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G N A R U S | 58 Coluna: AUGUSTO CノSAR MALTA DE CAMPOS: UM FOTモGRAFO. Por Fernando Gralha ugusto César Malta de Campos nasceu em Paulo Afonso, na província de Alagoas em 14 de maio de 1864. De família tradicional na política alagoana, chegou ao Rio de Janeiro por volta de 1889, e segundo suas netas, 1 veio para escapar de uma carreira religiosa que o pai lhe impunha, pois já estava apaixonado pela prima Laura, com quem se casou e fugiu. Tiveram cinco filhos, quatro meninas: Luttgardes, Arethusa, Callestenis, Aristocléa e um menino, Aristógiton, que mais tarde seguiria a carreira do pai. Desde sua chegada ao Rio até 1902 exerceu várias atividades (guarda municipal, vendedor ambulante, guarda-livros, entre outros) antes de descobrir a fotografia. Sua clientela na venda ambulante de tecidos era a elite carioca, 2 quando tomou a decisão que 1 http://www.atelierimaginarte.com.br. Site mantido pelas irmãs Lucca e Anna Gabriela Malta, netas de Augusto Malta. 2 No decorrer de nosso trabalho, em vários momentos, utilizamos o termo “carioca” para denominar o habitante da cidade do Rio de Janeiro com base em definição dada pela academia brasileira de letras: “No séc. XIX e início do XX, o etnônimo a um tempo da província ou estado e da cidade; mas os habitantes desta, por contraste, devem ter sido chamados, informalmente, cariocas, a partir de 1736, a princípio pejorativamente, pejoração que se esbateu lentamente, como se depreende da resistência de fluminense na linguagem formal. Com a curta existência do Estado mudaria sua vida: resolveu trocar sua bicicleta (seu meio de transporte e que na época era uma inovação geralmente importada) por uma máquina fotográfica. A partir daí passou a registrar não só amigos e parentes, mas também aspectos daquela que seria seu principal alvo: a cidade do Rio de Janeiro. Tornou-se um dos grandes mestres da fotografia do início do século XX. Fotografava de tudo: amigos, paisagens, pessoas. Rompeu com tradições estéticas e ideológicas, pois além de mostrar personagens e paisagens das elites locais, apresentava aos apreciadores de suas obras o “populacho”, seus lazeres, ofícios e o dia-a-dia. Produziu imagens capturadas nas ruas, invadindo a da Guanabara, carioca retomou seu valor etnonímico cabal; extinto o estado, os habitantes da cidade continuam a dizer-se cariocas, e fluminenses, quando relacionados com a unidade da federação. Etimologia: Do tupi kari'oca, prov. do tupi kara'ïwa "homem branco" oka "casa": a palavra tem emprego inicial como topônimo , a Carioca, mais tarde, Largo da Carioca, local em que havia uma fonte para provisão de água pública e de embarcações na cidade do RJ; esta acepção perdura no Centro-Oeste do país; observa-se que na top. brasileira há lago da Carioca (Pará), rio e serra da Carioca (RJ), serra da Carioca (MG); quer contemporâneos, quer posteriores à Carioca da cidade do RJ (documentado em 1560). Esses top. permitem supor que o étimo, em vez de estar ligado ao significado proposto: casa de homem branco seja conexo com água, fonte, córrego, rio. Nascentes registra 'casa de branco', ressalvando que a identidade desse homem branco e o local exato da casa ainda são problemas”. A Fotografias da História

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Coluna:

AUGUSTO CÉSAR MALTA DE CAMPOS: UMFOTÓGRAFO.

Por Fernando Gralha

ugusto César Malta de Campos nasceu emPaulo Afonso, na província de Alagoas em14 de maio de 1864. De família tradicionalna política alagoana, chegou ao Rio de

Janeiro por volta de 1889, e segundo suas netas,1 veiopara escapar de uma carreira religiosa que o pai lheimpunha, pois já estava apaixonado pela prima Laura,com quem se casou e fugiu. Tiveram cinco filhos, quatromeninas: Luttgardes, Arethusa, Callestenis, Aristocléa eum menino, Aristógiton, que mais tarde seguiria acarreira do pai.

