15 Ritual e Mito

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CAPOEIRA A MALÍCIA E A FILOSOFIA DA MALANDRAGEM Nestor Capoeira Existe uma preocupação, comum a várias pessoas, com o conteúdo - violência, pornografia, incentivo ao consumo exagerado, etc. - da programação da televisão e da própria Internet. O que fazer? Ou melhor diríamos: tentar fazer o quê? Pois uma censura, mesmo baseada em motivos justos e bons, poderia ser um precedente perigoso. Outros estudiosos se preocupam em como a televisão, independente do conteúdo da mensagem (o que está veiculado nas novelas, nas séries, nos telejornais, nos anúncios, etc.), altera o relacionamento do indivíduo com o imaginário; o real; a sociedade; e com os outros indivíduos. Pelo simples fato de passar grande parte de suas horas de folga passivamente sentado frente ao aparelho de TV, ou do computador e da Internet, ocorrem alterações mais profundas no indivíduo que poderia supor o pensamento marxista, ou as terapias da modernidade. Preocupações e problemas complexos. E mesmo que estivéssemos seguros da propriedade de certa forma de ação, esta seria de difícil realização face ao poder dos grandes complexos mass mediáticos, e da grande popularidade da televisão e da Internet que, afinal de contas, também são maravilhosas ferramentas pedagógicas e comunicacionais. Nossa proposta é mais simples e está direcionada na direção oposta: ao invés de enfrentar o Golias virtual; fortificar o David mestiço. Ou seja: a televisão invade, com projetos de absorção, o campo existencial e o imaginário do espectador, oferecendo-lhe um espaço/tempo (simulado) social absolutamente novo. A Internet seduz, com sua maravilhosa gama de informações e possibilidades, tanto o estudioso quanto o jovem pois, além de tudo, oferece a possibilidade

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Nestor Capoeira

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CAPOEIRAA MALCIA E A FILOSOFIA DA MALANDRAGEMNestor CapoeiraExiste uma preocupao, comum a vrias pessoas, com o contedo - violncia, pornografia, incentivo ao consumo exagerado, etc. - da programao da televiso e da prpria Internet.O que fazer?Ou melhor diramos: tentar fazer o qu?Pois uma censura, mesmo baseada em motivos justos e bons, poderia ser um precedente perigoso. Outros estudiosos se preocupam em como a televiso, independente do contedo da mensagem (o que est veiculado nas novelas, nas sries, nos telejornais, nos anncios, etc.), altera o relacionamento do indivduo com o imaginrio; o real; a sociedade; e com os outros indivduos.Pelo simples fato de passar grande parte de suas horas de folga passivamente sentado frente ao aparelho de TV, ou do computador e da Internet, ocorrem alteraes mais profundas no indivduo que poderia supor o pensamento marxista, ou as terapias da modernidade. Preocupaes e problemas complexos.E mesmo que estivssemos seguros da propriedade de certa forma de ao, esta seria de difcil realizao face ao poder dos grandes complexos mass mediticos, e da grande popularidade da televiso e da Internet que, afinal de contas, tambm so maravilhosas ferramentas pedaggicas e comunicacionais. Nossa proposta mais simples e est direcionada na direo oposta: ao invs de enfrentar o Golias virtual; fortificar o David mestio.Ou seja: a televiso invade, com projetos de absoro, o campo existencial e o imaginrio do espectador, oferecendo-lhe um espao/tempo (simulado) social absolutamente novo. A Internet seduz, com sua maravilhosa gama de informaes e possibilidades, tanto o estudioso quanto o jovem pois, alm de tudo, oferece a possibilidade adicional de uma comunicao que noapresenta a problemtica dos relacionamentos de "corpo presente".Em contrapartida, ns vamos fortificar uma outra opo; uma opo da ordem da brincadeira e da vadiao, da malandragem alto-astral, do ritual e do mito, da dana, luta, canto, ritmo, com razes africanas - a capoeira. Uma opo que, por ser "multidisciplinar", diversa de outras (timas) opes: esporte, artes marciais, dana, yoga, terapias diversas, etc.A escolha desta proposta - "no enfrentar o Golias virtual; fortificar o David mestio" -, tem tudo a ver com a malcia da capoeira. Na capoeira no se "bloqueia" um golpe; ao contrrio, o capoeira se esquiva "acompanhando" o ataque e, no mesmo movimento, contra-ataca ou derruba (com uma rasteira, etc.).Pois "bloquear" interessante para uma arte marcial que visa objetivamente vencer uma luta fsica. Mas na capoeira - "escola de sabedoria para a vida" - nos preparamos para situaes em que o "inimigo" to forte, ou to "virtual", que impossvel pensarmos em "bloqueio".Ou como nos confidenciou o finado mestre Canjiquinha: "d pra escorar a pancada de um camarada muito forte; mas no d pra escorar um caminho desgovernado 120 km/hora". assim que, em especial nos ltimos anos, temos dado tratos bola no sentido de fortificar a capoeira para as novas necessidades deste nosso sculo. No ser afirmando um passado pre-mdia que deflagaremos esta resistncia, como j vimos em Janice Caiafa (1). Trata-se de no se furtar inevitabilidade da era das transmisses no tempo, mas a partir da produzir outros efeitos; lembrando sempre que o Estado e os grandes complexos transnacionaisno so onipotentes.

