compaixo, que decorrem da concepo do mythos da pea. Esta catarse estassim dependente da mestria colocada nas formuladas peripcias, que culminamnum conclusivo reconhecimento (por clarividncia), tal como o recordarde algo,uma tomada de conscincia de uma recordao vivida por parte do pblico for-necido pelas mudanas de rumo verificadas com o desenlace. 1

    Mais complexo ser o conceito de reconhecimento, que Aristteles subdivideem diversos tipos para melhor especificar aquele que considera ser mais digno: omelhor dos reconhecimentos aquele quesurge dos prprios incidentes em si mes-mos, aquele que surge como concluso possvel e necessria da aco figurativa,assim os deste tipo, so os nicos reconhecimentos independentes do artifcio...

    1 Sobre o reconhecimento (anagnorisis), devemos tecer algumas consideraes:Muitos autores, incluindo alguns tradutores da Potica, pretendem ver o reconhecimento

    apenas como algo que ocorre na personagem e no como algo a acontecer na mente do espectador.Para ns a questo trivial, to clara que no insistimos mais do que j fizemos, linhas atrs,seno com mais esta anotao.

    A todos evidente que as personagens de um drama so apenasfingimento, e s isso bastariapara compreendermos que todas aquelas emoes e pensamentos, sobretudo as ideias, queencontramos num drama, ou em qualquer pea, so para acontecer no pblico que assiste ou las peas de teatro, que assim as deve confrontar com o comportamento das personagens (a suaaco), na aco dramtica em causa, gerando a partir desse confronto as suas concluses, edepois, o reconhecimento do mythos, o mais importante dos reconhecimentos.

    Deste princpio, e pela sua evidncia, parte Aristteles desde o incio daPotica, e portantono tem de o reafirmar.

    Plato noon tornou esta questo bem evidente. on veste a pele das personagens, vivifica apersonagem, d vida obra pelas figuras a que d corpo, contudo, com a finalidade de incorporaro pblico naquelafora magntica, no esprito de corpo com que o mythos da obra e o seu autor

    pretendem envolver o seu pblico, dominar o pblico, ao criar aquela fantasia, onde as personagensso tambm e apenas fantasias. Mas para serem vividas s e apenas pelo pblico! Ao introduziro pblico naquela aco, incorporando aqueles acontecimentos, vivendo a sua figurao, parti-cipando mental e emotivamente na obra, ser ao pblico que se requer o reconhecimento, porqueas figuras (personagens) so fantasias, e os actores fingem, pois antes da apresentao da pea jsabem o seu finalizar, e como on, espreitam pelo canto do olho para ver a reaco do pblico.

    Numa pea h diversos tipos de reconhecimentos, sempre pelos protagonistas, destinadosao pblico (ao leitor), para desencadear e manter a sua ateno a para uma concertao no seuacompanhar da trama da pea, e em ltimo caso, como ajuda ao reconhecimento do mythos.

    Mais recentemente o romance, ou novela policial, encontrou uma forma de introduzir estereconhecimento, embora menos emocional e menos dramtico. Que leitor no espera descobrir(reconhecer) o assassino antes que o faa o detective ou o inspector? E que prazer no alcanaquando isso acontece? Seria demasiado bizarro pensarmos que oprazer inteligvel, bem real, doreconhecimento se destina figura fantasiada do investigador, a Poirot, e no ao pblico leitorque incorpora a obra e o seu heri, mesmo quando o leitor no identifica antes o criminoso.

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    4/23150

    GilVicente,Aut

    odaVisitao,Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    Surgem no esprito (no pensamento, comopensar e sentir) com o culminar da aco,o finalizar, a resoluo de um conflito, etc..

    Podemos relacionar este reconhecimento, nos seus estdios mais primitivos,

    com o reconhecimento que a criana de poucos meses (3 a 6 meses) capaz de re-alizar, ao nvel da imagem da me, ou do pai ou daqueles entes que lhe so maisprximos, ao nvel de uma imagem ainda muito longe da funo simblica. Defi-nimos esta imagem, como uma imagem prsimblica, estabelecendo uma diferen-ciao clara entre uma memria de reconhecimento e uma memria de evocao,sendo esta necessariamentesimblica. Esta capacidade humana de captar e assimi-lar, e de certo modo compreender, o mundo exterior acreditamos perdurar at morte do indivduo e constituir o suporte que oferece significaes ao mundo sim-

    blico.Esta imagem envolve uma diferenciao entre imagem e forma, entre a imagem

    e a suaformulao simblica a sua presentao mental como sensao indefinidana ausncia do objecto (a imagem), e a suaformulao simblica (aforma), uma suarepresentao mental (a evocao, sob forma simblica) repetimos, entre a imagemdo reconhecimento pela presena do objecto referenciado, e uma forma do objecto,

    pela sua representao simblica.A primeira criao, produto do indivduo; a segunda um compromisso entre

    a sua produo pessoal e umaforma diferenciada no mundo exterior, constituindo-sepor uma formulao da primeira, realizada mediante uma linguagem, numa estrei-ta aliana da imagem com elementos do universo simblico aos quais procuramosdar significado. Ambas fazem parte da nossa aprendizagem: uma nossa constru-

    o genuna, a outra o invlucro que encontrmos mais medida para ser perce-bida, de modo semelhante (inverso simtrico), pelos outros.A primeira surge-nos quase indefinida, quase imperceptvel, de facto s ser

    evocvel mascarando-se, s ser evocvel ao adquirir uma representao, aps serformulada por intermdio de um compromisso (sem um ponto inicial e sem baliza)entre a imagem e uma das formas adquiridas (interiorizadas tambm como imagens)que a possa interpretaresignificar, adquirindo umaforma, que pode ser: um bre-ve indcio, uma configurao simblica abstracta ou um qualquer sinal, ou signo,algo que aos outros lhes sirva para a referenciar, sempre numa aliana de comuni-cao, onde o sujeito queformula a imagem, faz uso daquele algo comum ao meio

    social em que se encontra como mscara para a sua imagemO universo figurativo criado pelo autor de uma obra confronta-se com o nossouniverso interior, com as nossas vivncias, porques estas do significado nossa

    percepo da realidade, do significado s formas do saber adquirido, transforman-do em conhecimento as informaes adquiridas ou tacitamente recebidas. E estasnossas vivncias so as nossas imagens, pr simblicas, desprovidas de forma, queapenas nos possibilitam um reconhecimento este reconhecimento, anterior aqualquer conhecimento consciente (evocvel ou simblico), constituindo um con-ceito muito semelhante ao mesmo a que nos conduz o conceito de reminiscncia dePlato e nunca uma evocao mental.

    Perante uma obra de Arte, um observador atribui os significados quela formaseguindo as suas prprias imagens (vivncias, cultura), por um confronto destascom as imagens em processo de assimilao que adquire a cada momento na pre-

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    5/23151

    Extradodolivro

    (ISBN:978-972-990006-8)

    GilVicente,

    Aut

    odaVisitao,

    Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    sena da forma daquela obra de Arte, e de todas as formas que constituem suaspartes, e pelas identificaes efectuadas, por semelhanas e diferenciao progres-siva, o sujeito conduzido a uma compreenso da obra na sua dialctica prpria,descobrindo ou no o seu sentido e contedos por evidncia clara.

    Aquilo que Aristteles designou como o melhor dos reconhecimentos, surge noconfronto do mundo interiorizado pelo sujeito, espectador ou leitor (as suas imagens

    significaes a sua cultura), com o universofigurativo da obra de Arte, quandoele reconhece que aquela figurao tem uma correspondncia exacta com a visoda realidade, identificada por aquelarealidade de facto criada pela aco dram-tica. Assim, este reconhecimento pelo mythos, transporta o sujeito a uma formasuperior de catarse, oferecendo uma maior satisfao interior, mais espiritual, um

    prazer inteligvel, belo e incomparvel.

    Ao abordar aPotica, lembramos que o conceito de tragdia (no teatro), hojecorrente, ou tal como foi e se desenvolveu, pode estar longe do conceito de tragdiaapresentado por Aristteles. Interessa-nos neste estudo o conceito de tragdia quefoi dado naPotica, todavia, tal como seria considerado no incio do sculo xvi, eno o conceito de tragdia dado nos nossos dias, j reelaborado pelas interpretaesmaneiristas, classicistas, barrocas, etc..

