Vocabulário Controlado sobre escravidão, abolição e pós-abolição ...
“130 anos pós-abolição: vivências negras no espaço urbano” … · 14 15 subalter-de e...
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“130 anos pós-abolição: vivências negras no espaço urbano”
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Diretoria Executiva | G
estão 2016-2017 Presidente: D
aniela Cam
pos Libório V
ice-Presidente: Betânia de Moraes A
lfonsin Tesoureira: Vanessa K
oetz
Diretora A
dministrativa: Ligia M
aria Silva Melo de C
asimiro
Diretor A
dministrativo: A
lex Ferreira Magalhães
Secretário Executivo: Henrique Botelho Frota
Organização e edição:
Jéssica Tavares Cerqueira
Projeto Gráfico e diagram
ação: M
ariana Boaventura
Fotos: M
ariana Prudêncio
IN59 Instituto Brasileiro de D
ireito Urbanístico - IBD
U 130 anos pós-abolição: vivências negras no espaço urbano
São Paulo: IBDU
, 2017.
98 p. ISBN
978-85-68957-08-0
1. Direito à C
idade 2. Gênero 3. D
iversidade 4. Sociedade 5. Brasil I. Título II. Instituto Brasileiro de D
ireito Urbanístico III. Fundação Ford Brasil
CD
D 349 + 305
CD
U 305-055.2
Attribution-N
onCom
mercial-ShareA
like 4.0 International (CC
BY-N
C-SA
4.0)
ww
w.ibdu.org.br
67
Ap
rese
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ção
O projeto editorial “D
ireito à Cidade: N
ovos Olhares”, nasceu em
meados de
março de 2017, m
otivado por uma necessidade de conectar lutas e trajetórias a
partir das vozes de pessoas engajadas contra as opressões. Seus primeiros frutos
foram voltados à discussão de gênero e cidade, tendo apresentado grande recep-
tividade. Quase dez m
eses depois, percebemos que o projeto ganhou propor-
ções, parceiros e colaboradores da mesm
a grandeza da necessidade de discutir a pauta de opressões relacionada ao debate da vida na urbe. O
u seja, gigante. Foram
aproximadam
ente 50 autoras e autores que se mobilizaram
entre os quatro volum
es publicados, expressando uma enorm
e diversidade de temas e
lutas. O olhar desses grandes ativistas por cidades m
ais justas nos guiou adiante no com
promisso ético com
a construção de políticas públicas interseccionais, que devem
ter como responsabilidade e razão de existir a construção de condi-
ções reais para que a população negra, as mulheres, as LG
BT+, os povos indíge-nas, quilom
bolas e toda a população oprimida possam
exercer a sua humanida-
de livremente.
Para compreender m
elhor as consequências da radicalização do mal, utili-
zada pela branquitude1 contra os povos negros no am
biente urbano brasileiro, ousam
os reunir neste quarto livro vozes que ecoam duras verdades com
muita
sabedoria. São reais porta-vozes da resistência de um Brasil que, 130 anos após
a abolição, não nos permitiu que o título deste volum
e fosse outro. Lembrar as
vergonhosas estruturas que pavimentaram
a produção do espaço urbano ainda não nos perm
ite pensar nas formas de efetivação do direito à cidade, m
as no im
pacto da sua violação em nossas vidas.
O cam
inho da luta pela vida e pelo bem viver não é só um
caminho sem
volta, com
o também
é o caminho possível.
Pelos nossos ancestrais e pelos que estão por vir.
Boa Leitura!A
organização.
1 Mal radical - C
onceito utlizado por Achille M
bembe em
“A C
rítica da Razão” (2013) para
tratar de marcadores negativos com
o instrumento de desum
anização dos sujeitos.
Apresentação | 6
1. Mulheres N
egras e a Cidade: U
m debate a partir do pensam
ento de Patrícia H
ill Collins | 10
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2. Mão Preta | 17
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3. Dois Rios: A
circulação dos negros na Cidade do Rio de Janeiro | 24
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4. A resistência negra em
São Paulo | 29 Jo
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5. Batalhas de MC
’s e direito à cidade: a efervescência do Hip H
op no grande A
BC Paulista | 40
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6. O direito à cidade não existe para m
ulheres e negros | 48 L
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7. Pela População Negra do Entorno do D
F: Quem
se sente responsável? R
eflexões sobre problemática ausência de Políticas de Públicas para o
DF e Entorno | 56
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orpo negro e gordo bóia no mar | 68
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9. Pelo Direito de sobreviver a cidade | 78
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10. A autonom
ia seletiva da cidade de São Paulo | 81 Brunatta ou Bruna Tam
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11. O C
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12. Fotografia | 94N
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ireito pela Universidade Federal de Pelotas/RS. M
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O espaço urbano apresenta um
a relação intrínseca com a questão racial. O
acesso à cidade, as ocupações urbanas, os territórios são vivenciados de m
a-neira distinta por pessoas negras. A
análise que faço neste artigo, portanto, im
plica na utilização da interseccionalidade como um
a ferramenta reflexi-
va para problematizar a questão do D
ireito à cidade para mulheres negras.
Com
preendo a interseccionalidade na perspectiva apontada pela Dra.Patrícia
Hill C
ollins, socióloga afro-estadunidense, reconhecida internacionalmente
pelo trabalho desenvolvido frente às questões pertinentes ao pensamento de
mulheres negras
2. No últim
o período Hill C
ollins têm se dedicado a pensar a
interseccionalidade como um
campo potente de form
ulação teórica crítica e, nesse sentido, tam
bém tem
apontado a interseccionalidade como um
campo
de conhecimento capaz de articular transform
ações sociais que promovam
m
udanças significativas nas instituições, o que consubstancia o arco desse ensaio que é refletir sobre a m
arginalização das mulheres negras no contexto
urbano a partir das inequidades ocasionadas pelo racismo patriarcal 3.
2 As form
ulações teóricas de Patrícia Hill C
ollins tem por foco investigativo o exam
e social crítico das questões de raça, gênero, sexualidade, classe social e nacionalidade. Sua obra m
ais reconhecida é o aclam
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(Routledge), publicado pela prim
eira vez em 1990. A
pesquisadora tem publicado diversos
trabalhos em revistas acadêm
icas internacionalmente reconhecidas. Foi a prim
eira mulher
negra estadunidense a ocupar a presidência da Am
erican Sociological Association. Seus at-
uais interesses de pesquisa incluem: epistem
ologias da interseccionalidade; epistemologias
do conhecimento em
ancipatório, como a teoria crítica racial e pesquisas sobre os efeitos das
inequidades sociais na juventude negra norte-americana.
3 Utilizo o conceito de racism
o patriarcal a partir da articulação de Cleusa A
parecida da Silva, coordenadora da A
ssociação de Mulheres N
egras Brasileira (AM
NB), para ela, em
entrevista para o C
FEMEA
: “: A form
ulação do conceito racismo patriarcal busca traduzir a vivência e a
experiência histórica da exclusão centrada no sexismo e no racism
o vigentes desde o sistema
colonial escravista. O conceito busca qualificar e am
pliar conhecimento sobre a singularidade
de ser mulher, ser negra, ser trabalhadora e pobre no Brasil, isto é, de vivenciar no cotidia-
no vários eixos de subordinação, que vulnerabilizam sua existência, cujos resultados são as
desvantagens com im
pacto estrutural para as mulheres negras, na vida e no m
undo do tra-
1213
O histórico de ocupação do espaço urbano por m
ulheres no Brasil se dá a partir das m
ulheres negras escravizadas. Os estudos sobre escravidão apon-
tam que essas m
ulheres eram colocadas para trabalhar nas ruas, visando
o lucro de seus proprietários, em pequenos com
ércios como quitandeiras e
lavadeiras, designadas como escravas de ganho. A
s mulheres negras livres
ou forras, também
ocupavam as ruas das cidades executando serviços, desta
forma organizavam
seus orçamentos dom
ésticos e garantiam o sustento de
suas famílias. 4 O
u seja, o trabalho no âmbito externo sem
pre esteve presente na vida das m
ulheres negras. A vivência e a experiência com
as lógicas do urbano com
põe a trajetória das mulheres negras no contexto das cidades.
Esse brevíssimo apanhado histórico, perm
ite evidenciar que a maneira
com que os espaços públicos e privados vão ser contextualizados na vida
das mulheres negras é distinto da m
aneira com que essa vivência se dará
para outros grupos. Nessa perspectiva interseccional, portanto, observam
os que raça, classe e gênero vão configurar com
o os espaços urbanos são per-cebidos. N
o que diz respeito às mulheres negras, entretanto, esse históri-
co de presença constante no espaço urbano não significa necessariamente
uma apropriação plena de hum
anização e cidadania para essas mulheres
por consequência da hierarquização racial que segue vigente nas estrutu-ras políticas e sociais do território brasileiro que desum
anizam e m
itigam o
acesso à direitos. A perm
anência dessas lógicas mantém
as mulheres negras
nos estratos mais vulneráveis da sociedade, ocupando os piores índices de
escolaridade, assistência social, saúde e empregabilidade. O
deslocamento
dessas mulheres no espaço urbano está im
bricado com um
a percepção natu-ralizada das m
esmas enquanto m
ultas, empregas dom
ésticas, amas de leite
e mães pretas
5. O
conceito de imagens controladoras, cunhado por Patrícia H
ill Collins
balho. No m
undo do trabalho, o conceito racismo patriarcal dialoga com
a divisão sexual e ra-cial, pois é neste m
undo que as mulheres negras vivenciam
as maiores desvantagens e sofrem
m
últiplas formas de violações de direitos e violências oriundas das doutrinas ideológicas do
sexismo, do racism
o e do capitalismo, pois ocupam
as funções mais desvalorizadas e m
enos rem
uneradas”4 SO
ARES, C
ecília Moreira. A
s ganhadeiras: mulher e resistência negra em
Salvador no século XIX. A
fro-Ásia, n. 17, 2017.
5 GO
NZA
LEZ, Lélia. Racismo e sexism
o na cultura brasileira. Luiz Antonio Silva, M
ovimen-
tos sociais, urbanos, mem
órias étnicas e outros estudos, Brasília, AN
POC
S, 1983.
é um m
arco teórico relevante para compreender com
o a construção de este-reótipos a respeito das m
ulheres negras se constitui como um
a forte ferra-m
enta de controle social e marginalização dessas m
ulheres tanto no contexto urbano quanto no contexto rural. C
onsiderando o escopo desta publicação irei m
e debruçar nas imagens que tem
mais pertinência com
as experiências urbanas.
Para Hill C
ollins imagens controladoras são estereótipos socialm
ente construídos sobre m
ulheres negras, os quais operam com
o parte de uma
ideologia de dominação racial. Esses estereótipos adquirem
um significado
específico para a comunidade de m
ulheres negras, uma vez que o estabeleci-
mento de valores sociais é um
a ferramenta de poder m
anipulada pelos gru-pos sociais hegem
ônicos essas imagens acabam
fixando as mulheres negras
em locais subalternizados na estrutura sócio econôm
ica. Desafiar constan-
temente essas im
agens de controle tem sido central na agenda de lutas dos
movim
entos de mulheres negras. Esses estereótipos tam
bém operam
nos significados de apropriação do espaço urbano para as m
ulheres negras e, ao estabelecerem
significados, pautados em seus próprios pontos de vistas,
a comunidade de m
ulheres negras rompe com
a lógica de objetificação da negritude com
o o “outro”. Essa lógica, faz com que se tenha um
campo onde
é possível desarticular as imagens que justificam
as ideologias de classe, raça e gênero. 6
O controle social estabelecido a partir dessas im
agens consubstancia o que Sueli C
arneiro7 denom
ina enquanto “subalternização do gênero segun-do a raça”, onde:
As im
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6 CO
LLINS, Patricia H
ill. Mam
mies, m
atriarchs, and other controlling images. na, 1999.
7 CA
RNEIRO
, Sueli. A m
ulher negra na sociedade brasileira “o papel do movim
ento femi-
nista na luta anti-racista”. História do negro no Brasil. Brasília: Fundação C
ultural Palmares,
p. 1-21, 2004.
1415
de m
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No que pese o apontam
ento para as consequências dessa subalternização para os hom
ens negros, o pouco espaço para desenvolver essas linhas e o escopo deste ensaio lim
ita a análise a maneira com
que essa subalterniza-ção vai influenciar na m
udança de paradigma da ocupação da cidade pe-
las mulheres negras no pós-abolição. O
professor Alecsandro R
atts discorre sobre essa questão com
profundidade, apontando a maneira com
que raça e gênero foram
determinantes na ocupação do espacial do território urba-
no brasileiro. A partir dos estudos de G
ilberto Freyre e Roberto da M
atta , R
atts demonstra com
o a transformação de senzalas em
favelas vão obedecer um
a lógica instituída a partir dos corpos de mulheres negras, que através do
olhar do outro (o branco), orienta inclusive o espaçamento urbanístico das
residências brasileiras das classes abastadas. O quarto de em
pregada, por exem
plo, e a situação de abjeção em relação aos corpos das trabalhadoras
domésticas negras possibilita observar com
o essas marcas estão relacionadas
com a constituição do espaço urbano brasileiro.
Em m
omento posterior, as lógicas do racism
o e dos estereótipos sobre m
ulheres negras vai influenciar sobremaneira as form
as com que estas vão
transitar nas cidades. É preciso dizer que no caso dessas mulheres, a chefia
das famílias é um
contínuo. As im
agens controladoras sobre elas, portanto, constituía-se enquanto um
obstáculo para o acesso pleno à cidade. Dessa
forma, essas m
ulheres vão, através dos tempos, articulando estratégias de
ressignificação de espaços urbanos precários para o lazer, a moradia e o m
í-nim
o de assistência social. Contudo, conform
e esses espaços vão adquirindo potências criativas e econôm
icas, operam novas form
as de exclusão e elimi-
nação dessas mulheres das conform
ações socioespaciais das quais elas mes-
mas foram
formuladoras. O
s processos de gentrificação nas grandes cidades, especialm
ente aquelas de cunho turístico, é um indício dessa afirm
ação. Ca-
sos como a Pedra do Sal, no Rio de Janeiro.
Outra aspecto fundam
ental no que diz respeito ao desenho das cidades é a form
a com que as inequidades sociais tam
bém se apresentam
dentro de um
a lógica onde mulheres negras apresentarão m
aiores dificuldades de apropriação das cidades. D
e acordo com a arquiteta e urbanista Joice Berth,
em entrevista para a Revista Trip, a lógica de urbanização propositalm
ente em
purra para as margens os corpos que a sociedade e que as lógicas racistas
e sexistas consideram indesejáveis, a form
a com que a periferização das m
u-lheres negras vai se estabelecendo ao decorrer dos anos m
uda, mas as con-
sequências são as mesm
as. Outrossim
, há um higienism
o que justifica um
desenho urbano onde mulheres negras não só são excluídas com
o também
sentem
-se constantemente indesejadas. Joice alerta tam
bém para o fato que
a própria arquitetura pode transmitir linguagens que favorecem
a violência e o assédio. H
á também
um apagam
ento das contribuições das mulheres
negras nas estruturas da cidade, o qual dificulta as interações sociais e ejeta essas m
ulheres do espaço urbano. Dessa form
a, a cidade deixa de ser vivida por m
ulheres negras, constituindo-se enquanto um espaço hostil, onde as
ruas, avenidas e vielas se configuram apenas com
o locais de passagem para
o cumprim
ento das extenuantes múltiplas jornadas exigidas para a sobrevi-
vência da comunidade de m
ulheres negras.D
ado esse diagnóstico é fundamental repensar a organização do espaço
urbano de uma form
a em que as im
agens controladoras do racismo patriar-
cal, bem com
o outros instrumentos de perpetuação das lógicas de expulsão
das mulheres negras do tecido social urbano, deem
espaço para a configu-ração de um
espaço urbano democrático. O
fortalecimento de iniciativas en-
gendradas dentro das comunidades negras, com
o os espaços de socialização colaborativos, os projetos de reorganização das favelas, as estratégias de com
partilhamento da cidade, com
o jardins coletivos, hortos comunitários
e a propagação de diálogos sobre urbanismo que se deem
a partir de uma
perspectiva interseccional podem fazer a diferença na form
a com que m
u-lheres negras experienciam
as cidades na atualidade. O reconhecim
ento do protagonism
o das mulheres negras na história de ocupação do espaço urba-
no também
é uma práxis que auxilia na alteração do com
plexo estabelecido pelas im
agens controladoras a cerca dessas mulheres, um
a vez que ao par-tilhar as experiências e vivências da com
unidade de mulheres negras com
1617
o espaço urbano a partir dos pontos de vistas formulados por elas m
esmas
se possibilita a construção de um novo paradigm
a sobre a cidade, um em
que essas m
ulheres possam se reconhecer e se ver para além
de estereótipos desum
anizantes, que limitam
a posse da cidadania e, consequentemente, de
vivências positivas e capazes de potencializar a emancipação da negritude a
partir de uma convivência m
enos violenta e segregada com o espaço público.