RITUAL E MITORitual e mito andam juntos.Poderamos dizer que o ritual o mito em ao.Civilizaes passadas, que no conheciam a escrita, deixaram sua herana de sabedoria atravs do mito. Mas, tambm, aquelas que conheciam perfeitamente a escrita, tinham sua fora vital e identidade em seus mitos; estes constituiam o pano-de-fundo panormico e os reservatrios de guas profundas donde fluiam os sonhos e imaginao do povo; a maneira diria de viver e fazer coisas; bem como a arte e a cincia.Mesmo em nossos dias, at mesmo no mundo ocidental, sentimos a fora e sabedoria dos antigos mitos de civilizaes de outrora, como, p.ex., os mitos de dipo, Eletra, Narciso, re-interpretados pela mente ocidental de Sigmund Freud.Povos e naes que perderam seus mito, ou os trocaram por outros valores "modernos e contemporneos", so como rvores desenraizadas que no mais se alimentam da terra e dos mananciais de guas profundas, por isto, esto em grande perigo: perderam suas razes, perderam sua identidade, e vemos a instalao de uma espcie de doena social, ainda que aquela nao tenha atingido um elevado grau de desenvolvimento tecnolgico e bem estar material. Trata-se de algo do mesmo contexto da "desterritorializao".A capoeira, e a cultura brasileira, esto profundamente enraizadas em mitos que constituram nossa identidade. Entre estes, esto aqueles que nos tornam bastante "religiosos" ou "espiritualisados", semelhante, p.ex., ndia - a capoeira est para o Brasil, assim como a yoga para a ndia -; esta "espiritualidade" em oposio, neste aspecto, aos Pases Centrais do Primeiro Mundo cujo valor maior o dinheiro secundado pela tecnologia.Estes mitos nos vieram dos ndios que originalmente habitavam o Brasil; vieram tambm de Portugal, muitas vezes ligados ao catolicismo ou aos judeus ou antiga cultura rabe (os rabes estiveram em Portugal durante os quatro sculos que precederam a chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500); e - talvez a contribuio mais forte - os mitos que vieram com os milhes de africanos capturados e trazidos ao Brasil para o trabalho escravo.Mas como funciona o mito no dia-a-dia de uma pessoa?Tomem meu exemplo neste exato momento: eu posso me imaginar, e me sentir, como mais um elo de uma corrente de energia constituda de carne, sangue, ossos e sonhos, que se inicia l atrs, com os primeiros capoeiristas africanos no Brasil, que no aceitaram a condio de ser apenas um escravo, algo que no possuia uma alma e podia ser comprado e vendido como um cavalo.Eles mantiveram-se estreitamente ligados s suas culturas, seus rituais e mitos, e assim passaram seu saber para geraes futuras - j agora constituidas de bandidos e marginais no final dos 1800s-; que enfrentaram a sociedade de ento: Ns nos negamos a ser a fora de trabalho sobre a qual a classe dominante vai se espojar e vampirizar!.E uniram-se em maltas que aterrorizavam a parte obediente da populao.E estes violentos foras-da-lei tambm deixaram seu conhecimento de vida e de viver no Jogo, para as futuras geraes de capoeiristas.E este saber passou para os mestres que criaram as "academias" nas decadas de 1930/1940, e finalmente veio a mim atravs meu mestre - Leopoldina -, e tambm daqueles jogadores jovens ou idosos que contribuiram para a formao da minha maneira de jogar o Jogo, dentro e fora da roda. Neste exato momento, no Institut for Idraet da Odense Universitet, Dinamarca (2), sentado diante do computador, escrevendo este texto, sou mais um elo dessa energia que atravessa os sculos, e que se chama Capoeira.E quando escrevo, no sou s "Eu" que escreve; mas tambm todos aqueles outros do passado, e tambm os do presente - os meus contemporneos no Jogo que participam desta mesma herana. Na verdade, quando eu escrevo, ou jogo, ou ensino capoeira, sou at mesmo aqueles que viro depois de mim e para os quais espero transmitir o que aprendi.Na verdade, neste exato momento, diante da tela iluminada docomputador, no sou apenas um jogador de capoeira - sou a prpria Capoeira.E por isto sou forte.Este o poder do Mito; e como ele funciona no dia-a-dia de uma pessoa.E evidentemente isto muito diferente de um enfoque ocidental e primeiro-mundista de minha atual situao: sentado aqui, eu pensaria se estava ganhando tanto dinheiro quanto ganhava no Brasil; me preocuparia em escrever algo que causasse uma boa impresso a fim de conseguir um maior status e empregos melhor remunerados.E, por isso, eu seria fraco.Eu teria somente a mim mesmo.Um simples e solitrio indivduo confrontando a Sociedade e o Sistema no qual vivemos.Huizinga e o Homo Ludens:A capoeira, de acordo com a documentao que conhecemos atualmente, percorreu um longo caminho:- a capoeira escrava do comeo dos 1800s, descrita e desenhada por Rugendas em 1835 (3);- as maltas cariocas, aps 1850, que dominavam as ruas do Brasil Imprio, descritas por Plcido de Abreu no seu Os capoeiras de 1886;- os valentes baianos, os brabos pernambucanos, e os malandros cariocas, no comeo dos 1900s;-os educadores (4) que criaram o sistema de ensino em academias: mestre Bimba, na dcada de 1930, em Salvador; mestre Sinhozinho (capoeira/luta sem berimbau), 1930, no Rio de Janeiro; mestre Pastinha, 1940, em Salvador;- as propostas de Waldemar da Liberdade, Noronha, Canjiquinha, Caiaras, entre outros, nos 1940/50s, na Bahia;- o Grupo Senzala, carioca; e mestres baianos que emigraram para So Paulo (Suassuna, Acordeon, e outros), a partir da dcada de 1960;- a expanso no Brasil, no estrangeiro a partir dos 1970s, e as novas geraes de mestres e professores de diferentes linhagens.Vamos, agora, estudardesdobramentos desta