    O conceito de tragdia, da tragdia clssica, ter sido entretanto enriquecido(alterado), primeiro atravs da cultura latina, romana (Horcio, referido com maisfrequncia), e depois, com o classicismo (e todos os maneirismos) em meados dosculo xvi, no se detendo por a e at aos nossos dias.

    Sobre esta questo da tragdia clssica, foi importante para ns, encontrarmosexpressa na edio da Gulbenkian, daPotica, no prefcio, a questo das traduesabusivas e da chamada lei das trs unidades, que segundo nos dizem agora, umaconsequncia das ms tradues, sobretudo da de Castelvetro (em 1570), diz-nosMaria Helena da Rocha Pereira: Volvida em lei inviolvel durante o Renascimento,2e o Neoclassicismo, ser Lessing um dos primeiros a considerar que s o textorelativo unidade de aco era determinante. E na nota nmero dois, que tende acompletar este texto, diz-nos que:A unidade de aco efectivamente preceituadano cap.8, especialmente em 1451a 16-19. A de tempo foi deduzida do trecho do cap.5em que se compara a ausncia de limitaes dessa ordem na epopeia com as datragdia (1449b 12-14). A nica possvel aluso unidade de lugar estaria no cap.24(1459b 24-26).

    2 Em nossa opinio, onde estRenascimento, devia ler-se mais apropriadamente Classicismo

    ouManeirismo clssico. J tivemos ocasio de referir e demonstrar, constatmos e ainda vere-mos no decorrer do nosso trabalho, que a Renascena deu um outro entendimento Potica deAristteles.

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    6/23152

    GilVicente,Aut

    odaVisitao,Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    Resumo daPotica,o objecto do drama a aco

    ...assim comea Aristteles aPotica:

    Como o nosso tema a potica propomo-nos falar no s da potica em si, mastambm das suas espcies e das suas respectivas caractersticas: do mythos (datrama requerida) para compor um belo poema; do nmero e da natureza das par-tes constitutivas de um poema, e tambm dos restantes aspectos que dizem respei-to a esta investigao.

    Seguindo pois a ordem natural e comeando pelas primeiras observaes debase, verificamos que [as tcnicas das Musas:] a epopeia e a poesia trgica, assimcomo a comdia, o ditirambo e, em grande parte a tcnica de tocar a flauta e actara, consideradas de um modo geral, so todas figuraes da realidade. Mas,ao mesmo tempo diferem entre si em trs aspectos: seja pela diferente classe de

    meios, seja pelos objectos, seja ainda pelo modo como realizam as suas figuraes.[Como a pintura e a escultura seguindo Plato]Pois assim como a cor e a

    forma so usadas como meios por quem (seja por uma tcnica, seja pela experi-ncia prpria sua prtica constante), figura e desenha diversos objectos median-te a sua ajuda; e como a voz empregada por outros; assim tambm, para o grupodas tcnicas que mencionamos,[as tcnicas das Musas, so as susceptveis de criarum esprito de corpo envolvendo o seu pblico]os meios so, na sua generalidade,a linguagem, a harmonia e o ritmo, empregues muito simplesmente em si mesmo,ou em determinadas combinaes.

    Antes de entrar na sua exposio analtica sobre a tragdia, o autor da Poticaestabelece algumas diferenas entre as artes que constituem objecto do seu estudo,observaes resultantes da anlise das obras que serviram de base a esse estudo, oque poderia sugerir um estudo prvio sobre as artes plsticas, ou pelo menos sobrea pintura, seguindo alguma obra de Plato, seu mestre, pois Aristteles, de modopersistente, utiliza a pintura como suporte, e at como bitola, para muitas das suasconsideraes ao longo de todo o texto do seu trabalho.

    No contexto da anlise comparativa inicial entre as tcnicas dapotica, e antesde entrar no tratamento especfico da tragdia, pronuncia-se sobre algumas das

    suas particularidades mais abrangentes, como o tempo (durao da aco) e ometro a mtrica dos versos e no mais voltar a referir-se ao tempo na tragdia.Apresenta-nos as seguintes observaes sobre a tragdia:1) Quanto mtrica dos versos, a prpria natureza se encarregou de encontrar

    o que mais adequado tragdia, isto , o jmbico [na lngua grega da poca],segundo sabemos o mais flexvel de todos os metros;

    2) Quanto ao modo como se diferencia da epopeia, a tragdia procura manter-se, tanto quanto possvel, dentro de um ciclo solar, ou nesta medida aproximada;

    3) Quanto a uma riqueza comparativa entre a epopeia e a tragdia, verifica-se

    ainda que, a tragdia contm todos os elementos da epopeia, mas esta no compor-ta todos os da tragdia.

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    7/23153

    Extradodolivro

    (ISBN:978-972-990006-8)

    GilVicente,

    Aut

    odaVisitao,

    Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    O autor daPotica especifica ainda antes, que as diferenas entre as artes queinvestiga, no que respeita aos processos de figurao (mimesis), se concretizam:pela definio dos seus objectos; pelos meios que utilizam; e pelos modos comoosfiguram (narram, apresentam ou representam). Assim:

    1) Quanto aos modos, estabelece ento:(a) a diferena entre a comdia e a tragdia: enquanto a tragdiafigura o serhumano, o Homem no seu melhor, idealizado; a comdia figura no seu pior, cari-caturado; astira apresenta oufigura o Homem tal como .

    (b) nas artes daPotica a sua semelhana est no drama: o elemento que cons-titui trao comum da tragdia e comdia, a aco dramtica figura as acesenquanto se desenvolvem; nas formas de arte onde se representam aces humanas,a actuao das personagens tem por objectivo formular o mythos, no a realidadeou a histria real.

    2) Quanto aos meios, que so o ritmo, a melodia e o verso, so aparentemente

    os mesmos para a tragdia e comdia, (e para a stira) verificando-se a diferenano tipo de verso utilizado, na sua mtrica, mas esta uma diferena no vinculati-va, e pode ser explicada pelas suas diferentes origens.

    3) Quanto definio dos objectos, finalmente, no h diferena alguma, ouno se manifesta qualquer diferena entre as obras dramticas, sejam a tragdia, acomdia ou a stira, o seu objecto sempre a aco dramtica.

    Convm ter presente que aPotica, segundo alguns dos especialistas, no seriaum texto final, acabado, seria talvez um esboo para as suas aulas, talvez um ras-cunho, alm disso um texto onde faltam algumas partes. Alguns dos estudiosos

    chegam a pensar que haveria uma segunda parte que trataria da comdia, uma vezque no texto que se conhece s so tratadas de modo directo, a tragdia e a epopeia,e o filsofo refere aqui e noutras obras, que tratar da comdia. Alguns outrosconsideram que ao expor sobre a tragdia e a epopeia est a diferenciar o drama danarrativa, e que como no drama alm da tragdia se inclui a comdia e a stira nohaveria lugar a outro livro. Continua em aberto a discusso sobre esta questo

    O filsofo estabeleceu logo no incio as diferenas e tambm assemelhanasmais gerais entre a comdia, a tragdia e a epopeia, e tambm astira, e no de-senrolar da sua exposio sobre a tragdia estabelece por vezes a sua semelhana

    com a comdia, pelo que, num entendimento perfilhado por muitos, tambm nsacreditamos que o autor est de facto a falar-nos da arte dramtica em geral eda tragdia em especial, apontando desde logo as diferenas, e por vezes algumassemelhanas, quando considerou necessrio, o que no invalida que pudesse havermais alguns captulos sobre a comdia.

    Entramos no estudo da tragdia no captulo 6A tragdia a figurao de uma aco elevada, cuja magnitude se completa

    em si mesma (na obra), enriquecida na sua linguagem com adornos artsticos

    adequados para as diversas partes da obra, formulando o mythos a parte prin-cipal ou a essncia da obra, a sua alma no de forma narrativa, mas sob a forma

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    8/23154

    GilVicente,Aut

    odaVisitao,Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    de drama. Sendo o drama constitudo por um complexo de enlaces de alguns in-cidentes que visam provocar o temore a compaixo e que requerem, na sua se-quncia, o desencadear da catarse a purgao, por via inteligvel, das emoescriadas por essa mesma via como consequncia do reconhecimento do mythos

    noprocesso de desenlace.Poruma linguagem com adornos artsticos, quer apenas dizer que com ritmo,

    harmonia e melodia (musicalidade); poradequados para as diversas partes daobra, quer dizer que alguns se produzem apenas por meio de versos, e outros coma ajuda de canes.