Foto 02
Thata Alves – ou Thayaneddy A
lves é escritora, precursora do Sarau da Ponte Pra C
á publicou em 2
016, de m
aneira independente, pelo selo A
cademia Periférica de Letras o prim
eiro livro autoral de poesia m
arginal intitulado “Em Reticências”.
É mãe dos gêm
eos Bryan e Brenno. Thata Alves tam
bém é m
em-
bro do coletivo Sarau das Pretas, onde atua com poesia, m
úsica e resgate da ancestralidade há 1
ano. Além
disso participa e propõe espaços de discussão realizando trabalhos em
parceria com os co
-letivos Praçarau, Fala G
uerreira, Casa de C
ultura Candearte, onde
realiza a produção cultural e a comunicação da casa e C
antinho de Integração de Todas as A
rtes (CITA
).
2
1819
2021
Mã
o P
reta
Tijolo postoPor ordem
de um arquiteto,
Mas o teto
ele não sabe levantar.Edifício enorm
eque de longe se enxerguequem
ergue?M
ão preta!Escudo de pretoN
a linha de frente dos paláciosRicaços curtem
a festaA
desritmada dança e a segurança, quem
faz?M
ão PretaQ
uitutes, sobremesas, m
anjaresQ
uem é que fazes?
Mão Preta...
Experimenta por dona Bia na cozinha
não conseguiriaM
esmo sendo nutricionista
Especialista na cozinhaM
ão PretaO
anel com pedra de diam
antePro evento de debutante de sua filhaquem
que extraíra?M
ão PretaN
o minério seu im
périoN
ada seriaSe lá na m
ina, na grutaA
luta para remover a pedra
na caverna escuraescura tam
bém a sua pele
Mão Preta
Quem
que te leva em segurança,
Que pega as suas crianças,
Os filhos dos Bittencourt
Aqueles capeta
Seus caminhos quem
conduz?M
ão Preta!A
engrenagem dos trilhos,
O alpiste dos seus passarinhos,
O depósito do seu cheque,
O paletó na lavanderia do seu chefe,
O eletricista do abajur do seu escritório,
Quem
que cava a cova do seu velório?C
ontabiliza!Se por um
dia a mão preta, parasse
Se afasta-se dos serviços(R
isos)Porque a gente m
ovimenta esse lugar
Vivem
os um crim
e socialE na m
oralV
ocê não paga o meu salário, a m
ovimentação do m
onetárioÉ o m
eu suor a percorrerque faz pagarA
casa grande entrará em choque
Quando em
seus estoquesnão tiver m
ais Mão Preta
Pra poder cuidar.
2223
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aniella Monteiro
2425
Jéssica RuizM
ulher, lésbica, militante LG
BT e de direitos humanos, m
arxista e biólo-ga m
arinha
Daniella M
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idade que vivemos é, essencialm
ente a que produzimos. A
Cidade
que temos acesso é, essencialm
ente a que podemos consum
ir. No Brasil, his-
toricamente negros e negras sem
pre ocuparam o espaço público, com
o fa-zedores da C
idade. Do trabalho braçal, que construiu, e ainda constrói, até
as tecnologias utilizadas. Os povos Banto e Yorubá trouxeram
consigo, não apenas m
ão de obra a ser escravizada, como técnicas de alvenaria, tecela-
gem, pesca e m
etalurgia. No entanto, a form
ação das Cidades Brasileiras é o
processo histórico de exclusão de negros e negras.É necessário retom
armos o pós-abolição, quando as teorias eugenistas
ainda apontavam negros com
o geneticamente inferiores. A
o passo que a for-m
ulação do Pensamento Social Brasileiro, difundiu o m
ito da Dem
ocracia Racial. Existia a construção de um
a nova sociedade, desvinculada do status de colônia, que fortalecia a independência do Brasil. E nesta, não cabiam
os negros. A
mestiçagem
, prova do convívio pacífico entre as raças, tinha o propósito o branqueam
ento da população. As pesquisas desenvolvidas por
Antropólogos e G
eneticistas nos Museus e A
cademia, estim
a que no século XXI teríam
os uma população 97%
Branca; 3% Indígena e sem
negros. N
ão existiam políticas públicas de integração do negro na sociedade bra-
sileira. Foi negado o acesso a terra, ao trabalho formal da época e nenhum
a política de reparação ou indenização. Eram
quase 200 mil descendentes de
africanos que não poderiam ser brasileiros. Para a nova e próspera nação, os
negros eram um
problema e não pessoas com
problema para serem
integra-dos.N
o Rio, paralelo diversas obras de infraestrutura e urbanização do início de século XX, destoava da crescente ocupação dos m
orros da Cidade. C
om
os casarões sendo demolidos, dando espaço a grandes avenidas. A
pagando vestígios coloniais, a C
idade crescia e se dividia. De um
lado a Cidade que
2627
não existia nos mapas, sem
planejamento urbano e saneam
ento. Do outro, a
Cidade planejada, a C
apital do País, centro político e econômico.
As favelas foram
se desenvolvendo a partir do Centro da cidade, Provi-
dência e Santo Antônio, local que foi dem
olido diversos casarões, diversas fam
ílias despejadas que não foram realocadas. M
as autorizadas em cons-
truir suas casas nos morros, sem
subsídios. E foram se desenvolvendo por
toda a zona sul, para que os trabalhadores morassem
perto do seu emprego,
mas não perto suficiente das elites. O
Morro da Babilônia, M
orro dos Ca-
britos, Morro do Pasm
ado, Santa Marta e C
antagalo. Com
a expansão da linha férrea, que na sua construção deslocava trabalhadores para o Subúrbio e Baixada Flum
inense. Morros com
o a Mangueira, Jacaré, Tuiuti, Salgueiro
e Turano. Em
bora com toda a política eugenista do início do século XX, a m
ão de obra negra nunca deixou de ser necessária. E a separação territorial, apenas garantiu um
a periferia de direitos para uma parte invisível da C
idade. As
Favelas do Rio, sempre integraram
a dinâmica da C
idade, sem realm
ente fazer parte dela. Para a negrada sair da favela, sem
pre houve uma roleta
invisível. Se a mão de obra que constrói a cidade é negra, a sua arquitetura
é branca. Os espaços de poder são brancos. O
s prédios históricos do Centro
do Rio, como o Biblioteca N
acional, a Câm
ara Municipal ou a Igreja da C
an-delária são de períodos da arquitetura datados e oriundos da Europa. Suas pinturas internas, contam
a formação de Sociedade pautada pelo escravis-
mo, exterm
ínio dos povos originários e soberania da moralidade europeia.
Na C
âmara dos Vereadores por exem
plo, as pinturas no plenário são jus-tam
ente das missões jesuítas aos povos indígenas. A
Igreja da Candelária,
mesm
o de costa, é o ponto de fuga¹ da principal via da Cidade, num
a região que concentra 40%
dos empregos da região m
etropolitana. Enquanto peças das religiões afro brasileiras foram
quebradas e roubadas de seus templos,
sendo escondidos em depósitos da polícia com
o “artefatos de Magia N
egra”. A
preendidos até os dias de hoje.Se olham
os para a Cidade do Rio e vem
os marcas do período C
olonial, m
as não vemos as m
arcas da escravidão. É por que os negros foram m
argi-nalizados e apagados do processo de produção deste espaço. O
espaço pú-blico guarda a m
emória coletiva. A
Cidade que tem
os acesso as ruas e esco-
las tem nom
e de nobres e escravistas. Embora a praça se cham
e Tiradentes, a estátua central é de D
. Pedro I. O M
useu do Negro, segue sendo o depósito
de uma igreja católica.
Produzimos um
a Cidade que m
ascara os vestígios negros e higieniza a sua circulação. Em
bora o Futebol seja um esporte popular no país, os Está-
dios viraram arenas que o trabalhador assalariado não consegue pagar. O
Sam
ba, que nasce nas favelas e toma as ruas no C
arnaval, desfila na Sapucaí para a Elite. A
festa mais im
portante da Cidade não é para os favelados e su-
burbanos que produzem o desfile nos barracões. Se o M
etrô para acontecer na Zona Sul, precisa da autorização dos m
oradores. Durante o ciclo de m
e-gaeventos foram
removidas pela prefeitura m
ais de 4 mil fam
ílias de modo
compulsório.
Negar o D
ireito a Cidade é negar D
ireitos. O direito de fazer e refazer a
cidade é, sobretudo, coletivo. Pois depende de um exercício de poder coleti-
vo. O D
ireito à Cidade não é um
princípio da nossa Sociedade. A peneira dos
Direitos Sociais depende de que território estam
os falando. Se entendemos
a educação como um
direito básico, com a base de 200 dias letivos pautados
pela LDB, por que tem
os escolas na Cidade de D
eus, Jacarezinho, Rocinha, C
omplexo do A
lemão e M
aré que chegaram a ficar 15 dias sem
aula neste ano? N
as manchetes, as Favelas só aparecem
como territórios em
guerra, dom
inado pelo controle do tráfico.A
narrativa de guerra, legitima a violência do Estado, m
arcando o corpo negro com
o matável e a favela com
o território inimigo da C
idade. Não exis-
te plano de habitação, urbanização ou mobilidade nas favelas. M
as existe plano de invasão. A
polícia é a fração do poder público que pensa a favela. Estuda seus becos e vielas. Policias especiais com
o a BOPE, tem
até plano de invasão pelas encostas. M
as até os dias de hoje, os Correios não conhecem
suficientem
ente bem os m
esmos becos e vielas para fazer entregas de corres-
pondência. O
Ciclo de m
egaeventos promoveu profundas reform
as estruturais na C
idade. Foram gastos m
ais de 66 bilhões em obras. M
as nenhuma delas en-
volveu o Saneamento básico das favelas, onde a coleta de lixo é precária, o
esgoto a céu aberto e a água da torneira dificilmente é potável. D
ados da própria Secretaria M
unicipal de saúde apontam alastram
ento de epidemias,
2829
vermes e contam
inação é 7 vezes maior para m
oradores de favela. O
perações como Verão Legal, que torna jovens negros suspeitos apenas
por estarem indo a Praia sem
dinheiro. É o poder de consumo lim
itando os espaços de circulação. Em
uma C
idade que a passagem custa em
média 1h
de trabalhoEntender a cisão da dinâm
ica entre a Favela e a Cidade, é entender com
o o racism
o perpetuou a Casa G
rande x Senzala, mesm
o após a Abolição. Em
um
a Cidade densa com
o o Rio de Janeiro, a experiência urbana não é única, m
as para negros e negras, nossos corpos serão controlados e vigiados, crimi-
nalizando nossa experimentação da C
idade. Lutar por um
a Cidade de D
ireitos é assumir que o problem
a do negro no Brasil, ainda é a luta pelo direito de existir. Precisam
os nos debruçar em
Políticas Públicas de urbanização, revitalização e mobilidade que priorize o
bem viver do povo negro.
¹ Ponto de Fuga: É o ponto localizado na linha do horizonte, para onde todas as linhas paralelas convergem
, quando vistas em perspectiva.
Bib
liog
rafi
a:
IV D
ossie Megaeventos e D
ireitos Hum
anos no Rio de Janeiro. 2016
HO
BSBAW
N, Eric John. A
Era Do C
apital 1848-1875; traduçãoLuciano C
osta Neto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2º ed. 1979.
foto 04
Joselicio Junior - Conhecido com
o Juninho é Jornalista, Pós Gradua-
do em M
ídia Informação e C
ultura pelo CELA
CC
- ECA
-SP, militante
da entidade do movim
ento negro Círculo Palm
arino, atualmente
Presidente Estadual do PSOL - SP
4
3031
3233
A R
ESISTÊNC
IA N
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SÃO
PAU
LO
A elite cafeeira paulista apresentou um
projeto muito explícito na virada
do século XIX para o XX de transformar São Paulo num
a capital europeia tanto do ponto de vista arquitetônico e urbanístico com
o no mercado de
trabalho com estím
ulo ao fluxo imigratório para a substituição da m
ão de obra negra por italianos, principalm
ente. Os Barões organizaram
os bairros de C
ampos Elíseos, H
igienópolis e Avenida Paulista para se abrigarem
em
grandes casarões. A
população negra, no pós abolição, se concentrou em casas coletivas
e com baixa infraestrutura na região da Barra Funda, Bexiga e V
árzea do C
armo, espaços de resistência quilom
bola urbana, base para formação de
núcleos culturais que ficaram bastante conhecidos posteriorm
ente como a
formação das irm
andades, cordões carnavalescos e posteriormente, escolas
de samba. N
o entanto, com a expansão do projeto higienista e desenvolvi-
mentista esses territórios tam
bém passam
a sofrer intervenções para expul-sar os “indesejáveis”.
Isso fica muito nítido no relato, em
1919, do Washington Luiz, ex- Secre-
tário da Justiça e da Segurança Pública, então Prefeito de São Paulo e depois presidente da república, sobre a V
árzea do Carm
o, hoje Parque Dom
Pedro:“É
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farta
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”.
O relato de W
ashington Luiz nos permite fazer um
paralelo direto entre o projeto de urbanização da V
árzea do Carm
o em 1919, com
o atual Projeto N
ova Luz. Em am
bos, o objetivo é o mesm
o: fazer uma lim
peza racial/social, para abrir cam
inho para o “desenvolvimento”. A
ntes, um dos argum
entos era o uso abusivo do álcool, os(as) negros(as) associados à crim
inalidade, va-gabundagem
, ou seja, uma vergonha para cidade e um
país moderno. H
oje o problem
a está ligado aos usuários de crack que representam o antagonism
o da cidade vendida por João D
ória em seu vídeo triunfal apresentado em
suas viagens ao exterior: é necessário extirpar essa gente que atrapalha a cidade dos negócios, a cidade m
oderna.A
recente polêmica envolvendo a “Ração H
umana” proposta por D
ória com
o a solução mágica para acabar com
fome na cidade de São Paulo, até
mesm
o do país, é mais um
capítulo da lógica elitista e desumanizadora, com
depoim
entos do tipo “pobre não tem hábito alim
entar, pobre tem fom
e”.Se de um
lado a elite paulistana se pautou pela exclusão da população ne-gra, a m
esma buscou as m
ais variadas formas de sobrevivência econôm
ica, social e cultural. Já citam
os acima as casas coletivas, os cordões, m
as tam-
bém podem
os citar nos anos 10, 20 e 30 a organização da Imprensa N
egra, dos C
lubes Negros e posteriorm
ente da Frente Negra Brasileira, que o foi o
primeiro grande m
ovimento social negro no pós abolição, essas ferram
entas foram
fundamentais para trabalhar a autoestim
a, inserção no mercado de
trabalho e construção de moradias populares.
Com
a repressão da ditadura do Estado Novo houve um
refluxo das ar-ticulações da com
unidade negra se concentrando mais em
atividade recrea-tivas com
o os bailes. Os bailes vão se transform
ando ao longo do anos e se tornam
um grande fenôm
eno social de construção de identidade, tendo o seu auge no final dos anos 70 e início dos anos 80.
