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    ipotesi, Juiz de Fora, v. 12, n. 2, p. 115 - 128, jul./dez. 2008

    O canto e o silncio na potica de Orides Fontela

    Marcos Aparecido Lopes*

    RESUMOEste artigo investiga as relaes entre forma literria e especulao filosfica em alguns poemas de Orides Fontela. A reflexo parte de uma sntese da recepo crtica da obra do poeta; em seguida, confronta alguns smbolos dessa poesia com a tradio literria do ocidente e, por fim, esboa uma anlise interna desses smbolos com o objetivo de estabelecer algumas distines conceituais para uma hermenutica da poesia.

    Palavras-chave: Orides Fontela. Smbolo. Forma literria. Filosofia. Poesia brasileira

    Forma densamente forma

    como revelar-tese me revelas?

    (Orides Fontela)

    Introduo

    s vezes, a crtica literria parcimoniosa com alguns poetas. Poucos estudos compem a fortuna crtica de alguns deles to poucos, que tal designao parece ser uma ironia dirigida obra literria. Orides Fontela (1940-1998), natural de So Joo da Boa Vista, interior de So Paulo, recebeu uma ateno discreta da nossa crtica literria. Entretanto, tal discrio no significa pobreza especulativa dos crticos nem tampouco da prpria autora. Antes, parece fazer jus ao prprio trao da potica de Orides. Desde os prefcios de Antonio Candido ao livro Alba (1983) e de Marilena Chau ao livro teia (1996) at alguns estudos como os de Benedito Nunes (1991), Alcides Villaa (1992) e Haquira Osakabe (2002), o que acompanhamos uma atitude sbria, respeitosa e de reconhecimento do alto grau de sua elaborao potica. O lugar nico na paisagem literria brasileira e os pontos de contato com a tradio potica e filosfica do ocidente (Mallarm, Valry, Ungaretti, So Joo da Cruz, os pr-socrticos e Heidegger) no passaram despercebidos aos olhos desses leitores.

    certo que Vincius Dantas, em seu artigo A nova poesia brasileira e a poesia (1986, p. 40-53) dinamitava um provvel consenso crtico formado em torno da obra literria de Orides. As diatribes do crtico colocavam na berlinda as pretenses filosficas entranhadas na potica da autora. Tambm certo, todavia, que tal avaliao ressentia da sombra antropofgica da poesia oswaldiana que, por constituir uma possvel tradio modernista da poesia brasileira, tendia a valorizar o jogo ldico e dessacralizador da arte potica. O autor afinava seu diapaso crtico com um ouvido na buzina modernista e a mo no tacape antropofgico. O resultado so comentrios desabusados desta natureza: Dessa maneira ele [o poeta Chacal] consegue testemunhar mais sobre o estatuto contemporneo da subjetividade e oferecer sugestes incisivas ao leitor do que o poeta [Orides Fontela] que se faz sacerdote da voz originria, oculta nos cafunds heideggerianos do ser

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    e do tempo (DANTAS, 1986, p. 51). Vincius Dantas recusava a viso romntica que atribui palavra poderes mgicos, ou que faz do poeta um sacerdote dos mistrios da linguagem ou, ainda, um oficiante do sublime. O crtico, porm, imaginando expressar sua descrena quanto ao papel que a arte desempenharia ao substituir a religio, revelava uma crena em um conceito ldico e dessacralizador do ato potico (a autoconscincia irnica da linguagem). Afinal, se a poesia de Orides Fontela atendia s expectativas culturais de um pblico raffin, no menos sofisticadas seriam as mediaes e os construtos conceituais utilizados pelo crtico na leitura daqueles poemas simpticos sua perspectiva terica.

    Em 1983, Augusto Massi, em uma resenha ao livro Alba, reconhecia que a panplia de smbolos, presente na poesia da autora, no era nova: poderia at deitar razes no romantismo. Contudo, o modo que a poeta usou e organizou um conjunto parcimonioso de smbolos o que conferiu sua obra uma originalidade surpreendente. Massi, ao procurar entender os motivos de certa indiferena em relao poesia de Orides Fontela, deixava uma sutil provocao ao trabalho da crtica:

    Durante as duas ltimas dcadas, a preocupao dos crticos literrios brasileiros se concentrou, em relao poesia, no estudo dos movimentos poticos e na feitura de antologias. Este procedimento libertou o crtico de sua funo, a meu ver, mais radical: mergulhar na aventura do texto. Ou seja, ir contra a mar e revelar ao pblico o autor que no alinha na chamada literatura de poca. Revelar aquele que trabalha margem da literatura tradicional (no importa o rtulo de modernidade que assuma: poesia marginal, poesia prxis, etc.) implica em riscos que ningum quer correr. No entanto, s esta atitude nos obriga a reavaliar o nosso potencial terico, reciclando para a usina da linguagem a energia contida no calor da hora (MASSI, 1983, p. 100).