    Quando Aristteles afirma: com adornos artsticos; evidente que no pos-svel interpretarmos porcom ornamentos ou quaisquer outras coisas do gnero nem

    podemos entender como acrescento de quaisquer complementos quer dizer, comoele prprio esclarece, o que quase tudo: que a figurao deve ser formulada na

    sua linguagem prpria, com ritmo, harmonia e melodia (musicalidade)...

    A aco dramticaOra bem, dado que no drama, aquilo que se representa so aces, deduz-se

    em primeiro lugar que, o espectculo, a entrada, assim como as actividades dosactores em cena, tudo o que se passa no local da representao (aquilo a que seassiste), constitui parte do todo, dafigurao dramtica, e em segundo lugar quea melodia e a elocuo, as duas, so o meio pelo qualse completa e configura aaco. Aqui, porelocuo, pretende-se dizer s isto, a composio dos versos, e

    pormelodia, aquilo que se entende sem o esforo que requeira explicao (a m-sica, harmonia ou musicalidade).

    Como a tragdia afigurao de uma aco que representa um acontecimen-to, uma realizao, ou qualquer facto resultado de uma interveno ou aco hu-mana, essa tal aco figurada requer que as personagens sejam apropriadas, estasdevem possuir as suas qualidades prprias, distintivas tanto no seu carcter, (noseu modo de ser, de actuar, hbitos, etc., na sua personalidade), como nopensa-mento (as suas ideias e sentir emocional), posto que a partir destes aspectos es-pecficos, destes factores humanos, que atribumos certas qualidades s figuras

    criadas, os protagonistas que se apresentam, como ao que eles decidem ou fazem,como ao seu modo de agir, como se comportam, etc., e portanto, no que respeitas personagens, haver duas coisas que sero acausa do seu comportamento nodrama, ou a causa das suas aces: (1) o seu pensamento (sentir e pensar), assuasideias; (2) o seu carcter. Em consequncia, estas duas particularidades sero asdeterminantes do xito ou fracasso das suas vidas na aco dramtica em causa.

    Entre a aco dramtica e o mythos

    A aco, constituindo tudo aquilo que se faz e realiza em cena, apresenta-seno drama pelo mythos, que ele prprio, provido de uma trama. O mythos, no

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    9/23155

    Extradodolivro

    (ISBN:978-972-990006-8)

    GilVicente,

    Aut

    odaVisitao,

    Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    nosso preciso sentido do termo, na sua forma mais simples, constitui: a combinaodos incidentes que compem o decurso dos acontecimentos apresentados; enquan-to que o carcter, o que implica atribuir certas qualidades morais s personagens,e o seupensamento, observa-se ou manifesta-se em tudo o que diz, quando afirma

    uma ideia, indicia uma viso, ou exprime o aspecto particular de uma questo, ouquem sabe, quando enuncia uma verdade mais geral ou universal.

    Em termos qualitativos, observamosseis partes constituintes numa tragdia.No seu corpo, em todo o seu conjunto, enunciamos essas seis partes constituintessegundo as seguintes qualidades:

    (1) o mythos, e pelo seu esquema abstracto, a trama;(2) osprotagonistas, as personagens providas de carcter;(3) opensamento e sentir, que se fundem na poca;(4) a elocuo e a dico;

    (5) e a melodia, e o ritmo, a msica;(6) o espectculo.Destas partes constituintes, duas derivam dos meios utilizados, uma outra par-

    te, do modo como usamos os meios, e as outras trs partes, derivam do prprioobjecto da figurao dramtica. E no h mais nada para alm destas seis partes.

    De todos estes elementos constituintes da tragdia, quase todos os dramaturgosfizeram o devido uso, pois verificmos que qualquer drama admite o espectculo,o protagonista (carcter), o mythos, a elocuo, a melodia e o pensamento.

    A mais importante das seis partes constituintes a combinao dos incidentes:

    o mythos. A tragdia , na sua essncia, uma figurao, no das pessoas, mas daaco e da vida, da felicidade e da desdita. Toda a felicidade do Homem, ou a suadesgraa (a desdita), derivam do desenrolar de acontecimentos, que assumem formase dimenses que so consequncia da sua prtica como indivduo actuante, peloque so sempre resultado de aces humanas: pois o fim para o qual ns vivemos uma espcie de actividade e no uma qualidade.

    O protagonista pode incluir em si mesmo todas as qualidades, porm como pelas aces pelo nosso comportamento ou actuao, pelo que ns fazemos quesomos felizes ou no, tambm, e por consequncia, num drama,uma personagemno actua para representar um carcter, cada personagem inclui um carcter emfuno da aco. De modo que, a aco em si mesma, o seu mythos, que consti-tui o fim ou propsito da tragdia, e este fim o principal, o que essencial deentre as suas partes constituintes. Alm disso, uma tragedia impossvel sem aco,ainda que as possa haver sem carcter.

    Podemos encontrar e concordar com uma srie de discursos caractersticos damais alta e fina expresso na tcnica da tragdia, no que respeita elocuo e aopensamento, e apesar disso verificarmos ser frequente o seu fracasso na produodo verdadeiro efeito trgico. No obstante, verificamos muito maior xito com umatragdia que, por inferior que seja nestes aspectos, possua em si mesma uma trama

    bem arquitectada uma combinao de incidentes, agregando as mais poderosastcnicas de provocao da atraco na tragdia, incluindo as peripcias e os

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    10/23156

    GilVicente,Aut

    odaVisitao,Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    reconhecimentos, que so as partes constituintes do mythos, dos incidentes e dosepisdios na sua combinao.

    Constituintes da tragdia: o mythos a alma da tragdiaSustentamos por consequncia, que em primeiro lugar, o essencial, a vida e aalma da tragdia, por assim dizer, est no (1) mythos, e que os (2)protagonistasaparecem depois, portanto, que a definio das personagens surge em segundolugar. Com efeito, faa-se o paralelo com a pintura, onde as mais belas cores colo-cadas sem ordem, no nos do o mesmo prazer que d um simples esboo, a pretoe branco, de um retrato. Sublinhamos que a tragedia , antes de mais, uma figura-o da aco, e sobretudo pela aco quefigura os seus agentes actuantes.

    Em terceiro lugarsurge o (3)pensamento (as ideias e o sentir da personagem,e a sua identificao com o carcter), isto , poder expressar o que se deve dizer,ou o que adequado para a ocasio, (nos termos da personagem definida). Estaparte o que nos discursos da tragdia cai dentro da arte da poltica e da retrica;pois os velhos poetas fazem falar as suas personagens como estadistas e os moder-nos como retricos. Mas, no se deve confundir isto com o carcter! No drama, ocarcter o que revela o propsito moral dos protagonistas, ou seja, a capacidadede decidir e de fazer escolhas, de avaliar, de trabalhar, de ser justo, franco, amigo,etc., ou o inverso, aquele que evita, o indeciso, etc., daqui que no haja lugar parao carcter num discurso sobre um tema que seja por completo indiferente. O pen-samento (e o sentir), para alm disso, evidencia-se em tudo o que dizem as perso-

    nagens quando aceitam ou repudiam algum aspecto particular ou enunciam algumaproposio mais universal.

    Em seguida, o quarto lugar pertence aos elementos literrios..., ocupado pela(4) elocuo e dico que, como se explicou antes, constituem a expresso dopensamento em palavras como resultante da sua prtica, ou seja, a elocuo naformulao do pensamento em termos do texto do discurso, e a dico na sua ex-presso verbal, no que se refere ao verso como prosa.

