1300236838 Arquivo Cortes Memoria Anpuh

19
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH • São Paulo, julho 2011 1 HERNÁN CORTÉS: A MEMÓRIA DO CONQUISTADOR Marcus Vinícius de Morais 1 Resumo Este artigo tem como objetivo mostrar e entender de que modo as diferentes imagens e representações do conquistador espanhol Hernán Cortés foi construída ao longo do tempo, a partir de relatos e da historiografia. Palavras-chave: Espanha, América, Conquista, Cortés, Pizarro. Abstract This article‟s goal is to show and understand how the different images and representations of the Spanish conqueror Hernán Cortez was built throughout time from reports and from historiography. Keywords: Spain, America, Conquest, Cortez, Pizarro Hernán Cortés e Francisco Pizarro certamente se tornaram os mais conhecidos protagonistas das expedições espanholas durante o período da expansão marítima. Conquistadores, estrategistas, heróis, manipuladores, sanguinários, piedosos, cruéis, amados ou odiados, muitos foram os adjetivos atribuídos a eles ao longo dos séculos. No entanto, as narrativas sobre suas proezas apresentam uma história igualmente particular. O modo como foram representados durante o tempo está totalmente vinculado às representações que foram feitas de seus atos, do modo como a historiografia leu as narrativas de viagens e das representações criadas a respeito da chamada conquista da América. Para analisar os escritos dos conquistadores, entender as representações que sobre eles foram construídas e a posterior confecção de suas respectivas memórias históricas, não se trata apenas de entender a história como verdade absoluta ou pensar o documento como janela aberta para a compreensão do passado, mas sim de ver e 1 Marcus Vinícius de Morais é mestre em História Cultural pela UNICAMP.

Transcript of 1300236838 Arquivo Cortes Memoria Anpuh

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 1

    HERNN CORTS: A MEMRIA DO CONQUISTADOR

    Marcus Vincius de Morais1

    Resumo

    Este artigo tem como objetivo mostrar e entender de que modo as diferentes imagens e

    representaes do conquistador espanhol Hernn Corts foi construda ao longo do

    tempo, a partir de relatos e da historiografia.

    Palavras-chave: Espanha, Amrica, Conquista, Corts, Pizarro.

    Abstract

    This articles goal is to show and understand how the different images and representations of the Spanish conqueror Hernn Cortez was built throughout time from

    reports and from historiography.

    Keywords: Spain, America, Conquest, Cortez, Pizarro

    Hernn Corts e Francisco Pizarro certamente se tornaram os mais conhecidos

    protagonistas das expedies espanholas durante o perodo da expanso martima.

    Conquistadores, estrategistas, heris, manipuladores, sanguinrios, piedosos, cruis,

    amados ou odiados, muitos foram os adjetivos atribudos a eles ao longo dos sculos.

    No entanto, as narrativas sobre suas proezas apresentam uma histria igualmente

    particular. O modo como foram representados durante o tempo est totalmente

    vinculado s representaes que foram feitas de seus atos, do modo como a

    historiografia leu as narrativas de viagens e das representaes criadas a respeito da

    chamada conquista da Amrica.

    Para analisar os escritos dos conquistadores, entender as representaes que

    sobre eles foram construdas e a posterior confeco de suas respectivas memrias

    histricas, no se trata apenas de entender a histria como verdade absoluta ou pensar o

    documento como janela aberta para a compreenso do passado, mas sim de ver e

    1 Marcus Vincius de Morais mestre em Histria Cultural pela UNICAMP.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 2

    entender a histria como texto e construo de sentido, pois qualquer histria sempre

    a histria de algum, contada por algum, a partir de um ponto de vista parcial

    (APPLEBY, 1995, p.11).

    O conceito de memria utilizado o mesmo trabalhado pelo historiador Jacques

    Le Goff em que a memria vista como a propriedade de conservar certas informaes,

    graas s quais as pessoas podem atualizar impresses ou informaes passadas, ou que

    representam como passadas, memria esta que confeccionada, construda, e que se

    relaciona com o perodo em que ela elaborada, como se as lembranas, em si, fossem,

    antes de tudo, episdios do passado (LE GOFF, 2000, p.419).

    Diante disso, as figuras de Hernn Corts e Francisco Pizarro certamente foram

    lidas, vistas e revisitadas de diferentes formas ao longo do tempo, em diversos lugares e

    de acordo com os mais variados interesses e propsitos. As suas aes, os conflitos, as

    guerras e as suas mais mltiplas e contraditrias atitudes, ou seja, suas passagens pela

    histria da humanidade, tambm apresentam a sua prpria histria, o que significa dizer

    que impossvel saber onde est narrado o verdadeiro Corts ou o verdadeiro Pizarro. A

    representao, de um lado manifesta uma ausncia, o que supe uma clara distino

    entre o que representa e o que representado; de outro, a representao a exibio de

    uma presena, a apresentao pblica e simblica de uma coisa ou de uma pessoa

    (CHARTIER, 2002, p.74).

    Nesse sentido, h muitos Corteses e diversos Pizarros, ou seja, existem

    muitas imagens diferentes a respeito dos conquistadores espanhis que quando

    analisadas mais de perto, tambm nos do informaes a respeito da poca em que cada

    uma delas foi construda. A partir de relatos, das crnicas de viagens e da historiografia

    tradicional possvel traar uma verdadeira genealogia das imagens criadas a respeito

    dos conquistadores: o essencial , portanto, compreender como os mesmos textos em

    formas impressas possivelmente diferentes podem ser diversamente apreendidos,

    manipulados, compreendidos (CHARTIER, 2002, p.70). Dessa maneira, a verdadeira

    tarefa da Histria descrever os mecanismos pelas quais as pessoas foram constitudas

    como sujeitos e o historiador, desse modo, pode contribuir para se compreender de que

    maneira uma figura ou grupo foi historicamente construdo(POSTER, 1997, p.11).