    A resenha do crtico contm um problema que interessa de perto aos estudos literrios: a presena de um autor que no se encaixa nas coordenadas estticas do perodo e que tambm no atende s demandas tericas com as quais, muitas vezes, discernimos e julgamos a relevncia de uma obra obriga-nos justamente a uma reavaliao de nosso potencial terico. Isto quer dizer que quando uma obra possui uma grandeza artstica e especulativa, ela nos fora a pensar para alm dos nossos hbitos tericos. No fundo, para falar como T.S. Eliot, em seu ensaio Tradio e talento individual (1989, p. 38-39), uma obra dessa envergadura reorienta nossa viso do passado literrio e estimula novos problemas de natureza terica. Com isso, no quero subscrever que a poesia de Orides Fontela consiga realizar essas duas proezas, mas fato que, em sua fortuna crtica, alguns leitores observaram o potencial terico e o valor cognitivo das suas imagens poticas (OSAKABE, 2002, p. 97-109).

    Em relao aos estudos da obra de Orides Fontela, o que o leitor encontra uma descrio sucinta dos smbolos de sua poesia, sem que se saiba ao certo se eles formam um sistema autrquico ou se so compreensveis sinttica e semanticamente a partir de sua insero em uma tradio lrica. Em suma, a pergunta que se deve fazer a seguinte: o que esses smbolos efetivamente do a pensar? Tambm h, na fortuna crtica, uma apropriao das especulaes e das argumentaes mais legveis de Heidegger ou de Derrida ( BUCIOLI, 2003) para indicar o horizonte de reflexo da poesia da autora. Entretanto, no so indicadas as implicaes do pensamento desses filsofos para a forma literria ou para a estrutura da obra potica. Ou melhor: no se discute como a forma literria elabora determinados contedos filosficos e em que medida tal dilogo afeta seu estatuto. Compete tambm a este artigo pensar: em que consiste a fora da forma? Revelar? Mas o qu? Para retomar a epgrafe do incio, como revelar a forma, se ela que revela o eu lrico?

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    1. Contracanto e silncio

    Os poetas no so, como gostaria a mitologia oficiosa, filhos de Apolo, mas sim de Marsias. No grito de morte de Marsias, os poetas ouvem seu prprio nome...(STEINER, 1988, p. 57).

    Deixando a gua originalcantamossufocando o espelhodo silncio (FONTELA, 1988, p. 94).

    As sereias cantantes de Orides podem ser contrapostas quelas outras de Kafka (2002): silenciosas e misteriosas. Entre o canto e o silncio das sereias h o mistrio, mais do que o enigma presente em uma linguagem cifrada. Orides e Kafka, cada um a seu modo, subvertem o clssico episdio da Odissia. Em Kafka, no conto O silncio das sereias, a releitura da passagem de Homero surpreendente e provocadora: As sereias entretanto tm uma arma ainda mais terrvel que o canto: o seu silncio. Apesar de no ter acontecido isso, imaginvel que talvez algum tenha escapado ao seu canto; mas do seu silncio certamente no. No poema de Orides Fontela, difcil o leitor se furtar s seguintes questes: quem so as sereias? Qual a relao entre canto e silncio? E mais: o que se v no espelho do silncio? (KAFKA, 2002, p. 104).

    O que flagramos no conto daquele escritor a estreita e essencial relao entre o dizer e o ver. Uma relao que se torna complexa quando se tem em mente este segundo fragmento da narrao: E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras no cantaram, seja porque julgavam que s o silncio poderia ainda conseguir alguma coisa desse adversrio, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses que no pensava em outra coisa a no ser em cera e correntes as fez esquecer de todo e qualquer canto (KAFKA, 2002, p. 105).

    No pretendo deslindar a riqueza de sugestes que o conto de Kafka prope para um dos topos mais discutidos e discutveis da tradio ocidental e, sobretudo, para o prprio estatuto da literatura na modernidade. Minha tarefa mais modesta. Apenas gostaria de sublinhar que, nesse conto, as astcias de Ulisses e das sereias podem ser discutidas a partir dos limites da fala e do olhar. As duas hipteses para o silncio das sereias so instigantes. Na primeira hiptese, elas no cantaram porque somente assim poderiam derrotar o astucioso Ulisses, j na segunda hiptese, elas no cantaram porque a viso que tiveram de Ulisses, imerso em sua felicidade e no preparo dos estratagemas do encontro, fez com que se esquecessem de seu canto. Em sntese: de sedutoras, tornaram-se seduzidas. Porm, mais instrutivo ainda, para o tipo de relao que sugiro, como Ulisses reage ao silncio delas. Ele no ouviu o silncio das sereias, portou-se como se tivessem cantado para seu corpo preso ao mastro do navio. Elas j no queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamente possvel, o brilho do grande par de olhos de Ulisses. Kafka arremata seu conto com a afirmao de que tudo o que chegou at ns desse episdio foi um apndice. Afinal, sendo Ulisses to esperto, uma raposa ladina, nem a deusa do destino conseguiu devassar seu ntimo. Parece-me oportuno lembrar o significado do verbo devassar: ter vista para dentro de alguma coisa. Conclui Kafka: Talvez ele tivesse realmente percebido embora isso no possa mais ser captado pela razo humana que as sereias haviam silenciado e se ops a elas e aos deuses usando, por assim dizer, como o escudo, o jogo das aparncias acima descrito. (KAFKA, 2002, p. 105-106). Jogo das aparncias ou limites da razo humana so expresses que recolocam no arremate do conto o n inextrincvel entre o dizer e o ver, entre o real e a representao possvel e interessada desse real.