dinmica; apontar alguns desvios e perdas que, creio eu, podem levar a uma ruptura radical com os fundamentos da capoeira. No cerne de minhas preocupaes esta a possvel perda do brincar e da brincadeira que parte essenciail do Jogo.Esta coisa, aparentemente inconsequente e "infantil" - o brincar -, tambm algo bsico na vida e na cultura humana. Vamos aprofundar este ponto de vista com Geertz, Lewis, e principamente Huizinga e Winnicott, nas pginas seguintes.Johan Huizinga nos diz no seu Homo Ludens, de 1938: Em poca mais otimista que a atual, nossa espcie recebeu a designao de Homo sapiens. Com o passar do tempo, acabamos por compreender que afinal de contas no somos to racionais quanto a ingenuidade e o culto da razo do sculo XVIII nos fizeram supor, e passou a ser de moda designar nossa espcie como Homo faber...Mas existe uma terceira funo, que se verificatanto na vida humana como na animal, e to importante como o raciocnio e o fabrico de objetos: o jogo. (5)E concluiu que a "expresso Homo Ludens merece um lugar em nossa nomenclatura."Huizinga bem radical em relao ao papel do jogo, da brincadeira, no seu "exame dos problemas gerais da cultura"; tanto assim que no hesita em afirmar: no jogo e pelo jogo que a civilizao surge e se desenvolve. (6)O jogo fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definies menos rigorosas, pressupe sempre a sociedade humana; mas, os animais no esperaram que os homens os iniciassem na atividade ldica. -nos possvel afirmar com segurana que a civilizao humana no acrescentou caracterstica essencial alguma idia geral de jogo. Os animais brincam tal como os homens. (7)O jogo/brincadeira seria algo que envolveria a tenso, a alegria, o divertimento e, muitas vezes, uma certa dose de perigo. O jogo no estaria ligado a qualquer grau ou tipo de civilizao, nem tampouco "qualquer concepo do universo"; o jogo possuiria uma "realidade autnoma".Quando lemos Huizinga temos a impresso que ele est falando especificamente do jogo da capoeira. Mas no; Huizinga um alemo do final dos 1800s e comeo dos 1900s, e nunca conheceu a capoeira. Ele escreve sobre o jogo e a brincadeira como algo que existe em todas as civilizaes de todos os tempos. Ele nos d muitos exemplos da China de sculos atrs, de ilhas perdidas no Pacfico, e de tribos africanas; assim como de pases "civilizados" como a sua Alemanha nativa.Eu creio que, para o capoeirista e para o pesquisador, muito interessante este enfoque. Estamos acostumados a pensar a capoeira como uma jia nica e preciosa. E o sucesso que tivemos aps 1970, quando comeamos a "conquistar" o Brasil - hoje somos 25.000 professores e mestres -, e a ensinar esta "atividade extica" no estrangeiro, parece comprovar esta ideia: estamos em mais de 150 pases; metrpoles como Nova Iorque, Paris, Londres, Tquio e Berlin tem mais de 30 academias bombando; em 2013 o Ministro das Relaes Exteriores do Brasil afirmou que a "capoeira o mais forte vetor de divulgao da lngua portuguesa no exterior".E no entanto, vem este alemo, que nunca ouviu falar de capoeira, dizendo que estuda o papel do jogo e da brincadeira na cultura humana desde 1903, e em 1938 publica um livro que hoje bsico nas universidades do "Primeiro Mundo"., no mnimo, curioso: pois se, por um lado (a viso dos capoeiristas) a capoeira realmente algo "nico e precioso"; por outro lado (a viso de um estudioso alemo de 1900), a capoeira tambm seria uma das representantes de algo que surgiu sob diferentes formas ao longo dos tempos e em muitas civilizaes diferentes: "h nele (no jogo/brincadeira) uma tendncia a ser belo";" tenso, equilbrio, compensao, contraste, variao, soluo, unio e desunio"; o jogo "lana sobre ns um feitio", "fascinante", "cativante".(8)Em termos filosficos d muito em que pensar.Em termos prticos um alerta para que tenhamos cuidado para no transformar a capoeira/ jogo/brincadeira em algo com regras rgidas;em algo baseado nas leis da competio excessiva; em algo regulamentado por organismos ou pessoas de viso e entendimento curto, que s pensam no "sucesso" e no "dinheiro" a curto prazo, tal qual na nossa sociedade capitalista, racional, e consumista do comeo dos anos 2000.E Huizinga, que devido ao local de nascimento - Alemanha - e a poca em que viveu - no entorno dos 1900s -, deveria louvar as virtudes da "seriedade" (como atualmente fazem tantos de meus colegas, mestres de capoeira), prefere considerar o jogo/brincadeira algo de "ordem mais elevada".... jogo, enquanto tal, de ordem mais elevada do que o de seriedade. Porque a seriedade procura excluir o jogo, ao passo que o jogo pode muito bem incluir a seriedade. (9)O alemo, ainda mais aquele de 1800/1900, era um homem "srio" que tinha muito respeito pela "honestidade". Por isto, que acho muito curioso quando Huizinga fala a respeito da "seriedade" que seria "inferior" ao Jogo; e, a mesma coisa, quando fala do "jogador desonesto, batoteiro": ele minimiza a "culpa" do "batoteiro"; mas, ao mesmo tempo, no perdoa o "desmancha prazeres".Tambm veremos em Winnicott - conheciso e renomado mdico e psicanalista ingls dos 1900s (que tambem no conhecia a capoeira mas que achava que o brincar era bsico na cultura e no ser humano) - uma crtica radical ao "estraga prazeres": "quem no sabe brincar estraga a brincadeira dos outros".Vejamos, por agora, este texto de Huizinga:O jogador que desrespeita ou ignora as regras um "desmancha-prazeres". Este, porm, difere do jogador desonesto, do batoteiro, j que o ltimo finge jogar seriamente o jogo e aparenta reconhecer o crculo mgico. curioso notar como os jogadores so muito mais indulgentes