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 3

    HERNN CORTS

    Hernn Corts nasceu num humilde povoado espanhol chamado Medelim,

    passou por Salamanca durante a juventude, tentou a sorte como escrivo e, com a ajuda

    de seus pais, lanou-se Amrica. Em 1519 foi escolhido pelo governador de Cuba,

    Diego Velsquez, para liderar e ser capito de um grupo formado por centenas de

    soldados para dar incio a um dos episdios mais violentos da histria da Amrica.

    Corts e seus homens tinham como misso estabelecer contatos com alguns grupos

    indgenas e iniciar a explorao do continente americano.

    Aps partir de Cuba e chegar ao litoral, Corts atravs de intrpretes soube da

    existncia de outra regio, localizada mais ao interior da Amrica, que era dominada

    pelas cidades de Tenochtitln, Texcoco e Tlacopan, que formavam a chamada

    Confederao Mexica. Corts, por sua vez, foi para o interior do continente, com o

    intuito de se aproximar das sociedades indgenas, em busca de ouro, fiel ao monarca e

    em nome de Deus. A trilha do conquistador finalmente se iniciava.

    Entre 1519 e 1520, Cortez estabeleceu contatos com sociedades de idioma maia,

    no litoral de Vera Cruz para, em seguida, instituir alianas com as cidades de Cempoala

    e Tlaxcala, ambas rivais de Tenochtitln. Antes de entrar na capital mexica, Cortez e

    seus soldados ainda realizaram o famoso massacre de Cholula, passando pelos povoados

    de Xochimilco e Coyoacn at atingir o Mxico para o seu encontro com Montezuma.

    O primeiro contato, entre europeus e mexicas, foi amistoso, mas em pouco

    tempo os espanhis criariam as condies necessrias para se justificar uma guerra

    justa. Os europeus, auxiliados por milhares de indgenas, conseguiram cercar e sitiar a

    cidade de Tenochtitln e em pouco tempo Cuautehmoc, o ltimo governante da cidade

    de Tenochtitln, seria finalmente derrotado.

    A partir de 1521, Corts viveu anos de glria. Ele recebeu ttulos de nobreza e

    garantiu, junto ao rei, os mesmos privilgios aos seus filhos. Em sua honra foram

    celebradas festas e em seu nome missas foram rezadas. A conquista de Tenochtitln foi

    o choque e o encontro de dois continentes, de duas culturas, totalmente diversas, num

    grande exerccio de alteridade. A partir disso, um Novo Mundo seria construdo, no

    sendo mais possvel separar Corts da Amrica. A Histria os uniu para sempre.

    O domnio espanhol e a consequente colonizao certamente esto entre os

    acontecimentos que mais marcaram a histria do Novo Mundo (FLORESCANO, 2001,

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 4

    p.259). A partir desses episdios, uma nova forma de registrar as aes do homem, de

    se pensar o passado e imaginar o futuro, surgiu no continente americano. Essa tradio,

    contudo, foi seguida pela incluso de um novo protagonista do relato histrico: o

    conquistador europeu.

    As narrativas a respeito da Amrica e da invaso espanhola foram feitas a partir

    da lgica e do idioma europeus e a pena do conquistador se transformou em porta voz

    de verdades espanholas.

    Ao lado da invaso europeia caminhou a linguagem dos espanhis que comeou

    a nomear e a conferir novos significados natureza, aos homens e s culturas nativas

    (FLORESCANO, 2001, p.260).

    Desse modo, o povo vitorioso militarmente se transformar tambm naquele

    que, por direito adquirido, ir contar de que jeito a conquista ocorreu, a partir de seu

    ponto de vista particular. Assim, os dirios, as crnicas e as memrias a respeito das

    guerras e dos conflitos na Amrica, envolvendo espanhis e ndios, se transformaro, ao

    longo dos sculos, nas verses oficiais a respeito dos fatos.

    Dessa maneira, a conquista e a derrota militar dos ndios de Tenochtitln foram

    imediatamente seguidas pela reconstruo de sua memria histrica, por padres e

    cronistas militares. No entanto, no caso especfico de Corts, podemos pensar que sua

    memria foi construda no apenas aps a conquista de Tenochtitln, mas antes mesmo

    da queda da capital mexica, na medida em que suas cartas e seus relatos so feitos

    durante as campanhas militares e, portanto, antecedem o domnio espanhol. De qualquer

    modo, o protagonista efetivo foi, sucessivamente, a nao ganhadora de uma nova terra

    e de uma vasta humanidade pag, e os agentes dessa epopeia foram o conquistador, o

    frade evangelizador e os novos povoadores espanhis das terras descobertas.

    O CORTS CONQUISTADOR: POR HERNN CORTS

    Durante suas campanhas e viagens, Corts escreveu uma srie de cartas

    endereadas ao imperador Carlos V, as chamadas Cartas de Relao, e nelas deixou

    suas impresses a respeito dos indgenas, da Amrica e, principalmente, seus atos

    durante as guerras de conquista.

    A primeira imagem construda a respeito de Hernn Corts foi escrita por

    Hernn Corts, a partir de suas correspondncias endereadas ao monarca espanhol. A

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 5

    Corts interessava, sobretudo, o objetivo de sua empresa, as circunstncias tticas e os

    aspectos sociais e polticos que se relacionavam com sua conquista. Para o capito

    espanhol, era preciso descrever seus maiores feitos, em busca de reconhecimento real e

    isso ele fez at seus ltimos dias de vida. O fato de ter sido protagonista e testemunha

    ocular dos episdios que descreveu garante muito crdito narrativa de Corts.

    Nesse sentido, os relatos de viajantes sempre trazem a ideia de observador, do

    eu estive l e esse eu vi, do ponto de vista da enunciao, d crdito a um eu digo,

    na medida em que digo o que vi. O invisvel, para vocs, eu torno visvel atravs do

    meu discurso. Assim, o que se encontra em jogo a questo do visvel e do dizvel: eu

    vejo, eu digo e eu digo o que posso ver (HARTOG, 1999, p.278). As cartas de Corts

    no so, portanto, o real, mas se constituem como representaes. Elas fazem parte de

    uma literatura prpria das crnicas de viagens, em que o principal objetivo enaltecer o

    seu protagonista, a partir de uma forma especfica, de adjetivos e narrao de

    feitos tambm prprios, voltadas para um pblico particular, estabelecendo e criando

    uma verdadeira comunidade de discurso em que essa representao de Corts ir

    circular (RESTALL, 2006, p. 135).