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    Maurice Blanchot, no ensaio O canto das sereias, faz as seguintes consideraes:

    As Sereias: sim, parece que cantavam, mas de um modo que no satisfazia, que indicava apenas a direo em que se abriam as verdadeiras nascentes e a verdadeira felicidade do canto. Todavia, pelos seus cantos imperfeitos, que no eram seno um canto ainda por vir, conduziam o navegante a esse espao onde cantar comearia verdadeiramente. [...] De que natureza era o canto das Sereias? Em que consistia a sua falha? Por que que essa falha o tornava to poderoso? [...] Havia algo de maravilhoso nesse canto real, canto comum, secreto, canto simples e quotidiano, que eles [os homens apaixonados pelo canto das Sereias] tinham de reconhecer logo, cantado irrealmente por potncias estranhas e, digamo-lo, imaginrias, canto do abismo que, uma vez ouvido, abria em cada palavra um abismo onde os incitava a desaparecer. (Blanchot, 1984, p. 11-12).

    O ensaio de Blanchot procura pensar, a partir do episdio das sereias, o que constitui o carter da narrativa. Para os propsitos deste artigo, caberia sublinhar que a frase de abertura do ensaio no categrica: As Sereias: sim, parece que cantavam..., uma suspeita que no deixa de ecoar no prprio carter ou estatuto do texto literrio ou, ainda, no modo como Kafka releu o episdio em questo. Essa incerteza a respeito de se as sereias realmente cantavam abre uma trilha para a densa reflexo de Blanchot e, sobretudo, permite ao ensasta considerar o carter da narrativa sob o prisma do imaginrio. No por acaso, o subttulo do ensaio O encontro com o imaginrio. Um encontro que constitui personagens e autor, mas que tambm explicita, segundo a perspectiva do ensasta, o fato de o carter da narrativa no ser o relato verdadeiro de um acontecimento e sim o local onde esse acontecimento chamado a se produzir. Em suma, a narrativa o acontecimento:

    Ouvir o Canto das Sereias , para aquele que era Ulisses, passar a ser Homero, e, no entanto, apenas na narrativa de Homero se realiza o encontro real em que Ulisses se torna aquele que entra em contacto com a fora dos elementos e com a voz do abismo. Isto parece obscuro, isto faz lembrar o embarao do primeiro homem se, para ser criado, lhe tivesse sido necessrio pronunciar ele prprio, de uma forma inteiramente humana, o Fiat Lux divino capaz de lhe abrir os olhos (BLANCHOT, 1984, p. 15).

    Se a origem do dizer est relacionada viso (transpomos para a fala o que vimos, o que estamos vendo, o que poderamos ter visto ou o que gostaramos de ver), como entender que Homero (VIDAL-NAQUET, 2002) , segundo a tradio, o poeta cego; que Orfeu olhou para trs quando retornava do Hades, e perdeu para sempre Eurdice e que as Mnades o esquartejaram por cimes; que Marsias foi esfolado por Apolo; que Cames perdera o olho direito num recontro contra os mouros em Ceuta (BECHARA, 2001) e, por fim, que Orides tivesse como marca singular de sua personalidade, alm de sua magreza, as grossas lentes de seus culos? Em todos os exemplos, h o sinal inequvoco de alguma privao fabulada ou real. Os poetas no so os nicos entes privados de alguma coisa nesse mundo. Alm do mais, a seqncia de exemplos pode apenas simular mera coincidncia. No entanto, o que h nessa repetio temtica, nessa violncia qual o poeta se expe voluntria ou involuntariamente?

    Em O silncio e o poeta, George Steiner pensa a questo do silncio na modernidade a partir da constatao de que haveria uma crise da palavra. Porm, tal crise, alm de seus aspectos negativos, obviamente, seria considerada como local de novas possibilidades de expresso, como autoconscincia por parte do poeta do empobrecimento da linguagem na esteira das duas grandes catstrofes da primeira metade do sculo XX: a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, com todas as conseqncias

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    culturais, econmicas e polticas para o continente europeu. Para Steiner, um dos tropos recorrentes na literatura ocidental a idia de que o ato do poeta desafia os deuses. Pode-se dizer que um ato sacrlego. Um tema que atravessa a poesia ocidental (pelo menos desde a poesia medieval latina at os simbolistas) das necessrias limitaes da palavra humana. Nesse ensaio de Steiner, trata-se de pensar o significado dessas necessrias limitaes e, como tal tema, a partir da figura do silncio, reaparece no sculo XX. Antes, porm, vejamos como o ensasta entende os limites da linguagem humana em uma sociedade ainda no atravessada pelo fenmeno da secularizao:

    Mas decididamente o fato de que a linguagem tem mesmo suas fronteiras, de que confina com trs outras modalidades de manifestao a luz, a msica e o silncio , que fornece prova de uma presena transcendente na estrutura do mundo. Exatamente porque no podemos ir mais longe, porque a lngua nos falha de maneira to precisa, temos a certeza de um sentido divino que supera e envolve o nosso. O que h para alm da palavra humana revelador de Deus. Esse reconhecimento de uma jubilante derrota tem sua maior expresso nos poemas de So Joo da Cruz e da tradio mstica (STEINER, 1988, p. 58-59).

