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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Helena Cecília Barreto Bruno Wilke Política e PNUD: resiliência, desenvolvimento humano e vulnerabilidades Mestrado em Ciências Sociais São Paulo 2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Helena Cecília Barreto Bruno Wilke

Política e PNUD:

resiliência, desenvolvimento humano e vulnerabilidades

Mestrado em Ciências Sociais

São Paulo

2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Helena Cecília Barreto Bruno Wilke

Política e PNUD:

resiliência, desenvolvimento humano e vulnerabilidades

Mestrado em Ciências Sociais

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais sob orientação da Profa. Dra. Salete Oliveira.

São Paulo

2017

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resumo

Esta pesquisa mapeia a produção dos principais conceitos e abordagens do Programa

das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Sua emergência remonta a um

período de revisões liberais e expansão das organizações internacionais ancoradas na

busca pela paz democrática, ainda sob os efeitos da Segunda Guerra Mundial. Seus

empreendimentos evidenciam delineamentos mais acabados após a chamada Guerra

Fria, quando a segurança e o desenvolvimento, calcados no humano, passam a

responder aos redimensionamentos da governamentalidade planetária. O Índice de

Desenvolvimento Humano (IDH), adotado pelo PNUD a partir da década de 1990,

mostra-se importante instrumento na identificação e construção das chamadas

vulnerabilidades como virtuais ameaças aos governos do e no planeta. A análise do

Programa Conjunto Segurança com Cidadania, coordenado pelo PNUD em um bairro

na capital do Espírito Santo, expõe o funcionamento do IDH, aliado à abordagem da

chamada segurança cidadã – específica à América Latina, recentemente incorporada

aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A Justiça Restaurativa situa-se

como uma de suas conexões planetárias preferenciais ao complementar e ampliar o

sistema penal formal e mostra sua flexibilidade punitiva ao implementar políticas

sociais em escolas e comunidades. A pesquisa constatou a eficiência do PNUD em

irradiar práticas penalizadoras operadas em nome da pretensa neutralidade do

desenvolvimento humano, por meio da produção de condutas responsáveis e resilientes

que sustentam a gestão compartilhada da miséria.

Palavras-chave: PNUD, IDH, desenvolvimento humano, resiliência, vulnerabilidade e

Justiça Restaurativa.

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abstract

This research surveys the development of the fundamental concepts and guidelines of

the United Nations Development Program (UNDP). Its creation dates back to a period

of liberalism and expanding of international organizations, seeking for democratic

peace, still under the effects of World War II. Its purposes are correlated to designs

created after the Cold War, when security and development, which were based on

anthropological concepts, begin to respond to the restructuring of the planetary

governmentality. The Human Development Index (HDI), adopted by the UNDP since

the 1990s, is an important tool in identifying and constructing the so-called

vulnerabilities as threats both for local and global governments. The survey of the

Conjunct Program “Segurança com Cidadania”, coordinated by the UNDP in a

neighborhood of Vitória, Espírito Santo, Brazil, disclosure the operational model of the

HDI, together with the so-called “segurança cidadã” specifically designed for Latin

America, which was recently incorporated to the Sustainable Development Objectives

(SDO). The Restorative Justice is considered a complementary planetary connection

aiming to broaden the formal penal system, flexibilizing sentences and implementing

social policies in schools and communities. The present study verified the UNDP's

effectiveness in enforcing penal practices operated in the name of the alleged neutrality

of human development throughout the manufacture of responsible and resilient

conducts that underpins the management of collective misery.

Keywords: UNDP, HDI, human development, resilience, vulnerability and Restorative

Justice.

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agradecimentos

À Salete Oliveira, pelo rigor e liberdade únicos que propiciaram esta pesquisa. Pela intensidade libertária. Pelo tanto que aprendi e pelas transformações incríveis em minha vida.

Ao Edson Passetti, pela coragem e inventividade que ultrapassam a vida na universidade. Pela paciência e generosidade raras desde meus primeiros contatos com uma pesquisa.

Ao Acácio Augusto, pelas leituras e conversas incomensuráveis que atravessam esta pesquisa e a minha vida. Presença vital e fascinante a cada dia. Pelo amor absurdo que sinto, e por viver livremente comigo algo inominável.

Ao Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol). Espaço incessante de abolição e afirmações libertárias. Por ter me mostrado outros jeitos de lidar com a vida. Pela convivência deliciosa e firme.

À Beatriz Carneiro, pelos livros, delírios e conversas sempre incríveis. À Eliane Knorr, pela leveza, atenção e apoio que nunca faltam. À Flávia Lucchesi, pela amizade e trocas pulsantes. Ao Gustavo Simões, pela sensibilidade e vigor singulares. Ao Leandro Siqueira, pelas tantas risadas. À Lúcia Soares, pelos trovões espetaculares e abraços calorosos. À Luíza Uehara, pela força imensa durante toda a pesquisa e frescor na convivência. À Cecília Oliveira, pelas questões empolgantes. À Mayara Cabeleira, pela intensidade de experiências e amizade de toda a vida; pela força até o final da pesquisa. À Sofia Osório, pelo afeto e lindo sorriso. Ao Thiago Rodrigues, pela importância a esta pesquisa. Ao Vitor Osório, pelas trocas e descobertas de se fazer uma pesquisa.

Aos professores Wagner Romão e Vera Chaia, pela leitura atenta e sugestões valiosas na qualificação.

À Nara Borgo, pela disponibilidade e materiais importantes para a pesquisa.

À minha mãe, Regina Wilke, pela linda mulher que é. Pela nossa amizade e pelo senso de humor desconcertante.

Ao meu pai, Reynaldo Wilke, homem incrível e raro. Pela grandeza e delicadeza que sempre me confortaram.

Ao meu irmão, André Wilke, pelo carinho e cuidados de sempre.

Às minhas tias Cássia e Lúcia Bruno, pelas conversas, apoios e gargalhadas.

Aos meus primos queridos, Fabiana, Jan e Marina Bruno, pelas trocas e pelo crescer junto.

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À minha avó, Judith Bruno, pela exuberância na vida e em seu jardim.

À Carolina Mandú, pelos momentos deliciosos e presença preciosa.

À Raquel Santos, pelo abraço. Pelas experiências juntas e sintonia inabalável.

À Lana Efraim, pelo deslumbre que lhe é próprio. Pelas descobertas surpreendentes e inesquecíveis.

À Pamela Leoni, pelo prazer imenso em estar perto. Pela presença forte e irradiante nos acontecimentos.

Ao Renato Lopes e Guilherme Silva, pelas conversas instigantes e momentos sempre sem medida.

À Beatriz Marcos, pela presença tranquila e prazerosa.

Agradeço às professoras coordenadoras do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, Lúcia Bógus e Vera Chaia. À Kátia e ao Rafael.

Ao CNPq pelo financiamento desta pesquisa.

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SUMÁRIO

apresentação 10

______________________________________________________________________

1. RACIONALIDADE NEOLIBERAL E AS MODULAÇÕES DE UMA

ESTRATÉGIA PARA O DESENVOLVIMENTO 20

1.1. guerra, mercado, organizações internacionais e uma trajetória 26

planejamentos e revisões liberais 26

planos de paz para o “mundo livre” 33

1.2. a emergência de uma racionalidade neoliberal e seus itinerários 40

governamentalidade e neoliberalismo 40

itinerários neoliberais 47

organizações internacionais em ascensão 51

1.3. ecopolítica do planeta e o espraiamento das grandes organizações

internacionais 55

ecopolítica e os redimensionamentos do desenvolvimento 55

breves procedências do PNUD 60

emergência do PNUD 68

1.4. os especialistas do desenvolvimento pelo planeta 72

cooperação técnica e seus fluxos 72

um empreendimento planetário 79

fluxos de inteligências e suas irradiações 89

_____________________________________________________________________

2. GOVERNAMENTALIDADE PLANETÁRIA E AS ABORDAGENS DO

DESENVOLVIMENTO 100

2.1. construção de novos alvos sob o jugo da paz planetária 103

construção do fracasso 103

construção do perigo 113

uma disputa complementar 119

reconstrução da guerra 127

2.2. o desenvolvimento humano e a construção de uma abordagem para a vida 132

abordagem da segurança humana 132

abordagem do desenvolvimento humano 142

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uma ampliação oportuna 146

o IDH e a construção de uma medição para a vida 151

IDH e o ambiente brasileiro 158

2.3. a abordagem do desenvolvimento humano sustentável 175

empreendimentos sustentáveis 175

um projeto sustentável para o novo século 184

_____________________________________________________________________

3. RESILIÊNCIA E PENALIZAÇÕES RESTAURATIVAS:

GOVERNO DOS VULNERÁVEIS NO PLANETA 195

3.1. da restauração à segurança cidadã 202

investimentos em cidadania na América Latina 202

táticas de difusão da Justiça Restaurativa 206

uma diferença incontornável 218

segurança como estratégia e táticas de penalizações 224

3.2. um programa conjunto e a construção de uma seletividade 231

breves apontamentos sobre o PNUD e o Brasil 231

implementação de um investimento conjunto 242

fundamentação conceitual em fluxos 247

implementação do conjunto de penalizações restaurativas 252

distinções complementares 257

um projeto policial para os vulneráveis 259

3.3. reinserção da guerra e produção da paz social 266

da tentativa de pacificação das relações sociais 266

moral da restauração 272

abolir, e não restaurar 278

resiliência e racionalidade neoliberal 280

_____________________________________________________________________

a medida do humano e o desenvolvimento das punições e restaurações 290

______________________________________________________________________

lista de imagens 298

lista de abreviaturas e siglas 299

BIBLIOGRAFIA 301

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apresentação

Quando comecei a pesquisar o Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD), a “agência líder” da rede para o desenvolvimento da

Organização das Nações Unidas (ONU), esta palavra ou este campo de atuação

denominado “desenvolvimento” apresentou-se de forma bastante genérico, porém nada

despretensioso ou desinteressado, como nada o é. Sempre me impressionou a sua

capacidade de extensão, difusão e flexibilidade, tanto pelo PNUD estar presente em

mais de 170 países e regiões em todo o planeta, como por encontrar seu selo de

financiamento ou cooperação nos mais variados documentos locais, nacionais,

planetários.

O PNUD tem como foco principal a erradicação da pobreza em todo o mundo e

todos os seus esforços voltam-se ao cumprimento dos mais novos Objetivos de

Desenvolvimento Sustentável (ODS – 2015-2030). Prioriza-se a implementação de suas

políticas sociais via gestão compartilhada entre Estados, institutos, fundações,

universidades, sociedade civil, tendo como principal agente seus próprios

“beneficiários”. Sua flexibilidade evidencia-se, ainda, por atuar, desde na orientação de

práticas socioambientais sustentáveis para empresas, até na orientação de como

restaurar um jovem sob a forma de aplicação de medida socioeducativa, a partir das

diretrizes do desenvolvimento humano. Uma estratégia geral de gestão e produção de

condutas.

Mapeei os mais diversos relatórios locais e globais, documentos, quadros para

países, e sempre foi muito difícil ter um domínio sobre o que realmente movia o

trabalho do PNUD para além da disputa pela verdade sustentável; sobre qual realmente

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era seu alvo. Não que a busca pela verdade, pela única certeza tenha movido o meu

trabalho. As questões que permearam esta pesquisa não se detiveram ao grau de

eficiência e governabilidade do PNUD, mas sempre estiveram e ainda permanecem em

torno de como governam-se vidas e como disseminam-se práticas de poder e de governo

na produção de uma conduta que responda ao governo do planeta de forma sustentável.

Nesse contexto, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), considerado pelo

próprio PNUD como um de seus maiores empreendimentos nos anos 1990, pareceu-me

de fundamental importância para me aproximar da metodologia do Programa. Conforme

fui lendo e investigando suas orientações, diretrizes, avaliações, cálculos, conceitos,

etc., percebi que o desenvolvimento – posteriormente aprimorado em desenvolvimento

humano sustentável – e a segurança – ajustada para segurança humana composta por

um amplo leque de outras seguranças – extrapola o enquadramento de “objetivo” ou

“metodologia”, mas constitui-se e irradia-se como uma abordagem de vida. Abordagem

exercitada como um jeito de pensar, de calcular a vida alinhada à racionalidade

neoliberal emergente no pós-Segunda Guerra e também depurada e incrementada para

imbuir cada indivíduo como capital humano e agente de si.

Como um índice poderia, então, abarcar esta abordagem de vida? O que estava

em jogo para ser realizado um prognóstico e quais seriam as medidas tomadas pelo

PNUD diante de um certo prognóstico? Que história é essa de fazer a vida caber numa

mediação econométrica?

O IDH tem como variáveis básicas para um país a expectativa de vida – medida

em anos –, a educação – medida pela percentagem de alfabetização de adultos e pelos

anos de escolaridade – e a renda – ajustada ao poder de compra em dólares. Uma vida,

para o PNUD, resume-se a: longevidade biológica (sobrevida), escolarização (educação

para obediência) e capacidade de consumo (inserção no mercado). Nos anos 2000, o

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IDH passou a ser ajustado aos municípios. Em 2013, no Brasil, esta tentativa reuniu

outras inúmeras variáveis, como dados de habitação, trabalho e vulnerabilidade. Na

abordagem do PNUD, pessoas vulneráveis, principalmente pobres e crianças, tidas

como inerentemente vulneráveis, produzem um ambiente vulnerável. A invariante da

cultura do castigo em ter como alvo crianças e jovens, agora em e na produção de um

ambiente.

Ao longo da pesquisa, portanto, o IDH foi se evidenciando instrumento

fundamental para o PNUD que justifica a implementação de políticas sociais. Enquanto

Estados considerados falidos por especialistas e rankings internacionais, e portanto

passíveis de intervenção, uma vez que representam uma ameaça para toda a

“comunidade internacional”, pessoas vulneráveis são entendidas, numa via de mão

dupla, como uma ameaça e ameaças a si mesmas, aos seus próximos, e ao ambiente em

que vivem; no limite, ao ambiente planetário. Estava diante de um monumental aparato

que, ao fazer a vida caber num índice, produz a mortificação cotidiana.

Estudar e pesquisar a carreira, a formação, a experiência das grandes referências

que possibilitaram a configuração do PNUD como um irradiador de práticas de governo

em âmbito planetário foi fundamental para perceber sua abordagem como intrínseca à

racionalidade neoliberal. Mas era preciso conhecer o limite desta racionalidade na vida

das pessoas e de um espaço, para além do que sua pretensa neutralidade almeja estancar.

Quais pessoas se arvoram dizer como deve ser a vida de outras pessoas no planeta?

Como eles geriam a si para disseminar a gestão dos outros?

Pude então conhecer um pouco mais de perto o Programa Conjunto, coordenado

pelo PNUD e implementado juntamente com a UNESCO, UNICEF, OIT, UNODC e

ONU-Habitat, intitulado Segurança com Cidadania – Prevenindo a violência e

fortalecendo a cidadania com foco em crianças, adolescentes e jovens em condições

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vulneráveis em comunidades brasileiras. Este programa foi financiado pelo Fundo para

o Alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) do Governo Espanhol

e foi implementado a partir da seleção de três municípios em regiões metropolitanas

brasileiras: Região do Nacional, em Contagem (MG), Bairro Itinga, em Lauro de Freitas

(BA) e Grande São Pedro, em Vitória (ES), dentre 82 municípios inscritos no edital do

Programa, por meio dos prognósticos do IDH e outros índices.

Ao investigar os prognósticos e metodologias adotadas especificamente na

região da Grande São Pedro (ES) por meio de documentos, vídeos e também após

visitar a Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória, que recebeu o

Programa Conjunto, pude ter maior domínio sobre os empreendimentos que estavam em

jogo na abordagem para aquele espaço. Além da metodologia da segurança cidadã –

uma modalidade da segurança humana adaptada à América Latina –, práticas da Justiça

Restaurativa também integraram o Programa Conjunto e fazem parte de um esforço do

PNUD em introduzi-la no Brasil, em meados dos anos 2000. Toda grandiloquência

construída no itinerário de carreiras bem sucedidas de gestores planetários acabava na

disseminação de pequenos tribunais compartilhados por policiais, assistentes sociais e

habitantes das comunidades nos rincões mais miseráveis do planeta, como pude ver na

periferia de Vitória.

Tida como forma alternativa de responder aos chamados crimes, a Justiça

Restaurativa busca a restauração da chamada vítima e do identificado como infrator,

tendo como árbitro principal a comunidade dos envolvidos. Porém, mostra-se, para

além de complementar, fortalecedora e ampliadora do próprio sistema penal, uma vez

que sua aplicação parte, primordialmente, da admissão por parte do considerado

culpado do papel de infrator. Além disso, chamou-me a atenção o fato da eficiência e

abrangência de suas penalizações residir, ainda, quando reconhecida e aplicada como

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política social, atuando tanto em complementariedade às medidas socioeducativas como

em escolas e comunidades. No caso do Programa Conjunto Segurança com Cidadania,

a Justiça Restaurativa foi introduzida enquanto tentativa-tática do PNUD para a

restauração seletiva de um ambiente.

É diante da pretensa neutralidade constitutiva da abordagem do

desenvolvimento, humano e sustentável, que esta pesquisa expõe a eficiência do PNUD

em irradiar práticas penalizadoras mediante esforços em produzir humanos responsáveis

e resilientes. Finda-se na renovação das condutas obedientes entre àqueles outrora

classificados de perigosos e hoje produzidos como vulneráveis pelos índices

econométricos.

***

Esta pesquisa surgiu com o Projeto Temático do Nu-Sol (Núcleo de

Sociabilidade Libertária) Ecopolítica: governamentalidade planetária,

institucionalizações e resistências na sociedade de controle (2010-2015), coordenado

por Edson Passetti. Em 2012, interessei-me pelo tema de iniciação científica que

propunha pesquisar o PNUD no interior do fluxo direitos do Projeto, coordenado por

Salete Oliveira. Mais tarde, minha pesquisa abrangeu também estudo sobre o Programa

das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), que embora seja apresentado pela

ONU como principal autoridade global em meio ambiente, não mostra uma capacidade

tão grande de propagação e difusão como o PNUD. Pois a noção de ambiente excede

sua relação com a ecologia. Não diz respeito apenas às intervenções no meio e

constituição de técnicas de segurança para o governo da população, respectiva às

sociedades disciplinares. Conforme as indicações do Projeto Ecopolítica, a noção de

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ambiente está conectada aos novos dispositivos de segurança emergentes no pós-

Segunda Guerra Mundial, referentes não mais ao conjunto da população, mas à

humanidade a ser defendida no planeta como um ambiente a ser governado.

O PNUD se insere neste contexto como irradiador de práticas de governo que,

voltadas ao desenvolvimento humano e sustentável, mostram sua importância como

orientador e replicador de políticas, produtor de condutas, construtor de conceitos e

abordagens fundamentais para a governança global, analisadas aqui como componentes

das tecnologias de governo em uma governamentalidade planetária. Nesse sentido, O

método genealógico proposto por Michel Foucault propiciou uma análise meticulosa e

paciente, de forma a atentar aos acontecimentos onde não parece haver história, ou nada

além da História oficial em meio aos grandiosos esforços e planejamentos da transição

de um tempo de guerra para um tempo de paz.

O pós-Segunda Guerra Mundial acarretou em redimensionamentos e extensão

dos direitos e da segurança pensados então em âmbito planetário, voltados a uma

tentativa de bloqueio do racismo de Estado e seus limites, com o nazismo. A criação da

ONU com a Carta de São Francisco, em 1945, e a Declaração Universal dos Direitos

Humanos de 1948, como resposta aos horrores da guerra, marcaram uma nova forma de

pensar no desenvolvimento dos humanos em consonância com seus ambientes e com o

planeta como um corpo a ser gerido.

O primeiro capítulo desta dissertação, Racionalidade neoliberal e as modulações

de uma estratégia para o desenvolvimento, partiu dos programas que permearam o

planejamento de reconstrução europeia ainda ao final da Segunda Guerra Mundial em

meio às revisões do liberalismo e as políticas voltadas à construção da paz planetária.

Interessou atentar para os delineamentos e afinamentos da racionalidade neoliberal

emergente no pós-guerra, aliada às transformações das políticas internacionais e uma

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pretensa neutralidade ancorada na paz democrática. Neste período, há a emergência das

grandes organizações internacionais voltadas ao desenvolvimento, das quais o PNUD

mostra-se fundamental.

Ao pensar na formação do PNUD, emergente da fusão de outros dois

organismos da ONU – o Programa Expandido de Assistência Técnica e o Fundo

Especial –, interessou-me investigar as pessoas que contribuíram em meio aos esforços

de configuração de sua abordagem, tentativas e estratégias voltadas ao desenvolvimento.

Não como sujeitos de uma história, mas como pontos pelos quais o poder transita e se

irradia, sem restringir-se a um espaço delimitado. Não trata, também, de julgar quais

seriam as pessoas mais adequadas ou os meios mais justos e democráticos, mas sim

descrever os itinerários dos fluxos de governo no planeta e seus estatutos de produção

de verdade.

Foram investigados, assim, encontros, itinerários e trânsitos de especialistas e

personalidades do desenvolvimento no âmbito da produção do PNUD, que contribuíram

para a construção e transformação de suas políticas, conceitos e abordagens afeitas, cada

vez mais, às formas de governo do e no planeta. Foram nas grandes figuras advindas do

planejamento em tempos de guerra, de renomadas universidades; empresário, prêmios

Nobel que estiveram direta ou indiretamente ligados às modulações do PNUD como

principal agência da ONU para o desenvolvimento, que pude perceber o amplo leque de

formações – à esquerda e à direita –, experimentos e tentativas na composição da força

de irradiação deste Programa em todo o planeta.

Pela analítica genealógica, a pesquisa se afastou da busca pela origem, como

começo histórico preservado das coisas (Foucault, 2012: 18), e da busca pela verdade,

pelos acertos descritos nas biografias, nos documentos oficiais. Prosseguiram-se os

erros, as tentativas, as disputas de verdades que evidenciam suas modulações, afeitas

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cada vez mais ao compartilhamento de práticas de governo e descentralização

administrativa alinhadas à governamentalidade planetária, que, porém, não prescinde

de centralizações e do fortalecimento do Estado.

O segundo capítulo, Governamentalidade planetária e as abordagens do

desenvolvimento, perseguiu por tais tentativas na composição de novas abordagens

construídas pelo PNUD. A segurança e o desenvolvimento encontraram delineamentos

mais acabados principalmente após o período enquadrado como Guerra Fria, quando,

calcados no humano, passaram a ser concebidos não mais de forma restrita ao formato

dos Estados, mas irão perseguir por virtuais ameaças atribuídas a regiões específicas, e

portanto passíveis de intervenções em prol da configuração de um ambiente planetário

sustentável.

O grande instrumento do PNUD nos anos 1990, tanto na identificação destes

ambientes como na construção de suas vulnerabilidades, será o Índice de

Desenvolvimento Humano (IDH), criado pelos Prêmios Nobel Mahbub ul Haq e

Amartya Sen. O IDH foi implementado pelo PNUD juntamente com a criação dos

Relatórios de Desenvolvimento Humano (RDH) anuais que avaliam o que é construído

como os principais problemas de cada país em termos de promoção do desenvolvimento

humano em âmbito interno e em consonância com as diretrizes globais da ONU.

O IDH evidencia-se como instrumento tático fundamental na

governamentalidade planetária no que concerne, tanto aos prognósticos e avaliações

destinadas aos mais delimitados ambientes considerados vulneráveis, como na produção

de condutas resilientes em prol da restauração destes espaços. É um empreendimento

que auxilia um grande leque de políticas sociais, envolvendo os considerados

beneficiários destas políticas, e dando preferência à gestão compartilhada,

principalmente entre Estados, ONGs, sociedade civil, institutos, fundações,

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universidades, etc., muitas vezes orientados ou via cooperação técnica de Programas

como o PNUD.

Nos anos 1970, o PNUD irradiou-se e expandiu suas políticas por meio de seus

Representantes Residentes em todo o planeta, via assistência técnica para a liberalização

de mercados ou via cooperação técnica, sublinhando a capacidade e responsabilidade

dos países chamados “em desenvolvimento” em prover seu próprio desenvolvimento e

reconhecer suas especificidades. Após a chamada Guerra Fria e a dissolução do

denominado inimigo comum do chamado “mundo livre”, representado pelos EUA,

outros eventuais inimigos passaram a ser construídos desde Estados considerados

falidos, concentrados principalmente na África, aos mais delimitados locais do planeta

construídos como focos de vulnerabilidades e identificados por índices como o IDH e

suas inúmeras variáveis acopláveis.

Assim como o PNUD, esta grande organização internacional para o

desenvolvimento com sua pretensa neutralidade, conseguiu introduzir-se nos mais

remotos ambientes ao redor do planeta, interessou-me adentrar num destes mesmos

espaços para mapear o limite e o começo de suas políticas.

O terceiro e último capítulo desta dissertação, Resiliência e penalizações

restaurativas: governo dos vulneráveis no planeta, mostra o funcionamento do IDH no

que diz respeito à construção de seus prognósticos, e também em relação à sua

eficiência e operacionalização do que estará em jogo para melhorar um ambiente

identificado como de alto grau de vulnerabilidade.

Na América Latina, o enfoque dado pelo PNUD para a promoção do

desenvolvimento humano sustentável baseia-se na chamada segurança cidadã, que

estabelece a construção de uma cidadania integral para a prevenção e controle da

denominada violência na região. No caso do Programa Conjunto da ONU Segurança

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com Cidadania na região da Grande São Pedro, em Vitória (ES), a segurança cidadã

aliou-se à Justiça Restaurativa, enquanto metodologias de seus projetos. As práticas

mediadoras e penalizadoras da Justiça Restaurativa recaíram sobre um ambiente inteiro,

classificado pelo IDH e suas derivações como proliferador de vulnerabilidades e,

portanto, inseguro. Marcado pelo signo da falta numa economia política da escassez que

ultrapassa as medições materiais, a Justiça Restaurativa procura terrenos profícuos para

disseminar-se.

Este experimento local de construção de resiliência em prol da redução de

vulnerabilidades, partindo desde os esforços para a construção da paz democrática no

pós-Segunda Guerra aos seus novos contornos após a chamada Guerra Fria, evidencia

seu alinhamento com as diretrizes globais para um planeta seguro aos fluxos políticos,

liberais e de mercado, por meio da pacificação das relações sociais. Pela gestão das

vulnerabilidades, de forma intrínseca à seletividade do sistema penal, o PNUD e seu

humanismo sustentável não pretendem acabar com a violência e nem estancá-la em seus

infindáveis índices, mas produzir, de forma racionalizada, penalizações com foco nos

alvos identificados pelos mesmos.

A violência segue como atributo central dos Estados na abertura do século XXI e

todo esse aparato de medições, mediações e restauração renova a cultura do castigo e

segue escorada na democratização do tribunal, fazendo da política tecnologia especifica

de gestão da miséria e mortificação de gente.

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1. RACIONALIDADE NEOLIBERAL E AS

MODULAÇÕES DE UMA ESTRATÉGIA PARA O

DESENVOLVIMENTO

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O tom preponderante dado às pesquisas sobre o PNUD no Brasil aborda seu

papel em meio às organizações internacionais voltadas ao desenvolvimento analisando a

interligação entre seus conceitos, de forma a demarcar uma evolução de seus

instrumentos e respectiva capacidade de governabilidade – como a capacidade de

governar por meio das condições necessárias e promover equilíbrios políticos.1 Este

trabalho, ao apartar-se deste tom, não procura encontrar conveniências e incongruências

na abordagem do PNUD, abrangências e limitações na implementação de suas políticas,

em vias de melhorar seu sucesso como principal agência da ONU para o

desenvolvimento.2 Algo bastante evidente no que concerne aos trabalhos sobre o Índice

de Desenvolvimento Humano (IDH), maior empreendimento do PNUD na década de

1990 e seu principal instrumento de prognósticos para orientar a implementação de

projetos.

Trabalhos nas áreas de engenharia, administração e contabilidade contêm grande

acervo de produção voltada à melhoria e refinamento do IDH, pensando num modelo

brasileiro de gestão de gastos públicos e, principalmente, na sua eficiência em termos de

investimentos em saúde e educação. Nas áreas de economia política também são feitas

propostas de aprimoramento e melhoria técnica, a partir da abordagem do bem-estar e

das capacidades proposta por Amartya Sen, um dos idealizadores e grandes propulsores

do IDH.3

1 Ver: Nogueira, 2001. 2 Ver: Rocha, 2007. 3 Ver: Bonfim, 2012 e Marques, 2006. Para além dos estudos acadêmicos, o conceito de desenvolvimento humano de Amartya Sen e o IDH são utilizados como parâmetro de programas nacionais, como o Programa Nacional de Direitos Humanos-3, associando desenvolvimento à defesa dos direitos humanos. Especialmente indicado como referência em programas ligado à Justiça Criminal, como expresso no “Objetivo Estratégico III: Utilização de modelos alternativos de solução de conflitos” (p. 177). Ver: SEDH. PNDH-3. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/assuntos/direito-para-todos/programas/pdfs/programa-nacional-de-direitos-humanos-pndh-3. Acesso em: 15/10/2016.

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Outros trabalhos de pesquisa assumem uma posição crítica ao PNUD, alegando

seu exercício em meio à configuração de uma ideologia hegemônica liberal e capitalista.

Critica-se o significado do termo “desenvolvimento” como associado ao progresso

histórico, por vezes alegando seu desacordo com a essência humana4. Muitas críticas

ocorrem em torno dos fundamentos que orientam as políticas sociais, como as de

combate à pobreza global assumida pelo PNUD e o que seria um determinismo

econômico com base capitalista nas relações internacionais, que prisma por uma forma

individualista de pensar as funções econômicas de alívio da pobreza.5

Percebe-se, a partir de então, redimensionamentos da nuance ou disputa entre

uma ancoragem liberal e uma ancoragem realista afeita à perspectiva marxista. Ainda

após a Primeira Guerra Mundial, o então presidente dos EUA, Woodrow Wilson (1913-

1921), preconizava a criação da Liga das Nações, de 1919, como um projeto de

cooperação liberal com quatorze pontos, levando em conta negociações entre os Estados

como um planejamento para a paz global. A proposta liberal de Wilson influenciou,

mais tarde, centros universitários que marcam o início da área de Relações

Internacionais, que atualizaram suas perspectivas também pela leitura de Immanuel

Kant (Rodrigues, 2010: 21). Em oposição às concepções de paz liberais, e tendo em

vista a emergência da Segunda Guerra Mundial, o chamado realismo denunciava a

utopia e idealização da paz de modo a pensar pacificações mais eficientes e temporárias,

evocando autores como Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes (Idem: 20).

No âmbito das Relações Internacionais, conforme mostrou Thiago Rodrigues,

ambas as ancoragens inseridas nesta disputa vislumbram a política como sinônimo de

paz e o equilíbrio de poder entre os Estados, almejando evitar a guerra. De ambos os

4 Sob a ótica marxista e heideggeriana sobre o desenvolvimento, ver: Tinti, 2014. 5 Ver: Mauriell, 2008.

Page 23: 1. DISSERTAÃ⁄Ã…O FINAL

23

lados, almeja-se a preservação e fortalecimento dos Estados e a ordem de suas relações

(Ibidem: 23).

A presente pesquisa busca mapear as relações de poder que se refazem

continuamente em meio aos ideais de guerra ou paz que transitam no momento da

emergência e composição das organizações internacionais alinhadas à racionalidade

neoliberal, na qual o PNUD está situado. Por meio da análise genealógica, opondo-se às

significações puras e ideais, essa pesquisa realiza um mapeamento, ainda ao final da

Segunda Guerra Mundial, dos trânsitos, encontros, discussões e críticas que permearam

as revisões liberais em meio à transição para a paz. De forma atenta aos detalhes,

almejou-se apreender, não uma evolução, mas as ancoragens de distintos papeis e

diversas tentativas-táticas que compuseram e compõem uma estratégia voltada ao

desenvolvimento, do planejamento de reconstrução pós-guerra e reconversão dos

veteranos de guerra aos programas de cooperação técnica.

Apartando-se da busca pela origem, não se pretende refazer ligações em vistas

de encontrar características gerais que pressuponham uma evolução do passado ainda

presente, mas perseguir, pela proveniência [herkunft] (Foucault, 2012b: 20), os cálculos,

as tentativas, os erros e falhas que constituem, fragilmente e de forma não permanente,

uma abordagem de vida, uma maneira de pensar. Já a emergência [entestehung] (Idem:

23), tida como ponto de surgimento, interessa como lugar de afrontamento. Entende-se,

diferentemente da metafísica ou da tradição racionalista, não a culminação destes

embates numa síntese ou reciprocidade universal acordada, mas o prosseguimento do

jogo de dominações: “o desejo da paz, a doçura do compromisso, a aceitação tácita da

lei, longe de serem a grande conversão moral, ou o útil calculado que deram nascimento

à regra, são apenas seu resultado” (Ibidem: 25).

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24

Este primeiro capítulo, ao analisar a emergência da racionalidade neoliberal em

meio às revisões liberais e planejamentos pós-guerra que não se atém às diferenças

ideológicas, não ocupa-se da neutralidade do historiador que pretende nada deixar

escapar. Não lança mão de uma verdade surpreendente no sentido de revelar aquilo que

deve permanecer intacto, ou apresentar uma evolução de ideais na tentativa de

contribuir com melhorias, mas atenta-se às estratégias, efeitos de dominações, sujeições,

assujeitamentos e diferentes interesses que configuram hoje uma governamentalidade

implicada nos mais diversos espaços do planeta, da qual o PNUD evidencia-se como

importante irradiador.

O primeiro movimento deste capítulo, “guerra, mercado, organizações

internacionais e uma trajetória”, situa o contexto de emergência da racionalidade

neoliberal em meios às críticas e revisões dos planejamentos pós-guerras mundiais e da

formação e crescimento de organizações internacionais voltadas para o

desenvolvimento. Percorre-se pontos da trajetória de Paul Gray Hoffman, empresário,

veterano de guerra, e um dos grandes idealizadores do Plano Marshall, bem como de

programas de reconversão para a paz no pós-guerra. Hoffman esteve bastante próximo

dos encontros e discussões em torno da revisão do liberalismo europeu e estadunidense,

e, na década de 1960, foi nomeado o primeiro administrador do PNUD.

O segundo movimento, “a emergência de uma racionalidade neoliberal e seus

itinerários”, apresenta os apontamentos de Michel Foucault sobre a configuração do

neoliberalismo estadunidense e alemão e a emergência da governamentalidade

neoliberal, pensando-a como bastante propícia ao crescimento de organizações

internacionais e fundações filantrópicas, com pretensa neutralidade e ancoradas na

promoção de uma paz democrática. O movimento também expõe a intensificação da

necessidade de construção de figuras mediadoras e espaços de mediações como formas

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25

de encaminhar os problemas e os chamados conflitos no plano internacional, mas não

apenas entre as nações (como na precedente Liga das Nações), mas também inter-

nações, sob o ideal da paz. Algo que se mostrará presente não apenas nas políticas

estatais, mas, sobretudo, como se verá ao longo de todo trabalho, na conduta dos vivos

em todo planeta sob o signo comum de humanos.

O terceiro movimento deste capítulo, “ecopolítica do planeta e o espraiamento

das grandes organizações internacionais”, busca acompanhar o crescimento e a difusão

destas organizações internacionais. Expõe-se a ultrapassagem da biopolítica da

população indicada por Foucault para situar a emergência da ecopolítica do planeta.

Esta noção, desenvolvida por Edson Passetti, analisa a emergência de uma nova

governamentalidade no pós-Segunda Guerra Mundial não restrita ao estudo do ambiente

ecológico, mas relativa à possibilidade de configuração do planeta como novo objeto de

governo. Nesse sentido, instâncias como o PNUD e instrumentos como o IDH se

mostram cada vez mais decisivos.

Em seguida, no último movimento, “os especialistas do desenvolvimento pelo

planeta”, são apresentadas algumas procedências do PNUD e as questões que estavam

em jogo na identificação de problemas ao redor de todo o planeta. São acompanhadas

algumas metamorfoses em relação à forma de implementação de programas e projetos

para o desenvolvimento, da assistência à cooperação e compartilhamento de

responsabilidades. Nesse sentido, interessa mostrar os investimentos do PNUD em

alguns países, principalmente na década de 1970, por meio do trânsito de seus

representantes e especialistas do desenvolvimento imbuídos de capital humano. Este

movimento também busca evidenciar o funcionamento do neoliberalismo enquanto uma

racionalidade no âmbito do PNUD, ao aglutinar pessoas de diferentes formações

políticas na composição de uma estratégia.

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26

1.1. guerra, mercado, organizações internacionais e uma trajetória

planejamentos e revisões liberais

Pouco antes do início do período enquadrado como Guerra Fria e do término da

Segunda Guerra Mundial, em 1940, Paul Gray Hoffman, o então presidente da empresa

automobilística Studebaker Corporation6, convocava a todos os cidadãos estadunidenses

a participar do que declarava ser o principal objetivo da década que se iniciaria: a defesa

do país. Em discurso proferido na Câmara do Comércio de Iowa, EUA, anunciava:

Tudo deve dar lugar a uma defesa adequada para o nosso país. (...) A última guerra demonstrou claramente para os empresários o caráter efêmero dos lucros de guerra. Um raciocínio comercial egoísta levaria negócios para longe, e não em direção aos acordos governamentais. Nenhuma determinação industrial de que a América deve se fortalecer rapidamente tem sido alimentada por algo muito mais atraente do que o fato de os lucros impulsionarem a proteção e a segurança das nossas instituições livres (Hoffman, 1940: 189).

Seu discurso remete ao fato de, em julho daquele ano, o Congresso ter aprovado

uma lei que dava ao Governo o direito de recrutar industriais. Porém, Hoffman assumia

uma crença na capacidade da indústria privada em construir uma defesa inexpugnável

para a América e considerava que aqueles que favorecessem o controle governamental

da indústria, por serem seduzidos em decorrência de um abalo emocional pós-Guerra,

ou por tomarem o Estado como autoridade suprema, a fim de alcançar máxima

produtividade, estariam aderindo a um totalitarismo em que a força e o medo

predominariam ao serem vistos como “mais eficazes do que a liberdade e a esperança de

recompensa” (Idem: 190). O empresário assimilava tal opção pelo recrutamento

6 Empresa fundada em 1852, originalmente produtora de vagões para fazendeiros, mineiros e as forças armadas, que incorporou o negócio automotivo em 1902. Cf. Studebaker Brothers. Disponível em: http://www.germanheritage.com/biographies/mtoz/studebaker.html. Acesso em: 13/06/2015.

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27

industrial à política de Hitler na Alemanha nazista, reiterando que os povos da

“América” jamais tolerariam a utilização de um método totalitário.

O papel do governo, para Hoffman, deveria ser o de assistir e proteger o capital,

o trabalhador e o cliente envolvidos em um empreendimento, para que exercessem

pressão razoável sobre sua gestão. Os direitos dos cidadãos também deveriam ser

assegurados pelo Estado para que pudessem exercer o princípio da livre empresa,

mantendo vivas a liberdade e a esperança de recompensa em seus negócios como

máximas constitutivas da dinâmica estadunidense:

Estas grandes dinâmicas têm sido trabalhadas aqui na América desde 1776. Nós sabemos que os resultados globais que têm sido produzidos causam inveja a todos os outros povos. Aqui na América nós compartilhamos continuamente o mais alto padrão de vida do mundo. Com seis por cento da população mundial, temos acumulado 45% da riqueza mundial (Ibidem: 191).

Tomava como referência a declaração feita pelo ex-presidente Woodrow Wilson

de que “a mais elevada e melhor forma de eficiência é a cooperação espontânea de um

povo livre”7. Ele reiterava a união de uma cultura, de uma forma de pensar e de fabricar

condutas diariamente que fortalecessem um “modo de vida” de liberdade conectada a

recompensas. Nesse sentido, a cooperação não estaria apartada da concorrência, em

virtude do não monopólio econômico e por ser, segundo Hoffman, a vida, não apenas

do comércio, mas também do próprio sistema de livre empresa (Ibidem: 192) e, por

extensão, lógica da vida social e política.

O empresário era também considerado porta voz do “internacionalismo liberal”,

principalmente enquanto esteve bastante próximo da presidência de Dwight Eisenhower

(1953-1961). Tanto como presidente da Studebaker Corporation como quando 7 Woodrow Wilson apud Paul G. Hoffman. “Business and Conscription: Industry Cannot Be Conscripted Unless Totalitarianism Prevails” in Vital Speeches of the Day. New York, 1940-1941, p. 191. Disponível em: http://www.ibiblio.org/pha/policy/1940/1940-12-13a.html. Acesso em: 06/03/2015.

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28

presidente do Fundo para a República, era amigo pessoal de Eisenhower e de muitos

membros da administração do país. Era conhecido por incitar o governo a “travar a paz

por meio de políticas esclarecidas” (Raucher, 1986: 120). Mais especificamente,

segundo o historiador da Wayne State University, Alan Raucher, Hoffman almejava

expandir a economia mundial por meio de políticas estadunidenses que combinassem a

liberalização do mercado com ajuda econômica para o desenvolvimento de países,

principalmente africanos e asiáticos; o que, em sua visão, fortaleceria a democracia em

âmbito global e interromperia a propagação do comunismo. Hoffman teria procurado

alertar a presidência, o Congresso e o público estadunidense para as mudanças que

varriam a Ásia e a África, não querendo que os EUA ficassem ao lado de “reacionários

e imperialistas obstruindo a busca do progresso e da justiça social” (Ibidem: 120). Com

esse intuito, Hoffman apoiou-se largamente sobre os novos especialistas em

desenvolvimento econômico nos anos 1950, em particular no trabalho colaborativo de

economistas do MIT (Massachusetts Institute of Technology), como Max F. Millikan,

que havia participado da equipe do Comitê de Harriman8, e W. W. Rostow, que

integrara a Comissão Econômica para a Europa.

De acordo com Raucher, “sofisticadamente anti-comunistas”, eles insistiam que

os EUA adotassem liberdade de mercado simultaneamente à políticas de ajuda

econômica aos países pobres, em prol de uma evolução do sistema operacional estável e

eficaz de sociedades democráticas no exterior. O que, por sua vez, propiciaria a

expansão econômica dos EUA mundialmente sob o pretexto de fortalecimento da

democracia e interrupção do comunismo. Para Raucher, “a América não poderia buscar

8 William Harriman foi Secretário do Comércio durante a presidência de Harry Truman nos EUA (1945-1953).

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29

objetivos de curto prazo para ganhar amigos ou para a criação de lucros rápidos”

(Ibidem: 121).

Em 1942, Paul Hoffman, William Benton – co-fundador da agência de

publicidade Benton & Bowloes – e Marion B. Folsom – tesoureiro da empresa Estman

Kodak Company –, lideraram a fundação do Committee for Economic Development

(Comitê para o Desenvolvimento Econômico – CED, na sigla em inglês). Segundo

apresentação oficial, seu objetivo era realizar a transição econômica dos EUA de um

tempo de guerra para um tempo de paz, após a Segunda Guerra Mundial.9 Já Hoffman

apresentava o CED como uma organização privada, sem fins lucrativos, com o objetivo

de encorajar 2 milhões de pessoas a tomarem decisões inteligentes, estimulando o

planejamento do pós-guerra. O CED organizava empresários locais e líderes

comunitários em cidades e municípios em todos os EUA, a fim de que comitês

comunitários fossem organizados de maneira autônoma, e de modo a estimular e assistir

os trabalhadores em suas cidades quando realizavam seus planejamentos individuais

que provessem “empregos úteis e construtivos para quando os veteranos [de guerra]

voltassem” (Hoffman, 1944: 67).

Eram produzidos relatórios de campo regulares para avaliar o sucesso dos novos

empreendimentos. Em Richmon, Virginia, criou-se o Richmon Business Clinic, uma

articulação do CED em que o veterano de guerra dialogava com uma equipe de três

negociantes locais experientes retirados de um grupo rotativo de voluntários. Estes

determinariam suas qualificações em empreender um negócio ou seu encaminhamento a

um arquivo de oportunidades de emprego e requisitos de fornecimento de pessoal

9 Cf. Committe for Economic Development. Disponível em: https://www.ced.org/about/about-ced. Acesso em 15/05/2015.

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30

mantido pelas 167 empresas-membro do Richmond Sales Executive Club e outras

companhias cooperadas.

Segundo Hoffman, com o CED almejava-se o “bem estar geral”, e não o bem-

estar de um grupo político ou econômico específico. O planejamento pós-guerra carecia

de políticas fiscais, provisões para o término dos contratos de guerra, a supressão dos

controles da guerra sobre a produção e a distribuição, os créditos e o comércio exterior,

para além de uma relativa prosperidade econômica (Ibidem: 69-70).

O CED existe até hoje e dentre seus principais marcos destaca-se a influência de

seu trabalho que culminou, entre 1944 e 1946, no acordo de Breton Woods, que fundou

o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Em 1948, o CED lançou

um acordo político que viria a se tornar o Plano Marshall: An American Program of

European Economic Cooperation (“Um Programa Americano para a Cooperação

Econômica Europeia”), assinado em 3 de abril de 1948 pelo presidente Harry S.

Truman. Mais tarde, em 1957, o CED assinou um termo de longo prazo, dando início à

Assistência de Desenvolvimento Econômico, “para apoiar o crescimento econômico e

encorajar a independência das nações subdesenvolvidas do mundo livre”10. Na história

oficial do CED, são apresentados alguns de seus feitos considerados relevantes

globalmente: em 1968, realizou a Reforma da Escola Americana, investindo em

inovação na área da educação; em 1985, realizou o projeto “Investindo em Nossas

Crianças”; em 1988, o presidente do CED, Brad Butler, liderou a primeira série da

Cúpula de Negócios e Educação; em 2002, fundou o Business Supports Early Education

(“Suportes aos Negócios em Educação Infantil”) e investiu no envolvimento das

empresas em educação da primeira infância, lançando o Woman on Corporate Boards

Project (“Projeto Mulheres em Quadros Corporativos”) para promover a

10 Idem.

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31

competitividade e inclusão das mulheres no mercado de trabalho estadunidense; em

2013, lançou o Sustainable Capitalism Project (“Projeto Capitalismo Sustentável”) para

encorajar líderes empreendedores a terem um papel maior em “responsabilidades

sociais”.11

Segundo a Fundação George Marshall, de 1945 a 1947 os EUA já contribuíam

com a recuperação econômica europeia por meio de ajuda financeira direta. Em janeiro

de 1947, o então presidente dos EUA, Harry Truman, nomeou secretário de Estado

George Marshall – considerado o arquiteto da vitória do país na Segunda Guerra

Mundial.12 Em junho do mesmo ano, o Departamento de Estado, sob liderança de

Marshall, publicou o que seria o Plano Marshall, oficialmente intitulado Programa de

Recuperação Europeia, destinado a reconstruir as economias nacionais da Europa

Ocidental devastadas pela guerra e a combater o avanço do comunismo na região.13 De

acordo com a história oficial do Plano Marshall, George Marshall, Ernest Bevin –

Primeiro Ministro britânico – e Georges Bidault – Primeiro Ministro francês, marcaram

uma conferência em Paris para discutir as ideias do Plano.14 Os governos europeus

estariam com dúvidas em relação aos programas de bem-estar social do governo dos

EUA em meio à propagação de regimes socialistas na Europa. O Ministro do Exterior

soviético, Vyacheslav Molotov, foi convidado para a Conferência de Paris, bem como

alguns países da esfera de influência soviética, como a Polônia e a Tchecoslováquia,

11 Idem. 12 Cf. Marshall Foundation. The Marshall Plan history. Disponível em: http://marshallfoundation.org/marshall/the-marshall-plan/history-marshall-plan/. Acesso em 04/07/2015. 13 Idem. 14 Cf. Marshall Foundation. Marshall Plan speech. Disponível em: http://marshallfoundation.org/marshall/the-marshall-plan/marshall-plan-speech/. Acesso em 04/07/2015.

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32

mas não compareceram devido à “rotulagem do imperialismo econômico americano do

Plano Marshall”15.

Em novembro, Truman convocou uma sessão especial do Congresso onde

apresentou o projeto de lei Programa de Recuperação Europeia, solicitando 17 bilhões

de dólares para o período de 1948 a 1951, e Marshall passou a se concentrar na

obtenção da Lei de Cooperação Econômica – para a autorização e financiamento do

Programa de Recuperação Europeia –, insistindo que o Programa reduziria a expansão

da influência soviética.16 Imaginava-se um “espectro do comunismo” tomando conta

principalmente da Itália e da França, na Europa Ocidental, após o lançamento do

chamando manifesto Kominform – acrônimo da organização internacional de vários

Partidos Comunistas da Europa liderada pelo Partido Comunista da União Soviética –,

em que se comprometiam a destruir o capitalismo mundial. A organização havia se

formado em outubro de 1947, poucos dias após o encontro entre partidos comunistas

europeus, convocado por Stalin para resolver divergências entre os governos do Leste

Europeu quanto ao comparecimento na Conferência de Paris (G. I., 1950).

Vyacheslav Molotov propôs o Plano Molotov, em 1947, para fornecer ajuda e

reconstruir os países da Europa Oriental, que se expandiu e culminou, em 1949, no

Comecon (tradução do russo para Council for Mutual Economic Assistance – “Conselho

para Assistência Econômica Mútua”). Além da União Soviética, faziam parte do

Comecon a Bulgária, Tchecoslováquia, Hungria, Polônia, Romênia, Albânia e a

Alemanha Oriental, incluindo, mais tarde, Mongólia, Cuba e Vietnã. Além disso, vários

países, da Etiópia à China, tornaram-se participantes sem direito a voto. Dentre algumas

razões para a emergência do Comecon está a guerra econômica entre a União Soviética

15 Idem. 16 Ibidem.

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33

e a Iugoslávia.17 O Comecon almejava constituir-se, ao lado do Cominform (Communist

Information Bureau), como bloco da estrutura do Kremlin para controlar a Europa

Oriental e funcionar como contrapeso ao Plano Marshall e ao combate ao comunismo

soviético (Ibidem: 142).