    Em suas correspondncias, o capito descreveu suas proezas, as grandes atitudes

    que foram tomadas, sua enorme coragem, bravura e, com isso, divulgou e construiu uma

    imagem bastante positiva a respeito de si. Evidentemente Corts tinha como objetivos

    mostrar-se um fiel sdito da coroa espanhola e aparecer nas epstolas como verdadeiro

    cristo, ou seja, obediente e digno de confiana. Alm dessa postura, em nome do

    Estado e da Igreja Catlica, as Cartas de Relao fazem parte de um contexto em que as

    atitudes hericas do capito deveriam ser recompensadas com glrias e riquezas e, por

    isso, no foi toa que Corts as redigiu em primeira pessoa do singular, algo prprio da

    cultura renascentista, destacando, a todo o momento, sua ao individual:

    Em outra relao, meu excelentssimo Prncipe, disse vossa majestade as

    cidades e vilas que at ento para seu real servio eu tinha sujeitado e

    conquistado [...] E certifico a vossa majestade que farei Montezuma, preso ou

    morto, sdito da coroa real de vossa majestade (CORTS, 2000, p.87).

    Esse primeiro Corts, que comeava a surgir dessas narrativas iniciais, dialogou

    com as concepes de escrita, histria e tempo do sculo XVI, assim como com as

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 6

    aspiraes pessoais do capito espanhol. O que acontece do lado de fora do autor

    certamente influencia sua narrativa, mas as questes particulares tambm. De acordo

    com Dominick La Capra, em seu estudo sobre textos e construo da narrativa histrica,

    [...] o problema passa a ser o de repensar os conceitos de dentro e fora

    em relao com os processos de interao entre linguagem e mundo. Os

    processos textuais no podem se confinar dentro dos limites fsicos do livro. O

    prprio contexto ou mundo real igualmente textualizado (LA CAPRA,

    1993, p.240).

    Nas cartas de Corts possvel perceber, num primeiro momento, duas

    influncias narrativas que podem ser identificadas respectivamente com o mundo de

    fora e com o mundo de dentro do autor: a narrativa religiosa providencialista e a

    cavalheiresca, mesmo que as duas no possam ser separadas, pois ambas se constituem

    como parte integrante de uma mesma representao a respeito de Corts, ou seja, o

    cavaleiro cristo.

    A ideia crist da histria tambm apoiou a expanso imperial do poder espanhol,

    colocando-lhe um sentido providencial, em que o destino dos domnios espanhis

    passava pelas vontades de Deus, que tudo ento faria para que esses propsitos se

    realizassem. Enfim, a vitria da Espanha se transformava na vitria do cristianismo e,

    assim, as atitudes de Corts na Amrica eram, no fundo, as vontades de Deus de como

    as coisas deveriam seguir. Vrios soldados e missionrios atuaram convencidos de que

    eram agentes da providncia divina e transmitiram em suas obras a certeza de que os

    sucessivos descobrimentos e conquistas eram parte de um plano dirigido a unificar

    todos os povos do mundo sob o manto da cristandade (FLORESCANO, 2001, p.277).

    Em suas cartas, Corts deixa clara a vontade de Deus para que a campanha fosse um

    sucesso e, com isso, ele mesmo se colocava como o escolhido:

    E parece que o Esprito Santo me dera um aviso [...] Mas quis Nosso

    Senhor mostrar seu grande poder e misericrdia para conosco [...] e

    quis Deus que morresse uma pessoa deles que devia ser o principal

    (CORTS, 2000, p.95).

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 7

    Com isso, os soldados e os capites se tornavam os novos cruzados que tinham

    vindo derrotar o mais extenso dos reinos indgenas que eram, ento, associados aos

    infiis, aos muulmanos, resgatando todo o ideal de reconquista da Pennsula Ibrica. O

    conquistador Hernn Corts, assim, era o principal agente da histria hispano-crist

    (FLORESCANO, 2001, p.283), a partir de uma histria recente, contada pelas primeiras

    crnicas. Diante disso, possvel identificar tambm a tradio das narrativas

    cavalheirescas, herdadas desde o perodo medieval. Em cartas e documentos de Hernn

    Corts possvel perceber o estilo e at mesmo ver passagens que fazem referncia

    direta a essas narrativas.

    Os romances cavaleirescos de aventura introduziram, num primeiro momento,

    um ideal novo, uma moral laica: a cortesia, as boas maneiras, o servio senhora, o

    amor corteso, que era naturalmente adltero, o desprezo pelo casamento e o desdm

    pelo cime. No entanto, aos poucos ocorreu uma cristianizao desses heris. Surgia a

    cavalaria celestial, a idealizao das Cruzadas, a histria santa da cavalaria. Apareceu,

    assim, o cavaleiro cristo que colocou a espada a servio do Estado e da cristandade que

    ameaada s rechaava os infiis graas bravura dos cavaleiros do Ocidente (LE

    GOFF, 2006, p.197). Em seus registros, Corts narrou suas aventuras, seus amores, sua

    infidelidade amorosa, seus feitos que ora mostram piedade e que ora os transforma no

    cavaleiro impiedoso. De qualquer forma, sempre se constri, em sua narrativa, o

    cavaleiro herico, capaz de fazer tudo, de realizar os maiores atos, em nome de Deus e

    da coroa espanhola. No trecho abaixo, possvel perceber a valorizao da ao

    individual do conquistador, assim como seu mpeto de conquista e maquiavelismo:

    Antes que os nativos pudessem se juntar, queimei seis pequenos povoados e

    prendi e levei para o acampamento quatrocentas pessoas, entre homens e

    mulheres, sem que me fizessem qualquer dano. (...) simplesmente fazia de

    conta que confiava em quem vinha me falar e usava a discrdia para subjug-

    los mais (CORTS, 2000, p.95).