para com o batoteiro do que com o desmancha prazeres; o que se deve ao fato de este ltimo abalar o prprio mundo do jogo... Torna-se, portanto, necessrio expuls-lo, pois ele (o desmancha prazeres) ameaa a existncia da comunidade dos jogadores.A figura do desmancha-prazeres desenha-se com mais nitidez nos jogos infantis...Mesmo no universo da seriedade, os hipcritas e os batoteiros sempre tiveram mais sorte do que os desmancha-prazeres. (10)Muniz Sodr repensando a filosofia da malandragemNo Rio de Janeiro dos 1920s/1930s, enquanto segmentos sociais hegemnicos tentavam mudar, no imaginrio, a imagem da capoeira marginal dos 1800s; apresentando-a "seriamente" como a Luta Nacional, "desvinculada das razes africanas e da vivncia na marginalidade" (11); observava-se tambm a reao das "classes populares" com a construo e consagrao do Malandro. O Malandro, ironicamente, vai se popularizar em todo o Brasil atravs dos "sambas de malandragem" tocados no rdio - uma nova e fascinante inveno da moderna tecnologia (!) que, no Brasil, tornou-se (o rdio) uma "ferramenta pedaggica" do Estado Novo de Vargas que pregava o trabalho duro e honesto.O Malandro vai atravessar horizontalmente toda a cultura e maneira de ser do carioca; e, em consequncia, do brasileiro. E, verticalmente no tempo, vai tambm ser vetor ativo e atuante na formao da atual "filosofia da capoeira" - a malcia. O Malandro surge nas mesmas freguesias(bairros) anteriormente dominados pelas maltas: Gloria, Cais do Porto, Centro, e a Lapa que tinha sido o lar da fanigerada Flor da Gente. O Malandro era o herdeiro destronado e solitrio das maltas cariocas - uma ligao extremamente importante que poucos percebem -, dizimadas (12) pela perseguio policial do incio da Repblica na virada do sculo XIX para o XX, comandada por Sampaio Ferraz, o Cavanhaque de Ao.- Solitrio: agindo individualmente e sem o poder do grupo, o malandro no se tornou um risco para a polcia e para o novo Regime Republicano como tinham sido as maltas de capoeira do Imprio. - Destronado: sem o apoio de algum poltico poderoso, o malandro era um elemento fragilizado que contava apenas com sua esperteza, sua lbia, seu charme, seu know-how do jogo e das mulheres, sua capacidade de apelar inesperadamente para a capoeiragem e para a navalha quando se via acuado e sem possibilidades de resolver a situao "na conversa".A capoeira das maltas de 1800s no deixou registro de mo prpria, exceto pelo Os Capoeiras de Plcido de Abreu (1886); os registros que temos so de outros atores, como "a pena do escrivo de polcia" (13). Por sua vez, a malandragem seminal do comecinho dos 1900s tambm no deixou registro prprio, exceto pelas falas de Kalixto (1906), e do Negro Ciraco em entrevistas aps vencer a luta com Sada Miako (1912) - entrevistas que foram muito bem analisadas pelo crebro afiado de mestre Jair "Perigo" Moura (14). Sobrou, principalmente, a voz do sambista. As letras de samba por muito tempo constituiram o principal, seno o nico, documento verbal que as classes populares do Rio de Janeiro produziram autnoma e espontaneamente(15). E no samba, em especial os que louvam o Malandro, numa linhagem que comea com Geraldo Pereira e Noel Rosa, e chega at nossos dias com Martinho da Vila e Zeca Pagodinho, que vamos encontrar os fundamentos da filosofia da malandragem; ou seja, como o Malandro entende e lida com o dinheiro e o trabalho, as mulheres e o sexo, o jogo e as drogas, o samba e a alegria, a violncia e o machismo, a espiritualidade e o materialismo, o Sistema e a polcia, etc.Muniz Sodr - um dos mais importantes pensadores brasileiros da atualidade -, por sua vez, tambem resalta a importncia da alegria: "se quisssemos fazer uma filosofia brasileira teramos que partir da alegria; o povo voltado para isto". E, nesta mesma entrevista, falou do contexto que envolve a filosofia da malandragem, o jogo da capoeira, a espiritualidade, e a alegria.Talvez seja necessrio repensar a malandragem. No mais o malandro da Lapa dos 1920 e 1930, mas a malandragem como esse jeito de se livrar dos pesos e das amarras. Quando isto acontece voce tem a alegria, algo muito importante que eu abordei no (livro) "Estratgias sensveis".A malandragem como ese jeito de burlar as dificuldades e os obstculos, em vez de fazer face ao obstculo como no box - duas tcnicas que se batem. A malandragem como esse jeito de contornar oadversrio, como na capoeira; eu acho que isto pode ser brasileiro. Pode at vir de um lugar - Rio de Janeiro -, mas uma forma que encontra as estratgias de um povo para contornar a impiedade do Estado.Esse malandro talvez tambem tenha alguma coisa de espiritual nele. No a toa que uma das maiores entidades da espiritualidade carioca seja o Malandro; o Z Pelintra que chefia uma falange imensa...No Brasil h uma vocao para o facismo em todos os nveis - os ruralistas, os evanglicos, etc. -, se fossemos um pasextremamente organizado seria um problema... o que eficiente, o que eficaz - seja o Ministrio Pblico, ou o Judicirio, etc. -, cai no autoritarismo, cai no autocratismo, se torna uma pequena ditadura. Na verdade, eu penso que o pas tem uma vocao para a ditadura, para o facismo; no essa coisa que se pensa - bonomonia...O povo brasileiro conservador e, quando ele se organiza, muitas vezes utilisa formas que no so prprias s instituies populares, formas que tem uma tendncia para o facismo... No entanto, as instituies populares so organizadas e no so facistas: um bloco de carnaval, o jongo, o candombl, a capoeira. No so facistas mas tambm no so democrticas, so formas conservadoras...Mas no Brasil, temos