O Projeto para a Lei de Cooperação Econômica foi autorizado e Marshall

insistiu que o Programa fosse administrado por um órgão autônomo dirigido por uma

única pessoa. Paul Hoffman foi escolhido para o posto, ainda quando presidente da

Studebaker Corporation, e Marshall nunca interferiu no então estabelecido Economic

Cooperation Administration (“Administração de Cooperação Econômica” – ECA, na

sigla em inglês).18 O ECA era ligado ao Departamento de Estado e ao Departamento de

Comércio dos EUA, e possuía um escritório em cada um dos dezesseis países que

aderiram ao Plano Marshall. Após o término do Plano, o ECA foi substituído pela

USAID (United States Agency for International Development – “Agência dos Estados

Unidos para o Desenvolvimento Internacional”), vigente até hoje e atualmente

apresentada como “principal agência governamental dos EUA, focada na erradicação da

extrema pobreza global e na promoção do potencial a ser realizado por sociedades

democráticas e resilientes”19.

planos de paz para o “mundo livre”

Em discurso intitulado “Trade Restrictions and Peace”, proferido em janeiro de

1950, Hoffman apresenta seus planos para a reconstrução da Europa por meio do ECA.

Segundo ele, até a virada do século a Europa era um centro mundial de negócios e 17 Em 1948, o presidente da Iugoslávia, Josip Tito, rompeu decisivamente com Stalin, tornando a Iugoslávia um Estado comunista independente, além de solicitar ajuda estadunidense para a reconstrução do país pós-guerra (Lampe, Prickett e Adamovíc, 1990: 28). 18 Ibidem. 19 Cf. USAID. Who we are. Disponível em: https://www.usaid.gov/who-we-are. Acesso em: 15/03/2016.

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comércio incontestável, que entrou em colapso com o aumento do nacionalismo político

e econômico e a ascensão do nazismo, fazendo com que “as ferramentas do

nacionalismo em tempos de paz [fossem] convertidas em instrumentos de guerra

econômica; e, após o final das hostilidades, [se mantivessem] os instrumentos de guerra

econômica a serviço do nacionalismo” (Hoffman, 1950: 118). Considera que esse

estrangulamento do comércio intra-Europeu causado por restrições comerciais foi

responsável pela eliminação da competição nas indústrias de base europeias, causando

um deficiente e ineficiente uso dos recursos. Hoffman entendia que se o livre comércio

e uma competição mais viva houvessem prevalecido, a economia europeia teria se

mantido integrada, com livre fluxo de capital, e, assim, nem a Alemanha e nem qualquer

outro país teriam sido capazes de colocar a si mesmos em posição de sustentar um

efetivo ataque a seus vizinhos. Desse modo, para o empresário, não havia como a

Europa encontrar “segurança militar ou bem-estar econômico” sem o fim de tais

barreiras.

Nesse sentido, apontava ter sido a definição de medidas de emergência para

reavivar o comércio intra-europeu uma das primeiras coisas que a Organization for

European Economic Co-operation (“Organização para a Cooperação Econômica

Europeia” – OEEC, na sigla em inglês) fez, em 1948. O centro dessa organização era a

provisão de dólares advindos do ECA para que alguns países comprassem os excedentes

de outros. Sugeriu-se, inicialmente, que os países participantes deste plano tomassem

ações efetivas para remover o excesso de restrições comerciais e, posteriormente, para

eliminar a “prática doentia”, nas palavras de Hoffman, da dupla afixação de preços, a

fim de que se mantivessem os preços de exportação para combustível e material básico

em níveis maiores do que os preços domésticos (Idem: 121).

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35

Em 1951, ano seguinte ao seu discurso sobre a paz e as restrições comerciais,

ainda como administrador do ECA, Hoffman publicou o livro Peace can be won, no

qual centra-se sobre como promover a paz, tomando o Kremlin como o principal

inimigo do chamado free world (“mundo livre”), liderado pelos EUA. Na introdução do

livro, discorre sobre como dias após proferir uma palestra na Universidade de Wellesley

sobre a promoção da paz, deu-se conta de que preocupar-se com a paz parecia algo não

realista, uma vez que, naquele momento, norte-coreanos lançavam-se agressivamente

contra a República da Coreia, por exemplo. Na época, o Conselho de Segurança da

ONU (Organização das Nações Unidas) classificou o ataque como uma invasão não

provocada e disse a todos os membros que prestassem assistência para parar a agressão.

Segundo Hoffman, as forças que responderam ao chamado da ONU vieram largamente

dos EUA, e tensões atingiram seu clímax quando o Exército Norte-Coreano foi

reforçado por várias centenas de milhares de novas tropas – os “voluntários” chineses.

Conta que o presidente Truman, em 16 de dezembro de 1950, proclamou estado de

emergência nacional e que, apenas seis dias após o Victory Day, havia forte mobilização

dos homens estadunidenses, materiais e máquinas, fundidos com o poderio militar,

enquanto o Kremlin estaria olhando com avidez cada vez mais nítida para os campos de

petróleo no Irã e na Arábia Saudita. E não apenas na França e na Itália, mas no Líbano,

Brasil e Indonésia, chamava atenção para uma “agitação comunista, subversão,

propaganda e sabotagem (...) crescendo em velocidade e em escopo. Como uma nuvem

negra sobre a Europa Ocidental, (...) a ameaça de um Exército Vermelho marchando

para o Atlântico” (Hoffman, 1951: 14).

Desse modo, apontando para a ameaça de uma terceira guerra mundial, Hoffman

defendia a necessidade dos EUA adentrarem em um programa claramente definido para

a paz com direção à condução dessa guerra: “devemos travar uma guerra não para

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36

ganhar a guerra, mas para ganhar a paz” (Idem: 14). Justifica, portanto, esta disputa pelo

monopólio da violência por meio da condução de uma guerra em nome da paz mundial,

como uma obrigação “como humanos sãos e civilizados” (Ibidem: 14) para evitar uma

guerra generalizada provocada pelo comunismo. Enfatizava, ainda, que a União

Soviética teria realizado e ainda realizava um tipo completamente novo de guerra

mundial contra os não-comunistas para alcançar seu objetivo de conquista do mundo,

em que a frente militar seria apenas uma de outras três frentes: econômica, política e

psicológica – e por isso muito mais perigosas e menos visíveis do que uma guerra

puramente de devastação, violência física e destruição de exércitos em confronto.

A frente militar seria uma imensa máquina de guerra comandando, dentro de seu

território, o potencial militar de seus satélites na Europa Oriental e seus parceiros na

Ásia. A frente econômica seria movida por investimentos em fazendas e fábricas em

todas as nações em torno da União Soviética. Segundo Hoffman, em áreas fora de seu

controle direto, ela procurava perturbar e prejudicar a estabilidade econômica e o

progresso, provocando greves, sabotagens e a desaceleração e exploração dos

trabalhadores descontentes com seus baixos salários, assim como o ressentimento dos

camponeses contra o aluguel elevado de suas terras e a fome (Ibidem: 14).

Politicamente, a União Soviética posicionaria nação contra nação para destruir alianças

e fidelidades dentro do “mundo livre”, usando seus apoiadores na ONU para impedir

qualquer esforço em direção à cooperação internacional. Já a frente psicológica se ateria

a gerar conflitos, suspeitas e desconfianças em todos os estratos sociais, ampliando

diferenças políticas e econômicas.

Para Hoffman, a realidade da segurança dos EUA estava inseparavelmente

ligada à de outras “nações livres”. Portanto, ele, que se afirmava isolacionista, diz ter

deixado de sê-lo ao viver as duas primeiras guerras mundiais e ao ver os novos

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37

totalitarismos se constituírem. Citando Walter Lippmann, situava ter aguçado e

cristalizado suas ideias referentes ao lugar da “América” nesse novo tipo de mundo

interdependente que emergia no pós-Segunda Guerra Mundial:

Devemos testemunhar o alvorecer do entendimento de que um novo poder existe destinado a ser sucessor de Roma e da Grã-Bretanha como os doadores da paz, e essa missão é preparar a si mesmo para o cumprimento deste destino. Me refiro, é claro, aos Estados Unidos da América (...). Não importa quantos Americanos hoje não gostem disso, eles não podem rejeita-lo. Sua grandeza, sua posição e seu poder dentre as pessoas da Terra implicam que aceitem seu destino (Walter Lippmann apud Paul Hoffman, 1951: 13-15).

Walter Lippmann foi um jornalista estadunidense crítico ao socialismo e

importante para a história do neoliberalismo. Neste caso, Hoffman se refere a uma série

de conferências proferidas por Lippmann, em 1938, na Universidade de Chicago. Um

ano depois fora realizado o Colóquio Walter Lippmann, em que se cruzaram agentes do

liberalismo tradicional europeu – como Wilhelm Röpke, e também referências do

neoliberalismo estadunidense como Friedrich Hayek e Ludwig von Mises –, e em que

se delinearam os princípios do que ficou conhecido como neoliberalismo.

A partir das elucubrações de Lippmann citadas por Hoffman, este estabelece

que, em 1938, os EUA assumiram um pensamento ilusório de neutralidade, mantendo-

se fora da guerra. Já após a Segunda Guerra, considera ter se evidenciado o fato de não

poderem mais abandonar a Europa e a Ásia e fazerem empreendimentos, como sempre

faziam, no que chama de “nossa grande ilha-continente” (Ibidem: 26).

Destaca ter aprendido em seu período como administrador do ECA que se os

EUA conduzissem efetivamente o papel de liderança mundial, deveriam “trabalhar com

o resto do mundo livre em uma base de parceria e união, fundada no respeito de visões e

interesses diferentes dos nossos” (Ibidem: 27). Como exemplo, destaca a parceria dos

EUA com a Turquia:

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38

Eu tremo só de pensar na reação deste líder orgulhoso e sábio do povo da Turquia se (como alguns dirigentes em “segundo plano” têm demandado) eu tivesse dito a ele que poderíamos continuar com a ajuda do Plano Marshall apenas se seus generais implantassem uma dúzia de divisões em determinado ponto e em determinado momento. Para ser firme, e até mesmo forte, não significa ser ditatorial; temos de manter sempre em mente que a essência da genuína liderança é compartilhar o poder com as pessoas ao invés de exercer o poder sobre as pessoas (Hoffman, 1951: 28).

A guerra contra a União Soviética era tida por Hoffman como uma postura de

defesa em vias de alcançar uma paz mundial estabilizadora, em que o Kremlin fosse

forçado a travar a paz com as outras nações, ou, citando o Primeiro Ministro britânico

Winston Churchill (1940-45 e 1951-55), em que os EUA pudessem negociar com o

Kremlin “desde que mantivessem sua força”.

“Primeiramente como homem de negócios”, Hoffman propunha um programa de

promoção e consagração da paz para que esta fosse durável, contra as contínuas

despesas da Guerra Fria ou de uma guerra generalizada, que reduzisse as taxas e o

balanceamento do equilíbrio dos EUA. A promessa de paz seria não apenas direcionada

à liberdade das futuras gerações do país, mas a todos os que estavam presos na União

Soviética, concluindo: “Apenas se abraçarmos essa oportunidade com fé em nós mesmo

poderemos manter a fé no homem. Apenas assim poderemos esperar constatar, quando

essa década de decisões terminar, que conformamos o início da primeira paz durável

que o homem já construiu” (Ibidem: 87).

A crítica ao Plano Marshall, como plano de recuperação europeia e de guerra ao

comunismo, veio em grande medida de economistas como Wilhelm Röpke, do

ordoliberalismo alemão, ao alegar que o Plano teria barrado a transição para o livre

mercado na Europa com a adoção de um planejamento central. Ludwig von Mises

também criticou intensamente o Plano Marshall, conforme artigo de 1952, quando

afirma que em um programa de governo o que importa não é a sua popularidade, mas a

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sua eficiência em termos de alcance ou não das políticas projetadas. Reitera que a

política do laissez-faire, antes de tudo, visa melhorar a vida das pessoas, mas sua falta

de sucesso é agravada devido às medidas socialistas e intervencionistas (von Mises,

1952). Defende que a curto prazo as condições de parte do povo podem ser melhoradas

por meio da expropriação dos empresários e capitalistas e pela distribuição do espólio,

porém tais incursões predatórias sabotam o funcionamento da economia de mercado,

que inclusive prejudicam as condições e esforços dos empresários “em fazerem as

massas mais prósperas” (von Mises, 1952).

Assim, estabelece que o Plano Marshall foi o pior método a ser adotado para

combater o comunismo, uma vez que dá aos beneficiários a impressão de que os EUA

só estão interessados na preservação do sistema de lucro, enquanto seus interesses

requerem um regime comunista. Os beneficiários embolsam este “suborno”, mas se

simpatizam mesmo com o sistema socialista: “os subsídios americanos tornam possível

a que seus governos ocultem parcialmente os efeitos desastrosos das várias medidas

socialistas que adotaram” (Ibidem). Países como a China e a Índia, por exemplo, teriam

sido beneficiados por alguns dos frutos do capitalismo de outros países, sem terem

adotado o modo de produção capitalista. Desse modo, ao impedir a entrada de capital

estrangeiro e a acumulação de capital nacional, o efeito da alta taxa de natalidade e a

ausência de aumento de capital resultaram no aumento de pobreza (Ibidem).

O Plano Marshall obteve críticas à esquerda, na época representada pela União

Soviética, por se apresentar como o fortalecimento do imperialismo estadunidense, bem

como por liberais, como von Mises, ao criticar o caráter centralizador e intervencionista

do Plano, por impedir uma real autonomia e liberdade de mercado. Porém, vê-se como,

desde o CED, que fora criado após a Segunda Guerra para “estimular” pessoas a

tomarem decisões racionais e expandir seus negócios e produtividade pensando na

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40

“transição para a paz”, havia a preocupação das organizações nascentes voltadas ao

desenvolvimento em introduzir práticas de “auto capacitação” e “auto

empreendimento”. Práticas estas que estarão conectadas e cada vez mais arraigadas e

afinadas não à ideologias, mas a uma forma de pensar, investir e se organizar referente a

uma racionalidade neoliberal. Além disso, esta racionalidade se fará adequada aos

tempos considerados de paz, prescindindo de grandes guerras pelo e para o poder. Em

nome do desenvolvimento e do humano como valor universal, estará muito mais afeita

às práticas que visem o compartilhamento de poder, ampliando e disseminando suas

relações.

1.2. a emergência de uma racionalidade neoliberal e seus itinerários

governamentalidade e neoliberalismo

No curso Nascimento da Biopolítica, proferido no Collége de France entre 1978

e 1979, Michel Foucault situa as crises do liberalismo que se manifestaram em torno de

John Maynard Keynes e de políticas intervencionistas como as do Welfare, introduzidas

por Franklin Roosevelt, que levaram a certas reavaliações nos EUA, antes e depois da

Segunda Guerra Mundial, mais precisamente ao final dos anos 1970 e início dos anos

1980. Segundo Foucault, as crises do liberalismo estão ligadas às crises da economia do

capitalismo, porém, saber como essas crises são geradas e como se manifestam não é

totalmente dedutível destes episódios, pois são crises do dispositivo geral da

governamentalidade (Foucault, 2004: 95) – entendendo que o Estado não é em si uma

fonte autônoma de poder, não é um universal, não tem uma essência, mas é o “efeito

móvel de um regime de governamentalidades múltiplas” (Ibidem: 106).

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Governamentalidade, para Foucault, relaciona-se às artes de governar

emergentes em meados do século XVI ao fim do século XVIII. Uma problemática do

governo – de si, do governo das almas e das condutas, do governo da família, etc. – teve

como grandes pontos de apoio a pastoral cristã, com o problema do governo das almas;

uma nova técnica diplomático-militar entre os Estados; e a polícia, como o cálculo e

técnica que visam a estabilidade e controle da ordem interna do Estado e do crescimento

de suas forças (Foucault, 2008: 146). O filósofo situa a emergência desta

governamentalidade no contexto em que os grandes Estados territoriais, administrativos

e coloniais ocupam o lugar das estruturas feudais, e quando reaparece uma literatura que

tem como ponto mais evidente Maquiavel – em um contexto de revoluções que

poderiam ameaçar o poder soberano sobre um Estado; contexto do problema da unidade

territorial da Itália e da Alemanha –, e posteriormente uma literatura anti-Maquiavel.

Esta, diferente da primeira em que o príncipe está em uma posição de exterioridade e

transcendência em relação ao seu principado, instalará a problematização de uma

relação ascendente e descendente do governo na medida em que, para ser capaz de

governar o Estado, deve-se saber governar a si próprio, sua família, etc. Nestas relações

de governo e administração, nesta continuidade de múltiplos governos, segundo

Foucault, o elemento central é a economia; uma economia política que permitirá ao

governo uma disposição certa e calculada das coisas, levando em conta acontecimentos

possíveis, entendendo que existe um fim adequado dentre diversos fins possíveis para

cada uma dessas coisas (Idem: 131). Diferente das leis soberanas impostas para a

obediência dos súditos, esta ruptura provocará uma certa disposição, uma utilização de

mais táticas do que leis, ou mais leis como táticas, para que uma finalidade seja

alcançada. Um deslocamento fundamental será que, enquanto na teoria jurídica do

soberano tem-se uma descontinuidade entre o poder do príncipe e outras formas de

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poder, as teorias derivadas das artes de governar procuravam estabelecer uma

continuidade – ascendente e descendente, entre quem governa o Estado e sua família,

seu patrimônio, suas relações, etc. (Foucault, 2012a: 281).

Ao lado dessa noção de governo como arte de governar, todo um conjunto de

análises e saberes que se desenvolveram, desde o fim do século XVI, ganhou amplitude

no que se concentrou precisamente como “estatística”, a ciência do Estado por

excelência (Ibidem: 138).

Dentre as razões que teriam impossibilitado a consistência dessa

governamentalidade antes do século XVIII, o filósofo aponta para as grandes revoltas e

crises financeiras que endividaram a política das monarquias ocidentais no fim do

século XVII; e o fato desta arte de governar não encontrar uma autonomia para se

desenvolver em meio ao domínio do problema do exercício da soberania como questão

teórica e de organização política.

O desbloqueio desta nova arte de governar, segundo Foucault, deu-se com a

emergência do problema da população, quando esta emerge como o próprio fim e

instrumento do governo (Ibidem: 139). A estatística, que funcionava de modo restrito

aos marcos administrativos, permite verificar que a população possui regularidades

próprias, como o número de nascimentos, de mortes, de doentes, de acidentes, etc. Não

que antes não houvesse preocupação com a população e com a obediência desta

população, mas esta era vista de modo negativo, relativa a questão de como se repovoar

um território após algum grande desastre ou como elemento de uma conquista político-

militar.

O Estado de polícia e sua prática, que até meados do século XVIII consistia em

uma disciplinarização geral dos indivíduos e do território do reino, será criticado pelos

economistas e fisiocratas da época a partir dos problemas da circulação dos cereais e a

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questão da escassez alimentar. Emergirá, com os fisiocratas, a percepção de que existe

um certo curso das coisas que não se pode modificar, ou que, precisamente por tentar

modificá-lo, por meio da regulamentação policial, agrava-se seus problemas. E a

população como objeto de governo não será mais pensada de acordo com a

numerosidade dos indivíduos trabalhando, pois será mais importante que este número

seja auto ajustável em função dos recursos que estão à sua disposição. Nessa razão de

governar emergente, o Estado agirá como regulador de interesses. O Estado e a

governamentalidade que lhe será prescrita, terão como princípio o respeito aos

processos naturais. Haverá uma intervenção da governamentalidade estatal limitada,

mas não de forma negativa; haverá um domínio “de intervenções possíveis, de

intervenções necessárias, mas que (...) muitas vezes não terão em absoluto a forma da

intervenção regulamentar. Vai ser preciso manipular, vai ser preciso suscitar, vai ser

preciso facilitar, vai ser preciso deixar fazer, vai ser preciso, em outras palavras, gerir e

não mais regulamentar” (Ibidem: 474).

Há a constituição de um saber de governo indissociável à constituição de um

saber de todos os processos que giram em torno da população, que passa a ser alvo de

intervenção e instrumento do Estado na medida em que será possível, graças a essas

estratégias e esses saberes, que o próprio Estado se defina continuamente (Ibidem: 145).

É nesse sentido, portanto, que Foucault afirma não haver uma “estatização da

sociedade”, mas uma “governamentalização do Estado” (Ibidem: 145), situando-a,

portanto, por governamentalidade,

O conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. [E] (...) a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito tempo, para a preeminência desse tipo de

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poder que podemos chamar de “governo” sobre os outros – soberania, disciplina – e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo [e, por outro lado], o desenvolvimento de toda uma série de saberes (Ibidem: 143-144).

De forma complementar, mas distinta à disciplina dos corpos durante o século

XVIII, Foucault situa a emergência de uma nova tecnologia de poder que utiliza a

anterior para se efetivar dirigindo-se, não ao homem-corpo, mas ao homem como ser

vivo, ao homem enquanto espécie. A esta tecnologia de poder Foucault denominou

biopolítica da espécie humana, como possibilitadora de intervenção no conjunto que é a

população como problema político, problema científico, problema biológico e problema

de poder em seu meio de existência (Foucault, 2010: 2016). Incidindo sobre a vida, a

biopolítica intervirá de modo a fazer viver e deixa a morte de lado, ultrapassando o

direito soberano de “fazer morrer e deixar viver”.

A governamentalidade contemporânea, segundo Foucault, nasce com a

configuração da economia-política no século XVIII, permitindo a autolimitação do

Estado, antes exercido pelo direito. Ela fará com que funcione uma série de mecanismos

do domínio da economia, que são do domínio da gestão da população e que terá por

função fazer crescer as forças do Estado (Foucault, 2008: 475). Esta

governamentalidade funcionará por meio de uma naturalidade específica das relações

dos homens em sociedade. A sociedade civil será, portanto, um campo específico de

intervenção como produto do Estado; será o que a governamentalidade emergente no

século XVIII fará surgir como correlativo necessário do Estado, que este deverá gerir e

assegurar (Idem: 470). O Estado deverá também reivindicar uma racionalidade sobre os

processos da população a fim de medir e calcular no que se deve, ou não, intervir. Tais

processos envolverão cada um dos indivíduos e suas interações em um vínculo que

passa pelo Estado. Serão processos construídos histórica e politicamente como naturais

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e, portanto, o Estado não deverá intervir de forma regular, mas suscitar, manipular,

deixar agir, deixar governar, por meio de mecanismos de segurança que regularão a

desordem, os ilegalismos, as irregularidades (Ibidem: 475).

Essa arte de governar, ou esse novo tipo de cálculo, estará atrelado ao

liberalismo, o qual se opõe à razão de Estado ou a modifica, porém sem questionar seus

fundamentos (Foucault, 2004: 30), e será essa nova razão que permitirá unir pontos

aparentemente divergentes, se refazendo em meio à guerra ou à paz.

Na Alemanha, a programação liberal demarcou pontos de ancoragem e pontos

históricos desde a República de Weimar, da crise de 1929 e do desenvolvimento do

nazismo, à crítica do nazismo e aos planos de reconstrução no pós-Segunda Guerra

Mundial (Idem: 107). Já a ancoragem dos EUA remete à política do New Deal, à crítica

da política de Roosevelt e o Welfare State, aos contra posicionamentos em relação aos

intervencionismos pós-guerra e aos programas de assistência implantados

principalmente por Truman, Kennedy, Johnson, etc. (Ibidem: 107). Entre a ancoragem

alemã e a estadunidense existem diversas pontes. Dentre elas, o inimigo comum –

Keynes e o socialismo –; os mesmos objetos de repulsão – a economia dirigida, a

planificação, o intervencionismo de Estado; e uma série de personagens, teorias e livros

que circularam, principalmente em torno da escola austríaca, como Ludwig von Mises e

Friedrich von Hayek (Ibidem: 108).

Ludwig von Mises nasceu em meio a um processo de desmembramento do

partido liberal que gerou governos intervencionistas autoritários em Viena, na Áustria,

durante o século XX. Conforme exposição de Edson Passetti em Política e massa: o

impasse liberal por Ludwig von Mises, Viena sinalizava para convergências estatizantes

como reação ao liberalismo, assumindo a forma do Welfare State. Na década de 1880, a

derrota em Sodowa para Bismarck levou os liberais ao poder com uma política que,

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mais tarde, cedeu lugar aos partidos de massa ligados a uma renovação católica

(Passetti, 1994: 28).

De acordo com Passetti, von Mises argumentava para a inviabilidade do

socialismo pela ausência de cálculo econômico e o intervencionismo como

subordinação da propriedade privada dos meios de produção à autoridade

governamental, exigindo do liberalismo a defesa do laissez-faire econômico com o

Estado garantindo a cooperação pacífica (Idem: 41). O cálculo econômico monetário do

capitalismo, em oposição ao planejamento econômico do governo no socialismo, teria a

democracia como suporte para uma produção racional de lucratividade e eficiência na

geração de novas empresas e trabalhos, fazendo dela, portanto, uma necessidade liberal,

ao realizar-se na economia (democracia do consumidor) e na política (democracia do

cidadão) (Ibidem: 46-47).

Passetti mostra, ainda, que a concepção de propriedade privada de von Mises

exige do Estado apenas a função de coerção e compulsão, mantendo a liberdade do

indivíduo no mercado como prerrogativa de sua busca utópica dos valores liberais de

propriedade privada, liberdade e paz. Essa lógica de harmonia de interesses “funda-se

na compreensão de que os acontecimentos humanos são resultantes de finalidades

perseguidas pelos indivíduos, onde eles cedem temporariamente, visando obter um

ganho futuro” (Ibidem: 65). Desconhecendo o destino de uma ação, a praxeologia, ou

teoria da ação humana, estabelecida por von Mises, estudará os meios mais apropriados

para o alcance de determinado fim.

Algo que, de acordo com Passetti, evidencia o pensamento de von Mises

inserido numa cômoda posição diante da inevitabilidade de uma praxeologia que pode

tornar-se estática; onde qualquer imprevisto que escape de seu parâmetro finalista

definido a priori seja nada além do que “equívoco da escolha” (Ibidem: 260). Já o

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anarquismo, ainda segundo Passetti, não possui uma exposição e sistematização de

ideias a ser universalmente aceita, mas dirige-se para a supressão do Estado como forma

de realização do indivíduo (Ibidem: 276). Para o anarquismo, em suas palavras, “sem

autoridade ou poder e postulando relações comunais livres, a primazia é a da liberdade

individual, enquanto que para o liberalismo, a liberdade individual e a autonomia estão

fundadas na competitividade da propriedade” (Ibidem: 288). Nesse sentido, decorre que

“para a liberdade miseana, deve haver correspondência entre democracia política e

democracia econômica, do ponto de vista anarquista, a superação dessas democracias

exige correlação entre mutualismo e federalismo: à inevitabilidade de Estado de um,

corresponde o não-Estado do outro” (Ibidem: 294).

É fundamental ressaltar, ainda acompanhando as análises de Passetti, que a

liberdade individual reiterada pelo liberalismo revestiu também sua justificativa de

conivência com o nazismo, sob o argumento de preferência pela propriedade privada, e

de que uma ditadura com capitalismo dura menos do que uma ditadura com socialismo.

itinerários neoliberais

De acordo com os apontamentos de Foucault e conforme evidencia os esforços

de Hoffman e seus itinerários entre empreendimentos ligados à reconstrução pós-

Segunda Guerra Mundial bastante próximo da reconstituição de um discurso neoliberal,

em toda a Europa, naquele momento, reinavam políticas econômicas fundamentalmente

keynesianas comandadas por uma série de exigências voltadas à reconversão de uma

economia de guerra para uma economia de paz e de planificação. Eram requeridas tanto

por necessidades internas como devido ao peso dos EUA e sua política comandada pelo

Plano Marshall, que implicava uma planificação de cada país europeu e coordenação

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dos diferentes planos; e também permeadas por objetivos sociais que evitassem o

fascismo e o nazismo que acabavam de ocorrer (Foucault, 20054: 108).

A ideia de uma fundação legitimadora do Estado sobre o exercício garantido de

uma liberdade econômica, como expresso no discurso de Ludwig Erhard na assembleia

de Frankfurt de 1948, garantia a liberdade econômica à Alemanha, que estava se

reconstituindo, e garantia aos estadunidenses a possibilidade de estabelecer com essa

economia alemã as livres relações que pudessem escolher (Ibidem: 113).

Foucault chama atenção para como a economia, no caso da Alemanha, produziu

soberania política e legitimidade para o Estado. Há um deslocamento do liberalismo

programado pelos fisiocratas e economistas do século XVIII, que tinha como problema

abrir espaço para uma necessária liberdade econômica no interior de um Estado em

pleno funcionamento, para a questão da Alemanha de como construir um Estado a partir

do espaço da liberdade econômica (Ibidem: 117).

O economista Walter Eucken, que estava na mesma conferência que Erhard em

1948, fundou a revista Ordo e constituiu a Escola de Friburgo, da qual transitou

Friedrich von Hayek – um dos inspiradores do neoliberalismo estadunidense – quando

nomeado, em 1962, professor em Friburgo (Ibidem: 143). De acordo com Foucault, os

ordoliberais tentaram identificar uma invariante antiliberal presente em regimes

políticos diversos, como o da União Soviética, o do nazismo e o do New Deal, que

parecia não se estabelecer entre as diferenças entre o socialismo e o capitalismo, mas

ligada a um problema liberal relacionado às formas de intervencionismo em diferentes

graus (Ibidem: 151). A Escola de Friburgo, partindo dessas análises, estabeleceu que,

uma vez que o Estado, à direita ou à esquerda, possui defeitos intrínsecos, a economia

de mercado deveria servir como princípio de regulação interno do Estado. Diferente do

liberalismo do século XVIII – em que o mercado era definido a partir da troca livre

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entre dois parceiros e em que o Estado supervisionava o bom funcionamento dessas

trocas –, nesse novo liberalismo, a essência do mercado seria a concorrência (Ibidem:

161), na medida em que se pressupôs que esta deveria ocorrer de forma plena para

regular as escolhas, sob intervenções do Estado realizadas, no máximo, para impedir a

formação de monopólios. Por meio de uma governamentalidade ativa, conforme expõe

Foucault, torna-se então necessário governar para o mercado, e não por causa do

mercado (Ibidem: 165).

É na esteira do Colóquio Walter Lippmann que se formará a “Comissão

internacional de estudo para a renovação do liberalismo” (CIERL), em 1939, propulsora

de um liberalismo com uma política ativa e de intervenção permanente (Ibidem: 183).

Este Colóquio é importante na história do neoliberalismo por ter cruzado o liberalismo

tradicional do ordoliberalismo alemão, com Röpke e Rüstow, e liberais, como Hayek e

von Mises, que serão os intermediários entre o ordoliberalismo alemão e o

neoliberalismo americano (Ibidem: 222-223).

É interessante na análise de Foucault a exposição sobre as adesões a esta política

de liberação, como a rápida adesão da Democracia Cristã e também dos sindicatos.

Theodor Blank, vice-presidente do sindicato dos mineiros, declara que a ordem liberal

constitui uma alternativa válida ao capitalismo e ao planismo, mas, na realidade, vê que

nesse neoliberalismo haveria uma síntese entre capitalismo e socialismo, uma vez que

“a ordem liberal nunca havia pretendido ou certamente não pretendia, na boca do futuro

chanceler Erhard, ser uma alternativa ao capitalismo, mas sim certa maneira de fazer o

capitalismo funcionar” (Ibidem: 119). Foucault também aponta para a adesão da social-

democracia alemã quando, em 1959, no Congresso de Bad Godesberg, ela renuncia ao

princípio da passagem à socialização dos meios de produção e reconhece que a

propriedade privada destes é não apenas legítima como tem direito à proteção e ao

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incentivo do Estado (Ibidem: 120). Neste Congresso é aprovado o princípio de uma

economia de mercado onde quer que reine as condições de uma verdadeira concorrência

(Ibidem: 120). Assim, destaca, há “a adesão a todo um conjunto doutrinal e

programático que não é simplesmente uma teoria econômica sobre a eficácia e a

utilidade da liberdade do mercado. Adesão a algo que é um tipo de governamentalidade,

que foi justamente o meio pelo qual a economia alemã serviu de base para o Estado

legítimo” (Ibidem: 120-121).

O modelo de neoliberalismo alemão é importante, segundo Foucault, por ser a

possibilidade de uma governamentalidade neoliberal (Ibidem: 265). Os EUA, porém,

tiveram uma renovação liberal peculiar. O New Deal, tido como uma política

keynesiana desenvolvida por Roosevelt, em 1933-34; o plano Beveridge, na Inglaterra,

e os projetos de intervencionismo econômico e social elaborados durante a Segunda

Guerra; e os programas sobre pobreza, educação e segregação social desenvolvidos

durante a administração de Truman à Johnson, sofreram críticas de ancoragem tanto à

esquerda – pelo desenvolvimento de um Estado imperialista e militar – como à direita –

hostil à políticas relacionadas ao socialismo (Idem: 300). O liberalismo dos EUA não

estaria, portanto, relacionado apenas ao aspecto econômico de livre mercado ou às

políticas liberais instituídas pelos governantes, mas estaria sendo difundido cada vez

mais como uma racionalidade que produz e reproduz uma certa maneira de pensar que

dilui ideologias. Algo que ganhará novos contornos, nos anos 1970, com a teoria do

capital humano de Theodore Schultz, e com Hayek, culminando numa maior

radicalidade na generalização da forma econômica do mercado.

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organizações internacionais em ascensão

Já ao final dos tempos de guerra, com Programas como o CED de reconversão

dos veteranos de guerra e, principalmente no pós-Segunda Guerra, haverá uma

preocupação com a reconstrução europeia e das políticas entendidas como de

intervencionismo nos próprios EUA. Porém, interessa menos o caráter keynesiano ou

socialista atribuído aos planos de reconstrução, como o próprio Plano Marshall – que

inclusive não deixará de estar presente e de forma constitutiva do próprio Programa das

Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) – e mais seus efeitos, críticas e

revisões de maneiras alternativas, de uma maneira de pensar, uma maneira de fazer

funcionar a economia-política que permitiram a configuração e a adesão de uma

governamentalidade neoliberal. Este contexto mostra-se favorável ao crescimento de

organizações internacionais, como a própria ONU, em 1945, e a formação de Fundações

e filantropias voltadas para o desenvolvimento, como uma pretensa neutralidade de suas

políticas ancorada nos valores de uma paz democrática.

Após deixar a direção do ECA, Paul Hoffman foi nomeado presidente da

Fundação Ford. Estabelecida em Detroit, EUA, em 1936, ela foi construída a partir de

doações iniciais de Edsel Ford, cujo pai, Henry Ford, havia sido fundador da Ford

Motor Company. Após a morte de ambos, Henry Ford II, filho de Edsel, tornou a

Fundação Ford a maior instituição filantrópica do mundo, expandindo-se, a partir de

1950, para tornar-se internacional.20

O futuro presidente da Fundação, H. Rowan Gaither, um advogado de San

Francisco, recomendou que a Fundação se dedicasse ao avanço do “bem-estar humano”.

Seus objetivos foram elencados em relatório oficial do conselho, em 1949, abrangendo

20 Cf. Ford Foundation. History. Disponível em: http://www.fordfoundation.org/about-us/history. Acesso em 05/05/2015.

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desde “prometer contribuições significativas para a paz mundial”, “o estabelecimento de

uma ordem mundial da justiça e da lei” e “assegurar uma maior fidelidade aos

princípios básicos da liberdade e da democracia na solução dos problemas de uma

sociedade em constante mudança” até “aumentar o conhecimento de fatores que

influenciam ou determinam a conduta humana e estender esse conhecimento para o

máximo benefício de indivíduos e da sociedade”.21

Durante a Presidência de Paul Hoffman, a Fundação abriu seu primeiro

escritório internacional em Nova Déli, na Índia, que havia se tornado independente dois

anos antes, a convite do primeiro ministro, Jawaharlal Nehru. A Fundação tornou-se

ativamente envolvida nos primeiros programas de desenvolvimento rural em parceria

com instituições governamentais da Índia.

Anos antes, em 1948, o Project RAND – organização formada após a Segunda

Guerra Mundial para conectar planejamento militar com pesquisas e decisões no âmbito

do desenvolvimento – se separou da Douglas Aircraft Company e tornou-se uma

organização independente e sem fins lucrativos, a Rand Corporation. “A entidade

recém-formada dedicou-se a aprofundar e promover o desenvolvimento para fins

científicos, educacionais e de caridade para o bem-estar público e de segurança dos

Estados Unidos”22.

Segundo a própria Rand Corporation, ela desenvolveu um estilo único,

montando, ao longo do tempo, um corpo único de investigadores notáveis por suas

habilidades individuais e por seu compromisso com a cooperação interdisciplinar. Na

21 Idem. 22 Ford Foundation. A Brief history of Rand. Disponível em: http://www.rand.org/about/history/a-brief-history-of-rand.html. Acesso em 05/05/2015.

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década de 1960, ampliou-se para fora dos Estados Unidos “com o objetivo de tornar os

indivíduos, comunidades e nações mais seguros, mais saudáveis e mais prósperos”23.

Nascida da competição na chamada Guerra Fria com a União Soviética, a

agenda relacionada com a defesa da Rand Corporation logo envolveu a atenção dos

EUA para abranger áreas como o espaço sideral, assuntos econômicos, sociais, políticos

e no exterior, e o papel do governo na resolução de problemas sociais e econômicos.

Ainda como Project Rand, destaca-se, em maio de 1946, onze anos antes da órbita do

Sputnik – primeiro satélite artificial da história –, seu primeiro relatório divulgado

intitulado Preliminary Design of an Experimental World-Circling Spaceship.

Antes de 1950, a Fundação Ford, que era estritamente um órgão local para a

redistribuição de donativos, extrapolou os limites do estado de Michigan ao colaborar,

em 1948, com recursos que permitiram a criação da Rand Corporation, e ao fornecer

subsídios regulares ao MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York), assim como

para instituições de saúde de outros estados (Chaves, 2009: 224).) e instituições de

saúde de outros estados (Chaves, 2009: 224). Sua criação respondia à implantação do

Revenue Act, em 1935, que estabelecia um aumento nos impostos às propriedades de

valor superior a 50 milhões de dólares. Porém, as atividades filantrópicas eram isentas

desta taxação, o que possibilitou a transferência do patrimônio da família Ford e a

doação de empresas privadas para atividades de caridade e de filantropia na Fundação

Ford. Nesse momento, na virada para a década de 1950, o valor de mercado da

Fundação Ford se sobrepôs ao de outras fundações como a Carnegie e a Rockefeller

(Idem: 224).

Em setembro de 1950, foi publicado o Gaither Report, encomendado pelo então

presidente da Fundação Ford, H. Rowan Gaither, Jr., a um comitê composto por

23 Ibidem.

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54

diretores e presidentes das principais universidades dos EUA, cientistas sociais,

cientistas políticos, advogados, presidentes e consultores de agências do governo, ONGs

e empresas como a National Academy of Science e a American Psychological

Association. O relatório é tido como marco de uma virada da Fundação entregue às

propostas de uma nova agenda de longa-duração em meio à chamada Guerra Fria.

O primeiro capítulo do relatório intitula-se Human Welfare, em que se determina

a necessidade de todos os esforços para prolongar a vida, erradicando doenças,

prevendo a má nutrição e a fome, removendo as causas de acidentes violentos e, acima

de tudo, a prevenção da guerra (Ford Foundation, 1949: 17). Apresenta como elementos

chaves para essa condição a dignidade humana, a liberdade e os direitos políticos e

pessoais – como a promoção do autogoverno –, a responsabilidade social e o dever de

serviço – em que cada pessoa reconheça sua obrigação moral de usar suas capacidades,

contribuindo positivamente ao bem-estar social (Idem: 17-18). O conceito de bem-estar

humano estaria intimamente relacionado ao ideal de democracia, no qual os indivíduos

podem se tornar mais produtivos e de forma mais segura. Portanto, uma das principais

funções do governo seria a de assegurar a presença das condições para a liberdade, e

então as instituições políticas obteriam significado e uma boa chance de sobreviver

quando refletissem um modo de vida onde todas as organizações e relações entre as

pessoas respirarem o espírito da democracia, estabelecido por meio de um costume, um

modo de vida (Ibidem: 19).

Quando Paul Hoffman fora nomeado presidente da Fundação Ford, em

novembro de 1950, foram empregados sistema de parcerias, num momento em que

havia o consenso de que agências privadas poderiam realizar estudos de interesse

governamental melhor do que agências governamentais (Idem: 236). Determinada a

atuar conforme a caracterização e promoção do “mundo livre” comandado pelos EUA

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55

para o mundo, e em especial aos países chamados subdesenvolvidos por meio de uma

agenda política extensa, firmava-se a consolidação da Doutrina Truman e do Plano

Marshall. Em 1952, no âmbito da ONU, Hoffman fundou e tornou-se diretor do Fundo

Especial das Nações Unidas para o Desenvolvimento Econômico. Este viria a se fundir,

em 1964, com o Programa Expandido de Assistência Técnica (EPTA, na sigla em

inglês) para a constituição do PNUD, cujo primeiro administrador foi Paul Hoffman,

considerado herói do Plano Marshall e homem de confiança do Congresso nomeado

pelo presidente Johnson, uma vez que os EUA financiavam mais da metade das

despesas do EPTA.

1.3. ecopolítica do planeta e o espraiamento das grandes organizações

internacionais

ecopolítica e os redimensionamentos do desenvolvimento

Se a biopolítica da população enquanto uma tecnologia de poder tinha como

objeto e objetivo a vida, Foucault questionará como se exercerá o direito de matar se o

poder de soberania de “fazer morrer e deixar viver” recuava. Há, então, que a

emergência desta tecnologia de poder, inseriu ou possibilitou a emergência do racismo

nos mecanismos de Estado, como mecanismo fundamental dos Estados modernos

(Foucault, 2010: 214). No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das

raças fragmentadas no interior da espécie, fará funcionar um mecanismo próprio da

biopolítica, em que o Estado se vê obrigado a eliminar raças em nome da purificação e

regeneração de uma raça:

O que faz sua especificidade [do racismo moderno], não está ligado a mentalidades, a ideologias, a mentiras do poder. Está ligado à técnica

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56

do poder, à tecnologia do poder. Está ligado a isto que nos coloca, longe da guerra das raças e dessa inteligibilidade da história, num mecanismo que permite ao biopoder exercer-se. Portanto, o racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação da raça e a purificação da raça para exercer seu poder soberano (Idem: 217).

O Estado mais disciplinar foi o nazista, conforme mostra Foucault. Ao mesmo

tempo em que funcionava como uma sociedade altamente previdenciária,

universalmente seguradora, universalmente regulamentadora e disciplinar, foi ela que

desencadeou o mais completo poder de matar, generalizado para toda uma série de

indivíduos. E, pelo fato da guerra ser explicitamente posta como um objetivo político, e

não meramente como instrumento para obter meios para um fim, “a política deve

resultar na guerra, e a guerra deve ser a fase final e decisiva que vai coroar o conjunto”

(Ibidem: 218).

Após a Segunda Guerra Mundial e seus limites, como o próprio nazismo, a

criação da ONU em 1945 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948

vieram como resposta aos horrores da guerra e foram emblemáticos como uma tentativa

de bloqueio do racismo de Estado, concomitantemente à abertura de uma extensão de

direitos que ultrapassaram os nacionais e confirmaram as minorias étnicas e sociais. Se

a biopolítica, como tecnologia de poder própria da sociedade disciplinar, alcançou um

limite, vemos emergir novos investimentos, não mais tendo como objeto a população

em seu território, mas a população em seu ambiente, o planeta. A noção de ecopolítica

desenvolvida por Edson Passetti (2003; 2007; 2013), de forma atenta às considerações

de Gilles Deleuze sobre as sociedades de controle (Deleuze, 2010: 224), busca

responder às novas práticas relativas ao governo do planeta e a tudo aquilo que tem vida

(Passetti, 2013: 10). Atenta às novas institucionalizações no pós-Segunda Guerra, a

ecopolítica não se restringe à ecologia ou ao estudo do ambiente como política de

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57

governo que visa reduzir as intervenções do Estado, mas está “relacionada à produção

da verdade capitalista sustentável, que o governamentaliza” (Idem: 8).

Na nova razão governamental emergente no século XVIII apresentada por

Foucault, um governo que não infrinja nem as leis econômicas, nem os princípios do

direito, veria nos indivíduos como sujeitos econômicos governamentalizados elemento

fundamental para o seu exercício (Foucault, 2008: 369). Uma conduta racional foi

tornada objeto da análise econômica sobre o homo oeconomicus por economistas

ingleses e franceses – desde John Locke, Adam Smith e os fisiocratas franceses –, como

aquele que deveria obedecer a seus próprios interesses, a fim de não apenas preservar

como aumentar o interesse dos outros, em uma mecânica egoísta em que as vontades

individuais se harmonizam espontaneamente (Foucault, 2008: 375).

Nesta mecânica individual dos interesses, a economia aparece como

impossibilidade de o soberano visualizar a totalidade do Estado que governa (Idem:

384). O mundo político-jurídico e o mundo econômico emergem heterogêneos e

incompatíveis, e a governamentalidade, para se garantir, encontra um novo objeto

correlativo a essa nova arte de governar: o sujeito de direito-sujeito econômico. Eles

produzirão uma série de elementos que comporão um conjunto complexo do qual será

característica de uma arte liberal de governar. Esta nova referência, este novo campo

encontrado por esta arte de governar foi, precisamente, a sociedade civil (Ibidem: 402),

como seu correlativo e de cuja medida racional deveria indexar-se juridicamente a uma

economia entendida como processo de produção e de troca.

A sociedade civil, portanto, faz parte da tecnologia da governamentalidade

liberal emergente no século XVIII, que tem como característica o princípio de

racionalização da arte de governar no comportamento racional dos que são governados.

A biopolítica, que tem como alvo a população, conduz condutas e coloca em

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58

funcionamento a capacidade liberal de assimilar contra-condutas e se fortalecer diante

de ameaças de rebelião e revolução (Passetti, 2013: 6). Conforme expôs Foucault, o que

os economistas no século XVIII farão emergir como domínio de análise é a gestão da

sociedade civil que o Estado deverá assegurar, diferentemente da regulamentação

policial que tratava apenas de uma coleção de súditos (Foucault, 2008: 470-471).

Com a emergência da ecopolítica, conforme situa Passetti, em um fluxo

ininterrupto das chamadas “políticas públicas” entre o Estado e a sociedade civil, esta

funcionará como grande apaziguador de resistências, ao constituir uma ética da

responsabilidade social por meio da convocação à participação em prol de um futuro

melhor (Passetti, 2007).

Partindo de indicações de Passetti, tem-se que após a Segunda Guerra, alguns

pontos permitiram com que a ecopolítica se configurasse como uma nova

governamentalidade planetária: a configuração de um sujeito de direitos como cidadão

universal em meio às novas promessas de paz global frente ao fracasso da antiga Liga

das Nações e do Tratado de Versalhes, frente ao advento da bomba atômica e frente ao

perigo iminente de uma nova guerra com a rápida expansão da União Soviética; os

grandes investimentos tecnológicos no espaço sideral, impulsionados pela corrida

armamentista, que implicaram em redimensionamentos políticos do governo do planeta

e na inteligibilidade deste como um corpo-planeta a ser gerenciado (Siqueira, 2015); a

intensa revisão do discurso liberal, antes, durante e depois da guerra, frente às soluções

estatais e intervencionismos, como o Welfare State.

A arte de governar emergente no século XVI esgotou a estrutura feudal para

instaurar os grandes Estados territoriais administrativos, que fizeram surgir uma

burocracia centrada em governar seus habitantes, suas riquezas; de forma a controla-los

e vigia-los na minúcia, assim como fazia um pai de família. Segundo Maria Cecília da

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59

Silva Oliveira (2016: 73), ao analisar o processo dos congressos internacionais desde a

Conferência de Vestfália em 1648, considerada berço das Relações Internacionais, suas

práticas diplomáticas inauguraram um espaço de concorrência política e econômica

entre os Estados. A força dos Estados passa a interessar nesta dinâmica; à razão de

Estado então atrelada aos mercados internacionais e a concorrência política e econômica

buscam seu prolongamento e sua força nestes novos campos internacionais.

Com a emergência da ecopolítica, porém, o nazismo como limite da biopolítica

expôs também o limite do nacionalismo estatal. Atualmente, a configuração de uma

racionalidade governamental planetária possibilitou o desbloqueio de novas táticas de

governo do e no planeta que extrapolaram os limites do Estado-nação. Interessa

perceber, nesse sentido, como a atuação das organizações internacionais, da qual o

PNUD está inserido, são fundamentais para uma governamentalidade que não dispensa

o formato Estado-nação e a diplomacia, mas, complementarmente, o fortalece, auxilia e,

inclusive, amplia a gestão de seus habitantes em consonância com o desenvolvimento

pensado em relação ao planeta e a segurança centrada nos indivíduos.

Com a derrocada da União Soviética, nos anos 1990, e a dissolução do

socialismo como inimigo comum do que se autodenominava “mundo livre”, liderado

pelos EUA, a segurança passou a ter alvos menos conhecidos. Pensando no poder como

tecnologia que produz positividades; que não se detém, mas se exerce por meio de

relações de força, ater-se apenas ao caráter repressivo do poder torna-se insuficiente

para demarcá-los. Se o poder se exerce por meio de relações de força que, em conjunto,

produzem e fazem funcionar táticas e dispositivos que se mostram úteis para a sua

continuidade, constituindo-se enquanto tecnologia, deve-se pensá-lo também de forma

ascendente, transitando, se modificando, se expandido, se reproduzindo por entre os

indivíduos.

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60

A segurança, durante o período que abrange a sociedade disciplinar, operou por

meio de probabilidades, regularizando-as em função de estimativas que atingiam uma

multiplicidade de corpos ligados do conjunto da população. Como se verá mais à frente,

principalmente por meio do trabalho do PNUD em âmbito planetário e com a

emergência de novas tecnologias de poder referentes à ecopolítica como

governamentalidade planetária, a segurança pôde expandir-se ao encontrar novos pontos

e novos instrumentos – sem abrir mão dos mais antigos – para intervir no ambiente e

naquilo que o ameaça.

breves procedências do PNUD

Segundo Craig N. Murphy24, apesar das lições muito difundidas das guerras

mundiais e suas aplicabilidades nas relações entre países ricos e pobres, poucos na ONU

imaginaram que seu Secretariado, com sede em Nova York, focaria tanto no

desenvolvimento (Murphy, 2006: 51) – diferente de instituições como o Banco

Mundial, por exemplo, que demorou mais de quinze anos para focar nessa questão. Foi

assim que o PNUD, segundo o historiador, tornou-se o centro do quadro da ONU para o

desenvolvimento.