    O fio condutor do ensaio em questo compreender o honesto fascnio pelo silncio na sensibilidade contempornea (STEINER, 1988, p. 69). O prprio ensasta considera que a reavaliao do silncio (a epistemologia de Wittgenstein, a esttica de Weber e de Cage, a potica de Beckett) um dos atos originais e mais caractersticos do esprito moderno. Contudo, esse ato no uma adeso ao misticismo ou o retorno da transcendncia no espao artstico ou filosfico.

    Rafael Argullol, poeta e filsofo espanhol, afirma que, alm de ser presidida pelo jogo e pelo ritmo, o que determina a poesia seu dilogo com o silncio. Gostaria de retomar duas consideraes do filsofo em funo do eixo temtico deste artigo. A primeira considerao parte da idia de que o som da poesia o som envolto em silncio. Tambm se deve atentar para o fato de que Orfeu possua o atributo de silenciar e apaziguar com seu canto os barulhos da floresta. O que est latente nessa percepo da poesia que ela caminha no fio da navalha: entre o canto e o silncio.

    O silncio, a tranqilidade das profundezas tem tudo a ver com a sonoridade original. A poesia um retorno origem, mas em uma perspectiva paradoxal de evocao e de nostalgia: a origem est diante de ns. Trata-se, ento de um retorno ptria do futuro, o que implica uma certa circularidade. Osip Mandelstam deu a melhor definio do poeta que eu conhea: o poeta o mestre do eco. [...] O poeta luta com as formas da linguagem para capturar a sonoridade original, mas ele deve se contentar com a ressonncia, com o eco. [...] Pela ressonncia tem-se a intuio da sonoridade original ou a iluso de poder captur-la (ARGULOLL, 2005, p. 18).

    A segunda considerao desenvolve a relao entre silncio e poesia, mas agora sob a perspectiva da forma potica:

    [...] a poesia trata dos aspectos mais suntuosos da condio humana, mas com meios austeros: a maior riqueza expressiva exige o maior despojamento, a depurao da forma. [...] A poesia quer ser uma evocao da experincia amorosa ou mstica ou ainda da morte. Mas nessa evocao, ela beira sempre o inexpressvel, como se a sua vocao secreta fosse aquela do funmbulo que atravessa o vazio cheio de esperana. Paul Celan soube sintetizar essa tenso extrema em apenas cinco versos: um nada ns ramos, ns somos, ns continuaremos, em flor: a rosa de nada, de ningum (ARGULLOL, 2005, p. 20).

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    A metfora do funmbulo e a idia de depurao formal so locais pertinentes e seminais para uma discusso acerca do carter reflexivo e simblico da poesia de Orides Fontela. preciso discernir o sentido da palavra silncio na obra dessa poeta, caso se queira pensar o trabalho rigoroso, quase matemtico, feito com a linguagem. Discernir, neste caso, no significa exclusivamente precisar o contedo que a palavra adquire ao longo de sua obra, tal como um objeto que est diante do sujeito. necessrio compreender como o silncio, tematizado nos versos, organiza os tons e o ritmo dos poemas, afeta a estrutura dos versos e a recepo por parte de um leitor sensvel a seus apelos.

    O tema do silncio atravessa a histria da poesia ocidental. Procurei sugerir, provisoriamente, apoiado nas reflexes de George Steiner, seu sentido e sua funo na poesia moderna. Caberia ao silncio a definio anloga dada por Santo Agostinho (1984, p. 176-177) ao mal (privao do bem)? O silncio seria uma privao do som e do verbo? Ou seja, poderamos postular um ser para o silncio? Cessamos nossa fala e a algazarra interior de nossos pensamentos. Porm, os rudos brotam das coisas do mundo ou do movimento de nossa respirao, da circulao sangnea e dos batimentos cardacos. O que nos faz pensar se o que entendemos por silncio uma ausncia relativa, pois absoluta implicaria em uma deficincia auditiva. O que se quer dizer com a palavra silncio em um contexto potico? Elemento interno de organizao da estrutura dos versos, um modo de se referir ao mistrio e adensar o sentido do ritmo e da melodia?

    Silncio, depurao formal e especulao potica so termos entrelaados e podem conduzir o leitor a uma apreenso daquilo que singulariza a poesia de Orides; ao mesmo tempo, essa trplice aliana abre uma picada para se adentrar nas relaes entre lrica e modernidade, nas consideraes do estatuto do objeto literrio e no valor cognitivo da imagem potica.

    2 Uma hiptese de trabalho

    AS SEREIAS

    Atradas e tradasatramos e tramos

    Nossa tarefa: fecundar atraindonossa tarefa: ultrapassar traindoo acontecer puroque nos vive

    Nosso crime: a palavra.Nossa funo: seduzir mundos.