    Alm das cartas de Hernn Corts, a obra do soldado cronista Bernal Daz Del

    Castilho, Historia verdadera de la conquista de la Nueva Espaa, tambm exaltou a

    figura do lder espanhol. Apesar de Bernal Daz tambm enaltecer a ao do grupo e dos

    soldados, ou seja, do coletivo, toda a narrativa foi centrada na figura de Corts, sendo

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 8

    que o tom de aventura cavalheiresca e crist permanece em toda a obra, reforando e

    ajudando a construir a representao herica a respeito dos espanhis.

    importante mencionar que a obra de Bernal Daz, a princpio, se colocou como

    o verdadeiro relato a respeito da conquista espanhola e que, nesse sentido, entre ele e

    Corts se travou uma batalha pela memria oficial a respeito do episdio. As cartas de

    relao do capito espanhol, nesse caso, de acordo com a viso de Bernal Daz,

    precisavam ser completadas, com detalhes, informaes precisas, com a valorizao das

    aes dos soldados, principalmente porque as suas memrias foram escritas em um

    perodo que Corts j tinha se envolvido em diversos atritos com a coroa espanhola.

    Esse cavaleiro cristo, cheio de valores e fidelidade, ou seja, o prprio Corts, se

    tornou a primeira imagem a respeito do capito espanhol. Sua bravura, coragem e

    inteligncia militar so aspectos de destaque no seu texto. Essa imagem do capito

    espanhol ser resgatada nas crnicas religiosas dos franciscanos, sobretudo nas obras

    Historia de Los Indios de la Nueva Espaa de 1540 e Historia Eclesiastica Indiana de

    1596, respectivamente dos freis Torbio de Benavente, o Motolina e Gernimo de

    Mendieta.

    Para os religiosos, a chegada dos irmos menores ao Novo Mundo foi o

    equivalente sada do povo judeu do Egito: significava a derrota da idolatria e o incio

    da peregrinao em direo terra prometida. Nesse caso, tambm se faz uma

    associao direta entre Corts e Moiss e, assim, os grandes feitos do capito espanhol

    so comparados s grandes narrativas do texto sagrado. Hernn Corts e suas manobras

    habilidosas se transformaram, a partir dos escritos religiosos, em parbolas bblicas.

    Corts era, ento, o enviado para libertar os astecas de sua servido ao demnio e

    conduzi-los, finalmente, terra prometida da Igreja Catlica. Corts, nessa primeira

    imagem, simbolizava esse mundo.

    A TRADIO LASCASIANA E O OUTRO CORTS

    Alm da imagem de Corts como o heri da cristandade e da Espanha do sculo

    XVI, outra tradio tambm se formou nesse mesmo sculo. Aps os primeiros anos de

    colonizao, muitas denncias e queixas a respeito da ao espanhola na Amrica foram

    feitas, a partir de cartas, livros e discursos contrrios conquista, feitos em defesa aos

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 9

    ndios. A maior parte das acusaes se tratava de referncias violncia usada pelos

    conquistadores e aos maus tratos que os colonos lanavam sobre os indgenas.

    O frei dominicano Bartolom de Las Casas foi o maior representante de um

    novo grupo de homens que se colocou abertamente contra as prticas de Corts na

    Amrica. Sua obra mais conhecida foi certamente a Brevssima relao da destruio

    das ndias escrita em 1542 em que o religioso fez uma srie de denuncias a respeito da

    explorao e dos abusos dos encomenderos, afirmando que os crimes dos colonizadores

    seriam pagos com a condenao eterna no Inferno.

    A obra de Las Casas, assim como as cartas de Corts, est contida nas

    convenes e no estilo da poca, principalmente no que diz respeito ao uso de

    argumentos aristotlicos para convencer o leitor a respeito de sua defesa do mundo

    indgena. O dominicano certamente tinha interesses particulares nesse ataque aos

    conquistadores, j que sua experincia missionria na Amrica havia sido pequena e

    que, ele prprio, defendia um ndio que mal conhecia: o xito obtido atravs da forma

    com que elabora sua argumentao transforma-o em heri. No pelo que ele fez de

    generoso como missionrio, mas pela sua capacidade de nos comover (THEODORO,

    1992, p.90).

    Para isso, Las Casas utilizava argumentos religiosos para demonstrar os atos

    considerados errneos dos conquistadores europeus. Sua imagem sobre o indgena

    corresponde uma representao de dor e sofrimento, talvez porque estivesse mais

    preocupado em vencer os debates que logo travaria a respeito do tema. Alm disso, a

    imagem que constri sobre os conquistadores dialogava com toda a iconografia

    produzida na Europa sobre o tema, em que a violncia dos conquistadores parecia ser o

    nico ingrediente dessas narraes:

    Um espanhol desembainha a espada e imediatamente os outros cem fazem o

    mesmo, e comeam a estripar, rasgar e massacrar aquelas ovelhas e aqueles

    cordeiros, homens, mulheres, crianas e velhos que estavam sentados,

    tranquilamente, olhando espantados para os cavalos e para os espanhis. Em

    pouco tempo no restaram sobreviventes de todos os ndios que ali se

    encontravam (LAS CASAS, 1986, p.256).

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 10

    O frade declarou que Cristo era um libertador e, assim, o reino dos cus

    anunciado no Evangelho devia ser predicado com amor e esprito de convencimento e

    no com violncia ou escravido. Seguindo estas ideias, fez uma crtica aberta a respeito

    das formas de conquista e colonizao e atacou tambm os religiosos que haviam

    argumentado que a conquista armada era um passo necessrio entrada do Evangelho

    na Amrica. Nas palavras do frade, em uma de suas obras, Histria de las ndias,

    possvel perceber o tom de defesa e denncia:

    [...] e tendo experincia que em nenhuma parte podiam escapar dos

    espanhis, sofriam e morriam nas minas e nos outros trabalhos, quase como

    pasmados, insensveis e pusilnimes, degenerados e deixando-se morrer,

    calando desesperados, no vendo pessoas no mundo a quem pudessem

    queixar-se nem que delas tivesse piedade (LAS CASAS, 1986, p.206).