Os m
ovimentos por direitos civis, e principalm
ente a cultura e musicali-
dade estadunidense, tiveram um
grande peso na formação do m
ovimento
black em São Paulo com
a formação do m
ovimento hip hop.
3435
A cultura hip hop foi um
vetor muito im
portante de organização, articu-lação, ocupação dos espaços públicos e até m
esmo de denúncia das m
azelas sociais que as periferias estavam
passando. A ocupação do centro da cidade
para as batalhas de dança, a marcação das paredes com
o grafite, passando pela organização das posses e chegando na potência e autenticidade da m
ú-sica rap, o hip hop representou um
grito de uma juventude, de um
a geração que saia da ditadura m
ilitar mas que ainda sentia as m
arcas do militarism
o na repressão policial, na violência brutal nas quebradas, a ausência do sanea-m
ento, da escola, do posto de saúde, o transporte precário. Essa geração, form
ada por jovens, na grande maioria, negros e m
orado-res de bairros periféricos, exposta diariam
ente às tensões sociais provoca-das pelas profundas desigualdades sociais e vítim
a direta da violência do Estado, produziu com
o resposta ao descaso das autoridades, um discurso
contundente que escancarou um cotidiano m
assacrante e evidenciou as ma-
zelas sociais, além de ter explicitado os conflitos raciais e colocado em
xeque a ordem
social, produzindo assim um
verdadeiro grito por uma sociedade
mais justa.
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fer-
no. 1
998)
O surgim
ento do grupo Racionais M
C’s (1988) foi um
marco, pois in-
fluenciou uma geração de jovens da periferia, construiu um
a identidade de resistência e de contestação do sistem
a que oprime as com
unidades cotidia-nam
ente e explicitou as desigualdades de classe por meio da sim
bologia dos m
anos e dos playboys8.
A partir de então, vários outros grupos com
eçaram a ganhar projeção e a
Cultura H
ip Hop foi se ram
ificando pelo Brasil, se consolidando como um
m
ovimento vivo de organização, reflexão e contestação. A
apropriação das tecnologias tam
bém foi im
portante, pois permitiu o avanço da C
ultura de 8 M
anos é como os jovens de periferia se identificam
e se relacionam e os playboys, ou sim
-plesm
ente boys, é como eles denom
inam os jovens de classe m
édia e da elite.
forma independente, o que proporcionou a construção de um
circuito para-lelo à indústria cultural.
Nos anos 2000, novas articulações com
eçam a surgir. A
lém da m
úsica, a literatura com
eça a ganhar força, emergem
as primeiras publicações de
literatura marginal que posteriorm
ente ganhariam o nom
e de literatura pe-riférica. O
rganizam-se saraus realizados em
bares, associações, grupos de teatro, dança, m
úsica, coletivos literários, formando um
verdadeiro circuito cultural periférico.
Cham
a a atenção nesse movim
ento, a apropriação de termos com
o “sa-raus”.Term
os esses que, costumeiram
ente eram restritos a círculos elitizados
da cultura, transformando assim
, em cultura popular. A
lém disso, há um
processo de disputa da hegem
onia, com o centro, na construção de um
a nar-rativa em
que o termo periférico, além
de representar uma distância geográ-
fica, é também
uma afirm
ação de identidade, de estilo de vida, de resistên-cia, de hum
anização das periferias e de contraposição à cultura hegemônica
do centro.A
humanização se evidencia, quando pessoas da com
unidade começam
a se apropriar desses espaços e passam
a enxergar na poesia, na música, ou
em outras expressões culturais, um
instrumento para falar do seu cotidiano,
contestar a opressão de gênero sofrida no seu dia a dia, a violência policial, o transporte precário, a ausência de um
a educação de qualidade, os conflitos raciais. Em
seu manifesto da antropofagia periférica, Sérgio Vaz, fundador
da Cooperifa, afirm
a que: “A periferia nos une pelo am
or, pela dor e pela cor” 9.
A partir disso, tam
bém há um
estímulo à leitura, a necessidade de apro-
fundar o conhecimento, de conhecer m
ais a sua própria cultura. Esses ele-m
entos agregados, passam a construir um
a identidade, um pertencim
ento que desloca a visão de m
undo desses ativistas. D
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gogôs e
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9 Disponível em
: http://colecionadordepedras1.blogspot.com.br/2010/08/m
anifesto-da-an-tropofagia-periferica.htm
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3637
acom
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hados d
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ula
10.
No contexto m
ais recente, surgiram novas m
anifestações que trazem ca-
racterísticas bastante interessantes como os Slam
. Encontros de batalhas de poesias que acontecem
, na grande maioria das vezes, em
espaços públicos abertos, resgatando as ocupações feitas pelo m
ovimento hip hop nos anos 80,
aglutinando muitos jovens com
discursos muito afiados sobre o racism
o, as questões de gênero, a luta LG
BT, as profundas desigualdades sociais. Inter-preto esse m
ovimento com
o herdeiro direto do rap e da literatura periférica.O
utra expressão importante da cultura negra, tam
bém herdeira dos bai-
les black dos anos 70, mais que se desenvolveu m
ais nos morros do R
io de Janeiro e ganhou força em
São Paulo recentemente é o Funk. C
om um
a varia-ção enorm
e de estilos, uma batida forte e envolvente que arrasta m
ultidões, é um
movim
ento importante que traz as suas contradições e polêm
icas, mais
que não pode ser ignorada e interpretada como um
a expressão de uma ju-
ventude periférica.Juntando as irm
andades, os cordões, as escolas de samba, os clubes ne-
gros, a imprensa negra, os bailes, o hip hop, os saraus periféricos, os slam
, os fluxos de funk, as com
unidades de samba, os terreiros de candom
blé e um
banda, o que todos possuem em
comum
? Prim
eiro, mostram
a importância das expressões culturais com
o uma es-
tratégia de organização e resistência da comunidade negra, form
ando uma
identidade, reciprocidade e até mesm
o humanização, e relação de pertenci-
mento com
algo, dentro de uma sociedade racista. O
utro aspecto é a relação com
a cidade, seja no centro ou na periferia as ocupações dos espaços são sem
pre conflituosas, contando principalmente, com
a dura repressão do Es-tado.
Os conflitos evidenciam
a potência dessas manifestações culturais, pois
fogem da lógica, contrariam
o status quo e aquilo que não é possível enqua-drar, assim
ilar, cooptar e institucionalizar, causando ímpetos de repressão.
Não por acaso, as m
anifestações culturais negras são as mais reprim
idas.Este fato está associado há um
projeto de poder, construído pela elite brasileira que não quer se ver em
risco, com a possibilidade da organização dos de-
baixo. Na cidade dos negócios, o direito a cidade é restrito e controlado, não
10 Idem.
cabe ocupação de praças, avenidas, etc. Neste sentido, para os que acreditam
em
um m
udança radical da sociedade brasileira, não podem ignorar a im
-portância e a necessidade da organização dos debaixo, tendo a cultura com
um
potente instrumento de construção de ideias e valores civilizatórios.
Refe
rên
cias
DO
MIN
GU
ES, Petrônio José. Um
a história não contada: negro, racismo e
branqueamento em
São Paulo no pós-abolição. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004.
VÁ
RZEA D
O C
ARM
O LA
VAD
EIRAS, C
AIPIRA
S E “PRETOS V
ÉIOS”
– http://w
ww
.energiaesaneamento.org.br/m
edia/28677/santos_carlos_jose_ferreira_varzea_do_carm
o_lavadeiras_caipiras_e_pretos_veios.pdfD
ocumentário M
il Trutas, Mil Tretas – R
acionais Mc’s – https://w
ww
.youtube.com
/watch?v=slw
alSi03g8Blog
Colecionador
de Pedras
http://colecionadordepedras1.blogspot.com
.br/2010/08/manifesto-da-antropofagia-periferica.htm
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3839
Foto 05
4041
Gilson Santiago M
acedo JúniorÉ graduando em
Direito pela U
niversidade Estadual do Sudoeste da Bah-ia. M
embro do Instituto Brasileiro de D
ireito Urbanístico. Integrante do N
ú-cleo de A
ssessoria Jurídica Alternativa.
discriminação. O
direito à cidade para todos e todas é um
a condição subjetiva inserida em um
contexto social, econôm
ico e territorial de relações e interesses difu-sos, coletivos, conflitantes ou não, direito que reclam
a o reconhecim
ento da diversidade como protagonista na
conquista do bem com
um.
Segundo dados do governo federal 3, as mulheres
brasileiras são responsáveis pelo sustento de 37,3% das
famílias, possuem
expectativa de vida de 77 (setenta e sete) anos de idade, equivalendo a 51,4%
da população brasileira atual. Q
uando se indica um percentual de m
u-lheres responsáveis pelo sustento de suas fam
ílias, eclo-de m
ais uma questão, a da presença fem
inina no espaço urbano deslocando-se para o trabalho, para além
dos usos tradicionais.
A m
ulher é, no Brasil, em núm
eros, maioria. É a ci-
dadã que mais ocupa os espaços, produzindo ou não,
circulando, habitando, interferindo, voluntaria ou invo-luntariam
ente, por meio de sua presença na construção
e manutenção da sociedade brasileira. Entre os eleitores,
as mulheres tam
bém são m
aioria, com o Tribunal Supe-
rior Eleitoral, em 2014, registrando 77.459.424 eleitoras
em face de 68.247.598 eleitores do sexo m
asculino4. N
a perspectiva da dem
ocracia, pelo método quantitativo de
participação, a explicação para a ausência das mulhe-
res nos espaços políticos, partilhando do debate sobre a cidade e o que ela deve e pode ofertar, não se sustenta, fragilizando assim
a possibilidade de um futuro estável,
a presença da mulher era ignorada e, portanto, desconsi-
derada no tocante às escolhas sobre que forma e função
os espaços públicos teriam e com
o seriam acessados.
Sendo a cidade o espaço de convivência humana que
promete o desenvolvim
ento social e econômico, o aces-
so ao lazer, à habitação, serviços, trabalho e circulação livre, seria natural que todos os segm
entos sociais fizes-sem
parte da sua concepção, garantindo assim m
aior atendim
ento às demandas individuais e coletivas que se
apresentam. Infelizm
ente não é o que se apresenta, pois som
ente seria possível tal realização se os agrupamen-
tos humanos que se reúnem
nas cidades estivessem cal-
cados em bases solidárias de prom
oção da justiça social, com
igualdade de oportunidades para todos e todas. O
ra, se a luta para alcançar um patam
ar mais equilibra-
do de condições de vida2 – na cidade e no cam
po - tem
sido um dos grandes desafios brasileiros, o que requer
permitir a participação dem
ocrática na discussão sobre as intervenções e políticas públicas feitas em
e para tais sítios, que dirá garantir que, especialm
ente, a mulher te-
nha voz ativa e decisiva nesse processo de produção do espaço urbano.
Ao falar da presença da m
ulher no âmbito das deci-
sões sobre o uso e a ocupação que se deve dar à cidade, não se destaca tal im
perativo tão somente relacionado
à segurança e integridade física e psicológica feminina,
mas da im
portância de tal questão para o fortalecimen-
to do Estado democrático garantidor da igualdade sem
O dia 8 de m
arço representa uma im
portante data de reflexão para o debate internacional que envolve a m
ulher, seus direitos e seu papel no dia-a-dia da socie-dade urbana, m
arcada historicamente pelo em
podera-m
ento masculino.
As cidades e as m
ulheres no século XXI têm um
a relação sim
biótica que necessita ser reconhecida for-m
almente pela sociedade, pelo poder público e político,
pelo poder econômico. Para tanto, é preciso falar e es-
crever sobre as cidades e as mulheres, seja no Brasil ou
fora dele. zSendo a cidade a projeção da sociedade em
um de-
terminado espaço
1, analisar como a urbe dialoga com
a presença fem
inina é de fundamental im
portância tendo em
vista que o desempenho das inúm
eras funções, mãe,
companheira, profissional, em
diferentes áreas, solicita da cidade a m
obilidade e a acessibilidade, envolvendo o livre transitar da m
ulher, inclusive para o trabalho, a possibilidade de acessar serviços públicos e privados, lazer e cultura sem
cerceamento, m
uitas das vezes pro-vocado pelo receio à sua integridade física. Para que a cidade seja funcional à m
ulher é preciso que ela perceba a presença fem
inina, o que envolve permitir sua parti-
cipação nos espaços decisórios sobre o desenho, o uso e ocupação da cidade.
As cidades têm
uma significativa relação com
o uso e a ocupação que o m
undo masculino faz delas. Foram
idealizadas e erguidas dentro dessa perspectiva, em
que
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é lembrado por ter sido o palco de grandes lutas da clas-
se trabalhadora que alteraram profundam
ente a História do país. A
maior
concentração operária brasileira com m
ontadoras multinacionais localizadas
nesta e empregando um
a leva enorme de m
igrantes nordestinos é centro de algum
as das contradições mais profundas do Brasil.
Por ser um dos principais palcos de ação e dissem
inação do capital in-ternacional no país, esta região foi profundam
ente afetada pela crise eco-nôm
ica internacional iniciada ao final de 2007 e é uma das que m
ais sofre o im
pacto da crise político-econômica aprofundada no país nos últim
os anos. A
s demissões nas m
ontadoras e autopeças criou um grande contingente de
desempregados e um
a juventude sem perspectiva de futuro no m
ercado de trabalho da região.
Além
do desemprego, o déficit habitacional, o transporte público de pés-
sima qualidade e as filas na saúde são problem
as agudos. Não por acaso
o MTST realizou um
a ocupação no dia 01/09/2017 que em um
a semana já
apresentou 6 mil m
oradores.N
este meio, nasce um
movim
ento crescente de ocupação de praças da cidade, protagonizado por jovens de periferia, em
sua maioria negros, m
ui-tos desem
pregados ou trabalhadores de serviços precarizados, desassistidos pelas políticas públicas governam
entais. O m
ovimento H
ip Hop, com
o des-taque das batalhas de M
C’s.
O q
ue sã
o a
s ba
talh
as?
As batalhas de M
C’s são eventos em
que um M
C enfrenta o outro no im
-proviso. O
s organizadores das batalhas ligam as caixas e colocam
um beat de
rap, em cim
a deste beat os desafiantes soltam rim
as e ao final de cada round
4243
a plateia decide quem foi m
elhor gritando ou levantando as mãos. A
ssim,
realizam-se elim
inatórias até uma final da qual sai o vencedor da edição da
batalha. Este tipo de evento possui circuitos regionais e um nacional, que
mobilizam
milhares pelo país prom
ovendo a cultura da rinha de MC
’s.A
s batalhas remetem
à raiz do Hip H
op, em que as brigas de gangue de
Nova Iorque com
eçaram a ser substituídas pelas batalhas de break dance e
de rimas. Isso possibilitou um
a inversão da lógica de enfrentamento, trans-
formando os com
bates mortais em
arte, o que elevou a auto-estima de m
i-lhões de m
oradores dos guettos do mundo todo nas últim
as décadas.A
lgumas contam
com o público de algum
as dezenas, outras com cente-
nas e em algum
as ocasiões milhares. A
batalha de rap com m
aior público do grande A
BC Paulista é a Batalha da M
atrix, que conta com um
a média de 500
pessoas por edição. A m
ais antiga da região é a Batalha da Central no centro
de Diadem
a, que já possui mais de 5 anos.
As batalhas iniciaram
nas regiões centrais das cidades, como é o caso das
duas citadas acima e de outras: Batalha da G
aleria em São C
aetano, Batalha das Pistas em
Mauá, Batalha da Palavra em
Santo André , Batalha C
landesti-na em
Ribeirão Pires etc. O período de surgim
ento e estabelecimento destas
batalhas foi o mesm
o da explosão das manifestações contra o aum
ento da tarifa que cobriram
o país em 2013, dem
onstrando que sua existência, cons-cientem
ente ou não, está ligada com a dem
anda popular pelo direito ao uso da cidade.
Tal direito é negado ao conjunto da população trabalhadora e pobre, o que ficou claro na reação policial e governam
ental às manifestações daquele
ano. Direito duas vezes negado quando o sujeito que o reivindica é o povo
negro da periferia. As batalhas de M
C’s são frequentadas m
ajoritariamente
por este público, devido à tradição do Hip H
op em basear boa parte de seu
ideal na luta contra o racismo.