    No que respeita aos dois restantes constituintes da tragdia, como partes dotodo, (5) a melodia o mais elevado dos adornos da tragdia, e (6) o espectculo,

    ainda que seja uma boa atraco, o menos importante de todos os seus constituin-tes e tem escassa relao com as tcnicas da poesia (da arte dramtica). Pois oefeito trgico ser possvel de alcanar mesmo sem uma apresentao pblica daobra, sem a sua encenao e sem a sua representao, sem actores. Alm disso, aencenao de um espectculo ser sempre mais um problema pertencente tcni-ca da cenografia, do que a alguma tcnica dos poetas (dramaturgos).

    Construo adequada do mythos: ordem e dimensoDistinguidas as partes constituintes, referimos agora a construo adequada do

    mythos (analisar a estruturao da trama), porque este sem dvida o primeiro e omais importante constituinte da tragdia.

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    11/23157

    Extradodolivro

    (ISBN:978-972-990006-8)

    GilVicente,

    Aut

    odaVisitao,

    Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    Entendemos que uma tragdia afigurao de uma aco que se completa emsi mesma, como um todo de certa magnitude, pois por falar nisso, um todo podecarecer de magnitude. Ora bem, um todo aquilo que possui princpio, meio e fim.Um princpio aquilo que necessariamente no provm depois de algo mais, se

    bem que, algo mais existe ou acontece depois disso. O fim, pelo contrrio, o quenaturalmente se sucede a algo mais, ou seja, como uma consequncia necessriaou usual, e no seguido por mais nada. O meio aquilo que sucede aps o prin-cpio e antecede o fim. Uma trama bem construda, por conseguinte, no podecomear ou terminar num ponto em que qualquer um deseje, nem num ponto arbi-trrio; o comeo e o fim do mythos devem ser desta forma justamente descrita.

    Assim, uma aco, tanto como uma criatura bela, tanto como uma criatura viva,constituindo um conjunto completo e uno, sendo o todo composto pelas partes, tersempre de ter um certo ordenamento e coordenao das suas partes, como tambm

    tem de possuir certa magnitude.A beleza um problema de ordem e dimenso, portanto impossvel de ver (1)numa criatura insignificante, porque a nossa percepo no teria possibilidade dea distinguir quando se apresentasse; ou (2) numa criatura de enormes dimenses,porque neste caso, em lugar de ver o objecto num momento apropriado, a unidadeda sua totalidade seria indistinta ao observador, o seu todo ficaria imperceptvel.

    Do mesmo modo que uma bela criatura viva tem um determinado tamanho,um conjunto um todo belo deve ser feito de partes ordenadas e dimensionadase ter um tamanho que, no seu todo, possa ser abrangido pelo nosso olhar. De igual

    modo uma trama ou argumento, um mythos, ter que possuir uma certa extenso,se bem que, desde o princpio ao fim, seja possvel de ser apreendido pela memriano seu todo uno, em toda a sua extenso. Todavia, o limite estabelecido pelo actu-al estado de coisas, ser, quanto mais extenso for o mythos, desde que permaneacoerente e compreensvel com o seu todo uno, uma obra ser tanto mais bela quan-to a razo da sua magnitude. Contudo, seguindo uma frmula geral mais comum:basta como limite para a constituio do mythos,uma extenso que permita aoheri passar por uma srie de provveis e ou necessrias etapas, indo da desdita felicidade, ou da felicidade desgraa.

    Unidade do mythos da obra dramtica unidade de acoA unidade do mythos no consiste, segundo alguns supem, em ter um homem

    como um heri, pois a vida de um mesmo homem compreende um grande nmeroou infinidade de acontecimentos que no formam uma unidade, e de igual modoexistem muitas aces de um indivduo que no se podem reunir para formar umaaco nica. Homero, sem dvida que entendeu este aspecto muito bem, pois quepela tcnica, e pelo seu talento, justamente, no se excedeu descrevendo todos osdetalhes, pois, ao escrever a Odisseia no permitiu que o poema registasse tudo oque por certo aconteceu ao heri; tomou como tema da Odisseia, como tambm daIlada, uma aco com uma unidade do tipo que temos descrito.

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    12/23158

    GilVicente,Aut

    odaVisitao,Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    Como nas outras tcnicasfigurativas, afigurao resulta sempre na construode um todo, objecto uno, o mesmo acontece com as tcnicas da potica. E assim,o mythos comofigurao da aco, deve representaruma aco como um todouno, completo em si mesmo, com todos os diversos incidentes (inseridos em epi-

    sdios) to intimamente relacionados entre si, e de tal modo, que a transposio oua eliminao de qualquer deles, distorce ou disforma o conjunto total da obra. As-sim tambm, tudo aquilo que pela sua presena, ou ausncia, no provoca diferen-a perceptvel, no constitui parte real do todo.

    Fundamentos de suporte do mythos: Histria e Poesia = figuraoDo que dissemos se depreende que, a tarefa dopoeta no consiste em descrever

    o que aconteceu, seno o que poderia haver ocorrido, dizendo de outro modo: tan-to o que seria possvel acontecer como o provvel ou necessrio que acontecesse.

    A distino entre o historiador e o poeta no consiste em que um escreve emprosa e o outro em verso, pois podemos transferir para verso a obra de Herodoto,e ela continuar pertencendo disciplina de histria. A diferena reside em que umrelata o que sucedeu, e o outro o que poderia haver acontecido, daqui que a Poesia(a Arte), seja mais filosfica e de maior dignidade que a Histria, posto que as suasproposies so do tipo universais, enquanto que as da Histria so particulares.

    Especificando: por proposies universais entendemos a classe de afirmaes,e actos, que certo tipo de pessoas (figuradas) diro ou que faro numa situaodada, tal a finalidade da poesia (do drama), ainda que esta atribua nomes prprios

    aos protagonistas. Isto mesmo ficou claro na comdia, pois os poetas cmicosconstruram os seus mythos a partir de acontecimentos sucedidos (e por isso sem-pre possveis), e logo incorporaram outros nomes segundo a sua vontade. Na tra-gdia, os poetas aderiram todavia aos nomes histricos, e por esta razo, ao que possvel suceder, convence porque fcil de acreditar, porquanto se no podemosestar seguros da possibilidade que algo venha ou no a suceder, o que j aconteceu desde logo possvel, posto que no haveria sucedido se o no houvesse sido.

    Do exposto, resulta claro e evidente, que o poeta deve ser mais o autor dos seusmythos ou tramas, que dos seus versos, sobretudo porque ele um poeta em virtu-de dos elementos figurativos do seu trabalho, que so as aces que configura,este o objecto do seu trabalho.

    O poeta umcriador de imagens antes de o ser do texto, embora s as formu-le plenamente pelo texto que cria e as cria. E se adopta um tema da histria real, seele escreve sobre factos reais, nem por isso menos poeta, j que alguns factoshistricos podem, e muito bem, estar ou esto, na ordem provvel e possvel dosacontecimentos, pois como dissemos: o que j aconteceu desde logo possvel,posto que no haveria sucedido se o no houvesse sido, e nesse sentido,para essesfactos, e paraessa poca, ele resulta ser o seu poeta.

    Em mythos simples, verifica-se pior resultado quando as aces so episdicas.

    Chamo episdico ao tipo de mythos em que no existe nenhuma probabilidade nemnecessidade na sequncia dos episdios. O que pode acontecer se o mythos se deve

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    13/23159

    Extradodolivro

    (ISBN:978-972-990006-8)

    GilVicente,

    Aut

    odaVisitao,

    Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    a mau poeta, pela incapacidade de o construir, ou quando de bons poetas, as suasobras so mal apresentadas por culpa dos actores (ou encenadores).

    A tragdia, por conseguinte, uma figurao de uma aco que se completa

    num todo uno, sendo composta de episdios e incidentes que provocam o temor ea compaixo. Um incidente tem um mximo efeito sobre a mente humana quandoocorre de um modo inesperado, sobretudo quando sucede contra a expectativa, enestas condies, resulta mais maravilhoso do que se sucedesse por uma vontadeprpria ou mesmo por causalidade. Com efeito, os factos ocasionais surgem maisassombrosos quando parecem acontecer por qualquer desgnio, como no exemplo:emArgos, a esttua de Mtis matou o homem que havia causado a morte de Mtis,ao cair por acaso sobre ele quando assistia a um festival.