    Deixando a gua originalcantamossufocando o espelho do silncio (FONTELA, 1988, p. 94).

    A afirmao que gostaria de submeter a um escrutnio a de que o canto das sereias em Orides Fontela seria um emblema da substncia da lrica contempornea. A poeta subtrai os elementos da cena do Canto XII da odissia. No h a figura do heri pico que, em sua travessia pelo mundo, capaz de se reconhecer em cada um de seus atos e contar com a ajuda dos deuses. No h nem

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    mesmo a figura de Ulisses posta sob suspeita, como, por exemplo, na narrativa de Kafka, pelo menos no explicitamente. Tampouco encontramos Circe, etimologicamente a feiticeira que descobre a luz e que anuncia para Ulisses as dificuldades e os desafios que ele enfrentar. Em Orides Fontela, as sereias constituem a voz lrica que atrai e trai o leitor. O que me faz avanar, ainda que uma anlise pormenorizada no seja possvel nessas circunstncias, em outra hiptese: se ao eu lrico-sereia compete a funo de fecundar, ao provvel leitor caberia a metfora da parteira (a maiutica): fazer o parto dos possveis sentidos dos versos. Porm, tal maiutica no deixa de trair, ou ultrapassar, o acontecimento potico, em um sentido que este artigo dever ao menos sugerir.

    H, no poema, a seguinte oposio de base: apropriao (atrair: puxar algum ou alguma coisa violentamente para si) e desapropriao (trair: entregar algum ou alguma coisa ao inimigo). Essa oposio de base , no fundo, um duplo movimento, sendo que, no primeiro movimento a atrao e a traio sofridas pelas sereias o sujeito est oculto. A traio implica a idia de ruptura de uma unidade ou de um vnculo existente em uma comunidade poltica, em um casal ou em uma amizade. Mas para haver traio preciso que antes tenha ocorrido a atrao. A voz lrica do poema se assume como ns: deixamos, nosso crime, nos vive. Portanto, o ato de enunciao exercido por um ser que exerce sua vontade (ser autnomo), mas cujo exerccio precedido por uma ao primeira (atradas e tradas), o que significa dizer que essa voz originalmente heternoma. A ao das sereias uma resposta a uma voz ou a uma imagem primeiras. A traio um crime, o que confessado pela prpria voz lrica: nosso crime: a palavra. Lembro ainda que, no verso final, h o seguinte procedimento das sereias: sufocando o espelho do silncio. Ora, o verbo sufocar parece-me caracterizar o modus operandi do crime mencionado. Trata-se de asfixiar aquele objeto que permite ao prprio silncio ver sua imagem. Em poucas palavras, as sereias arrunam o ato de ver (o objeto mediador que permite a viso de si mesmo) com sua voz asfixiante. Contudo, o que vem a ser ou o que significa o espelho do silncio? Na rbita da palavra canto, alguns verbos gravitam: seduzir, fecundar, atrair, ultrapassar e sufocar. Em compensao, na rbita de silncio temos: acontecer puro, gua original e espelho. As sereias maculam o acontecer puro que nos vive, fecundam a diferena (o outro) e sufocam a identidade refletida no espelho do silncio. Elas pem em cena o jogo da alteridade.

    Farei agora um rpido retorno narrativa O silncio das sereias de Kafka. O que h, em um primeiro momento, de mais incisivo? Para ser direto, brutalmente direto, Kafka faz com que a fico suspeite da prpria fico. H, na narrativa kafkiana, o procedimento da glosa, que deve ser entendido como comentrio de um texto fundador da literatura ocidental. O que este comentrio sugere? [1] A voz das sereias poderia fazer desaparecer os navegantes ou, para falar como Blanchot (1984, p. 12), [...] canto do abismo que, uma vez ouvido, abria em cada palavra um abismo onde os incitava a desaparecer. Uma rpida consulta ao dicionrio nos diz que o abismo o sem-fundo. [2] A contemplao da imagem de Ulisses, absorto em suas tarefas, faz calar as sereias. O olhar atento das sereias cala a voz. [3] As sereias no cantaram porque essa era a nica forma de vencer Ulisses. Dois poderes so contrapostos: ouvir o canto seria abismar; ver Ulisses, contemplar a beleza da astcia. No poema de Homero, Ulisses o vencedor. Em Kafka, a astcia (emblema da razo) levada ao paradoxo. Em Orides, as sereias so as protagonistas. Elas estabelecem a relao entre o silncio e o canto; elas respondem a uma violncia primeira (atradas e tradas) com outra violncia (atramos e tramos), com o crime da palavra.

    No regime da cristandade, o silncio, ao assumir o sentido dos limites da linguagem, indica a presena do transcendente na estrutura do mundo. Na modernidade, a reavaliao do silncio no significa exclusivamente o retorno do transcendente no mundo. O que poder significar? Podemos entend-lo como aura, na perspectiva benjaminiana retomada por Franco Rella 1988? O silncio devolveria ao objeto artstico sua qualidade nica e irrepetvel, usurpada pela

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    situao de reprodutibilidade tcnica? O silncio seria uma guerrilha contra a multido belicosa dos signos, presente em uma sociedade capitalista? Para usar a linguagem da economia, em um contexto de inflao dos signos, preciso de mais palavras para dizer cada vez menos (ou de mais imagens para ver cada vez menos). Com o silncio, necessito de menos palavras para significar mais.