    O dominicano descreveu com drama as matanas coletivas dos ndios, a violao

    de mulheres, as epidemias, os assassinatos de centenas de chefes indgenas e, para isso,

    recorria a diversas cenas bblicas de cativeiro e escravido. O discurso lascasiano, em

    que o indgena era visto como vtima das atrocidades dos espanhis teria enorme

    repercusso na histria do continente americano e nele o indgena aparecia como fraco,

    indefeso, violentado pelo massacre europeu, pela crueldade e, sobretudo, pela cobia

    dos espanhis.No entanto, ao mesmo tempo em que defendeu os indgenas, Las Casas

    acabou reforando a ideia de superioridade espanhola, nas armas, nas tcnicas e criando

    o mito do indgena fraco, frgil, igualmente carente de ajuda externa o que fez perpetuar

    ainda mais a concepo de que o indgena necessitava de ajuda, como se fosse uma

    criana indefesa e de que o continente americano, vtima da cobia, vivia jorrando

    sangue e de veias abertas ao domnio estrangeiro.

    Ainda assim, as aes de Hernn Corts que haviam sido grandemente elogiadas

    pelos cronistas anteriores, como nas cartas do prprio Corts, e nas obras de Bernal

    Daz, Motolina e Mendieta, nos textos de Las Casas tomaram outra forma, pois

    mostravam um Corts tirano, sem escrpulos, ladro e assassino que mediante uma

    srie de crimes havia arrasado os ndios sem piedade.

    As denncias de Las Casas tiveram tamanha repercusso entre setores da Igreja

    e da intelectualidade europeias que na cidade de Valladolid entre 1550 e 1551, ocorreu

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 11

    um famoso debate tico e filosfico a respeito da conquista e da presena espanhola na

    Amrica, travado entre Bartolom de Las Casas e o humanista Juan Gines de

    Seplveda.

    Para sua defesa, Seplveda utilizou as obras dos primeiros cronistas das ndias,

    particularmente o texto de Gonalo Fernandes de Oviedo e sua obra Histria geral e

    natural das ndias de 1535, para demonstrar a superioridade da civilizao espanhola

    sobre as culturas americanas, para valorizar a ao de Corts e para reduzir os ndios

    categoria de selvagens.

    Las Casas, por outro lado, fez uma fervorosa defesa dos indgenas, baseado em

    argumentos religiosos. De qualquer forma, essas duas imagens a respeito da conquista e

    de Corts marcariam as tradies seguintes. Corts era por um lado o conquistador

    herico, representante da cultura europeia, fiel sdito da coroa e da Igreja Catlica, ou

    seja, um verdadeiro cavaleiro. Mas por outro lado comeava a se tornar tambm o

    tirano, maquiavlico, dissimulado, violento, capaz de fazer de tudo para dominar,

    vencer e enriquecer (FLORESCANO, 2002).

    A TRADIO CIENTFICA EUROPEIA DO SCULO XIX

    Esse tipo de viso, longe de ser uma inovao metodolgica, remete-se aos

    primeiros estudos realizados pela Histria acadmica do sculo XIX. Obviamente,

    quando falamos em tradio, h que se levar em considerao que as idias seguem um

    fluxo ininterrupto de mudanas, apropriaes e significaes. Do XIX aos dias de hoje,

    o cientificismo ganhou novas roupagens, novas cores e adereos, distanciando-se de seu

    ideal imperialista para adquirir tons de defesa da pluralidade (FERNANDES, 2003).

    Cercado de fontes consideradas oficiais e, mais importante, espanholas,

    somente um tipo de escrita era justificvel ao ofcio do historiador: a cientfica. Dentro

    dessa perspectiva de histria acadmica do sculo XIX, racional e detentora da verdade,

    destaca-se a obra do norte-americano William Prescott, The Conquest of Mexico de

    1843. Tanto Prescott quanto Leopold Von Ranke, em seu famoso artigo As colnias

    americanas (RANKE, 1986), de 1880, analisaram as crnicas espanholas como fieis

    testemunhos da realidade, principalmente as cartas de Corts e as leram de acordo com

    os olhos do sculo XIX, imperialista, nacionalista, baseados em conceitos como os de

    raa, civilizao, barbrie e de superioridade biolgica.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 12

    Os autores escreveram em um momento em que os estudos arqueolgicos na

    Amrica ainda no tinham se desenvolvido plenamente. Alm disso, o perodo foi

    marcado pela ideia de que as grandes potncias europeias, os imprios coloniais,

    levariam a civilizao para os confins do mundo, no verdadeiro fardo do homem

    branco, imortalizado no poema de Kipling.

    Desse modo, diferena e superioridade convivero harmoniosamente no

    clssico texto de Wiliam Prescott. Por um lado, h a figura do bom selvagem, dcil,

    repleto de qualidades, que , ao mesmo tempo, estranho e inferior. Por outro, existe o

    discurso da razo, da civilidade e da urbanizao como elementos julgadores e

    hierarquizadores. Lados opostos que se chocam, esta a marca do autor, visvel desde o

    princpio. Como ele mesmo diz: [...] instituies humanas quando no conectadas com

    prosperidade e progresso, devem cair. [...] pela violncia interna [...] E quem lamentaria

    esta queda? (PRESCOTT, 1966, p.87).