Desde sua chegada ao Rio até 1902 exerceu váriasatividades (guarda municipal, vendedor ambulante,guarda-livros, entre outros) antes de descobrir afotografia. Sua clientela na venda ambulante de tecidosera a elite carioca, 2 quando tomou a decisão que

1 http://www.atelierimaginarte.com.br. Site mantido pelas irmãsLucca e Anna Gabriela Malta, netas de Augusto Malta.2 No decorrer de nosso trabalho, em vários momentos, utilizamos otermo “carioca” para denominar o habitante da cidade do Rio deJaneiro com base em definição dada pela academia brasileira deletras: “No séc. XIX e início do XX, o etnônimo a um tempo daprovíncia ou estado e da cidade; mas os habitantes desta, porcontraste, devem ter sido chamados, informalmente, cariocas, apartir de 1736, a princípio pejorativamente, pejoração que seesbateu lentamente, como se depreende da resistência defluminense na linguagem formal. Com a curta existência do Estado

mudaria sua vida: resolveu trocar sua bicicleta (seumeio de transporte e que na época era uma inovaçãogeralmente importada) por uma máquina fotográfica. Apartir daí passou a registrar não só amigos e parentes,mas também aspectos daquela que seria seu principalalvo: a cidade do Rio de Janeiro. Tornou-se um dosgrandes mestres da fotografia do início do século XX.

Fotografava de tudo: amigos, paisagens, pessoas.Rompeu com tradições estéticas e ideológicas, poisalém de mostrar personagens e paisagens das eliteslocais, apresentava aos apreciadores de suas obras o“populacho”, seus lazeres, ofícios e o dia-a-dia.Produziu imagens capturadas nas ruas, invadindo a

da Guanabara, carioca retomou seu valor etnonímico cabal; extintoo estado, os habitantes da cidade continuam a dizer-se cariocas, efluminenses, quando relacionados com a unidade da federação.Etimologia: Do tupi kari'oca, prov. do tupi kara'ïwa "homem branco"oka "casa": a palavra tem emprego inicial como topônimo , aCarioca, mais tarde, Largo da Carioca, local em que havia uma fontepara provisão de água pública e de embarcações na cidade do RJ;esta acepção perdura no Centro-Oeste do país; observa-se que natop. brasileira há lago da Carioca (Pará), rio e serra da Carioca (RJ),serra da Carioca (MG); quer contemporâneos, quer posteriores àCarioca da cidade do RJ (documentado em 1560). Esses top.permitem supor que o étimo, em vez de estar ligado ao significadoproposto: casa de homem branco seja conexo com água, fonte,córrego, rio. Nascentes registra 'casa de branco', ressalvando que aidentidade desse homem branco e o local exato da casa ainda sãoproblemas”.

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intimidade destas pessoas quase sempre com flagrantesque evidenciavam a dinâmica cotidiana dos habitantesda cidade.

No início do século XX, Pereira Passos assume aprefeitura, requisita carta branca para governar omunicípio,3 e desencadeia o processo de reurbanizaçãoda cidade. Tinha por objetivo transformar o Rio deJaneiro em uma cidade moderna e virtuosa, como setratava de um grande projeto, precisava ser registrado.Mas se em outros temposeste dado oficial seriaeternizado apenas através deescritos e no máximo empinturas e desenhos, com arecente tecnologia dafotografia, esta condiçãomudou.

Malta foi indicado aPereira Passos por AntônioAlves da Silva Júnior, umamigo fornecedor daprefeitura, para fotografaralgumas das primeiras obrasdo prefeito. Passos apreciouo trabalho e o convidou paraassumir o cargo de fotógrafodocumentarista, cargo queaté aquela data não existia naadministração da cidade.4 Ofotógrafo foi contratado emjunho de 1903, e assumiu seucargo no dia 23 subordinadoà Diretoria geral de Obras eViação da Prefeitura. Suafunção era a de registrar os eventos oficiais, comoexecução e inauguração de obras públicas,estabelecimentos ligados ao município (hospitais,escolas, asilos, etc.), posses, encontros políticos, assimcomo ruas e edifícios que seriam arrasados com asreformas urbanas e flagrantes em geral comoenchentes, desabamentos, ressacas, etc.