a malandragem que destroi esta burocracia e nos salva.O povo joga capoeira.O povo dribla as adversidades como o capoeira dribla o adversrio, e faz isso cantando; e quando pode, bate. (16) Huizinga comprende que a fora de um jogo tal que: "as comunidades de jogadores geralmente tendem a tornar-se permanentes, mesmo depois de acabado o jogo" (17) - coisa que ns capoeiristas entendemos perfeitamente.E, dentro deste contexto, semelhante a Muniz Sodr, Huizinga resalta a importncia da alegria e da festa: Existem entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais estreitas relaes. Ambos implicam uma eliminao da vida quotidiana. Em ambos predominam a alegria, embora no necessariamente, pois tambm a festa pode ser sria. (18) A brincadeira segundo WinnicottEnto, o cerne de nossa proposta para a capoeira a brincadeira; e este jogo-brincadeira permeado pela alegria (como queria Huizinga).O brincar coisa sria para muitos estudiosos como vimos com Huizinga. Vejamos, agora, o que diz Lewis em sua tese de doutorado, (minha traduo):No seumais famoso artigo, Geertz prope que a briga de galos balinesa uma espcie de 'deep play' (brincar profundo) e esta uma frase que eu (e outros) achamos extremamente afortunada para pensar a respeito de muitas formas de expresso cultural, incluindo a capoeira...Todavia, uma questo que Geertz no colocou precisamente porque o brincar to revelador de padres culturais profundos...Talvez parte da resposta tenha a ver com, como o brincar serve como um framework (grade) para contextualizar encontros sociais.Esta foi a viso central de Bateson (19) em relao ao brincar, que Goffman expandiu para um enfoque geral para compreeder a natureza humana. (20)Ento, para estes pensadores, o brincar (do ser humano quando criana) a base de todos "encontros sociais" que ele vai encetar pelo resto de sua vida. Por sua vez Winnicott (21), famoso e respeitado mdico e psicanalista, com a experincia prtica de cuidar de milhares de crianas e jovens, orfos ou "problemticos",no ps-grande-guerra ingls da dcada de 1940, resgata e legitima o brincar - que tambem um dos fundamentos bsicos do Jogo de Capoeira.Dizer que o "brincar um dos fundamentos bsicodo Jogo de Capoeira", no inveno minha, pois antes de sua "modernizao" - 1930 e mais fortemente 1960 em diante -, a capoeira era carinhosamente chamada por seus praticantes de brincadeira ou de vadiao. Mestre Pastinha (1889-1981), o mestre seminal da capoeira angola, chegava a afirmar que "a capoeira uma coisa vagabunda", no sentido de ser uma coisa prazerosa, vadia, sem compromissos com a objetividade.Uma vadiao que, na opinio unnime dos mestres da Velha Guarda, "fazia a cabea" do iniciante transformando o aprendiz num "capoeirista": algum que conhece os fundamentos, no s da malandragem, mas os requintes desta filosofia (da malandragem) materializados numa brincadeira corporal, que pode ser usado como luta mortal; e tambmpode uma filosofia de vida, uma tica no dia-a-dia das pessoas,procurando determinar-lhes os objetos bons ou supremos, o Bem, uma boa "maneira de ser" ou a "sabedoria da ao" - prticas tambem preconizadas pelos antigos lsofos gregos, em especial os esticos.Eu creio firmemente que estes velhos mestres de 1930 e 1940 tinham razo; a capoeira realmente faz a cabea de seus praticantes. Poderamos corrobar este ponto de vista levando em conta o poder da linguagem: "A ordem da linguagem tem a potncia de modificar e interferir em qualquer outra ordem que opera no corpo" (22), afirma Noga Wine. O corpo humano, como todo ser vivo, tem um nvel de funcionamento que se faz segundo leis e ordens (pre) estabelecidas, "contudo ele passvel de pertubaes e modificaes resultantes de um outro nvel de funcionamento, o da linguagem". (23)Evidentemente estamos usando uma licena quase potica, extrapolando o pensamento de Wine para a "linguagem corporal" tpica da capoeira; um contexto comunicacional que abrange outras reas e outras compreenses diversas da linguagem falada e escrita a que se referia Wine.Malcia, a filosofia da capoeiraA malcia, num sentidoamplo, a maneira como o jogador v e joga com a vida, o mundo e, especialmente, as pessoas - uma espcie de "saber" ou "sabedoria".Num sentido mais restrito, a malcia o que permite um jogador se antecipar aos ataques do outro; e tambm "enganar" o oponente, ngindo que vai fazer algo quando, na verdade, est preparando um outro lance. Poderamos perguntar o que "sabedoria" tem a ver com "enganar o outro": que, para enganar o outro, necessrio saber como o outro , e como ele vai agir; e, por outro lado, conhecer nossas potencialidades de ao e fraquezas.E talvez caiba uma pequena explicao sobre a maneira pela qual(penso eu) o Jogo faz a cabea do iniciante: atravs da malcia, as vezes chamada de mandinga, ou "filosofia da capoeira".A malcia no um "saber racional". No absorvida, apreendida e encarnada atravs da leitura ou da fala. A malcia uma espcie de "conhecimento", "saber corporal" que adquirimos o iniciante queira ou no - jogando capoeira. Depois de ser absorvida e "encarnada" pelo corpo, a malcia vai se tornar clara para o cerbro.Aos poucos, o jogador comea a entender que o Jogo no apenas uma troca de golpes e esquivas, quedas e movimentos acrobticos. O iniciante comea a ver algo que os no-iniciados no percebem: "as brabeiras da vida" se manifestam no jogo, dentro da roda, de maneira crua e, muitas vezes, indigesta. A gente v emoes e estranhas reaes estampadas nos rostos e nos corpos dos jogadores. E, muitas vezes, o prprio jogador se surpreende com atitudes - motivadas pelo orgulho, vaidade, vontade