Homens e mulheres foram convocados a partir de suas participações na política

de Boa Vizinhança criada pelo presidente Franklin Roosevelt (1933-1945), em 1933; no

Middle East Supply Centre (Centro de Abastecimento do Oriente Médio – MESC, na

sigla em inglês); no UN Relief and Rehabilitation Administration (Administração de

Assistência e Reabilitação da ONU – UNRAA, na sigla em inglês); e, em alguns casos,

na Liga das Nações (Idem: 51).

24 Craig N. Murphy é professor de Ciência Política na Wellesley College e foi encarregado pelo PNUD para escrever a história oficial do Programa, publicada em The United Nations Development Programme: a better way?, pela Editora Cambridge, em 2006.

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61

A invasão da Itália na Líbia e na atual Etiópia, em 1935, justificaram a aliança

entre o Egito e a Grã-Bretanha, por meio de um Tratado de 1936. Este determinava que

a Grã-Bretanha deveria defender o Egito em caso de agressão, que, por sua vez,

ofereceria todas as facilidades em seu território em caso de guerra. Durante a Segunda

Guerra Mundial, o Cairo tornou-se uma importante base militar para as forças

britânicas. Apoiados no Tratado de 1936, os britânicos alegavam ter o direito de

estacionar tropas em solo egípcio para proteger o Canal de Suez, de grande importância

geoestratégica durante a guerra.

O MESC foi estabelecido neste contexto pelo governo britânico, primeiramente

no Cairo, durante a Segunda Guerra Mundial, em 1941, como um centro voltado a

solucionar o problema de transportes que havia tornado impossível o acesso das

importações ao Oriente Médio, bem como produtos para exportação serem enviados aos

mercados habituais no exterior (D. P. E., 1944: 1). A embaixada dos EUA no Cairo

estava ligada ao MESC quando alegou que as decisões do MESC estavam se tornando

em grande medida relacionadas à alocação de espaço de transporte marítimo a partir dos

EUA.

O MESC exercia a função de um órgão consultivo e de coordenação sem

poderes executivos, porém era a única agência cujas recomendações quanto aos

fornecimentos para os países do Oriente Médio eram aceitas pelos organismos oficiais

em Londres e Washington, onde uma decisão final quanto à atribuição de necessidades

de abastecimento seria definida pelo Conselho.

Robert Jackson foi Diretor Geral do MESC e, mais tarde, adentrou para a UN

Relief and Rehabilitation Administration (UNRRA), considerada a primeira grande

operação de reconstrução no pós-guerra. Em 1950, Jackson tornou-se consultor para os

governos da Índia e do Paquistão. Mais tarde, tornou-se consultor de assistência técnica,

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62

logística e de pré-investimentos para os chamados países subdesenvolvidos ao lado de

Paul Hoffman no PNUD.

A UNRRA foi estabelecida em novembro de 1943, por meio de acordo entre 44

nações e, em 1945, foi anexada à ONU. Sucedeu o Escritório de Ajuda Externa e

Reabilitação de Operações do Departamento de Estado dos EUA, criado em novembro

de 1942, e o Comitê Inter-Aliados sobre as Necessidades Pós-Guerra, estabelecido em

Londres em setembro de 1941.25 Basicamente, seu objetivo era fornecer ajuda a países

europeus no imediato pós-guerra e repatriar os refugiados sob o comando dos países

Aliados.26 Na primeira sessão do Conselho da UNRRA, em 1943, foi acordado que a

saúde seria uma de suas responsabilidades primárias e fundamentais, devendo combater

epidemias e administrar a Convenção Sanitária Internacional.27 Em 1946, a UNRRA foi

dissolvida e suas funções transferidas para a atual Comissão Interina da Organização

Mundial da Saúde (OMS).28

Em 1946, David Owen, na época Secretário-Geral assistente e chefe do

Departamento de Economia do Secretariado da ONU, trouxe Folke Hilgerdt, influente

do desenvolvimento econômico da Liga das Nações, para chefiar a divisão principal do

Departamento em função da “estabilidade econômica e desenvolvimento” (Ibidem: 50).

Nos primeiros encontros do Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC, na sigla

em inglês) com a Assembleia Geral, a delegação Chinesa, consciente de como a China

havia sido beneficiada apenas pela abordagem do programa de assistência técnica da

25 Cf. United Nations. Summary of AG-018 United Nations Relief and Rehabilitation Administration (UNRRA) (1943-1946). UN, Archives and Records Management Section. Disponível em: https://archives.un.org/sites/archives.un.org/files/files/Finding%20Aids/2015_Finding_Aids/AG-018.pdf. Acesso em 08/09/2015. 26 Cf. United Nations. Agreement for United Nations Relief and Rehabilitation Administration. UN, 1943. Disponível em: https://www.loc.gov/law/help/us-treaties/bevans/m-ust000003-0845.pdf. Acesso em 09/09/2015. 27 Idem. 28 Ibidem.

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63

Liga, juntou-se ao Libanês Charles Malik (chefe da ECOSOC e ex-aluno do MESC)

para propor o primeiro programa de assistência técnica da ONU, argumentando que

uma abordagem multilateral poderia ajudar países em desenvolvimento a não se apoiar

unicamente na assistência das superpotências da Guerra Fria (Ibidem: 51-52). Mesmo

com alguns empecilhos – como quando os representantes de Truman em Nova York se

juntaram ao embaixador da União Soviética para assinar uma resolução que diminuía a

assistência técnica e dava ao Secretariado apenas um papel de coordenação,

determinando o fim da UNRAA –, o Secretariado convenceu a maioria dos membros da

necessidade da assistência técnica para prover “a continuação das urgentes e

importantes funções consultivas no campo do bem-estar social” aos países que recebiam

assistência prévia da UNRRA (Ibidem: 52).

Em 1949, Truman esboçou um programa de “Quatro Pontos” do que percebia

serem os principais problemas globais, em especial o crescimento proeminente da União

Soviética. A celebração dos “Quatro Pontos” foi a garantia para que nações

empreendessem um trabalho conjunto de assistir países considerados subdesenvolvidos

por meio da ONU e suas Agências Especializadas (Ibidem: 55). No mesmo ano, o

ECOSOC e a Assembleia Geral habilitaram resoluções que possibilitaram a criação do

Expanded Programme of Technical Assistance (Programa Expandido de Assistência

Técnica – EPTA, na sigla em inglês), administrado por David Owen.

Owen, durante os anos em que foi presidente Executivo do Quadro de

Assistência Técnica da ONU, percebeu que o EPTA provia um tipo de assistência

externa aceitável por ser uma fonte imparcial e por oferecer uma abordagem de parceria

para o desenvolvimento que se provou eficaz, em grande medida por ser realizada em

pequena escala (Owen, 1959: 26). Porém, suas diretivas, advindas do ECOSOC, da

Assembleia Geral e do próprio funcionamento do Programa, mudaram a cada ano de

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64

acordo com o modo em que as organizações internacionais foram respondendo aos

requisitos de governos e aos aprendizados no campo da assistência técnica (Idem: 26).

A assistência técnica multinacional, ou internacional, remete à Organização

Internacional do Trabalho (OIT), estabelecida em 1919 e vinculada à Liga das Nações.

A OIT enviava consultores a pedido de seus governos no período entre guerras, e

continuou seu trabalho quando se tornou uma Agência Especializada da ONU (Ibidem:

26). Outras, como a OMS, a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e

Agricultura) e a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência

e a Cultura), foram acionadas pelos Estados-Membros da ONU, logo após a sua criação,

para realizarem assistência técnica em seus campos específicos de competência, por

meio de missões de pesquisa, da concessão de bolsas de estudo e pelo trabalho regular

de consultores técnicos. Mais tarde, quando as solicitações se tornaram muito

numerosas e acabaram por esgotar o número do pessoal regular, outros especialistas

tiveram de ser contratados (Ibidem: 26).

Neste contexto, Truman propôs, no que ficou conhecido como “ponto quatro” de

seu discurso inaugural para a presidência dos EUA, o estabelecimento de um Programa

de assistência técnica e desenvolvimento econômico dos EUA (Ibidem: 28). Em meados

de 1949, essa proposta refletiu na ONU. A Resolução 222 do ECOSOC recebeu a

sanção da Assembleia Geral da ONU no final do ano, e o EPTA passou a existir com

oito organizações da ONU ligadas a seu sistema: a OIT, FAO, UNESCO, Organização

da Aviação Civil Internacional (ICAO), OMS, Organização Meteorológica Mundial

(OMM), União Internacional de Telecomunicações (UIT) e a International Atomic

Energy Agency (“Agência Internacional de Energia Atômica” – IAEA, na sigla em

inglês). O Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) –

instituição financeira do Banco Mundial que financia empréstimos e assistência para os

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chamados países em desenvolvimento – e o FMI coordenavam seus trabalhos com o

EPTA, bem como fez a UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), a Agência

da ONU de Reconstrução Coreana e a Agência da ONU de Assistência aos Refugiados

da Palestina no Oriente Médio (Ibidem: 27).

Os métodos de administração de projetos e operações do EPTA funcionavam

pelo princípio de conceder assistência apenas mediante a solicitação específica de um

governo. Estes deveriam se comprometer a obrigações específicas no que diz respeito

ao pagamento das despesas locais em conexão com a ajuda que estavam recebendo, e

eram obrigados a contratar funcionários para que o trabalho de especialistas

internacionais fosse mantido após o término de suas atribuições (Ibidem: 28).

Desde que o EPTA passou a funcionar, por meio de instalações individuais da

ONU e das inúmeras Agências Especializadas, foi criado um corpo executivo ao seu

lado: o Quadro de Assistência Técnica, composto por um representante de cada uma das

organizações participantes, um presidente Executivo, e auxiliado por um pequeno

secretariado localizado nos Escritórios da ONU em Nova York (Ibidem: 29). O Quadro

almejava assegurar que as atividades de todas as organizações fossem coordenadas de

modo abrangente; buscava métodos comuns de operação e servia como ponto central de

contato entre todos os governos e organizações envolvidos, como o Programa de

Assistência Técnica dos EUA, o Banco Mundial, etc. (Ibidem: 29). O escritório cada de

país possuía um Representante Residente, que servia como ponto de contato entre

diversos especialistas e entre os Ministérios de governo. O Representante Residente

atuava ao lado deste Quadro e de organizações para ajudar na avaliação e efetividade do

EPTA, além de manter contato com outros representantes de outros programas de

assistência.

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Segundo Owen, os Representantes Residentes exerceram papel fundamental na

efetividade do EPTA, pois ajudaram a responder às necessidades específicas de cada

país e fizeram com que os próprios governos fizessem melhor uso da assistência

concedida (Ibidem: 29).

Ainda em 1949, com o grande crescimento do EPTA, Owen contratou Raúl

Prebisch – economista argentino que havia sido influente na política de Boa Vizinhança

de Roosevelt – para ser chefe da assistência técnica da ONU. Porém, o Secretário-Geral

da ONU na época, Trygve Lie, decidiu mantê-lo na América Latina – onde realizava

consultoria para a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL),

uma das comissões do ECOSOC –, e Owen teve de optar pelo diplomata canadense

Hugh Keenleyside para assumir o cargo.

Nos anos 1930, Prebisch estimulou a Argentina a adotar políticas keynesianas

para o desenvolvimento industrial do país durante a Depressão (Murphy, 2014: 180) e,

nos anos 1940, destacou-se como proeminente do chamado “movimento terceiro-

mundista” do pós-guerra. Formulou os conceitos de “centro” e “periferia” da economia

industrial, afirmando as diferenças de poder econômico entre Norte e Sul, e defendia o

recebimento de isenções temporárias do liberalismo global e assistência internacional

aos países menos desenvolvidos, entendendo que, ao impedir as importações de

produtos primários do centro e elaborando bens industriais na periferia, haveria um

maior equilíbrio econômico mundial.

Em 1950, Prebisch assumiu a secretaria executiva do CEPAL, quando os EUA

possuía interesse em manter-se aliado à América Latina contra o bloco soviético, e

quando emergia um bloco de votação do chamado “Terceiro Mundo” dentro da ONU

(Ibidem: 181). Na década de 1960, o economista foi um dos responsáveis pela criação

da Associação Latino Americana de Livre Comércio, da Aliança para o Progresso, do

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67

Instituto Latino-americano de Planificação Econômica e Social (órgão da CEPAL) e da

Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na

sigla em inglês).

Um artigo de Prebisch publicado na revista do CEPAL, em 1976, evidencia sua

indeterminação ao entender o mercado como o mecanismo mais eficiente para

responder aos requisitos seletivos do avanço técnico, “desde a complexa organização e

gestão do processo de produção até o manejo das máquinas” (Prebisch, 1976: 18).

Porém, longe de ser o regulador supremo do desenvolvimento, assim como o Estado

também não teria demonstrado eficiência para agir sobre o desenvolvimento no que

chamava de capitalismo periférico (Ibidem: 18). Dizia que o Estado e seu jogo de poder

sufocam o mercado ao não interferir nos maiores males deste, porém entendia a

planificação como sempre de alcance limitado, não transformando o estado das coisas já

existente (Ibidem: 18).

Em sua breve passagem pelo EPTA, Prebisch estabeleceu três importantes

soluções para o que chamou de “problema do desenvolvimento”: habilidades, recursos

e instituições – ou o que seria, mais precisamente, assistência técnica, assistência

financeira e um ambiente institucional adequado, tanto doméstico quanto global

(Murphy, 2006: 57).

Segundo Murphy, dos anos 1960 até o fim do século XX, o foco do debate sobre

o desenvolvimento permaneceu no desenvolvimento de tais ambientes institucionais.

Na década de 1950, por sua vez, sobressaía o debate sobre o financiamento adequado

para o desenvolvimento, do qual Owen se destacava e que, mais tarde, Paul Hoffman,

teria desempenhado intenso papel ao fim desse debate com a criação do Fundo Especial

das Nações Unidas para o Desenvolvimento Econômico, antes de sua fusão com a

EPTA, que faria emergir o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

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68

(PNUD) (Ibidem: 57-58). Este debate sobre financiamento foi também marcado pela

criação da International Development Authority (Associação Internacional de

Desenvolvimento – IDA, na sigla em inglês), agência dominada pelos chamados países

desenvolvidos, como uma facilidade de concessão de empréstimos (com uma taxa mais

baixa que a do mercado) no interior do Banco Mundial. Foi com o estabelecimento da

IDA, em 1960, que o Banco Mundial envolveu-se oficialmente com a missão do

desenvolvimento, considerada de urgência política e de forte ligação ao que se

delineava como o problema da pobreza (Kapur, Prior e Webb, 1997: 154).

emergência do PNUD

Desde o início das operações do Banco Mundial, os governos dos países

chamados na época de subdesenvolvidos, começando pela América Latina e em seguida

pela Índia, criticaram o fato de não terem auxílios semelhantes aos do Plano Marshall,

restrito à Europa, uma vez que empréstimos do Banco Mundial foram concedidos a

taxas de juro de mercado correntes e, sob o Plano Marshall, a ajuda foi principalmente

concedida sob a forma de subvenções (Toussaint, 2014). Já para o governo dos EUA e

outras potências, um fundo especial controlado pela ONU, separado do Banco Mundial,

era inaceitável (Idem). Neste impasse, os EUA propuseram a criação do International

Finance Corporation (IFC), cujo papel era o de conceder empréstimos à empresas do

setor privado nos chamados países subdesenvolvidos. Estes países, como a Índia, Chile

e Iugoslávia, porém, não ficaram satisfeitos e, a despeito da oposição radical do governo

estadunidense de Eisenhower, preocupado com o aumento da presença da União

Soviética nos debates da ONU entre países subdesenvolvidos e também

industrializados, foi estabelecido, em 1952, pela Assembleia Geral, o Fundo Especial

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69

das Nações Unidas para o Desenvolvimento Econômico, no interior do ECOSOC

(Pereira, 2012).

Ao final de 1948, o economista indiano Arthur Lewis apresentou-se à David

Owen, que estava a frente do EPTA. Como Prebisch, Lewis havia escrito sobre a tríade

habilidades, recursos e instituições, baseando-se no governo britânico e na Sociedade

Fabiana sob a política social do desenvolvimento colonial (Murphy, 2006: 59). Por

meio de suas pesquisas sobre a transferência do trabalho a partir de um setor tradicional

para um setor capitalista moderno em condições de oferta de trabalho ilimitadas, Lewis

consolidou a “economia do desenvolvimento” como um campo específico de estudo.29

Para Lewis, os salários no setor capitalista moderno não deveriam ser determinados pela

produtividade do trabalho, mas pelo seu custo de oportunidade, uma vez que os baixos

salários e a pobreza numa economia excedente de trabalho persistiriam enquanto o custo

de oportunidade de trabalho para o setor capitalista fosse baixo.30

Nascido em 1913, em St. Lucia – pequena ilha do arquipélago das Caraíbas –,

Lewis afirmava ser seu interesse no desenvolvimento econômico parte de seu “anti-

imperialismo”. Publicou escritos como Princípios de Planejamento Econômico com a

Sociedade Fabiana – um braço intelectual do Partido Trabalhista britânico –, e como

membro de um grupo de peritos convocado pela ONU, que incluía o neoliberal

Theodore W. Schultz, Lewis formulou um modelo para o desenvolvimento incluindo a

rápida industrialização e reformas sociais.31

29 Cf. United Nations. “W. Arthur Lewis: Pioneer of Development Economics” in UN Chronicle. Disponível em: http://unchronicle.un.org/article/w-arthur-lewis-pioneer-development-economics/. Acesso em 21/06/2015. 30 Idem. 31 Ibidem.

Page 70: 1. DISSERTAÃ⁄Ã…O FINAL

70

Em 1949, Lewis e George Hakim – um dos antigos alunos libaneses do MESC –

foram responsáveis por projetar um relatório que abarcasse o problema global do

chamado subdesenvolvimento sugerido pela ONU. Mais tarde, Lewis afirmou:

Éramos informados de que muitos dos membros das nações da ONU viam com grande preocupação o aumento da disparidade entre o mundo desenvolvido e o subdesenvolvido (...). Esse é o porquê de nos perguntarmos o quê e quanto poderia ter custado ter uma taxa de aumento no mundo subdesenvolvido comparável com a da Europa Ocidental (Lewis apud Murphy, 2006: 59).

A preocupação central do pós-guerra para a ONU e para os EUA era a

reconstrução da Europa e do Japão e suas condições de estabilidade. Porém, as nações

recém descolonizadas ou ainda “jovens” entrariam no quadro da ONU sobre

desenvolvimento como grande ponto a ser debatido. Como efeito, destacaram-se

questões em torno da necessidade de um maior financiamento de investidores e de

maiores empréstimos concedidos pela ONU, além de apenas assistência técnica. As

discussões sobre uma agência multilateral para financiar o desenvolvimento nos países

mais pobres acirravam-se, culminando numa divisão entre a coalizão dos chamados

países desenvolvidos, liderada pelos EUA, em oposição ao Fundo Especial, apoiado por

um bloco formado pela Holanda, União Soviética e Checoslováquia.

De acordo com Murphy, a questão de estabelecer ambientes institucionais para o

desenvolvimento em meio às operações da ONU por muitas décadas limitou-se ao nível

nacional, indiretamente, por meio da assistência técnica do que viria a se tornar o

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) (Ibidem: 65). Segundo

o historiador, o EPTA atribuía um nível de financiamento alvo para cada país, no qual o

Representante Residente, o governante ou o Quadro de Assistência Técnica convocava

especialistas estrangeiros, ou locais que estavam sendo treinados fora do país para uma

série de projetos. Já o Fundo Especial não possuía sistema de autorizações

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71

predeterminadas para países ou regiões específicas. Os recursos para pesquisas e

estudos para investimentos de capital envolviam grupos de especialistas e eram

administrados centralizadamente nos escritórios da ONU. Desse modo, a tendência

descentralizadora do EPTA e a tendência centralizadora do Fundo Especial eram

complementares.

A fusão dos dois programas passou a ser discutida em 1962. As Agências

Especializadas, interessadas na descentralização administrativa, tenderam a se opor a

esta combinação. A União Soviética, deste lado, temia o domínio de duas agências

comandadas pelos Estados Unidos e, do outro lado, as chamadas nações em

desenvolvimento exigiam manter a facilidade de financiamento do desenvolvimento da

ONU por meio da fusão (Ibidem: 66). Em 1964, o ECOSOC e o então Secretário Geral

da ONU, U Thant of Burma, endossaram a fusão dos dois programas e a formação de

um grupo de especialistas. Em novembro de 1965 foi assinada a resolução que

oficializou o PNUD, o qual passou a funcionar em janeiro de 1966 (Ibidem: 66), com

Paul Hoffman como administrador e David Owen como coadministrador. Segundo

Murphy (Ibidem: 67), os EUA haviam financiado mais da metade das despesas do

EPTA desde 1949 até a emergência do PNUD, o que justificava o fato do primeiro

administrador do PNUD ser estadunidense, considerado herói do Plano Marshall e

homem de confiança do Congresso e do presidente Johnson.

Com a resolução de número 1020, de agosto de 1964, oficializou-se a fusão do

EPTA com o Fundo Especial, sob a alegação de que tal consolidação

percorreria um longo caminho na racionalização das atividades exercidas separadamente e em conjunto pelos dois programas, simplificaria disposições e procedimentos organizacionais, facilitaria o planejamento e necessitaria da coordenação dos vários tipos de programas de assistência técnica realizados no âmbito do sistema ONU de organizações, aumentando a sua eficácia (ONU, 1964: 1).

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72

A resolução reconhecia “o crescimento em volume e em escopo das solicitações

para a assistência por parte dos países em desenvolvimento” (Idem: 1). Previa que a

combinação entre os dois programas fosse entendida como a fusão das funções

específicas de cada programa, a serem mantidas (Ibidem: 2). Além disso, determinava o

estabelecimento de um comitê intergovernamental, o Conselho de Governo do PNUD, a

fim de prover uma política de orientação geral para o PNUD e para os programas

regulares de assistência técnica da ONU, com 37 membros – a serem selecionados pelo

ECOSOC dentre os Estados-membros da ONU, dentre os membros das Agências

Especializadas, ou dentre os membros da International Atomic Energy Agency,

equilibrando as representações entre os países considerados desenvolvidos e os que

passaram a ser chamados “em desenvolvimento” (Ibidem: 3).

As chamadas habilidades constituíram um dos pilares na formação do PNUD

para o foco no desenvolvimento. Interessava enviar pessoas do “mundo em

desenvolvimento” para instituições em países industrializados para treinamento, bem

como enviar especialistas do “mundo desenvolvido” para os chamados países “em

desenvolvimento”. Como se verá no próximo movimento deste capítulo, o trânsito de

especialistas e suas experiências nas mais diversos lugares do planeta, ocasionados pelo

próprio PNUD, tornou-se uma prática bastante comum e útil na produção de capital

humano.

1.4. os especialistas do desenvolvimento pelo planeta

cooperação técnica e seus fluxos

Antes da emergência do PNUD, o Programa Expandido de Assistência Técnica

(EPTA) projetou uma larga gama de especialistas, maior do que qualquer outro

Page 73: 1. DISSERTAÃ⁄Ã…O FINAL

73

programa de ajuda multilateral até então, e formou especialistas habilitados a replicar

“lições” de um lugar em outro. Foi isso que tornou o PNUD, segundo Hugh

Keenleyside, “um sistema de ajuda internacional mútua’ e ‘recíproca’. Foi essa

característica (...) que fez do sistema da ONU para o desenvolvimento a inovação mais

‘importante’ e ‘encorajadora’, talvez desde a Revolução Industrial; algo que pode ajudar

a assegurar a humanidade de um futuro duvidoso” (Keenleyside apud Murphy, 2006:

78-79).

Os governos dos chamados países em desenvolvimento, para Craig Murphy,

tiveram papel central no trabalho para o desenvolvimento do sistema ONU devido ao

modelo de como o desenvolvimento deveria ser atingido, dos anos 1940 aos anos 1970,

de fortalecimento do Estado e de prioridade à criação de um ambiente de instituições

nacionais aptas a assegurar que os recursos fossem encaminhados a seus devidos fins

(Murphy, 2006: 79). Toda a evolução dos “programas para países” do PNUD deu-se

baseada na necessidade de combinar o fluxo de insumos externos com as necessidades

descritas em um plano econômico nacional coerente (Idem: 79). Nesse sentido, afirma

ter Paul Hoffman, ainda mais do que Arthur Lewis, trabalhado contra o “preconceito ao

planejamento”, predominante nos anos 1950, na medida em que, para a ONU, o

planejamento era sempre uma questão dos Estados. Passou-se a combinar, portanto, o

planejamento dos Estados com o das Agências em prol do desenvolvimento.

Em 1959, nos dez anos da criação do Programa Expandido de Assistência

Técnica (EPTA), o conceito de “assistência técnica”, como ajuda internacional aos

países na época chamados de subdesenvolvidos, foi substituído pela Assembleia Geral

da ONU pelo termo “cooperação técnica”:

A Assembleia Geral, Tomando nota do que os programas de assistência técnica das Nações Unidas, após dez anos de operação, tem se tornado, agradecendo ao

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74

crescimento contínuo do número de países participando ativamente na execução dos programas de cooperação técnica internacional, 1. Considerando que, nas atuais circunstâncias, o termo “cooperação técnica” pode descrever mais precisamente a natureza da assistência provida pelas Nações Unidas e pelas agências especializadas por meio dos programas de assistência técnica; 2. Expressa-se o desejo de que o termo “assistência técnica” seja substituído pelo termo “cooperação técnica” para designar, tanto o programa regular de assistência técnica das Nações Unidas como o Programa Expandido de Assistência Técnica, e respondendo aos pedidos do Conselho Econômico e Social em considerar a possibilidade dessa mudança e reportá-la] na quinquagésima sessão da Assembleia Geral. 841º reunião plenária 20 de novembro de 1959.32

Pressupondo uma relação de trocas e mutualidade33 para o desenvolvimento

internacional, o termo “cooperação técnica” pareceu mais oportuno por indicar não mais

o caráter passivo dos receptores de intervenções, como maior autonomia e,

simultaneamente, responsabilidade aos países considerados em desenvolvimento.

Junto com esta reformulação, emergiu o conceito de “capacitação institucional”

(institution building). De acordo com documento34 do Escritório da ONU sobre Drogas

e Crimes (UNODC, na sigla em inglês), elementos ligados à capacitação institucional

são encontrados em quase todos os acordos internacionais, planos de ação e projetos

específicos para o desenvolvimento ligados à corrupção ou temas mais gerais como boa 32 General Assembly. Fourteenh Session – 1383 (XIV). Expanded Programme of Technical Assistance. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/142/06/IMG/NR014206.pdf?OpenElement. Acesso em 22/07/2016. 33 O termo “mutualidade” neste contexto, corresponde à responsabilização destes países pelos seus estágios de desenvolvimento. Não se deve confundir com a prática do apoio mútuo proposta pelo anarquista Pierre-Joseph Proudhon, supondo a partilha da terra, divisão das propriedades, independência do trabalho, separação das indústrias, especialidade das funções, responsabilidade individual e coletiva, redução ao mínimo dos gastos gerais, supressão do parasitismo e da miséria (Proudhon, 1986: 122), em uma articulação econômica que substitui gradualmente a unidade do Estado por meio do sistema federativo. Segundo Proudhon, “A sua lei fundamental, característica, é esta: na federação, os atributos da autoridade central especializam-se e restringem-se, diminuem de número, de intermediários, e se ouso assim dizer, de intensidade, na medida em que a Confederação se desenvolve pela acessão de novos Estados” (Proudhon, 2001: 91). 34 UNODC. Chapter III – Institution Building. Disponível em: http://www.unodc.org/pdf/crime/corruption/toolkit/AC_Toolkit_chap3.pdf. Acesso em 20/06/2016.

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75

governança. Quando emergiu, o conceito teria focado na construção ou expansão de

instituições e habilidades técnicas para operá-las, o que muitas vezes teria falhado, pois,

segundo o documento, hoje se tem claro que as reformas não devem concernir apenas às

instituições, mas também aos indivíduos que fazem parte delas35 – além da necessidade

de liderança que promova integridade, transparência, confiança e accountability36.

Foi a partir da década de 1970, porém, que se passou a debater de forma mais

direta a autonomia e especificidade de cada país considerado “em desenvolvimento” em

relação ao papel do PNUD e seus Representantes Residentes no local de atuação.

Em 1967, o Banco Mundial e o PNUD iniciaram, conjuntamente, uma série de

avaliações sobre qual seria a melhor forma de coordenar o rápido crescimento de suas

operações e solicitações, devido ao aumento de seus fundos, que cresciam 20% ao ano

desde 1959 (Ibidem: 140). O então presidente do Banco Mundial, Robert McNamara,

almejando um veredito sobre o papel do sistema internacional para o desenvolvimento,

que argumentava ser maior do que nos tempos do Plano Marshall, encomendou um

relatório chefiado por Lester B. Pearson, ex-Primeiro Ministro do Canadá, e levado

intelectualmente por Arthur Lewis. Por parte do PNUD, Hoffman reportou-se a Robert

Jackson – especialista em assistência técnica da ONU para o chamado “mundo em

desenvolvimento” – para uma avaliação do trabalho das Agências Especializadas

(Ibidem: 143).

Tanto Hoffman como Jackson apoiavam-se na necessidade de fortalecer o papel

dos Residentes Representantes do PNUD, em vez de confiar no que chamavam de

“bombardeios” do FMI e do Banco Mundial, referindo-se à missões de curto prazo

35 Idem. 36 Palavra da língua inglesa que remete à capacidade empresarial de transparência e prestação de contas a instâncias superiores e reguladoras, à sociedade e a seus stakeholders. Estes seriam os investidores ou as partes interessadas em um empreendimento.

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76

dessas instituições sem conhecimento do local em que estavam atuando (Ibidem: 144).

O relatório de Robert Jackson, que ficou conhecido como Capacity Study, apresentava o

desenvolvimento como um problema multifacetado envolvendo políticas, cultura,

sociedade e economia. Como esse conjunto variaria em cada região, defendia o

“empoderamento” dessa combinação de forças em cada país específico. Remetendo aos

argumentos de Arthur Lewis e Raúl Prebisch sobre planejamento, o relatório concluiu

que projetos específicos poderiam ser formulados pela cooperação entre governos e os

Representantes Residentes, a quem seria dada total autoridade para aprovar pequenos

projetos (Ibidem: 144). Já maiores projetos poderiam envolver, ainda, a cooperação com

uma das Agências, mas seriam os planos de governo que deveriam determinar o que o

PNUD financiaria. Às sedes das Agências Especializadas caberiam responsabilidades de

coordenação de garantias e programação de orçamentos, criando um novo sistema de

contabilidade e de informação que as ligaria e geriria um sistema unificado apoiado no

pessoal da ONU.

O relatório, que segundo Murphy foi apreciado por “encarregados subalternos

mais bem qualificados do mundo em desenvolvimento”, recebeu inúmeras críticas de

grandes nomes. David Owen, por exemplo, alegou que a assistência para o

desenvolvimento da ONU estava sendo sobreposta pelo sistema crescente de

cooperação internacional por meio de Agências Especializadas, muitas das quais não

foram originalmente concebidas como órgãos com responsabilidades operacionais,

fazendo com que o programa de assistência financiado pelo PNUD e por orçamentos

regulares da ONU fosse implementado por mecanismos transplantados de estruturas

jamais pensadas para esse fim (Owen, 1969: 51).

Já as Agências Especializadas viram o relatório como um assassinato às suas

relações que teriam sido tomadas como meros imperativos burocráticos (Murphy, 2006:

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77

145). Porém, embora reprovado até mesmo por Hoffman, que inclusive entendeu que o

relatório o atacava pessoalmente como um atraso ao sistema para o desenvolvimento da

ONU, o relatório teve grande suporte dos governos do Sul e, segundo Murphy, de Cuba

governada por Fidel Castro ao Irã (Idem: 148).

De dentro do Conselho de Governo da ONU, um jovem diplomata indiano,

Muchkund Dubey, levantou esforços para direcionar elementos do Capacity Study à

questões relativas aos chamados países em desenvolvimento, resultando no chamado

Consenso do Conselho de Governo de junho de 1970, que acatou a recomendação do

relatório de se criar ciclos de cinco anos específicos para o planejamento de cada país, e

a avaliação de projetos realizadas pelo governo do país concedido e pelo PNUD

juntamente com a Agência executora. (Ibidem: 148).

Em 1971, após a aposentadoria de Hoffman, Rudolph Peterson – banqueiro

estadunidense diretor do Bank of America na Califórnia – foi nomeado administrador do

PNUD pelo então presidente dos EUA, Richard Nixon (1969-1974), em uma época que

os EUA forneciam 40% dos fundos do PNUD. Como Peterson continuou trabalhando

no Banco na Califórnia, escolheu dois vice-administradores para trabalhar a seu lado:

Bert Lidstrom, importante doador sueco, e I. G. Patel – economista indiano que foi

diretor da London School of Economics, trabalhou no governo indiano, no FMI e como

Diretor Executivo suplente do Banco Mundial.

Patel, que via o PNUD como excessivamente burocrático, e considerando que as

“verdadeiras questões” sobre o desenvolvimento ainda não haviam sido resolvidas com

o Consenso coordenado por Dubey, convocou-o para formar um novo consenso em

torno do que chamou de “novas dimensões de cooperação técnica”, aprovado pela

Assembleia Geral em 1975. Passou-se, então, a considerar básico e fundamental que

cada país considerado “em desenvolvimento” construísse sua própria capacidade de

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78

executar projetos, por meio de especialistas e meios nacionais (Murphy, 2006: 152).

Tornou-se necessário o investimento em “práticas particulares” de cada país e a

“tradução de conhecimentos” em novos contextos, direcionados ao conhecimento

originário de cada cultura.

Já a gestão de Bradford Morse, terceiro administrador do PNUD, é considerada

importante no quesito financiamento, bem como na difusão e aprovação de

“especialistas do desenvolvimento”, em um contexto de obstáculos de financiamento de

projetos advindos dos EUA na década de 1970, após a guerra do Vietnã e a chamada

“Guerra do Yom Kipur” (Ibidem: 157), em que os membros da Organização dos Países

Exportadores de Petróleo (OPEP), liderados pela Arábia Saudita, apoiaram a guerra do

Egito contra Israel utilizando o petróleo como arma, cortando temporariamente vendas

aos EUA e Holanda, aliados de Israel (Idem: 156). Em 1978, Morse recrutou Arthur

Brown, ex-diretor do Banco Central Jamaicano, como administrador associado do

PNUD para substituir tanto I. G. Patel como Bert Lidstrom. Morse era tido como aliado

da maioria dos países membros do Sul na ONU, e tanto ele como Brown aproveitavam

sua reputação na região para angariar novos programas ou fundos voltados para o

desenvolvimento na ONU (Ibidem: 162). Foi com este mesmo raciocínio, de angariar

esforços e investimentos dos chamados países em desenvolvimento, que foi fundado o

Fundo de População da ONU (UNFPA, na sigla em inglês), em 1969, e o Voluntariado

da ONU (UNV, na sigla em inglês).

Este último foi criado pela ONU em 1970 para funcionar como um programa

operacional na cooperação para o desenvolvimento, segundo site oficial do PNUD no

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79

Brasil37. E a maioria de seus voluntários advinha de países considerados “em

desenvolvimento” e eram profissionais altamente qualificados.

um empreendimento planetário

Em 1977, Brown e Morse criaram o programa TOKTEN (Transfer of

Knowledge Through Expatriate Nationals – “Transferência de Conhecimentos Através

de Expatriados Nacionais”), em que especialistas altamente qualificados de cada país,

juntamente com o governo do país e o PNUD, identificavam os projetos necessários

para cada local.38

Segundo o site oficial do PNUD no Líbano, o Programa introduziu o TOKTEN

com interesse em reverter as perdas causadas pelo êxodo de seus especialistas

expatriados, ou os efeitos do fenômeno denominado brain-drain [fuga de capital

humano] em brain gain [ganho de capital humano].39 O TOKTEN almeja, nesse

sentido, identificar necessidades específicas por meio do conhecimento dos especialistas

da cultura, linguística, habilidades e capacidades locais para “facilitar a transferência de

tecnologia e as relações locais”40. Segundo o site oficial do UNV, órgão pertencente ao

PNUD que gere o TOKTEN desde 1994, a maioria dos especialistas mantém contato

com especialistas de outros países, dos quais compartilham literatura, equipamentos e

também são frequentemente enviados para treinamentos ou missões em instituições

37 Cf. PNUD. UNV. Disponível em: http://www.pnud.org.br/unv.aspx. Acesso em 10/10/2015. 38 Cf. UN Volunteers. TOKTEN. Disponível em: http://www.unv.org/fileadmin/docdb/pdf/2008/TOKTEN_factsheet_01.12.2008.pdf. Acesso em 10/10/2015. 39 UNDP in Lebanon. TOKTEN Worldwide History. Disponível em: http://www.toktenlebanon.org/about/about.php. Acesso em 11/10/2015. 40 Idem.

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80

estrangeiras das quais são filiados, e são responsáveis por abranger uma grande

variedade de técnicas especializadas.41

A maioria dos profissionais do TOKTEN são advindos dos chamados países em

desenvolvimento. Segundo o programa, são pessoas qualificadas que vão trabalhar no

exterior em decorrência “da falta de oportunidades e emprego, diferenças salariais,

insatisfação salarial, em seus países de nascença”42. Em relação à “fuga de capital

humano”, o TOKTEN é considerado bastante eficiente por conseguir fazer com que

esses profissionais regressem a seu país de origem para consultorias de curto prazo em

prol do melhor meio para a promoção do desenvolvimento específico de cada país. É

considerado, portanto, “um sistema de transferência de conhecimentos e de

competências avançadas”43.

41 Cf. UN Volunteers. TOKTEN. Disponível em: http://www.unv.org/fileadmin/docdb/pdf/2008/TOKTEN_factsheet_01.12.2008.pdf. Acesso em 10/10/2015. 42 UNDP in Lebanon. TOKTEN, Brain Drain and Human Development. Disponível em: http://www.toktenlebanon.org/about/tokten_brain.php. Acesso em 10/10/2015. 43 Idem.

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81

Logo do Programa TOKTEN.44

A década de 1970 é marcada por transformações do desenvolvimento, seus

objetos e por transformações do próprio neoliberalismo. O desenvolvimento dos

programas e planos voltados para a reconstrução econômica pós-guerra que, como

apresentado, já apresenta proveniências no investimento inteligente dos veteranos de

guerra, refina-se a partir dos investimentos nos indivíduos como imbuídos de capital

humano. Não ocorre como sobreposição, mas há a interligação do desenvolvimento

econômico dos Estados com o desenvolvimento dos indivíduos entendido,

44 UNDP. Tokten. Disponível em: http://www.ps.undp.org/content/papp/en/home/operations/tokten.html. Acesso em: 10/10/2015.

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82

principalmente a partir da década de 1970 no campo das relações internacionais, como

oferecimento de capacidades.

Pelo Programa TOKTEN pode-se perceber, na esteira de tais transformações,

um pouco do funcionamento de um campo em que, conforme as análises de Nicolas

Guilhot, atuam defensores dos direitos humanos, ou especialistas na “transição

democrática”, de filiações múltiplas ou missões pontuais, que orbita em torno de uma

política de Estado, e portanto não é possível demarcar limites entre o governamental e

não-governamental, estatal e não-estatal (Guilhot, 2003: 210-211). Nos EUA, esse

mecanismo estaria no cerne da constituição do foreign policy establishment – uma

política externa voltada ao fortalecimento do Estado (Idem: 210). Segundo o cientista

político, estes especialistas advêm principalmente das grandes lutas anti-imperialistas

dos anos 1970 – tanto representantes da sociologia política da modernização durante a

Guerra Fria, quanto saídos do campo dos Latin American Studies45 (Ibidem: 212).

Guilhot sinaliza para uma estratégia de privatização da política exterior

desenvolvida durante a chamada Guerra Fria em que ONGs, Fundos e Programas

permitiram um desengajamento do governo ao mesmo tempo em que mantiveram um

certo tipo de intervencionismo político (Ibidem: 214). Mecanismo que teria permitido

também a contestação de uma administração neoconservadora da pretensão liberal de

monopolizar esse campo como extremo portador de direitos humanos (Ibidem: 214).

Assim como se evidencia o funcionamento da racionalidade neoliberal atrelada a uma

estratégia do desenvolvimento que não opera por meio de ideologias, durante o

momento enquadrado como Guerra Fria houve um grande investimento dos direitos 45 Segundo seu site oficial, “A Latin American Studies Association é a maior associação profissional do mundo composta de indivíduos e instituições dedicadas ao estudo da América Latina. Com mais de 12.000 sócios, quase 60% dos quais residindo fora dos Estados Unidos, a LASA é uma associação que reúne especialistas de todas as disciplinas e profissões que dedicam-se ao estudo da América Latina em todo o mundo”. Cf. LASA. Sobre a LASA. Disponível em: https://lasa.international.pitt.edu/por/about/. Acesso: em 24/05/2016.

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83

humanos ou do desenvolvimento humano na democracia, configurando-se em um meio

intelectual que conecta diferentes tendências políticas e formações profissionais.

Guilhot aponta para uma renovação das “classes dirigentes” dos EUA, da qual

decorreu a inserção de um ativismo ideológico na política exterior, possibilitando, por

exemplo, o que chama de “bolchevismo de direita” – antigos esquerdistas que tomaram

parte de um movimento neoconservador contra a radicalização da esquerda; o que irá

aproximá-la ao anticomunismo liberal (Ibidem: 218). Essa formação de militantes será

interessante a uma mobilidade social dentro do campo dessas organizações

internacionais. Nas palavras de Guilhot, pode-se dizer que “as mesmas qualidades que

faziam desses ativistas ‘revolucionários profissionais’, [é] que vão transformá-los em

policy professionals nos anos 1970, depois em democracy experts, sob a administração

Reagan (Ibidem: 221), nos anos 1980. Nesse sentido, será mais interessante o grau de

funcionalidade e utilidade da “bagagem”, formação e experiência destes profissionais

do que o conteúdo “ideológico” propriamente dito pelo que já vivenciaram.

O novo campo de profissionais e especialistas descrito por Guilhot passa pelo

campo universitário, com a produção de política exterior, consultoria, cargos

governamentais, administração de think tanks de direita, instituições do

desenvolvimento, etc. Em relação aos novos Estados descolonizados, principalmente na

década de 1990, por exemplo, se anteciparão os riscos de instabilidade provocados pela

modernização capitalista que os EUA exportavam e, simultaneamente, serão

favorecidas reformas para o desenvolvimento que permitem canalizar as forças sociais

que a mesma exportação mobiliza (Ibidem: 226).

A crítica de Guilhot, porém, gira em torno da privatização da política exterior e

trabalha com uma noção de exportação de dentro dos EUA para fora, seguindo a noção

de “imperialismo do universal” de Pierre Bourdieu. Já a presente análise busca

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evidenciar um interesse comum do desenvolvimento como uma estratégia que, ligada a

recursos, instituições e especialistas, transforma-os em agentes de uma governança em

âmbito planetário.

No TOKTEN, tido como programa de amplo sucesso, há um grande pessoal

qualificado e investido como capital humano, independentemente de suas aspirações

políticas ou econômicas, para promover melhorias que reflitam as especificidades de um

grupo. Assim, interessa como Guilhot mapeia as migrações de ocupantes de cargos

públicos nos EUA para funções em Fundações e Institutos de organizações

internacionais, mas não desmascarar essas migrações como novas estratégias do

imperialismo estadunidense.

Nos anos 1970, vê-se, ainda, o engajamento do PNUD com partidos e

movimentos revolucionários de diversos países em prol da governança global, com

pretensões “neutras e precisas”, de acordo com valores formatados sob a rubrica desse

novo modo de pensar e se desenvolver.

Na China, por exemplo, o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) global

do PNUD de 2013, intitulado “A Ascensão do Sul: Progresso Humano num Mundo

Diversificado”, sinaliza para uma série de mudanças complexas interligadas pelas quais

o país viveu ao final da década de 1970 – de uma economia planificada para uma

economia de mercado; do rural para o urbano; da agricultura para a indústria

transformadora e os serviços; de atividades econômicas informais para formais; de uma

economia bastante fechada ao mundo exterior para uma superpotência do comércio

internacional, etc. (PNUD, 2013: 74). Todas elas teriam sido orientadas em benefício do

mercado e exigiram uma estratégia a longo prazo do Estado para a construção de

capacidades e instituições.

Além disso, a China teria composto uma administração pública “mais jovem,

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85

mais aberta e com um nível superior de educação” (Ibidem: 74). Segundo o RDH, a

reforma para a abertura da China decorreu de uma vontade explícita ao final da década

de 1970 de diminuir restrições econômicas à participação das pessoas (Ibidem: 75). De

acordo com Craig Murphy (2006: 177), em 1978, a China, sob a nova política de Deng

Xiaoping, decidiu chamar o PNUD para engajá-la com a economia global. Incluiu-se

uma abordagem com 22 leis econômicas que explicitamente fundavam uma economia

de mercado, bem como a introdução de um conceito fundamental de governo:

seguridade social (Idem: 178). Foram realizados pelo PNUD fóruns de alto nível sobre a

informatização de cidades na região da Ásia/Pacífico, que trouxeram oficiais de governo

e líderes de corporações de toda a região focados no uso de informação tecnológica para

promover a chamada governança e o acesso a serviços urbanos, bem como interessados

em criar uma infraestrutura necessária para a efetiva participação na economia global

(Ibidem: 180).

Também na década de 1970, o TOKTEN foi implementado no Irã, tornando-o o

maior patrocinador das inovações do PNUD. O governo do Shah Reza Pahlavi (1941-

1979) proveu significante capital inicial para a UNV (“Voluntários da ONU”) e o Fundo

de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM, na sigla em inglês)

(Ibidem: 191). Quando o Shah foi derrubado pela Revolução Iraniana, em janeiro de

1979, os funcionários do PNUD e especialistas estrangeiros foram forçados a evacuar; a

guarda da revolução confiscou os principais veículos do Programa, e seu escritório,

como muitas embaixadas no Teerã, teve de se retirar (Ibidem: 191). Em novembro,

militantes ocuparam a embaixada dos EUA, onde diplomatas foram mantidos reféns por

mais de um ano. Como resposta, os EUA e seus aliados isolaram o regime

revolucionário, tanto econômica quanto politicamente, algo que se intensificou ainda

mais quando o Iraque invadiu o Irã, em setembro de 1980.

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86

O PNUD permaneceu com uma única agência em Teerã46, e, portanto,

intermediária entre o Irã e o resto do sistema ONU. O TOKTEN ajudou, no pós-guerra

do Irã, a reestabelecer a indústria do petróleo e aumentar o montante que poderia ser

extraído de suas reservas e, segundo Murphy, outros programas sustentados pelo PNUD

também se moveram em direção à abertura política e a um “ambiente mais eficaz para

os negócios” (Ibidem: 193). Para o historiador, as visitas de conhecidos economistas

iranianos que moravam no exterior e sessões de treinamento com uma variedade de

especialistas internacionais em problemas particulares, bem como a entrada na OMC

(Organização Mundial do Comércio) ou a implementação de um sistema de exportação

alinhado às orientações do FMI, foram de ajuda incalculável, e, em suas palavras,

apenas o PNUD foi considerado “neutro o suficiente” para conectar o país a conselhos

não-partidários (Ibidem: 193).

No ano seguinte à criação do TOKTEN, em 1978, a Assembleia Geral da ONU

institucionalizou a chamada Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento

(CTPD), reiterando a formalização do conceito de “cooperação técnica” – “cooperação

horizontal ou também “cooperação Sul-Sul” –, com foco nos países da América Latina,

como uma modalidade da cooperação internacional para o desenvolvimento, em

contraponto à cooperação Norte-Sul. Com o fomento deste conceito, reconheceu-se,

formalmente, que, em termos de tecnologia e experiência em desenvolvimento, os

países do Sul tinham muito a oferecer a eles mesmos, e que as soluções vindas de países

do Norte eram, muitas vezes, bastante imprecisas pela falta de conhecimentos locais.

46 Anteriormente, foram introduzidas o Alto Comissariado para Refugiados (UNHCR, na sigla em inglês), a União Internacional de Telecomunicação (UIT), a Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA, na sigla em inglês), entre outras, compondo quarenta ou cinquenta agências contando com as organizações regionais e agências bilaterais para o desenvolvimento.

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87

A CTPD foi vista como forma de difusão do que chamou de “sustentabilidade

dos projetos de desenvolvimento”, ao aumentar as possibilidades de soluções entres os

países considerados em desenvolvimento, e ao cortar custos advindos de ajuda externa.

Na Conferência da Buenos Aires de 1978, com a participação de todos os países

membros da ONU, foram estabelecidos no PNUD uma Unidade Especial de CTPD e

um Comitê de Alto Nível.47 Em nome do fortalecimento das relações entre os chamados

países em desenvolvimento, estabeleceu-se que estes países poderiam alcançar maior

controle e responsabilidade sobre a distribuição de seus recursos, capacidades e

necessidades, bem como o reconhecimento de uma demanda aos chamados “problemas

do desenvolvimento”, em consonância com uma governança global:

Enquanto o progresso dos países em desenvolvimento depende primariamente de seus próprios esforços, este progresso é também afetado pelas políticas e performance dos países desenvolvidos. Ao mesmo tempo, é evidente que, como consequência do alargamento das relações internacionais, da cooperação e da interdependência em muitos campos, o progresso dos países desenvolvidos agora está, e de modo cada vez maior, afetado pelas políticas e performance dos países em desenvolvimento (UN, 1994: 03).

Como um “processo multidimensional”, a CTPD é tida, pela ONU, como uma

nova dimensão da cooperação internacional para o desenvolvimento, abrindo espaço

para os países “em desenvolvimento”. Em seu estabelecimento, remete-se

principalmente às resoluções anteriores da Assembleia Geral da ONU, como as de maio

de 1974, que contiveram a Declaração e o Programa de Ação para o Estabelecimento de

uma Nova Ordem Econômica Mundial; a de dezembro de 1974, que conteve a Carta de

Direitos Econômicos e Deveres dos Estados; e a de setembro de 1975 sobre cooperação

e desenvolvimento econômico internacional (Idem: 4).