    Mythos simples e complexosOs mythos podem ser simples ou complexos, pois as aces que representam

    obedecem, por necessidade e naturalmente, a esta dupla descrio da realidade.As aces simples processam-se de uma forma que definimos como um todo

    completo e contnuo coerente; chamo (1) simples, quando na aco a reviravoltano destino do heri se realiza semperipcia nem reconhecimento; e (2) complexaquando ela encerra uma ou outra destas desventuras, ou at ambas.

    Estas partes de uma aco, aperipcia e ou o reconhecimento, devem surgirna tragdia pela prpria estrutura do mythos, de modo que possam resultar comouma consequncia necessria ou provvel do que ter sucedido anteriormente.Neste sentido, h que tomar em ateno que existe uma enorme diferena entre algoque acontece por causa de alguma coisa, e algo que acontece depois de uma coisa

    Tcnicas de figurao do mythos: peripcia e reconhecimento Aperipcia uma reviravolta no encaminhamento da aco, a troca de um

    estado de coisas para o oposto, o qual se configura e, segundo j dissemos, seconforma de acordo com a probabilidade e ou necessidade dos acontecimentos.

    O reconhecimento tambm, como a prpria palavra indica, uma reviravolta,uma troca da ignorncia pelo conhecimento, que assim leva ao amor, ou ao dioentre as personagens em causa, fadados pela boa ou pela m sorte. A forma maisrefinada de reconhecimento a que se logra mediante peripcias, como aquelasque se produzem emdipo-Rei.

    A forma do reconhecimento com peripcia, suscitar, ora a compaixo ora otemor, pois so esses os tipos de incidentes que a tragdia est preparada para re-presentar, e que serviro para provocar o fim feliz ou a desdita final.

    O reconhecimento, caso se trate de pessoas, pode ser a de uma parte outra,

    em que a segunda conhecida, ou que as partes, se tenham de descobrir entre elas.

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    14/23160

    GilVicente,Aut

    odaVisitao,Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    Estes dois elementos do mythos, aperipcia e o reconhecimento, constituem osincidentes que se desenrolam nos episdios de uma aco dramtica. Um terceiroelemento o sofrimento, que podemos definir como um acto, ou evento includona aco, ou mesmo narrado, um acontecimento de natureza dolorosa, destrutiva

    ou pattica, assim como os assassinatos em cena, torturas, feridas, etc..

    Sequncias na formulao e apresentao do mythosOs componentes da tragdia considerados como elementos formativos do pon-

    to de vista da sua quantidade, isto , as seces separadas (e ordenadas) dentrodas quais se divide uma tragdia, so as trs (3) seguintes:

    Prlogo, Episdios, xodo.Estas trs partes ficam definidas intercalando uma cano coral que dividida

    emprodo e estsimos; estas duas so comuns a todas as tragdias, assim como

    as canes cantadas a partir da cena, mas os commoi, as lamentaes, s se encon-tram em algumas tragdias.

    Oprlogo tudo o que precede o prodo, a entrada do coro; um episdio tudo o que est entre duas intervenes completas do coro; e o xodo, tudo o quese segue aps ltima interveno do coro, depois do ltimo estsimo.

    Definio e caractersticas do mythos na tragdiaPara conseguir atingir maiorperfeio numa tragdia, o mythos no dever ser

    simples, seno complexo, devendofiguraraces que provoquem a compaixo e otemor, posto que esta a funo distintiva desta classe de figurao. Deduz-se, porconsequncia, que existem trs formas possveis de mythos que se devem evitar:

    (1) um homem bom no deve passar da felicidade desdita;(2) um homem mau da desdita felicidade.A primeira situao no piedosa nem inspiradora de temor, seno simples-

    mente odiosa. A segunda a menos trgica que se pode apresentar; no tem nenhumdos requisitos da tragdia, no apela nem aos sentimentos humanos, nem com-paixo nem ao temor.

    (3) um homem ser mau em extremo, deslizar da fortuna misria, pois tal his-tria pode suscitar um sentimento humano, mas ainda assim no conduzir nem compaixo nem ao temor.

    A compaixo ocasionada por uma desgraa imerecida, e o temor por algo quesucede a homens semelhantes a ns mesmos, de modo que no haveria na situaodada, nada merecedor de compaixo, nem nada inspirador de temor.

    Resta-nos uma classe intermdia para o protagonista: um homem nem virtuosonem justo em extremo, contudo, um homem superior, como o caso de algum quegoze de grande reputao e prosperidade, abatendo-se sobre ele a infelicidade, nopor vcio seu, nem por depravao, seno por algum erro cometido por seu juzo.

    O mythos perfeito deve possuir um interesse simples, e no duplo como algunsdizem. O homem ser tal como o temos descrito, ou melhor! A peripcia no desti-

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    15/23161

    Extradodolivro

    (ISBN:978-972-990006-8)

    GilVicente,

    Aut

    odaVisitao,

    Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    no do heri no h de ser da misria felicidade, seno ao contrrio, da felicidade desdita; e a causa desta transformao no h de residir em nenhuma depravao,seno em algum grande erro da sua parte. Estegrande erro no ser uma faltapropositada, nem por maldade, nem resultado de uma atitude injusta ou perversa,

    todavia no deixar de ser previsvel, ser o resultado de uma atitude e de decisesbaseadas em interpretaes erradas da realidade, do falhano ou inconscincia dassuas decises, de ignorncia profunda das consequncias desastrosas que dos seusactos podem advir, no interferindo a integridade moral do heri.

    Com estas consideraes sobre aperfeio estruturaldo mythos e do seu heri,devemos criticar os mythos que, aplicados tragdia contm uma dupla histria,como na Odisseia, com um resultado oposto para as personagens boas ou ms, poisaparentam ser melhores devido a um sucesso perante os espectadores, mas oprazeralcanado aplica-se melhor comdia que tragdia.

    Definio do prazer trgico prazer inteligvelA compaixo e o temor trgicos podem ser provocados pelo espectculo, porm

    podem tambm surgir da prpria estrutura da obra, dos incidentes do drama.O mythos deve ser muito bem ordenado e estruturado, construdo de tal modo

    que, mesmo sem ver o espectculo, quem s ouve o relato, h de sentir o temor eencher-se de compaixo ante os incidentes Que por certo o efeito que a simplesrecitao da histria de dipo produz no ouvinte.

    Provocar este mesmo efeito por meio do espectculo menos artstico e requer

    a ajuda da cenografia. Quem utiliza o espectculo colocando perante o pblico oque simplesmente monstruoso para assim provocar o terror, no produz o prazerdado pelo temor trgico e pela sua resoluo, e desconhece por completo o sentidoda tragdia, no se deve exigir da tragdia qualquer classe de prazer, seno apenaso seu prprio prazer: oprazer inteligvelde uma tragdia.

    Uma vez que oprazer trgico dado pela compaixo e pelo temor, e por tudoo que leva sua resoluo, opoeta deve produzir no pblico tais emoes median-te uma transposio de factos reais (acontecimentos), figurados na aco. Claroque, em consequncia disto, as causas que levaram tragdia real devem ser inclu-

    das nos episdios, figurando-as como incidentes includos no mythos.Num mythos, numa trama de tal classe, os interlocutores da aco, as partesenvolvidas no conflito, ou so amigos ou inimigos, ou seno, indiferentes entre si.Ora bem, quando um inimigo ataca o seu inimigo, nada h neles que nos leve a tercompaixo por esse facto, nem quando meditamos nele, excepto apenas no que dizrespeito dor real do que sofreu ou sofre, e o mesmo verdadeiro quando as partesso indiferentes. No obstante, quando o facto trgico se produz dentro da famlia,isto , quando um assassinato ou um dano grave, premeditado pelo irmo contrao irmo, pelo filho contra o pai, pela me contra o filho, ou pelo filho contra a me,

    tais so as situaes que o poeta deve procurar, e dentro destes, ao poeta falta ain-da completar algo: deve idealizara maneira correcta de tratar tais factos.