de vencer qualquer custo, medo ou inveja - dele prprio em um determinado jogo. E, mais ainda, com os pensamentos conflituosos, as "explicaes" e desculpas que ficam rodando na sua cabea quando relembra o que aconteceu.O jogador, que est tendo seu corpo e sua cabea feitos pelos diferentes jogos com diferentes pessoas, comea a perceber que todo mundo tem uma "fachada social", uma espcie de verniz "civilizado" que s se rompe muito ocasionalmente - nos momentos de tenso, nos excessos do alcool, etc. No Jogo, porm, o buraco mais embaixo e o jogador constantemente comea a ver e a interagir com o que existe por trs das "fachadas.Poderamos, para fins didticos, dividir a malcia em:- Conhecimento da verdadeira natureza dos seres humanos, ver por trs das fachadas sociais das pessoas; "urubu como folha? conversa fiada!" (canto de capoeira ironizando a semelhana entre os humanos e determinadas aves de rapina). - Alegria de viver (talvez fosse melhor "teso por estar vivo" ou alguma outra expresso).O conhecimento consequncia direta de jogar na roda com diferentes pessoas em diferentes lugares. Neste sentido, o conhecimento diferente da alegria de viver, pois a alegria tem de ser alimentada e desenvolvida por iniciativa pessoal de cada jogador. A alegria de viver no uma consequncia inevitvel do Jogo; o capoeirista deve cultiv-la na roda, ajudado pelo som do berimbau; e, na vida diria, procurando conviver com jogadores mais experientes que possuem esta qualidade - uma espcie de "bom humor" e teso pela vida.Voc j viu crianas brincando na beira do mar? Elas pulam numa perna s, correm, gritam, fogem das ondas que "se desmancham na areia" e em seguida perseguem-nas sem canar, pois esto alimentadas por outro tipo de energia, de difcil acesso aos adultos -a alegria de viver.O conhecimento sem o apoio da alegria de viver pode se tornar muito "pesado"; pode transformar o jogador numa pessoa incapaz de "curtir" a vida. Pois o conhecimento traz um certo cinismo em relao s pessoas e suas "fachadas para otrio ver". E, alm disso, o conhecimento tambem traz poder: o jogador se impe no jogo, comea a se tornar dolo dos mais novos. E o poder sem alegria de viver transforma a pessoa em algum que s se interessa - e completamente fascinado - pelo prprio Poder e seus jogos de poder.O poder, tendo o dinheiro como sua faceta mais vulgar, se torna mais importante que amizade, sexo, amor, arte e curtio. Isso acontece com frequncia e pode ser observado em muitos jogadores de capoeira, que se afastam da curtio da vida e da prpria essncia do Jogo. No entanto, a Capoeira - aqui, como uma entidade - no critica os que escolhem o Conhecimento e o Poder; nem elogia os que preferiram a Alegria de Viver - cada jogador faz sua escolha, usufrui das benesses e aguenta o retranco.Winnicott e a iluso Eis, por outro lado, algumas outras idias de Winnicott (24) em completa harmonia com os fundamentos do Jogo:- Brincar: uma experincia na continuidade espao-tempo, uma forma bsica de viver.- Quem no tem capacidade para brincar, acaba com o brincar dos outros (j vimos o "desmancha prazeres" em Huizinga).- no brincar, e somente no brincar, que o indivduo pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral.- somente sendo criativo que o indivduo descobre o eu (self).- Somente no brincar possivel a real comunicao. Ora, isto - brincar e a brincadeira - oposto mentalidade "hierrquica" dos militares.Isto - brincar e a brincadeira - oposto mentalidade dos atuais homens de poder, que acreditam que tudo deve se curvar ao Dinheiro.Isto - brincar e a brincadeira - oposto um tipo de mentalidade que tambem existe na Universidade e entre os intelectuais; e tambm entre muitos artistas "srios".Isto - brincar e a brincadeira - oposto mentalidade das religies.No entanto, est em completa ressonncia com a capoeira, e com amentalidade do samba e dos sambistas (a filosofia da malandragem).Algumas outras colocaes de Winnicott, tambm encontram ressonncia no universo da capoeiragem: referindo-se ao valor da iluso, Winnicott afirma que a princpio a me propicia ao beb a oportunidade para a iluso de que o seio faz parte do bebe,o seio estaria sob "controle mgico" do beb; o beb comea a chorar e "magicamente" aparece um seio para aliment-lo! Isto muito importante para dar ao beb uma sensao de auto-segurana, pois na verdade se o beb tivesse conscincia de sua vulnerabilidade, provavelmente viveria apovorado e paranico. No final deste primeiro perodo, a me "desilude" gradativamente o beb, e o beb comea a entrar na realidade da vida. O sucesso em criar um filho saudvel, no entanto, depende da me ter propiciado a "oportunidade para a iluso" criana num estgio inicial de sua infncia. Sem dvida isto tambem seria a proposta tica ideal para o professor de capoeira de nossos dias: p.ex., nas rodas ao final das aulas, a capoeira deveria se apresentar para o aprendiz como uma brincadeira entre amigos, sem maldades, nem mesquinharias advindas dos jogos de poder e do embate entre personalidades.O risco de dano fsico deveria ser limitado ao mximo pelo professor, fazendo o iniciante jogar com alunos mais desenvolvidos; mas somente ele (iniciante) podendo dar os golpes; o aluno mais adiantado somente se esquiva e se movimenta.Na seqncia desta fase (que pode durar alguns meses), tendo experimentado, semelhante ao beb de Winnicott, esta "iluso" de "controle mgico" e onipotncia (o outro jogador no ataca, nem revida; apenas se esquiva), o iniciante introduzido ao jogo propriamente dito, com seus perigos, atritos e mistrios.E somente numa fase, mais adiante ainda - j sabendo