47 Cf. FAO. What is TDCD?. Disponível em: http://www.fao.org/focus/e/tcdc/intro-e.htm. Acesso em 20/07/2016.

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88

Em 1995, o Comitê de Alto Nível para a CTPD publicou um relatório em que se

examinam suas experiências, e no que se concluiu que o conceito de “cooperação

técnica entre países em desenvolvimento” permanecia válido e de crescente importância

em meio às alterações que ocorriam na estrutura internacional de cooperação técnica

multilateral. Argumentou-se que apesar das mudanças econômicas que afetaram

negativamente estes países desde o final da década de 1980, a CTPD abriu espaço para

oportunidades e a diferenciação entre eles (UN, 1995: 2). Este relatório ainda previa a

necessidade de identificar países que serviriam como “agilizadores” na implementação

da CTPD, bem como na promoção de um regime de cooperação triangular, em que os

doadores concordariam em financiar o intercâmbio entre países em desenvolvimento, e

o uso de uma Unidade Especial para a CTPD como mecanismo facilitador de

transferência de projetos de sucesso. Remete-se, ainda, à adoção de novas dimensões

em cooperação técnica pelo Conselho de Governo do PNUD, reiterando que “a decisão

do Comitê de Alto Nível sobre novos rumos para a CTPD será de contribuir para o

desenvolvimento ulterior da Comissão como um instrumento dinâmico de apoio a um

empreendimento realmente global para o desenvolvimento” (Idem: 3 – grifos meus)

(UNDP, 1995).

A despeito do aperfeiçoamento, complementariedade ou mesmo substituição de

seus conceitos como instrumentos para as políticas de desenvolvimento, como no caso

da substituição do conceito de “assistência técnica” por “cooperação técnica”, pode se

dizer que o próprio PNUD constitui-se, desde a sua emergência, como este

“empreendimento global para o desenvolvimento”. Em 1995 é também publicado pela

ONU o relatório Our Global Neighborhood, enfatizando o fim da Guerra Fria e as

novas formas de pensar a segurança globalmente. Este relatório, remetendo à Carta de

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89

fundação da ONU e os preceitos da paz entre os Estados, evidencia-se como ápice do

discurso da governança global na ONU (Oliveira, 2016: 30).

Estes novos arranjos no âmbito da ONU e do PNUD possibilitaram que os

“países desenvolvidos” adentrassem na cooperação Sul-Sul como investidores deste

novo empreendimento, em que o PNUD, como mediador das trocas ou intercâmbios e

como replicador de modelos entre diversas localidades, porém com características

comuns, tornou-se cada vez mais eficiente ao funcionar em meio a uma

governamentalidade planetária.

fluxos de inteligências e suas irradiações

Ao longo de sua história – desde a sua constituição em meio ao planejamento no

pós-Segunda Guerra Mundial, bem como durante a chamada Guerra Fria e após a

derrocada da União Soviética como inimigo comum do “mundo livre” –, o PNUD

reuniu pessoas advindas de diferentes meios, com diferentes interesses, recursos, de

diferentes instituições e áreas, de países “desenvolvidos” e “em desenvolvimento”.

Na formação do PNUD passaram figuras como Raúl Prebisch, de formação

keynesiana pela Faculdade de Economia em Buenos Aires, que, em 1949, assumiu o

cargo de Secretário Executivo do CEPAL e teve uma breve, porém significativa

passagem pelo EPTA quando estabeleceu importantes diretrizes para o que chamou de

“problema do desenvolvimento”. Arthur Lewis, que publicou escritos com a Sociedade

Fabiana e chegou a se autodeclarar anti-imperialista, consolidou a “economia do

desenvolvimento” como um campo específico de estudo, e dividiu o Prêmio Nobel de

Economia, em 1979, com o neoliberal Theodore Schultz. Ambos foram membros da

mesma equipe na ONU quando Lewis formulou um modelo para o desenvolvimento

incluindo a rápida industrialização e reformas sociais, e quando Schultz analisava o

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90

papel da agricultura na economia e desenvolvia a teoria do capital humano, motivando

investimentos no ensino técnico e vocacional pelas instituições do Sistema Breton

Woods (FMI e Banco Mundial).

De forma não restrita ao PNUD, mas conectando o vasto campo do

desenvolvimento como estratégia de governamentalidade, o indiano V. K. R. V. Rao,

que fora estudante de Keynes, foi importante por estabelecer, em 1950, a questão de

empréstimos com taxas reduzidas na agenda da ONU, sugerindo que seria necessário

cinco ou dez vezes o montante transferido anualmente pelo Plano Marshall aos países

“em desenvolvimento”. Rao foi presidente da Sub-Comissão da ONU para o

Desenvolvimento Econômico, que levou ao estabelecimento da IDA (Interational

Development Association – “Associação Internacional de Desenvolvimento”) – agência

do Banco Mundial que concedia empréstimos aos chamados países desenvolvidos com

uma taxa mais baixa que a do mercado.

Muitos iniciaram sua carreira na guerra. Hugh Keenleyside, que serviu para a

Força Expedicionária canadense na Primeira Guerra Mundial, tornou-se Diretor-Geral

da Administração de Assistência Técnica da ONU, em 1949, durante a administração de

David Owen no EPTA.

Já Paul Hoffman, utilizou sua experiência como servidor do Exército na

Primeira Guerra Mundial e como empresário do ramo automobilístico nos EUA para

administrar o Economic Cooperation Administration, um programa de ajuda para a

Europa, no interior do Plano Marshall, introdutor da questão da cooperação em termos

de desenvolvimento. Foi o primeiro administrador do PNUD e, em 1974, foi premiado

com a Medalha Presidencial da Liberdade pelo presidente Nixon. Robert Jackson, que

foi seu consultor em apoio técnico, logístico e de pré-investimento para países

considerados “em desenvolvimento”, iniciou sua carreira profissional na Marinha Real

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(Royal Navy) do Reino Unido, em 1937, onde se destacou pela defesa de Malta durante

a Segunda Guerra Mundial. Dali foi nomeado conselheiro principal no Gabinete de

Guerra do Cairo, com o MESC (Centro de Abastecimento do Oriente Médio). Jakcson

foi responsável pelos projetos do UNRRA (UN Relief and Rehabilitation

Administration), considerada a primeira grande operação de reconstrução no pós-guerra

na Europa, partes da África e do Extremo Oriente. Durante o ano de 1971, ajudou a

implementar projetos do PNUD em 60 países. Jackson foi casado com Barbara Ward –

presidente, desde 1973, do Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o

Desenvolvimento, e autora de Spaceship Earth48, publicado em 1966.

Lester B. Pearson também serviu o Exército, nas duas guerras mundiais, e

tornou-se Primeiro Ministro do Canadá, em 1963, e líder do Partido Liberal. Pearson é

considerado mentor das Forças de Manutenção de Paz da ONU e recebeu, em 1957,

Prêmio Nobel da Paz por seu papel, como Ministro das Relações Exteriores do Canadá,

na mediação da Crise de Suez, entre o Egito e as potências ocidentais. Em 1967,

Pearson liderou a “Comissão Pearson”, que reuniu durante dois anos especialistas de

diferentes países para uma análise sobre a cooperação internacional para o

desenvolvimento. Em 1970, fundou o International Development Research Centre no

Canadá.

Rudolph Peterson, segundo administrador do PNUD, foi CEO do Bank of

America, desde 1936 e presidente do Banco de Honolulu. Bradford Morse serviu o

Exército dos EUA na Segunda Guerra Mundial. Foi Chefe de Justiça do Tribunal

48 Segundo Leandro Siqueira em Ecopolítica: derivas do espaço sideral (2015), este livro de Ward – que foi resultado de uma série de conferências no laboratório federal de pesquisas nucleares Brookhaven National Laboratory – pretendia reforçar a ideia de interdependência e vulnerabilidade planetária. Ao estabelecer a relação entre desenvolvimento e meio ambiente e a interdependência entre riqueza e recursos naturais, via na proliferação de blocos econômicos, principalmente a ONU, uma unidade global propícia para a estabilidade e a paz onde países mais ricos pudessem ajudar os chamados subdesenvolvidos (Idem: 260).

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92

Superior de Justiça de Massachusetts e professor da Faculdade de Direito da

Universidade de Boston. Em 1958, foi administrador adjunto da Administração de

veteranos de guerra dos EUA. Em 1960, foi Representante do Partido Republicano no

Congresso dos EUA e, em 1972, assumiu o cargo de Secretário dos Assuntos Políticos

da Assembleia Geral da ONU, antes de substituir Peterson como administrador do

PNUD, em 1976.

William Draper foi o quarto administrador do PNUD, a partir de 1986. Graduou-

se em economia, junto com George H. Bush (presidente dos EUA entre 1989 e 1993),

na Universidade de Yale. Em 1951, serviu como segundo tenente na Guerra da Coreia.

Em 1954, cursou mestrado em Negócios e, poucos anos depois, tornou-se sócio na

empresa Draper, Gaither & Anderson, a primeira empresa de capital de risco na Costa

Oeste. Em 1965, fundou a Sutter Colina Ventures, que até hoje continua a ser uma das

principais firmas de capital de risco no país, além de ter sido responsável por financiar

várias centenas de companhias de alta tecnologia. Antes de assumir o cargo de

administrador do PNUD, foi presidente do Export-Import Bank dos Estados Unidos

(liderança nos esforços norte-americanos para apoiar o comércio mundial frente aos

problemas de liquidez entre os chamados países em desenvolvimento). Durante sua

gestão, o paquistanês Mahbub ul Haq teve um papel importantíssimo ao liderar a equipe

do Relatório de Desenvolvimento Humano. Ul Haq foi PhD em Economia pela

Universidade de Yale e possuía pós-doutorado pela Universidade de Harvard. Em 1970,

tornou-se diretor de Planejamento Político do Banco Mundial. Em 1982, assumiu o

cargo de Ministro das Finanças e Planejamento do Paquistão e, em 1989, tornou-se

Conselheiro Especial na Administração do PNUD. Em 1990, foi laureado com o Prêmio

Nobel em Economia pela criação do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), grande

empreendimento do PNUD até hoje.

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Gustave Speth foi o sucessor de Draper como administrador do PNUD, a partir

de 1993. Speth graduou-se na Faculdade de Direito de Yale. Em 1970, tornou-se

advogado sênior e co-fundador do Conselho de Defesa dos Recursos Naturais dos EUA.

Em 1977, foi Conselheiro do governo de Jimmy Carter (1977-1981) sobre questões

ambientais e tinha responsabilidade geral pelo desenvolvimento e coordenação do

programa ambiental do governo. Em 1981, tornou-se professor de Direito Ambiental e

Constitucional na Georgetown University Law Center. Em 1982, fundou o World

Resources Institute, think tank ambiental em Washington. Ao adentrar para o PNUD

também assumiu o cargo de Coordenador Especial para Assuntos Econômicos e Sociais

do Secretário-Geral da ONU na época, Boutros Boutros-Ghali, pilotando o Plano de

Assistência ao Desenvolvimento da ONU e atuando como presidente do Grupo de

Desenvolvimento da ONU.

As estratégias que aglutinam políticas voltadas ao desenvolvimento, como um

vasto campo instrumentalizado pela racionalidade neoliberal que acopla interesses e

formações profissionais, puderam reunir todas essas pessoas de forma heterogênea,

porém não aleatória. Coube sublinhar o trânsito destas figuras tidas como grandes

promotoras da paz entre seus empreendimentos de guerra, vida acadêmica, ambiente

empresarial e cargos na burocracia estatal. Os empreendedores da paz no PNUD são

capacitados pela guerra como gestores dos negócios políticos e econômicos de Estado e

de empresas, assim como são laureados por prêmios e títulos acadêmicos para serem

reconhecidos como produtores de verdades planetárias.

Se o poder é um conjunto de relações de força em exercício de forma ascendente

e também descendente, não cabe analisar o poder no nível da intenção ou decisão; de

perguntar “quem detém o poder” (Foucault, 2010: 25). Se o poder é algo que só

existe em ato, em exercício, e se suas múltiplas relações de força não são de caráter

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apenas repressivo, pois são impulsionadas, em grande medida, por uma produção

constante que põe em circulação “uma certa economia dos discursos de verdade que

funcionam nesse poder, a partir e através dele” (Foucault, 2010: 22), interessam as

extremidades do poder, suas capilaridades que permitem entrelaçamentos heterogêneos

compondo uma estratégia.

Essas relações, estes entrelaçamentos do poder heterogêneos passam por pontos

singulares que atravessam e são atravessados tanto pelas forças dominadas como pelas

dominantes; por todos os aparelhos e instituições que o fazem convergir de alguma

maneira. E os indivíduos são simultaneamente intermediários e efeitos dessas relações

de força, uma vez que “o poder transita pelo indivíduo que ele constitui” (Idem: 26 –

grifo meu).

Conforme indicações de Gilles Deleuze (1992), a sociedade das disciplinas foi

ultrapassada pelas sociedades de controle, não predominando mais confinamentos, mas

controles contínuos e comunicação instantânea: “os confinamentos são moldes, distintas

moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem

autodeformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira

cujas malhas mudassem de um ponto a outro” (Idem: 225).

Foucault indicou, em Segurança, Território e População, o caráter centrípeto da

disciplina (Foucault, 2008: 58), no que se exerce por meio de confinamentos, isolando

um espaço, determinando um segmento. Ela circunscreve um espaço no qual seu poder

e seus mecanismos se dão. Já os dispositivos de segurança, que se configuraram no

lugar de um sistema jurídico-disciplinar na medida em que a população, com seus

fenômenos regulares, emerge como objeto de governo, são centrífugos (Idem: 59). De

acordo com Foucault, os dispositivos de segurança, que ultrapassaram as disciplinas,

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ampliam-se continuamente, integram e regulam novos elementos e comportamentos em

circuitos cada vez maiores.

Pensando nos deslocamentos das resistências da sociedade disciplinar para a de

controle, Passetti aponta para que, diferente da repressão e esperada docilidade na

primeira, na atual sociedade de controle ultrapassam-se os confinamentos por fluxos

inteligentes e pelo investimento em participação, organizados sob a forma de

programas (Passetti, 1999: 58). No lugar das especializações, abre-se espaço para

profissionais polivalentes em formação permanente e sob controle contínuo, tendo as

energias inteligentes dos sujeitos extraídas em fluxos de múltiplas procedências (Idem:

58). Em poder e anarquia (2007), as análises de Passetti sobre os novos trânsitos das

relações de poder na sociedade de controle mostram que estas são produzidas em fluxos.

Seus efeitos não são mais dirigidos ao combate ou extermínio de resistências, mas às

capturas que levam à inclusão (Passetti, 2007: 12).

Na presente análise, portanto, é possível pensar em algumas pessoas que

estiveram diretamente ligadas ao PNUD e aos programas que precederam à sua fusão,

não como sujeitos de uma história, mas como pontos pelos quais o poder transita sem

restringir-se a um espaço delimitado. Via pela qual passam e se direcionam os fluxos de

controle.

Assim como o exercício de poder como “condução de condutas” se dá como

uma forma de conduzir e de se comportar diante de uma liberdade entendida como

variedade de possibilidades (Foucault, 1995: 244), a noção de governo, conforme os

apontamentos de Michel Foucault, não se restringe a uma instância suprema. Ela possui

sentido amplo e bastante antigo, da condução da conduta dos homens, encontrando,

tanto no nascimento de uma nova arte de governar no século XVIII como com o

neoliberalismo estadunidense e alemão no pós-Segunda Guerra Mundial, uma

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96

racionalidade governamental composta por práticas de governo reproduzidas pelos

indivíduos e suas subjetividades (Foucault, 2007: 283-284).

Nesse sentido, as práticas de governo não devem ser pensadas como presas a

uma rigidez hierárquica de poder restrita às figuras influentes na constituição do PNUD

como programa. Interessa pensar o PNUD como irradiador dessas práticas

funcionando em meio a complexas, velozes e contínuas relações de força atravessadas

por todos aqueles que se disponibilizam a constituir-se como agente de governo, como

aquele que sabe gerir a si e suas escolhas de forma racional e responsável, como se verá

mais a frente, principalmente com os apontamentos de Amartya Sen sobre o

desenvolvimento humano, largamente utilizado pelas políticas orientadas e

implementadas pelo próprio PNUD. Em meio à sociedade de controle, circunscrita a

uma governamentalidade planetária, que, conforme as análises de Passetti, opera pela

inclusão e participação de cada um nos múltiplos fluxos como eficientes amortecedores

de resistências (Passetti, 2007), não cabe pensar sob a perspectiva da dominação e

neutralidade, mas dos assujeitamentos49.

***

A partir das indicações de Foucault sobre as relações de poder, Gilles Deleuze

pôde afirmar que é um erro acreditar que o saber aparece onde estão suspensas as

relações de força. Não há modelo de verdade que não remeta a um tipo de poder, e nem

um saber ou ciência que não exprima ou não implique um ato de poder se exercendo

(Deleuze, 1986: 48). E o que permite este ato do poder é precisamente o saber que

entrelaça pontos visíveis e o enunciável, bem como inversamente, como, por exemplo,

49 Sobre a noção de assujeitamento proposta por Michel Foucault, ver: Castelo Branco, 2000.

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97

as visibilidades da prisão e os enunciados do direito penal: “as duas formas não param

de entrar em contato, insinuando-se uma dentro da outra, cada uma arrancando um

segmento da outra: o direito penal não pára de remeter à prisão, de fornecer presos,

enquanto a prisão não para de reproduzir a delinquência, de fazer dela um objeto e de

realizar os objetivos que o direito penal concebia de outra forma” (Idem: 42).

Essas relações, estes entrelaçamentos do poder, são heterogêneos, pois passam

por pontos singulares que compõem uma estratégia, passando tanto pelas forças

dominadas como pelas dominantes; por todos os aparelhos e instituições que o fazem

convergir de alguma maneira.

A partir destes apontamentos sobre o poder e suas singularidades, Deleuze se

ateve à noção de diagrama apresentada por Foucault. Segundo ele, o filósofo define o

Panoptismo, ora como algo concreto – como agenciamento óptico que caracteriza a

prisão –, ora abstratamente, como uma máquina que atravessa todas as funções

enunciáveis, compondo-se não mais como um “ver sem ser visto”, mas “[impondo] uma

conduta qualquer a uma multiplicidade humana qualquer” (Ibidem: 43). Assim, partindo

do panóptico enquanto um dispositivo que compõe um local de troca de relações de

força que exercem uma função, o diagrama seria o mapa, ou os mapas sobrepostos,

destas relações funcionando em campo social, em um mecanismo.

[O diagrama] é a exposição das relações de forças que constituem o poder, segundo os caracteres analisados anteriormente (...), é o mapa das relações de forças, mapa de densidade, de intensidade, que procede por ligações primárias não-localizáveis e que passa a cada instante por todos os pontos (...). Certamente, nada a ver com uma Ideia transcendente, nem com uma superestrutura ideológica; nada a ver tampouco com uma infra-estrutura econômica, já qualificada em sua substância e definida em sua forma e utilidade. Mas não deixa de ser verdade que o diagrama age como uma causa imanente não-unificadora, estendendo-se por todo o campo social: a máquina abstrata é como a causa dos agenciamentos concretos que efetuam suas relações; e essas relações de força passam, “não por cima”, mas pelo próprio tecido dos agenciamentos que produzem (Ibidem: 46).

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Na presente pesquisa, optou-se, porém, pela organização de um fluxograma,

mais afeito ao itinerários em fluxos dos promotores da paz aqui descritos na sociedade

de controle. Mais do que ocupar o que se poderia supor como postos de poder, o fluxo

em variedades de ocupações, títulos e prêmios nos permite acompanhar como se

compõe uma elite catalizadora e modular que produz as conexões e acoplamentos da

chamada governança global. Seu efeito é a irradiação de condutas assujeitadas, modo

como se conectam modelos e programas em âmbito planetário, produzindo práticas de

governo nos recantos mais ermos construídos como vulneráveis.

A seguir, um fluxograma apresenta algumas das pessoas aqui mencionadas, que

estiveram diretamente relacionadas à gestão dos administradores do EPTA e do Fundo

Especial e, posteriormente, os primeiros cinco administradores do PNUD. Busca-se

apontar para alguns itinerários e deslocamentos em meio ao afinamento e

redimensionamentos centrados no PNUD e sua produção.

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2. GOVERNAMENTALIDADE PLANETÁRIA E AS

ABORDAGENS DO DESENVOLVIMENTO

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O segundo capítulo desta dissertação, “governamentalidade planetária e as

abordagens do desenvolvimento”, se atém às institucionalizações e instrumentos do

PNUD que se alinham e atendem a uma governamentalidade que funciona em âmbito

planetário. Percorrem-se publicações, relatórios e documentos do Programa que

demonstram tentativas de um redimensionamento da segurança após a chamada Guerra

Fria. Ao conectar-se com as prerrogativas para o desenvolvimento, a segurança calcada

no humano culmina na introdução de práticas de governo e securitizações no mais

ínfimo da conduta das pessoas.

O primeiro movimento do capítulo, “construção de novos alvos sob o jugo da

paz planetária”, acompanhando as análises sobre a ecopolítica do planeta, volta-se para

redimensionamentos específicos da segurança. Parte-se do exemplo da Somália, país

emblemático presente sempre no topo dos rankings de Estados falidos, para enfatizar a

construção de novos alvos a serem perseguidos quando da dissolução do inimigo

soviético, passando a compor uma responsabilidade a ser compartilhada pela chamada

comunidade internacional. O conceito de segurança humana, como abordagem do

PNUD para o alcance do desenvolvimento, emerge na década de 1990 com o objetivo

de responder às novas formas de intervenção, não mais restritas aos países, mas atuando

em ambientes específicos e enfatizando a relação destes com a conduta das pessoas que

o habitam.

Em um segundo movimento, “o desenvolvimento humano e a construção de uma

abordagem para a vida”, dá-se continuidade às análises sobre a segurança humana, com

enfoque no desenvolvimento humano, que mostra sua eficiência na complementaridade

aos próprios direitos humanos. Destaca-se a produção do economista paquistanês

Mahbub ul Haq e do econometrista indiano Amartya Sen na construção das abordagens

da segurança e do desenvolvimento humanos, baseadas na lógica da liberdade, tomada

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como um valor, e das oportunidades, como garantias para a realização de escolhas

responsáveis.

Em seguida, expõe-se a construção do Índice de Desenvolvimento Humano

(IDH), também na década de 1990, elaborado por ul Haq e Sen, constituindo-se até hoje

como um dos mais importantes instrumentos táticos do PNUD para a identificação de

focos de vulnerabilidade. Facilmente ajustável e acoplável, o IDH e suas variações são

largamente utilizados pelo PNUD para a orientação e operacionalização das chamadas

“políticas públicas” no âmbito de Estados, ONGs, institutos, organizações da sociedade

civil, etc., evidenciando-se como importante instrumento na governamentalidade

planetária. Este movimento ainda apresenta características e peculiaridades produzidas

pelo IDH brasileiro, buscando expor alguns exemplos de seu funcionamento.

No terceiro e último movimento, intitulado “abordagem do desenvolvimento

humano sustentável”, são apresentados os novos contornos do desenvolvimento no

âmbito do PNUD. O desenvolvimento humano e sustentável não estará restrito à

sustentabilidade do meio ambiente e dos recursos naturais, mas, novamente, almeja

estreitar as relações entre as pessoas e o ambiente em que vivem. Como um

desdobramento deste movimento, encerrando o capítulo, são expostas algumas das

produções e conceitos projetados para a agenda da ONU e do PNUD referente ao século

XXI. Nesse sentido, destaca-se a resiliência como eficiente aglutinador dos conceitos e

abordagens que formatam uma lógica das responsabilidades alinhada à racionalidade

neoliberal. Na busca de minar ameaças e as chamadas vulnerabilidades, a resiliência se

mostra, também, eficiente disseminadora de relações de poder e práticas penalizadoras.

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2.1. a construção de novos alvos sob o jugo da paz planetária

construção do fracasso

No âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), no período enquadrado

como Guerra Fria, os EUA e a União Soviética interpunham vetos às resoluções que

afetavam seus interesses, muitas vezes paralisando o Conselho de Segurança da ONU

(Rosas, 2008: 21). Com a extinção da União Soviética, o Conselho de Segurança passou

por uma série de reformas, principalmente entre os anos de 2004 e 2005, com a

ampliação do número de membros não permanentes e permanentes.50

Neste período, foram criadas duas novas instituições no sistema ONU: A

Comissão de Construção da Paz (CCP) e o Conselho de Direitos Humanos (CDH).

Ambas fundamentam-se por consenso; suas recomendações são levadas à Assembleia

Geral da ONU e assessoradas pelo Conselho de Segurança. A CCP desenvolve medidas

para a consolidação da paz “pós-conflitos”, para que estes não ressurjam,

principalmente após intervenções das Operações de Manutenção de Paz (OMPs),

realizadas pelos “capacetes azuis” da ONU.

Desde a fundação da ONU, logo após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, até

hoje, foram realizadas mais de 60 destas operações, tendo sido a maior parte

implementada na década de 1990. Segundo o site oficial da ONU, na época de

rivalidades da Guerra Fria, as operações de paz limitavam-se à manutenção e

monitoramento de cessar-fogo. Já após este período, a ONU expandiu seu campo de

50 Em 2004 fizeram parte do Conselho de Segurança da ONU os países: Argélia, Angola, Benin, Brasil, Chile, Alemanha, Paquistão, Filipinas, Romênia e Espanha. Em 2005, participaram Argélia, Argentina, Benin, Brasil, Dinamarca, Grécia, Japão, Filipinas, Romênia e Tanzânia. Cf. UN Security Council. Countries Elected Members of the Security Council. Disponível em: http://www.un.org/en/sc/members/elected.asp. Acesso em: 10/04/2016.

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104

atuação, “de missões ‘tradicionais’ envolvendo somente tarefas militares, a complexas

operações ‘multidimensionais’ criadas para assegurar a implementação de abrangentes

acordos de paz e ajudar a estabelecer as bases para uma paz sustentável”51. Ainda

segundo a ONU, embora a força militar seja o suporte principal das operações, as

missões atualmente contam com “administradores e economistas, policiais e peritos em

legislação, especialistas em desminagem e observadores eleitorais, monitores de direitos

humanos e especialistas em governança e questões civis, trabalhadores humanitários e

técnicos em comunicação e informação pública”52; o que parece permitir uma maior

precisão e eficiência das intervenções e das garantias de paz “pós-conflito”.

Um dos primeiros casos e mais emblemáticos desta nova forma de intervenção,

bem como do processo de conservação da paz, remete à Somália, país africano, em

1992. De acordo com o PNUD, o país está em conflito armado desde 1988 e sem um

“governo central funcional” desde 1991, quando o ditador Siad Barre (1969-1991) foi

derrubado por clãs opositores.53 O desencadeamento de “convulsões violentas seguidas

por um período prolongado de anarquia54 e guerra”55 teria levado ao estabelecimento,

pelo Conselho de Segurança da ONU, da Operação da ONU na Somália I (UNOSOM I,

51 Cf. ONU. A ONU, a paz e a segurança. Disponível em: https://nacoesunidas.org/acao/paz-e-seguranca/. Acesso em 08/10/2015. 52 Idem. 53 Cf. UNDP. About Somalia. Disponível em: http://www.so.undp.org/content/somalia/en/home/countryinfo/. Acesso em 08/09/2015. 54 O documento identifica anarquia à guerra de todos contra todos, seguindo a tradição filosófico-política ou jurídico-política em associar a ausência de governo centralizado no Estado como desordem e violência. Argumento este utilizado para justificar o monopólio da violência no Estado. Tal posicionamento ignora, propositalmente, as análises de anarquistas como Pierre-Joseph Proudhon, em afirmar outras formas de convivência livres que suprimem a guerra como atividade central do Estado. O federalismo político descentralizado baseado na associação, para Proudhon, propicia o estabelecimento de relações mutualistas no campo econômico e, portanto, pacíficas no campo político e social (Proudhon, 2001). 55 Idem.

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na sigla em inglês), em 1992, e a Operação da ONU na Somália II (UNOSOM II, na

sigla em inglês), a partir de maio de 1993.56

De acordo com o documento oficial da ONU sobre a operação, a UNOSOM I foi

criada para “facilitar a ajuda humanitária às pessoas presas pela guerra civil e a fome”57.

A missão teria desenvolvido uma tentativa ampla de interromper seus conflitos locais e

de reconstituir as consideradas instituições básicas de um Estado viável, uma vez que a

Somália ocupa uma posição geopolítica estratégica importante no Chifre da África e sua

cultura política é influenciada pela concorrência entre um número de clãs e facções,

segundo a argumentação do documento.

Este alega que desde 1991 ocorriam fortes combates na capital somali,

Mogadíscio, bem como na cidade portuária Kismayo e no Noroeste do país, onde

predominavam líderes locais e facções. Além disso, tais alianças sem um controle

central teriam se combinado a uma grave seca, culminando no deslocamento de cerca de

2 milhões de pessoas de suas casas.

Em janeiro de 1992, foi aprovada a Resolução n. 733, sob o abrigo do Capítulo

VII da Carta das Nações Unidas58, impondo o embargo completo de armas na Somália.

56 Os países que contribuíram com pessoal militar na UNOSOM I foram: Austrália, Áustria, Bangladesh, Bélgica, Canadá, Tchecoslováquia, Egito, Fiji, Finlândia, Indonésia, Jordânia, Marrocos, Nova Zelândia, Noruega, Paquistão e Zimbábue. Na UNOSOM II contribuíram Austrália, Bangladesh, Bélgica, Botsuana, Canadá, Egito, França, Alemanha, Gana, Grécia, Índia, Indonésia, Irlanda, Itália, Kuwait, Malásia, Marrocos, Nepal, Holanda, Nova Zelândia, Nigéria, Noruega, Paquistão, Filipinas, República da Coréia, Romênia, Arábia Saudita, Suécia, Tunísia, Turquia, Emirados Árabes Unidos, Estados Unidos, Zâmbia e Zimbábue. Cf. UN. Somalia – Unosom I – Facts and Figures. Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unosom1facts.html. Acesso em: 21/09/2015 e UN. Somalia – Unosom II – Facts and Figures. Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unosom2facts.html. Acesso em: 21/09/2015. 57 Cf. UN. United Nations Operation in Somalia I. United Nations, Department of Public Information. Disponível em: http://www.un.org/Depts/DPKO/Missions/unosomi.htm. Acesso em 20/09/2015. 58 Neste capítulo, intitulado “Ação relativa a ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão”, consta que, em caso de ruptura ou ameaça à paz, o Conselho de Segurança deverá tomar medidas efetivas, podendo convidar os membros da ONU para aplicá-las, e podendo incluir “a interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos, ou de qualquer espécie e o rompimento das relações diplomáticas” (ONU, 1945: 25). No caso de tais medidas se mostrarem inadequadas, segundo a Carta, o Conselho de Segurança

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Em março, uma nova Resolução (n. 746) pediu a continuação do trabalho da ONU,

quando também foram assinados acordos entre partidos rivais em Mogadíscio,

resultando na distribuição de observadores da ONU para monitorar o cessar-fogo – o

que reuniu 40 militares e uma unidade de infantaria para fornecer comboios de

suprimentos de emergência.59 Em abril, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a

Resolução n. 751, que deu início à UNOSOM I. Foram enviados 50 observadores

militares desarmados à Mogadíscio, vindos da Áustria, Bangladesh, Checoslováquia,

Egito, Fiji, Finlândia, Indonésia, Jordânia, Marrocos e Zimbábue. Em julho, a operação

foi reforçada com a criação de quatro zonas operacionais – em Berbera, Bossasso,

Mogadíscio e em Kismayo – apoiadas por uma equipe técnica, cada uma com sua

unidade militar, chegando a totalizar 4219 soldados em setembro.

Em outubro do mesmo ano, segundo o documento da operação, após um conflito

no aeroporto de Mogadíscio e “na ausência de um governo capaz de manter a lei e a

ordem, organizações de socorro vivenciaram um aumento de sequestro de veículos,

saques de comboios e armazéns e detenções de pessoal expatriado”60.

Após o ocorrido, foi aprovado, em dezembro de 1992, a Força Tarefa Unificada

(UNITAF, na sigla em inglês), em que o Conselho de Segurança aprovou a “oferta” dos

EUA de “ajudar a criar um ambiente seguro para a prestação de ajuda humanitária na

Somália”, e autorizou, também sob o abrigo do Capítulo VII da Carta da ONU, o uso de

“todos os meios necessários” para fazê-lo.61 O presidente dos EUA na época, George H.

Bush, deu início à Operação Restore Hope, na qual os EUA assumiram o comando da

poderá lançar mão da ação que julgar necessária, via forças aéreas, navais ou terrestres, “para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais” (Idem: 26). 59 Idem. 60 Ibidem. 61 Ibidem.

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intervenção da ONU na Somália, além de contar com unidades militares advindas da

Austrália, Bélgica, Botsuana, Canadá, Egito, França, Alemanha, Grécia, Índia, Itália,

Kuwait, Marrocos, Nova Zelândia, Nigéria, Noruega, Paquistão, Arábia Saudita, Suécia,

Tunísia, Turquia, Emirados Árabes Unidos, Reino Unido e Zimbabué. Ao todo, a

UNITAF cobriu cerca de 40% do território somali com seus soldados. No entanto,

segundo o documento oficial da operação, apesar de uma melhora, um ambiente seguro

ainda não havia sido estabelecido, em decorrência da ausência de um governo eficaz em

funcionamento, de uma polícia civil organizada e de um exército nacional

disciplinado.62 Em 1995, em meio a conflitos entre os militares da ONU e as milícias

locais, e a dificuldade de negociações – culminando no conhecido desastre Black Hawk

Down63 –, a UNOSOM foi retirada da Somália.

Em 1997, foi realizada uma conferência de reconciliação nacional em Sodere, na

Etiópia, da qual derivou o estabelecimento do Conselho de Salvação Nacional, com 41

membros, para a criação de um governo de transição para a Somália.64 Segundo a

Missão de União Africana para a Somália, a Conferência foi boicotada pelo então

presidente do país, Mohammed Farah Aidid, e pelo governo da Somalilândia. Apenas

em 2000, após a Conferência de Paz Nacional da Somália (ou Conferência Djibouti), foi

estabelecida a Declaração de Arta e a formação do Governo Nacional de Transição, que

garantiram o reconhecimento internacional do país, bem como seu assento na ONU.65

62 Ibidem 63 Em outubro de 1993, uma força militar de elite estadunidense foi enviada à Mogadíscio para capturar generais que obedeciam ao líder somali Mohammed Farah Aidid, quando dois helicópteros UH-60 Black Hawk foram derrubados, dando início a um confronto que matou 19 soldados estadunidenses e cerca de 1000 somalianos. 64 Cf. AMISON. Somali Peace Process. Disponível em: http://amisom-au.org/about-somalia/somali-peace-process/. Acesso em 23/09/2015. 65 Ibidem.

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Em 2003, foi realizada a 15ª Conferência de Reconciliação Nacional da Somália,

promovida pela Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento na África

Oriental, que produziu um acordo de cessar-fogo assinado por 24 líderes de facções e

estabeleceu o Governo Federal de Transição, formalmente concluído com a adoção da

Carta Federal de Transição.66 Em 2006, uma missão do exército etíope, apoiada pelos

EUA, expulsou a União de Cortes Islâmicas em Mogadíscio, que teria se dividido em

várias facções e continuado a confrontar o Estado de Transição e a presença militar

etíope na Somália.67 O período de transição política da Somália, que teve o apoio da

ONU, da União Africana e da União Europeia em todo o processo, foi considerado

encerrado, em 2012, com a eleição de Hassan Sheikh Mohamud como presidente.

Mohamud trabalhava como consultor no Governo Nacional de Transição para o

estabelecimento de Coordenação da Ajuda Somália e Unidade de Gestão no interior do

Ministério de Planejamento de Cooperação Internacional.68 Ao longo de sua carreira,

trabalhou como consultor em várias organizações locais e internacionais ligadas ao

desenvolvimento: em 1993, trabalhou na UNICEF como oficial de educação nas zonas

Sul e Central da Somália; em 1995, foi um dos principais envolvidos na mediação e

conciliação entre facções políticas, após a saída da UNOSOM I; em 1999, realizou

pesquisas de avaliação de necessidades de mercado e identificou a importância da

criação de centros técnicos e profissionais na Somália, tornando-se um dos fundadores

do Instituto de Gestão e Desenvolvimento da Somália; e, em 2001, juntou-se ao Centro

de Pesquisa e Diálogo como investigador na reconstrução da Somália pós-conflito, e foi

66 Ibidem. 67 Cf. AMISON. Brief History. Disponível em: http://amisom-au.org/about-somalia/brief-history/. Acesso em 23/09/2015. 68 Cf. Alshahid Webmaster. “The New President of Somalia, who is Hassan Sheikh Mahmoud?” in Network Alshahid. 11/09/2012. Disponível em: http://english.alshahid.net/archives/31546. Acesso em 24/09/2015.

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eleito pela chamada sociedade civil, em Mogadíscio, como líder do Fórum Somali da

Sociedade Civil.69

Como presidente da Somália, Mohamud fundou o Partido da Paz e

Desenvolvimento, e sua eleição foi considerada “ponto culminante de um processo de

paz regional apoiado pela ONU”70, além de classificada pelos EUA como “um marco

no processo em que o país conflagrado pela guerra tenta por fim a mais de 20 anos de

violência, corrupção e divisão entre clãs”71.

De forma complementar às missões de paz da ONU, o PNUD atua na chamada

“construção da paz” [peacebuilding], treinando equipes locais e recuperando a

infraestrutura e as atividades econômicas locais. Segundo o PNUD global, seu trabalho

concentra-se na “prevenção de conflitos e na construção da paz, promovendo coesão

social de nações e capacitação de comunidades para se tornarem resilientes a choques

externos e internos”72. Seu trabalho se resume em três grandes áreas de atuação: 1)

capacidade para a prevenção e gestão de conflitos – com a criação de marcos

regulatórios e mecanismos institucionais que auxiliem o alcance de acordos e a

antecipação de conflitos futuros, bem como a construção de capacidades de liderança

envolvendo as chamadas sociedade civil e “comunidades marginalizadas”, por meio de

agendas compartilhadas e abordagens participativas; 2) facilitação, diálogo e

construção de consenso – por meio do acompanhamento de mediadores nacionais e

locais em torno de questões de governança e consolidação da paz de maneira inclusiva e

69 Idem. 70 Cf. Yara Bayoumy Reuters. “Após duas décadas de guerra civil, Somália elege presidente” in O Estado de S. Paulo. 10/09/2012. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,apos-duas-decadas-de-guerra-civil-somalia-elege-presidente,928566. Acesso em 24/09/2015. 71 Idem. 72 UNDP. Conflict prevention and peacebuilding. Disponível em: http://www.undp.org/content/undp/en/home/ourwork/democratic-governance-and-peacebuilding/conflict-prevention-and-peacebuilding/. (Grifo meu). Acesso em 09/10/2015.

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participativa; 3) análise do conflito e avaliação – apoio à prevenção de conflitos em

desenvolvimento dentro do sistema ONU, por meio da avaliação e monitoramento dos

conflitos e suas tendências para uma resposta mais ágil e eficaz.

Desde 2012, quando o processo de construção da paz na Somália foi considerado

encerrado, o PNUD promoveu a construção de uma Constituição, adotada em agosto do

mesmo ano. O Somali Compact, assinado em 16 de setembro de 2013 na New Deal

Conference em Bruxelas, é tido como roteiro para a promoção da construção do Estado

e construção da paz até 2016 na Somália, o que inclui cinco metas de peacebuilding

[“construção da paz”] e statebuilding [construção do Estado] relativas à: processos

políticos inclusivos, segurança, justiça, fundações econômicas e receitas e serviços.73

Segundo o PNUD, o desenvolvimento não pode ser entregue aos somali, mas

deve crescer a partir de dentro, ou seja, o povo da Somália deve estar no centro de seu

próprio desenvolvimento.74 Seu trabalho no país é diretamente ligado ao Governo

Federal de Transição e aos governos da Somalilândia e Puntlândia, bem como à

chamada sociedade civil, ONGs locais e internacionais, e outras agências da ONU.

Atualmente, seus projetos dividem-se em cinco áreas: políticas de inclusão,

segurança, justiça, fundações econômicas e serviços.75 Dentre alguns exemplos,

destaca-se a promoção de “segurança comunitária”, financiada pelo Escritório de

Recuperação e Prevenção de Crises do PNUD (BCPR, na sigla em inglês), pela

Comissão Europeia, pelo Democratic Governance Thematic Trust Fund, e pelos

governos da Suécia, Dinamarca, Alemanha, Japão, Noruega e Bélgica. Segundo o site

73 Cf. UNDP. About UNDP in Somalia. Disponível em: http://www.so.undp.org/content/somalia/en/home/operations/about_undp.html. Acesso em: 24/09/2015. 74 Idem. 75 Cf. UNDP in Somalia. Our Projects. Disponível em: http://www.so.undp.org/content/somalia/en/home/operations/projects/overview.html. Acesso em 23/09/2015.

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oficial do projeto, almeja-se envolver as comunidades locais com o governo, a polícia

local e o sistema de justiça para construir um ambiente seguro, por meio da participação

ativa dos segmentos “vulneráveis” da sociedade no planejamento, monitoramento e

execução de serviços de segurança.76

Há também o projeto de “Desenvolvimento Econômico Local”, financiado pelo

governo da Noruega, Reino Unido e Grécia, pelo Match Against Poverty, BP

International, Kline, NYK, Stena AB, Shell Foundation, Mitsui & Co. e Bra-Maersk.

Também com foco nas comunidades locais, este projeto se concentra na capacitação

destas por meio da geração de empregos e renda para as populações tidas como

vulneráveis.77 São criados empregos em curto prazo – através do trabalho intensivo de

reabilitação de infraestruturas sociais básicas, como captação de água, estradas de

acesso, escolas, centros de saúde, etc. – e a longo prazo, por meio do chamado

treinamento de habilidades (skillstraining) e da provisão de instrumentos para a

inicialização de trabalhos após este treinamento.78 São os próprios moradores que

aplicam o projeto, trabalhando no aprimoramento das infraestruturas locais e

empreendendo novos negócios criados por meio de políticas de microcréditos e da

capacitação para a prestação de serviços diversos.

O último Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) sobre a Somália data

de 2012 e centra-se nos jovens do país, argumentando que “ao colocar a juventude no

centro da análise, a assistência humanitária e a construção da paz podem se tornar mais

ágeis através da mobilização e capacitação de jovens como agentes positivos de

76 Cf. UNDP in Somalia. Comunity Security. Disponível em: http://www.so.undp.org/content/somalia/en/home/operations/projects/poverty_reduction/Community_Safety_and_Armed_Violence_Reduction.html. Acesso em 24/09/2015. 77 Cf. UNDP in Somalia. Local Economic Development. Disponível em: http://www.so.undp.org/content/somalia/en/home/operations/projects/hiv_aids/local-economics-development-project.html. Acesso em: 24/09/2015. 78 Idem.

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mudança” (PNUD, 2012: V). De acordo com o relatório, a construção de Estados

[statebuilding] não é sinônimo da construção de paz [peacebuilding], mas é parte

integrante desta:

Intervenções de construção de Estados procuram desenvolver estruturas estatais funcionais e autossustentáveis que restabeleçam o contrato social entre o Estado e os cidadãos e promovam a legitimidade do Estado (...). O plano para um Estado funcional não pode ser importado de outros lugares, pois isso seria negar o caráter endógeno da formação do Estado (...). O desafio para a construção da paz é como trabalhar com a sociedade e convencer aqueles que detêm o poder de construir um Estado que está enraizado na sociedade (Idem: 110-111).

Diante do investimento das Operações de Paz do Conselho de Segurança da

ONU e dos inúmeros projetos do PNUD na Somália, o país é considerado caso

emblemático de Estado falido, liderando o ranking de Estados Falidos do Fund For

Peace79, de 2008 à 2013. A forma de intervir e gerir os chamados “conflitos” em

territórios considerados ao mesmo tempo vulneráveis à e produtores de ameaças para a

paz em âmbito planetário, remete a um deslocamento do objetivo e do objeto da

79 Segundo site oficial, o Fund for Peace é uma organização independente, não partidária e sem fins lucrativos que trabalha para a prevenção de conflitos violentos e para a promoção de segurança sustentável, por meio do treinamento em educação e engajamento da sociedade civil, ligando diversos setores e desenvolvendo tecnologias inovadoras e ferramentas para tomadores de decisões. Cf. Fund for Peace. Disponível em: http://global.fundforpeace.org/aboutus. Acesso em 05/09/2015. Segundo a instituição, o Índice de Estados Falidos “é baseado na Ferramenta do Sistema de Avaliação de Conflitos do Fund for Peace [The Fund for Peace's proprietary Conflict Assessment System Tool (CAST)]. Com base na metodologia abrangente de ciências sociais, os dados de três fontes primárias são triangulados e sujeitos a revisão crítica para obter pontuações finais para o Índice. Milhões de documentos são analisados a cada ano. Utilizando parâmetros de pesquisa altamente especializados, os escores são distribuídos para cada país com base em doze indicadores políticos, sociais e econômicos chave (que por sua vez incluem mais de 100 subindicadores) (...). Guiado por doze indicadores sociais, econômicos e políticos primários (cada um dividido em uma média por 14 subindicadores), o software CAST analisa as informações coletadas usando termos de pesquisa especializados que sinalizam itens relevantes. Utilizando algoritmos diferentes, esta análise é então convertida numa pontuação que representa a importância de cada uma das várias pressões para um dado país. A análise de conteúdo é ainda triangulada com dois outros aspectos fundamentais do processo de avaliação global: análise quantitativa e inputs qualitativos baseados em Principais acontecimentos nos países examinados. Os resultados produzidos pelo software do Fundo para a Paz são comparados com um conjunto abrangente de estatísticas vitais - assim como a análise humana - para garantir que o software não tenha interpretado os dados brutos de forma equivocada. Embora os dados básicos subjacentes ao Índice já estejam livremente e amplamente disponíveis eletronicamente, a força da análise está no rigor metodológico e na integração sistemática de uma vasta gama de fontes de dados”. Cf. FFP. The metodology Behind the Index. Disponível em: http://fsi.fundforpeace.org/methodology. Acesso em: 10/10/2016.

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113

segurança, em que todos os Estados são responsáveis pelos compromissos que

determinam, atualmente, uma boa governança global.

construção do perigo

Em junho de 1992, pouco depois da derrocada da União Soviética, o Secretário

Geral da ONU na época, Boutros Boutros-Ghali, publicou um documento intitulado An

Agenda for Peace – Preventive diplomacy, peacemaking and peace-keeping (“Uma

Agenda para a Paz – Diplomacia preventiva, construção da paz e manutenção da paz”).

Neste, que fora adotado pelo Conselho de Segurança da ONU, um novo conceito de

segurança aparece pela primeira vez envolto de uma nova abordagem a ser exercida

pela ONU e todos os seus países-membros, no que concerne ao equilíbrio da paz e da

segurança internacionais: o conceito de segurança humana (UN, 1992).

De acordo com este documento-agenda, as adversidades da Guerra Fria teriam

impossibilitado o cumprimento da “promessa original” de paz contida na Carta das

Nações Unidas de 1945 e, portanto, um novo compromisso assumiria a responsabilidade

de promover, ainda em conformidade com a Carta, a manutenção da paz e da segurança

em todo o planeta. Boutros-Ghali remete à Conferência das Nações Unidas sobre o

Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Eco-92) que acabava de ocorrer na cidade do Rio

de Janeiro, no mesmo ano, para firmar este novo compromisso voltado à prevenção de

conflitos e da guerra como intrínseco à promoção do desenvolvimento econômico e

social sustentável.

Em relação ao contexto da época, o documento relata que a “imensa barreira

ideológica” da Guerra Fria havia enfim terminado, e que, mesmo com a intensificação

de questões e desigualdades entre países do Norte e do Sul, a melhoria das relações

entre Leste e Oeste proporcionariam novas possibilidades, tais como um enfrentamento

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conjunto frente às ameaças à segurança global. O então Secretário Geral da ONU cita o

fim de regimes autoritários que teriam cedido lugar às forças democráticas e governos

responsáveis, indicando maior abertura econômica, bem como chama atenção para a

descolonização e independência de diversos países que reiterariam, no âmbito da

própria ONU, a importância da soberania dos Estados como entidade fundamental na

comunidade internacional. Nesse sentido, as intervenções estariam em vias de sofisticar-

se, almejando-se cada vez mais eficientes ao combinarem a agenda da segurança com a

do desenvolvimento – sendo este apenas possível em países com Estados construídos e

com indivíduos agentes de sua promoção – dentro de um território específico, porém

em consonância com os compromissos firmados em âmbito planetário.

O documento estabelece que nesta era de “transição global”, a paz social estaria

sendo desafiada por conflitos étnicos, religiosos, sociais, culturais ou linguísticos, bem

como por “atos de terrorismo que procuram minar a evolução e mudança através de

meios democráticos”80. A chamada “nova dimensão da insegurança” estaria sendo

provocada por problemas como o crescimento populacional descontrolado, as barreiras

comerciais, as drogas e a crescente disparidade entre ricos e pobres. A pobreza, a

doença, a fome e a opressão, segundo o documento, fariam com que os esforços para a

paz abrangessem assuntos para além de ameaças militares.81 Desse modo, a missão mais

ampla da ONU exigiria a responsabilidade e esforços para a paz de forma compartilhada

entre todos os Estados-Membros, em uma abordagem integrada em prol do que, pela

primeira vez, definiu-se como abordagem da segurança humana. Para tanto, o

documento reitera que o fundamento de estabilidade é, e deve continuar a ser, o Estado.