    3 Os smbolos e a hermenutica: o verbo e o vinho encarnados

    Bodas de Cana

    IDa pura guacriar o vinhodo puro tempo extrairo verbo. IIMilagre (anti-milagre)era tornar em guao vinhovivo.

    IIIA gua embriagamas para alm do humano: no amorsimples.

    IVPara os anjos agua. Para nso vinho encarnado sempre (FONTELA, 1988, p. 151).

    Para discutir o vnculo entre forma e especulao nos poemas de Orides, escolhi Bodas de Can, que, a meu ver, um dos mais instigantes poemas da autora. O ttulo remete de imediato o leitor para o episdio bblico do Novo Testamento no qual ocorre o primeiro milagre de Jesus Cristo. Primeiro milagre que no visaria a reparar um dano fsico, como, por exemplo, a morte de Lzaro, mas contornar uma situao constrangedora para os noivos. Afinal, segundo o relato evanglico, Maria comunica ao filho que o vinho havia acabado. A reao de Jesus perante sua me no deixa de ser provocadora, ao afirmar que no havia ainda chegado sua hora, com isso querendo expressar o incio de seu ministrio apostlico e a manifestao de sua glria por meio de sinais. Atendendo solicitao materna, ao transformar a gua em vinho, Jesus fortalece a crena de seus discpulos na figura do messias e d evidncias de seu poder e de sua glria. o princpio dos sinais dos tempos, conforme lemos no texto do evangelista Joo.

    Em Kant relido, Orides Fontela apresenta o que h de expresso literria na filosofia e de expresso filosfica na literatura, invertendo o achado potico de um dos mais rigorosos e disciplinados filsofos do ocidente. Immanuel Kant diz, no final da Crtica da razo prtica (2003), admirar duas coisas: o cu estrelado acima da sua cabea e a lei moral dentro dele. Vejamos os versos da poeta:

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    Duas coisas admiro: a dura leicobrindo-mee o estrelado cudentro de mim (FONTELA, 1988, p. 144).

    Os poemas Kant Relido e Bodas de Can apresentam o mesmo procedimento de base: uma inverso dos textos filosfico e bblico, que no deixa de ser irnica. Em Bodas de Can, como talvez o ttulo pudesse sugerir, no h unio ou casamento. A leitura alegrica presente no Velho Testamento acerca da aliana entre Jav e o povo de Israel, ou no Novo Testamento entre Cristo e a Igreja, torna-se antileitura potica nos versos de Orides. Afinal, os anjos, que deveriam ser os mensageiros entre o cu e a terra, acabam sendo brindados com a embriaguez da gua, ao passo que, para ns, humanos, a taa contm vinho. Melhor: o vinho encarnado. O que no deixa de fazer ecos ao prlogo de Joo: E o Verbo se fez carne.... Verbo e vinho encarnados. Mas no poema, o verbo deveria ser extrado do puro tempo, como da pura gua deveria ser criado o vinho. O que se deve entender por puro? Primordial e imaculado? Essa pergunta feita pela prpria poesia de Orides em Revelao, poema que consta em seu primeiro livro, transposio (1966-1967):

    A porta est abertaComo se hoje fosse infnciaE as coisas no guardassem pensamentosFormas de ns nelas inscritas. A porta est aberta. Que sentidoTem o que original e puro?Para alm do que humano o ser se integraE a porta fica aberta. Inutilmente (FONTELA, 1988, p. 35).

    A ciso entre uma esfera transcendente e uma imanente parece sugerir que no h, pelo menos no poema Bodas de Can, uma promessa de salvao, uma soteriologia, uma doutrina da salvao encampada pela arte. Em vez disso, subverte-se o acontecimento bblico, sinal da glria divina e de acontecimentos futuros, e se fica com a embriaguez, que prpria ao humano. O poema Narciso (Jogos), do livro teia, incisivo:

    A fontedesgua na prpriafonte. (FONTELA, 2006, p. 334).

    A idia de uma circularidade, em lugar, por exemplo, da linha reta (figura geomtrica mais apropriada para representar a temporalidade crist), recorrente nos poemas da autora. A forma circular parece se ajustar a um pensamento da imanncia. Tentarei desenvolver essa idia reatando o fio da meada desta seo.