se defender e conhecendo a mardade e a traio que, segundo a Capoeira, tpica dos homens -, o iniciante introduzido em outras rodas, onde h a possibilidade do encontro com capoeiristas que jogam com o intuito de "vencer" (para "aparecer" e fazer nome); de quebrar os mais fracos ou incompetentes (desculpas para o uso de uma violncia exagerada); e onde a regra do jogo : "entra quem quer, sai quem pode".Semelhante me, o sucesso do mestre em formar o capoeirista depende de ter proporcionado no incio do aprendizado a "oportunidade para a iluso". ali que o iniciante percebe e vivencia, jogando despreocupadamente (pois no h revide do jogador mais adiantado), que a essncia do Jogo de Capoeira, apesar de tudo, a brincadeira.Esta maneira de tratar o iniciante , para mim, essencial. Eu a utilizo no meu ensino; mas isto no acontece na grande maioria das outras escolas. As escolas ensinam determinados movimentos e golpes que devem ser reproduzidos exatamento como feito no "estilo de capoeira" daquela escola - aquilo o "certo", o "resto errado". S depois de vrios meses, quando j esta devidamente "catequisado", o iniciante entra na roda e comea a jogar (o inverso do meu mtodo, onde o iniciante joga na roda no primeiro dia de aula).Eu tive sorte por ter sido aluno de Leopoldina (1933-2007), que era um cone da malandragem alto-astral do Rio de Janeiro. Leopoldina, por sua vez, foi aluno de Quinzinho (aprox. 1920-1950); Quinzinho apesar de ser chefe de uma gangue de assaltantes, e ter vrias mortes nas costas, no admitia que os mais experientes batessem nos iniciantes: "ele fica covarde e no aprende!". Quinzinho tambem era um mestre na cuca e no samba. Com a influncia destes dois caras, pra mim foi fcil desenvolver um lance que abrangesse mais coisas do que estavam rolando no ambiente de capoeira quando eu era iniciante.Mas, enfim, este o meu lance; e praticamente cada mestre tem o seu. Mas voltemos a Winnicot (25):A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas - sejam crianas ou adultas.Em conseqncia, onde o brincar no possivel, diz Winnicott, o trabalho efetuado pelo terapeuta dirigido no sentido de trazer o paciente de um estado em que no capaz de brincar, para um estado em que (evidentemente se o terapeuta, ou o mestre de capoeira, no sabe brincar, estaria desqualificado).Ento, a preocupao de um mestre com um aluno iniciante deveria ser, antes de mais nada, levar o iniciante a um estado de esprito em que ele comece a brincar dentro da roda desde as primeiras aulas e at mesmo antes de "saber" jogar. Ou no caso do jogador que veio de outra academia e no entende o que "jogar brincando": antes de corrig-lo de possveis defeitos "tcnicos", o trabalho do mestre ensin-lo, ou melhor, aos poucos lev-lo a "brincar e danar dentro da luta".O ensino, diz Winnicot, sem esta possibilidade de brincar (dentro ou fora da capoeira) doutrinao e produz submisso, e no produz a emergncia de um self.No caso de um beb, Winnicott diz que no caso de fracasso de "fidedignidade ambiental" (quando o "controle mgico" no foi transado nos primeiros meses, ou o beb no recebeu o carinho e cuidados nos meses seguintes), ento o "espao potencial" - aquele do brincar - preenchido pelo que introjetado por outrem; trata-se de material persecutrio, sem que o beb tenha meios de rejeit-lo - como resultado, emerge um falso self. o que acontece em muitos grupos de capoeira, onde o iniciante no vive a experincia da brincadeira sem medo. E, ao invs disto, desde as primeiras aulas, o iniciante bombardeado com regras: como fazer "corretamente" tal movimento; como respeitar com seriedade os alunos mais graduados; como o grupo dele o melhor; e como seu mestre a voz de deus sobre a face da Terra (ou seja: o tal "material persecutrio" que "introjetado por outrem" e faz emergir um "falso self", ou "falso eu" no iniciante). Winnicott aponta tambm que, se a excitao fsica vai alm de um determinado patamar - os "plateaux" de Deleuze e Guattari? (26) - , ento o brincar se interrompe ou se estraga. o que acontece com o jogador que, no af de vencer", apela para a fora bruta, para a violncia fora do mbito do jogo, ou que se embola com o outro jogador pelo cho numa autntica "briga-de-rua" que escapa ao contexto e ao patamar mximo de excitao e energia necessrios para a manuteno das caractersticas do Jogo.Para bem entender Winnicott necessrio conhecer conceitos como "objeto transicional"(o beb se apega a um ursinho, ou a um travesseiro especfico, etc.), e"fenmeno transicional" (a relao que o beb desenvolve com aquele objeto), que se referem a uma passagem do "sentimento de onipotncia" e do "controle mgigo" do beb, para um relacionamento com o mundo exterior:onipotncia -> objeto transicional -> brincar -> -> brincar junto com outros -> jogo c/regras -> cultura. (27)Estas fases no so necessariamente evolutivas, com uma fase superando totalmente a precedente.Mas o esquema acima til, e dentro dele poderamos situar a capoeira num ponto qualquer entre o brincar junto e a cultura.No entanto a capoeira no deve ser associada, totalmente, a um jogo com regras, mais tpico do esporte.A capoeira no regida pela racionalidade, ou objetividade (que tudo justificam, e so pragas de nosso tempo). Temos, ao invs disto, algo da ordem do ritual, e da brincadeira inventada e inventiva, tal qual encontramos entre as crianas.Semelhante aos dedos do beb que acariciam seu nariz (por prazer) e podem se tornar mais importantes que o polegar sugado (por "necessidade", para substituir o seio da me); Winnicott afirma que, na brincadeira, o ldico e o criativo no esto sob o