Enfatiza o princípio de soberania, porém aponta para uma mudança:

80 Idem, item 11. 81 Ibidem, item 13.

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O tempo da soberania absoluta e exclusiva, no entanto, já passou; sua teoria não foi acompanhada pela realidade. É tarefa dos líderes dos Estados entendê-lo e encontrar um equilíbrio entre as necessidades da boa governança interna e as exigências de um mundo cada vez mais interdependente.82

Assim, justifica-se a necessidade do planejamento de implantação preventiva de

operações e intervenções militares da ONU nas chamadas “áreas de crise”, devendo

inclusive ser solicitado pelos próprios países que sentem que possuem alguma ameaça à

comunidade internacional. Em relação ao pessoal envolvido, além da recomendação de

se utilizar “unidades de imposição da paz”, compostas por tropas voluntárias, pede-se a

disponibilidade dos Estados-Membros para participar das operações de manutenção da

paz, e requer a presença de agentes políticos e civis, monitores de direitos humanos,

funcionários eleitorais, refugiados e especialistas em ajuda humanitária e policiais.

Quando o conflito irrompe, esforços para a pacificação e manutenção da paz deverão

entrar em cena, e, uma vez que atinjam seus objetivos, trabalhos cooperativos entre

organizações, países, programas, etc., deverão então construir um novo ambiente83.

Craig N. Murphy (2006: 17) considera ser a história do PNUD importante em

relação a outras instituições fundadas no mesmo momento – em torno da década de

1960 –, por manter o compromisso e a esperança de uma cooperação internacional entre

o “mundo desenvolvido” e o “em desenvolvimento”, em meio a um “mundo de

terrorismo abastecido pelo desenvolvimento frustrado”, ou à inabilidade de um “mundo

em desenvolvimento” em alcançar o poder e a riqueza da Europa Ocidental, da América

do Norte ou do Japão, e nutrido em “Estados falidos” – desastres do desenvolvimento.

Assim, a promoção do desenvolvimento humano, principal proposta do PNUD

desde a criação deste conceito, em 1990 – conforme será visto no próximo movimento

82 Ibidem, item 17. 83 Ibidem, item 57.

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deste capítulo –, por meio da abordagem da segurança humana, é considerada

fundamental para a criação de condições de paz e de segurança globais.84

Um dos grandes acadêmicos produtores da classificação de Estados tidos como

“falidos”, o liberal Francis Fukuyama – que foi conselheiro político da gestão de Ronald

Reagan (1981-1989), e ficou famoso por ter escrito O fim da história e o último homem

(1992) com a consolidação definitiva das democracias liberais, além de especialista em

apoio humanitário para o capitalismo global –, indica, em Construção de Estados

(2004), que o fim da Guerra Fria teria deixado um grupo de países falidos e fracos:

países dos Bálcãs, do Cáucaso, Oriente Médio, Ásia Central e do Sul da Ásia. Este

fracasso derivaria, em grande medida, da dificuldade no processo de liberalização

econômica devido à ausência de uma estrutura institucional adequada (Idem: 20), bem

como da dificuldade em equilibrar e exercer o que chama de “escopo das atividades do

Estado” – referente às funções e metas assumidas pelos governos –, e a capacidade do

Estado de planejamento, execução de políticas e de fazer respeitar suas leis (Ibidem:

22). Ao fazer essa distinção, Fukuyama atribui aos chamados “países em

desenvolvimento” o que considera ser um erro comum em termos de desempenho

econômico: assumir mais atividades governamentais do que são capazes (Ibidem: 27-

28). Além disso, a sociedade, constituída por cidadãos do Estado, deve ser responsável

pela demanda interna por instituições ou reformas institucionais (Ibidem: 56), o que

estaria sendo um grande obstáculo nos países “em desenvolvimento”. Isso acabaria

levando à necessidade de gerar demanda externa, advinda de organismos de ajuda,

doadores ou credores externos via programas e empréstimos, ou por meio de

autoridades externas que reclamam para si a soberania dos chamados “Estados falidos”

84 Cf. PNUD. O PNUD e a ONU. Disponível em: http://www.pnud.org.br/PNUD_ONU.aspx. Acesso em 05/08/2015.

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(Ibidem: 56). Porém, destaca que sem uma demanda interna complementar à demanda

externa, as reformas fracassam. Segundo Fukuyama, a África subsaariana, por exemplo,

teria tido a mesma ajuda de outros países, porém não conseguiu seguir orientações

internacionais, pois, em suas palavras,

Doadores alegam querer ajudar os países pobres a escapar da pobreza, mas os países de pior desempenho são provavelmente aqueles que não conseguem decretar reformas institucionais e econômicas; portanto, a capacidade de impor as condições para as reformas é essencial para seu sucesso (Ibidem: 57 – grifo meu).

A construção de Estados, nesse sentido, significa a criação de capacidades que

sobrevivam sem ajuda externa, mas por meio da transferência de conhecimento,

incentivos e monitoramentos que ajudem a elevar a força das instituições estatais, tidas

como fundamentais para o funcionamento de países em fluxos planetários.

Como parte fundamental do mau desempenho de organizações em países pobres,

Fukuyama aponta para os baixos incentivos e a falta de “normas” interiorizadas pelos

agentes. Diferente do sistema altamente hierárquico do taylorismo, em que os

trabalhadores seriam motivados simplesmente por meio de incentivos e

regulamentações, o capital social seria fundamental para o bom funcionamento das

organizações, uma vez que incluiria valores e interesses individuais e coletivos

simultaneamente (Ibidem: 89). Assim, para uma boa governança pelos Estados, o

cientista político reitera o acoplamento de normas informais às estruturas formais, e dos

mecanismos de monitoramento e coerção das normas aos mecanismos mais rígidos

formais via punição (Ibidem: 90).

Ainda segundo ele, como nos países considerados “em desenvolvimento” a

delegação de autoridade aos governos estaduais ou municipais torna-se fonte de

fortalecimento de elites locais e de corrupção recorrentemente – diferente dos países

desenvolvidos que teriam padrões normativos de comportamento individual e coletivo

Page 118: 1. DISSERTAÃ⁄Ã…O FINAL

118

para suportar esta descentralização –, os chamados Estados falidos passaram a ser o

mais importante problema para a ordem internacional por provocarem abusos aos

direitos humanos, desastres humanitários, gerarem grandes ondas de emigração e

atacarem seus vizinhos (Ibidem: 123). Colocando em questão o atentado de 11 de

setembro nos EUA, Fukuyama sublinha a evidência de que esses Estados podem causar

danos aos EUA e a outros países considerados desenvolvidos: “o problema do Estado

falido, que anteriormente era visto, em grande parte, como uma questão humanitária ou

de direitos humanos, assumiu, de um momento para outro, uma importante dimensão de

segurança” (Ibidem: 124). No que conclui que o fim da Guerra Fria teria gerado um

consenso em torno da legitimidade dos direitos humanos em âmbito global, e, assim, as

potências, encabeçadas pelos EUA, teriam não apenas o direito, mas a obrigação de

intervir em nome da legitimidade democrática (Ibidem: 129).

Interessa afirmar que a presente análise aparta-se da lógica liberal construída por

Fukuyama de responsabilização e punição das consideradas incapacidades dos Estados.

Esta pesquisa não parte do julgamento ou pressuposto de que exista um Estado fraco ou

Estado sem escopo, pois, enquanto Estados, não deixam de desempenhar papel

fundamental na continuidade da miséria e massacres nestes espaços de forma conivente

às estratégias alinhadas à ecopolítica e à racionalidade neoliberal que incidem, de

forma seletiva, nos indivíduos também construídos como incapacitados ou vulneráveis.

Esta construção dos Estados falidos será largamente utilizada como forma de justificar

as chamadas intervenções humanitárias, calcadas no discurso sobre ausência de Estado

ou incapacidade de uma instância estatal de fazer valer sua autoridade para ampliar os

campos de intervenção estatal. Em resumo, quando se fala em Estado falido, o que não

falta é Estado. E Estado é Estado, seja ele qual for. O Estado é violento e carnífice.

Page 119: 1. DISSERTAÃ⁄Ã…O FINAL

119

uma disputa complementar

Seguindo a lógica da construção de Estados, grande parte das operações e de

manutenção da paz foram ou são realizadas na África, lugar que rankings e relatórios de

instituições, acadêmicos e de programas como o PNUD apontam haver maior

concentração dos chamados Estados falidos. De acordo com um Relatório de 2004 do

PNUD intitulado African Wars and Ethnic Conflitcts – Rebuilding Failed States

(“Guerras Africanas e Conflitos Étnicos – Reconstruindo os Estados Falidos”), redigido

pelo antropólogo sul africano Kwesi Kwaa Prah – diretor do Centro de Estudos

Avançados da Sociedade Africana (Centre for Advanced Studies of African Society –

CASA),

“Estados falidos” são Estados em diferentes fases de transição da ordem à desordem, da estabilidade ao caos. São Estados cuja inaptidão governamental de desenvolvimento tornou-se tão arraigada que eles não conseguem fazer jus às expectativas universais do Estado no mundo contemporâneo. A esmagadora maioria dos “Estados falidos” está situada na África. “Estados fracassados” são tipificados por padrões de paralisia governamental dentro do Estado. A principal característica é que os grupos a que são confiados o porte de armas são principalmente golpistas, senhores da guerra, bandidos e vigilantes que aterrorizam cidades e campos de extração de produtos e serviços de uma população aterrorizada (...). “Estados falidos”, pela sua própria natureza, como entidades em decomposição, difundem sua podridão através das fronteiras e, invariavelmente, colocam em perigo a segurança de seus Estados vizinhos e regiões inteiras (...). Com o tempo, o “Estado falido” torna-se uma entidade totalmente incapaz de manter-se como um membro viável da comunidade internacional e depende de caridade e generosidade para sua existência (UNDP, 2004: 3-4).

Neste relatório, reitera-se a busca por respostas para a África em termos sociais e

culturais locais, mas que respondam a um requisito de dimensão planetária em que

“instituições universais e ideais políticos compartilhados são cada vez mais a regra do

que a exceção” (Idem: 1). Ainda segundo este relatório, após as décadas de 1970 e

1980, em que ditaduras militares dominavam diversos países africanos, guerras e elites

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120

dominantes tomaram conta de grande parte do continente africano. Com cerca de 60%

das mortes por conflitos armados tendo ocorrido neste território, com exceção da África

do Sul, os gastos com armas na África Subsaariana teriam aumentado 15%, enquanto o

crescimento econômico da região teria aumentado menos de 1% (Ibidem: 2). A má

gestão administrativa85 – que teria permitido corrupção, violações de direitos humanos e

dado espaço à doenças, pobreza e declínio da educação – seria característica da

“síndrome do Estado falido” (Ibidem: 3), em que este é visto como incapaz e, portanto,

doente e passível de preocupação para todo o planeta.

O caso da Somália, segundo o Relatório, mostra que as tentativas de construção

de Estado ignoram ou se opõe à convergência – no caso apresentada como naturalizada

e fortalecedora – entre o Estado e a sociedade. Embora tome o fortalecimento do Estado

e de suas instituições como central, critica os processos de manutenção de paz anteriores

que se utilizaram de estratégias “de cima para baixo”, que buscavam a centralização do

poder e não a sua disseminação em uma agenda para a paz. Assim, enfatiza-se que a

segurança do Estado deve estar sempre aliada à chamada segurança humana (Idem:

111).

85 Vale ressaltar que no mesmo período (décadas de 1970 e 1980) muitos outros países não africanos estavam sob regime ditatorial. No entanto, estes nunca configuraram Estados falidos para a ONU e o PNUD, mesmo que haja um consenso sobre a valorização democrática dos anos 1990 em termos de promoção dos direitos humanos e da chamada segurança humana e de cooperação técnica aos moldes das novas diretrizes de uma boa governança global. Apenas na América Latina, pode-se elencar a Argentina (1966-1973 e 1976-1983), Bolívia (1971-1985), Brasil (1964-1985), Chile (1973-1990), El Salvador (1931-1979), Equador (1972-1979), Guatemala (1954-1996), Haiti (1988-1990 e 1991-1994), Honduras (1963-1974), México (1876-1910), Nicarágua (1966-1976 e 1976-1985), Panamá (1968-1989), Paraguai (1954-1989), Peru (1968-1980), Suriname (1980-1988), Uruguai (1973-1984). Mesmo com as milhares de mortes, massacres e torturas regulares referentes àquele período, não conferiram “má gestão administrativa”, “falta de escopo de Estado” e preocupação internacional configurando-os como “passíveis de intervenção” para as grandes organizações e especialistas no assunto. A única exceção é o Haiti, que já ocupou postos de alerta no ranking de Estados falidos do Fund for Peace. O Haiti também sofreu intervenção de missões de paz da ONU de 1994 a 2000 e, mais recentemente, em 2004, o Conselho de Segurança da ONU autorizou a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH, na sigla em francês), coordenada pelo governo brasileiro.

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121

Segundo Thiago Rodrigues, a combinação entre o final da Guerra Fria e sua

lógica de segurança associada ao equilíbrio e à política de dissuasão nuclear, e a eclosão

de genocídios e guerras civis, permitiu que os estudos sobre segurança deslocassem “o

foco do problema da segurança do seu vínculo exclusivo com o Estado para associá-lo

a questões para além, para aquém e através do Estado” (Rodrigues, 2012: 8).

Segundo Florian Hoffmann (2010: 249), o discurso dos direitos humanos,

reinante no mundo globalizado pós Guerra Fria, repentinamente passou a se chocar com

uma nova forma discursiva sobre a segurança que, possivelmente, abrangeria de melhor

forma a realidade dos seres humanos no planeta. Desde então, direitos e segurança

passaram a existir para além de interiorizados e controlados por indivíduos e Estados,

mas de forma autônoma, “como signos que flutuam no espaço global compostos de

diferentes tipos de comunicações e que vinculam atores distintos em todos os níveis”

(Idem: 249).

De acordo com o autor, muitos analistas apontam para um predomínio dos

direitos humanos a partir da queda do muro de Berlim e do fim da Guerra Fria no início

dos anos 1990, quando compuseram uma hegemonia discursiva num mundo em

processo de globalização, considerados cada vez mais imprescindíveis no campo das

relações internacionais (Ibidem: 252). Porém, após os ataques de 11 de setembro de

2001, segundo esta argumentação, teriam surgido novas ameaças no âmbito das relações

domésticas e internacionais no que concerne à segurança. E esta teria passado a estar no

centro das preocupações e a concorrer com a defesa dos direitos humanos (Ibidem:

255).

Segundo Barry Buzan e Lene Hansen (2012: 117), entre os anos de 1940 e 1950,

emerge nos Estados Unidos e na Europa uma categoria de cruzamento entre as

especialidades militares e as ciências sociais, voltada aos problemas relacionados aos

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122

armamentos nucleares. Tomando a União Soviética como significativa ameaça ao

Ocidente, os autores estimam que nessa época estudos em torno do termo “segurança”

se ampliaram levando em conta também assuntos “não militares”. Assim, teria sido no

período da chamada Guerra Fria que se estabeleceu o significado de “segurança

internacional”, o que provocou o aprofundamento da categoria identificada como

Estudos de Segurança Internacional (ESI) (Idem: 118). Para os autores, esta categoria

teria surgido a partir de debates sobre como proteger o Estado contra ameaças tanto

internas como externas, após a Segunda Guerra Mundial (Ibidem: 32). O conceito de

“segurança” teria se tornado, nesse momento, ponto de união de conjuntos variados de

pesquisas acadêmicas.

Buzan e Hansen argumentam que os ESI se concentram em quatro questões.

Primeiramente, preocupa-se em como privilegiar o Estado como ponto de referência.

Após a Guerra Fria, o conceito de “segurança nacional” funde a segurança do Estado e a

segurança de sua sociedade (Ibidem: 37). Em segundo lugar, os ESI pensam tanto nas

ameaças internas como externas ao Estado, tendo como ponto de referência o princípio

de soberania estatal. A distinção entre “dentro” e “fora”, nesse sentido, teria sido

superada, segundo os autores, com a globalização; o conceito de “segurança

internacional” teria acompanhado o de “segurança nacional”, concomitantemente à

emergência da área conhecida como Relações Internacionais (Ibidem: 38). Em terceiro

lugar, estaria a expansão da segurança para além do uso militar. Afirmam que a

incorporação de outros elementos – como robustez econômica, fornecimento de energia,

ciência e tecnologia, alimentos e recursos naturais – passaram a ser interessantes no que

concerne à segurança do Estado. Destacam, ainda, que durante a Guerra Fria, os

chamados “pesquisadores da paz” apontavam para a necessidade de priorizar as

necessidades humanas em termos de segurança nacional. Por fim, o quarto pilar do

Page 123: 1. DISSERTAÃ⁄Ã…O FINAL

123

debate em torno dos ESI estaria centrado em tomar a segurança como intrínseca às

ameaças urgentes (Ibidem: 39).

A Pesquisa da Paz, segundo os autores, é uma abordagem que se

institucionalizou principalmente nos países escandinavos, na Alemanha, no Japão, na

Grã-Bretanha e nos EUA. Estaria situada como contraponto normativo aos Estudos

Estratégicos, ao argumentar contra a utilização da força nas relações internacionais e

destacar os perigos no debate estratégico, mostrando-se a favor do suporte à segurança

individual (Ibidem: 73).

Intimamente ligada à Pesquisa da Paz e aos Estudos Críticos de Segurança86

estaria, portanto, o conceito de segurança humana. Ainda segundo Buzan e Hensen,

estes Estudos defendem que os seres humanos sejam objetos centrais de segurança e

que, portanto, os ESI devem incluir questões como a pobreza, o subdesenvolvimento, a

fome e os ataques à integridade e ao potencial humano (Ibidem: 72). Esta abordagem,

de acordo com os autores, teria deslocado o objeto de referência da segurança dos

Estados-nação para as pessoas.

No escopo deste posicionamento teórico no interior do campo das Relações

Internacionais, antes da Segunda Guerra Mundial haveria uma noção de segurança

nacional referente ao uso da força entre Estados diante da qual todos os governos

precisavam se precaver (Hoffman, 2010: 256) – o que se transforma após este período,

uma vez que elementos internos passam a ser concebidos como maiores ameaças do que

os outros Estados. De acordo com Hoffmann, tanto o objeto quanto o sujeito da

segurança mudaram, referindo-se nesse momento a atores não estatais de dentro e de

fora do Estado que ameaçam principalmente a população civil (Idem: 258). E a essa

86 Segundo Buzan e Hensen, essa abordagem se assemelha à Pesquisa da Paz, mas utiliza-se de uma metodologia pós-positivista, sendo geralmente um ramo da Teoria Crítica das Relações Internacionais e tendo o conceito de emancipação como central (Buzan e Hensen, 2012: 72).

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124

ameaça à vida, tanto sociocultural quanto econômica, a segurança nacional não mais se

adequava, transformando-se juntamente com a concepção de desenvolvimento.

Desenvolvimento estatal, segundo o autor, consistia em um processo de

modernização pelo crescimento econômico. Já a partir do final dos anos 1960, com uma

primeira onda de preocupações ambientais e com o surgimento do conceito de

desenvolvimento sustentável, o conceito de desenvolvimento desloca-se de seu foco

original – o Estado –, para abranger preocupações com os seres humanos

individualmente.

Para Hoffmann, após o 11 de Setembro, houve “um deslocamento de ênfase dos

direitos para um conceito abstrato de segurança, que corresponde à percebida demanda

pública pela securitização das relações sociais” (Ibidem: 271), fortalecendo essa

segunda concepção. O atributo humano articulado à segurança reflete, segundo o autor,

o desejo da sociedade civil pela universalidade ao combate antiterrorista e seu

enraizamento em âmbito mundial (Ibidem: 271). Assim, o discurso da segurança

humana vêm se chocando com o dos direitos humanos. Porém, conforme sugere

Hoffmann,

A tensão fundamental entre os dois discursos não se situa, portanto, na diferença entre segurança e direitos, mas no atributo humano compartilhado pelos dois. Pois cada discurso tem uma inerente aspiração universalista, uma tendência hegemônica que procura estender-se a todos os aspectos da vida de qualquer um (Ibidem: 274).

Nesse sentido, “direitos” denotaria uma busca por autonomia individual e por

propriedades humanas essenciais, e “segurança” significaria a defesa desses valores.

Porém, interessa para esta análise menos um choque entre conceitos ou a mudança de

“preocupações” e mais a disputa entre eles como universal a ser adotado em prol do que

se chama hoje de governança global. Interessa também pensar na articulação e

complementariedade entre direitos e segurança no que concerne à configuração de um

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125

novo ambiente planetário que pretende regular e ser regulado pela ideia de

desenvolvimento humano.

Para Thiago Rodrigues, esse movimento – em que o sujeito da segurança teria

passado a se centrar na população civil – implica na primazia da categoria universal

“Homem” sobre o Estado, e a procedência mais evidente dessa rivalidade seria o status

jurídico alcançado pelos seres humanos com a Declaração Universal dos Direitos

Humanos de 1948, que os reconheceu como sujeitos de direito internacional, assim

como reconheceu também o Estado e as organizações internacionais, abrindo a

possibilidade de questionar as ações dos Estados que violassem os direitos humanos

(Rodrigues, 2012: 17). De acordo com ele, se na sua formação a ONU anunciou-se

como destinada a mediar e a julgar conflitos entre os Estados, com o status jurídico

atribuído ao “Homem” também se justificava a formação de novos tribunais e de um

direito penal internacional para proteger e, consequentemente, julgar esse sujeito de

direito (Idem: 18).

Além dessa relação explícita entre o que passou a ser chamado de segurança

humana e os direitos humanos, Rodrigues aponta, conforme sugestão de Simon Dalby

em Security and environmental change (Cambridge, Polity: 2009), para uma outra

questão contribuinte à produção do conceito de segurança humana nos anos 1990: a da

degradação ambiental como geradora de conflitos. Rodrigues chama atenção para a

crescente presença dessa questão na literatura das Relações Internacionais e dos Estudos

Estratégicos, uma vez que há a suposição de que a segurança dos Estados passaria a ser

impactada também por conflitos gerados pelas mudanças climáticas, destacando

principalmente uma literatura que trata a questão do que passou a se chamar segurança

climática ou ambiental como problema não apenas para os Estados, mas também para

os indivíduos. Dessa maneira, explicita o vínculo que há entre segurança climática e

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126

segurança humana e o detecta a partir do fato de o segundo conceito ter sido formulado

pelo PNUD, em 1994, ao conectar diretamente segurança a desenvolvimento sustentável

(Ibidem: 22).

Conforme exposição de Beatriz Carneiro, na 1ª Conferência das Nações Unidas

sobre o Meio Ambiente realizada em Estocolmo, em 1972, as discussões, pela primeira

vez, giraram em torno da relação entre desenvolvimento econômico e degradação

ambiental (Carneiro, 2012: 9). Ainda nas reuniões preparatórias para o encontro, em

torno do conceito de meio ambiente foram incluídas, além de questões ecológicas e de

saúde humana, problemas sociais como a fome, a miséria, más condições de habitações,

saneamento e doença (Idem: 9). Segundo Carneiro, a Declaração de Estocolmo seria

equivalente à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 em termos de

dimensão e efeitos de longo prazo, uma vez que em todas as Conferências posteriores,

como na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento

(Eco-92) e, mais recentemente, na Conferência das Nações Unidas sobre

Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), o conceito de “meio ambiente” apareceu de

forma abrangente.

Em 1983, em um contexto de crise econômica que obrigou mudanças nas

políticas e na gestão dos recursos naturais, a ONU criou a Comissão Mundial de Meio-

Ambiente e Economia, presidida pela ex-Primeira Ministra da Noruega, Gro

Brundtland, em que o impasse entre o desenvolvimento econômico, a proteção

ambiental e o desenvolvimento social, segundo Carneiro, foi solucionado com o termo

desenvolvimento sustentável (Ibidem: 11). Ainda segundo a pesquisadora, mais tarde, na

Eco-92, que acontecia logo após a queda do muro de Berlim e a derrocada da União

Soviética, mobilizou-se a comunidade internacional em torno da questão de uma

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127

governança global pautada na mudança de comportamento, desde Estados até

indivíduos, para a preservação da vida na Terra (Ibidem: 12).

A partir de tais deslocamentos em torno da construção de um ambiente

planetário que requer a participação de todos, dos países à sua população, na chamada

governança global, em prol da garantia de um ambiente seguro para o desenvolvimento,

interessa pensar na continuação das relações de poder e de governo em tempos

considerados de paz e em que a guerra é entendida de forma cada vez mais local e

precisa, principalmente nos chamados “Estados falidos” e nos países denominados “em

desenvolvimento”.

reconstrução da guerra

Na perspectiva de uma análise histórico-política das relações de poder, oposta ao

discurso jurídico-político e sua tentativa de afirmar que o poder político começa quando

a guerra termina, cabe pensar na manutenção e perpetuação dos ganhos e conquistas sob

o jugo da lei e da paz civil. Rompendo com a teoria do contrato social e do estado de

natureza fundado num “estado de guerra”, como em Thomas Hobbes, que salvou a

teoria do Estado quando eliminou o fato da conquista, entende-se que o poder político

não começa quando a guerra cessa (Foucault, 2010: 43). Ao perceber o poder como uma

relação ou conjunto de relações de força descendentes e ascendentes, interessa analisá-

lo como combate. Segundo Foucault, ao inverter a máxima do general prussiano e

grande teórico da guerra do século XVIII, Carl von Clausewits, de que a guerra é apenas

um instrumento da política, tem-se que “a política é a guerra continuada por outros

meios”, uma vez que

se é verdade que o poder político para a guerra, faz reinar ou tenta fazer reinar uma paz na sociedade civil, não é de modo algum para suspender os efeitos da guerra ou para neutralizar o desequilíbrio que

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128

se manifestou na batalha final da guerra. O poder político (...) teria como função reinserir perpetuamente essa relação de força, mediante uma espécie de guerra silenciosa, e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas (...); isto é, a política é a sanção e a recondução do desequilíbrio das forças manifestado na guerra (Idem: 15-16).

No decorrer do século XVIII, um “aburguesamento” ou uma “autodialetização”

do discurso histórico, em que a guerra não será mais tomada como constitutiva e

condição de sobrevivência das relações políticas, mas como protetor da sociedade e dos

perigos que nascem de seu próprio corpo (Ibidem: 182), a noção de “nação” viria

caracterizar uma relação vertical de indivíduos na construção do Estado, tendo por

função administrar a si mesma, e que tomará as relações entre nação e o Estado como

relações civis e não mais guerreiras.

Apartando-se dessa busca, vê-se no discurso inglês específico dos Diggers, pela

primeira vez, um discurso histórico – por articular as memórias locais da história das

lutas – e politicamente descentralizado, buscando analisar as instituições e

conformações como enfrentamentos de guerra, e fundamentando a revolta como uma

“análise histórica que põe a nu a guerra como traço permanente das relações sociais”

(Ibidem: 132). Esse discurso descristaliza, desmobiliza a história que une a lei soberana

com a continuidade de sua glória; deslegitima o poder soberano para afirmar uma

verdade, não no sentido de legitimar uma outra história, mas para afirmar a luta entre as

histórias.

Nesse sentido, a analítica histórico-política proposta por Michel Foucault

interessa na presente análise para que discursos que endossem estratégias de prevenção

e pacificação não sejam compreendidos como alternativas aos horrores das grandes

guerras. Assim como os períodos enquadrados como Guerra Fria, ou pós-Guerra Fria, e

a guerra entre nações ou no interior das nações, por exemplo, não devem ser tomados

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129

separadamente. Constituem renovações e articulações de estratégias como relações de

força que encontraram, atualmente, no conceito de governança global um apaziguador

de resistências, ao se pressupor a participação de todos os indivíduos e Estados – falidos

ou não – numa gestão compartilhada dos fluxos planetários.

Partindo do interesse de Michel Foucault pelo discurso histórico-político das

lutas e do direito como situação de guerra, Frédéric Gros mostrou em Estados de

violência que o considerado verdadeiro direito, derivado da justiça verdadeira, é o que

será produzido pela guerra (Gros, 2006: 173). A guerra, como instrumento de decisão,

terá no direito sua autorização e legitimidade, não justificando o direito do mais forte,

mas considerando que a maior força é dada de forma divina ao direito mais legítimo

(Idem: 176). Gros expõe o “direito dos povos” como aquilo que ultrapassou a doutrina

de “guerra justa” constituída pelos teólogos e canonistas católicos por mais de doze

séculos, e como o que enquadrou juridicamente as violências entre nações por

convenções entre Estados soberanos modernos, também constituindo uma das fontes do

direito internacional humanitário contemporâneo, como as Convenções de Haia e

Genebra (Ibidem: 179).

No enunciado da doutrina da guerra justa, segundo o filósofo, será fixada uma

diferenciação entre as guerras pagãs, feitas por aqueles sedentos por dominação e poder,

e as guerras cristãs, feitas por necessidade de se estabelecer a paz e justiça abandonadas

por alguma situação de desordem (Ibidem: 194-195). Passando por Grotius e Vattel, o

filósofo expõe como a mesma desaprovação da guerra advinda da doutrina da guerra

justa será encontrada no chamado “direito dos povos”, que terão a guerra privada como

ilegítima, uma vez que um indivíduo pode sustentar seu direito por meio de outro

tribunal, não devendo recorrer à guerra. A partir de então, a guerra poderá ser exercida

pelo Estado soberano (Ibidem: 201).

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130

Será respeitada uma lógica de equilíbrio entre Estados e de igualdade por meio

do princípio da soberania dos mesmos, calcado em regulamentações externas e não mais

em uma consciência universal. Assim, segundo Gros, os mestres do direito dos povos

instituirão o direito da guerra como autorização de todas as violências, e não mais o

direito na guerra. As limitações de um direito de guerra, conforme aponta, não partirão

do Estado, mas de uma moral interior de moderação, humanidade, perdão. Gros dá os

exemplos recentes da Convenção de Genebra e da criação do Tribunal Penal

Internacional como derivados do direito dos povos, em que os massacres de populações

e prisioneiros de guerra não são objetos de intervenção jurídica, mas de apelos morais à

moderação (Ibidem: 209).

Considerando a complementariedade da guerra e da paz, Gros aponta como

sendo esta última não um ideal ou estado perfeito que supõe uma “nova ordem

mundial”, mas a configuração da relação jurídica do Estado quando este não está

fazendo a guerra. Já a vitória não servirá mais como aniquilamento do adversário, mas a

imposição ao inimigo das suas condições de paz (Ibidem: 223).

O filósofo indica que, após a chamada Guerra Fria e a queda do muro de Berlim,

uma nova distribuição de violências emergiu pautada por um sistema de intervenção e

segurança. A intervenção, nesse sentido, “não é criadora, nem instituidora: ela conserta

falhas de funcionamento, restabelece coesões, restaura desequilíbrios, redefine

harmonias” (Ibidem: 224). A intervenção não será mais instituída por Estados inimigos,

mas por “fatores de perturbação” cada vez mais específicos. Não está mais restrita a

intervir apenas em Estados considerados “falidos” – entendo-os como aqueles aos quais

“falta” poder ou escopo –, nem mesmo às operações de paz da ONU e ao uso de suas

forças militares, mas requer, cada vez mais, a participação de todos, especialistas ou

não, nativos ou não, na melhoria do ambiente em que se vive.

Page 131: 1. DISSERTAÃ⁄Ã…O FINAL

131

No discurso do PNUD, o termo governança não é sinônimo de governo no

sentido ascendente por envolver a participação de toda a sociedade e constituir um

processo de articulação e cooperação entre os chamados atores sociais e políticos em

arranjos institucionais. Um manejo léxico da palavra, segundo Rodrigues, teria

pacificado o verbo “governar”, ocultando o “ser governado” para o que pressupõe o

auto-governo de cada um (Rodrigues, 2014: 64). Acompanhando as sugestões de Alain

Deneault em Gouvernance, Rodrigues sublinha que a palavra “governança” advém de

manuais de administração de empresas e de livros de executivos que adentraram na

política, fazendo com que esta passasse a ser tratada como um modo eficaz de gestão

(Idem: 62). Assim, o indivíduo, visto como portador de interesses, transforma-se em

parceiro do Estado e da empresa (Ibidem: 64) para juntos trabalharem em forma de

gestão compartilhada para uma maior eficiência em prol de melhorias conjuntas.

De forma intrínseca, a própria segurança adquiriu novos delineamentos que

passaram a ser adotados por grandes organizações, principalmente na década de 1990,

reestruturando-se, ampliando-se e se re-fundamentando em torno do conceito de

segurança humana para culminar, cada vez mais, e de modo mais intrínseco à vida de

cada um como agente de suas escolhas responsáveis, em cooperação com os outros

setores da sociedade. Nesse sentido, a partir da década de 1990, a segurança estará cada

vez mais próxima do desenvolvimento, ambos calcados no humano. Relação que será

exposta, no próximo movimento deste capítulo, principalmente por meio da produção

do economista paquistanês Mahbub ul Haq, no PNUD, ao lado do econometrista

indiano Amartya Sen, ambos grandes fomentadores dos principais conceitos do PNUD

e idealizadores de um de seus mais eficientes instrumentos no que concerne à requerida

segurança, flexibilidade, ajustabilidade e agilidade próprias da atual sociedade de

controle: o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

Page 132: 1. DISSERTAÃ⁄Ã…O FINAL

132

2.2. o desenvolvimento humano e a construção de uma abordagem para

a vida

abordagem da segurança humana

William H. Draper III assumiu a administração do PNUD em 1986. Considerado

um dos primeiros capitalistas de risco dos EUA e atual acionista majoritário da Draper-

Richards L. P. – um fundo de capital de risco com foco em empresas de tecnologia em

estágio inicial nos EUA – e da Draper International – direcionada a empresas privadas

atuantes nos EUA e na Índia87 – é, atualmente, co-presidente da Fundação Richards

Kaplan – empresa de filantropia de risco focada em organizações promotoras de

mudanças sociais sem fins lucrativos.88 É também consultor de diversos centros e

instituições de pesquisa, como do Conselho do Atlântico, da Harvard Business School

California Research Centre, Hoover Institution, da Freeman Spogli Institute for

International Studies at Standford University, do World Affairs Council of Northern

Carolina e da Associação da ONU nos EUA.89

Draper era bastante próximo de George H. Bush, que sugeriu a Reagan seu nome

para a administração do PNUD. Segundo o historiador do PNUD, Craig Murphy (2006:

234), sua administração parecia distante do círculo de sociais-democratas que David

Owen recrutava para o Programa Expandido de Assistência Técnica (EPTA) e,

posteriormente, para o PNUD. Ele parecia não demonstrar grande interesse no

fortalecimento dos governos do chamado Terceiro Mundo, e alguns escritórios da ONU 87 Cf. Draper-Richards. Our time. Disponível em: http://www.draperrichards.com/our-team.html. Acesso em: 30/08/2015. 88 Idem. 89 Ibidem.

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133

o apontavam como incompetente em relação aos cortes das políticas internas do sistema

ONU. Almejava, inicialmente, separar o PNUD da própria ONU e construir uma

espécie de “Organização Mundial para o Desenvolvimento”, sem ter que lidar com a

pesada burocracia da ONU (Idem: 235). Seu pai, o General William H. Draper Jr.,

ajudou a conduzir esforços tanto para a Alemanha como para o Japão, após a Segunda

Guerra, e estava bastante próximo de Paul Hoffman quando este foi chamado para

assumir a administração do Plano Marshall (Ibidem: 235).

Como administrador do PNUD, Draper ficou famoso por promover visões

particulares do desenvolvimento: criou um “Comitê de Ação” onde reunia

semanalmente diretores regionais e profissionais para rever e aprovar projetos.

Calculava todos os “custos de oportunidades” relativos ao financiamento de concessões,

o tempo que os oficiais do governo executariam o projeto, a benevolência do povo a ser

beneficiado, etc. (Ibidem: 238). Preocupava-se, ainda, em encontrar um tipo de foco e

direção que acreditava faltar ao PNUD quando, em 1990, o Conselho de Governo da

ONU direcionou-o a adotar o tema de “desenvolvimento humano”, com foco na

erradicação da pobreza. Os outros focos eram meio ambiente, gestão de

desenvolvimento, cooperação técnica nos “países em desenvolvimento”, transferência

tecnológica e “mulheres”. Antes da nova abordagem do Conselho de Governo, porém,

Draper já procurava algum suporte intelectual para um novo foco do PNUD, quando o

General Muhammad Zia ul Haq (1978-1988), governante militar do Paquistão,

apresentou Mahbub ul Haq para Draper (Ibidem: 241).

Em 1958, Khadija, uma jovem paquistanesa estudante de economia da

Universidade de Manchester, viajou à Cambridge para ouvir o que se tornaria a série de

conferências de W. W. Rostow, The Stages of Economic Growth. Khadija conheceu

Amartya Sen e, mais tarde, ul Haq, que a supervisionou em seu novo trabalho no

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134

Instituto Paquistanês de Economia do Desenvolvimento (Ibidem: 241). Khadija e ul

Haq se casaram, e ela foi contratada pela UNICEF (Ibidem: 241). Juntos, mudaram-se

para Nova York, onde ul Haq escreveu o primeiro Relatório do Desenvolvimento

Humano (RDH) para o PNUD, em 1990, intitulado “Conceito e Medição do

Desenvolvimento Humano”. Com a publicação do primeiro RDH, Draper e ul Haq

focaram no tema do desenvolvimento humano.

Uma das grandes influências para ul Haq foi Barbara Ward, quem colaborou,

junto a Arthur Lewis e Sartaj Aziz, a realizar o Relatório da Comissão Pearson90.

Segundo Kadhija, o conceito de desenvolvimento humano de ul Haq de certa forma

trouxe de volta o alarme de Ward em relação aos países considerados “em

desenvolvimento” no boom econômico de 1950 (Ibidem: 243). A pesquisa de ul Haq, ao

longo dos anos 1980, o teria convencido de que, enquanto o crescimento de rendimento

é necessário para que as pessoas tenham longevidade, saúde e vidas criativas, o

crescimento econômico não necessariamente assegura o desenvolvimento humano por

si só (Ibidem: 244). Martha Nussbaum, filósofa que junto com Amartya Sen trabalhou

com a abordagem do desenvolvimento humano, afirma que a questão se deve ao

comando possível de ser adquirido pelas pessoas em relação às suas próprias vidas

(Ibidem: 244).

O primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) colocou o problema

da pobreza como prioridade, obtendo grande impacto, em parte porque coincidiu com o

fim da chamada Guerra Fria, quando os recursos poderiam ser deslocados dos gastos

militares, e também por ter convencido numerosas agências para o desenvolvimento a 90 O Relatório Pearson, de 1969, reuniu resultados da “Comissão Pearson”, liderada por Lester B. Pearson. Este reuniu durante dois anos especialistas de diferentes países para uma análise sobre a cooperação internacional para o desenvolvimento em um momento que se acirravam as discussões sobre os “caminhos” para o desenvolvimento, e em meio à considerada, pela ONU, “década do desenvolvimento”. O Relatório foi encomendado pelo Banco Mundial, porém contou com especialistas da equipe de Pearson, da ONU e de outras organizações internacionais para o desenvolvimento.

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135

mudar suas prioridades. No conselho editorial inicial dos RHDs estavam Amartya Sen,

Paul Streeten, Frances Stewart, Gus Ranis e Meghnad Desai – equipe que foi crescendo

rapidamente em decorrência do aumento de elementos a serem abordados.

Em 1995, Mahbub ul Haq publicou o livro Reflections on Human Development,

em que expõe a construção de seu conceito de desenvolvimento humano, que deu início

à produção regular do Relatório de Desenvolvimento Humano pelo PNUD, e sua

relação intrínseca à abordagem da segurança humana. O prefácio é de Paul Streeten,

professor emérito da Universidade de Boston, consultor do PNUD para a produção dos

RDHs e consultor da UNESCO para a produção dos Relatórios Culturais Mundiais. Foi

também diretor do Centro de Estudos Asiático para o Desenvolvimento e do Instituto

Mundial para o Desenvolvimento e trabalhou, ainda, como consultor e assessor especial

do Planejamento de Políticas do Banco Mundial, de 1976 a 1980.91

Streeten conta que trabalhava no Ministério do Desenvolvimento Ultramarino

em Londres quando conheceu Mahbub ul Haq. Este era Ministro das Finanças do

Planejamento do Paquistão e havia ido à Londres apresentar seu projeto sobre

desenvolvimento. No final dos anos 1970, Streeten trabalhou com ul Haq no Banco

Mundial e, juntos, foram os precursores do conceito de “necessidades básicas” para o

desenvolvimento humano. Anos mais tarde, ul Haq, já trabalhando para o PNUD, o

convidou para fazer parte da equipe do Relatório de Desenvolvimento Humano

(Streeten in ul Haq, 1995: VII).

Segundo Streeten, ul Haq “salvou” a Conferência da ONU em Estocolmo sobre

o Meio Ambiente Humano, em 1972, pois os chamados países em desenvolvimento não

queriam participar, e ele teria contornado a situação os convidando para dar suporte à

91 Cf. The Encyclopedia of Earth. Disponível em: http://www.eoearth.org/view/article/156277/. Acesso em 14/10/2015.

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Conferência ao conectar os conceitos de meio ambiente e desenvolvimento, no que

nomeou “paradigma do desenvolvimento centrado nas pessoas”, uma procedência do

conceito de desenvolvimento humano sustentável, apresentada no Relatório de Founex92

(Ibidem: IX).

Mahbub ul Haq inicia sua discussão estabelecendo o contexto após a Guerra

Fria, em que a segurança teria passado a ser interpretada como a segurança das pessoas

em seu dia a dia: “em suas casas, seus empregos, nas ruas, nas comunidades e em seus

ambientes” (ul Haq, 1995: 39). Nesse sentido, a segurança humana deveria ser

considerada universal, global e indivisível, com os considerados crimes nacionais agora

passando a serem vistos como problemas globais (tais como drogas, poluição e

terrorismo), e tomando as pessoas e o governo de suas próprias vidas como centrais para

o desenvolvimento.

Dois anos após o documento do então Secretário-Geral da ONU, Boutros

Boutros-Ghali, em que o conceito de segurança humana aparece pela primeira vez no

âmbito da ONU, o Relatório de Desenvolvimento Humano de 1994 do PNUD teve

92 No período que antecedeu a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano de 1972, os chamados países em desenvolvimento relatavam sua insatisfação alegando a orientação da discussão ambiental aos interesses dos países industrializados. Maurice Strong, na época Secretário-Geral da Conferência que viria a acontecer, manteve estreitas relações com líderes nacionais e organizações visando uma aproximação de países considerados em desenvolvimento. A Índia, assim como o Brasil, foram países ativos na Conferência de Estocolmo. A Primeira Ministra indiana, Indira Gandhi (1966-1977 e 1980-1984), em seu discurso, afirmou ser a pobreza o maior poluidor de todas, o que obteve efeitos políticos duradouros. Ao aproximar as relações entre ambiente e desenvolvimento, Strong iniciou a realização de um seminário que envolveu especialistas de diversas áreas e países, e preparado por ele e Mahbub ul Haq, Gamani Corea e Barabara Ward. Deste seminário derivou o Relatório Founex, conhecido por lançar as bases para o conceito de “desenvolvimento sustentável”. Nele, argumenta-se que todos os países são afetados pelos problemas ambientais globais e que a preocupação com o meio ambiente deve ser integrada no processo de desenvolvimento, requerendo uma definição mais ampla de metas do que o aumento do PIB (Produto Interno Bruto), possibilitando a emergência de uma compreensão política na discussão internacional de que os recursos limitados nos países considerados em desenvolvimento são uma restrição para a integração global. Em suma, o Relatório Founex constituiu forte base conceitual para a Conferência de Estocolmo, demonstrando a não contradição entre conservação do meio ambiente e desenvolvimento. Cf. The Founex Conference. Disponível em: http://www.mauricestrong.net/index.php/founex-conference?showall=1&limitstart. Acesso em: 25/05/2016.

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como tema “as novas dimensões da segurança humana”, em que apresenta um novo

projeto para o que chama de “cooperação para o desenvolvimento” e sugere uma agenda

a ser considerada na Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social em Copenhagen,

em 1995.

Durante a Guerra Fria, segundo o Relatório do PNUD, a humanidade havia

sobrevivido à sua primeira ameaça de uma devastação nuclear mundial, no que sugere

uma transição da segurança nuclear para a segurança humana:

O conceito de segurança, por muito tempo, foi interpretado de forma estrita: como segurança do território às ameaças externas, como proteção de interesses nacionais na política externa, ou como segurança global frente à ameaça de um holocausto nuclear. Era mais relacionado aos Estados-nação do que às pessoas. As superpotências fecharam-se em um combate ideológico lutando na Guerra Fria por todo o mundo. Os países em desenvolvimento, tendo conquistado sua independência apenas recentemente, ficaram sensíveis a quaisquer ameaças às suas frágeis identidades nacionais. Esqueceu-se que foram as preocupações legítimas das pessoas comuns que buscaram segurança em suas vidas diárias (...). Com a sombra da guerra fria, pode-se ver agora que muitos dos conflitos ocorrem nas nações ao invés de entre as nações (PNUD, 1994: 22 – grifos meus).

A ideia de segurança humana, que segundo o PNUD revolucionará o século

XXI, considera quatro focos para a sua abordagem: 1) a segurança é universal – existem

interesses que diferem em relação a cada parte do mundo, mas existem muitas questões

comuns; 2) seus componentes são interdependentes – a segurança das pessoas envolve

todas as nações, pois ameaças podem levar a consequências globais; 3) a segurança

humana é mais facilmente garantida por meio de prevenção do que intervenção

posterior, muito por causa dos custos que podem ser altíssimos para tratar de questões

como a AIDS, por exemplo; 4) a segurança humana centra-se nas pessoas e refere-se a

como as pessoas exercitam suas escolhas e ao quanto elas tem de acesso a

oportunidades (Idem: 22-23).

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Além disso, a segurança humana, segundo o PNUD, possui dois grandes

componentes: freedom from fear (liberdade do medo) e freedom from want (liberdade

das privações). Algo que teria sido reconhecido ainda com a instituição da ONU, porém

o primeiro conceito teria sobreposto o segundo. O Relatório enfatiza, portanto, o desejo

de realizar a transição do conceito de segurança nacional para o conceito abrangente de

segurança humana (Idem: 24).

Nessa lógica, o desenvolvimento humano seria o processo de aumentar o leque

de oportunidades para que as escolhas das pessoas sejam feitas, e a segurança humana

seria a garantia para que as pessoas poderem fazer escolhas simultaneamente livres e

seguras. Segundo Mahbub ul Haq, na esteira desta construção, a segurança deve deixar

de ser feita pelas armas para ser exercida pelas pessoas em seu cotidiano e utilizada pelo

dividendo da paz para financiar uma agenda global para a humanidade (Ibidem: 118).

O que interessa nesta abordagem estratégica da segurança humana é sua

habilidade em se expandir para a conduta individual, ampliando e tornando mais

precisos os focos de intervenção no que não responde da forma esperada, constituindo-

se como virtual ameaça para os fluxos globais. Entende-se, portanto, que não há apenas

interesse econômico no que concerne ao neoliberalismo, mas a utilidade na reprodução

de um senso de responsabilidade compartilhada configurada como uma racionalidade,

política ainda que para tanto seja fundamental a identidade de cada um com seu local,

sua nação, seu ambiente específico.

Ul Haq considera que, após o conflito durante a Guerra Fria entre Leste e Oeste,

o problema passou a ser o chamado, na época, de Terceiro Mundo, no que questiona o

porquê despender mais gastos com armas e soldados do que com saúde e educação.

Aponta para que as grandes potências que travaram a Guerra Fria tem a obrigação moral

de aliviar as tensões globais e construir novas alianças para ajudar os chamados países

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139

em desenvolvimento nessa transição. Para tanto, toma o conceito de governança global

como o novo quadro de regulação e monitoramento necessário para gerir os

mecanismos automáticos de mercado.

A renda é tida como apenas uma das atividades possíveis no que concerne ao

desenvolvimento humano. Apresentando-nos como se desenrolou a percepção da

necessidade de um desenvolvimento centrado nas escolhas dos indivíduos, discorre

sobre como o capital humano estava esquecido em muitas nações e por isso não poderia

ser traduzido em um desenvolvimento real. Como economista, queixa-se de ter se

preocupado com investimentos, importações e exportações, tendo como base o Produto

Interno Bruto (PIB) de cada país, e assim deixando de lado uma vasta gama de

contribuições humanas que poderiam ser convertidas em desenvolvimento.

Em meados dos anos 1970, ul Haq relata ter passado a pensar nas necessidades

humanas; na medição de custos não apenas em termos de rendimento, mas relativo ao

potencial humano (ul Haq, 1995: 4). Conforme apresenta, pensava em um plano de

desenvolvimento que tivesse foco nas pessoas e não na produção propriamente dita,

fazendo-se necessário um balanço geral sobre um determinado país que reunisse

diretrizes como a quantidade de recursos, o quanto as pessoas são educadas, qual o

perfil de distribuição de renda relativa e pobreza absoluta, quais as aspirações e cultura

dessas pessoas, etc. Em segundo lugar, este plano deveria primeiramente se concentrar

nas necessidades humanas básicas para depois transformá-las em metas para a produção

e consumo, o que significaria realizar um estudo aprofundado, no mínimo, sobre taxas

de nutrição, educação, saúde, moradia e transporte. Os objetivos de produção e

distribuição deveriam estar integrados e obter a mesma ênfase, e a estratégia para o

desenvolvimento humano deveria ser descentralizada – envolvendo participação

comunitária e autoconfiança. Por último, o plano deveria conter uma estrutura de análise

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140

do desempenho humano ao longo de seu investimento, a fim de monitora-los (Idem: 4-

6).

Segundo o economista, Robert McNamara foi um dos primeiros a defender o

aumento da produtividade dos mais pobres e a direcionar todos os programas do Banco

Mundial para esse processo, influenciando também outras instituições internacionais

(Ibidem: 7) e fazendo com que o Banco Mundial fosse um dos primeiros bancos a criar

um planejamento direcionado a questões do desenvolvimento humano em conjunto com

a ONU. Comparava ao Plano Marshall a vontade de realizar um plano que enfrentasse a

relutância de legislações e indústrias de contribuir ao desenvolvimento humano, e que

estabelecesse “a supremacia dos seres humanos no desenvolvimento econômico”

(Ibidem: 11-12).