No Brasil, nós possuím
os uma polícia notadam
ente racista, que mata
mais negros do que brancos, enquadra preferencialm
ente indivíduos suspei-tos “da cor padrão” e tem
em seu histórico repressão à resistência do povo
negro. Os governos de todos os níveis tam
bém reproduzem
um racism
o que está arraigado em
nossa sociedade, ao não promover políticas públicas que
compensem
séculos de escravidão e de políticas racistas como a do em
bra-
quecimento, além
de criarem novas com
o as UPP’s no Rio de Janeiro.
Não é diferente quando o assunto é cultura. M
uitos conhecem a história
da perseguição governamental que vem
desde o Brasil colônia a manifes-
tações culturais negras, como a capoeira e as religiões de m
atriz africana. Tam
bém ficou recentem
ente revelada a espionagem e sabotagem
promovida
pela ditadura militar a eventos com
o os Bailes Soul cariocas na década de 70, que reuniam
milhares de negros e fortaleciam
a identidade desta maioria
vítima do racism
o. Não podia ser diferente com
as rodas de rima do m
ovi-m
ento Hip H
op.A
lém do racism
o institucionalizado, há também
outra tendência da nova configuração do capital: o em
preendedorismo urbano, ou em
preendimen-
tismo urbano, com
o aponta o geógrafo britânico David H
arvey. Com
a nova configuração do capital transnacional e o estabelecim
ento de grandes fundos financeiros altam
ente voláteis em busca de quantias de lucros rápidas e cada
vez maiores, a tendência por m
ercantilizar o espaço urbano se tornou maior,
com o surgim
ento das “cidades negócio” e do gerenciamento urbano.
Neste sentido, os prefeitos são vistos com
o gestores de um negócio – a
própria cidade - em busca de novos investim
entos para este. Assim
, praças, parques, vias, com
plexos, arranjos produtivos, áreas de preservação etc., são vistos com
o mercadorias.
Com
essa tendência se fortalecendo a cidade passa a estar cada vez mais
acessível apenas para aqueles que podem pagar por ela, com
espaços cada vez m
ais privatizados e transporte público a preços exorbitantes. Neste ideal
de cidade, não cabe um tipo de evento que inverte a lógica ao colocar popu-
lação pobre no espaço público, podem exercer sua cultura sem
o pagamento
de taxas.Repressão às batalhas no grande A
BC paulista
Desde seu surgim
ento as batalhas de MC
’s do ABC
sofrem repressão
constante. Alguns casos ficaram
famosos, com
o a repressão ocorrida no iní-cio de 2016 na Batalha da M
atrix, que dispersou o evento a partir da ação da PM
, repercutindo na grande imprensa e fazendo o governo m
unicipal da época, até então do Partido dos Trabalhadores, a recuar.
Na
segunda m
etade daquele
mesm
o ano,
com
o agravam
en-to
da crise
social e
a disparada
no índice
de desem
pregos, dem
is-
4445
sões em m
assa, desmantelam
ento da saúde e educação públicas etc., houve
um
disparo no
crescimento
do m
ovimento
das batalhas
de M
C’s.
No
Grande A
BC
Paulista, surgiram
dezenas
de batalhas
nes-te período, desta vez a m
aior parte localizada na periferia, coincidência? C
ertamente não. A
pós anos de existência, as batalhas de MC
’s localizadas no centro criaram
um público da qual saíram
indivíduos mais ativos, m
uitos criando grupos de rap, tornando-se beatm
akers etc. Outros, passaram
a pro-m
over suas próprias batalhas em seus próprios bairros.
Além
disso, com o agravam
ento da crise social a juventude, principal-m
ente a negra da periferia, passou a demandar cada vez m
ais espaços gra-tuitos para expressão cultural. E a gratuidade aqui inclui a im
possibilidade de m
uitos pagarem o transporte público, que em
uma cidade com
o São Ber-nardo possui um
a passagem de R$4,20, o que só é driblado com
as populares “m
ultas”, cada vez mais com
plicadas de serem realizadas graças ao investi-
mento feito pelas prefeituras e em
presas de transporte no controle do fluxo de passageiros, com
o objetivo de maxim
izar os lucros destas últimas.
Há quase 30 batalhas de M
C’s só nesta região, com
o podemos observar
no mapa disponível em
: https://goo.gl/M
jsV2g
Com
o fortalecimento destes eventos, e outros com
o os da cultura Sound-sistem
, prefeituras e câmaras de vereadores, aliados à im
prensa local, visam
criar condições para seu estancamento. U
ma delas é o fortalecim
ento das G
uardas Civis M
unicipais, em especial de suas “tropas de elite”, com
o a RO
MU
de São Bernardo do Cam
po, com arm
amentos equiparáveis a alguns
batalhões de Polícia Militar.
Outros tipos de m
edidas são os projetos de lei que visam crim
inalizar eventos de rua, a partir da câm
ara de vereadores. Um
exemplo é o Projeto
de Lei nº38/2013 de São Bernardo do Cam
po, que cita o Funk como objeto de
criminalização, m
as que em verdade ataca todo tipo de evento independente
de rua. Outra política que visa controlar o uso desses espaços é o program
a Praça Parque da atual prefeitura, que coloca cercas e portões nestes locais.
Todo esse conjunto de políticas visa fechar o cerco contra as batalhas de M
C’s e outros eventos de rua. N
este ano, ocorreram diversas ações policiais
contras as batalhas das cidades do grande ABC
DM
RR, o que passou a ser
investigado pelo Conselho Estadual de D
efesa dos Direitos da Pessoa H
u-m
ana (Condepe). Podem
os encontrar na internet inúmeros vídeos com
re-gistros destas ações policiais, incluindo agentes sem
identificação na farda, agressões físicas, dispersão de pessoas da praça m
esmo após fim
do evento e desligam
ento da caixa de som etc.
Mesm
o assim, a resistência desta juventude continua, com
a denúncia persistência dos diversos casos de abuso das autoridades. A
s batalhas de M
C’s no G
rande ABC
Paulista e no Brasil já mostraram
serem um
fenômeno
que veio para ficar.
4647
foto 06
4849
Luciana Araújo
Luciana Araújo é jornalista form
ada pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (U
ERJ), com
formação extensiva em
gênero, sexuali-dade, políticas e perform
atividade pela FFLCH
/USP, atua na M
archa das M
ulheres Negras em
São Paulo.
Luciana Araújo é jornalista form
ada pela Universidade do Es-
tado do Rio de Janeiro (UERJ), com
formação extensiva em
gênero, sexualidade, políticas e performatividade pela FFLC
H/
USP, atua na M
archa das Mulheres N
egras em São Paulo.
6O
DIR
EITO À
CID
AD
E NÃ
O EX
ISTE PAR
A M
ULH
ERES E
NEG
RO
S
Convidada pelo IBD
U para escrever sobre a necessidade de encarar o de-
bate sobre o direito à cidade sob uma perspectiva de gênero e raça (à qual
acrescento também
a imprescindível e indissociável perspectiva de classe) a
primeira questão que m
e veio à cabeça é que são tantos os temas que essa
discussão envolve que teria que sacrificar alguns para acomodar o artigo no
espaço oferecido.Enfrentam
ento à violência sexista e do Estado contra o povo preto e pe-riférico, que fez subir 54%
a taxa de assassinatos de mulheres negras entre
2003 e 2013 e mata um
jovem negro a cada 23 m
inutos11.
Acesso à saúde integral e coletiva, num
a perspectiva de prevenção e não som
ente medicalizadora e “curativa”, especialm
ente às políticas específicas para a população negra, m
ulheres e LGBTQ
I+ (lésbicas, gays, bissexuais, tra-vestis, transgêneros, queers, intersexuais e toda a diversidade sexual e de identidade de gêneros existente).
Proteção à infância e adolescência e assistência às famílias de crianças e
jovens em situação de conflito com
a legislação, com políticas que assegurem
atendim
ento sem apartar as fam
ílias. G
arantia do direito à moradia num
a cidade que tem um
déficit habitacio-nal de 6 m
ilhões de moradias – m
ais da metade desse núm
ero em função da
alta proibitiva dos aluguéis impulsionada pela bolha im
obiliária especulati-va – e m
ais de 6 milhões de im
óveis vazios12, incluindo im
óveis de proprie-dade da U
nião, estados e municípios.
11 Dados do M
apa da Violência 2015 consultados em
20/10/2017 <http://ww
w.brasil.gov.br/
defesa-e-seguranca/2015/11/mulheres-negras-sao-m
ais-assassinadas-com-violencia-no-bra-
sil> e da CPI do Senado sobre o A
ssassinato de Jovens <https://ww
w12.senado.leg.br/noti-
cias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integra-do-relatorio-da-cpi-do-assassinato-de-jovens>.12 D
ados da Fundação João Pinheiro disponíveis na publicação DÉFIC
IT HA
BITAC
ION
-A
L NO
BRASIL 2015, consultados em
20/10/2017 <http://ww
w.fjp.m
g.gov.br/index.php/docm
an/cei/723-estatisticas-informacoes-3-deficit-habitacional-16-08-2017versao-site/file> e
do Censo 2010, conform
e publicado pelo Portal Brasil e consultado também
em 20/10/2017
<http://ww
w.brasil.gov.br/governo/2010/12/num
ero-de-casas-vazias-supera-deficit-habita-cional-do-pais-indica-censo-2010>.
5051
Vagas em creches para as quase 80%
das crianças de 0 a 3 anos não atendi-das no direito constitucional à educação infantil 13 e políticas que com
batam
de fato a evasão escolar que bateu em 11%
no ensino médio
14 (cujas causas são a im
posição da necessidade de contribuir no sustento das famílias, falta
de transporte, de um adulto que leve as crianças à escola, distância, falta de
professores, metodologias arcaicas de ensino e o racism
o institucional que desqualifica, prejulga e afasta as crianças e jovens negras e negros do am
-biente escolar).
Direito ao deslocam
ento nas cidades, hoje cerceado pelas altas tarifas e péssim
a qualidade dos transportes – considerados os trajetos das linhas, quantidade de veículos inversam
ente proporcional à superlotação e a ‘cultu-ra’ de violência sexista que propicia os assédios e condições de m
anutenção do sistem
a. Saneam
ento básico para a metade da população brasileira que não tem
acesso à coleta de esgoto
15. Políticas públicas de garantia dos direitos sexuais e reprodutivos para as vítim
as de violência obstétrica e que evitem a m
or-talidade m
aterna causada em sua m
aior parte no Brasil por desassistência. A
cesso a benefícios sociais (o nome inscrito na seguridade social brasilei-
ra já é em si um
a negação de direito) que efetivamente possibilitem
o susten-to das m
ulheres cujos filhos foram afetados pela síndrom
e congênita do zika vírus na epidem
ia dos últimos dois anos, cujo “fim
” foi decretado sem que
elas tivessem assegurado o tratam
ento multidisciplinar exigido pela condi-
ção de saúde das crianças, acesso a programas de planejam
ento familiar que
não se resumam
à esterilização forçada, contraceptivos de longa duração, etc.
13 Dado do relatório produzido pela fundação A
brinq, “Desafios na Infância e na A
dolescên-cia no brasil: A
nálise Situacional nos 26 Estados Brasileiros e no Distrito Federal”, de 2012,
consultado em 20/10/2017 em
<https://ww
w.pastoraldacrianca.org.br/a-insercao-das-crian-
cas-na-creche/a-situacao-das-creches-no-brasil>.14 D
ado do Censo Escolar 2014/2015 produzido pelo Instituto N
acional de Estudos e Pesquisas Educacionais A
nísio Teixeira (Inep)/Ministério da Educação (M
EC) publicados
pelo portal G1/Educação consultado em
20/10/2017 <https://g1.globo.com/educacao/noticia/
abandono-no-ensino-medio-alcanca-11-do-total-de-alunos-apontam
-dados-do-censo-escolar.ghtm
l>.15 D
ado do Sistema N
acional de Informações sobre Saneam
ento (SNIS)/M
inistério das C
idades divulgados pelo portal G1, consultado em
20/10/2017 em <https://g1.globo.com
/econom
ia/noticia/saneamento-m
elhora-mas-m
etade-dos-brasileiros-segue-sem-esgo-
to-no-pais.ghtml>.
Importante lem
brar que 80% dessas m
ulheres são negras e a maioria ab-
soluta vive nos estados do Nordeste do país.
Atendim
ento garantido àquelas que necessitam de abortam
ento previsto em
lei e descriminalização da prática a fim
de não impor a m
aternidade num
país em que um
a mulher é estuprada a cada 11 m
inutos16, sendo que m
ais da m
etade delas são negras17.
Além
do fato óbvio para quem quer fazer seriam
ente o debate de que preservativos e m
étodos contraceptivos falham – além
de constantemente
faltarem no SU
S. Enquanto esta realidade não mudar, dificilm
ente reverte-rem
os o fato de que 1 em cada 5 crianças nascidas no país é filho de m
ães adolescentes
18.A
lista é cansativa. Mas avaliados os dados globais tem
-se uma m
edida estatística de com
o o direito à cidade é uma falácia para a m
aioria feminina
e negra no Brasil de 2017. Somados aos problem
as estruturais o desemprego
que afeta quase 13 milhões de brasileiras e brasileiros fruto da crise econô-
mica em
curso e o fato de que outros 40 milhões vivem
de bico no mercado
por informal com
pletam o quadro que penaliza m
ajoritariamente m
ulheres negras e pobres.
Ao contrário, o que o Estado brasileiro oferece é a precarização am
pliada das condições de trabalho por m
eio da Lei 13.429/2017 (e trabalho terceiriza-do em
situação precária e sem direitos tam
bém é um
a questão de mulheres
e em sua m
aioria negras), da reforma trabalhista e da am
eaça de mudanças
na regulamentação da previdência e da seguridade social. A
lém do congela-
mento por 20 anos do orçam
ento do SUS quando 7 em
cada 10 usuários são negras e negros.
Na m
ais rica capital do país, cujo prefeito tomou posse já lançando-se
pré-candidato à Presidência, a política de enfrentamento à violência contra
16 Dado do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública divulgado em 2016.
17 De acordo com
a Nota Técnica do IPEA
(Instituto de Pesquisa Econômica A
plicada) – Estupro no Brasil: um
a radiografia segundo os dados da Saúde, consultada em 20/10/2017
em <http://w
ww
.ipea.gov.br/portal/images/stories/PD
Fs/nota_tecnica/140327_notatecnicadi-est11.pdf>18 http://m
.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02/1862231-um
a-em-cada-cinco-criancas-nasci-
das-no-pais-e-filha-de-adolescente.shtml
5253
a mulher teve o orçam
ento reduzido19 e a secretaria responsável extinta. A
s crianças foram
proibidas de repetirem refeições nas escolas. A
mais recente
invenção do gestor é a distribuição de um com
posto ultraprocessado e lio-filizado produzido com
alimentos vencidos ou às vésperas do vencim
ento com
isenção fiscal para a empresa distribuidora e “nebulosas transações”
denunciadas por vereadores e ativistas de direitos humanos. O
grafite e os grafiteiros foram
criminalizados – m
ais uma preocupação para as m
ães ne-gras que não dorm
em enquanto os filhos não chegam
na cidade cuja PM
estadual é uma das que m
ais matam
no mundo. U
suários de substâncias psicoativas – um
terço dos quais são mulheres que chegaram
à Cracolândia
fugindo de violências domésticas, abusos sexuais intrafam
iliares e abando-no – passaram
a ser enxotados de forma desum
ana. E já está em m
archa o plano de colocar a cidade à venda beneficiando a especulação im
obiliária e destituindo ainda m
ais a população de direitos. A
nalisar globalmente essa realidade – e pensar ainda que para além
dos problem
as listados acima há as dificuldades vividas por m
ulheres quilom-
bolas, ribeirinhas e indígenas – pode contribuir um pouco para que aqueles
que discutem um
projeto alternativo de país e a efetividade do conceito de N
ação no país que só assegurou o direito ao voto para sua maioria popula-
cional em 1985 com
preendam porque há índices m
enores de mobilização
que os necessários para enfrentar a realidade de retrocessos que assola o país. O
u ainda para contribuir na explicação do crescimento do ‘m
ercado da fé’ no pós redem
ocratização do país, comandado cada vez m
ais por ex-poentes de fundam
entalismos religiosos que cavalgam
o processo de crise política, social, econôm
ica e institucional em curso e se apresentam
como
“alternativas”.Para a m
aioria da população brasileira a cidadania é um conceito m
uito distante. Especialm
ente a ‘cidadania’ que teve como pilar estruturante na
Constituição de 1988 o acesso ao m
ercado de trabalho formal.