domnio da necessidade.Isto tambm pode ser dito da capoeira: a brincadeira faz parte da prpria maneira de ser do Jogo, e no est sob o "domnio da necessidade" (a necessidade de vencer e de ser objetivo, ou at mesmo a necessidade de fazer um "jogo bonito").ANTDOTOAgora que vimos a importncia do brincar na vida dos seres humanos, e na sociedade; desejamos afirmar que o brincar foi, em grande parte, castrado da capoeira e substituida pela seriedade, em todos os "estilos de capoeira" e linhagens (apesar do discuro politicamente correto dos mestres, a respeito do ldico, das razes, da "luta de libertao", de "jogar sorrindo", etc. e tal). Isto aconteceu pela rigidez dos "mtodos de ensino" atuais, e tambem pela forma quase ditatorial como os mestres (e, em consequncia, os jogadores "mais graduados") atualmente se relacionam com os alunos.Mudar o formato do relacionamento "ditatorial" mestre/"graduados"/alunos me parece mais fcil doque se poderia pensar: basta qualquer mestre(at por razes de grana) entrar numa que uma "mentalidade mais flexvel" interessante (e at esta mais prxima da onda da extinta Velha Guarda), e comear a agir numa "outra" - e logo todos seus "graduados" e alunos o seguiriam. bvio que apenas um (ou meia dzia) mestre no iria "resolver" o "problema da capoeira"; mas no estamos propondo "soluo geral" nenhuma. Estamos apenas dando um raio-X na situao; estamos apenas citando ideias de pensadores; e - claro - eu estou escrevendo o que penso. Se alguem aproveitar - timo!Eu penso ser impossvel mudar a totalidade de algo que envolve tantas pessoas, mas bastam alguns cabeas para manter viva a chama, e a bola rolando numa boa.Mas mudar os "mtodos de ensino" me parece mais difcil.Creio que isto s aconteceria se os (poucos) mestres que (no futuro) tivessem abraado a "mentalidade mais flexvel", e tambem estivessem utilisando um mtodo que aprimorasse o tcnico dos movimentos (como fazemos agora) e tambem a brincadeira(que a minha proposta), comeassem a ter muito sucesso, dinheiro, e status.Mas quais seriam os novos "treinamentos" ("treinamentos" ?) que proponho adicionar (no se trata de jogar o que j existe fora) aos que so usados agora?Falamos que queremos fortificar o brincar e a brincadeira na capoeira.Bonitas palavras.Mas como faz-lo na prtica da aula?Bem... isso j outro captulo.NOTAS (1) CAIAFA, Janice. Movimento punk na cidade: a invaso dos bandos sub.Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 1985, p.25. (2)Este texto, do mestre Nestor, do tempo em que deu aulas de capoeira no Institut for Idraet, da Universidade de Odense (Dinamarca); e publicou um livro, junto com J. Borghal, para aquela instituio: Capoeira, kampdans og livsloso fra Brasilien.Odense: Odense Universitetsforlag, 1997.(3) RUGENDAS, J.M.Voyage pittoresque et historique dans le Brsil.Paris:Engelmann et Cie, Paris,1835. Ilustrao "Jogar capuera ouDance de la Guerre".(4) Expresso cunhada pelo iluminado Frede Abreu. ABREU, Frederico J. de.Bimba bamba, a capoeira no ringue.Salvador: Instituto Jair Moura, 1999.(5), Johan. Homo Ludens. SP: Ed. Perspectiva , 2000, ebook. P.3.(6) Idem, p.3.(7) Idem, p.3.(8) Idem, p.12.(9) Idem, p.36.(10) Idem, p.12.(11) TAVARES, J.C.S. in CAPOEIRA, N. Capoeira, os fundamentos da malcia. RJ: Ed. Record, 1992, p.55.(12) Acreditava-se que Sampaio Ferraz tinha "exterminado as maltas de capoeira"; mas Antonio Liberac nos ensinou, baseado principalmente em suas pesquisas nos arquivos da polcia carioca, que o sistema das maltas foi extinto, mas capoeiristas isolados continuaram a existir, a atuar e a ser presos, durante todo o perodo 1890-1930.(13) Expresso que se tornou clssica - "a pena do escrivo de polcia" -, cunhada por Carlos E.L. Soares no seu A negregada instituio, os capoeiras no Rio de Janeiro.Rio de Janeiro:Coleo Biblioteca Carioca, Prefeitura do Rio de Janeiro, 1994. (14) MOURA< Jair (Mestre Perigo)."A projeo do negro Ciraco no mbito da capoeiragem", Revista Capoeira.So Paulo: #11, dez.1999.(15) MATOS, Claudia. Acertei no milhar. RJ: Paz e Terra, 1982, p.22.(16) Nestor Capoeira entrevista Muniz Sodr, em 13/3/2013, para um documentrio a ser feito por Itapu Beiramar (para o www.abeiramar.tv); e tambem um captulo, "Muniz Sodr e a capoeira", do livro coordenado pelo Prof. Eduardo Coutinho (ECO-UFRJ).(17) HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. SP: Ed. Perspectiva , 2000, ebook. P.13.(18) Idem. P.19.(19) BATESON. Steps to an ecology ofmind. NY: Ballantine,1972, pp.177-193. (20) 214 LEWIS, J.LRing ofliberation.Chicago:Univ. ofChicago Press, 1992, p.2.(21) WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. RJ: Imago,1975, passing.(22) WINE, Noga. Pulso e inconsciente. RJ: Zahar, 192, p. 32.(23) Idem, ibidem.(24) WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. RJ: Imago,1975, passing.(25) Idem, ibidem.(26) DELEUZE e GUATTARI. Mille Plateaux. Paris: Les Ed. de Minuit, 1980.(27) WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. RJ: Imago,1975, passing.O AUTORNestor Capoeira (Nestor Sezefredo dos Passos Neto) foi iniciado por mestre Leo[oldina (1933-2007) em 1965, e mestre de capoeira (Grupo Senzala, 1969, RJ). Formou-se em engenharia (UFRJ,1969), tem mestrado e doutorado em Comunicao e Cultura (ECO-UFRJ, 1995 e 2001, ortd. prof. Muniz Sodr). Tem 4 livros sobre capoeira publicados no Brasil (RJ, Ed. Record) e em outros 8 pases - em 2011 ultrapassou os 100.00 exemplares vendidos. Quando esta no Brasil, da aulas de capoeirano Galpo das Artes Urbanas, das 19 s 22h., na Gvea, RJ.www.nestorcapoeira.netwww.abeiramar.tvnestor.capoeira@[email protected]