Malta ganhou tanto a confiança e admiração dePassos que passou a registrar todas as atividades do

3 Durante os primeiros seis meses de seu mandato, governa com oLegislativo municipal suspenso. Nesse período, legisla por decretos,muitos dos quais alteram diversos costumes da cidade, como ocomércio ambulante, a mendicância, a criação de cães domésticos eoutros.4 Decreto 445, de Junho de 1903 (Arquivo, 1994, p 16). Ap.CIAVATTA, 2002, p. 90.

prefeito, desde o trabalho na prefeitura assim como suavida privada em almoços, passeios pela floresta daTijuca, reuniões de família e amigos e fotos de estúdiode Passos e seu filho Francisco de Oliveira Passos.

Segundo Amaltéa Malta, a proximidade e convivênciade Malta com Passos foi de fundamental importânciapara o acesso do pai à “nata da sociedade”, poisquando, mais tarde, abriu seu próprio estúdio, essaligação lhe serviu de carta de apresentação,

garantindo-lhe váriosconvites para fotografarcasamentos, batizados efestas em geral, assimcomo o contrato comvárias grandes empresascomo a Light e a Cia. deseguros Sul América.

Apesar de ter recebidoparte de seu aprendizadoinicial de Marc Ferrez, 5

Malta não apresentou emtoda a sua obra, o mesmorefinamento e ovirtuosismo técnico deFerrez - fotógrafo que,além de sólida formaçãoartística, era possuidor deconhecimentos de químicafotográfica, o quecontribuiu para otratamento primoroso desuas imagens -, masapresentou um caráterevidentemente inovador

ao construir um trabalho que foi além da suaincumbência oficial de documentar casas e quarteirõescondenados pela prefeitura, festas oficiais, prédiospúblicos, museus, ministérios etc. Ainda segundo suafilha Amaltéa, a fotografia além de ser a profissão quelhe dava sustento, era uma atividade que exercia porgosto.6 Através de suas imagens, oficiais ou não, Maltadissecou a cidade em todas as suas faces epersonagens, registrou operários, prostitutas, crianças,pobres e ricos, famosos e anônimos, compondo umverdadeiro painel de personagens típicos da vida

5 KOSSOY, 2002, p. 98.6 “O interesse pela fotografia começou com uma pequena máquinaque ele trocou por uma bicicleta (...) daí ele começou a tirar fotos etomou gosto” – Amaltéa Malta Carlini, filha de Malta, em entrevistaao MIS, 1980.

Augusto Malta

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carioca no período. Engendrou uma rede de fotografiassobre a capital federal, captando suas várias nuances,através de hábitos e costumes de sua gentepossibilitando, através das imagens fixadas em suaschapas fotográficas, percebermos a evolução histórica,social, cultural, arquitetônica, artística e urbanística dacidade carioca. (Fotos 1,2 e 3)

A crônica visual desenvolvida por Malta o habilitou aser considerado por vários autores8 como o primeirofotojornalista brasileiro. Suas fotos eramconstantemente publicadas em revistas ilustradas comoa Kosmos, Fon-Fon e Careta entre outras, além doscartões-postais - naquele momento no auge da moda,foi inclusive sócio fundador, n° 148, da “SociedadeCartófila Emanuel Hermann”, em 1904, 9 com especialdestaque para a sua produção na Exposição Nacionalde 1908.

Observou e registrou tudo que julgou interessante ourelevante, não só para o seu uso e deleite, mas tambémpara futuras gerações. Era muito metódico naidentificação do material produzido, sempre “assinava”na treva (parte escura) dos negativos, assim comocolocava a data e alguma referência ao assuntoregistrado.