Ou os setores progressistas da sociedade brasileira com
preendem a es-
truturalidade do racismo no Brasil, sua relação indissociável da condição de
gênero e centralidade para qualquer projeto que emancipe a classe que vive
do trabalho, ou será impossível constituir um
projeto que encante a maio-
19 https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/gestao-doria-corta-verba-de-atendim
ento-a-mul-
heres-vitimas-de-violencia-dom
estica.ghtml
ria do povo que luta cotidianamente para sobreviver neste solo nada gentil.
Garantir um
projeto de acesso pleno e efetivo à cidade – com direito sociais,
ambientais, de lazer e interação com
a natureza.
5455
Foto 07
5657
Wendy Silva de A
ndrade, bacharela em C
iência Política pela Univer-
sidade de Brasília, mestranda em
Gestão Pública pela U
niversidade Estadual de G
oiás; também
mem
bro da Ubuntu: Frente N
egra de C
iência Política da UnB, atua na form
ação política em busca da
reorientação dos povos em D
iáspora africana, com base na filoso
-fia U
buntu e recuperação da autonomia, ascensão e autoestim
a da população negra.
7Pela
Pop
ula
ção N
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ra d
o En
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F: Qu
em
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olítica
s de P
úb
licas p
ara
o D
F e En
tor-
no.O D
istrito Federal e o Entorno compõem
uma das três Regiões de Inte-
gradas de Desenvolvim
ento (RID
E) do país e também
configuram entre as
14 Regiões Metropolitanas do país. Por m
eio de legislação, há determinações
para seus mem
bros para que haja de fato essa integração para alcançar o D
esenvolvimento.
A A
MB é form
ada pelos municípios goianos de Á
guas Lindas de Goiás,
Alexânia, C
idade Ocidental, C
ristalina, Formosa, Luziânia, N
ovo Gam
a, Padre Bernardo, Planaltina, Santo A
ntônio do Descoberto e Valparaíso de
Goiás. Estes m
unicípios guardam intensa relação econôm
ica e social com
o Distrito Federal e a C
apital Federal. Tal relação também
existe em função
da criação da Capital Federal que atraiu pessoas de diversas regiões do país
em busca de um
a vida melhor no D
istrito Federal à época de sua expansão habitacional ocorrida em
meados de 1999-2003.
A ausência de política habitacional estim
ulou a vinda dessas pessoas que, outrora eram
indesejadas pelos idealizadores da Capital que tinha com
o pre-visão populacional apenas 500 m
il habitantes. Hoje, com
cerca 3 milhões de
habitantes, o Distrito Federal não abarca a dem
anda populacional que cha-m
ou para si. As populações passaram
a ocupar e habitar as regiões de seu Entorno, o qual é o nom
e reconhecido para a região.Tidas com
o cidades dormitório, as cidades da Á
rea Metropolitana de Bra-
sília (AM
B) são menos desenvolvidas econom
icamente e sua população, usa
significativamente os serviços públicos do D
F, haja vista a precarização dos m
unicípios. Um
reflexo desse baixo desenvolvimento é o alto índice de vio-
lência e baixo índice educacional da AM
B.D
entre as regiões metropolitanas existentes, esta é a que apresenta m
aior
5859
desigualdade entre o município-pólo e a periferia. O
PIB dos da periferia corresponde apenas a 6,5%
contra 93,5% do D
F (Codeplan, 2009 apud A
ze-vedo &
Alves, 2012, pp.91).
A tam
bém R
egião Integrada de Desenvolvim
ento Econômico (R
IDE) pos-
sui alguns impasses que postulam
que a não pode ser considerada uma re-
gião metropolitana, os quais são os critérios de diversificação de funções que
ela não possui, e pela sua acumulação de capital em
apenas um ponto do
território da RIDE, no caso Brasília|D
F. N
a região metropolitana em
questão, há a concentração espacial da po-pulação, atividades econôm
icas, produção e consumo de m
assa. As funções
de capital que desencadearam as dem
ais funções de forma a tornar a A
MB
uma m
etrópole. Em sua especificidade as funções centrais não se espalham
pelo território, suas atividades não se desconcentram
, ficam restritas à cida-
de-pólo e Capital Federal, Brasília; e a gestão desse território, RID
E-DF|En-
torno, deixou de criar mecanism
os que estimulem
esta desconcentração. As
funções polarizadoras não estão voltadas a um m
ercado contínuo e não há com
promisso com
uma área de m
ercado local ou regional, assim tam
bém,
a dinâmica im
obiliária residencial de supervalorização e especulação no D
istrito Federal formou a periferia (FER
REIR
A, Ignez C
osta Barbosa (1999) apud A
zevedo & A
lves, 2012, pp.91). A R
IDE é m
ecanismo institucional cria-
do no âmbito do governo federal com
o objetivo de promover m
aior gover-nabilidade e m
elhora dos índices de desenvolvimento.
Porém, desde a sua criação, é perceptível a ação pouco efetiva dos entes
municipais, estaduais e federais m
embros das RID
E para reverter a situação e índices de desenvolvim
ento. Do perfil populacional dos habitantes do ter-
ritório em questão, não há diferença com
a situação do país; o maior índice
de violência incide sobre a população jovem e negra. O
adendo é que, dos m
unicípios entes da RIDE, três estão entre os 100 m
ais desiguais e violen-tos do país. U
ma ação conjunta deve ser dada para que haja um
a estrutura adm
inistrativa de maior autonom
ia que amplie a participação social e dos
prefeitos dos municípios. Esta subárea da RID
E deve encontrar um desenho
institucional que a pactue territorialmente, além
de mecanism
os como os já
citados, bem com
o mecanism
o financeiro de forma com
patível com a dinâ-
mica e problem
ática que se coloque de forma contundente para desafiar a
atual institucionalidade e a pactuação federativa vigente (Azevedo &
Alves,
2012, pp. 95).A
ssim, à luz de G
uerreiro Ramos e A
chille Mbem
be, pretende-se argu-m
entar como o Estado se torna negligente por falta de políticas públicas
mais incidentes e com
o essa violência é normalizada na sociedade.
Em G
uerreiro Ram
os, é afirmada que há na sociedade um
a “patologia do ‘branco’ brasileiro”, o qual atribui toda a situação de problem
ática racial ao negro. O
que dialoga com A
chille Mbem
be que acrescenta que ao racismo é
aliado para a normalização do estigm
a e desqualificação do Negro sem
uma
justificativa objetiva.A
temática racial que é transversal à econom
ia. O cerne de raça e classe se
dá mutuam
ente. Porém, a lógica racista não é apenas um
a “questão social”. Logo, é necessário analisar o racism
o vigente para além disso. Pois, a igual-
dade de classes não leva ao desaparecimento do m
esmo (M
bembe, pp. 72).
Assim
, revela-se imprescindível entender o funcionam
ento das estruturas que corroboram
para manutenção desse sistem
a, bem com
o de seus aliados; com
vista a tentar, quiçá, superar a existência do mesm
o. O processo racial
tem reflexos na sociedade brasileira, com
sua negação da cor; no sistema de
securitização, com o biopoder no com
bate aos corpos negros; e na população negra, com
sua estigmatização.
Dos autores escolhidos para a argum
entação até aqui levantada, traz-se A
chille Mbem
be (2014) que discorre sobre a ideia de Negro criada pelo O
ci-dente e o processo dos povos em
diáspora até os dias de hoje. O autor dá
conta do processo de subjugação do Negro, a busca do m
esmo por identi-
dade e a sua posterior frustração ao passo que lhe é negada a liberdade de ter a própria essência. D
e forma que fica atado ao perfil excludente que dele
criaram. O
que pode refletir na situação da população da AM
B, a qual tem
maioria negra associado ao passado baby boom
que hoje está refletido na alta taxa dem
ográfica de jovens, porém em
grande parte sob alto grau de vulnerabilidade social.
Patologia do “branco” e enclausuramento do N
egro Guerreiro Ram
os (1982) atribui essa narrativa depreciativa e m
entirosa sobre os negros como
uma patologia do “branco” brasileiro, e não m
ais, como um
problema dos
negros que recorrentemente se discursava. O
“branco” postula informações
6061
mal form
uladas verbalmente sobre o negro que, m
esmo inadequadas e en-
ganosas, um dia foram
consideradas ciências no âmbito da A
ntropologia e Sociologia (R
amos, 1982, pp. 215).
Somado a isso, a estética do “branco”, critério dom
inante na sociedade brasileira reflete-se em
um com
portamento de superioridade que justificava
a relação servil (Ram
os, 1982, pp. 216). Ram
os não se utilizou da literatura brasileira produzida sobre relações raciais, um
a vez que essas mais confun-
dem do que explicam
. A respeito da patologia social é convencionado que a
mesm
a equivale a um desequilíbrio da sociedade com
o estado natural em
perturbação. A m
esma é um
a extensão do biológico (Novicow
apud Ram
os, 1982, pp. 217).
Segundo Durkheim
(1950), citado por Ram
os, o estado o que é conside-rado norm
alidade é relativo a uma dada fase da sociedade. A
depender do m
omento algum
ato pode ser dado como norm
al ou anormal. (R
amos, 1982,
pp. 218 – 219). A exem
plo, justamente a questão racial, que é processo oriun-
do de uma época em
que havia justificativa, explicação e aceitação para do-m
inação e subjugação dos negros. À época essa justificativa era dada com
o o norm
al dentro da sociedade. Há controvérsias se não é assim
até os dias atuais, m
as nas leis vigentes nos dia de hoje, a igualdade é princípio e o anor-m
al passa a ser o racismo que outrora não era crim
e, mas um
a regra.Para perpetuar seu poder, a m
inoria colonizadora promoveu sua dom
i-nação por m
eio de valores estéticos e costumes. D
e forma que garantiu o
poder em sólidos pilares com
duração garantida (Ram
os, 1982, pp. 219). Para M
bembe (2014), essa dom
inação estética também
pode chegar à eugenia ge-nética de m
elhoramento que exclui os fenótipos negros. O
pensamento de
raça também
passou a colonizar a questão do genoma. Por m
eio de pesqui-sas para atribuir a origem
de doenças a certas raças, ou mesm
o nos discursos de sobre escolhas reprodutivas onde há a seleção de em
briões, sem im
pedi-m
entos de haver um futuro em
que se faça um controle de ‘qualidade’ para
impedir o nascim
ento das raças “indesejáveis” (Mbem
be, 2014, pp. 45-46).Ram
os ainda determina que essa patologia do “branco” se revela na de-
claração de cor das pessoas. Que, as que tem
pigmentação m
ais clara se auto avaliam
contra sua condição étnica objetiva. Esse desequilíbrio é o que o au-tor considera de patológico no país (R
amos,
1982, pp. 221).A
exemplo, a estatística oficial do IBG
E, em 1940, ao recensear a popula-
ção entre “branca”, “preta” e “amarela” ou um
traço (-) notou uma grande
inclusão de pardos entre os brancos e uma m
enor fração de pretos entre os pardos. Logo, um
a tendência ao clareamento (R
amos, 1982, pp. 221).
Revela-se um
desejo fictício de superioridade. Tanto o é que há protesto quando identificados enquanto negros, ao ponto de exibirem
sua “brancu-ra” com
origens enobrecedoras para “proclamar anéis, decoração da casa,
constituição do nome, estilo linguístico”; ao ponto de quererem
descobrir suas origens europeia e ignorarem
a origem africana (R
amos, 1982, pp. 226).
O desajustam
ento do “branco” é tamanho que o m
esmo não gosta da afir-
mação de que o Brasil é de m
estiços. O ideal de brancura acaba por enfraque-
cer a integração social dos elementos que constituem
a sociedade europeia (R
amos, 1982, pp. 230-231).
Era perceptível a crueldade, má fé e intenção “cism
o genética” a respeito dos negros no Brasil. U
ma vez que im
putaram processos sem
elhantes aos aplicados aos judeus. U
ma estratégia para m
inar nas pessoas negras o senti-m
ento de insegurança (Ram
os, 1982, pp. 231).Essa idealização da brancura reflete-se na baixa integração social de seus
elementos, onde, segundo o autor, é tem
porário e não será obstáculo ao pro-cesso social. Pelo m
étodo indutivo, o autor conclui que o “problema do ne-
gro” se revela uma patologia social do branco que, enquanto m
inoria letrada que criou o problem
a. Logo, é preciso reexaminar as condições raciais no
Brasil a partir de uma posição étnica autêntica. Esta é possível a partir do
país e suas pautas de evolução sem im
itar as práticas de sociólogos de outros países (R
amos, 1982, pp. 235-236).
Depreende-se de R
amos (1982) e M
bembe (2014) a existência da questão
biopolítica neste e a biológica naquele. Da biológica, Springer (apud R
amos,
pp. 220), também
tratou o tema da patologia social com
o uma enferm
idade que foge à norm
a. A m
esma pode presidir a estrutura dos superorganism
os. Q
uanto a biopolítica, explica-se ser o “de controlo das pessoas e a tomada de
poder sobre um corpo biológico m
últiplo em m
ovimento”, sendo ela conse-
quência das transformações do m
odo de produção capitalista, sistema que
outrora teve sua existência apoiada na superioridade racial (Mbem
be, 2014,
6263
pp. 46). Do enclausuram
ento do Negro, ou sua estigm
atização, foi feito o uso de pseudojustificações de estereótipos e dom
esticações psicológicas (Ra-
mos, 1982, pp. 220). Esse enclausuram
ento significa uma form
a de curiosi-dade com
efabulação que incide sobre os outros, a ponto de transpor o que é acreditável ou inacreditável. Logo, essas classificações eram
construídas com
preconceitos ingênuos e sensualistas com sim
ples qualificações que podiam
ser boas ou ruins (Mbem
be, 2014, pp. 38-39).A
s qualificações ruins eram atribuídas ao N
egro, o qual era representado com
o uma figura pré-hum
ana incapaz de superar a sua animalidade. Tais
qualificações, aliadas ao imperialism
o, são captadas e apreendidas pelo pen-sam
ento ocidental, de forma que aos poucos foi desligando qualquer possi-
bilidade de conhecer profundamente do que se falava (M
bembe, 2014, pp.
39).
Refl
exo n
a so
cied
ad
e d
a ‘b
ran
qu
itud
e’ n
o B
rasil
Para Ramos, é evidente que há um
a perturbação psicológica do brasilei-ro em
sua autoavaliação estética. Um
a vez que, o próprio IBGE declara e,
nota que o número apurado de “brancos excede sensivelm
ente o que o que constaria de um
a classificação realizada conforme critério objetivo” (R
amos,
1982, pp. 221). A cor escura ocupa o pólo negativo. O
padrão branco de es-tética social se desenvolveu quando o oposto deveria ter ocorrido. A
s mino-
rias “brancas” tentam esconder as origens raciais. Tornam
-se mais brancos e
querem se tornar se aproxim
ar da estética europeia (Ram
os, 1982, pp. 226).A
Europa, por sua vez, se inscreveu, ao longo do séc. XVII, num
a posição de com
ando com relação ao resto do m
undo. O horizonte espacial europeu
se alarga justamente por este deter o controle sobre a im
aginação cultural e histórica (M
bembe, 2014, pp. 37). À
época também
surgiam discursos sobre
a natureza, forma e especificidades dos seres vivos e com
os seres humanos
a regra também
foi aplicada. Populações foram classificadas em
termos de
espécies, gêneros ou raças numa linhagem
vertical (Mbem
be, 2014, pp. 37).Em
paradoxo, as pessoas e as culturas também
começam
a ter suas indi-vidualidades encerradas em
si. Cada com
unidade passava também
a ser um
corpo coletivo e único, cuja
história tinha uma base única e os únicos resultados possíveis eram
a li-berdade ou a escravatura. A
ssim, junto a esse advento das classificações dos
seres, passa-se a indicar no que um se difere do outro (M
bembe, 2014, pp.