Reitera, assim, que o desenvolvimento humano não é uma criação, mas um

tributo aos “líderes do pensamento político e econômico”. Primeiramente, refere-se a

Aristóteles e a ideia de “bem humano”, ao distinguir um bom arranjo político de um

ruim a partir de seu sucesso ou não em tornar aptas as pessoas de “prosperarem em suas

vidas” (Ibidem: 12). Em segundo lugar, remete à Kant, por este ter continuado a

tradição de tratar os bens humanos como o fim mesmo de todas as atividades, e não

apenas os meios. Cita também Adam Smith, como promotor do livre mercado e da

iniciativa privada para que as pessoas fossem aptas a viver livremente com outras em

público, integrando os pobres à comunidade como um todo. E, por fim, refere-se a

Robert Malthus, Karl Marx e John Stuart Mill como outros grandes fundadores do

pensamento econômico moderno, ou seja, que pensam a economia a partir do humano

(Ibidem: 12).

Enquanto o desenvolvimento humano promoveria a expansão de uma gama de

oportunidades, o crescimento econômico puramente teria em vista apenas a expansão do

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141

lucro. Nesta lógica, é muito mais importante o uso que as pessoas fazem de sua renda

do que a renda em si mesma, e, contornando a automaticidade do ambiente de mercado,

políticas sociais devem ser responsáveis pela conversão do crescimento econômico para

a vida das pessoas. Tudo isso por meio de ações políticas como reforma agrária,

sistemas fiscais progressivos, novos sistemas de crédito de bancos para pessoas mais

pobres, a expansão de serviços sociais básicos, a remoção de barreiras para a entrada de

pessoas nas esferas política e econômica e para a equalização de seus acessos a

oportunidades, etc., todas podendo variar de um país para outro, mas com consideráveis

características em comum. Assim, a construção dessa abordagem do desenvolvimento

humano parece possuir duas frentes complementares: a formação das chamadas

capacidades humanas – no que concerne à promoção de saúde, conhecimento e

habilidades – e o uso racional feito pelos indivíduos de suas oportunidades. E, segundo

ul Haq, essa abordagem possui quatro componentes fundamentais: equidade,

sustentabilidade, produtividade e empoderamento.

A equidade diria respeito ao alargamento das escolhas dos indivíduos e igual

acesso a oportunidades, e não necessariamente à garantia de resultados iguais. Em suas

palavras, “o que as pessoas fazem com suas oportunidades concerne a seus próprios

interesses: a igualdade de oportunidades nem sempre conduz a escolhas ou resultados

similares” (Ibidem: 16). Já a sustentabilidade refere-se ao sustento de todas as formas de

capital – físico, humano, financeiro e ambiental (Ibidem: 17). Este conceito não se

refere aqui à preservação de todos os recursos naturais, espécies e do meio ambiente em

sua forma natural, mas à preservação da capacidade de produzir as mesmas

oportunidades para todos.

A produtividade diz respeito ao investimento em pessoas e na promoção de um

ambiente macroeconômico favorável para que alcancem seu potencial máximo.

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Diferente de tratá-las apenas como capital humano, o que as reduziria a meios para o

desenvolvimento, deve-se tomá-las responsáveis pelo seu desenvolvimento e seu

próprio fim. Por fim, o empoderamento costura todos esses princípios ao priorizar a

participação das pessoas em atividades, processos e eventos que as insiram no processo

rumo ao desenvolvimento humano. Nas palavras de ul Haq, “empoderamento significa

que as pessoas estejam em posição de exercer escolhas por vontade própria” (Ibidem:

19). Livres de excessivos controles e regulações, este conceito permitiria que as

pessoas, investidas de saúde e educação, possam fazer escolhas particulares e se auto-

governem de forma responsável.

abordagem do desenvolvimento humano

Ao lado de Mahbub ul Haq na construção do conceito de desenvolvimento

humano, o econometrista indiano Amartya Sen teve grande importância ao tratar sobre

o que chamou da abordagem das capacidades humanas. Entendendo que “a liberdade

para participar da avaliação crítica e do processo de formação de valores é, com efeito,

uma das liberdades mais cruciais da existência social” (Sen, 2012: 366), Sen estabelece

ser por meio das capacidades, primeiramente, e liberdade de escolha, depois, que esta

se torna importante para o desenvolvimento. Logo, a “liberdade”, enquanto um valor, de

acordo com Sen, diz respeito “aos processos de tomada de decisão e às oportunidades

de obter resultados considerados valiosos” (Idem: 370).

Amartya Sen foi laureado com o Prêmio Nobel em economia, em 1998, por seu

trabalho sobre a chamada “economia do bem-estar social”, e atualmente é professor na

Universidade de Harvard. Em 1999, publicou o livro Desenvolvimento como liberdade,

como resultado de uma pesquisa financiada pela John D. and Catherine T. MacArthur

Foundation, em que discorre sobre tipos de liberdade, os fins e os meios para o

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143

desenvolvimento, oportunidades e capacidades, liberdades intrínsecas à

responsabilidades, e a democracia como modelo ideal para o alcance do

desenvolvimento humano.

As oportunidades sociais, para Sen, devem ser de comprometimento não apenas

do Estado, mas também de outras instituições como organizações políticas e sociais,

disposições de bases comunitárias, ONGs, a mídia, etc. (Sen, 2011: 362). Nesse

contexto, cada indivíduo deve se reconhecer como um agente de suas escolhas. No

interior da abordagem do desenvolvimento humano, a liberdade de escolha é importante

por proporcionar o que chama de razão avaliatória – avaliação do progresso em termos

de aumento de liberdade individual – e razão da eficácia – entendendo que “a

realização do desenvolvimento depende inteiramente da livre condição de agente das

pessoas” (Idem: 17).

Liberdade para Sen, além de um conceito também significa meio e fim para o

desenvolvimento. O que chama de liberdades instrumentais – liberdades políticas,

econômicas, oportunidades sociais, transparência e segurança – seriam as ferramentas

para a promoção de capacidades das pessoas. Já as liberdades substantivas incluiriam

“capacidades elementares”, como ter condições de evitar privações como a fome, morte

prematura, assim como saber ler, ter participação política, liberdade de expressão, etc.

(Ibidem: 55).

Sen estabelece partir do que John Rawls chamou de bens primários, como a

oportunidade real de um indivíduo de promover seus objetivos, para levar em conta

“também as características pessoais relevantes que governam a conversão de bens

primários na capacidade de a pessoa promover seus objetivos” (Ibidem: 104). Uma

pessoa fisicamente incapacitada, por exemplo, pode ter mais bens primários, porém

menos chances de levar uma vida produtiva. As capacidades [capabilities], nesse

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sentido, consistem na combinação de funcionamentos possíveis para a realização de um

fim diverso. E portanto, a ampliação das necessidades econômicas aumenta a premência

das liberdades políticas.

A democracia, nessa lógica, é importante por ser criadora e oferecedora de um

conjunto de oportunidades, mas que para se efetivarem dependem do modo como são

exercidas as liberdades, e de vários fatores, como o vigor da política multipartidária e o

dinamismo dos argumentos morais e da formação de valores (Ibidem: 204-205). Já o

capitalismo, para Sen, para que tenha um bom funcionamento de mercados, necessita de

instituições sólidas e eficazes e de uma ética de comportamento (Ibidem: 334), que

opere com base em padrões comuns de conduta, confiança mútua e segurança entre os

indivíduos no interior das instituições. Assim, para ele, o papel do Estado e da provisão

social encontra maior eficácia quando combinado com um conjunto de valores sociais e

morais desempenhados por um senso de responsabilidade baseado em escolhas

racionais. Remete, ainda, a Adam Smith como quem observou que a motivação para

uma troca mutuamente benéfica estaria puramente relacionada com o “amor-próprio”,

essencial para a troca e, consequentemente, para a análise econômica (Ibidem: 346).

Além disso, a escolha racional também estaria vinculada à importância de ir além de

objetivos isolados ou imediatos, em prol da durabilidade, eficácia e eficiência de

resultados (Ibidem: 347). Segundo Sen,

O caminho entre liberdade e responsabilidade é de mão dupla. Sem a liberdade substantiva e a capacidade para realizar alguma coisa, a pessoa não pode ser responsável por fazê-la. Mas ter efetivamente a liberdade e a capacidade para fazer alguma coisa impõe à pessoa o dever de refletir sobre fazê-la ou não, e isso envolve responsabilidade individual. Nesse sentido, a liberdade é necessária e suficiente para a responsabilidade (Ibidem: 361).

Enquanto Rawls identifica alguns princípios básicos de justiça específicos como

escolha unânime baseada na concepção de justiça como equidade, mesmo que levando

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em conta as particularidades de cada sociedade, Sen entende na pluralidade de

interesses, que podem ser conflitantes e imparciais, sua culminação em manifestações

distintas (Sen, 2014: 86-87). O econometrista retoma dois conceitos da justiça

encontrados na antiga ciência indiana do direito, niti e nyaya, para ilustrar a relação

entre capacidades, liberdades e responsabilidades. Enquanto niti estaria restrita a um

entendimento de justiça austera e ao arranjo institucional para a correção de um

comportamento, nyaya teria um aspecto mais abrangente de justiça realizada, não

restrita apenas às instituições e regras, mas incluindo, também, os processos sociais,

incluindo o exercício de direitos e responsabilidades individuais (Idem: 52).

Resultados abrangentes incluem os processos envolvidos que devem ser

distinguidos de meros resultados de culminação. Neste mesmo sentido, a teoria de

Rawls, para Sen, implica a simplificação de uma tarefa multifacetada de combinar a

operação dos princípios de justiça com o comportamento das pessoas – algo necessário

para que qualquer teoria da justiça oriente as escolhas sociais. Ao ultrapassar o que

chama de ética utilitarista, como restrita às avaliações impessoais e puramente

consequencialista, Sen insiste na consideração da agência, quando o agente leva em

conta suas avaliações pessoais de justiça no sentido de nyaya. O indivíduo como agente

participativo deve ter liberdades para saber formular valores: “a liberdade para

participar da avaliação crítica e do processo de formação de valores é, com efeito, uma

das liberdades mais cruciais da existência social” (Sen, 2011: 366), e é por meio da

capacidade, primeiramente, e liberdade de escolha, depois, que esta se torna importante

para o desenvolvimento. Liberdade diz respeito, então, nesta lógica proposta por Sen,

“aos processos de tomada de decisão e às oportunidades de obter resultados

considerados valiosos” (Idem: 370).

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uma ampliação oportuna

Amartya Sen foi um grande propagador dessa estratégia de medição de

liberdades baseada em responsabilidades. Suscitou uma vasta literatura em torno de sua

abordagem sobre a escolha individual racional ou social como fundamental para o

processo do chamado desenvolvimento humano sustentável. Toda esta literatura estaria

apoiada na “capacidade humana” como abordagem de vida acoplada à teoria do capital

humano.

A teoria do capital humano foi desenvolvida por Theodore Schultz, também

laureado com o Prêmio Nobel de economia, em 1979, pelos seus estudos sobre

desenvolvimento econômico no pós-Segunda Guerra Mundial e suas análises sobre a

rápida recuperação da Alemanha e do Japão relacionadas aos altos investimentos desses

países em educação. No mesmo ano, Arthur Lewis também ganhou o Prêmio Nobel de

Economia por seu pioneirismo no campo do desenvolvimento econômico, com foco nos

chamados países em desenvolvimento, ao estabelecer modelos e causas da pobreza da

população desses países.

Passando por alguns traços gerais que permitem distinguir o neoliberalismo

estadunidense do ordoliberalismo, Michel Foucault destaca a teoria do capital humano,

criada por Schultz e desenvolvida posteriormente por Gary Becker, como sendo

interessante por expressar a incursão da análise econômica num campo inexplorado – o

trabalho –, e a partir daí a possibilidade de reinterpretar, em termos econômicos,

elementos que eram considerados não-econômicos (Foucault, 2004: 302). Um

economista clássico como David Ricardo, por exemplo, querendo analisar o aumento do

trabalho, o fez de maneira quantitativa, apenas segundo a variável temporal (Idem: 303).

Já os neoliberais, partindo de Schultz, tomarão o trabalho de forma qualitativa, devendo

analisar não o estudo dos mecanismos que o envolvem, mas a natureza e as

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consequências das chamadas opções substituíveis, ou, como são alocados recursos,

pensando no comportamento humano e na racionalidade interna deste comportamento.

De acordo com Foucault, “a economia já não é, portanto, a análise da lógica histórica de

processos, é a análise da racionalidade interna, da programação estratégica da atividade

dos indivíduos” (Ibidem: 307).

Nessa racionalidade, todo indivíduo é responsável por sua conduta econômica,

racionaliza e calculada. O capital será definido como o que torna possível uma renda

futura, indissociável de quem o detém, das competências deste, de quem o exerce como

uma empresa para si mesmo. “Uma economia feita de unidades-empresa, uma

sociedade feita de unidades-empresa: é isso que é, ao mesmo tempo, o princípio de

decifração ligado ao liberalismo e sua programação para a racionalização de uma

sociedade como de uma economia” (Ibidem: 310).

O estudo dos neoliberais, conforme os apontamentos de Foucault, passa a se

concentrar nos elementos inatos ou nos elementos possíveis de aquisição, como o

equipamento genético, saúde e educação. Problemas de higiene pública, de cuidados

médicos, de mobilidade, migração, e até afeto consagrados dos pais aos filhos deverão

ser analisados em termos de investimentos em capital humano (Ibidem: 315).

Dentre as principais atividades de investimento humano delineadas por Schultz,

estão os recursos relativos à saúde e serviços, incluindo a capacidade de vigor e

vitalidade de um povo; o treinamento no local do emprego; educação formalmente

organizada nos níveis elementar, secundário e de maior elevação; programas de estudos

para os adultos que não estão empregados; migração de indivíduos e famílias para

adaptar-se às condições flutuantes de oportunidades de empregos (Schultz, 1973: 43).

Segundo Schultz,

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148

Os trabalhadores transformaram-se em capitalistas, não pela difusão da propriedade das ações da empresa, (...) mas pela aquisição de conhecimentos e de capacidades que possuem valor econômico. Esse conhecimento e essa capacidade são em grande parte o produto de investimento e, combinados com outros investimentos humanos, são responsáveis predominantemente pela superioridade produtiva de países tecnicamente avançados (Schultz, 1973: 35).

Se a conduta racional do homo oeconomicus foi tornada, no século XVIII,

sujeito ou objeto do laissez-faire, ou como aquilo em que não se deve intervir, esta

definição será retomada pelos neoliberais estadunidenses, principalmente por Gary

Becker, como aquela que é eminentemente governável, uma vez que responderá

sistematicamente às modificações introduzidas artificialmente no meio (Foucault, 2004:

369). Para Becker, as análises e leis econômicas podem se aplicar, ainda, à escolhas não

racionais, na medida em que a conduta de um indivíduo corresponder à noção de que

suas reações não são aleatórias em relação ao real (Ibidem: 367).

Porém, ao afirmar ser o capital humano uma concentração dos seres humanos

para aumentar suas possibilidades de produção, Amartya Sen diferencia-o da

abordagem das capacidades humanas por estas estarem ligadas não apenas à

concentração de produção, mas também à concentração do potencial, como “liberdade

substantiva”, das pessoas poderem melhorar suas vidas (Sen, 2012: 372).

Embora a prosperidade econômica ajude as pessoas a terem opções mais amplas e a levar uma vida mais gratificante, o mesmo se pode dizer sobre educação, melhores cuidados com saúde, melhores serviços médicos e outros fatores que influenciam causalmente as liberdades efetivas que as pessoas realmente desfrutam (...). Pois os seres humanos não são meramente meios de produção, mas também a finalidade de todo o processo (Idem: 375).

Nesse sentido, evidencia-se que a abordagem das capacidades humanas não é

uma alternativa à teoria do capital humano, mas sua ampliação, uma vez que se mostra

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149

muito mais eficaz para o embasamento de uma racionalidade quando aumenta seu leque

de cálculos e consequências das ações e condutas humanas.

O filósofo e pesquisador Trent Hamann, com base nas transformações na vida

individual e social nos EUA, faz uma análise sobre as estratégias da

governamentalidade neoliberal que põe em funcionamento uma subjetividade

historicamente construída em torno do homo economicus como um “atómo” de interesse

próprio, livre e autônomo (Hamann, 2012). Hamann aponta para uma clara diluição

provocada pelo neoliberalismo das tradicionais distinções entre público e privado,

político e pessoal.

Nos EUA, em especial, muitas instituições públicas ou estatais passaram a ser

geridas de forma privada por corporações, inclusive áreas urbanas, conforme situa o

exemplo do Business Improvement Districts – parcerias público-privadas emergentes no

início dos anos 1970 com o objetivo de desenvolver negócios e a chamada “qualidade

de vida” de uma comunidade, com autorização do governo (Idem: 103). Neste processo,

Hamann chama atenção para uma reposição do que era compreendido como social e

político para o campo do “autogoverno” [self-management], e para evidências que

demonstram uma transferência de responsabilidade para o indivíduo, em termos de

estarem sujeitos às demandas de mercado e avaliação de cálculos de riscos econômicos,

responsabilidade financeira, produtividade, eficiência (Ibidem: 105). Assim, o homo

economicus, de comportamento imprevisível, deve ter sua conduta moldada por meio de

uma subjetividade mantida por mecanismos sociais de assujeitamento (Ibidem: 107),

compondo uma ética responsável.

Não é o Estado, o mercado ou uma instância superior que governam os

indivíduos, mas eles mesmos constroem uma subjetividade enquanto revestidos como

capital humano portador de capacidades para realizar escolhas livres, que apenas

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150

derivam de “oportunidades” a serem garantidas pelo Estado. Ao serem subjetivados

como plenamente autônomos e livres, a responsabilidade dos indivíduos constitui uma

forma de moralidade de mercado, entendida como maximização da economia por meio

da deliberação racional daqueles, ao passo que o fracasso do engajamento necessário

nesse processo de subjetivação confere ao indivíduo um estatuto de “vida

desgovernada” (Ibidem: 110), ou, como no caso dos Estados, uma “falência”, referente

à falta de escopo necessário para gerir instituições eficientes e prover garantias básicas a

seus cidadãos.

O “autogoverno” à que se referem os neoliberais remete à responsabilização e

julgamento moral das escolhas dos indivíduos como estratégia econômica e de governo.

Não apenas se distancia da “autogestão” – palavra introduzida pelos anarquistas no que

concerne às suas práticas por meio de ação direta –, como estreita e se intensifica com

uma relação de governo intrínseca ao Estado. Interessa para a governança, na medida

em que esta oculta a relação governante-governado, a gestão compartilhada entre

mercados, empresas, organizações, sociedade civil e Estado, pressupondo a conduta

responsável de cada um, capazes de governar a si próprio e aos demais.

No curso O governo de si e dos outros, Foucault faz uma análise de alguns

momentos precisos do texto de Kant, Aufklärung [Iluminismo], que apresenta uma

relação viciada entre o uso que fazemos da nossa razão, ou que poderíamos fazer, e a

direção dos outros, que caracterizaria o estado de menoridade (Foucault, 2013: 32).

Neste, predominam o par obediência e ausência de raciocínio e o par privado e público.

Há, para Kant, que a superimposição da direção dos outros se deve à própria pessoa que

a aceita devido a um déficit de autonomia (Idem: 32). A esfera “privada” seria o uso que

se faz de suas faculdades privadas nas atividades que considera “públicas” – “quando

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151

somos os elementos de uma sociedade ou de um governo cujos princípios e objetivos

são os do bem do coletivo” (Ibidem: 34).

O que Kant chama de privado é o uso de nossas faculdades enquanto indivíduos

encarregados de uma função coletiva. Já o uso público seria o uso de nossas faculdades

enquanto sujeito universal. O uso que fazemos do nosso entendimento, enquanto

sujeitos racionais, tem uma dimensão universal, e a maioridade é atingida quando a

obediência se fizer na esfera privada – enquanto membro de uma coletividade – e o uso

da razão se fizer na esfera pública, fazendo-se valer a liberdade total de raciocínio

(Ibidem: 35). E, segundo a leitura de Foucault, é precisamente deixando crescer essa

liberdade de pensar pública, essa dimensão autônoma do universal, que a necessidade de

obedecer aparecerá de forma mais evidente na ordem da sociedade civil: “Quanto mais

liberdade para o pensamento vocês deixarem, mais vocês terão certeza de que o espírito

do povo será formado para a obediência. E é assim que se vê desenhar uma

transferência de benefício político do uso livre da razão para a esfera da obediência

privada” (Ibidem: 37).

Desse modo, é importante se ater à introdução destas concepções pela filosofia

moderna se pensarmos na acomodação do discurso da responsabilidade social

envolvendo a acoplagem da teoria do capital humano e sua ampliação e eficácia no

campo social com a abordagem das capacidades enquanto modo de gerir a vida de

forma racional, baseando-se num amplo leque de cálculos e consequências das ações e

condutas humanas.

o IDH e a construção de uma medição para a vida

Segundo Mahbub ul Haq, antes da Segunda Guerra Mundial havia uma obsessão

crescente em relação aos modelos de crescimento econômico e ao que poderia ser

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152

medido e precificado, e as pessoas eram cada vez menos vistas como agentes de

mudança e beneficiárias do desenvolvimento (ul Haq, 1995: 22). Para ele, em 1980, por

meio do aumento das taxas de crimes, da poluição, a rápida propagação da Aids, entre

outros fatores, o aumento da produção econômica não estaria acompanhando o aumento

de bem-estar humano. Ao mesmo tempo, os custos de ajustes estruturais para programas

realizados nos chamados países em desenvolvimento, sob a égide do FMI e do Banco

Mundial, haviam sido muito altos na década de 1980. Foi nesse contexto, e em meio aos

questionamentos sobre outras opções disponíveis para equilibrar orçamentos financeiros

e ao mesmo tempo proteger os setores considerados mais vulneráveis da sociedade, que

ul Haq declara ter apresentado a ideia de um relatório anual sobre desenvolvimento

humano para o administrador do PNUD, na época William Draper (Idem: 23).

Concomitante à preparação do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) houve a

criação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), considerado uma medida mais

eficiente do “progresso das nações”, ao levar em conta as escolhas das pessoas,

diferentemente do PIB (Produto Interno Bruto).

O princípio fundamental que guiou a pesquisa para a concepção do IDH, em

1989, foi o de abranger as escolhas das pessoas no que concerne, em primeiro lugar, ao

desejo de ter uma vida longa, adquirir conhecimento, ter uma vida confortável, ter um

emprego remunerado, respirar ar limpo, ser livre, viver em uma comunidade (Ibidem:

47). Foram, inicialmente, estabelecidos um número limitado de variáveis simples e

manejáveis: expectativa de vida; alfabetização na idade adulta, para medir o grau de

educação; e o próprio PIB, ajustado à paridade do poder de compra, como índice do

acesso a escolhas econômicas múltiplas. Outras variáveis foram descartadas por serem

entendidas como subjacentes a outras já estabelecidas; mortalidade infantil, por

exemplo, estaria incluída na variável “expectativa de vida” (Ibidem: 47).

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153

De forma distinta ao PIB, do qual o dinheiro serviria como medida comum para

todos os cálculos, não há uma medida comum para medir o progresso socioeconômico.

A expectativa de vida é medida em anos, a educação é medida pela percentagem de

alfabetização de adultos e pelos anos de escolaridade – sendo o primeiro equivalente a

um peso de dois terços em relação a um terço do segundo –, e a renda é ajustada ao

poder de compra em dólares. Assim, estabeleceu-se que o avanço metodológico seria

medir o progresso real em cada indicador como distância relativa de uma meta

desejável. Em uma escala de 0 a 1, cada progresso nacional seria medido em relação a

uma meta pré-estabelecida, com a desvantagem de que cada valor se tornaria relativo a

outro (Ibidem: 48).

No momento de sua formulação também se pretendeu tornar o índice flexível,

sujeito a revisões, refinamentos, pesquisas e investimentos. Além disso, o ranking

produzido pelo IDH foi pensado para persuadir e pressionar decisores políticos a

investir adequadamente na produção de dados relevantes e no encorajamento de

instituições internacionais para prepararem sistemas de dados estatísticos de

comparação (Ibidem: 48).

O IDH, pensado para aplicação em âmbito planetário, não deixa para trás o PIB

como medida socioeconômica ainda referente ao Estado-nação, mas o complementa por

meio das variáveis específicas de cada local. As variáveis básicas do IDH –

longevidade, educação e renda – ampliam a variável renda, medida pelo PIB, no

momento em que se passa a pensar no que a compõe, no que a produz, como é

distribuída, em outros fatores constitutivos do lucro. Países como os Emirados Árabes

Unidos, Iraque, Líbia, Arábia Saudita, por exemplo, revelarão alto PIB e baixo IDH,

segundo ul Haq, por terem adquirido grande parte de sua riqueza após a alta do preço do

petróleo em meados dos anos 1970 (Ibidem: 53). Defende, portanto, um equilíbrio entre

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o IDH e o PIB, sendo este último ultrapassado como um indicador eficiente de

desenvolvimento humano. O mais importante a ser analisado, nesta lógica, é a forma

como o rendimento é utilizado e distribuído em uma sociedade, devendo ser necessárias

prioridades dos decisores políticos em termos de construir uma base adequada de capital

humano para o crescimento de cada país. Uma base econômica adequada sustentaria o

progresso social e vice-versa.

Conforme relata, a questão recorrente foi mudando de “quanto uma nação

produz?” para “o quão satisfeitas estão as pessoas de uma nação?” (Ibidem: 25). Assim,

o primeiro Relatório do Desenvolvimento Humano (RDH) foi publicado pela Oxford

University Press em maio de 1990 com o tema “Conceito e Medição do

Desenvolvimento Humano”. Partindo-se do pressuposto de que o crescimento

econômico é necessário para o desenvolvimento humano, avaliaram-se as políticas dos

países que conseguiram traduzir seus níveis de renda per capita em desenvolvimento

humano (PNUD, 1990: 1).

Nesse sentido, ul Haq reitera que a pobreza não deve ser considerada como um

objetivo distinto do desenvolvimento humano, mas o investimento de educação e

capacitação, em especial, devem ser tomados como objetivo de longo-prazo para inseri-

las totalmente no bem-estar humano (ul Haq, 1995: 27). Para tanto, estabelece a

necessidade de um compromisso entre eficiência de mercado e políticas sociais com

intervenção do governo, sendo “necessário garantir que as redes de segurança sociais

não sejam rompidas em períodos de rápido crescimento, o que poderia ocasionar

convulsões políticas que perturbem o processo de desenvolvimento” (Ibidem: 28).

O RDH seguinte, de 1991, sobre “Financiamento do Desenvolvimento

Humano”, apresenta a possibilidade de uma reestruturação de orçamentos capaz de

prover recursos suficientes de serviços básicos para todos, dando fim ao que chama de

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oportunidades desperdiçadas por meio de gastos militares, empreendimentos públicos

ineficientes, a crescente fuga de capitais e aumento de corrupção (PNUD, 1991: 4).

O financiamento, nesse sentido, teria a função de promover um

“desenvolvimento participativo onde as pessoas são colocadas no centro de todas as

tomadas de decisão. É sobre a liberdade humana onde as energias criativas das pessoas

são desencadeadas para gerar oportunidades econômicas e sociais para si mesmas e para

as sociedades” (Idem: III). E as principais estratégias políticas para a alocação e melhor

distribuição dos recursos prioritários seria, precisamente, o “empoderamento de grupos

enfraquecidos, o direcionamento de crédito para os pobres, a construção de coalizões

baseadas em interesses comuns, a compensação de grupos poderosos e a coordenação

de pressões externas” (ul Haq, 1995: 30).

Já o RDH de 1992 trabalhará, por conseguinte, as “Dimensões Internacionais do

Desenvolvimento Humano”, estabelecendo que os mercados competitivos garantem o

desenvolvimento humano por abrirem oportunidades para empresas criativas e aumentar

o acesso das pessoas à uma gama de escolhas econômicas; e vangloria a liberalização do

mercado nacional em todo o mundo – da Polônia e Paquistão à Rússia e México

(PNUD, 1992: III). Assim, o tema trabalhado pelo RDH de 1992 resume-se no

pressuposto de que o desenvolvimento humano deve ser promovido por meio da

melhoria do acesso dos chamados países em desenvolvimento aos mercados globais,

aumentando os fluxos de capital do Norte para o Sul e, consequentemente, os recursos

disponíveis para o investimento em capital humano.

Seguindo a ênfase nas pessoas como central para o desenvolvimento humano, o

RDH de 1993 explora o tema “Participação das pessoas”, onde se destaca que “com a

livre iniciativa vencendo a planificação central, e as vozes corajosas da democracia

aquietando os terrores do autoritarismo, pessoas em todo o mundo estão assegurando o

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seu direito para determinar o seu próprio destino” (PNUD, 1993: II). A participação é

estabelecida como efeito da descentralização do poder: “não mais sufocantes

regulamentações de um Estado todo-poderoso. Em vez disso, um desejo de libertar

empreendimentos humanos” (Idem: II). E, a esse desenvolvimento que denomina-se

“comunitário”, o Relatório ressalta caber desencadear o “espírito empreendedor” das

pessoas, que assumirão riscos para competir, inovar e direcionar-se para o

desenvolvimento. Esse foco na participação das pessoas alia-se, precisamente à

redefinição de segurança que passa a ser a segurança das pessoas (segurança humana) e

não apenas da nação.

Em artigo inaugural do periódico britânico Journal of Human Development de

2000, intitulado A Década do Desenvolvimento Humano, Amartya Sen destaca que os

anos 1990 foram marcados pelo sucesso da ideia de “desenvolvimento humano” por

responder às múltiplas preocupações e por trazer o que chama de uma concepção

pluralista em cada sociedade – sem concentrar-se apenas em uma medida solitária e

tradicional apenas do progresso econômico –, porém inescapável de reconhecimento e

acomodação dentro de um enquadramento global geral (Sen, 2000: 20). Para Sen, a

“partida inovadora” de ul Haq no mundo da avaliação do desenvolvimento tradicional

envolveu o questionamento à posse da filosofia utilitarista como forma dominante de

raciocínio ético, especialmente na tradição intelectual anglo-americana (Idem: 21). Para

ele, o cálculo utilitarista seria pertinente se tivéssemos que escolher apenas uma variável

a ser considerada, uma vez que não se pode ignorar a importância de se evitar dor e

sofrimento, bem como a felicidade como recompensa. Porém, a “contabilidade” do

desenvolvimento humano encontra eficiência em uma análise sistemática de

informações sobre os seres humanos e as diferentes sociedades em que vivem (Ibidem:

21). Embora considere uma grande vantagem do utilitarismo o fato de levar em conta os

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resultados de disposições sociais e o envolvimento das pessoas em julgá-las, o

utilitarismo não se atenta para a distribuição das próprias utilidades e possui descaso

para com direitos, liberdades e outras considerações não vinculadas à utilidade, além de

não levar em conta que pessoas destituídas de utilidades podem não ter condições de

julgar o tipo de vida que gostariam de ter e fazer as melhores escolhas para si (Ibidem:

89).

Foi neste contexto “monoconcentracionista” que Mahbub ul Haq teria assumido

a liderança de grande descontentamento em relação ao PIB, de ativistas argumentando

pelo reconhecimento de “necessidades básicas”, intervencionistas internacionais

lamentando “o estado das crianças no mundo”, a fome e a epidemia, e até humanistas

reivindicando justiça social e qualidade de vida. Assim, conforme exposição de Sen, a

visão integradora de ul Haq soube aproveitar diferentes reivindicações para o

desenvolvimento de uma abordagem ampla e flexível:

A ideia de desenvolvimento humano venceu porque o mundo estava pronto para isto. Mahbub deu-lhe o que vinha exigindo de diversas maneiras algumas décadas anteriores (...). Ele disse ao mundo: “aqui temos uma ampla estrutura; se você quer que algo seja incluído nesta lista, ou que algo mereça uma mesa na equipe do Relatório de Desenvolvimento Humano (e com incrível sorte pode até ser incluído em um dos índices, como o Índice de Desenvolvimento Humano ou o Índice de Pobreza Humana), diga-nos e explique porque deve figurar nessa contabilidade”. Com liberdade dos grilhões monoconcentracionistas, o mundo da avaliação foi aberto ao raciocínio pragmático, invocando diferentes tipos de argumento dentro de um amplo e permissivo quadro de avaliação social (Ibidem: 23).

A ideia de desenvolvimento revestida da ideia de humano almeja ter encontrado

no Índice de Desenvolvimento Humano uma maneira eficiente de provar seu sucesso. O

IDH, preciso e flexível, conseguiu inaugurar uma forma poderosa de elencar metas e

objetivos alinhados àquilo que pretende ser a prova da verdade verdadeira sobre um

espaço. Se a chamada sociedade civil foi o campo encontrado pela arte liberal de

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governar emergente no século XVIII para garantir sua governamentalidade por meio da

introdução de sua racionalidade na conduta dos que são governados, hoje, enquanto

uma sociedade civil planetária, lhe foi permitido, em grande medida pelos saberes

aglutinados em índices, constituir-se como objeto da governança global respondendo

aos arranjos da verdade da racionalidade neoliberal.

Esta sociedade civil, revestida de uma ética de responsabilidade e

transparência, será, ao mesmo tempo, aquilo que monitora, avalia e governa focos de

perturbação, e o que é governado pela produção envolta de uma lógica de metas e

objetivos – do planetário ao cada vez mais ínfimo, e vice-versa. Exemplo deste

funcionamento é o convite para países inovarem, substituírem ou adicionarem novas

dimensões adaptadas do IDH no que nomeiam de nível subnacional como prática

prevista pelo que o índice propõe alcançar, em termos de precisão. Já foram criadas

novas dimensões como liberdade política, meio ambiente, segurança, trabalho, etc., e

alguns países como Gâmbia, Argentina, China, Índia, África do Sul e Letônia já

realizaram este tipo de cálculo. O Brasil foi um dos primeiros países a realizar uma

adaptação do IDH, e mostrou-se como laboratório bastante oportuno para novas

tentativas, medições, revisões e criações de variáveis acopláveis no aperfeiçoamento de

seu exercício passível de replicação em outros ambientes com características similares.

IDH e o ambiente brasileiro

Segundo o PNUD, interessa mostrar, por meio do IDH93, o quanto um local

progrediu, mas ainda o quanto tem a melhorar. Em 1991, o IDH do Brasil era

93 Numa escala de 0 a 1, de 0 a 0,499 tem-se um IDHM “muito baixo”, de 0,5 a 0,599 “baixo”, de 0,6 a 0,6999 “médio”, de 0,7 a 0,799 “alto” e de 0,8 a 1 “muito alto” (PNUD, Ipea e FJP, 2014: 12).

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considerado “muito baixo” (0,493). Em 2000 foi classificado como “médio” (0,612) e

em 2010 “alto” (0,727).94

Em 2002, o PNUD criou o Prêmio Mahbub ul Haq95 para homenagear líderes

políticos e líderes da sociedade civil que demonstrem empenho excepcional na

promoção do IDH. O primeiro homenageado foi o então presidente do Brasil, Fernando

Henrique Cardoso (1995-2002), devido a implementação de programas de educação,

combate ao trabalho infantil e à Aids em seu mandato, além da atuação na reforma

agrária, diminuição da população “abaixo da linha de pobreza”, instalação da Comissão

Especial sobre Desaparecidos Políticos e pelo valor do salário mínimo, segundo o

PNUD.96

Em 2012, uma parceria entre o PNUD Brasil, a Fundação João Pinheiro e o Ipea

(Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) permitiu a criação do IDH adaptado aos

municípios brasileiros (IDHM) a partir de informações dos três últimos Censos

Demográficos do IBGE (1991, 2000 e 2010).

Segundo apresentação de Jorge Chediek – Representante Residente do PNUD e

Coordenador do Sistema ONU no Brasil –, a publicação referente ao IDHM brasileiro,

reunida na plataforma online “Atlas de Desenvolvimento no Brasil”, almeja ajudar no

estabelecimento de políticas inclusivas que tenham como fim melhorar a vida das

pessoas “oferecendo informação farta e acessível. Abrindo o caminho para que as

pessoas, os cidadãos, os gestores públicos, os estudantes e acadêmicos possam realizar

94 G1. “IDH municipal do Brasil cresce 47,5% em 20 anos, aponta Pnud” in Brasil. 29/07/2013. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/07/idh-municipal-do-brasil-cresce-475-em-20-anos-aponta-pnud.html. Acesso em 30/08/2013. 95 Ver: UNDP. Human Development Awards. Disponível em: http://hdr.undp.org/en/hd-awards. Acesso em: 09/11/2016. 96 Cf. Folha de S. Paulo. “FHC recebe prêmio e evita ser ‘sombra’ para Lula nos EUA” in Brasil. 08/12/2012. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0812200233.htm. Acesso em: 09/11/2016.

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cruzamentos e análises entre os mais de 200 indicadores que o site oferece” (Chediek in

PNUD, FJP e Ipea, 2014: I). No que a apresentação de Marilena Chaves, presidente da

Fundação João Pinheiro, complementa: “um instrumento de empoderamento para uma

sociedade que está cada dia mais atenta e participante” (Chaves in PNUD, FJP e Ipea,

2014: II).

O Atlas apresenta, de modo geral, um imenso progresso do país através dos

mapas que reúnem dados de todos os municípios:

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O Atlas enuncia que dos 50 municípios com melhor Índice, 28 estão no Estado

de São Paulo. Ao longo da pesquisa, foi coletada uma grande quantidade de notícias,

reportagens e relatórios a respeito do IDH brasileiro, das quais pude selecionar aquelas

que mais evidenciam características levadas em conta para suas medições. Interessou-

me expor tanto exemplos que carregam uma maior obviedade em sua demarcação,

quanto aqueles em que chama a atenção características que parecem bastante peculiares,

mas, na realidade, demonstram bem a relação entre a segurança ou não de um ambiente

apto a desenvolver-se e as pessoas que o habitam.

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São Caetano é considerada a cidade com o melhor IDHM do país. Marcada pela

indústria automobilística, possui renda como seu melhor indicador (0.891).97 Segundo o

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cidade nunca teve favelas, e, de

acordo com a prefeitura, todas as casas têm água encanada e 100% do esgoto é coletado

e tratado.98 No quesito habitação do indicador “vulnerabilidade” do Atlas, não há

pessoas que morem em domicílios sem energia elétrica e/ou sem abastecimento de água

e saneamento inadequados, e apenas 0.05% de pessoas vivem em domicílios com

paredes inadequadas.

Já Alagoas, além de possuir indicadores bastante baixos, apresenta as piores

taxas de analfabetismo do país, principalmente nas faixas etárias de 11 a 24 anos. De

acordo com o Atlas, a porcentagem de jovens de 15 a 17 anos com Ensino Fundamental

completo é a pior do país, com 39,56%.99 A partir de tais resultados, Maceió buscou

alternativas para sair dessa posição, iniciando, por exemplo, um convênio com o

Instituto C&A, em que desenvolveram o projeto Paralapracá. Atualmente, abrange 30

escolas da rede municipal de ensino. “Em sala de aula, as crianças são estimuladas a

tomar decisões e a fazer as suas próprias escolhas, geralmente em cooperação com os

seus colegas sobre o trabalho a ser realizado, possibilitando aumentar sua confiança”,

afirmou a secretária de Educação.100

97 Folha de S. Paulo. “São Caetano do Sul (SP) mantém 1ª posição no ranking do IDH” in Cotidiano. 29/07/2013. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/07/1318738-sao-caetano-do-sul-sp-mantem-1-posicao-no-ranking-do-idh.shtml. Acesso em: 29/03/2016. 98 Terra. “Classe social: a que classe econômica você pertence?” in Economia. 30/07/2013. Disponível em: http://www.terra.com.br/economia/infograficos/teste-classe-economica. Acesso em: 27/03/2016. 99 Uol. Alagoas tem o pior índice de desenvolvimento humano do país. 29/07/2013. Disponível em: http://tnh1.ne10.uol.com.br/noticia/maceio/2013/07/29/258153/alagoas-tem-o-pior-indice-de-desenvolvimento-humano-do-pais. Acesso em: 28/03/2016. 100 Tribuna. “Educação de Maceió firma parceria com instituto C&A” in Política. 13/08/2013. Disponível em: http://www.tribunahoje.com/noticia/72367/politica/2013/08/13/educaco-de-maceio-firma-parceria-com-instituto-ca.html. Acesso em: 28/03/2016.

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164

Melgaço, no Pará, município com o pior IDHM (0.418) do país, possui alto

índice de vulnerabilidade, com a justificativa de que 35.94% da população vive em

domicílios sem energia elétrica, 19.6% em domicílios com paredes inadequadas e

78.93% em domicílios com abastecimento de água e saneamento inadequados. A

variável “educação” também é baixa: 77.89% da população vive em domicílios em que

ninguém possui Ensino Fundamental completo; 31.45%, entre 15 e 24, anos não

estudam e nem trabalham e são vulneráveis à pobreza; 84.96% da população com 18

anos ou mais trabalhar de forma informal; e 50% é analfabeta e 48% considerada pobre.

O mal desempenho de Melgaço e de outras cidades no ranking produzido pelo

IDHM é comumente vinculado à corrupção ou má administração de seus governos.

Segundo o diretor da Transparência Brasil, Cláudio Weber Abramo, “quanto mais pobre

o lugar, piores são as condições de controle e maior é a chance de você ter

corrupção”101.

Por fim, a péssima colocação do Estado do Mato Grosso foi justificada pela

estagnação econômica, tida como consequência da presença de indígenas e

analfabetismo na região. A pior colocação do Estado foi a de Campinápolis, a 565 km

da capital. Para o prefeito da cidade, Jeovan Faria, uma das principais razões do baixo

índice é clara: mais de 50% da população do município é indígena. Quase 8 mil

habitantes, em sua maioria da etnia xavante, pouco se inserem e contribuem para a

economia local, além se serem pouco alfabetizados e receberem assistência à saúde de

maneira precária por parte do governo federal.102 A questão indígena aparece também

101 G1. População denuncia situação de abandono em Melgaço no Pará. 05/08/2013.Disponível em: http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2013/08/populacao-denuncia-situacao-de-abandono-em-melgaco-no-pa.html. Acesso em: 29/03/2016. 102 G1. Da economia à presença indígena, prefeitos de MT justificam baixo IDH. 30/07/2013. Disponível em: http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2013/07/da-economia-presenca-indigena-prefeitos-de-mt-justificam-baixo-idh.html. Acesso em: 25/03/2016.

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165

no município de Uiramutã, em Roraima, com o quinto pior IDHM do país. Segundo o

secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário, Cléber Buzzato, o baixo IDH

da região é reflexo de um processo histórico de espoliação, pois a posse efetiva dos

índios é extremamente recente e há a falta de políticas públicas para a sustentabilidade

desses povos.103

No caso dos chamados “países em desenvolvimento”, portanto, no que concerne

ao cálculo do IDH, interessa para a presente análise a governamentalização destes

espaços atravessada pelas condutas individuais participativas na melhoria do ambiente

em que vivem, extrapolando o enfoque num território. E, nesse sentido, a chamada

governança global se mostra forte unidade coletiva que requer uma padronização de

condutas racionais independentemente das especificidades de um local, embora utilize

do fortalecimento de identidades como estratégia eficiente para as melhorias em

consonância com um coletivo universal.

Em abril de 2016, por exemplo, foram divulgados dados do IDH referente aos

bairros da cidade de São Paulo. O bairro Marsilac, no extremo Sul da cidade, foi

indicado como o menor IDH do ranking (0.701). Já o bairro de Moema foi considerado

o de IDH mais elevado, e muito se divulgou sobre a possibilidade de se morar em

alguns bairros do Brasil ou, mais especificamente, de São Paulo, de forma similar à vida

em muitos outros lugares do mundo. Moema estaria à frente da Noruega, por exemplo.

Possui um dos metros quadrados mais caros da capital e garante o “privilégio da melhor

qualidade de vida da cidade”104.

103 MidiaMax. Cidade indígena possui 5º pior IDH do Brasil. 30/07/2013. Disponível em: http://www.midiamax.com.br/noticias/865580-cidade+indigena+possui+5+pior+idh+brasil.html#.UhGhl5LVDzk. Acesso em: 25/03/2016. 104 O Estado de S. Paulo. “Moema: bairro é número um em qualidade de vida” in São Paulo. 18/12/2014. Disponível em: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,moema-bairro-e-numero-um-em-qualidade-de-vida,1609248. Acesso em: 13/12/2014.

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166

Ao mesmo tempo, tais comparações alinham-se à chamada governança global,

que não prescinde de dados que possibilitem a avaliação e o monitoramento de aspectos

cada vez mais específicos de uma localidade.

No Estado do Piauí, por exemplo, com base na medição do IDH, o economista e

geógrafo François E. J. de Bremaeker revelou dados a partir do Índice de Carência

Humana, criado por ele. Neste, o município de Vera Mendes, a 386 km de Teresina,

ocupou o pior lugar105, o que culminou na provisão de bolsas e programas em prol da

redução do analfabetismo.

Com o intuito de elevar o IDH, o Governo do Piauí adotou o monitoramento

anual de indicadores com impacto no cálculo do IDH por meio da Fundação Cepro, para

que os programas sociais, econômicos e ambientais sejam estrategicamente executados.

O estudo tem assessoria direta do PNUD, que também propôs o monitoramento dos

novos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU (com vigência de

2015 a 2030), e também do Ipea e Fundação João Pinheiro – representantes brasileiros

no cálculo do IDH municipal (IDHM).106

Foi também firmado um termo de “cooperação técnica” entre a Fundação Centro

de Pesquisas Econômicas e Sociais (Cepro), do Governo do Estado, com o Insper

(Instituto de Ensino e Pesquisa), para o desenvolvimento de estudos sobre a situação

atual e a evolução do IDH no Piauí.107

É interessante notar como a “cooperação técnica”, conceito que se

institucionalizou no âmbito da ONU, ainda em 1959, em substituição ao de “assistência

105 Portal O Dia. Levantamento estima que o Piauí tenha mais de 900 mil carentes. 31/03/2015. Disponível em: http://www.portalodia.com/noticias/piaui/levantamento-estima-que-o-piaui-tenha-mais-de-900-mil-carentes-229710.html. Acesso em: 02/04/2015. 106 Piauí. Piauí vai monitorar indicadores que têm impactado o cálculo do IDH. 22/03/2016. Disponível em: http://www.piaui.pi.gov.br/noticias/index/id/24687. Acesso em: 23/03/2016. 107 Piauí. Piauí faz parcerias com institutos de pesquisas para estudo do IDH no Estado. 18/08/2016. Disponível em: http://www.piaui.pi.gov.br/noticias/index/categoria/2/id/27091. Acesso em: 19/08/2016.

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167

técnica”, referente aos países envolvidos na estratégia do desenvolvimento (inclusive os

considerados carecedores de intervenção), pressupondo uma relação de maior

autonomia e responsabilidade, também pode ser utilizado em referência a um projeto,

programa ou objetivo local, ao envolver diversos “parceiros”, desde a sociedade civil ao

Estado, empresas, organizações, as chamadas parcerias público-privadas, etc.,

evidenciando a necessária flexibilidade e facilidade de acoplamento do IDH.

Em 2004, foi ainda sancionada a Lei federal de nº 11.709108 que “institui normas

gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da

administração pública”. Segundo o site do Governo Federal, sobre a lei das Parcerias

Público-Privadas, “em ambiente de demandas sociais crescentes e competitividade

global os governos procuram novos meios de financiar projetos, construir infraestrutura

e disponibilizar serviços de interesse social. As parcerias público-privadas (PPPs)

tornam-se instrumento moderno no esforço de unir forças dos dois setores”109. As PPPs

diferem da concessão comum110 e da privatização, em que há “transferência integral ou

definitiva de uma função, ativo ou atividade específica para o setor privado, reservando-

se ao poder público apenas o papel de regulador”111. Assim, as PPPs caracterizam-se

por compartilharem o governo dos serviços prestados com o Estado, havendo a

“indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de

polícia e de outras atividades exclusivas do Estado”112. Nesse sentido, instrumentos

108 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/Lei/L11079.htm. Acesso em: 07/11/2016. 109 Cf. Brasil. Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Disponível em: http://www.planejamento.gov.br/assuntos/desenvolvimento/parcerias-publico-privadas/referencias/copy_of_perguntas-frequentes. Acesso em: 07/11/2016. 110 “Nas concessões comuns a remuneração do concessionário advém exclusivamente das tarifas cobradas aos usuários, nas parcerias público-privadas há pagamento de contraprestação pela Administração Pública, com ou sem cobrança de tarifa dos usuários” (Cf. Idem). 111 Idem.

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168

como o IDH, pensado como suporte e auxílio para estas novas formas de

compartilhamento, não apenas não se desprende do formato do Estado como o fortalece

e amplia-o aos moldes da chamada governança global.

O IDH é ao mesmo tempo um meio e um objetivo; é um instrumento e um ideal;

se refaz de forma necessariamente veloz e contínua, pretendendo-se cada vez mais

preciso; é rígido por indicar, provar e produzir verdades, e é flexível por ser altamente

ajustável às mais altas metas, que, enquanto tais, nunca são alcançadas por completo – o

que garante sua renovação contínua; requer a participação e colaboração de todos, mas

não prescinde da centralização de poder; não se desprende do formato do Estado, mas é

um instrumento próprio de uma governamentalidade planetária; por meio da

implantação de políticas sociais, alia-se a uma ética responsável de agentes-gestores; na

lógica do 0 à 1, classifica, elenca, esquadrinha; transita e conecta; introduz, induz,

incita, agrega, melhora.

Ao final de 2015, os estudos sobre o IDH referente às nações mostraram que o

Brasil perdeu uma posição no ranking planetário, mas continuou progredindo. Numa

posição denominada pelos técnicos do PNUD como “alto desenvolvimento humano”, o

Brasil caminha para a categoria de “muito alto desenvolvimento humano”. O IDH

mostra que este avanço se deve, em grande medida, aos programas de transferência de

renda para os mais pobres, como o Bolsa Família.113 A preocupação inicial de que o

programa poderia reduzir o número de pessoas dispostas a trabalhar entre os

112 Brasil. Lei federal 11.709/04. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/Lei/L11079.htm. Acesso em: 07/11/2016. 113 Mundo Lusíada. IDH prova que programas sociais são de extrema importância no Brasil. 25/08/2016. Disponível em: http://www.mundolusiada.com.br/colunas/economia-cultura-e-sociedade/idh-prova-que-programas-sociais-sao-de-extrema-importancia-no-brasil/. Acesso em: 26/08/2016.