7 As fotografias 1, 2 e 3, são componentes da pasta “Prostitutas,aspectos sociais, festas juninas, festas em praças públicas” do índice“Logradouros” do acervo do MIS.8 CIAVATTA, 2002; MOREIRA, 1996; HOLLANDA, 1996; KOSSOY,2002.9 OLIVEIRA, Jr., 1998, p. 82

Da cobertura do desmonte do Morro do Castelo aocarnaval carioca, da própria cidade, no registro depersonalidades, incluindo artistas, políticos,comerciantes, profissionais autônomos, artesãos etrabalhadores, entre outros temas, percebe-se agrandiosidade da obra de Augusto Malta.

Esta grandiosidade poderia ser ainda maior se,infelizmente, grande parte de sua produção não tivessese perdido ou sido danificada por falta de cuidado(chapas de vidro quebradas, ataques de fungos por máconservação, etc.). Hoje seu acervo está espalhadoentre o Arquivo Nacional, o Museu da Imagem e doSom, da Light, do Instituto Moreira Salles e emcoleções particulares, atestando sua relevância para amemória da cidade do Rio de Janeiro durante as trêsprimeiras décadas do século XX.

Ao assumir o cargo de fotógrafo oficial da Prefeiturada cidade do Rio de Janeiro, Malta tinha como uma desuas incumbências registrar as moradias do centro dacidade que seriam demolidas durante as reformasurbanas, estas fotos eram agrupadas em álbuns eenviadas ao prefeito, que negociava com osproprietários os valores de indenização peladesapropriação dos imóveis. As imagens geradas pelacâmera do fotógrafo da prefeitura serviam como provairrefutável da situação precária das habitações e,justificavam os valores estabelecidos comocompensação pela perda das antigas casas e sobrados.

Foto 1 - MIS/RJ Foto 2 - MIS/RJ Foto 3 - MIS/RJ

O pequeno jornaleiro (1914), a corista (1904) e o “Homem-reclame” (1905), faziam parte da ala menos nobre da sociedade carioca, mas nãoescaparam do intenso exercício visual diário que Malta executava sobre a cidade.7

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Quando um proprietário marcava audiência naprefeitura para reclamar um valor maior para aindenização, muitas vezes ele se via em “maus lençóis”,pois não supunham que a prefeitura estivesse “tãominuciosamente informada acerca das más condiçõesda cidade”.10 Se a localização central garantiria aosprédios um alto valor comercial, as evidênciasfotográficas de sua má conservação e de sua máutilização encerravam as discussões. A objetividadepositivista atribuída à fotografia era parte de umainstituição alicerçada no iconográfico, na aparênciacomo expressão da verdade.11

Antes de qualquer coisa devemos deixar claro que ateoria do “olhar inocente” já caiu por terra há algumtempo, historiadores e teóricos da imagem como BorisKossoy, Ana Maria Mauad, Ariel Arnal, Alfredo Bosientre outros, comprovam que entre a ação defotografar e a imagem resultante existe toda uma gamade subjetividades concernentes tanto ao fotógrafoquanto a sociedade do contexto deste mesmofotógrafo, além das expectativas e desejos dofotografado.

Além de que, não podemos desconsiderar que boaparte da obra aqui discutida é fruto de uma relaçãocomercial entre o fotógrafo e o governo da cidade.Malta prestava um serviço a um cliente, e o sucessodesta relação estava diretamente ligado à satisfaçãodeste cliente, cliente este que lhe garantiu inclusivemoradia – Augusto Malta e família, no início de sua vidacomo fotógrafo profissional residiram no Palácio daPrefeitura (Rua General Câmara), onde contava comlaboratório, arquivo, gabinete de análise, gabinetefotográfico (atelier) e acomodações para a família12 –ou seja, não podemos esquecer que era a fotografia“oficial” que garantia o sustento de Malta e família, deonde podemos concluir que o fotógrafo usava de todosos recursos para satisfazer as expectativas de seu(s)cliente(s).13

Assim, podemos dizer que a obra de Malta e suarelação com o registro do “fato” se encontram nocentro do debate que é o conceito da fotografia comofonte histórica e sua respectiva discussão teórica,

10 Manuscrito de Augusto Malta datado 29 de agosto de 1936.Apud, CAMPOS, 1987.11 KOSSOY, 2001, p. 102.12 apud CAMPOS, 1987.13 Dentre as empresas para as quais Malta prestou serviço estão aLight, Cia Telefônica Brasileira, Fabrica de Tecidos Corcovado,Serraria Trajano, Fabrica Aliança, Cia. Medeiros, Fábrica Carioca eSul América.