38). A raça não existe do ponto de vista antropológico ou genético. Porém
, é um
a ficção útil para desviar a atenção de outras lutas mais verossím
eis ou-trora. Postulou- se a existência de um
a superioridade racial onde o ocidente se colocou com
o o lugar onde havia direitos e humanidade. A
penas no oci-dente se deu a concepção de cidadão com
direitos civis e privados para seu pleno desenvolvim
ento. A concepção de que eram
civilizados, a crença da não hum
anidade das pessoas que viviam em
África, fez criar fábulas e cren-
ças imaginárias no erudito e no popular. A
o passo que até os estudos mais
objetivos para conhecer o outro, estavam recheados de narrativas que faziam
o N
egro ser visto como brutal (M
bembe, 2014, pp. 25). C
om relação à beleza,
o mesm
o se sucede. Cada raça se considera com
o a mais bela e se orgulha do
que a distingue de outras raças. Quando um
a raça se vê obrigada a ter outra com
o superior e mais desenvolvida, o am
or à própria raça desaparece e à própria beleza tam
bém (R
amos, 1982, pp. 219).
Refl
exo n
o Siste
ma
de Se
gu
ran
ça d
o Esta
do
A questão social é processo oriundo de um
a época em que havia a justifi-
cativa de dominação e subjugação dos negros. À
época essa justificativa era dada com
o o normal dentro da sociedade. O
nde também
convergem M
bem-
be e Foucault sobre os corpos Negros a serem
combatidos, cuja presença
é tida como o norm
al e desejável dentro da esfera e estrutura do Estado. A
ssim, o conceito de raça foi útil para dar nom
e aos que não eram euro-
peus. O que o autor diz que cham
amos de ‘estado de raça’ diz respeito a
um estado de degradação da essência dessas hum
anidades não-europeias que eram
tidas como m
enores. Há a ideia de fóssil apresentada por Foucault
((2000)) citado por Mbem
be, em que seu significado condiz com
“aquilo que deixa substituir as sem
elhanças através de todos os desvios que a natureza percorreu”. E tam
bém a ideia de m
onstro, que “narra, como em
caricatura a gênese das diferenças” (Foucault, A
s palavras e as Coisas, (2000), p.216 apud
Mbem
be, pp. 39-40). Na classificação das classes, espécies e gêneros o N
egro
6465
na sua obscuridade representa a sintetização destas significações. Logo, ele não existe enquanto N
egro, uma vez que sua figura é produzida e reprodu-
zida. Sua figura é produzida enquanto um corpo de exploração com
vínculo de subm
issão, onde era colocado nas plantações para obtenção do máxim
o de rendim
ento (Mbem
be, pp. 39 -40).Raça e racism
o se revelam no trabalho que este tem
em relegar a um
rosto hum
ano para segundo plano e cobri-lo com um
véu. No lugar de rosto, um
a fantasia, um
simulacro. Essa atribuição é produzida e institucionalizada, a
indiferença e o abandono justificados. O O
utro é violado, ocultado e con-denado à m
orte de maneira aceitável (M
bembe, pp. 64- 74). Em
Foucault, raça e racism
o “é a condição de aceitabilidade da condenação à morte num
a sociedade de norm
alização”. “A função assassina do Estado só pode ser ga-
rantida, funcionando o Estado no modo de biopoder, através do racism
o. ” (Foucault, (2006) pp.227-8, apud M
bembe, pp. 64-74). O
que condiz com
a postura do Estado de abandono da região objeto da questão de violência em
ergente, e a ausência de ações para a melhoria da RID
E.A
quele o qual a raça é atribuída é passivo de tê-la presa em sua silhueta,
de modo a
desconsiderar sua essência, fazendo com que, segundo Fanon ([1952]2008),
“uma das razões para desgostar da sua vida será habitar essa separação
como se fosse o seu verdadeiro ser, odiando aquilo que é, para tentar ser
aquilo que não é” (Fanon apud Mbem
be, pp.11;25).
CO
NSID
ERA
ÇÕ
ES FINA
IS
A tem
ática abordada pode ser utilizada para entender melhor a interação
de raça e racismo, principalm
ente no âmbito da C
iência Política, Ciências
Sociais, Com
unicação e Jornalismo. Á
reas as quais podem corroborar ou
combater os discursos que por hora influenciam
para a manutenção de um
sistem
a racista que se reflete nos moldes institucionais do Estado.
Ao passo que essas inovações podem
exercer controle e vigilância, tam-
bém pode exercer opressão extensiva e tam
bém deixar à própria sorte o espa-
ço que poderia ter sua presença para além da vigilância e opressão. O
poder público do Estado tende apenas à vigilância, e deixa à parte o que lhe seria
obrigação de fornecimento aos ditos ‘cidadãos’. Q
ue, em sua m
aioria negros, não têm
espaço ou estrutura para exercer a plena liberdade cidadania, uma
vez que são apenas corpos tidos como inim
igos do Estado que precisam ser
combatidos. A
tendência do negro é de se desvencilhar do corpo por não ter sua identidade reconhecida pelos ditam
es sociais do biopoder, é reflexo do racism
o que incide permanentem
ente com inovações tecnológicas.
BIB
LIOG
RA
FIA
Atlas do D
esenvolvimento H
umano no Brasil , acessado em
06/07/17, às 17h;A
ZEVED
O, H
. L.; ALV
ES, Adriana M
elo . RIDEs: por que criá-las? G
eo-grafias (U
FMG
), v.8, p. 87-101, 2012.M
BEMBE, A
chille. Crítica da Razão N
egra. Introdução; Capítulo01, 2014.
RAM
OS, G
uerreiro. Patologia Social do Branco Brasileiro. Introdução à Sociologia C
ríticano Brasil, 1982.
6667
6869
Lucas Ferrazza é Cozinheiro e Produtor C
ultural. Atualm
ente cursa
Tecnólogo em G
astronomia pelo IFSC
, em Florianópolis, sua cidade
natal. Em suas lutas, está a constante resistência do corpo negro,
gordo e gay.
8C
OR
PO
NEG
RO
E GO
RD
O B
ÓIA
NO
MA
R
Moreno? M
oreno, claro. Foi dessa forma que m
e enxerguei e me identi-
fiquei durante muito tem
po na minha vida. Q
uando pequeno, filho de mãe
solo, nascido em Florianópolis-SC
, logo cedo eu ouvi de pessoas do meu
convívio e família que “esse aí não tem
pai”, que “o pai dele é negão”, que “você não precisa conhecer seu pai”. A
o mesm
o tempo em
que me tratavam
dessa form
a, parte dessas pessoas eram aquelas que ajudavam
minha m
ãe com
o que podiam para que eu tivesse um
a infância com com
ida, escola e m
oradia. Lembro de nos verões, a cor da m
inha pele ser sempre um
a ques-tão pautada por m
inha família. O
uvia-os falando da inveja da minha pele ao
mesm
o tempo que ouvia conselhos para “não fazer serviço de preto”. A
pele clara e o cabelo liso sem
pre foram fatores que privilegiaram
minha inserção
no ambiente fam
iliar, no ponto em que este am
biente parece responder a um
comportam
ento de nossa sociedade quando, sabendo quem é negro, o reco-
nhece como o tal apenas quando lhe é conveniente.
Quando m
inha cor começou a ser de fato um
a questão para mim
, lembro
de chegar à conclusão, junto de minha m
ãe, que eu era pardo. Ou então, m
o-reno. N
egro era uma palavra que nunca deixaram
se aproximar de m
im. E
o que era ser pardo? E porque minha m
ãe é branca e eu sou pardo? Quando
eu me deparei com
esses tipos de questões, lembrei-m
e da única foto do meu
pai que minha m
ãe havia me m
ostrado quando eu tinha sete anos. Lembro
que a foto ficava dentro de um envelope, dentro de um
a lata, no fundo do arm
ário. E a foto era de uma expressão m
uito séria. Era um tabu para m
im.
Recordo-me de ter sonhos constantes com
meu pai m
esmo sem
conhecê-lo, a expressão daquela foto nunca saiu da m
inha cabeça. Eu andava na rua e sem
pre ficava olhando para homens negros, im
aginando como seria o m
eu pai. A
té porque, pelo que ouvia, essa era a única certeza que eu tinha dele: m
eu pai é preto.
7071
Somente aos treze anos m
inha mãe m
e contou como e quando a história
dela se cruzou com a do m
eu pai. Ela tem um
irmão que estava preso em
um
presídio em Florianópolis, na m
esma época que m
eu pai também
estava pre-so. Eles se conheceram
dentro do ambiente penitenciário e quando m
eu pai foi solto, eles se relacionaram
, tendo como consequência a gravidez. M
eu pai não quis assum
ir e sugeriu que ela abortasse. Minha m
ãe escolheu assumir a
gravidez sozinha. E quando digo sozinha, não ignoro todas as ajudas e amor
que a nossa família sem
pre nos deu, mas digo sozinha, assum
indo o papel de M
ãe, e exclusivamente M
ãe, sofrendo todos os preconceitos por ser mãe
solo, colocando um filho hom
em no m
undo. M
inha mãe sem
pre foi muito verdadeira com
igo e escolheu os mom
entos que julgou achar m
ais adequado para que eu soubesse sobre minha origem
por parte de pai. N
o entanto, o meu contexto social foi im
pregnado de atitu-des que sem
pre me distanciaram
disso. Convivi durante m
uito tempo com
pessoas que eram
contra eu conhecer meu pai. Eu cheguei a concordar com
isso ao m
esmo tem
po em que não com
preendia nada. Ao m
esmo tem
po em
que eu “me identificava” com
o moreno e pardo, cresci com
o mundo falando
que eu não deveria nunca ser como m
eu pai: negro. C
om 16 anos fui m
orar e estudar no Rio de Janeiro e foi com essa idade
que conheci meu pai, quando ele foi m
e visitar na escola. Nos abraçam
os, conversam
os e foi mais leve do que eu pensava que seria. E é m
uito estranho você reconhecer a sua face e o seu corpo em
outra pessoa, aquele que falaram
pra você nunca ser igual. De todos os filhos, eu sou o m
ais parecido fisica-m
ente com ele. E esse detalhe fez abrir um
grande vazio dentro de mim
. Esse vazio era o m
otivo de eu ser moreno, claro. N
ão. Esse vazio era o motivo do
meu pai ser negro e grande parte das pessoas quererem
negar essa realidade para m
im: um
a criança que é negra, de pele clara, e cresceu dentro de um
contexto social branco, que a vida inteira me considerou com
o moreno para
que eu fosse inserido e aceito num am
biente em que eu era a exceção, por ra-
zões de embranquecim
ento e por não assumirem
que dentro de sua família
havia uma pessoa preta.
O processo de em
branquecimento em
que vivi interferiu muito no m
eu convívio com
pessoas negras, estive sempre condicionado a ter am
igos bran-cos durante toda a infância e adolescência. D
e volta a Florianópolis, com 18
anos, entrei na Universidade do Estado de Santa C
atarina e no meu segundo
ano cursando Teatro, fui convidado por uma professora para assum
ir uma
bolsa de um projeto de extensão que ajudava na pesquisa e produção do
“Coletivo N
EGA
- Negras Experim
entações Grupo de A
rtes”. Fiz parte do coletivo por alguns m
eses e logo depois abandonei a universidade por uma
não identificação com o curso. A
o entrar no Coletivo m
e questionava a res-peito dos m
otivos pelos quais a bolsa foi oferecida a mim
e este processo de questionam
ento foi muito im
portante para meu reconhecim
ento enquanto pessoa negra. N
o Coletivo, acim
a de compreender com
o o racismo sem
pre esteve presente dentro da m
inha vida, conviver com outras pessoas pretas
foi crucial para eu entender quem eu sou no m
undo. D
epois de largar a universidade, fui morar em
São Paulo. Este foi um pe-
ríodo muito im
portante, onde, morando longe do m
eu contexto social, tive um
a série de gatilhos em relação aos preconceitos vividos até então, prin-
cipalmente situações fam
iliares que foram apagadas e revividas posterior-
mente. Foi nessa fase que eu convivi, de fato, com
pessoas pretas que foram
fundamentais para o m
eu processo de reconhecimento. D
iferentemente de
Florianópolis, em São Paulo, além
de conviver, eu enxergava diariamente
muito m
ais pessoas negras. E conviver com e enxergar outras pessoas ne-
gras, sem dúvida, fortalece-nos e encoraja-nos a nos ver de um
a maneira
mais sincera. N
ão à toa nós, pretos e pretas, fomos histórica e sistem
atica-m
ente induzidos a não conviver com os nossos para que nossa luta seja sem
-pre enfraquecida enquanto grupo, por um
a sociedade não nos aceita fortes e constantem
ente planeja o nosso extermínio.
Após m
e entender verdadeiramente com
o uma pessoa preta instantanea-
mente com
ecei o processo de identificação como um
a pessoa gorda, da mes-
ma form
a, dolorida, através de gatilhos e traumas e coisas que a gente vai
engavetando e uma hora ressurge. A
nteriormente, além
de moreno, nunca
me tratavam
como um
a pessoa gorda. Eu era sempre aquela pessoa que os
amigos falavam
“mas eu não te vejo com
o gordo”. E foi nos meus relaciona-
mentos com
outros homens que eu m
e deparei com a não aceitação do m
eu corpo com
o ele era. Era comum
sair com m
eus amigos para festas e não con-
seguir me aproxim
ar de pessoas que me despertavam
interesse. Era comum
m
e olharem com
cara de nojo, bem com
o sempre foi com
um ficar com
alguns
7273
homens gays que pediam
para que tudo acontecesse no privado. Foi muito
comum
marcar encontros com
caras que eu não conhecia e me perguntarem
: “M
oreno claro ou escuro?”, ou então ser convidado a me retirar da casa de
algumas pessoas com
o argumento de: “D
esculpa, mas não vai rolar. Eu não
gosto de gordinhos”; “Não rola cara, você não m
e avisou que você era as-sim
”. Eu deveria, então, com
unicar a todas as pessoas que eu sou gordo, gay e preto?
Sempre m
e escondi atrás de roupas escuras, com m
angas e que não mar-
cassem m
inhas coxas, minha bunda e m
eus peitos. Não conseguia andar na
rua sem cam
iseta e suportar olhares e piadas sobre ser um hom
em que tinha
peitos ou que tinha dobras na barriga e uma bunda grande. E m
esmo assim
, o m
undo sempre m
e obrigou a deixar claro para todos o que eu sou. Na esco-
la, colegas já me tiraram
a camiseta a força no vestiário para que eu m
ostrasse m
inha barriga e eles pudessem rir da m
inha cara. E pessoas agem dessa for-
ma porque outras pessoas perm
item que elas façam
isso. Tem gente que acha
feio andar com gente gorda, quem
dirá sentir amor e se relacionar por um
a pessoa gorda e preta. A
paixão é seletiva, sim. Som
os motivos de piadas por
ser quem som
os. E, sofremos por achar que som
os estranhos e que o nosso corpo está errado e que precisa ser m
udado. E esse sofrimento aum
enta cada dia m
ais entre os jovens, principalmente entre os jovens negros. Em
nossa sociedade, m
eu corpo não é um corpo desejado, está longe de ser bem
visto, é um
corpo que fede, que não transa, que não combina basicam
ente com
nada – eu fui ensinado a pensar isso tudo de mim
porque pessoas pensam
isso de mim
. Essa é a sociedade que se diz avançar no combate do racism
o, gordofobia e hom
ofobia, mas que não aceita um
corpo negro, gordo e gay. Ser gordo é um
a coisa de louco, parece que você é o sinônimo da ansieda-
de. Se alimentar na frente de outras pessoas então, é um
verdadeiro desgaste. A
sensação é de que você tá fazendo a coisa errada o tempo todo. Te olham
com
o se você comesse apenas por ansiedade e nunca por necessidade. Te
questionam m
uito mais o que e porquê você está com
endo. Nós, pessoas
gordas, convivemos diariam
ente com pessoas que reclam
am de estarem
com
o nós somos. A
gente se retrai muito e não se sente livre nem
mesm
o para expor as nossas angústias ao m
undo. Culpam
o-nos diariamente por
uma série de im
posições que colocam na nossa cabeça. E saím
os de casa com
medo de com
o vão nos reparar. A gente escolhe aquela roupa que faz
as pessoas nos olharem m
enos, mas ainda assim
bufam no ônibus quando
sentamos ao lado. A
cham que som
os sujos e fedidos porque suamos m
ais. M
uitos fetichizam nosso corpo por m
era diversão, para depois falar que estam
os exagerando.Faz seis m
eses que eu voltei a morar em
Florianópolis. Sou cozinheiro e estudo G
astronomia no Instituto Federal de Santa C
atarina. Voltei para a ci-
dade pelo motivo de estudo e hoje reencontro aqui todas as feridas que esses
processos causaram dentro de m
im, só que agora, fazendo sentido.