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    16/23162

    GilVicente,Aut

    odaVisitao,Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    Expliquemos mais claramente o que queremos dizer com a maneira correcta.Um facto horroroso pode ser realizado pelo agente do acto com conhecimento

    e com conscincia, ou pode faz-lo com ignorncia da sua relao de parentesco,e descobri-lo depois, como sucede no dipo em Sfocles. Aqui, o facto est fora

    do drama, porm pode achar-se dentro dele. Uma terceira possibilidade a de pla-near uma injria mortal contra outro em ignorncia de sua relao, mas lograr fazero reconhecimento e deter-se a tempo. Contudo, a pior situao apresenta-se quandoa personagem est a ponto de cometer um acto danoso com plena conscincia edesiste dele: resulta desconcertante, e deste modo, nada trgico pela ausncia desofrimento. Todavia, uma situao que reputamos como melhor, d-se quando osfactos danosos se cometem com completa ignorncia dos laos que prendem entresi os interlocutores, e a relao intima entre eles seja descoberta depois, j que nohaver nada de desagradvel nos factos sucedidos, e o reconhecimento h de servir

    para nos assombrar.Sobre a estruturao do mythos, dissemos o suficiente.

    Definio do carcter do protagonista no mythosQuanto aos protagonistas, existem quatro (4) pontos que devemos sublinhar. Primeiro, e sobretudo, (1) os protagonistas devem ser bons. Haver carcter

    num drama, se o que a personagem (protagonista) diz ou faz, o que realiza, revelacerto desgnio moral. E um bom carcter, se o propsito assim revelado bom.

    Segundo, (2) o carcter deve seradequado. Por exemplo, um carcter peran-

    te ns deve ser, digamos, viril, porm no apropriado nem adequado, que o ca-rcter de uma mulher seja viril.

    Terceiro, (3) o carcter deve sersemelhante realidade. No o mesmo queserbom ou adequado, contudo deve reflectir a realidade do mythos.

    Quarto, (4) o carcter deve sercoerente. Sempre o mesmo perante ns; aindaque a inconsistncia faa parte do homem, para afigurao desta, se apresentaressa forma de carcter, deve ser pintado como coerentemente incoerente.

    O mais correcto, tanto para osprotagonistas como para os incidentes do drama, procurar sempre o necessrio eprovvel, de modo que quando tal personagem

    diga ou faa tal coisa, ou uma coisa suceda a uma outra, isso seja: uma necessriaou provvel consequncia do seu carcter.Assim adverte-se que o desenlace tambm deve surgir do prprio mythos, e no

    deve depender de um artifcio da encenao, o artifcio, ex-machina, deve reservar-separa problemas fora do drama, para acontecimentos passados, que estejam alm doconhecimento humano, ou acontecimentos ainda por produzir, que requeiram serintudos ou anunciados, posto que privilgio dos deuses, do feiticeiro, do magoou da magia, conhecer de antemo as coisas. Entre os incidentes reais que so fi-gurados numa tragdia, nada deve ser inexplicvel, e se algum for, deve ficar ex-

    cludo da tragdia, como emdipo de Sfocles.

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    17/23163

    Extradodolivro

    (ISBN:978-972-990006-8)

    GilVicente,

    Aut

    odaVisitao,

    Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    Como na tragdia se faz umafigurao do homem como o melhor, idealizado,devemos seguir o exemplo dos bons pintores de retratos, que reproduzem os traosdistintivos de um homem, e ao mesmo tempo sem perder a semelhana, pintam-nosmelhores que aquilo que so. Assim, o poeta, ao representar os homens, irascveis

    ou negligentes, ou com similar debilidade de carcter, deve saber como esboa-los,deline-los e cri-los como tais, mas ao mesmo tempo configur-los na tragdiacomo homens admirveis e excelentes.

    Tcnicas e tipos do reconhecimento no mythosJ tratamos o reconhecimento em geral, e quanto aos tipos de reconhecimento,

    o que primeiro se menciona pode ser o menos artstico, mas deste os poetas fazemmais uso por falta de inveno: (1) o reconhecimento atravs de signos ou de sinaiscorporais; destes signos alguns so congnitos, por nascimento ou provocados, so

    marcas deixadas no corpo, por exemplo, manchas ou cicatrizes, outros so sinaisexternos, como colares, pulseiras, etc..

    A seguir surge (2) o reconhecimento realizado directamente pelo poeta; queno so artsticos por essa mesma causa, a personagem expe, dizendo aquilo queo poeta quer dizer descritivo e muito comum e no o que o mythos requer.

    Um terceiro tipo verifica-se quando (3) o reconhecimento realizado atravsda memria de uma personagem, atravs de uma imagem ou de algo que despertana conscincia dela algo j visto anteriormente, e que identifica reagindo.

    Um quarto tipo (4) o reconhecimento que se produz atravs do silogismo, por

    exemplo nas Coforas:Algum que se parece com Electra acaba de chegar; noexiste ningum parecido com Electra excepto Orestes; portanto Orestes j deve cestar. Neste tipo de reconhecimentos, h ainda os que dependem do raciocnio dopblico, a at falsos raciocnios do pblico, induzidos por observaes introduzidasno texto pelo poeta, todavia um reconhecimento incorrecto pode surgir de um ra-ciocnio errneo da parte do pblico.

    Contudo, (5) o melhor dos reconhecimentos aquele que naturalmentesurgedos prprios incidentes, em si mesmos, quando o espanto surpreende a conscincia,como uma concluso causal, ou como resultado provvel de um evento ou de uma

    situao intrnseca do mythos, como o caso emdipo de Sfocles. Estes ltimosso os nicos reconhecimentos independentes de qualquer artifcio.

    Tcnica construo e controlo do mythosAo construir o mythos, definir os protagonistas e o seu pensamento, ao criar o

    texto e determinar o tipo de elocuo que servir no emaranhar das personagens,o poeta (dramaturgo) deve evocar a aco dramtica que est a desenvolver, ouseja, deve ter presente perante os seus olhos, deve ver, tanto quanto lhe seja poss-vel, deve visualizarum simulacro das cenas que est a formular e a figurar.

    Deste modo, ao observar cada coisa, cada objecto da aco, com tal vivacidadecomo se fora uma testemunha ocular, poder criar o que for mais adequado e es-

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    18/23164

    GilVicente,Aut

    odaVisitao,Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    tar menos exposto a subestimar as incoerncias. Alm onde lhe for possvel, opoeta (dramaturgo) deve representar o objecto da sua criao, expressando-se nasua dico com os mesmos gestos das suas personagens, porquanto perante asmesmas condies naturais, quem por si mesmo sente o que deve ser descrito,fi-

    gurando a aco a que assiste, recriando o sucedido, melhor o far e o recriar deum modo convincente. Pois, como sabemos, a dor e o temor pintam-se com maiorfora por quem as experimenta nesse momento.

    Um mythos que j antes tenha sido criado por algum, tradicional, ou da prpriainveno do poeta (dramaturgo), deve ser primeiro simplificado e reduzido a umaforma universal, o que deve ser realizado antes de ser desenvolvido e dramatizadocom a insero dos necessrios episdios. Cumprida esta etapa, e aps ter definidoe fixado os nomes prprios das personagens da aco, torna-se necessrio com baseno mythos, criar e intercalar os episdios e todos os incidentes acessrios. Em

    qualquer caso, o poeta deve ter presente que os episdios ho-de ser os adequados,e lembrar-se que, nos dramas, os episdios sero curtos, ao contrrio da epopeia,onde servem para estender o poema.

    Como podemos verificar, o argumento da Odisseia no demasiado longo, poisreduzido sua forma universal pode ser assim transcrito:

    Um homem v-se afastado do seu lar durante muitos anos. Poseidn com olhovigilante cuida dele, porm est completamente s, enquanto no seu lar as coisaschegam ao extremo da sua riqueza ser esbanjada pelos que cortejam a sua mulhere preparam a morte do filho. O homem, depois de muitas aventuras e sofrimentos,

    consegue regressar a casa, revela-se, e cai sobre os seus inimigos. O final resolve-secom a destruio destes, o seu triunfo e salvao.Descrevemos o essencial da trama (forma abstracta do mythos), que serve de

    base Odisseia, tudo o mais so os episdios que nos transmitem esta histria,construdos de um modo adequado.