envolvendo questões como o realismo fotográfico, aambiguidade relativa a informação e desinformaçãoque existem na imagem fotográfica, a subjetividade e aobjetividade que ela possui, a questão do olhar, dainterpretação e da busca da natureza do documentofotográfico. 14

Como já dissemos acima, os álbuns de Pereira Passoseram, no período estudado, tidos como provasincontestáveis de uma realidade congelada, de umestado de coisas e pessoas, originadas pelo olhar“inocente” do fotógrafo, um olhar que apenas observae registra, sem juízo de valor, sem ideologia, semcompromisso, a não ser com a verdade.

Seria possível, o registro visual não documentar aatitude do fotógrafo frente à realidade? Seu estado deespírito e sua ideologia não transparecerem em suasimagens? Segundo Kossoy15 não, principalmente naschapas que realiza de forma independente, ondetrabalha mais “solto”, aliás, Malta é um exemplo clarodo produtor de imagens que transita bem entre ooficial, ou seja, seu trabalho para um cliente, e o nãooficial, as chapas que “tirava por gosto”. 16

Malta deixou pistas de suas opiniões em fontesverbais, parte delas estão nas legendas que fez emgrande parte de sua obra. Elas podem ser entendidascomo a assinatura do fotógrafo que nelas registravadata e local, e muitas vezes o número do fotogramacorrespondente ao arquivamento do materialacompanhados de comentários sobre o assuntofotografado.

14 CIAVATTA, 2002. p. 1815 KOSSOY, 2001, p. 42.16 “O interesse pela fotografia começou com uma pequena máquinaque ele trocou por uma bicicleta (...) daí ele começou a tirar fotos etomou gosto” – Amaltéa Malta Carlini, filha de Malta, em entrevistaao MIS, 1980.

“Ainda o vejo quando (...) lia asindicações e sugestões com que

me atrevia marginar as fotografiasque lhe enviava, escrevendo ao pé

das fotos dos pardieiros: Estápedindo picareta.” (detalhe)

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As legendas-comentário, gravadas com uma pena na“treva” com nanquim branco importado, serviramtambém para uma espécie de diálogo entre Malta ePereira Passos, a este que demos como exemplo acima,Passos respondeu: “Malta, você tem razão, amanhãteremos picareta”. 19 As legendas são exemplo claro decomplementação verbal à mensagem imagética, ondeo vinculo entre mensagem escrita e mensagem visual,faz com se relacionem, reafirmem e auto completem. 20

Existem também, algumas entrevistas, como a quedeu à “Revista da Semana”, edição de Natal, 1945, ao“Diário de Notícias” em 29/08/1936 e ao Jornal “OGlobo” de 1936, em que o fotógrafo dá mais algumaspistas de suas ideias a respeito de seu trabalho econduta pessoal.

Quanto ao fato de Malta e sua produção imagéticaserem frutos de um determinado contexto e época nãohá dúvidas, o caminho percorrido por toda teoria eprática da utilização da fotografia como fontehistoriográfica apontam que seria impossível a elemanter total isenção. No início de sua carreira na

17 A foto 5 é integrante da pasta “Ruas do centro do Rio de Janeiro3” do índice “Logradouros” do acervo do MIS –. Esta foto é apenasum exemplo do grande número de registros fotográficos quecontinham algum tipo de mensagem extra além da assinalação danumeração das construções, sinal que caracterizava o interesse daPrefeitura na sua demolição.18 Apud CAMPOS, 1987.19 Idem.20 CIAVATTA, 2002, p. 44.

prefeitura era clara sua admiração pelo Prefeito e pelasreformas urbanas, 21 todos os indícios nos levaram acrer que Malta, como entusiasta das transformações dabelle époque, apoiou as transformações promovidaspelos poderes públicos municipal e federal na capitalda República, que viriam a transformar o cenário dacidade e, consequentemente, a relação de seushabitantes com ela. Consciente de suas atribuiçõescomo fotógrafo oficial da cidade-capital em processode modernização, foi responsável pelo registro deimagens de uma paisagem que se modificourapidamente, de um mundo que se despedia enquantooutro se anunciava. Suas fotografias construíram álbunsque preservaram uma determinada memória do antes,durante e depois, e que tinham por objetivo aconstrução de um registro fiel das mudançasempreendidas.