Historicam
ente, Florianópolis, tem um
a trajetória baseada na ideologia do em
branquecimento que, anos depois da abolição da escravatura, a partir
da década de 20, através de reformas “urbanísticas e sanitárias”, expulsou
para os morros toda a população negra que vivia em
cortiços no centro da cidade. A
maior parte da população negra ainda resiste nos m
orros. A m
aior parte dos terreiros, estão no m
orro. E todas essas comunidades do m
aciço dos m
orros sempre foram
(e ainda são) esquecidas pelo governo. Dem
orou setenta anos para ter água encanada nos m
orros depois da criação do primei-
ro reservatório de água da cidade, que, ironicamente, ficava em
cima de um
dos m
orros principais da mesm
a. Temos áreas nos m
orros em que ainda não
possuem coleta de lixo. A
maior parte das pessoas negras na cidade ocupam
em
pregos de baixa renda. A m
ão-de-obra do centro histórico da cidade é preta. O
mercado público da cidade era um
ponto de encontro e convivência negra e agora, depois de um
a reforma, tornou-se um
ambiente voltado para
a classe média branca. E esse ritm
o continua da mesm
a forma, só que para
pior. O
Estado aplica a cultura de marginalização dos m
orros e regiões perifé-ricas pregando o esquecim
ento (e negando a existência) da população pre-ta, enquanto dificulta os acessos básicos a saúde e educação. M
ais do que isso, o Estado trabalha todos os dias para colocar em
prática o extermínio
da população preta. De acordo com
o Atlas da V
iolência 2017, a cada 100 pessoa m
ortas no Brasil, 71 são negras. Os núm
eros atuais do genocídio de jovens hom
ens negros são comparados a taxas de m
ortalidades em períodos
de guerra. E as pessoas não conseguem falar sobre isso. N
ão falam porque
7475
não se identificam com
as pessoas que estão morrendo. N
ão falam por que,
de certa forma, com
pactuam com
a ação genocida que o Estado aplica contra o povo preto.
Estar inserido dentro de um am
biente que nega o tempo todo a nossa
existência, condiciona-nos facilmente a im
aginar-nos como um
erro, um es-
torvo. O reconhecim
ento da pessoa preta enquanto o que ela é no mundo
é fundamental para seguir em
busca das feridas que precisam ser curadas.
Sabendo que no contexto da população negra a necessidade de cura é coleti-va. C
urar os nossos para que a gente crie e retome m
ais ambientes que sejam
nossos.
As pessoas pretas que vivem
aqui em Florianópolis são grandes sím
bolos de resistência. Estas pessoas resistem
em um
a das capitais mais conservado-
ras do país. Aqui a intolerância ecoa pela natureza e pelo falso encanto de ser
uma cidade paradisíaca em
que você encontra liberdade. A liberdade aqui é
para turista ver e consumir. O
plano diretor da cidade ignora a localização da população negra e visa estabelecer facilidades voltadas unicam
ente para um
a elite branca. A cidade que é tida com
o um ótim
o destino para o público LG
BT+, registra um aum
ento considerável nos índices de estupros e espan-cam
entos em pessoas lésbicas, gays e transsexuais. A
estrutura do comércio
da cidade está voltada para um público que não gosta de ser gordo. O
go-verno nega a existência e presença da população preta ao m
esmo tem
po que foca na realização de ações e eventos de origem
italiana, açoriana e germâni-
ca, com o argum
ento de preservação da cultura local, dando “visibilidade” para nós pretos apenas no carnaval (m
as que sofre grandes cortes de inves-tim
ento anualmente), com
a participação das escolas de samba, quase todas
oriundas das comunidades do m
aciço dos morros; e no dia 20 de novem
bro, dia da C
onsciência Negra, em
que a cidade parece fazer lembrar da nossa
existência. A
s pessoas te olham estranho quando você é preto e diz que é daqui –
de Florianópolis. As pessoas não te aceitam
, fazem você se questionar sobre
sua existência nesse local, colocando como regra a existência, de fato, só de
pessoas brancas. Eu nasci aqui e já fui embora da cidade duas vezes em
mo-
mentos em
que me senti verdadeiram
ente expulso. Mas, expulso por quem
? O
que eu fiz de errado? Eu apenas nasci aqui. O m
undo ainda não permite
que eu esteja completam
ente satisfeito com o m
eu corpo como ele é e onde
ele está. Essa angústia faz parte de mim
. Mas, o am
or que eu tenho pelo meu
corpo é uma prática que venho tentado retom
ar todos os dias quando con-sigo m
e enxergar. E não é fácil. É um m
isto de não pertencimento com
um
sentimento de esquecim
ento que me coloca num
a posição muito solitária. Eu
nado contra a solidão. No entanto, é dessa form
a que o mundo espera que eu
reaja. O m
undo não quer que estejamos preparados e fortalecidos para isso.
E compreender isso é tam
bém com
preender a necessidade que o meu corpo
tem de resistir a tudo isso. N
ossos corpos precisam resistir a essa invisibili-
dade e mostrar que existim
os. E, se a sociedade quer que eu continue a me
esconder, a sociedade vai ter que aceitar, de uma vez por todas, m
eu corpo preto e gordo boiando no m
ar.
7677
7879
Letícia Carvalho, 2
0 anos, Pernam
bucana. Ativista fem
inista negra perifé-rica, ilustradora, integrante e fundadora do coletivo Faça A
mor, N
ão Faça C
hapinha e estudante de Pedagogia em educação do cam
po na UFPE
9P
ELO D
IREITO
DE SO
BR
EVIV
ER A
CID
AD
E
Em 2014 ouvi pela prim
eira vez o termo “direito à cidade”, através da
repercussão dos movim
entos pela ocupação do Cais José Estelita em
Recife, cidade vizinha à m
inha, Jaboatão dos Guararapes. N
a época, eu tinha 16 anos e tudo naquele discurso m
e parecia revolucionário. Descobri não só que
era um direito do povo decidir de que m
aneira a cidade deveria funcionar, m
as também
tomar decisões sobre a sua estética.
Acom
panhei de perto e mergulhei naquele m
undo lúdico até que toda a m
agia fosse se rompendo aos poucos. Fui percebendo que, apesar do acesso
ao Cais ser absurdam
ente difícil pra quem vinha da m
inha cidade, os ônibus para Jaboatão voltavam
lotados de pessoas que saiam daqui para brigar pe-
los espaços de lazer em Recife, que por ser capital, é m
uito mais am
parada.Inspirada pelo m
ovimento, decidi fazer o m
esmo por m
inha cidade. Criei
o Ocupe Jaboatão, m
obilizei grupos e página no Facebook, Instagram, entre
diversas ações físicas. Descobri coletivos de Jaboatão, descobri m
inha cidade. M
as as pessoas não se interessaram da m
esma m
aneira, os eventos eram
sempre m
uito esvaziados. Com
ecei a me perguntar por que o O
cupe Estelita que lutava por espaço de lazer num
a cidade cheia de espaços de lazer, onde as pessoas da Região M
etropolitana vão para desfrutar desses espaços por não terem
em suas cidades, ganhou um
a visibilidade e empatia tão grande,
enquanto as lutas de ocupação por moradia eram
menosprezadas. C
omecei
a me perguntar quem
estava à frente daquele movim
ento. Eram pessoas, em
sua m
aioria, homens, brancos de classe de m
édia.Passei a m
ilitar por minha cidade através do m
eu coletivo, o “Faça amor,
não faça chapinha”, meus am
igos e eu criamos o sarau JaboA
rt, entrei no C
oletivo de Mulheres do Jaboatão e conheci os diversos grupos de hip-hop,
compostos por jovens negros periféricos, que são m
arginalizados na cidade e se tornaram
pra mim
, grandes referências de aprendizado e fortalecimento.
8081
Em dezem
bro de 2016, me reuni com
alguns integrantes desses coleti-vos para planejar algum
a ação de incidência política que despertasse outros jovens. N
o final da reunião, fomos até a praça no centro da cidade treinar
break, já que a Casa da C
ultura onde aconteciam os treinos estava fechada.
Éramos todos jovens e negros, e fom
os observados por um grupo de poli-
ciais militares que faziam
uma blitz
na pista ao lado. Quando o nosso treino
acabou e nos organizamos pra sair, fom
os abordados por aqueles policias, que nos revistaram
fazendo comentários racistas e, após não encontrarem
nada que pudesse nos incrim
inar - eu carregava apenas uma apostila de po-
líticas públicas - os policiais começaram
a nos agredir verbalmente dizendo,
entre outras coisas: “V
ocê acha que entende de leis? Você não entende nada de leis! Eu sou a
lei!”. Respondi dizendo que sabia o quanto aquele procedim
ento era irregular, e então m
ostraram um
pacote de maconha e um
a pequena pedra de crack no bolso e disseram
ter encontrado no chão perto de mim
. Meu nam
orado questionou a acusação e foi agredido no rosto com
um tapa. G
ritei o quanto aquilo era absurdo e crim
inoso e levei também
um tapa no rosto acom
pa-nhado por vários xingam
entos misóginos. D
epois de sermos extrem
amente
humilhados, eles nos liberaram
.A
tos e ações foram feitos enquanto ao m
eu caso. Fomos perseguidos. Fi-
zemos a denúncia e foi arquivada. N
ão houve empatia e com
oção nacional. D
epois de passar por tudo isso me pergunto: com
o debater direito à cidade quando falam
os de pessoas negras, principalmente m
ulheres negras? Com
o lutar pela estética da cidade quando ainda lutam
os para que nossa estética seja aceita e que não seja atrativo para a polícia? C
omo lutar pela construção
de espaços de lazer quando sequer temos o direito de transitar pelos poucos
espaços que temos? C
omo lutar por segurança se sofrem
os violência dos di-tos “agentes de segurança”?
Enquanto os ricos lutam por pistas m
ais largas para seus carros e uma
cidade que atenda à suas expectativas de estética, estamos lutando por pas-
sagem m
ais barata para andarmos em
transportes lotados e perigosos, lutan-do para que a cidade nos reconheça com
o parte dela, estamos lutando para
sobreviver a forma opressora que as cidades estão organizadas.
Bruna Tamires é escritora, desenhista e gestora. D
eu vida à Ma-
lokêarô, por onde ela assina seus escritos, desenhos e Zines. Está sem
pre nas ruas, as vezes em casa. 10
8283
8485
A A
UTO
NO
MIA
SELETIVA
DA
CID
AD
E DE SÃ
O PA
ULO
Poucas mulheres negras vivem
a liberdade na cidade de São Paulo. Isso por diversos m
otivos, a começar pela passagem
de três e oitenta. A liberdade
na cidade tem a ver com
mobilidade, acesso, possibilidade e segurança, coi-
sas que os governos devem prover e a sociedade precisa acreditar que todas
as pessoas merecem
.V
ocê, leitor ou leitora, não terá aqui a sua inteligência desconsiderada. C
onfio que, com tantas inform
ações já recebidas nesta publicação e em m
ui-tas outras, nós não precisam
os retomar o beabá das estatísticas sobre desi-
gualdades entre negros e brancos, ricos e pobres, homens e m
ulheres, pes-soas e pessoas. Vam
os falar sobre autonomia, a aptidão ou com
petência para cada um
gerir sua vida.São Paulo é um
a cidade solitária e perigosa. Também
é uma cidade que
acolhe como pode todos os seus m
ilhões de habitantes. Ela carrega a ilusão de ser a filha m
ais velha, a locomotiva de país, o arrim
o da família. Ela carre-
ga a brutalidade do concreto, da indústria, da correria que atropela e não vê no m
eio da rua as pessoas estiradas. Ela passa sem saber se estam
os vivas ou m
ortas. Ela não vê, ou não quer ver, seus problemas, e por isso se m
ascara, se esforçando para ser linda no m
eio do lodo e da miséria. Ela só tem
essas ideias porque foi criada num
a autonomia seletiva, que protegeu bandeiran-
tes, massacrou povos nativos, escravizou africanos e form
ou imigrantes eu-
ropeus para o individualismo e a ignorância do m
érito sem m
érito. Vivem
os assim
, numa cidade que deu autonom
ia a partir de uma classificação por
raça, por gênero e por classe.À
s cinco e meia eu m
e preparo para sair às seis e pegar o trem. Preciso
cruzar a cidade, chegar na zona leste, ter a minha aula e depois ir para o m
eu trabalho no centro. Q
uando a vontade é grande, bate sete horas e eu fico um
pouco mais na cidade para m
e divertir com m
inhas amigas. O
mesm
o aos finais de sem
ana, quando saio em busca de lazer, eu viajo pela cidade, m
as
preciso voltar antes que a segurança para mulheres esteja pior que o nor-
mal. E no m
eio de todos estes processos, eu enfrento burocracias e impasses
decorrentes da minha condição de cidadã paulistana negra, jovem
e pobre. N
em todas as pessoas reconhecem
o fato da cidade não ser dividida entre todos de form
a igual. Geralm
ente, é quem sofre que sente. Q
uem não sofre
desconhece, pensa que sabe, mas não sabe de nada. A
experiência de ser uma
jovem negra e de periferia na cidade de São Paulo, por exem
plo, é um caso
que merece atenção quando se trata de lim
itação de autonomias. Isso por três
premissas: o hom
em achar que m
ulher deve ter dono, a sociedade achar que m
ulheres negras não têm fam
ília e o Estado ainda considerar que pessoas negras são m
eio-cidadãs.São m
ilhares de jovens negras que saem de casa todos os dias e enfren-
tam a selva de São Paulo sozinhas. Elas vão de tênis, m
ochila, levam água,
blusa de frio... Todo o kit para sobreviver ao dia a dia e, mesm
o assim, nada
é garantido. Sair de casa já é uma com
plexidade. Em relação aos transportes
-apesar das leis municipais que perm
item que os ônibus façam
paradas fora do ponto no período noturno - não asseguram
nossa segurança na volta para a casa. Sam
pa é uma cidade onde quem
tem, tem
, e quem não tem
dinheiro para pagar seu carro/táxi/uber, que volte pra casa enquanto o m
etrô e trem
estiverem ativos e as ruas não estiverem
vazias.Depois de determ
inado horá-rio, todos os lugares se tornam
mais agressivos para m
ulheres. E para as mu-
lheres negras principalmente, cuja condição hum
ana é mais reduzida pelo
racismo. Ilum
inação urbana, meios de transporte, m
achismo, o caos causado
pela ausência de políticas públicas que considere as desigualdades. É tene-broso viver a rua quando ela determ
ina que o seu corpo é de propriedade de todos. Todos ou ninguém
. Desconsiderado, descartável, objeto.