    No evangelho de Joo, o personagem responsvel por servir a bebida se espanta com o fato de os noivos servirem o melhor vinho depois que os convidados j esto embriagados. O costume dita justamente o contrrio: primeiro serve-se o melhor dos vinhos, depois da embriaguez, quando no se distingue mais a qualidade, oferece-se o pior. A essa inverso do costume, Orides responde ao texto bblico com outra inverso: o milagre (ou antimilagre) seria tornar em gua o vinho vivo (no evangelho de Joo, ocorrem as expresses gua viva e po vivo Joo 4,10-3 para simbolizar a vida eterna. Jesus diz que ele a gua viva e quem tomar dessa gua no ter mais sede). Se o milagre algo que causa espanto e convoca o

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    olhar na direo do numinoso e, portanto, tal acontecimento embriaga os espectadores, o que os versos de Orides propem no fazer da poesia esse mostrurio do transcendente. No se inverte o milagre (tornar o vinho vivo em gua), para que o expulso pela porta da frente retorne pelos fundos, a saber, a idia de uma transcendncia crist. O que h de fundo religioso nessa palavra potica no se confunde com uma adeso teologia catlica. Se h uma trplice aliana entre pensamento potico, filosfico e religioso nessa poesia, preciso vasculhar a tenso entre uma herana grega e uma tradio judaico-crist. A figura do anjo talvez seja a chave que abre a porta, ou a figura que est no limiar da porta aberta, mesmo se inutilmente, como enuncia o poema Revelao.

    A embriaguez, no poema de Orides, recebe um outro significado: pensada na perspectiva do amor simples. Aqui, porm, outra dvida me assalta: o que se deve entender por amor simples, assim como perguntei pelo adjetivo puro anteposto aos substantivos tempo e gua? No fundo, a prpria arquitetura do poema Bodas de Can encarna os adjetivos simples e puro. H uma subtrao de alguns elementos presentes no relato bblico do evangelho de Joo. Digamos que h uma reduo da narrativa aos seus componentes mais essenciais. No entanto, a reduo tambm inverso com vigor do texto bblico. No se trata de um processo de abstrao somente, a partir do qual se alcanaria uma viso mais geral do acontecimento narrado. A poesia no est propondo a caminhada rumo ao conceito. O poema almeja ser um [anti] milagre em um duplo sentido: [1] um verbo extrado de um puro tempo. [2] Entretanto, se para ns todo verbo-vinho j e sempre ser uma encarnao, o milagre mesmo (ou anti) seria lev-lo a um estado de quase desencarnao, a um estado de silncio, a uma subtrao intensa de tudo o que no primordial. o que consigo tatear neste outro poema:

    ODES

    IO verbo?Embeb-lo de denso vinho.A vida?Dissolv-la no intenso jbilo.

    IISonho vivido desde sempre real buscado at o sangue.

    IIIO Sol cai at o soloa rvore di at o cernea vida pulsa at o centro

    ... o arco se vergaat o extremo limite

    IVLavro a figurano em pedra: em silncio.

    Lavro a figurano na pedra (inda plstica) mas noinumano silncio.

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    VA flor abriu-se.A flor mostrou-se em sua inteireza: Tragamos, ouro, incenso, mirra! (FONTELA, 1988, p.115-116).

    Sempre me intrigou o fato de que, no livro trevo (1969-1980), que rene parte da produo potica de Orides, h, na primeira pgina, um desenho, uma espcie de garatuja, de Mira Schendel, datado de 1964. Uma garatuja circular com traos borrados e riscados no lado direito, uma linha cortando irregularmente o crculo em direo a sua exterioridade, alguns traos externos na parte inferior do crculo. O desenho enigmtico de Mira Schendel traz, at onde minha leitura alcanou, uma referncia infncia. O poema Odes apresenta, em sua primeira parte, um jogo de perguntas e respostas e a imagem do verbo e da vida no momento de jbilo. A ltima parte do poema contm a imagem da flor e a aluso cena do nascimento de Jesus na qual os trs reis magos oferecem seus presentes (ouro, incenso e mirra). Em sntese, a celebrao do espiritual na imagem mais frgil e transitria da vida: a flor.

    Parte da sensao de estranhamento que pode sentir o leitor, na leitura do poema Bodas de Can, deve-se hiptese de subverso do acontecimento bblico. Instado por sua me, Jesus transforma a gua em vinho. Todavia, no poema aponta-se para a substncia do vinho: a gua. Da pura gua criar o vinho. A possvel subverso do acontecimento bblico a promessa que a poesia de Orides desejaria realizar: do puro tempo extrair o verbo. O poder transformador do milagre (antimilagre) guardaria uma correspondncia com o acontecimento potico em seus dois momentos: o fazer potico e a leitura do poema.

    Concluso

    Para a obra potica de Orides Fontela, caberia formular o seguinte raciocnio: a consistncia literria est ligada estruturalmente consistncia reflexiva algo formulado de maneira contundente por Olgria Matos: a poeta faz uma leitura filosfica da literatura e uma leitura literria da filosofia (MATOS apud BUCIOLI, 2003, p. 135). Deslindar as implicaes dessas duas leituras (entranhadas no fazer potico da autora de teia) d-nos acesso ao estatuto dessa poesia. Em que medida a poesia de Orides (considerada singular, por alguns crticos, na literatura brasileira do sculo XX) comporta um pensamento original inscrito numa forma literria concisa e spera? Em que consiste a originalidade dessa poesia, que nos fora a pensar e instala certo enigma e mistrio? Qual o termo mais apropriado obra dessa poeta: enigma ou mistrio?