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169

beneficiários se reverteu quando o programa constatou que isso não acontecia e, pela

experiência de êxito, seu modelo pôde ser replicado em outros países pobres.114

Já no que concerne ao interior do território brasileiro, às mais ínfimas

delimitações de espaço possíveis, ao mais local e ao específico, o IDH pretende ter

eficiente capacidade de abrangência e precisão, ao mesmo tempo em que necessita de

experimentos diversos para apurar a eficácia de metodologias e a possibilidade de

reproduzi-las. Uma cidade minúscula no interior do Estado de Minas Gerais, Águas de

São Pedro, contendo 3,6 km quadrados e cerca de 3000 habitantes, grande parte de

aposentados, é o município com o segundo maior IDH do país, e primeiro maior em

educação (0.825).115 Na cidade, onde praticamente todos se conhecem, há mais ônibus

escolares do que municipais. Esta estratégia não é aplicável nas grandes cidades, mas

outras podem servir de exemplo, como o sistema de educação integral, contendo aulas

de diferentes idiomas, artes marciais, dança, artes, robótica, culinária, etc. A secretária

da escola atribui o alto desempenho revelado pelo IDH, além das cobranças e

participação da comunidade, às parcerias com instituições privadas, como o Senac, o

Instituto Tellus e a Fundação Telefônica. Segundo ela, os investimentos em educação

levaram o índice de analfabetismo do município à zero: “nenhuma criança está fora da

escola. (...) O água-pedrense pode estudar desde a creche até a pós-graduação no

município”116.

O IDH funciona também como importante ferramenta para empresas terem

maior precisão de onde e em quem investir. O Sebrae de Brasília (Serviço de Apoio às

Micro e Pequenas Empresas - DF), por exemplo, identificou 17 regiões administrativas 114 Idem. 115 El País. “Como uma cidade de 3.000 habitantes conquistou o maior IDH de educação do Brasil” in Política. 29/07/2016. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/23/politica/1469235498_364210.html. Acesso em: 29/07/2016. 116 Idem.

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170

no Estado com baixo Índice. O projeto em parceria com o Governo de Brasília pretende

inserir totens do Sebrae nestes 17 locais, contendo informações relevantes ao

microempreendedor com uma linguagem simples. Ali, o totem pode emitir o boleto de

microempreendedor individual (MEI) e permitir seja pago pela pessoa no próprio

terminal, além de poder inscrevê-la em cursos gratuitos do Sebrae. Este serviço ainda

determinou que cada administração regional tenha dois servidores para auxiliarem o uso

destes totens; ambos participarão de um curso de “agente de desenvolvimento

avançado”, identificarão os estabelecimentos com “potencial de crescimento” e os

indicarão aos profissionais do Sebrae. Segundo o Vice-governador do Estado, “essas

pessoas farão a ponte entre governo, administrações e Sebrae e serão uma espécie de

facilitadores”117. Eles também ajudam a diagnosticar as vocações econômicas de cada

região, a fim de mostrar ao governo, “ponto por ponto, o que a comunidade quer com o

desenvolvimento”, tendo como objetivo capacitar 100 mil pessoas, além dos servidores

do governo que trabalham com contas governamentais. Além disso, para uma maior

eficácia da implementação, cinco missões serão realizadas pelo Brasil para que haja

troca de experiências e conhecimento entre os estados.118

O ramo da filantropia estatal, privada ou ambos, via “negócios sociais” ou

“negócios inclusivos” [inclusive business], também se beneficia dos dados fornecidos

pelo IDH e outros índices. Segundo a “ativista da filantropia do terceiro setor”, Carol

Civita, em países onde as oscilações de mercado são ajustes cotidianos, a filantropia tem

papel determinante no desenvolvimento, além de ser instrumento para o crescimento do

IDH e, consequentemente, um impulsionador da própria economia, uma vez que “uma

117 Agência Brasília. Cooperação com o Sebrae capacitará 10 mil pequenos empreendedores. 19/06/2015. Disponível em: http://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2015/06/19/cooperacao-com-o-sebrae-capacitara-10-mil-pequenos-empreendedores/. Acesso em: 20/06/2015. 118 Idem.

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171

sociedade não se mede pelo seu poder de consumo imediato (...), mas pela sua

capacidade de inserir indivíduos no crescimento como um todo, através da saúde,

educação, na capacitação profissional e na sua conscientização em relação ao ambiente

em que vive”119.

Em julho de 2014, foi oficializada a sanção do Projeto de Lei que institui o Novo

Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil e suas relações de parceria

com o Estado, em decorrência de parceria entre o Governo Federal e as organizações da

chamada sociedade civil, tidas como “agentes fundamentais para a execução de

iniciativas de interesse público e para o aprofundamento da democracia”120. Em janeiro

de 2016, foi dado início a um novo Marco Regulatório, que aprovou o papel das

Organizações da Sociedade Civil (OSCs) e dos movimentos sociais “para a redução da

pobreza, das desigualdades e para o fortalecimento da democracia no Brasil,

proporcionando um ambiente jurídico próprio às organizações e suas relações com o

Estado”121.

As OSCs empregam cerca de 2 milhões de pessoas e compõem 323 mil

organizações no país, atuando em áreas como cultura, assistência social, saúde,

educação, desenvolvimento sustentável e “defesa dos direitos de grupos historicamente

excluídos”. Elas participam da formulação e do controle social das chamadas políticas

públicas por meio de conselhos, conferências e mesas de diálogo estabelecidas pelo

Governo Federal, e estão presentes na fase de execução de políticas como o Programa 119 Carol Civita. “Filantropia é coisa séria” in Brasil Post. O1/08/2014. Disponível em: http://www.brasilpost.com.br/carol-civita/filantropia-e-coisa-seria_b_5639048.html?utm_hp_ref=pais. Acesso em 02/08/2014. 120 Secretaria de governo. Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil. Disponível em: http://www.secretariadegoverno.gov.br/iniciativas/mrosc. Acesso em: 04/02/2014. 121 Ricardo Berzoini. “A conquista do novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil” in Brasil 247. 25/01/2016. Disponível em: http://www.brasil247.com/pt/colunistas/ricardoberzoini/214515/A-conquista-do-novo-Marco-Regulat%C3%B3rio-das-Organiza%C3%A7%C3%B5es-da-Sociedade-Civil.htm. Acesso em: 26/01/2016.

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172

Minha Casa, Minha Vida, Programa Um Milhão de Cisternas Rurais no Semiárido,

etc.122

No Brasil, o terceiro setor compõe-se principalmente das Fundações, como é o

caso do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) que, com estreita parceria

com as Organizações da Sociedade Civil, geralmente financia doações à ONGs e outras

entidades beneficentes, podendo também executar projetos. Segundo o site oficial do

GIFE, a rede cresceu no Brasil nos anos 1990 quando houve uma difusão dos conceitos

de “terceiro setor” e “responsabilidade social empresarial”. Fase em que também se

intensificou o debate internacional sobre a incapacidade do Estado de cumprir sozinho

suas obrigações no campo do bem comum.123 Hoje, a Rede reúne 130 associados que,

somados, investem aproximadamente 2,4 bilhões por ano na área social por meio de

projetos próprios ou de terceiros, além de promover cursos, congresso, eventos e

reuniões sobre o trabalho do Grupo, bem como pesquisas, artigos e publicações em prol

do “desenvolvimento sustentável no Brasil, por meio do fortalecimento político-

institucional e do apoio à atuação estratégica dos investidores sociais privados”.124 Se

apresenta, portanto, como um grupo de organizações que investem recursos privados

com fins públicos, e “fruto do processo de redemocratização do país, do fortalecimento

da sociedade civil e, especialmente, da crescente conscientização do empresariado

brasileiro de sua responsabilidade na minimização das desigualdades sociais existentes

no país”125.

Segundo a pesquisadora Donna M. Mertens, a Fundação Itaú Social, a Fundação

Roberto Marinho e a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal são exemplos de

122 Ibidem. 123 GIFE. Disponível em http://www.gife.org.br/. Acesso em: 20/04/2014. 124 Idem. 125 Ibidem.

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173

organizações que oferecem forte suporte social, das quais fazem da avaliação de suas

atividades algo fundamental. A discussão em torno da avaliação dos investimentos faz-

se crucial, uma vez que viabiliza e põe em questão a melhor organização e aplicação do

lucro de uma fundação, empresa ou organização, sem deixar de se vincular à

responsabilidade social tanto do setor privado, quanto dos atores políticos, de

organizações não governamentais e do próprio beneficiário. Deve-se distinguir,

portanto, a melhor forma de avaliação para cada tipo de intervenção e investimento126.

Filantropia pode ser “investimento social privado” ou “empreendedorismo

social”, assim como “negócios inclusivos” dizem-se diferente de ambos por buscarem

retorno financeiro para além da “autossuficiência”, e diferente de empresas do

mainstream que adotam práticas inclusivas como estratégia secundária ou auxiliar. A

despeito da forma mais eficiente de avaliação e implementação de um negócio por uma

Fundação, empresa, Estado, ONGs, entre outras entidades administrativas, interessa

para a análise a abrangência modulável de “atores” envolvidos nestes empreendimentos,

que, em conformidade com a abordagem do desenvolvimento humano, extrapolam

lucros financeiros, pois requerem uma conduta específica na composição da governança

local em consonância com a governança global.

A economia política, como conjunto de relações contínuas entre a população, o

território e a riqueza, constituiu-se, no século XVIII, como intervenção característica do

governo, marcando a passagem de um regime dominado pelas estruturas de soberania a

um regime dotado de técnicas de governo (Foucault, 2008: 141). Se a

126 Mertens destaca quatro abordagens principais de avaliação: há aquela que acredita haver uma realidade a ser medida e portanto foca na avaliação do impacto e no uso de métodos quantitativos; em contraposição, há os avaliadores construtivistas, que priorizam o uso de métodos qualitativos; a terceira abordagem consiste no que chama de “pragmáticos”, que acreditam ser as perguntas avaliativas determinantes para a escolhas dos métodos, podendo-se lançar mão de métodos qualitativos e quantitativos. A quarta abordagem, considerada pela autora a mais transformadora, tem a avaliação como uma maneira de contribuir para mudanças sociais positivas; enfatiza as perguntas de uma avaliação como predeterminantes para o investimento social privado (Mertens, 2013: 32).

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174

governamentalização do Estado permitiu sua sobrevivência, caracterizando-se por um

conjunto de cálculos e análises, e tendo por alvo principal a população, por principal

forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos

de segurança (Idem: 143), uma série de novas estratégias de avaliação e monitoramento,

que envolvem a participação e capacitação de indivíduos investidos de capital humano,

e uma série de novos conhecimentos e conexões, aliados à racionalidade neoliberal,

permitiram, conforme indicações de Edson Passetti, a redução da governamentalização

do Estado de forma diametralmente proporcional à governamentalização da sociedade

(Passetti, 2013: 19): “A regulação da população não se restringe mais à biopolítica, mas

conecta-se a uma nova produção da verdade sobre capitalismo e ambiente, de

trabalhador como empreendedor, da democracia com gestão do planeta, com

sentimentos e afeições” (Idem: 19).

Se as relações de poder que atravessam a governamentalidade enquanto

tecnologia de governo não se constituem apenas de forma descendente ou de fora para

dentro, o que instrumentos de governo como o Índice de Desenvolvimento Humano

mostram é sua habilidade em produzir e reproduzir relações de governo dos indivíduos

sobre si, como empreendedor e gestor de suas escolhas, sobre os outros e sobre o

ambiente em que se vive, por meio do monitoramento e avaliação que estes índices

produzem e pela incitação contínua na coleta de novos dados. Pela necessária

participação de todos, busca-se, cada vez mais, informações precisas sobre

determinados locais, bem como a composição de uma ampla metodologia sustentável

facilmente replicável.

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175

2.3. a abordagem do desenvolvimento humano sustentável

empreendimentos sustentáveis

Em meados dos anos 1990, o sucessor de William Draper como administrador

do PNUD, Gustave Speth, trabalhou para fazer com que o desenvolvimento humano

fosse realmente um quadro operacional dos programas do PNUD. Speth graduou-se em

direito pela Universidade de Yale e seguiu em uma pós-graduação em Oxford. Em

1986, doou 15 milhões de dólares da The John D. and Catherine T. MacArthur

Foundation of Chicago para a criação do World Resource Institute, a fim de inserir

questões de longo prazo de sustentabilidade e “bem-estar humano” na agenda global.127

Sua maior estratégia, na administração do PNUD, foi dar aos escritórios de

países maior autonomia e difusão de conhecimentos locais para expandir programas

voltados à promoção do desenvolvimento humano, principalmente por meio do

estabelecimento de centros de conhecimentos locais – as chamadas “facilidades de

recursos sub-regionais” (SURFs, na sigla em inglês) (Murphy, 2006: 267).

Speth foi responsável pela introdução do conceito de desenvolvimento humano

sustentável no PNUD, ligado à criação de um ambiente favorável à expansão e

alargamento das escolhas das pessoas por meio de um maior acesso a recursos

econômicos e da promoção de suas habilidades de adquirir conhecimento, relacionando

empoderamento, igualdade de gênero, crescimento equitativo, participação e redução da

pobreza.128 O desenvolvimento humano sustentável, no posicionamento do PNUD, seria

abordado no que afetaria as pessoas tidas como “pobres e vulneráveis”, e seu foco

127 Cf. World Resources Institute. History. Disponível em: http://www.wri.org/about/history. Acesso em 08/06/2015. 128 Cf. Gustave Speth. “Capacity Development and Sustainable Human Development” in Global transformations and world futures. Yale, Yale University. Disponível em: http://www.eolss.net/Sample-Chapters/C13/E1-24-08.pdf.

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176

estaria na erradicação da pobreza, na criação de empregos, na promoção de modos de

vida sustentáveis e do avanço das mulheres e na proteção e regeneração do meio

ambiente.129

Nesse sentido, o que Speth, por meio do PNUD, denominou de desenvolvimento

de capacidades, envolve muito mais do que ajudar pessoas a prover suas habilidades

técnicas e organizacionais, consistindo “também em criar segurança [safety e

securuty]130 para as pessoas que desejam realizar o progresso”131. Refere-se ao processo

de transformar crescimento em “capacidades” – que seriam habilidades, condutas,

valores, relações e comportamentos que tornam as pessoas aptas a alcançarem seus

objetivos. Refere-se, consequentemente, à construção de novos papeis sociais e

responsabilidades, uma vez que organizações, governos, assistência bilateral,

multilateral, etc., teriam como grande função a promoção de oportunidades para o bom

funcionamento das “capacidades” de cada um, a governar suas escolhas de maneira

sustentável.

Speth via explicitar-se uma nova ordem mundial, após a Conferência das Nações

Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Eco-92), em 1992, no Rio de

Janeiro, ao sugerir uma nova leva de valores, novas fontes de fortalecimento

internacional e novas áreas para a liderança mundial (Speth, 1992: 145). O novo

administrador do PNUD referia-se a um novo conceito de segurança, a segurança

ambiental, destacado na Eco-92, e à necessidade de diminuir lacunas entre ricos e 129 Idem. 130 Segundo Maria Cecília da Silva Oliveira (2016: 60), a noção de segurança humana evidencia-se definida entre a segurança como safety – ligado à proteção de ameaças como a fome, a doença e repressão – e security – como a proteção frente disfunções repentinas na vida cotidiana. No discurso de Speth sobre a abordagem das capacidades, o duplo safety-security remete e reforça, também, as articulações entre liberdades e responsabilidades, uma vez que as capacidades estão atreladas à segurança advinda da agência de cada um sobre suas escolhas em seu ambiente. 131 Cf. Gustave Speth. “Capacity Development and Sustainable Human Development” in Global transformations and world futures. Yale, Yale University. Disponível em: http://www.eolss.net/Sample-Chapters/C13/E1-24-08.pdf.

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177

pobres por meio de uma aceleração do desenvolvimento nos países pobres (Idem: 145).

A força que via na Eco-92 não estaria, para ele, restrita aos compromissos

governamentais, mas em uma agenda global como definidora de valores. O encontro

teria sugerido, também, uma mudança diplomática de gestão de conflitos para um

“esforço comum” após a Guerra Fria; um novo sistema de responsabilidades

internacionais por meio de acordos multilaterais.

Em artigo publicado na revista Foreign Policy do mesmo ano, 1992, logo após a

Eco-92 e pouco antes de tornar-se administrador do PNUD, em 1993, Speth comenta

sobre como a Conferência teria assinalado a emergência de um poderoso grupo na

diplomacia internacional: as ONGs – trabalhando com uma comunidade de cientistas,

especialistas, grupos de negócios e ativistas que representariam uma mesma gama de

interesses. Segundo ele, a Eco-92 também teria feito a importante nota sobre o

deslocamento da oposição entre Ocidente-Oriente, após a Segunda Guerra Mundial,

para Norte-Sul, após a Guerra Fria. Acompanhando o discurso dos “Estados falidos”,

destaca ser o Sul a “casa” do “mundo em desenvolvimento”, de virtuais conflitos

violentos, e de maior necessidade de transição para a democracia e os direitos humanos

(Speth, 1992: 146). Assim, critica a ênfase na segurança militar em programas dos EUA

e defende que, naquele contexto pós-Guerra Fria, o país deveria reinventar uma política

em prol do chamado “mundo em desenvolvimento”, junto com a criação de um

programa norte-americano voltado para o crescimento sustentável “que reflita a

generosidade do povo americano e seu desejo de ter um mundo melhor e mais seguro

para a futura geração” (Idem: 148).

Speth aponta para a preocupação sobre os combustíveis fósseis e as graves

poluições e chuvas ácidas em regiões. Cita o Painel Intergovernamental de Mudança

Climática (IPCC, na sigla em inglês), criado em 1988 pela ONU, e reitera a necessidade

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178

de diminuição da emissão de gás carbônico pela metade durante os cinquenta anos que

viriam, quando ocorreria a grande expansão da economia mundial e o “mundo em

desenvolvimento” teria uma rápida industrialização. Sinaliza, ainda, para uma grande

preocupação na época: o rápido crescimento populacional e o consequente aumento da

pobreza, que causariam estresses tanto em sistemas naturais como sociais. E, partindo

deste contexto, estabelecia ser maior do que nunca o novo compromisso dos EUA com

os chamados países em desenvolvimento.

Esse interesse dos EUA, segundo Speth, teria se intensificado com a emergência

de um único mercado global e com “o mundo em desenvolvimento se mostrando como

um vasto potencial de mercado para os Estados Unidos” (Ibidem: 152). Destaca que um

terço das exportações dos EUA era destinado aos chamados países em desenvolvimento

e que quase 60% das importações da América Latina provinha dos EUA, assim como

milhões de empregos dependiam da saúde econômica do “mundo em desenvolvimento”,

e o fracasso dos países altamente endividados nos anos 1980 teriam custado cerca de 1,7

milhões de empregos aos EUA.

Em suas palavras, deixava claro, portanto, uma nova oportunidade, bastante

segura, de investimento estadunidense: “iniciativas dos EUA de ajudar os países em

desenvolvimento criarão novos mercados, trarão novos empregos e oportunidades

econômicas para os EUA” (Ibidem: 152). Os interesses políticos e em segurança dos

EUA, segundo sua argumentação, dependeriam, em grande medida, de sua boa relação

com os países da África, Ásia e América Latina, e do progresso dos mesmos, a serem

alcançados por meio da cooperação como parte das diretrizes políticas de promoção do

desenvolvimento sustentável, uma vez que “Os Estados Unidos precisam da cooperação

do mundo em desenvolvimento para proteger o seu próprio ambiente” (Ibidem: 155).

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179

Nesta lógica, defendia a construção de um novo programa dos EUA ampliado a

outras áreas que afetassem os chamados países em desenvolvimento, como o acesso a

capital e tecnologia, reformas de mercado, etc. Um programa que se concentrasse na

construção de capacidades humanas e institucionais necessárias para o

desenvolvimento sustentável, devendo:

Enfatizar educação e treinamento, aumentar as capacidades de governos locais e ONGs, enfatizar o planejamento nacional e políticas de desenvolvimento, a cooperação técnica e científica, serviços de informação e monitoramento, parcerias do setor privado e projetos demonstrativos em áreas como agricultura sustentável e energia sustentável. Os Estados Unidos devem se utilizar do potencial de ONGs para transmitir cuidados ambientais básicos e instituições-chave como universidades (Ibidem: 156-157).

Em seu primeiro ano como administrador do PNUD, Speth buscou identificar o

Programa com a abordagem do desenvolvimento humano sustentável. Para que cada

país pudesse atingir esse princípio, o PNUD listou três objetivos básicos a serem

seguidos: o patrocínio do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH), servindo

como recurso para atingir essa visão; ajudar a “família” ONU a se tornar uma força

poderosa e unificada para o desenvolvimento humano sustentável – referindo-se ao

papel dos Representantes Residentes do PNUD como Coordenadores Residentes da

ONU e ao novo papel dos administradores como cadeira regular em encontros dos

líderes das agências da ONU para o desenvolvimento –; e, por fim, a formulação do uso

de recursos do próprio PNUD para proteger o meio ambiente, encorajar a chamada “boa

governança”, avançar na questão dos direitos das mulheres e promover a redução da

pobreza (Murphy, 2006: 267).

Speth esteve no cerne da abordagem dos anos 1990, de conexão da preservação

do meio ambiente com o desenvolvimento em uma agenda planetária. Ao seu lado

estava Maurice Strong, que havia sido um empresário canadense de sucesso antes de

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180

liderar programas de assistência estrangeira nos anos 1960 no Canadá. Na Conferência

das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, Suécia,

em 1972, Strong presidiu o primeiro dos encontros globais para o meio ambiente, e

tornou-se o primeiro diretor executivo do Programa da ONU para o Meio Ambiente

(PNUMA), criado para promover o trabalho da Conferência. Em 1987, um dos dois

grandes estudos decorrentes da Conferência foi produzido pela Comissão Independente

sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Primeira Ministra da Noruega, Gro

Brundtland, e refletia, sobretudo, a visão de Strong. O outro estudo foi produzido pelo

World Resources Institute, liderado por Gustave Speth, em colaboração com o PNUD

(Idem: 269). Ambos os estudos eram relativos ao financiamento de países do Norte na

provisão de atividades no Sul voltadas para a preservação do meio ambiente. No mesmo

ano, governos trabalharam para a realização do Protocolo de Montreal, projetado para

acabar com o uso de substâncias químicas que destroem a camada de ozônio. Em 1990,

foi adicionado ao Protocolo um “Fundo Multilateral” para auxiliar os chamados países

em desenvolvimento que haviam parado de utilizar tais substâncias e que, em 1991, o

tornou-se uma instituição permanente, juntamente com o PNUD, o PNUMA, o Banco

Mundial e a Organização da ONU para o Desenvolvimento Industrial, em torno da

“responsabilidade de governança sobre o clima”132.

Ainda durante a administração de Speth, este percebeu que um terço dos projetos

do PNUD realizados entre 1994 e 1995 relacionavam-se à chamada governança, o que

considerou ser uma conexão entre a democratização e o desenvolvimento humano

globais, decorrentes, em grande medida, do impacto do PNUD sobre as novas demandas

após o fim da União Soviética e a emergência de conflitos violentos com o fim da

132 Cf. Multilateral Fund. Disponível em: http://www.multilateralfund.org/aboutMLF/Implementingagencies/default.aspx. Acesso em 24/08/2015.

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181

Guerra Fria (Ibidem: 275). Em muitos de seus discursos, reiterava essa conexão como

sendo um dos pilares do desenvolvimento humano sustentável, não sendo possível

atingi-lo “sem o governo das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas” (Speth apud

Murphy, 2006: 276).

Em 1996, o então Secretário Geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali, apresentou

o documento An Agenda for Democratization, como suplemento de dois relatórios sobre

democratização e como documento oficial da 51ª sessão da Assembleia Geral da ONU

sobre o princípio do “apoio do Sistema ONU aos esforços dos governos para promover

e consolidar as democracias novas ou restauradas” (ONU, 1996: 2).

O documento se esforça em firmar o impacto da ONU sobre o processo de

democratização de novos Estados independentes e a proteção dos direitos humanos

vinda dos departamentos, agências e programas do Sistema ONU que contribuíram para

a participação dos cidadãos, fazendo emergir uma “produtiva sociedade civil” (Idem: 2).

Chama atenção para o suporte à democratização também advindo de uma proliferação

de atores ligados por um “empreendimento global”, como Estados, ONGs – de nível

global à local –, bem como profissionais, acadêmicos, instituições privadas e grupos da

sociedade civil, e defende que a democratização é uma nova força nas questões

mundiais, podendo ser assimilada por todas as culturas e tradições – devendo toda

sociedade estar apta a formular e caracterizar seu processo de desenvolvimento próprio

(Ibidem: 4).

Assim, elenca que a democracia de cada país decida sua forma e caráter de

desenvolvimento; que a democratização se baseie em esforços de criação de uma

cultura democrática, com uma política cultural de não violência e de consenso social

sobre o processo e abordagem da política democrática; que a democratização almeje

alcançar uma balança institucional entre o Estado e a sociedade civil; e, por fim, que o

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182

suporte para a democratização seja acoplado ao suporte para o desenvolvimento, a fim

de que os direitos socioeconômicos, bem como os políticos e civis, sejam respeitados

(Ibidem: 8-9). A base da democracia estaria, portanto, fundada na legitimação do

governo e na participação das pessoas em decisões que afetem suas vidas, contribuindo

para a efetividade das políticas de Estado e estratégias para o desenvolvimento.

Na mesma época, dialogando com a definição do relatório da Comissão de

Brundtland de que o desenvolvimento requer o encontro entre as necessidades do

presente sem comprometer as futuras gerações, Mahbub ul Haq defendia ser a

sustentabilidade do meio ambiente um meio e não um fim, assim como o crescimento

do PIB seria apenas um meio para o desenvolvimento humano (ul Haq, 1995: 78). Todo

o raciocínio de ul Haq concentrava-se em que a resposta às preocupações ambientais –

desde o aquecimento global até pessoas pobres que vivem em áreas consideradas

vulneráveis – não deveriam interromper o crescimento econômico, mas projetar novas

oportunidades para o desenvolvimento, em vias de consumir menos energia e focar na

preservação do meio ambiente. Defendia, neste contexto, o equilíbrio do consumo de

recursos por meio de taxas e preços específicos para cada país, bem como instrumentos

de regulação, monitoramento e penalizações estabelecidas principalmente por quadros

institucionais globais para a garantia da implementação de cotas e auditorias nacionais.

Na época, o Protocolo de Montreal já havia estabelecido tetos para emissões de

clorofluorcarbonos (CFCs) e outras substâncias prejudiciais à camada de ozônio.

Ao enfatizar que as diretrizes globais promovidas e formuladas pela ONU, e

centradas nos conceitos de segurança humana, justiça humana e segurança econômica e

ecológica, considerava a Agenda 21, documento proveniente da Eco-92, um dos

primeiros acordos rigorosos entre nações pobres e ricas e um marco para uma “nova era

de cooperação” (Idem: 92). Ao abrirem suas economias para o mercado internacional e

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183

construírem uma estrutura apta à democracia, considerava que os países pobres estariam

seguindo esse caminho de mudança, no que cita como referência a Conferência Mundial

para o Desenvolvimento Social de Copenhagen, de março de 1995, como o primeiro

passo rumo à construção do desenvolvimento humano sustentável – o que sintetizaria

toda essa nova “arquitetura para a paz”.

Mahbub ul Haq concluía a construção de sua nova visão global centrada no

desenvolvimento humano remetendo ao livro de Barbara Ward, de 1966, Spaceship

Earth, em que dizia: “nossa unidade física tem ido muito à frente da nossa unidade

moral” (Ward apud ul Haq, 1995: 200). Segundo o economista, esta frase de Ward

sintetizava sua constante pesquisa sobre igualdade social, justiça humana e as lacunas

entre ricos e pobres para a sobrevivência planetária, que deveriam ser suprimidas por

meio da moral, a fim de se pensar a partir de uma unidade humana.

De acordo com ul Haq, para Ward, nem a premissa socialista de que os homens

são motivados por um idealismo não-materialista, nem a premissa capitalista de que os

homens são motivados por uma ganância egoísta, resultam em soluções eficazes. Para

Ward, a solução estaria em um novo humanismo, em que as pessoas percebessem que

elas apenas podem sobreviver conjuntamente. Assim, sem moralidade as sociedades

pereceriam (Ul Haq, 1995: 202). A partir das sugestões de Ward, o grande introdutor do

conceito de desenvolvimento humano no PNUD e criador de seu correlato Índice de

Desenvolvimento Humano, sinalizava para que o que começava a ser conhecido por

segurança humana traria muito mais do que um ambiente físico em comum a ser

compartilhado, mas seria uma grande oportunidade para a construção de um novo

edifício de civilização humana no século XXI baseado na igualdade de oportunidades e

na centralidade do ser humano (Idem: 204).

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um projeto sustentável para o novo século

Na virada do século, ainda no ano 2000, outras institucionalizações foram

formatadas no âmbito da ONU, na esteira dos anseios pelo desenvolvimento sustentável

em âmbito planetário calcado na gestão dos conflitos depositados, principalmente, nos

países considerados “em desenvolvimento”.

Em setembro de 2000, os países-membros da ONU reuniram-se em Nova York

para adotar a Declaração do Milênio da ONU. Por meio desta, as Nações Unidas

comprometeram-se a uma parceria global para reduzir a “pobreza extrema” (conforme

expressão do PNUD), em uma série de oito objetivos, os Objetivos de Desenvolvimento

do Milênio (ODM), vigentes até 2015, e dos quais todos os trabalhos do PNUD

estariam voltados.133

De acordo com o Secretário-Geral da ONU na época, Kofi Annan, a Declaração

do Milênio utilizou-se da força simbólica da virada do milênio para ir de encontro às

necessidades reais das pessoas em todo o mundo. Foram ouvidas as vozes das pessoas e,

de acordo com Annan, as opiniões dos dirigentes mundiais e Chefes de Estado sobre os

desafios a serem enfrentados convergiram de maneira impressionante (ONU, 2000).

Segundo o Secretário-Geral, além dos objetivos elencados, “pediram o reforço das

operações de paz das Nações Unidas para que as comunidades vulneráveis possam

contar conosco nas horas difíceis. E pediram-nos também que combatêssemos a

injustiça e a desigualdade, o terror e o crime, e que protegêssemos o nosso patrimônio

comum, a Terra, em benefício das gerações futuras” (Idem).

133 Os ODM são: 1) redução da pobreza, 2) atingir o ensino básico universal, 3) igualdade entre os sexos e autonomia das mulheres, 4) reduzir a mortalidade na infância, 5) melhorar a saúde materna, 6) combater o HIV/Aids, a malária e outras doenças, 7) garantir a sustentabilidade ambiental, e 8) estabelecer uma parceria Mundial para o Desenvolvimento. Cf. PNUD. ODM. Disponível em: http://www.pnud.org.br/ODM.aspx. Acesso em: 20/03/2016.

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Estabeleceu-se os valores da liberdade, igualdade, solidariedade, tolerância,

respeito pela natureza e responsabilidade comum, no que se remete à adesão aos

princípios da Carta de fundação da ONU, de 1945, pela pertinência e multiplicação dos

vínculos que foram se consolidando mediante a interdependência entre as nações e os

povos (Ibidem: 1). Reitera-se a igualdade e soberania dos Estados, a resolução de

conflitos por meios pacíficos em consonância com os princípios de justiça e do direito

internacional e reitera a importância do papel central da ONU, enquanto “organização

de caráter mais universal e representativo de todo o mundo”, na gestão do

desenvolvimento econômico e social atrelado ao enfrentamento das ameaças à paz e

segurança internacionais (Ibidem: 2).

O ano de 2000 foi também proclamado pela ONU como o Ano Internacional da

Cultura de Paz, coordenado pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura). Em março de 1999 foi lançado, em Paris, o Manifesto

2000 por uma Cultura de Paz e Não-Violência, redigido por um grupo de Prêmios

Nobel da Paz134, como uma petição em vistas de alcançar 100 milhões de assinaturas até

a convocação da Assembleia Geral da ONU em 2000, quando também foi adotada a

Declaração do Milênio. A UNESCO foi responsável pela distribuição do Manifesto por

todo o planeta, lançando um apelo de cooperação à organizações e governos e de

mobilização à escolas, universidades, cientistas, políticos, jornalistas, acadêmicos,

organizações religiosas e militares, etc.135 Ao enfatizar a responsabilidade de cada um

em colocar em prática condutas que inspirem uma cultura de paz no cotidiano, o

134 Entre os primeiros signatários do Manifesto 2000 estavam Norman Borlaug, Adolfo Perez Esquivel, Michail Gorbatchev, Mairead Maguire, Rigoberta Menchu Tum, Shimon Peres, José Ramos Horata, Joseph Hotblat, David Trimble, Desmond Tutu, Elie Wiesel, Carlos F. Ximenes Belo, Nelson Mandela e Dalai Lama. Cf. Comitê da Paz. O Manifesto. Disponível em: http://www.comitepaz.org.br/o_manifesto.htm. Acesso em 08/04/2016. 135 Idem.

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manifesto convoca a todos a contribuir – de dentro da família, do bairro, da cidade, da

região, do país – na promoção da não-violência, da tolerância, do diálogo, da

reconciliação.

A primeira década do novo milênio foi proclamada a Década Internacional da

Promoção da Cultura de Paz e Não Violência em Benefício às Crianças do Mundo. De

acordo com o documento “Cultura de paz: da ação à reflexão”, publicado pela

UNESCO em 2010, como um balanço da década,

A cultura de paz está intrinsecamente relacionada à prevenção e à resolução não violenta dos conflitos. É uma cultura baseada em tolerância e solidariedade, uma cultura que respeita todos os direitos individuais, que assegura e sustenta a liberdade de opinião e que se empenha em prevenir conflitos, resolvendo-os em suas fontes, que englobam novas ameaças não militares para a paz e para a segurança, como a exclusão, a pobreza extrema e a degradação ambiental. A cultura de paz procura resolver os problemas por meio do diálogo, da negociação e da mediação, de forma a tornar a guerra e a violência inviáveis (...). No mundo interativo, tudo é uma questão de conscientização, mobilização, educação, prevenção e informação de todos os níveis sociais em todos os países (...). Para a UNESCO, paz não é meramente ausência de guerra (...) (UNESCO, 2010:11-12).

Ao final do documento, são apresentadas sinopses dos fóruns realizados pelo

Comitê da Cultura de Paz, coordenado pela Associação Palas Athena em parceria com a

UNESCO. Nestes, um dos pilares que se mostra fundamental para a construção

estratégica da cultura de paz é a resiliência, como instrumento de prevenção e redução

de vulnerabilidades, principalmente ligada às práticas pedagógicas e políticas relativas à

chamada primeira infância.

Ao final da década de 1990, o termo vulnerabilidade aparece, em seu uso mais

recente, em uma pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) que

objetivava traçar estratégias para a redução da pobreza, sendo imediatamente

incorporado como referência nas áreas de estudos sobre a violência por pesquisadores

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da América Latina (Oliveira, 2007: 155). Em 2000, o termo é utilizado conceitualmente

na criação de um sistema de indicadores, pela Fundação SEADE (Fundação Sistema

Estadual de Análise de Dados): o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS). No

mesmo ano, é também criado o Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ) pela Secretaria

Municipal de Cultura de São Paulo, no âmbito do Projeto Fábrica de Cultura, com o

intuito de mapear áreas passíveis de intervenção no município (Idem: 156).

Em 2008, o Índice de Vulnerabilidade Juvenil foi redimensionado como Índice

de Vulnerabilidade Juvenil ajustado à Violência, desenvolvido pelo Fórum Brasileiro de

Segurança Pública e pelo Ministério da Justiça.

Segundo o relatório “Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e

Desigualdade Racial 2014”, derivado do projeto de cooperação técnica entre a

Secretaria Geral da Presidência da República e a UNESCO, intitulado

“Desenvolvimento da Democracia Participativa por meio da especialização das Políticas

Públicas de Juventude e dos Mecanismos de Participação Popular”, este Índice

renovado aufere a violência entre os jovens, a frequência escolar e situação de emprego

e a pobreza no município (Brasil, 2015). De forma complementar, funciona um segundo

conjunto de indicadores que considera “o risco relativo de jovens negros e brancos

serem vítimas de assassinatos” (Idem: 11). De acordo com o próprio relatório, este outro

índice “tem por objetivo gerar insumos e indicadores para a formulação e

implementação de políticas públicas que levem em consideração a incorporação de

estratégias de prevenção e enfrentamento das altas taxas de violência observadas no país

contra adolescentes e jovens entre 12 e 29 anos de idade, em especial jovens negros”

(Ibidem: 11).

Em uma perspectiva libertária apartada da lógica das responsabilidades, Salete

Oliveira situa o termo “resiliência” como proveniente da física, no início do século XIX,

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188

indicando a capacidade de um material de deformar-se e retornar ao seu estado original

(Oliveira, 2012: 106). A pesquisadora chama atenção para um deslocamento deste

conceito na biopolítica, como medo-contágio-risco, para uma nova combinação, após a

Segunda Guerra Mundial, que seria resiliência, vulnerabilidade e proteção (Idem: 111).

Oliveira atenta para que, naquele período, a resiliência estava atrelada ao que era

construído como “situações de risco” e, depois, “condições adversas”, acompanhando

os efeitos da guerra e abarcando a questão da sobrevivência daquele que é capaz de

superar sua própria condição e desenvolver-se (Idem: 112). De acordo com a

pesquisadora, um deslocamento importante ocorreu no que concerne à construção da

resiliência como sinônimo de invulnerável para, mais tarde, ser revista como adjetivo

para o vulnerável que é capaz de revestir-se de mecanismos de proteção (Ibidem: 112).

Este deslocamento é de crucial importância para a presente análise, na tentativa

de expor, de forma mais adensada no próximo capítulo desta dissertação, como a

seletividade penal opera atualmente pelo planeta, combinando políticas alternativas e

jurisdições, a participação de todos com foco na inovação e a ampliação e

fortalecimento dos mecanismos estatais, menos por medidas repressivas e mais por

práticas de inclusão e proteção dos vulneráveis como potenciais criminosos. Segundo

Oliveira,

Agora se investe no governo do planeta, também, enquanto restauração do vivo frente à iminência ou consecuções de sua degradação, que se inicia pela prerrogativa da sobrevivência; neste caso, a resiliência articula-se de forma indissociável ao conceito de vulnerabilidade e adversidade e se mostra como um elemento imprescindível ao lado de sustentabilidade, promovendo adaptações, mais próximas de adequações e simultâneos apaziguamentos (Ibidem: 108).

Por sua vez, a resiliência é apresentada pelo PNUD como forma de superação de

grupos considerados vulneráveis, indicando novos contornos da cultura do castigo

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calcada na disponibilidade para a obediência. Diante da tentativa de aproximar

resiliência e resistência, Oliveira evidencia que, a primeira é radicalmente oposta às

resistências, uma vez que, “como plasticidades amorfas e modulares, não suportam

fissuras” (Ibidem: 107). Algo que fica claro no discurso do próprio PNUD e em seus

esforços pela utopia da segurança e prevenção de vulnerabilidades alinhadas ao

investimento na obediência desde o útero materno. Segundo Oliveira, há “uma relação

recíproca atual de sustentabilidade de novas configurações de governos, que se

estabelece a partir de um tríptico: desenvolvimento da primeira infância,

desenvolvimento humano e promoção de capital humano” (Oliveira, 2016: 35). A

resiliência, neste contexto, também, teria possibilitado o deslocamento da “situação de

risco” para a condição de vulnerabilidade (Idem: 39).

O tema do RDH global do PNUD de 2014 foi “Sustentar o Progresso Humano:

Reduzir as Vulnerabilidades e Reforçar a Resiliência”. Neste, a relação entre

vulnerabilidade e resiliência se dá por meio de três grandes áreas: prevenção – dos

choques financeiros, climáticos, ligada ao desenvolvimento na chamada primeira

infância, às políticas macroeconômicas e à coesão social; promoção – de capacidades,

como prestação universal de educação e saúde, pleno emprego, promoção da igualdade

de gênero e grupo, instituições com capacidade de resposta, preparação para catástrofes;

e proteção – por meio da garantia de oportunidades de escolhas, da criação de empregos

e das competências, do combate à discriminação e da recuperação de crises e conflitos

(PNUD, 2014b: 26).

Na perspectiva do PNUD, pessoas pobres são inerentemente vulneráveis por lhes

faltarem “capacidades básicas suficientes para o exercício da sua agência humana”

(Idem: 19). Assim como as crianças, que constituem o foco primeiro da construção da

resiliência, de modo a impedir perturbações futuras. Logo, nesta lógica, conforme Mary

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190

Young136 para o RDH, crianças pobres “são ainda piores nos resultados da educação,

saúde e nutrição”, uma vez que:

A pobreza se correlaciona fortemente com resultados negativos a curto, médio e longo prazo, tais como taxas de mortalidade infantil elevadas e desnutrição, baixa escolarização e realização, a prevalência de doenças infecciosas e crônicas na infância e na idade adulta, as taxas de desemprego mais elevadas, ao comportamento criminoso e muitas outras consequências sociais indesejáveis (Young apud PNUD, 2014b: 3 – grifos meus).

A resiliência é importante no que concerne ao aperfeiçoamento da conduta

referente à abordagem das capacidades humanas, disseminada necessariamente desde

cedo como forma de redução de vulnerabilidades futuras, de forma intrínseca ao

fortalecimento do Estado e suas instituições. Nesse sentido, como estratégia de

prevenção, a resiliência evidencia-se como instrumento eficiente na disseminação de

uma certa conduta dos indivíduos atrelada ao governo do ambiente, extrapolando uma

relação apenas de contenção e gestão de riscos de desastres ambientais.

De acordo com a atual administradora do PNUD, Helen Clark (desde 2009), o

conceito de resiliência, como é entendido na área da psicologia, é um processo de

transformação que se baseia na força inata dos indivíduos, suas comunidades e

instituições para que se previna e amenizem os impactos e choques de qualquer

natureza.137 Para Clark, o PNUD entende a resiliência como um processo para além da

adaptação:

A prioridade deve ser a prevenção complementada por esforços explícitos para reduzir as vulnerabilidades sociais e um compromisso para manter a integridade das comunidades, instituições e

136 Mary Eming Young é PhD em desenvolvimento infantil pela Universidade de Harvard. Foi especialista sênior em Desenvolvimento da Primeira Infância do Banco Mundial e responsável por grande parte de suas publicações. Ver: Young, 2010. 137 Clark, Helen in UNDP. Helen Clark: Putting Resilience at the Heart of the Development Agenda. 16/04/2012. Disponível em: http://www.undp.org/content/undp/en/home/presscenter/speeches/2012/04/16/helen-clark-putting-resilience-at-the-heart-of-the-development-agenda. Acesso em: 27/05/2016.

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191

ecossistemas. Estes são os alicerces da resiliência. Desenvolvimento sustentável baseado na resiliência também invoca o agenciamento de pessoas, instituições e sistemas. Ele clama para o desenvolvimento da agência ou da capacidade dos pobres para superar as suas condições.138

Para o reforço da resiliência, investe-se, portanto, em uma cultura empreendida

de capacitação e mobilização das pessoas que respondam, também, a um compromisso

estratégico e contínuo do PNUD em países considerados “em desenvolvimento” para

que se tornem cada vez mais resilientes e um ambiente não favorável à vulnerabilidades

e proliferação de “entidades criminosas”.139

Assim, se muitas vezes a resiliência é atrelada à redução de risco de desastres

ambientais, investe-se, também, na construção de sujeitos vulneráveis, devendo se

empoderar como cidadão participativo no governo, monitoramento e avaliação conjunta

de seu ambiente. Alguns exemplos podem ser encontrados em projetos, campanhas e

prêmios referentes à resiliência de cidades140, principalmente vinculados à promoção

dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU (ODM – 2000-2015).

Em 2012, foi divulgado o relatório “Como Construir Cidades Mais Resilientes –

Um Guia para Gestores Públicos”141, pelo Escritório da ONU para Redução de Riscos

de Desastres (UNISDR, na sigla em inglês), como uma contribuição à Campanha

Global da ONU “Construindo Cidades Resilientes”, de 2010 a 2015. No prefácio do

Relatório, consta que as cidades são os motores do crescimento e da dinâmica nacional,

a partir de seus sistemas de governança e capacidades e que, no decorrer da história,

138 Idem. 139 Ibidem. 140 Ver: BRASIL. Construindo Cidades Resilientes.Disponível em: http://www.mi.gov.br/web/guest/cidades-resilientes. Acesso em 28/06/2016; UNISDR. Making Cities Resilient: My City is Getting Ready. Disponível em: http://www.unisdr.org/campaign/resilientcities/. Acesso em 28/06/2016. 141 Disponível em: http://www.unisdr.org/files/26462_guiagestorespublicosweb.pdf. Acesso em 17/04/2016.

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192

desastres têm interrompido a vida em áreas urbanas.

O Relatório fornece um quadro geral de boas práticas para a redução de riscos de

desastres, que já foram aplicadas em diferentes cidades. Porém, estabelece-se que o

desastre não é natural; os fatores de risco expõem as pessoas e bens a ameaças de

possíveis desastres e a vulnerabilidades, mas estes fatores não são estáticos e podem ser

prevenidos de acordo com as capacidades institucionais e individuais em enfrentar e/ou

agir em função da redução do risco (UNISDR, 2012: 8).

Assim, reforça-se uma ética responsável a fim de gerir riscos por meio de

padrões de segurança de forma atrelada ao empoderamento dos cidadãos para a

participação no planejamento e governança conjunta de sua cidade e na construção da

resiliência às mudanças ambientais, que não se restringem à ecologia. Esta campanha

faz parte da agenda global do Quadro de Ação de Hyogo142 2005-2015 “Construindo a

resiliência das nações e comunidades frente aos desastres”, que guia as chamadas

“políticas públicas” nacionais e internacionais, abordando os papeis dos estados,

organizações e chamando à participação a sociedade civil, a academia, organizações

voluntárias e iniciativa privada (Idem: 12). De acordo com o relatório, a participação

deve ser estabelecida mediante uma “descentralização do poder” e alocação de recursos

para que todos possam ser responsáveis pela garantia da resiliência.

A resiliência mostra-se como produtora de condutas específicas, articulada à

situações de adversidade, que sustentam o a abordagem do desenvolvimento humano

sustentável como garantia de um ambiente seguro que não favoreça a proliferação de

142 O Quadro de Ação de Hyogo foi adotado pela Assembleia Geral da ONU para 2005-2015 e aprovado por 168 países após o tsunami do Oceano Índico. De acordo com o Escritório da ONU para a Redução de Risco de Desastres, o Quadro é o instrumento mais importante para a implementação da redução de riscos de desastres que adotaram os Estados Membros das Nações Unidas, e seu objetivo geral é aumentar a resiliência das nações e das comunidades frente aos desastres ao alcançar uma redução considerável das perdas que ocasionaram os desastres, tanto em termos de vidas humanas quanto aos bens sociais, econômicos e ambientais das comunidades e dos países. Cf. UNISDR. Hyogo Framework for Action (HFA). Disponível em: https://www.unisdr.org/we/coordinate/hfa. Acesso em: 18/04/2016.

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193

vulnerabilidades. A resiliência evidencia-se, atualmente, como importante forma de

contenção de possíveis resistências, ao se constituir como facilmente modulável em

diferentes âmbitos da vida no planeta. Está atrelada ao ambiente em que se vive,

abrangendo, da redução de riscos de desastres ambientais, infraestruturas das cidades, à

saúde, à psicologia, à psiquiatria e à mediação de conflitos. Diz respeito ao governo das

condutas, de forma descendente e também ascendente. Transita facilmente por todos

aqueles que se disponibilizam a governar a si para governar aos demais,

independentemente da posição social, política, econômica que se está situado.

A resiliência mostra-se como um instrumento-chave na orientação das chamadas

“políticas públicas” na construção de uma cultura de paz atrelada às novas formas de

segurança cada vez mais íntimas às condutas individuais. Em sua flexibilidade, opera

de forma eficiente a partir da conexão entre os indivíduos e o ambiente em que se

encontram, lançando mão de penalizações que visam a restauração das chamadas

vulnerabilidades, com foco em crianças e jovens. O próximo capítulo desta dissertação

buscará situar esta relação e funcionamento por meio de tentativas táticas locais

implementadas pelo PNUD.

Nesse sentido, a Justiça Restaurativa, introduzida no Brasil pelo PNUD e pela

Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça no início dos anos 2000,

será analisada enquanto forma tida como alternativa de responder aos considerados

crimes em sua complementariedade intrínseca ao sistema penal, como também enquanto

política social e metodologia de redução de vulnerabilidades. Aliada ao IDH como

eficiente orientador para a seletividade penal, a Justiça Restaurativa compõe a busca

pela governança local em consonância às estratégias globais da ONU para a construção

de um ambiente seguro, oportuno e conveniente ao desenvolvimento humano

sustentável, sem abrir mão dos castigos, da centralização do poder e autoritarismos

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194

conjugados de forma inerente à democracia na perpetuação de sua própria abordagem

lógica de vida.

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195

3. RESILIÊNCIA E PENALIZAÇÕES

RESTAURATIVAS: GOVERNO DOS

VULNERÁVEIS NO PLANETA

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196

Nas décadas de 1940 e 1950, do esgotamento do café nas vilas do Espírito Santo

e a expansão migratória para a capital do estado decorreu uma massiva industrialização

de Vitória e planos urbanísticos aliados à emergência das grandes empresas. Naquele

momento, a região hoje conhecida como Grande São Pedro, no noroeste do estado, na

qual comunidades de pescadores viviam e produziam a partir dos vastos manguezais ali

presentes, recebeu muitos migrantes rurais, imigrantes, dentre muitas outras pessoas que

foram expulsas de suas casas devido aos novos empreendimentos.

Décadas mais tarde, as tentativas de territorialização e urbanização da área por

parte do governo do estado e a criação de “áreas naturais protegidas” acarretaram na

reestruturação do solo, na devastação do mangue e na miséria e aumento de confrontos

e disputas entre os que ali viviam. Os manguezais, considerados áreas insalubres e focos

de doenças pelos planos urbanísticos e políticas sanitaristas (Botelho, 2011: 112),

transformaram-se em depósitos de lixo advindo da grande metrópole, tornados renovada

fonte de renda e alimento.