    Classificao tipolgica das tragdiasCada tragdia em parte complicao e noutra parte desenlace; os inciden-

    tes antes da cena inicial, e muitas vezes tambm alguns daqueles dentro do

    drama, formam a complicao, o enlaar dos ns, e o resto o desenlace.Os ns ou complicao compreendem tudo desde o comeo ao instante antesda mudana para a felicidade ou para a desdita, tudo antes da reviravolta no desti-no do heri; pordesenlace, tudo desde a reviravolta at ao fim do drama.

    Podemos classificar as tragdias comosimilares ou diferentes, segundo os seusmythos, de acordo com as semelhanas na complicao e no desenlace.

    Contudo, numa classificao conforme a sua tipologia, ns distinguimos quatroclasses distintas de tragdias, correspondendo s suas partes constituintes que jmencionmos, mas das seis partes, exclumos aquelas duas partes que derivam dos

    meios utilizados, a elocuo e a melodia, ficando as correspondncias limitadas ao(1) mythos, (2) ao carcter, (3) aopensamento (e sentir), e (4) ao espectculo.

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    19/23165

    Extradodolivro

    (ISBN:978-972-990006-8)

    GilVicente,

    Aut

    odaVisitao,

    Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    E, assim teremos: 3

    (1) a tragdia complexa, aquela que se baseia no mythos, onde tudo peripciae reconhecimento, comodipo;

    (2) a tragdia de carcter, comoAs Mulheres de Ftia, ouPeleu;

    (3) a tragdia pattica, ou desofrimento, (de pensamento ou sentir), como osdramas deAjax eIxin;

    (4) a tragdia de espectculo, exemplificada pelasFrcides,Prometeu, comotambm todos os dramas situados no Hades.

    O desgnio dopoeta deve ser, combinar todos os elementos de interesse, se forpossvel, ou bem os mais importantes e a maior parte deles. Contudo, no se deveescrever uma tragdia com a estrutura de uma epopeia, isto , com uma pluralidadede mythos nela includos, por exemplo, aplicando-se todo texto da Ilada, pois se naepopeia, pela sua extenso, cada parte foi tratada segundo a sua prpria amplitude,

    planeando um drama com essa mesma pluralidade de mythos, o resultado obtidoseria decepcionante.Nos poetas tardios, as partes corais, e as canes nos seus dramas, no tm mais

    relao com o mythos dessa tragdia do que de qualquer outra tragdia, daqui quetais canes no sejam mais do que interldios corais. Pelo contrrio, o coro deveser considerado como um dos actores, o coro deve ser parte integrante do todo, edesse modo, participar tambm na aco. No como Eurpides mas como Sfocles.

    O pensamento, a elocuo e a dico (expresso)

    No que diz respeito aopensamento podemos assumir o que j se disse dele nonosso tratado da Retrica, pois pertence melhor a esse sector da investigao.Opensamento inclui todos os efeitos que devem ser produzidos por meio da

    linguagem, entre os quais: demonstrar, provar ou refutar, exalar emoes (o sentir),como a compaixo, temor, ira, ou qualquer outra, ou engrandecer ou minimizar osfactos. Na representao do drama, numa aco com a actuao das personagens,podem ser observadas estas mesmas manifestaes humanas, a diferena que, seesto presentes na aco, ento no se devem (explicar) reproduzir por palavras.Sero descritas por palavras, na actuao da personagem, quando haja refernciaa algo que seja exterior aco e que se introduz desse modo no mythos.

    No que diz respeito elocuo, vejamos primeiro o seu aspecto exterior, maisvisvel, a dico: o estudo do tema (dico, entoao) constitudo pelas diversasformas de exprimirum texto, cujo campo pertence ao actor.

    Tudo o que necessrio aos estudiosos desta tcnica, ao seu entendimento, fazparte da diferena entre uma ordem e umasplica, umasimples afirmao e umaameaa, umapergunta e uma resposta, uma descrio simples, ou uma narrao,etc.. Se um poeta conhece estas coisas ou no as conhece, no h de pesar na suatcnica comopoeta, que no estar em causa, pois no ser seriamente criticadopor tal motivo. Assim, que falha podemos ns observar no verso de Homero, Can-

    3 J apresentmos esta classificao linhas atrs, aqui acrescentamos os exemplos queforam dados por Aristteles.

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    20/23166

    GilVicente,Aut

    odaVisitao,Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    ta deusa a clera, que Protgoras tem censurado como uma ordem onde se impeuma splica ou um rogo, pois que rogar a algum que faa algo, ou no o faa,segundo nos diz, uma ordem! Deixemos isto de lado, pois a dico pertence aoutra tcnica, que no tcnica dapotica...

    A formulao do texto da obra discurso e dilogo os versosA elocuo, sendo vista como um todo, formada pelos seguintes elementos:

    fonema, slaba, conjuno, nome, verbo, etc., e frase o discurso no dilogo...Os fonemas diferem em som de acordo com a forma da boca e nela, dos lugares

    onde se produzem, segundo sejam aspirados ou no aspirados, ou largos, breves oude varivel quantidade, e alm disso segundo tenham acento agudo, grave ou outrosintermdios, os detalhes destes problemas devemos deixa-los mtrica.

    A escolha das palavras na formulao da ideiaOs nomes, ou melhor, as palavras podem-se classificar porsimples as cons-

    titudas de elementos que por si s no conferem um sentido nico, comogeo oucompostas. Neste caso, uma palavra pode ser composta de uma parte com signifi-cado e outra sem significado, distino que desaparece no seu composto; ou de duaspartes significativas. Mas pode haver palavras com mais partes.

    Qualquer que seja a sua estrutura, um nome deve ser sempre: a palavra comumpara uma coisa. Enquanto que uma palavra pode ser: corrente, ou estranha, podeser uma metfora, um ornamento, uma palavra inventada, alongada, abreviada oualterada.

    Por palavra corrente, comum, entendo que de uso geral numa regio, e porestranha, a que empregam outros povos. Assim, uma mesma palavra pode ser aomesmo tempo corrente e estranha, ainda que no com referncia ao mesmo povo.

    A metfora (num sentido abrangente para objecto e nome) consiste em dar a umobjecto um nome de algum outro; uma transferncia que pode ser do gnero es-pcie, da espcie ao gnero, ou duma espcie a outra, ou fazer-se por analogia.

    Explico a metfora por analogia como o que pode acontecer quando de quatrocoisas a segunda permanece na mesma relao com respeito primeira como a

    quarta terceira; podemos ento falar da quarta em lugar da segunda, e da segun-da em vez da quarta. E s vezes possvel agregar metfora uma qualificaoadequada ao termo que ter sido substitudo. Em alguns casos no h nome paraalguns dos termos da analogia, porm a metfora pode usar-se de igual modo.

    Tcnicas de construo do texto o discurso na tragdiaA perfeio da elocuo consiste em ser clara sem ser banal. A mais clara,

    todavia, a que constituda por palavras correntes, porm assim resulta um lugar

    comum. A elocuo torna-se distinta, e fora do nvel quotidiano, mediante o uso determos dignos, isto , palavras estranhas, metforas, formas alongadas, etc., e tudoo que desvia dos modos vulgares do discurso.

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    21/23167

    Extradodolivro

    (ISBN:978-972-990006-8)

    GilVicente,

    Aut

    odaVisitao,

    Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    No obstante, o emprego exclusivo de tais termos resultar, ora num enigma,ora num barbarismo: num enigma, se abusa das metforas, num barbarismo, seapela a palavras estranhas. A prpria essncia do enigma expressar factos numacombinao impossvel da linguagem. Este resultado no pode lograr-se mediante

    uma simples sucesso de termos comuns, porm torna-se possvel pelo emprego demetforas, como no enigma, vi um homem que soldava com fogo bronze sobreoutro homem, e, como este, outros semelhantes! E de igual modo o uso de palavrasestranhas, ou mesmo exticas, raras, leva ao barbarismo. O que importante ento encontrar uma certa mescla dos diversos elementos em causa.

    As palavras estranhas, as metforas, os termos ornamentais, podem impedir alinguagem de se tornar vulgar ou prosaica, enquanto que os vocbulos correnteslhe asseguram a requerida claridade.

    O que mais ajuda, portanto, a tornar a elocuo clara e menos banal, o uso

    de palavras alongadas, breves e alteradas. Mas o uso em demasia de tais licenastem por certo efeito ridculo. A norma da moderao aplica-se a todos os elementosdo vocabulrio potico.