A questão que fica é: com
o levamos essa onda de restrição de entrada e
saída, de possibilidades, de segurança e dignidade?M
inha sugestão, não imposição, é: vam
os levando de leve para não en-louquecer.
E quem desconhece a nossa realidade, lida com
o para não fazer pataqua-das? Estude, escute e abra cam
inhos. U
m salve para todas as jovens negras vivas nas ruas das grandes cidades.
8687
8889
discriminação. O
direito à cidade para todos e todas é um
a condição subjetiva inserida em um
contexto social, econôm
ico e territorial de relações e interesses difu-sos, coletivos, conflitantes ou não, direito que reclam
a o reconhecim
ento da diversidade como protagonista na
conquista do bem com
um.
Segundo dados do governo federal 3, as mulheres
brasileiras são responsáveis pelo sustento de 37,3% das
famílias, possuem
expectativa de vida de 77 (setenta e sete) anos de idade, equivalendo a 51,4%
da população brasileira atual. Q
uando se indica um percentual de m
u-lheres responsáveis pelo sustento de suas fam
ílias, eclo-de m
ais uma questão, a da presença fem
inina no espaço urbano deslocando-se para o trabalho, para além
dos usos tradicionais.
A m
ulher é, no Brasil, em núm
eros, maioria. É a ci-
dadã que mais ocupa os espaços, produzindo ou não,
circulando, habitando, interferindo, voluntaria ou invo-luntariam
ente, por meio de sua presença na construção
e manutenção da sociedade brasileira. Entre os eleitores,
as mulheres tam
bém são m
aioria, com o Tribunal Supe-
rior Eleitoral, em 2014, registrando 77.459.424 eleitoras
em face de 68.247.598 eleitores do sexo m
asculino4. N
a perspectiva da dem
ocracia, pelo método quantitativo de
participação, a explicação para a ausência das mulhe-
res nos espaços políticos, partilhando do debate sobre a cidade e o que ela deve e pode ofertar, não se sustenta, fragilizando assim
a possibilidade de um futuro estável,
a presença da mulher era ignorada e, portanto, desconsi-
derada no tocante às escolhas sobre que forma e função
os espaços públicos teriam e com
o seriam acessados.
Sendo a cidade o espaço de convivência humana que
promete o desenvolvim
ento social e econômico, o aces-
so ao lazer, à habitação, serviços, trabalho e circulação livre, seria natural que todos os segm
entos sociais fizes-sem
parte da sua concepção, garantindo assim m
aior atendim
ento às demandas individuais e coletivas que se
apresentam. Infelizm
ente não é o que se apresenta, pois som
ente seria possível tal realização se os agrupamen-
tos humanos que se reúnem
nas cidades estivessem cal-
cados em bases solidárias de prom
oção da justiça social, com
igualdade de oportunidades para todos e todas. O
ra, se a luta para alcançar um patam
ar mais equilibra-
do de condições de vida2 – na cidade e no cam
po - tem
sido um dos grandes desafios brasileiros, o que requer
permitir a participação dem
ocrática na discussão sobre as intervenções e políticas públicas feitas em
e para tais sítios, que dirá garantir que, especialm
ente, a mulher te-
nha voz ativa e decisiva nesse processo de produção do espaço urbano.
Ao falar da presença da m
ulher no âmbito das deci-
sões sobre o uso e a ocupação que se deve dar à cidade, não se destaca tal im
perativo tão somente relacionado
à segurança e integridade física e psicológica feminina,
mas da im
portância de tal questão para o fortalecimen-
to do Estado democrático garantidor da igualdade sem
O dia 8 de m
arço representa uma im
portante data de reflexão para o debate internacional que envolve a m
ulher, seus direitos e seu papel no dia-a-dia da socie-dade urbana, m
arcada historicamente pelo em
podera-m
ento masculino.
As cidades e as m
ulheres no século XXI têm um
a relação sim
biótica que necessita ser reconhecida for-m
almente pela sociedade, pelo poder público e político,
pelo poder econômico. Para tanto, é preciso falar e es-
crever sobre as cidades e as mulheres, seja no Brasil ou
fora dele. zSendo a cidade a projeção da sociedade em
um de-
terminado espaço
1, analisar como a urbe dialoga com
a presença fem
inina é de fundamental im
portância tendo em
vista que o desempenho das inúm
eras funções, mãe,
companheira, profissional, em
diferentes áreas, solicita da cidade a m
obilidade e a acessibilidade, envolvendo o livre transitar da m
ulher, inclusive para o trabalho, a possibilidade de acessar serviços públicos e privados, lazer e cultura sem
cerceamento, m
uitas das vezes pro-vocado pelo receio à sua integridade física. Para que a cidade seja funcional à m
ulher é preciso que ela perceba a presença fem
inina, o que envolve permitir sua parti-
cipação nos espaços decisórios sobre o desenho, o uso e ocupação da cidade.
As cidades têm
uma significativa relação com
o uso e a ocupação que o m
undo masculino faz delas. Foram
idealizadas e erguidas dentro dessa perspectiva, em
que
Elky Araújo - G
raduanda em A
rquitetura e Urbanism
o pela Univer-
sidade São Judas Tadeu.
11O
CEN
TRO
E A TER
RITO
RIA
LIDA
DE N
EGR
A N
A C
AP
I-TA
L PAU
LISTA
A área central da cidade de São Paulo dem
onstra aspectos ímpares tra-
tando-se da sua formação. Sua m
orfologia reúne a combinação de variadas
épocas e distintas legislações, o que contribui para a caracterização do seu tecido urbano atual. D
etém de forte infraestrutura, além
de contar com um
a m
ultiplicidade de núcleos comerciais tão antigos quanto vigorosos, serviços
e equipamentos capazes de atrair um
grande número de visitantes à cida-
de. Entretanto o centro já sofreu intensa desvalorização. Por volta de 1950, houve abandono por parte das elites, o que fez com
que deixasse de ser um
local de consumo e de realização atividades culturais das classes m
ais abas-tadas. A
lém de contar com
obras viárias na década de 70, responsáveis pelo recorte em
seu tecido, colaborando para transformação da paisagem
urbana. Som
ente mais tarde, com
início da década de 90 por meio de ações com
o a O
peração Urbana C
entro (Lei 12.349 de 6 de junho de 1997), que visa a m
elhoria e revalorização a fim de atrair investim
entos e reverter o processo de degradação do C
entro, esse quadro tende a mudar. Tem
os então a região central, m
ais especificamente os distritos da Sé, com
o recorte adotado para os estudos e análises a fim
de se obter uma leitura dinâm
ica dessa localidade. Este trabalho parte da busca pela com
preensão da existência de núcleos que possuem
sua composição urbana, econôm
ica e artística entrelaçada ao enredo da população negra na cidade de São Paulo, atendo-se às particula-ridades e m
anifestações culturais à medida que se vivencia as transform
a-ções m
orfológicas do lugar. Diante desse contexto de m
udanças, é possível com
preender a desapropriação e a dispersão como fenôm
enos urbanos que tecem
a dinâmica da cidade. D
esse modo, a realidade faz-se questão a partir
do mom
ento em que se propõe um
a discussão sobre uma região cuja sua
história tem valor significativo e atrelado ao espaço e as transfigurações ter-
ritoriais.
9091
Posteriormente a A
bolição da escravatura, no comando do prefeito A
ntô-nio da Silva Prado (1899 - 1911), o poder público juntam
ente a elite paulista-na liderou um
a acentuada reorganização territorial na cidade de São Paulo, consequentem
ente a ativa redefinição social e racial que culminou no des-
locamento da população negra rem
anescente da escravidão da área central para zonas m
ais afastadas. Houve um
a espécie de limpeza do C
entro Velho, repelindo os indivíduos que estavam
instalados ali. C
om a redefinição do espaço urbano que ocorreu
com
a a
boliç
ão d
a e
scravid
ão, a
imig
ração m
aciç
a d
e e
u-
ropeu
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urgiu
tam
bém
um
nú
cle
o n
ovo n
a B
arra F
un
da. (R
OL
NIK
,
1997, p
. 75).
Percebe-se que ainda hoje essa segregação espacial que envolve a popula-ção negra é dilacerante e gradativa. Tem
os isso quando analisamos a paisa-
gem da cidade de São Paulo e no m
omento em
que consultamos inform
ações oficiais, com
o por exemplo dados do Instituto Brasileiro de G
eografia e Esta-tística, e relacionam
os com a espacialidade urbana. C
om base no IBG
E, hoje tem
os a população negra concentrada nas periferias. Com
o em todo o Brasil,
na metrópole paulista a m
arginalização do contingente negro também
está relacionada a segregação social, com
pondo então as camadas m
ais pobres.Todavia, esse assunto pouco a pouco vem
sendo debatido através de pesqui-sas que tratam
sobre raça e espaço urbano. Não eram
apenas as moradias
que indicavam a presença dos negros por aquelas bandas. Suas m
anifesta-ções culturais deixaram
marcas caracterizando essa territorialidade negra,
como conta a o historiador Petrônio D
omingues no livro “U
ma H
istória Não
Contada – negro, racism
o e branqueamento em
São Paulo no pós-abolição”: “O
s negros eram organizados, tinham
clubes, sociedades beneficentes, grê-m
ios literários, jornais, grupos teatrais, escolas experimentais e artísticas”
20
Dentre as m
aiores formadoras da identidade brasileira, a cultura afro é
elemento recorrente no cotidiano da cidade de São Paulo. Exerce grande in-
fluência cultural através de manifestações e expressões que evidenciam
a 20 D
OM
ING
UES, Petrônio. U
ma H
istória Não C
ontada: Negro, Racism
o e Branqueamento
em São Paulo no Pós-A
bolição. Ed. Senac, 2005
pluralidade da capital. Desse m
odo, julga-se importante tam
bém olhar para
esses elementos que fazem
da cultura afro latente, o que significa a busca do reconhecim
ento de parte expressiva da história e da contribuição da po-pulação negra na cidade, bem
como com
preender o quanto e como suas
manifestações são representativas. Tem
-se um conjunto cultural im
portante m
arcando e enriquecendo a região central da maior cidade do país. A
Aca-
demia Paulista de Letras; Igreja N
ossa Senhora da Achiropita; Igreja N
ossa Senhora da Boa M
orte; Igreja Nossa Senhora do Rosário dos H
omens Pretos;
Igreja Santa Cruz dos Enforcados; Largo São Francisco são exem
plos dessas expressões.
“Um
a história de vida não é feita para ser arquivada ou guardada numa
gaveta como coisa, m
as existe para transformar a cidade onde ela flores-
ceu”. 21
Por fim, não se trata apenas de um
a região administrativa, m
as sim de um
lugar regado a experiências urbanas e form
ação de identidade. Diante disso,
considera-se de extrema im
portância para a comunidade e para a cidade, de-
monstrar a presença e as influências de um
a coletividade negra em espaços
de expressão deste grupo, sua ativa participação ao longo da história e seus reflexos no presente.
REFER
ÊNC
IAS B
IBLIO
GR
ÁFIC
AS
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Tempo V
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21 BOSI, Ecléa. O
Tempo V
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Editorial, 2003.
9293
9495
discriminação. O
direito à cidade para todos e todas é um
a condição subjetiva inserida em um
contexto social, econôm
ico e territorial de relações e interesses difu-sos, coletivos, conflitantes ou não, direito que reclam
a o reconhecim
ento da diversidade como protagonista na
conquista do bem com
um.
Segundo dados do governo federal 3, as mulheres
brasileiras são responsáveis pelo sustento de 37,3% das
famílias, possuem
expectativa de vida de 77 (setenta e sete) anos de idade, equivalendo a 51,4%
da população brasileira atual. Q
uando se indica um percentual de m
u-lheres responsáveis pelo sustento de suas fam
ílias, eclo-de m
ais uma questão, a da presença fem
inina no espaço urbano deslocando-se para o trabalho, para além
dos usos tradicionais.
A m
ulher é, no Brasil, em núm
eros, maioria. É a ci-
dadã que mais ocupa os espaços, produzindo ou não,
circulando, habitando, interferindo, voluntaria ou invo-luntariam
ente, por meio de sua presença na construção
e manutenção da sociedade brasileira. Entre os eleitores,
as mulheres tam
bém são m
aioria, com o Tribunal Supe-
rior Eleitoral, em 2014, registrando 77.459.424 eleitoras
em face de 68.247.598 eleitores do sexo m
asculino4. N
a perspectiva da dem
ocracia, pelo método quantitativo de
participação, a explicação para a ausência das mulhe-
res nos espaços políticos, partilhando do debate sobre a cidade e o que ela deve e pode ofertar, não se sustenta, fragilizando assim
a possibilidade de um futuro estável,
a presença da mulher era ignorada e, portanto, desconsi-
derada no tocante às escolhas sobre que forma e função
os espaços públicos teriam e com
o seriam acessados.
Sendo a cidade o espaço de convivência humana que
promete o desenvolvim
ento social e econômico, o aces-
so ao lazer, à habitação, serviços, trabalho e circulação livre, seria natural que todos os segm
entos sociais fizes-sem
parte da sua concepção, garantindo assim m
aior atendim
ento às demandas individuais e coletivas que se
apresentam. Infelizm
ente não é o que se apresenta, pois som
ente seria possível tal realização se os agrupamen-
tos humanos que se reúnem
nas cidades estivessem cal-
cados em bases solidárias de prom
oção da justiça social, com
igualdade de oportunidades para todos e todas. O
ra, se a luta para alcançar um patam
ar mais equilibra-
do de condições de vida2 – na cidade e no cam
po - tem
sido um dos grandes desafios brasileiros, o que requer
permitir a participação dem
ocrática na discussão sobre as intervenções e políticas públicas feitas em
e para tais sítios, que dirá garantir que, especialm
ente, a mulher te-
nha voz ativa e decisiva nesse processo de produção do espaço urbano.
Ao falar da presença da m
ulher no âmbito das deci-
sões sobre o uso e a ocupação que se deve dar à cidade, não se destaca tal im
perativo tão somente relacionado
à segurança e integridade física e psicológica feminina,
mas da im
portância de tal questão para o fortalecimen-
to do Estado democrático garantidor da igualdade sem
O dia 8 de m
arço representa uma im
portante data de reflexão para o debate internacional que envolve a m
ulher, seus direitos e seu papel no dia-a-dia da socie-dade urbana, m
arcada historicamente pelo em
podera-m
ento masculino.
As cidades e as m
ulheres no século XXI têm um
a relação sim
biótica que necessita ser reconhecida for-m
almente pela sociedade, pelo poder público e político,
pelo poder econômico. Para tanto, é preciso falar e es-
crever sobre as cidades e as mulheres, seja no Brasil ou
fora dele. zSendo a cidade a projeção da sociedade em
um de-
terminado espaço
1, analisar como a urbe dialoga com
a presença fem
inina é de fundamental im
portância tendo em
vista que o desempenho das inúm
eras funções, mãe,
companheira, profissional, em
diferentes áreas, solicita da cidade a m
obilidade e a acessibilidade, envolvendo o livre transitar da m
ulher, inclusive para o trabalho, a possibilidade de acessar serviços públicos e privados, lazer e cultura sem
cerceamento, m
uitas das vezes pro-vocado pelo receio à sua integridade física. Para que a cidade seja funcional à m
ulher é preciso que ela perceba a presença fem
inina, o que envolve permitir sua parti-
cipação nos espaços decisórios sobre o desenho, o uso e ocupação da cidade.
As cidades têm
uma significativa relação com
o uso e a ocupação que o m
undo masculino faz delas. Foram
idealizadas e erguidas dentro dessa perspectiva, em
que
Naná Prudencio, fotógrafa e produtora audiovisual, graduada em
A
rtes Visuais e A
udiovisual, pesquisadora do retrato cotidiano negro nas periferias das cidades de São Paulo, Em
bu das Artes e Taboão da
Serra. Naná, já foi dançarina de cultura afrobrasileira, articuladora
em O
NG
s e arte-educadora nas áreas de artes visuais, integrante do coletivo D
icampanaFotoC
oletivo e também
diretora fotógrafa e proprietária na produtora Zalika Produções.
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REALIZAÇÃO
APOIO