    Justificaria a relevncia das categorias de enigma e de mistrio, para se pensar a poesia de Orides Fontela, tendo em vista duas afirmaes de Hugo Friedrich a respeito da lrica moderna, mais precisamente, no momento em que o autor discute os elementos que configuram a poesia de Stphane Mallarm. Vejamos o primeiro comentrio que tem por base as questes do smbolo e da obscuridade:

    O estilo simblico moderno que transforma tudo em sinais para expressar outra coisa, sem assegurar esta outra coisa numa tessitura de sentido coerente, deve necessariamente trabalhar com smbolos autrquicos que permanecem subtrados a uma compreenso limitante. E, finalmente, Mallarm deriva a poesia obscura daquela obscuridade que reside no fundo primordial de todas as coisas e que s se ilumina um pouco na noite do escrever [Mallarm]. Com estas palavras se quer dizer que obscuridade no arbitrariedade potica, mas necessidade ontolgica (FRIEDRICH, 1978, p. 120).

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    No que concerne poesia de Orides Fontela, fundamental, para uma leitura que deseja apreender o sentido da sua obra potica, inquirir como essa necessidade ontolgica constitui-se para a expresso do eu lrico e qual a forma artstica organicamente ligada a um pensamento potico que morde nas palavras filosficas e religiosas. Trata-se de averiguar o rendimento crtico das duas leituras realizadas em vrios poemas de Orides: a leitura filosfica da literatura e a leitura literria da filosofia.

    Afirmei que a palavra potica de Orides morde nas palavras religiosas e filosficas. Tal atitude se inscreve na prpria tradio da poesia moderna. A segunda afirmao de Hugo Friedrich, que propus como ponto de partida para justificar a relevncia da distino entre enigma e mistrio, assinala o vnculo entre especulao e estratos da alma mgico-arcaicos na lrica moderna.

    Mallarm participa da necessidade que a poesia moderna sente de unir uma poesia altamente refletida a estratos da alma mgico-arcaicos. A magia lingstica de seus versos constitui muito particularmente o meio para exercer, muito particularmente o meio para escrever, aquela sugesto com a qual o poeta gostaria de haver substitudo a compreensibilidade simples (FRIEDRICH, 1978, p. 134).

    Em Orides Fontela, h essa unidade entre uma poesia altamente refletida e os estratos da alma mgico-arcaicos, embora, nessa poesia, o leitor no encontre um hermetismo radical do tipo de Stphane Mallarm. A dico potica da autora oscila, em vrios momentos, entre a clareza ldica de certas percepes infantis e uma obscuridade solene de certos estados msticos. Em outras palavras, em sua obra potica esto relacionadas duas linhagens concorrentes do conceito de poesia: a gnstica, para a qual a palavra possui poderes mgicos e o poeta uma espcie de oficiante do sublime (aquilo que irrepresentvel), e a ldica, segundo a qual o ato potico opera uma dessacralizao dos contedos atribudos a uma ordem transcendental. Alguns versos da poeta caminham no fio da navalha entre o ldico e o solene.

    difcil apanhar de um s golpe de vista o significado e a estrutura potica dos versos de Orides. Os que so fceis, legveis em um primeiro olhar, logo despertam uma ponta de suspeita: o que compreendi de fato seu sumo, a carnadura ou a textura ntegra de som, sentido e imagem?

    A convivncia com os poemas, a leitura atenta e em doses homeopticas nos fornece a mitologia pessoal do eu lrico que empresta sua voz ao desejo contido de dizer o que aparece: o anjo, o vinho encarnado, a pura gua, a teia, o pssaro, o espelho, uma nudez sem nome, etc. um dizer recolhido e fragmentrio que se concentra e se apia nesses elementos simblicos para sugerir o que est na base de tudo o que nos envolve no mundo.

    Disse que o eu lrico empresta sua voz porque no se trata de uma poesia de extrao romntica, obcecada com seu desejo de ver a si mesma, esquecendo-se de se deixar ver. Uma poesia prisioneira do espelho ou do eco da sua voz, apesar de Narciso e Eco estarem presentes nessa potica em tom de advertncia.

    A pergunta que invoco e que gostaria de submeter a uma pesquisa futura, ampliando-a e corrigindo-a medida que for afinando o instrumento crtico, pode ser formulada nestes termos: o que a poesia de Orides nos faz ver, ouvir e dizer em uma unidade indissolvel (fenomenologia) do acontecer do pensamento, da fala e da aparncia? Se h fenomenologia nessa poesia, como entender o dizer potico que subtrai tudo aquilo que poderia ser prosaico em uma conversao habitual, ou mesmo aquilo que se tornou prosaico na tradio potica, por fora da repetio e do uso cannico de certas imagens? No entanto, essa subtrao ou essa depurao formal capaz de multiplicar as possibilidades de significao da prpria experincia potica.

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    ABSTRACTThis paper investigates the relationship between literary form and philosophical speculation in a few poems by Brazilian poet Orides Fontela, focusing on the contrast of some symbols of his poetry with the literary tradition of the West and on an internal analysis of these symbols with the aim of establishing some conceptual distinctions for an hermeneutics of poetry.

    Keywords: Orides Fontela. Symbol. Literary form. Philosophy. Brazilian poetry.

    Notas

    * Professor da Universidade Federal da Grande Dourados.

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