    Ainda com as metforas, palavras estranhas e tudo o mais, o resultado ser omesmo se isso se empregar impropriamente ou com o propsito de provocar o riso.

    Num exemplo: squilo diz emFiloctetes: uma lcera come a carne do meu p.Eurpides, em vez de come, esthiei, usou,sacia,thointai, e o resultado passou aser: uma lcera sacia-se da carne do meu p O simples facto desta palavra nose encontrar tanto em uso, concede elocuo um carcter no prosaico.

    Contudo, a mxima perfeio de um poeta est em ser um mestre da metfora.Esta a nica que no se pode aprender por outros, e por isso mesmo, sinal detalento, posto que uma boa metfora implica uma percepo intuitiva, numa junosimultnea daquilo que semelhante e que dispare (ou dissemelhante).

    Por fim, conclui assim a parte do texto dedicado tragdia: no necessito dizer mais nada sobre a tragdia, da tcnica da representao

    por meio da aco, da tcnica do drama.Mas, de facto, a tragdia volta ainda a ser tratada em termos comparativos com

    apoesia pica, numa avaliao sobre as diferentes tcnicas que integram aPotica.

    Entre a tragdia e a epopeia.A epopeia na construo dos seus mythos deve ser clara, como na construo

    de um drama. A epopeia ter de se basear numa aco nica, que deve constituirum todo completo em si mesmo, com princpio, meio e fim, de maneira que a obraesteja preparada para produzir o seu prprio prazer, com toda a unidade orgnica,tal com a que se espera de uma criatura vivente.

    Alm disso, a epopeia deve dividir-se nos mesmos tipos que a tragdia quese reduz, naturalmente, de quatro para trs tipos deve ser (1) simples ou comple-xa (mythos), de (2) carcter; e de (3)pensamento (pattica ou desofrimento). Assuas partes tm que ser as mesmas, excepo do coro, das canes e do espectcu-lo (a epopeia exclui o espectculo), pois requer peripcias, reconhecimentos e cenas

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    22/23168

    GilVicente,Aut

    odaVisitao,Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    de sofrimento, e por ltimo, o pensamento e a elocuo devem ser do mesmo nvelrequerido tragdia.

    Verificmos que todos estes elementos aparecem primeiramente em Homero,que fez um correcto uso deles, os seus dois poemas so, cada um deles, exemplos

    de uma boa construo: a Ilada, simples, uma histria pattica, de sofrimento;a Odisseia, uma histria complexa, h reconhecimentos atravs dela, mas tambmuma histria de carcter. Contudo, estas obras so muito mais que isto, posto queno pensamento e na elocuo tambm superam todos os outros poemas.

    Existem, portanto, diferenas na epopeia quando comparada com a tragdia,que so a sua extenso e o metro utilizado. Quanto extenso, na tragdia o limi-te j sugerido deve bastar: que deve ser possvel que o comeo e o fim da obra, etodo o seu conjunto, sejam abarcados de um relance Quanto extenso, a epopeiatem uma vantagem especial: na tragdia no possvel representar diversas passa-

    gens da histria simultaneamente, nela o espectador est limitado parte que osactores desenrolam em cena; enquanto que na epopeia, a forma narrativa tornapossvel descrever certo nmero de incidentes em simultneo, e se estes esto re-lacionados com o tema, acrescem ao interesse do poema.

    Podemos ento colocar a questo de qual a forma mais elevada para afiguraodo mundo real (a forma potica mais elevada de viso do mundo), se a poesiapica se a tragdia. Ora, possvel arguir que a forma menos vulgar a mais digna,e a menos vulgar sempre a que se dirige a um pblico mais exigente, ento umatcnica destinada a todos, e cada um, de uma ordem inferior.

    A epopeia, seguramente que exige a uma audincia mais culta, o seu pblicono necessita de qualquer acompanhamento por gestos; enquanto que a tragdiapode ser dirigida a um pblico mais carente de gosto. Se, portanto, a tragdia podeser vista como uma arte vulgar, ficar claro que deve ser inferior epopeia?

    A tragdia, da mesma maneira que a epopeia, pode cumprir os seus efeitosainda que sem encenao, pois a sua qualidade pode avaliar-se pela simples leitura.E se a tragdia noutros aspectos a mais elevada das artes, a desvantagem queabordmos no lhe inerente.

    A tragdia tem tudo o que possui a epopeia, pois que admite o seu metro e, oque no um acrescento menor, pode ser valorizada com msica e com efeitoscnicos, que constituem tambm fontes de reais de prazer. E estes elementos repre-sentativos experimentam-se e avaliam-se num drama quando procedemos sualeitura, tanto como quando se assiste sua representao. Alm disso, a figuraotrgica requer menos espao e tempo para atingir o seu fim, o que uma grandevantagem, j que o que mais concentrado produz maior prazer que o que se alar-ga num maior perodo de tempo.

    Se por conseguinte, a tragdia superior nestes aspectos, e alm destes, nosseus efeitos poticos, e se ambas as formas de poesia devem dar-nos, no qualquerclasse de prazer, seno essa classe especial de prazer que temos mencionado um

    prazer inteligvel evidente que, ao alcanar o efeito potico com melhor eficciaque a epopeia, a tragdia h de ser a forma mais elevada da arte potica.

  • 7/31/2019 Resumo Da Poetica Aristoteles

    23/23

    Extradodolivro

    (ISBN:978-972-990006-8)

    GilVicente,

    Aut

    odaVisitao,

    Sobreasorigens.

    (Marode2010)

    deNomioRamos

    Concluindo, se umpoeta um criador quefigura a realidade, como umpintorou qualquer outro criador de imagens, formulando-as, dando-lhes uma forma, hdeformularnecessariamente as suas imagens a partir da realidade das coisas, esempre de um dos seguintes trs modos possveis:

    (1) as coisas como eram ou so na realidade;(2) as coisas como parecem ou dizem ser;(3) as coisas como deviam ser...

    Comentrio

    APotica de Aristteles um estudo sobre a tragdia (inclui a epopeia e emparte a comdia para diferenciar e especificar melhor a tragdia), realizado a partirda leitura e exame analtico das peas disponveis, para uma classificao. Para este

    trabalho o autor seguiu o seu mestre Plato, numa leitura e anlise atenta doon.4O on de Plato uma obra didctica e filosfica (dialctica) mpar sobre a Arte

    em geral, onde o autor a diferencia das outras tcnicas, critica a avaliao e juzosfeitos pela maioria, onde classifica as Artes e apresenta o seu processo dialcticoem confronto com a leitura mais comum, a leitura trivial do tolo (idiota, em grego),expressa nosenso comum, enquanto aPotica de Aristteles se reduz ao drama(em especial tragdia), onde sublinha as tcnicas dos poetas (dramaturgos) seusautores pela aco, personagens (carcter), ideias e sentir, o espectculo, etc., massobretudo pelo mythos, tal como o seu mestre na Academia.

    Aristteles limitando o seu objecto de estudo faz a sua descrio, introduzindoassim uma primeira abordagem cientfica do objecto: a potica (drama e epopeia).Neste seu texto no apresenta uma filosofia, escreve um primeiro texto cientfico:comeando pelo princpio, coleccionando as obras, analisando-as pelas suas seme-lhanas, diferenas, assuntos, temas, quantidade, qualidade, avaliando segundo osmodelos alcanados, etc., seguindo as regras dadas pelo seu mestre por fim,classificando as obras e compartimentando os seus aspectos especficos, expe adescrio (em abstracto) dos modelos possveis daquela actividadepotica, alcan-ados pelas observaes realizadas, e onde apresenta os critrios da atribuda

    classificao com os exemplos respectivos. Encontram-se contudo algumas prefe-rncias na avaliao das tragdias com a expresso de juzos de valor.

    4 Sobre esta questo ler a nossa anlise completa do on de Plato, em Gil Vicente e Plato,

    Arte e Dialctica, on de Plato Sobre o objecto da obra de Plato, aconselhamos a ler Vascode Magalhes Vilhena, emPlato e a Lenda Socrtica, e O Problema de Scrates, O Scrates