    A diferena na maneira de ver o mundo entre europeus e astecas se transfere

    para a eficcia e qualidade das armas e fica ainda mais ntida na habilidade tcnica e

    racional de Corts em comandar seus homens: os canhes vencero os tacapes. Na

    narrativa de Prescott, que ganha tons de aventuras europeias em mundo extico e

    distante, Corts certamente narrado como o heri da civilizao ocidental. Por isso, o

    autor narra cenas surpreendentes: Corts agarrou e arremessou um dos ndios sobre os

    muros com o seu prprio brao. A histria no improvvel, pois Corts era um homem

    de agilidade e fora incomum (PRESCOTT, 1966, p.143). Aqui, vemos a

    superioridade da raa, em que biologicamente o capito espanhol no apenas mais

    hbil, mas, sobretudo, mais forte que os indgenas. Em outra passagem, possvel

    perceber a dualidade entre civilizao e barbrie. Os ndios so brbaros no apenas

    porque se defendem com armas menos desenvolvidas tecnicamente, de acordo com a

    viso do autor, mas porque so supersticiosos e acreditam no sobrenatural. Corts,

    astuto, tira proveito de tudo isso:

    Esta foi uma inquestionvel e certeira medida de Corts, para reforar este

    sentimento de superstio, tanto quanto possvel impressionar os nativos, de

    incio, com um saudvel medo dos poderes sobrenaturais dos espanhis

    (PRESCOTT, 1966, p.125).

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 13

    E os corpos seminus dos nativos no ofereciam proteo, os espanhis

    cortavam com muita facilidade. Os cavalos, as armas de fogo e os

    armamentos dos espanhis eram tudo novidade [...] (PRESCOTT, 1966,

    p.97).

    Naturalmente, como Prescott escreveu muitos sculos aps os episdios da

    conquista, como leu as cartas de Corts sem questionar a fonte, mas sim a enxergando

    como verdade absoluta e de acordo com princpios prprios e do sculo XIX, sua viso

    altamente teleolgica. Corts, em sua obra, participa o tempo inteiro de todo o lento

    processo de conquista, fica sem dormir, no tem fome, sono ou cansao. O lder

    espanhol perfeito, audaz, corajoso, arrisca e suas decises, sempre pensadas e

    meticulosas, esto evidentemente corretas. Corts corajoso e Montezuma covarde;

    Corts racional e os ndios supersticiosos. A religio de um verdadeira, a dos outros

    era mentirosa. Os ndios se defendiam com magia, pressgios e apelando para os seus

    deuses, ao passo que os espanhis usavam armas, tcnicas, tticas, exrcito, canhes e

    inteligncia. De um lado, magia e superstio, do outro lado religio crist, cincia e

    racionalismo.

    Ainda dentro dessas posturas de inferioridade e superioridade racial, Prescott

    mostra que o prprio Montezuma sabia de sua fraqueza diante do exrcito cristo:

    Montezuma sabia que os espanhis eram mortais, mas de uma raa diferente, de fato,

    dos astecas, mais sbios e mais valentes (PRESCOTT, 1966, p.128). Enfim, para o

    autor norte-americano, o motivo da derrota indgena foi a sua inferioridade frente

    civilizao europeia. Sua verso dos fatos trata mais do sculo XIX e de que modo as

    guerras eram vistas, do que do sculo XVI em si:

    A invulnerabilidade da armadura espanhola, suas espadas de material

    inigualvel e habilidade para us-las, lhes forneceram de as vantagens que

    excediam de longe os pontos da fora fsica e vantagem numrica

    (PRESCOTT, 1966, p.144).

    No fim de sua obra, fazendo apologia marcha da civilizao rumo ao

    progresso, Prescott questiona se algum sentiria falta ou no de uma sociedade

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 14

    desprovida de cincia, assim como ele via a asteca. A guerra se justifica pelo avano da

    cincia.

    O MXICO E A NAO MESTIA: O CORTS ESQUECIDO

    Durante o mesmo sculo XIX, a independncia do Mxico em 1810 e a

    construo do Estado Nacional na Amrica trouxeram de volta a antiga dualidade a

    respeito da imagem de Corts. As posturas conservadora e liberal, no momento de

    concepo do Estado mexicano, viam e enxergavam o futuro da Amrica de maneiras

    distintas e, portanto, se relacionavam com o passado da conquista de maneiras

    igualmente diferentes.

    Nos anos que se seguiram independncia 1810 e o nascimento da Repblica, a

    luta poltica entre liberais e conservadores transformou o passado colonial na poca do

    atraso da histria mexicana. Era preciso de qualquer forma romper com o passado

    colonial e, para isso, a independncia e, sobretudo, a Repblica, deveriam marcar um

    novo momento na histria.

    No entanto, no havia consenso a respeito de qual memria se ergueria para a

    recm-formada nao mexicana. As disputas polticas certamente ditavam os rumos

    dessa relao com o passado e, por isso, a reconstruo da memria esteve centrada nos

    embates entre duas opes. Os polticos liberais queriam edificar a nova nao sobre as

    antigas razes indgenas e os conservadores queriam se sustentar exclusivamente no

    passado das guerras de conquistas e da glria dos espanhis. Os liberais pareciam ser

    herdeiros dos escritos de Las Casas e os conservadores herdavam o discurso da crnica

    militar, enaltecendo as aes dos conquistadores.

    Independentemente de qual postura faria mais sucesso no momento de

    concepo do Estado mexicano do sculo XIX, os dois lados, liberal e conservador,

    partiam do princpio de que o Estado nacional, em vez de aceitar a diversidade da

    sociedade real, deveria uniformiz-la mediante uma legislao geral, uma administrao

    central e um poder nico. Mas as suas posturas de vnculo com a reconstruo do

    passado teriam muitas dificuldades de lidar com a memria da nova nao, pois antes de

    serem propostas integradoras, elas assumiam carter extremista. O projeto de Estado da

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 15

    segunda metade do sculo XIX, portanto, imprimia na populao a necessidade de se

    criar a imagem de apenas um Mxico, nico e integrado.

    Porm, no era possvel lidar com a diviso radical das diferentes posturas de

    liberais e conservadores, j que no Mxico existiam milhares de pessoas que poderiam

    se sentir excludas dessa histria. Por isso, era vital encontrar outra maneira de se

    entender a histria mexicana e, com isso, rever a imagem de Corts, dos astecas, de

    modo que cada um dos dois lados fosse contemplado. Essa nova histria tinha que lidar

    com as diferenas e, por isso, comeou a se forjar um novo discurso, de uma nova nao

    mexicana, que seria ento mestia, e que marcharia rumo ao progresso.