Na maioria das vezes Malta optou, para suas fotosoficiais, por utilizar os planos médio e geral,22 estesexpressam uma intenção de neutralidade, dedistanciamento, bem diferente de quando fotografavapor “gosto” ou em situações menos formais, como nocarnaval, em que encurtava a distância, se aproximava

21 “(...) uma obra como aquella, um homem como aquelle, nãomereciam a falta de respeito de uma ‘tapeação’ (...)”. Malta aojornal “O Globo” de 1936.22 A tradição teórica e a prática do cinema estabeleceram umacodificação dos planos: plano geral, plano de conjunto, planomédio, plano americano, primeiro plano, primeiríssimo plano ouplano detalhe. Apud CIAVATTA, 2002, p. 60.

Foto 5 - MIS/RJ 17 - Rua dos Andradas com Alfândega (1906)DetalheD

“Ainda o vejo quando (...) lia as indicações e sugestões com que me atrevia marginar as fotografias que lhe enviava, escrevendo ao pé das fotosdos pardieiros: Está pedindo picareta.” (detalhe)18

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das pessoas nas ruas e executava closes e imagens emprimeiro plano. Embora almejasse à universalidade deuma produção calcada na razão, percebemos que suasimagens oficiais ou não, são sempre reguladas sobrecódigos convencionalizados social e culturalmente,motivados pelos interesses dos grupos que os tecem,daí foi imprescindível o relacionamento dos discursosproferidos com a posição de quem se utiliza deles.23

Fez-se necessário, também, entender o fotógrafocomo autor, em qualquer instância em que atuava,autônomo ou servidor, sua obra é marcada pelacompetência com que dominou a tecnologia e aestética fotográfica de seu tempo, que por sua vezestavam diretamente conectadas ao manuseio decódigos convencionados social e historicamenteobjetivando a fabricação de uma imagem crível einteligível. Logo, as imagens produzidas por Malta sãoum documento não apenas pelo que mostram de umpassado congelado nas efígies, mas porque permitemtambém o conhecimento de seu autor, o fotógrafo ecidadão, do procedimento e tecnologia empregadospor ele e que proporcionaram a imagem e seuconteúdo.24

O produto final na obra de Augusto Malta, suasfotografias, se constituiu em decorrência da ação dohomem, que dentre outras escolhas possíveis, optoupor um ponto de vista em particular: o entusiasmo eotimismo advindos das idéias de modernidade. E queutilizou toda a tecnologia a ele oferecida por estamodernidade e, não menos relevante, por seus“patrocinadores”. Sua narrativa fotográfica nasceu apartir de um desejo individual permeado por desejosde um lugar e de uma época, que o motivaram apetrificar em imagens determinados aspectos do real.

Desde o surgimento da fotografia, existe apossibilidade de interferir na sua confecção, daexistência de um “discurso humano”, construído atravésda codificação da imagem - a pose por exemplo.Dirigindo a cena, organizando a composição, seaproveitando de um ângulo mais favorável, alterandopara melhor ou para pior a aparência de seusretratados, introduzindo ou excluindo detalhes, o autorfotográfico sempre, de uma forma ou de outra,manipula seus registros técnica, ideológica ouesteticamente. Desta forma, a singularidade daquiloque se apresenta ganha similaridade com umacategoria universalizante: o rico, o pobre, o patrão, o

23 CHARTIER, 1990, P. 17.24 KOSSOY, 2001, p. 75.

empregado, ou a festa, o desastre, o protesto, amodernidade, o atraso...