    O segundo momento do governo de Porfrio Dias (1876 1911), chamado de

    porfiriato, foi o articulador para a construo de um Estado na Amrica Latina e esse

    mesmo perodo foi tambm o responsvel por criar uma narrativa do passado mexicano

    unificadora de identidade cultural compartilhada pelos diversos grupos sociais. Era

    preciso criar uma histria abarcadora de todas as pocas do passado mexicano, um

    relato integrador das diversas razes da nao. Isso se tornaria realidade na coleo

    enciclopdica Mxico atravs dos sculos, publicada em 1889. A partir disso, o Mxico

    no era mais branco e nem ndio, mas sim fruto da mestiagem de dois povos.

    Diante disso, a imagem de Corts passava a ocupar um espao intermedirio na

    histria do Mxico. A conquista espanhola era vista como um momento de dor para os

    mexicanos, por se tratar de um episdio violento, responsvel pela destruio de uma

    antiga e maravilhosa cultura, a dos astecas, mas ao mesmo tempo essa dor era a

    responsvel pelo nascimento do Mxico mestio, fruto da fuso entre espanhis e

    indgenas. Desse modo, Corts oscilava entre aquele que era o responsvel pela

    destruio dos indgenas e aquele que era tambm o ponto de partida para a evoluo da

    nao mexicana.

    A Amrica, assim, era vista quase como uma mulher virgem que foi violentada

    pelo conquistador espanhol e que ali imps sua religio e suas leis. Mas dessa mesma

    violncia nasceria uma nao, o Mxico mestio e independente do sculo XIX. No

    entanto, Hernn Corts passava a ser, em parte, o pai dessa violncia e, portanto, se

    aproximava mais do esquecimento do que da eterna lembrana.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 16

    CORTS: REFLEXO

    As representaes construdas a respeito de Hernn Corts esto situadas entre a

    valorizao do guerreiro, seja nas crnicas do sculo XVI ou na historiografia cientfica

    do sculo XIX e na associao entre Corts e o massacre, o genocdio e o

    aniquilamento, tanto na tradio lascasiana como na construo do estado mestio

    mexicano.

    A imagem do capito, principalmente no Mxico, lugar de ao efetiva de

    Corts, parece habitar em um silncio que se localiza exatamente entre a imagem da

    destruio dos antigos astecas e o nascimento de uma nova sociedade. Corts fica no

    espao vazio entre a ideia to difundida de derrota indgena e a criao do Mxico

    contemporneo. Ele no foi apenas o fim, mas o comeo. Poucos personagens histricos

    conseguiram reunir tantas contradies em torno de sua figura como Hernn Corts.

    Em outras regies da Mesoamrica, a imagem de Corts menos negativa, como

    por exemplo, na regio Maia do litoral de Iucat que ele nem mesmo chegou a visitar.

    Mas em relao ao Mxico, que se v e se enxerga como nao mestia desde o

    porfiriato, o silncio toma conta da imagem de Corts. Ele quase no lembrado, mas

    parece haver um esforo para se lembrar que Corts deve ser esquecido.

    No h monumentos em seu nome e o seu tmulo se localiza em lugar de difcil

    acesso, dentro de uma pequena igreja, discreto e quase imperceptvel, no aparecendo

    nem mesmo como ponto turstico a ser visitado, ao passo que a esttua de Cuautemoc,

    ltimo lder dos astecas, pode ser facilmente admirada em uma das principais avenidas

    da cidade com forte tradio e representao clssica. Corts, por outro lado, representa

    a dor, o nascimento sofrido, a morte do passado indgena e a gestao do mundo

    colonial. Essa memria cambiante de Corts pode ser exemplificada na enorme

    quantidade de vezes que os seus restos foram enterrados e desenterrados, ou seja, nas

    inmeras vezes em que se procurou um lugar fixo e eterno para Corts. Qual seria,

    ento, o lugar de Corts? Em que local e de que modo ele ser lembrado?

    Corts guarda grandes ambiguidades, mais do que a mdia de um lder. A praa

    das trs culturas, em Tlatelolco, apresenta uma verso dolorosa desta memria: ali

    tombou Cuautemoc, a 13 de agosto de 1521. O episdio foi definido no como uma

    vitria ou derrota, mas o doloroso nascimento de um povo mestio. Destaca-se a

    violncia e aparece a ambiguidade. Sem Corts o Mxico no existiria, no seria

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 17

    catlico, no falaria espanhol, no seria o pas que hoje, para o bem e para o mal.

    Diante de ns ainda paira a esfinge cortesiana, insinuando decifrao ou aniquilamento

    (KARNAL, 2011, p.237).

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    APPLEBY, Joyce; HUNT, Lynn; JACOB, Margaret. Telling the truth about history. Norton &

    Company, 1995.

    ARMAS MEDINA, Fernando de. Pizarro. Madrid: Publicaciones Espaolas, 1954.

    AROCENA, Luis A. La relacin de Pero Sancho. Buenos Aires: Plus Ultra, 1987.

    BLOCH, Marc. Apologia da Histria ou o ofcio do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

    2001.

    CASTILLO, Bernal Daz. Historia Verdadera de la conquista de la Nueva Espaa. Madrid:

    Espasa, 1997.

    CHARTIER, Roger. O mundo como representao. In: beira da falsia: a Histria entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2002.

    CHIRINOS RIVERA, Andrs. Quipus del Tahuantinsuyu. Curacas, Incas y su saber matemtico

    em el siglo XVI. Lima: Editorial Commentarios, 2010.

    CORTES, Hernn. Cartas de Relacin. Madrid: Dastin, 2000.

    CORTES, Hernn. Cartas de Relacin. Madrid: Dastin, 2000.

    CUNEO-VIDAL, Rmulo. Obras completas. 2.ed. Lima: Grfica Morsom, 1978, Tomo 2, Vol.