Assim sendo, a fotografia de Malta apresenta, porum lado, algumas pistas muito claras, e de outrocarrega alguns vestígios, de acesso mais difícil, pois sãofundamentados em modelos previamente elaboradosda perspectiva, do enquadramento, da composição, dapose, etc. Estas condições são de grande relevância,porque mostram não apenas que tal evento realmenteexistiu, mas também, através da composição daimagem, uma certa representação que foi social e/ouculturalmente conferida ao sujeito.

A fotografias de Malta foram usadas para atestar ascondições precárias das construções desapropriadas,de um certo estilo de vida da elite carioca, dos maushábitos dos frequentadores dos quiosques, daelegância dos corsos carnavalescos, do carnaval de rua,dos cafés de inspiração parisiense, e tantos outroseventos e personagens do cotidiano carioca da belleépoque, representados por meio de objetos, poses eolhares, são fruto de um processo que vai além de suagênese automática, que vai além de a ideia deanalogon da realidade, são decorrentes de umaelaboração do vivido, de uma ação de investimento desentido, ou seja, uma leitura do real concretizada pelofotógrafo oficial da prefeitura e amante da fotografiamediante um conjunto de normas que envolvem,inclusive, o domínio de um determinado conhecimentoe tecnologia.25

A obra de Augusto Malta no período analisado é ummeio de informação pelo qual visualizamosmicrocenários da belle époque carioca; entretanto elanão agrupa em si a totalidade do conhecimento, masevidencia sim uma implícita relação de “cumplicidade”entre o fotógrafo e a cidade. Não pode ser percebida eanalisada como um registro simples e imaculado deuma imanência do objeto retratado. Como produtohumano, ela indica também, com sua escrita luminosa,uma realidade que não existe fora dela, nem antes dela,mas precisamente nela. 26

Entendemos, portanto, a obra do fotógrafo AugustoMalta como uma determinada “prova visual” docontexto da belle époque carioca, que sempreencontrou-se entre dois modos de existência: comomensagem direta, objetiva, culturalmente consagradapela sua origem de tecnologia aplicada e

25 MAUAD, 2005.26 MACHADO, 1984, p. 40.

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aparentemente sem necessidade de decodificações, ecomo uma mensagem polissêmica, dúbia, refratora darealidade. Se nesta permite uma aproximação estéticada virtualidade do ato fotográfico à sua materialização,do fazer fotográfico ao refletir sobre o produtocodificado, transformador do real, naquela, a estéticafotográfica é imposta ao real como mimeses, arquétipovisual ou o “espelho do mundo”, o código absoluto. Ouseja, prova conformada pelo testemunho e pelo olharde um cidadão de seu tempo, que transitou entre aelite e o populacho com grande desembaraço, tãogrande que é perfeitamente possível fazer umaanalogia com o termo tão usado por João do Rio: oepíteto de “flaneur visual” talvez seja a melhor formade definir a atitude de Malta diante da cidade do Riode Janeiro.

Quanto ao homem, sua filha Amaltéa, afirmava queo pai era muito discreto e fechado quanto suasopiniões, sobre política não se pronunciou, nem sobre arevolta da vacina, nem sobre a revolução de 30, nãodiscutia assuntos delicados – como o nazismo, porexemplo –, e não tinha assistentes por preferir trabalharsozinho,27 além disso, não revelava nem mesmo a seusfamiliares em quem votava nas eleições. Malta seaposentou em 25 de Agosto de 1936, ano em que foicomemorado o centenário de Pereira Passos, foi entãosubstituído no cargo por seu filho Aristóginton, mascontinuou fazendo da fotografia parte integrante deseu cotidiano, fotografou até poucos anos antes de suamorte em 30 de junho de 1957, aos 93 anos.

Fernando Gralha é Mestre em História pelaUniversidade Federal de Juiz de Fora e Professor dasFaculdades Integradas Simonsen, Prof. TutorUAB/UNIRIO. Editor fundador da Gnarus Revista deHistória. Coordenador de pesquisa do Centro deMemória de Realengo e Padre Miguel.

27 Com exceção de 1922, quando com muito trabalho devido àExposição do Centenário da Independência, contratou seu irmãoTeófilo para ajudá-lo. OLIVEIRA, Jr., 1998, p. 82.

Referências:

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