    III: Vida del conquistador del Peru Don Francisco Pizarro.

    DRINOT, Paulo, GAROFALO, Leo (Eds.). Ms all de la dominacin y la resistncia.

    Estdios de historia peruana, siglos XVI-XX. Lima: IEP. 2005.

    DUTHURBURU, Jos Antonio del. Pizarro. Lima: Ed. Cope, 2001, 2.v.

    FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira & MORAIS, Marcus Vincius de. Renovao da Histria da Amrica. In. Histria na sala de aula. So Paulo: Contexto, 2003.

    FLORESCANO, Enrique (organizador). Espelho Mexicano. Mxico: FCE, 2002.

    FLORESCANO, Enrique. Memoria Mexicana. Mxico: Taurus, 2001.

    GOBINEAU, J.A. Essai sur Iingalit ds races humaines. Ouvres. Paris: Gallimard-Pliade, 1983.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 18

    GUILLEN, Edmundo. El testimonio Inca de la conquista del Peru. Boletn del Instituto Francs

    de Estdios Andinos, VII, n3-4, p.39. Cpia do documento original encontra-se no AGI,

    Escribana de Cmera, Leg. 496A.

    GUILLN GUILLN, Edmundo. Versin inca de la conquista. Lima: Milla Batres, 1974.

    GUTIRREZ VIUALES, Rodrigo. Monumento conmemorativo y espacio pblico en

    Iberoamrica. Madrid: Ediciones Ctedra, 2004.

    HARTOG, Franois. O espelho de Herdoto ensaio sobre a representao do outro. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

    HERRERA Y TORDESILLAS, Antonio de. Historia general de los hechos de los castellanos

    en las islas y tierra firme del Mar Oceano. Asuncin: Editorial Guarania, 1945.

    KARNAL, Leandro. Posfcio. In.: MORAIS, Marcus Vincius de. Hernn Cortez. So Paulo: Contexto, 2011.

    KUBLER, George. The quechua in the colonial world. In: STEWARD, H. Julian. Handbook of

    South American Indians. New York: Cooper Square Publishers INC, 1963.

    LA CAPRA, Dominick. Rethinking Intellectual History: Texts, Contexts, Language. Cornell

    University, 1993.

    LAS CASAS, Bartolomeu. Historia de las Indias. Edio de Augustn Millares Carlo. Mxico:

    FCE, 1986..

    LAVALL, Bernard. Francisco Pizarro. Biografa de una conquista. Lima: IFEA/EF/IRA/IEP,

    2005.

    LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionrio temtico do Ocidente Medieval.

    Bauru: Edusc, 2006. pp.197-198, volume I.

    LOHMANN VILLENA, Guillermo. Francisco Pizarro. Testimonio. Documentos oficiales,

    cartas y escritos vrios. Madrid: CSIC, 1986I.

    LOHMANN VILLENA, Guillermo. Francisco Pizarro: Testimonio; documentos oficiales,

    cartas e escritos vrios. Madrid: CSIC, 1986.

    LPEZ DE GMARA, Francisco. Historia General de las Indias. Madrid: Espasa Calpe, 1922.

    LORENTE, Sebastin. Historia de la conquista del Peru. Lima: [Impr. Arbieu], 1861, p.107.

    MENA, Cristobal. La conquista del Per llamada la Nueva Castilla. In: SALAS, Alberto M.

    Cronicas iniciales de la conquista del Peru. Buenos Aires: Editorial Plus Ultra, 1987. [1534].

    MENDIBURU, Manuel de. Diccionario Historico Biografico del Peru. Lima: Libreria e

    Imprenta Gil, 1934, Tomo IX.

    MENDIBURU, Manuel de. Diccionario Histrico-Biogrfico del Per. Lima: Imprenta

    Enrique Palacios, 1931, Tomo I, p.1 e 3.

    PEASE, Franklin. Las crnicas y los Andes. Lima: FCE, 2010.

  • Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 2011 19

    PEASE, Franklin. Los ltimos incas del Cuzco. Lima: Ediciones P. L. Villanueva, 1972.

    PORRAS BARRENECHEA, Ral. Cartas del Per. (1524-1543). Lima: Edicin de la Sociedad

    de los Biblifilos Peruanos, 1959.

    PORRAS BARRENECHEA, Ral. Los cronistas del Peru. Lima: Banco de Credito del Peru,

    1986.

    POSTER, Mark. Cultural History and Postmodernity. New York: Columbia Press, 1997.

    PRESCOTT, William. The Conquest of Mexico. New York: Washington Press Books,

    1966.p.87.

    PRESCOTT, Willian. History of the conquest of Peru, London: Routledge, 1862.

    QUINTANA, Manuel Jos. Vida de Francisco Pizarro. Madrid: Espasa-Calpe, 1959 [1830].

    RENAN, E. L instruction suprieure em France. In.: Ouvres completes. (volume 10). Calmann-Lvy, 1947.

    RESTALL, Matthew. Sete mitos da conquista espanhola.Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira,

    2006.

    ROSTWOROWSKI DE DIEZ CANSECO, Mara. Doa Francisca Pizarro, uma ilustre

    mestiza, 1534-1598. Lima: IEP, 1989.

    THEODORO, Janice. Amrica Barroca: tema e variaes. So Paulo: Edusp, 1992.

    VARN GABAI, Rafael. La estatua de Francisco Pizarro en Lima. Historia e identidad

    nacional. Revista de ndias, 2006, vol.LXVI, n236

    VEGA, Juan Jos. Los incas frente a Espaa. Las guerras de la resistncia, 1531-1544. Lima:

    Peisa, 1992.

    WACHTEL, Nathan. Los vencidos; los indios del Peru frente a la conquista espaola (1530-

    1570). Madrid: Alianza Editorial, 1976.

    XEREZ, Francisco. Verdadera relacin de la conquista del Per. Edio de Maria Concepcin

    Bravo Guerrera. Madrid: Histria 16, 1985. [1534].