Ao final dos anos 1980, após diagnóstico da Prefeitura Municipal de Vitória de

que as áreas naturais não dispunham mais de capacidade de auto-recuperação, e ações

populares principalmente reivindicando moradia, adotou-se a Política de Inversão de

Prioridades, com o objetivo de oferecer melhorias à denominada população e ao

chamado meio ambiente. Iniciou-se a implementação de investimentos em infra-

estrutura, “conscientização dos moradores para a preservação do mangue”,

“participação e organização das comunidades no processo de urbanização das áreas”,

etc. Anseios dos moradores por “qualidade de vida” foram aclamados e ganharam

amplitude com incontáveis programas sociais, culturais e de segurança, pautados em

gestão participativa, protagonismo comunitário e empoderamento social pela busca por

identidades e memórias da região.

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197

A segurança da região, inicialmente contra a sua ocupação “desordenada”,

acarretou na queima de moradias e muitas mortes perpetradas pela polícia. Atualmente,

a transmutação da luta pela sobrevivência na “luta por urbanização” alinha-se aos

moldes de gestão compartilhada da segurança. Desde 2010, a Polícia Militar age na

região de São Pedro priorizando a prevenção à repressão, articulada às políticas sociais,

por meio do projeto Territórios da Paz, implementado em 2010 com apoio do PNUD,

do Governo Federal e da Defensoria Pública do Estado. A diminuição dos denominados

índices de criminalidade, após o lançamento do projeto, é considerada fruto de um

conjunto de ações que extrapolam o mérito da Polícia Militar, ou polícia comunitária,

ou polícia interativa, ou política restaurativa.

Mas este é apenas um exemplo dos incontáveis projetos e programas permeados

por táticas policiais e de segurança compartilhadas por órgãos estatais, organizações

internacionais, institutos, fundações, universidades, empresas, comunidade e sociedade

civil articulados às diretrizes internacionais para uma boa governança global. E se há

um investimento monumental em incrementar os índices para contabilizar de forma

otimizada a violência é porque as torturas, mortes e massacres em nome da segurança

são inestancáveis, e porque os investimentos sociais também em segurança são

incontáveis e extrapolam quesitos financeiros na lucratividade da gestão da miséria. Em

ambos os casos os alvos são os mesmos, e precisamente porque segurança sempre foi

sinônimo de busca pela paz, como exercício de mortificação da vida, ou, retraduzindo

para os dias atuais, entregar-se ao apanágio da qualidade de vida é a forma mais segura

de mortificar a vida em paz.

***

Page 198: 1. DISSERTAÃ⁄Ã…O FINAL

198

O último capítulo desta dissertação expõe a identificação, seleção e aplicação de

projetos voltados ao desenvolvimento e restauração de regiões consideradas focos de

vulnerabilidades ao redor do planeta. Com base no IDH e suas derivações ou ajustes

acopláveis a ele, não apenas na identificação desses ambientes selecionados, opera-se

pelo monitoramento e avaliação contínuos das atividades realizadas alinhadas às metas

e diretrizes globais voltadas à construção de um ambiente planetário seguro. A

produção de uma conduta resiliente, para o PNUD, possibilita a construção de um

ambiente resiliente e, portanto, seguro para o desenvolvimento sustentável. A noção de

ambiente não está estritamente relacionada à ecologia ou ao ecossistema, mas à

produção de condutas individuais conectadas à governamentalidade planetária, que

requer a gestão compartilhada, principalmente entre Estados, ONGs, sociedade civil,

institutos, fundações, universidades, etc., muitas vezes orientados ou via cooperação

técnica de programas como o PNUD.143

Os anos 1990 foram marcados pela justificativa de planejamento preventivo de

operações e intervenções militares da ONU de construção e manutenção da paz nas

chamadas “áreas de crise”, acompanhada de um intenso discurso em torno dos

denominados Estados falidos, situados principalmente na África. Interessa destacar,

agora, sobre a estratégia de construção da segurança em âmbito planetário, os

deslocamentos, redimensionamentos e especificidades de suas táticas. Sobretudo em

relação às chamadas intervenções, estas parecem ter sido modificadas e sofisticadas pela

disseminação de condutas responsáveis e resilientes em regiões com perfil delimitado e

bastante especificado. No entanto, mesmo que a implementação de programas e projetos

em prol da construção e manutenção da chamada cultura de paz leve em conta as

143 Ver item 1. 2. desta dissertação, em que se apresenta a emergência da ecopolítica e seus deslocamentos que ultrapassam a biopolítica da população.

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199

especificidades locais para melhores resultados, há um expressivo interesse na

replicação de modelos ajustáveis a outros ambientes.

A segurança humana, como abordagem que estabelece uma missão

compartilhada de garantia de estabilidade que não prescinde da centralidade do Estado e

da boa governança interna de cada um, também é capaz de desdobrar-se em vista de

alvos mais delimitados. Este capítulo expõe o que está em jogo na metodologia da

chamada segurança cidadã, como construção de uma cidadania integral para a

prevenção e controle da violência, referente à América Latina. Porém, a exposição do

material da pesquisa se restringirá a mostrar um programa muito pontual, em uma

região da capital Vitória, no Espírito Santo. Optou-se por esta delimitação frente ao fato

de se estar diante de um investimento sem precedentes, não em termos financeiros, mas

pela elaboração de laboratórios da paz, que expandem e ampliam penalizações, não

abrindo mão da cultura do castigo e de seus alvos iniciais: crianças e jovens

considerados vulneráveis.

O IDH, nesse sentido, não funciona apenas para identificar focos passíveis de

aplicação de programas, como fomenta processos que requerem a participação de todos

em prol da melhoria de suas inúmeras e ajustáveis variáveis referentes, desde à menor

região possível, em termos geográficos, até aos Estados nacionais, compondo um

prognóstico geral para construir e indicar as maiores vulnerabilidades do planeta a

serem superadas. No caso do Brasil e, mais precisamente, em relação à experiência de

cooperação técnica do Programa Conjunto da ONU coordenado pelo PNUD, Segurança

com Cidadania: prevenindo a violência e fortalecendo a cidadania, com foco em

crianças, adolescentes e jovens em condições vulneráveis nas comunidades brasileiras,

interessa deter-se na análise das implicações punitivas da Justiça Restaurativa, que o

PNUD também esforçou-se para introduzir no Brasil no início dos anos 2000, como

Page 200: 1. DISSERTAÃ⁄Ã…O FINAL

200

tentativa de pacificação de conflitos por visar fortalecer o papel da comunidade como

árbitro das relações sociais.

A Justiça Restaurativa, tida como forma alternativa de responder aos

considerados crimes, buscando a restauração da vítima e do infrator, se faz presente em

conselhos tutelares, escolas e é atualmente possibilitada pelo Estatuto da Criança e do

Adolescente (ECA) e pelo Estatuto do Idoso, bem como pode ser aplicado quando da

participação voluntária dos envolvidos em um considerado conflito ou crime. Porém, na

presente pesquisa, interessa mostrar seu funcionamento enquanto uma tentativa de tática

local, aliada ao IDH como produtor e disseminador de uma estratégia planetária, de

pacificação em um espaço delimitado, não restrita a um ou mais eventos, mas atuando,

preventivamente e pro-ativamente, de forma resiliente, pela participação de todos na

construção de um ambiente seguro.

O primeiro movimento deste capítulo, “da restauração à segurança cidadã”,

busca evidenciar um refinamento de conceitos referentes aos prognósticos do PNUD

por meio da exposição de três documentos. O primeiro é o Relatório de

Desenvolvimento Humano (RDH) de 2004 referente à América Latina, que reforça a

importância da cidadania como conduta fortalecedora e integradora da governança

democrática na região, marcada por altos níveis de pobreza e violência elencados pelos

índices. No ano seguinte, 2005, o PNUD publica a coletânea de artigos Justiça

Restaurativa, documento importante que marca o interesse do Programa na introdução

desta prática no Brasil, como orientadora de relações específicas de governo

comunitárias, centradas no exercício da cidadania, com foco na prevenção. O terceiro

documento analisado é o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) de 2013-2014,

também referente à América Latina, que avalia como sendo a melhor abordagem à

região a chamada segurança cidadã, por vincular de forma mais acabada a conduta

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201

segura de cada um com a segurança de um ambiente, sem descartar práticas tidas como

alternativas que visem, não apenas a prevenção como a pacificação pós-conflito.

O segundo movimento, “um programa conjunto e a construção de uma

seletividade”, apresenta a implementação do Programa Conjunto da ONU Segurança

com Cidadania em uma região situada no noroeste de Vitória (ES), como processo

contínuo de restauração e pacificação de um ambiente considerado inseguro. O

Programa Conjunto aglutina a gestão compartilhada entre a comunidade, suas lideranças

e moradores, empresas, policiais, inúmeros assistentes e especialistas das Secretarias

Municipais, Estaduais e do PNUD e outras cinco agências da ONU. Funciona de forma

aliada aos valores da Justiça Restaurativa como tentativa tática do PNUD que atua nesta

região identificada como vulnerável. A Justiça Restaurativa, por sua vez, também

chamada micro-justiça, mostra-se eficiente ampliadora de penalizações e

diametralmente oposta à propostas abolicionistas penais de supressão do campo de

atuação do sistema penal.

No último movimento do capítulo, “reinserção da guerra e produção da paz

social”, serão trabalhados alguns conceitos específicos da Justiça Restaurativa em torno

da tentativa de uma pacificação. Junto à perspectiva de Pierre-Joseph Proudhon,

apartada da síntese e da impossibilidade da pacificação, e à perspectiva da guerra como

continuação da política, sugerida por Michel Foucault, busca-se mostrar que esta paz,

como sinônimo de segurança, não pretende estancar e nem abolir a violência, mas

disseminar relações de governo e de poder que ampliam penalizações. Por fim,

proponho pensar a resiliência como o grande conceito encontrado, trabalhado e aliado à

racionalidade neoliberal na eficiência de contenções de possíveis resistências. Em sua

flexibilidade intrínseca, a resiliência está inserida nas mais diversas áreas científicas e

encontra na área do desenvolvimento de crianças terreno fértil para a aplicação de

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202

pesquisas e testes que visem a disseminação de condutas apaziguadas o mais cedo

possível. A resiliência evidencia-se como grande aposta da ONU e permeia fortemente

seus mais novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), lançados em 2015.

Ajusta-se facilmente a toda a área de abrangência requerida pela ONU e funciona de

modo a justificar a própria existência da atuação deste Sistema que garante sua força,

primordialmente, por meio da disseminação de condutas resilientes.

3. 1. da restauração à segurança cidadã

investimentos em cidadania na América Latina

O Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) regional de 2004 para a

América Latina teve como tema: “Rumo a uma democracia de cidadãs e cidadãos”

(PNUD, 2004). Reunindo o resultado de atividades conjuntas e estudos que abrangem o

período de 2001 a 2004, o Relatório foi redigido e organizado por uma grande equipe de

analistas, presidentes e ex-presidentes, líderes políticos e sociais e cidadãos

entrevistados em 18 países. É fruto do Projeto sobre o Desenvolvimento da Democracia

na América Latina (PRODDAL), levado pelo PNUD com apoio de governos,

instituições e da União Europeia. Na época, as metas da ONU vigentes centravam-se

nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM – 2000-2015), em que prevalecia

a perspectiva de pacto global entre países ricos, de um lado, e países pobres, de outro, e

o entendimento de uma oportunidade provida pelos ODM para que os países latino-

americanos impulsionassem seu desenvolvimento social e econômico. Nesse sentido, o

RDH de 2004 é entendido pelo PNUD como estratégia global de fortalecimento da

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203

chamada governabilidade democrática e do desenvolvimento humano na América

Latina (Idem: 25).

O Relatório comemora duas décadas de democracia nestes países, porém aponta

para uma “crise social” intensa, em que persistiriam desigualdades, pobreza,

crescimento econômico insuficiente e insatisfação – ponto elencando como crucial por

inviabilizar o equilíbrio democrático e o pleno exercício de cidadania. A essa

insatisfação, somam-se frustrações de grupos “tradicionalmente excluídos” que,

segundo o Relatório, ao não encontrarem acesso ao poder tradicional para a resolução

de seus problemas, manifestam-se por meios alternativos e, muitas vezes, violentos. O

grande desafio para a efetiva consolidação da democracia atrelada à cidadania é a busca

de soluções pela participação de todos os “atores sociais” – incluindo polícia,

especialistas e sociedade civil – na luta contra a corrupção e má administração de

governos e empresas (Ibidem: 16).

O Relatório lança mão do Índice de Democracia Eleitoral (IDE) e do Índice de

Apoio à Democracia (IAD). Ao considerar como grande problema da região os altos

níveis de pobreza e a maior desigualdade do mundo, postula que a democracia implica

em uma cidadania integral de pleno reconhecimento político, civil e social, não

reduzido às eleições. Estes índices teriam detectado tendências preocupantes, uma vez

que “os grupos mais excluídos do exercício pleno da cidadania social são os mesmos

que sofrem carências nas outras dimensões da cidadania” (Ibidem: 2 – grifos meus).

Pobreza e desigualdade, portanto, impediriam o exercício da cidadania com plenos

direitos, o que, por sua vez, impede a chamada inclusão social e a consolidação de uma

democracia sustentável.

O Relatório assume um discurso de que a política está em crise devido ao seu

desequilíbrio em relação ao mercado; a uma ordem institucional que limita a capacidade

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204

dos Estados de agirem com autonomia; devido ao aumento da complexidade das

sociedades não processada pelos sistemas representativos. Como resposta estratégica

para uma revalorização da política, apresenta-se o necessário fortalecimento da

participação, do pluralismo, de formas alternativas de representação que não substituam

as formais, mas as complementem, bem como o fortalecimento da sociedade civil e sua

articulação com o Estado.

Nesta perspectiva estratégica fundada nas concepções liberais de auto-

governo144, os cidadãos, mais do que “portadores de direitos e obrigações”, são tidos

como fonte e justificativa da autoridade estatal, uma vez que a democracia deve

conceber – de forma filosófica, moral e legal – o indivíduo como ser dotado da

capacidade de escolher entre opções diversas de forma responsável (Ibidem: 59). Em

uma discussão sobre direitos e capacidades como pilares da construção da cidadania, em

que o cidadão é entendido como “sujeito e ator”, “autônomo e responsável”, o PNUD

destaca a importância de “políticas que pressupõem a ação do cidadão como indivíduo,

como ator político que se expressa por meio de representantes e – nas circunstâncias

previstas – diretamente, e como integrante da sociedade, atuando em sua comunidade e

nas associações voluntárias que formam a rica trama da sociedade civil” (Ibidem: 68).

No momento da publicação do Relatório, tinha-se como grande problema o

impedimento da expansão da cidadania social, que seria, precisamente, a possibilidade

dos indivíduos de desenvolver suas capacidades, nem sempre tendo uma clara base nas

144 O relatório situa a emergência de concepções morais de “auto-governo” durante os séculos XVII e XVIII centradas na ideia de que todos os indivíduos normais são igualmente capazes de viver juntos, em contestação às concepções de moralidade como obediência (Pierre Rosanvallon apud PNUD, 2004: 60). Em seguida, argumenta-se que a democracia cidadã excede o regime político, devendo guiar-se também em direção aos direitos civis e sociais e, consequentemente, ampliar a “autonomia responsável” do ser humano dotado de sua capacidade como “ser moral” a outras esferas da vida que não apenas a política (Idem: 61).

Page 205: 1. DISSERTAÃ⁄Ã…O FINAL

205

constituições e legislações nacionais ou internacionais, apesar de ser tida como

componente efetivo da chamada cidadania integral.

O PNUD reitera que não há democracia sem Estado e não há desenvolvimento

da democracia sem um Estado que garanta a cidadania universal. A democracia como

valor instrumental, no âmbito do PNUD, é baseada na concepção de Amartya Sen

(1999) de que, na transição para o século XX, ela teria se expandido como valor

universal, partindo da participação e aceitação voluntárias. Neste momento, teria se

sobressaído um consenso sobre a importância de processos casuais que envolvem o

crescimento econômico intrínseco ao desenvolvimento: “políticas úteis” que incluem e

ampliam a participação cidadã no processo de expansão econômica – como a abertura à

concorrência, o uso de mercados internacionais, a oferta pública de incentivos ao

investimento e à exportação, um alto nível de alfabetização e escolarização, reformas

agrárias bem sucedidas e oportunidades sociais.

No âmbito do sistema de justiça, o fortalecimento da sociedade civil e seu

vínculo com o Estado como constitutivas da cidadania social para uma democracia

sustentável, encontra na chamada Justiça Restaurativa uma importante tentativa tática

apresentada pelo PNUD a ser introduzida na América Latina. Visando “melhorar a

distribuição” da Justiça, esta forma alternativa de justiça não substitui, mas

complementa, fortalece e amplia o sistema formal de justiça estatal. Ou seja, não há

uma tendência em questionar o sistema de justiça como tal, mas em ampliar sua área de

influência e promover a adesão voluntária das pessoas a sua forma de resolução de

problemas.

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206

táticas de difusão da Justiça Restaurativa

A emergência do modelo de Justiça Restaurativa, em contraposição à concepção

formal da justiça criminal, ou modelo retributivo, remonta ao final da década de 1970,

sendo implementada e disseminada, principalmente a partir da década de 1980, em

países como a África do Sul, Nova Zelândia, Canadá, EUA, Argentina, Brasil, etc.

Na África do Sul, a Justiça Restaurativa se fez presente enquanto política de

transição após o fim do regime do apartheid. Apesar deste ter sido oficializado em

1948, a localização do país, como ponto estratégico das rotas comerciais europeias para

o Oriente, contribuiu para sua história marcada, desde o século XV – quando da

colonização pelos holandeses e britânicos –, pela escravidão e separação étnica

(Rodrigues Pinto, 2007: 393). Nos anos 1990, com a libertação de Nelson Mandela, a

legalização do Congresso Nacional Africano e a revogação das leis raciais, teve início

um processo de transição democrática no país baseado nas concepções restaurativas de

conciliação, liderado por Mandela – que venceu as eleições para presidir o governo de

transição – e conduzido moralmente pelo arcebispo anglicano Desmond Tutu.

Em 1995, após uma série de conferências e relatórios sobre as milhares de

mortes e casos de tortura durante o apartheid, o parlamento sul-africano aprovou o Ato

de Promoção da Unidade e Reconciliação Nacional, que estabelecia a Comissão de

Verdade e Reconciliação, abrangendo o período de março de 1960 – quando ocorreu um

massacre na cidade de Shaperville – a dezembro de 1993 (Idem: 404). Baseado no

conceito indígena africano de ubuntu – que seria a ideia de compartilhamento, de

pertencimento a uma comunidade – e nos preceitos cristãos em torno da ideia de perdão,

o arcebispo conduziu a Comissão aos moldes da Justiça Restaurativa. Teve como

objetivos o alcance da verdade – como esforço de construção de uma nova identidade

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207

baseada em uma nova ordem moral; do perdão e anistia; e, por fim, o reconhecimento e

restauração.

Neste processo de anistia da África do Sul, os considerados culpados tiveram de

identificar-se como tais, a fim de dar início ao processo de perdão ligado à ideia de

graça cristã, e constitutivo dos valores de restauração. Segundo Simone Rodrigues

Pinto, a punição, neste caso, foi considerada de caráter moral, configurando a perda da

honra pessoal, e requereu a participação da comunidade na decisão de aceitação ou

rejeição dos que confessaram e se identificaram como culpados (Ibidem: 412). Este

processo envolveu a Justiça Restaurativa, segundo a autora, para não por em risco uma

transição pacífica e negociada, de forma a “ajudar a comunidade a criar uma história

compartilhada como base para a cooperação política futura” (Ibidem: 416).

Em outros países, como Canadá e Nova Zelândia, as tentativas de

institucionalização da Justiça Restaurativa também recorreram às práticas indígenas. O

Canadá é considerado pioneiro na conhecida prática “mediação vítima-ofensor” da

Justiça Restaurativa. Neste processo, as consideradas vítimas contra a propriedade e de

lesão corporal leve reúnem-se com os identificados como ofensores em um ambiente

mediado para a confissão por parte do ofensor e compensação à vítima (Azevedo, 2005:

141). Conforme o modelo de Kitchener, Ontário e também de Indiana, EUA, esta

prática é organizada independente e externamente ao sistema de justiça criminal formal,

porém trabalha em cooperação com ele, uma vez que o acusado assuma seu papel de

ofensor em meio ao processo penal (Zehr, 2005: 151).

Faz-se fundamental ressaltar, agora, as capturas por meio da Justiça

Restaurativa. Esta, ao tragar de outros povos práticas distintas e apartadas das

concepções ocidentais de crime, criminoso ou vítima, promove, por meio das

submissões discursivas, a pacificação de práticas avessas à linguagem penal. Povos

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208

como os maori, na Nova Zelândia e os inuit, no Canadá – comumente diluídos em suas

singularidades nas denominações “indígena” ou “aborígene” – possuem outras formas

de resolver seus problemas. Muitas vezes, estes saberes sujeitados (Foucault, 2010: 8-

10), desqualificados, hierarquicamente inferiores e tidos como ingênuos na sua “falta”

de cientificidade, posteriormente mascarados em coerências funcionais, foram

adequados às práticas penais da Justiça Restaurativa. No caso dos “círculos de paz”, por

exemplo, a concepção de “família” destes povos – no mínimo distinta do modelo

familiar monogâmico burguês ocidental –, é apropriada como “família distendida” de

modo a articular-se à comunidade como árbitro das decisões, no caso da Justiça

Restaurativa.

Na Nova Zelândia, o país tornou-se mundialmente reconhecido como uma das

grandes referências da Justiça Restaurativa como modelo de construção da paz

(peacebuilding), quando na segunda metade da década de 1980 foram introduzidos

encontros restaurativos como parte do programa nacional (Froestad e Shearing,

2005:82). Em 1989, culminou na criação da Lei das Crianças, Jovens e suas Famílias,

que exigia que todos os jovens considerados infratores fossem encaminhados para os

encontros restaurativos com grupos de familiares (Marshall, Boyack, Bowen, 2005:

267). Desse modo, partindo de uma análise abolicionista libertária, a Justiça

Restaurativa configura-se como:

Conceito difuso, fundamentado na noção de comunidade e proveniente da política de prevenção geral como resposta pacificadora à guerra civil e às resistências de minorias. Sua inserção no Direito Contemporâneo, na década de 1990, como efeito da colonização criminal de práticas específicas apartadas de um olhar penal da cultura Maori na solução de seus problemas. Como programa governamental ela emerge na Nova Zelândia, em 1989, como prática apaziguadora dos protestos e revoltas Maori em relação ao tratamento criminal dirigido a suas crianças e jovens. Imediatamente ela passa a ser aplicada tanto na África como no Canadá. Do ponto de vista do sistema penal a justiça restaurativa designa um campo oposto à

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209

justiça retributiva. (...) A justiça restaurativa se internacionalizou por meio de processos e programas, locais e regionais. No Brasil, foi introduzida a partir de projeto-piloto em Brasília dimensionado para Rio Grande do Sul e São Paulo. Pretende institucionalizar a criminalização ampliada e seletiva, exercitada, mais uma vez, como tribunal sobre o corpo dos jovens, agora como modulações da mediação de conflitos a partir da casa, da escola, da comunidade. A justiça restaurativa expressa a captura histórica da experimentação abolicionista entre os Maori e a tentativa de apaziguamento político do modelo conciliatório do abolicionismo penal”145.

No Brasil, em 2005, a partir de parceria entre o PNUD e a Secretaria de Reforma

do Judiciário do Ministério da Justiça, foi produzida a coletânea Justiça Restaurativa.

Pela primeira vez em língua portuguesa, a publicação reuniu artigos sobre o tema e sua

aplicação em todo o planeta. Interessa apresentar brevemente, por meio da própria

exposição dos autores reunidos, o que está implicado nesta publicação, de forma não a

avaliá-la ou perseguir sua implementação, mas tomá-la como documento relevante e

importante à estratégia geral do PNUD na composição da almejada governança global –

tida como equilíbrio ideal, universal e permanente dos fluxos políticos e de mercado em

âmbito planetário, por intermédio da tentativa de pacificação das relações sociais.

A fim de problematizá-la como tentativa-tática no âmbito do PNUD, parte-se da

noção de governo acordada aos apontamentos de Michel Foucault146, em que, mesmo

que as relações de poder e de governo direcionem-se a uma governamentalização

racionalizada no Estado, não restringem-se a uma instância suprema. Uma vez que o

exercício do poder como “condução das condutas” se dá diante de uma variedade de

possibilidades, interessa menos a submissão e mais uma oposição permanente entre

poder e liberdade como uma relação de agonismo (Foucault, 1995: 244-245), em que

ambos não são tomados como elementos puros, incontornáveis ou de dominação total

145 Cf. Nu-Sol. “Justiça Restaurativa” in Verbetes Nu-sol. Disponível em: http://www.nu-sol.org/verbetes/index.php?id=21. Acesso em: 05/09/2016. 146 Conforme exposto ao final do movimento 2.1. desta dissertação.

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um sobre o outro. Assim, também, o termo “estratégia” é tomado não necessariamente

como forma de dominação, mas como racionalidade que se expande pelo e para além do

próprio PNUD, do Estado e seus agentes e instituições, e engloba, captura ou pretende

pacificar seus alvos e lutas pela própria participação destes. Na analítica do agonismo

do poder e da “política como guerra prolongada por outros meios”, a tentativa de

pacificação não significa a suspensão da guerra, mas a reinserção perpétua da guerra nas

relações de força em uma incitação recíproca de luta e em provocação permanente

(Idem: 245).

No caso específico do Brasil, interessa esmiuçar o que se define como a

“construção de um sistema de justiça mais acessível e apto a intervir de forma mais

efetiva na prevenção e solução de conflitos” (PNUD, 2005: 12). Faz-se pertinente

perceber a introdução da Justiça Restaurativa no Brasil como resposta e tentativa de

rever e, consequentemente, retroalimentar, a própria existência e o exercício dos

inúmeros índices que, no caso da América Latina, apontam para o que é construído

histórica e politicamente como alta violência e criminalidade, compondo um ambiente

de insegurança.

Em artigo que integra a coletânea, as autoras Silvana Sandra Paz e Silvina

Marcela Paz (2005: 125), na esteira deste discurso, apontam para os “alarmantes índices

de delinquência, que dão conta do decréscimo da qualidade de vida e a baixa taxa de

resolução judicial, o que instala um sentimento de impunidade (...)”. Porém,

argumentam que o restabelecimento e a revalidação de uma “consciência de que há

ordem” não está necessariamente na pena imposta pelo sistema de justiça estatal, mas

em novos caminhos vinculados a “movimentos participativos”. Segundo as autoras,

movimentos populares na América Latina, como o Movimento dos Sem Terra (MST)

no Brasil, grupos de foreiros, associações de vizinhos, movimentos de vítimas, de

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211

minorias, do que chamam de grupos vulneráveis e movimentos religiosos, teriam sido a

base do surgimento de movimentos restaurativos com base comunitária e popular, como

uma estratégia que inclui níveis de participação de baixo para cima (Idem: 125 – grifos

meus). Enquadrada nesta busca por participação, a Justiça Restaurativa seria um

processo em que as “partes” resolvem seus conflitos priorizando sua restauração e

manutenção voltada para o futuro, em termos de efetividade de pacificação das relações

conflituosas.

A Justiça Restaurativa é considerada um sistema flexível da justiça criminal,

com condutas adequadas à variedade das transgressões e suas localidades, e

complementar ao sistema de justiça formal, também chamado de modelo retributivo.

Baseia-se, conceitualmente, num procedimento que enfatiza o consenso entre as partes

(classificadas como vítima ou infrator) mediado por membros da comunidade afetada,

especialistas, facilitadores e/ou conciliadores. Deve ser, necessariamente, um processo

voluntário e ocorrer em um “ambiente comunitário” (Ibidem: 128).

Renato Pinto – procurador de Justiça aposentado, presidente do Instituto de

Direito Comparado e Internacional de Brasília e um dos organizadores da coletânea –,

considera ser a Justiça Restaurativa fonte de renovação de esperanças diante da

ineficácia do sistema de justiça criminal e das ameaças dos modelos de desconstrução

dos direitos humanos, dando como exemplo as políticas de tolerância zero. Desse modo,

ela promove a democracia participativa na área de justiça criminal ao propor uma busca

compartilhada de restauração, ou cura, entre vítima, infrator e comunidade (Pinto,

2005: 21) de forma intrínseca aos direitos humanos, uma vez que ambos buscam “o

respeito à dignidade humana”, conforme complementa Renato De Vitto (2005: 47-48),

também organizador da publicação do PNUD. Ainda segundo este último, a correta

aplicação do modelo restaurativo – em contraposição ao modelo dissuasório e ao

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212

modelo ressocializador – deve provocar uma mudança de concepção em relação ao

papel do Estado frente ao considerado crime por meio da efetiva inclusão da chamada

vítima e fortalecimento do papel da comunidade neste processo (Idem: 48). Nesse

lógica, faz-se fundamental a correta preparação de intervenções e capacitação de

técnicos e a integração do modelo com programas securitários e sociais, bem como o

monitoramento e avaliação contínuos destas práticas (Ibidem: 49). Em resumo, para a

efetivação do modelo restaurativo cabe ampliar o campo de atuação e o número de

técnicos envolvidos direta ou indiretamente com o sistema de justiça criminal.

De acordo com Jan Froestad e Clifford Shearing, a Justiça Restaurativa compôs-

se na década de 1990 como movimento social que reivindicava reformas da justiça

criminal. Segundo os autores, da necessidade de humaniza-lo nasceu o primeiro

programa de reconciliação vítima-infrator, em 1974, em Kitchener, Ontario, pela

comunidade Mennonite, que enfatizava a “mediação direta” e focava na cura de

ferimentos e assistência às consideradas vítimas (Froestad; Shearing, 2005: 81).

No Brasil, o modelo restaurativo é compatível com o sistema de justiça estatal,

desde quando o princípio da “indisponibilidade e da obrigatoriedade da ação penal

pública” flexibilizou-se com a possibilidade de suspensão da transação penal pela Lei

9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, conhecida como Lei da Penas

Alternativas). Com esta Lei, permite-se que o juiz possibilite a aplicação de pena

imediata não privativa de liberdade, e que o processo seja encaminhado a um Núcleo de

Justiça Restaurativa. A Lei abre espaço à Justiça Restaurativa, também, por meio da

suspensão condicional de processos para os considerados crimes cuja pena seja de no

máximo dois anos (Pinto, 2005: 30-31). Além desta Lei, considera-se que o Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA) também recomenda o modelo restaurativo, assim

como o Estatuto do Idoso, o qual prevê que penas para crimes contra idosos não

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213

ultrapassem quatro anos. Desse modo, mesmo que o modelo restaurativo não esteja

previsto na Constituição como devido processo legal, ele pode ser aplicado quando da

participação voluntária dos envolvidos em um considerado conflito ou crime (Idem: 32-

33). Opera, portanto, pela captura da possibilidade de conciliação transformada em

disposição dos envolvidos em um processo alternativo, e complementar ao modelo

formal ao não abrir mão do julgamento e atribuição de culpa, crime e castigo.

No âmbito da ONU, pouco antes da publicação do PNUD sobre Justiça

Restaurativa voltada à América Latina e ao Brasil, a Resolução do Conselho Econômico

e Social das Nações Unidas (ECOSOC) de 13 de agosto de 2002147 recomendou o

modelo de Justiça Restaurativa para todos os países. Conforme ressalta o autor do

artigo, Renato Pinto, o processo restaurativo é validado apenas quando o acusado

assumir autoria e houver consenso entre as partes (Ibidem: 24).

Assim, a Justiça Restaurativa se faz complementar, fortalecedora e, para o

PNUD, é inclusive uma evolução do sistema jurídico penal formal. Ela não apenas não

rompe com os papeis “vítima-ofensor” como a faz constitutiva de seu processo de

restauração por meio da identificação e julgamento sob estas representações. Além

disso, na perspectiva do PNUD, mecanismos de ressocialização, prevenção,

humanização e empoderamento são expostos como instrumentos não punitivos, apesar

de tornarem o processo penal mais eficiente.

O mais importante a se destacar, nesse sentido, diz respeito ao fato da Justiça

Restaurativa não impedir a entrada e a inclusão de um considerado criminoso no

sistema penal, uma vez que é estabelecida, primordialmente, quando aquele confessa

seu ato identificado como infracional ou crime e se assume como culpado. A

“evolução” da Justiça Restaurativa em relação ao sistema jurídico penal formal deve-se

147 Disponível em: http://www.justica21.org.br/j21.php?id=366&. Acesso em: 06/09/2016.

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214

à tendência de que os cidadãos se incluam no processo de resolução de conflitos de

modo a auxiliar o Estado – relação que aparece de forma mais clara no artigo de Philip

Oxhorn e Catherine Slakmon (2005) sobre a construção da sociedade civil através da

Justiça Restaurativa no Brasil.

Segundo estes últimos – respectivamente, diretor do Instituto de Estudos de

Desenvolvimento Internacional da Universidade de Harvard e Cientista Política da

Universidade de Montreal –, o controle efetivo do crime, por meio de sua prevenção,

requer a cooperação entre a polícia e o sistema judiciário, por um lado, e entre a polícia

e as comunidades, por outro, permeados pelo Estado, instituições e sociedade civil

fortes que impeçam a falta de confiança neles mesmos e a consequente proliferação de

insegurança por meio de políticas repressivas que desrespeitem os direitos civis (Idem:

187).

A Justiça Restaurativa aparece como tentativa de fortalecimento do Estado e de

sua sociedade civil pelo que chamam de aumento de sinergia entre estes, como solução

para a violência e exclusão social ao capacitar e fomentar a participação de cidadãos na

resolução dos considerados conflitos e crimes, visando a construção social de

cidadania. Nesta argumentação, Estado e sociedade civil são apresentados como

dissociados, e a cidadania e reconhecimento dos direitos civis são tidos como reflexos

de lutas sociais, de não subordinação e até como “resistência” ao Estado. Para os

autores, o deslocamento das lutas sociais de “protesto” para a “proposição” e

negociação em decorrência das transições democráticas na América Latina, é tido como

positivo por representar uma evolução rumo à democracia participativa.

Deve-se ressaltar, porém, pela perspectiva analítica do agonismo do poder, que

se os direitos refletem e são muitas vezes efeitos de lutas sociais, isso não significa

resistência ao Estado, mas a pacificação de lutas no e pelo Estado. Não há dissociação e

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215

muito menos resistências entre Estado e sociedade civil, apenas ajustes e acomodação

frente aos mesmos objetivos. Não se governa sobre, mas junto à sociedade civil, como

conjunto de sujeitos de direitos/sujeitos econômicos de forma centrada no

comportamento racional destes.148

No caso da Justiça Restaurativa, essa correlação entre Estado e sociedade civil se

evidencia quando a chamada sinergia entre ambos pressupõe seu fortalecimento

conjunto e alcance dos mesmos objetivos: a pacificação como prevenção de conflitos

futuros e a disseminação de uma racionalidade neoliberal como conduta entre os

indivíduos que conjugue a realização de escolhas racionais do indivíduo enquanto

capital humano capacitado e apto a empreender-se.

Como exemplo histórico de forte sinergia entre Estado e sociedade civil, o artigo

de Oxhorn e Slakmon apresenta o Estado de Bem-Estar social na Europa do pós-

Segunda Guerra Mundial. Na lógica dos autores, um Estado Democrático de Direito é

oposto a um Estado policial (entendido como repressivo), pela respectiva presença e

ausência de sinergia entre Estado e sociedade civil. Esta sinergia é tida como necessária

para a chamada prevenção do crime, sendo a Justiça Restaurativa considerada o gancho

capaz de desempenhar a construção da cidadania “de baixo para cima” (Ibidem: 189),

pela tomada de decisão a nível local e empoderamento na comunidade. Consideram

opostas, ainda, o que chamam de justiça alternativa ilegal (ou “justiça do gueto” nas

favelas e, por exemplo, a lei de Talião) – por serem entendidas como arbitrárias e

148 Com a nova razão governamental emergente na segunda metade do século XVIII, o Estado não governará mais uma coleção de súditos, mas terá na sociedade civil seu campo correlativo, seu produto e resultado que permitirá que governe sujeitos como sujeitos de direitos-sujeitos econômicos, a fim de não infringir nem a mecânica da economia e nem os princípios do direito (Foucault, 2008: 470; Foucault 2004: 403). Desloca-se a regulação do governo pela verdade soberana para uma racionalidade relativa aos cálculos de força, a partir dos séculos XVI-XVII. A regulação do próprio governo não estará mais centrada na racionalidade do soberano, mas no comportamento racional dos que são governados como sujeitos econômicos e sujeitos de interesse (Foucault, 2004: 422-424).

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216

“paralelas” ao sistema de justiça estatal – e justiça alternativa legal, como no caso da

Justiça Restaurativa.

Pretende-se, aqui, apartar-se da dicotomia entre poder e liberdade como

elementos puros e representados pelo que seria um Estado Democrático de Direito

oposto a um Estado policial. O que também implica não partilhar da divisão entre

justiça legal e ilegal a partir da perspectiva do Estado, pois trata-se de analisar um

conjunto integrado de ações que compõem o sistema de justiça como uma economia da

pena, ou, nas palavras de Foucault, um regime de gestão dos ilegalismos. Deve-se

ressaltar a complementariedade e indissociação entre ambos, uma vez que, na lógica da

restauração, não se abre mão da polícia – entendida aqui não apenas como instituição,

mas, também, como conduta policial e cidadã, como será apresentado mais adiante, que

extrapola o âmbito do Estado e da chamada sociedade civil, explicitando-se nas relações

sociais – destacando-se aqui sua funcionalidade num ambiente comunitário.

Lançando mão da analítica genealógica, Salete Oliveira mostrou em Política e

Peste (Crueldade, Plano Beveridge e Abolicionismo Penal) (2001) que, muito diferente

do encontrado na argumentação de autores como Loïc Wacquant de que a retração do

Estado de Bem-Estar Social teria cedido lugar a um Estado Penalizador com a política

de tolerância zero nos EUA como consequência da ascensão do neoliberalismo, a

incrementação da política de segurança nos anos 1980 teve como base-matriz,

precisamente, a emergência do Estado de Bem-Estar Social moderno (Idem: 192). Uma

das maneiras em que a pesquisadora evidencia esta relação é pela proveniência do

conceito de “qualidade de vida”, descartando sua demarcação de origem ao final do

século XX presente na política de tolerância zero como forma de limpeza seletiva das

ruas, mas localizando suas procedências no combate ao mal no Plano Beveridge, na

Inglaterra do início dos anos 1940.

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217

O Plano Beveridge, como um dos importantes fomentadores na consolidação do

Estado-providência moderno (Ibidem: 117) tinha como grandes objetivos o “combate ao

mal” como sinônimo de combate à miséria, e a cooperação entre Estado e indivíduo,

encorajando a ação voluntária para a garantia do seguro social (Ibidem: 120). Oliveira

mostrou as articulações que perseguiram o “combate ao mal” sob o parâmetro da

promoção da seguridade, situando o Plano Beveridge no limiar da sociedade disciplinar

e da sociedade de controle:

Este controle disciplinar democrático, intrínseco ao dispositivo panóptico, entendendo-se que o dispositivo ultrapassa o território da prisão intramuros, assume no Plano Beveridge um tom de disposição democrática universal, redimensionando o tribunal do mundo em torno de uma das procedências da sociedade de controle. Trata-se do limiar tênue que vai se despedindo da sociedade disciplinar e levanta os vestígios do que viria a ser o longo aceno de um novo espaço, o controle como promoção da seguridade sob a égide democrática e o prenúncio da edificação do controle da segurança (Ibidem: 130-131).

Partindo da afirmação de Foucault de que “a política é a guerra prolongada por

outros meios”, a pesquisadora expõe como a guerra é explicitada, no Plano Beveridge,

como momento propício para se forjar planos para os momentos de paz, e evidencia a

totalização da guerra presente no Plano como diretamente correspondente à idealização

da paz universal, “edificada no substrato da primazia democrática como único elemento

capaz de estancar o extermínio que ela própria fomenta” (Ibidem: 142).

Em relação à Justiça Restaurativa, muitos autores149 argumentam que esta teria

nascido com a expansão do neoliberalismo e a desagregação do modelo estatal de Bem-

Estar Social, em prol da reestruturação de princípios de participação e co-administração

em setores sociais quando da liberação do Estado de parte da promoção da segurança.

Afirmando o abolicionismo penal libertário, o trabalho de Salete Oliveira também

149 Ver, em especial, Jaccoud, 2005: 166.

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218

aponta para como o investimento na segurança imbricada na busca por “qualidade de

vida” de forma alinhada à promoção dos direitos humanos, e para como políticas

consideradas de desconstrução destes, como a de tolerância zero, não apenas não são

opostas como podem complementar-se. No caso da Justiça Restaurativa e práticas que

enfatizam a chamada “resolução de conflitos” em instância comunitária como

alternativa ao sistema penal, essa relação evidencia-se pelo destaque e ênfase da

promoção de “qualidade de vida” quando da restauração e até mesmo cura dos

envolvidos em um conflito, com enfoque nos grupos considerados vulneráveis, em

nome da “dignidade humana” como prerrogativa do ordenamento democrático liberal

universal.

uma diferença incontornável

A Justiça Restaurativa é também comumente chamada de micro-justiça

(Oxhornd; Slakmon, 2005) por descentralizar a administração das demandas da justiça e

prover a participação dos cidadãos na tomada de decisão em nível local, porém sem

desfazer-se da centralização política. Almeja-se fortalecer o funcionamento e a

confiança no sistema judiciário estatal e revestir e diluir, ao mesmo tempo ampliando e

disseminando, a figura de juízes, fiscais, burocratas, advogados e policiais ao

empoderar, por meio da participação, os indivíduos como agentes. Nesse sentido,

mostra-se, mais uma vez, que, como complemento ao sistema de justiça formal, a

Justiça Restaurativa é eficiente ampliadora de práticas penalizadoras por se pretender o

mais local, precisa e coercitiva no interior de uma comunidade, bem como ao pretender

capacitar a todos para participar ativamente na resolução dos mais ínfimos problemas,

que poderiam ser resolvidos sem nenhum tipo de mediação. Conforme expresso no

artigo de Oxhorn e Slakmon,

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219

A micro-justiça se refere às transferências de recursos de poder pela administração da justiça no nível local. Ao transferir a administração de certas demandas da justiça ao nível local, a micro-justiça deixa mais recursos de poder disponíveis para as pessoas no final da escala social na forma de informações e capacidade de agir. Os cidadãos podem se tornar participantes ativos na resolução de conflitos e de crimes, que frequentemente tem origem na pobreza e precariedade locais, que afetam suas vidas cotidianas em vez de vítimas passivas de injustiças sobre as quais elas têm pouco ou nenhum poder para mudar (2005: 201).

Ao romper com os castigos e as penalizações, não restritas às prisões, Louk

Hulsman150, abolicionista penal que foi professor emérito da Universidade de Rotterdam

e integrante de diversos foros internacionais, chama atenção para o que na criminologia

é chamado de “cifra negra” – a diferença entre os crimes comunicados pelas estatísticas

policiais e a estatística dos tribunais. Segundo Hulsman, a cifra negra demonstra,

diferente do que pretende a criminologia ou o direito penal, que a maioria esmagadora

dos fatos passíveis de criminalização são tratados fora da justiça criminal (Hulsman,

2004: 49). Fato que também demonstra o equívoco da oposição entre justiça alternativa

legal e justiça alternativa ilegal, uma vez que possibilidades de se lidar com fatos

considerados crimes são geralmente simplesmente aplicadas por quem se sente

diretamente envolvido e, portanto, a legislação da regra é rara (Idem: 50).

O abolicionismo penal remonta ao pós-Segunda Guerra Mundial, e emerge do

interior de movimentos que abalaram as certezas universalistas, em 1968, não como

alternativa ao sistema penal, mas como potencialidade que requer práticas de liberdade

(Passetti, 2004: 17). Radicalmente oposto aos preceitos da Justiça Restaurativa, o

abolicionismo penal jamais se situa na busca de sanções alternativas.

150 Sobre o abolicionismo penal de Louk Hulsman e capturas e tentativas de imobilização do abolicionismo pela incorporação de suas sugestões em programas alternativos de justiça, ver: Salles, 2011.

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Hulsman afirmava como o sistema penal é uma máquina burocrática dispersa

que produz decisões reducionistas, expropriando as pessoas de seus próprios problemas.

Na medida em que retira um evento considerado criminoso de seu contexto, priva-o de

sua densidade e atua sobre “falsos problemas”, precisamente ao pressupor que a justiça

deve ser “igual para todos” (Hulsman; de Celis, 2005: 251-252). A própria palavra

crime é considerada pela justiça criminal um evento excepcional que difere de outros

não assim definidos, evidenciando como os considerados “criminosos” são apenas uma

pequena e seletiva parte dos envolvidos em eventos criminalizáveis – a grande maioria

jovens pobres (Hulsman, 2003: 195).

A noção de situação-problema desenvolvida pelo abolicionista, nesse sentido,

implica no rompimento com o conceito legal e universalista de “crime” e permite adotar

uma postura abolicionista que deixa aos interessados a possibilidade de interpretar, em

suas múltiplas dimensões, uma situação que não necessariamente necessita de

intervenções (Hulsman, 2005: 265-266). Ao estabelecer que um abolicionista não

intervém como aval ao que já foi decidido, mas tenta evitar a captura de situações pelo

sistema penal, Hulsman sugere alguns modelos de reposta, além do punitivo, a uma

situação em que uma pessoa considera insuportável e provocada por outra pessoa: o

modelo compensatório, o terapêutico, o educativo e o conciliatório (Idem: 251).

O abolicionista não se situa como propositor de programas que substituam a

justiça criminal. Aparta-se, dessa forma, da organização cultural desta última (Idem:

142). Nesse sentido, o modelo conciliatório do abolicionismo penal proposto por

Hulsman não pode ser aproximado da Justiça Restaurativa ou das penas alternativas,

pois longe de reduzirem os aprisionamentos e reincidências, essas alternativas e

reformas contribuem continuamente para a produção de condutas policiais e para a

ampliação de penalizações que se aproximam de programas como o tolerância zero, na

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221

busca utópica de capturar toda e qualquer infração por meio da prevenção de conflitos

futuros. Ao propor que se lide como situações-problema no âmbito do direito civil, o

abolicionista aparta-se do conceito de prevenção assim como das práticas que o nutrem

e propõe a abolição do direito penal e do sistema penal. Já a Justiça Restaurativa, ao

estabelecer-se, também, como forma de micro-justiça, provoca o extremo aposto do

abolicionismo penal, ampliando e disseminando a entrada do sistema penal por meio de

suas complementares políticas-micro e alternativas.

Esta relação complementar se evidencia também pela Justiça Restaurativa ser

entendida como “política pública” importante para a América Latina. Devido à sua

abordagem de reintegração das relações sociais (Carvalho, 2015: 211), argumenta-se

que ela aumenta a interação dos indivíduos, enquanto cidadãos, com o Estado,

principalmente por parte dos grupos considerados mais vulneráveis da população –

jovens e pobres.

A partir de tal complementariedade e fortalecimento de políticas estatais pela

implementação de políticas alternativas centradas na participação como base da

chamada democracia sustentável e inclusiva, evidencia-se uma relação que se exerce de

forma mais ampla do que a simples introjeção de regras, e que corresponde a tentativas

de juridicialização da vida (Augusto, 2012). Participar, assim como empoderar-se,

confere a produção e disseminação de relações de poder como formas de inclusão

democrática que mantém e ampliam penalizações ao não prescindirem do julgamento e

a correlata aplicação de castigos.

Conforme situou Acácio Augusto, se à juridicialização da análise institucional

derivada da teoria política liberal confere o grau de governabilidade do Estado em

relação à sociedade civil, tomar o liberalismo como racionalidade emergente no século

XVIII conformada com uma governamentalização do Estado não nos leva a concluir

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222

que há uma estatização do social, conforme já havia apontado Foucault. Assim,

desmembrar as especificidades da racionalidade liberal e suas transformações com o

neoliberalismo no pós-Segunda Guerra, permite analisarmos a democracia não apenas

como conjunto de regras institucionais, mas como forma de pensar e organizar a vida

em relação à política, do que decorre uma juridicialização da vida e não uma

judicialização da política, esta, um efeito secundário daquela (Ibidem: 33).

No caso da Justiça Restaurativa ficam claras as convergências entre as mais

antigas práticas da lei, do direito, da justiça e do julgamento e as práticas democráticas

contemporâneas alinhadas à racionalidade neoliberal que visam capacitar, empoderar,

incluir e fazer os indivíduos participarem dentro de suas comunidades. No caso dos

jovens pobres (grupo considerado vulnerável pelo PNUD), os Conselhos Tutelares

entregam às comunidades as funções dos juízes do antigo Código de Menores (1979),

ampliando a aplicação de medidas socioeducativas por meio de novos tribunais

funcionando por meio da administração voluntária dos próprios moradores locais.151 A

Justiça Restaurativa ainda reforça a antiga assimetria formal vítima-infrator ao replicá-la

e fundi-la sob o argumento da vulneralidade, quando o vulnerável é tido como aquele

que causa perigos para si mesmo (enquadrado como vítima), bem como para os outros

(enquadrado como infrator). Nesta lógica, é por lhe faltarem capacidades de realizar

151 Segundo Estela Scheinvar, os Conselhos Tutelares, criados na esteira da argumentação da Constituição Federal de 1988 em prol da participação democrática, encontraram forte aliança com as escolas e seus vieses punitivos, principalmente ao se partir do pressuposto de que as famílias não assumem um papel correto em educar seus filhos. Para Scheinvar, os Conselhos Tutelares se constituem como lugar de execução penal e proliferam-se como “pequenos tribunais institucionalizados ao longo do país, financiados com dinheiro público, ocupados pela sociedade civil, instalados em nome da eliminação da prática jurídica de julgamento-punição, em favor das práticas de assistência social e da garantia de direitos” (Scheinvar, 2012: 45-51). Sobre as continuidades e descontinuidades das reformas e desmembramentos da Secretaria do Menor no estado de São Paulo sob efeitos da transição do Código de Menor de 1979 para o ECA, em 1990, e a clientela-alvo das políticas sociais, ver: Lazzari, 1998.

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223

escolhas de forma racional que ele se torna vulnerável, ao mesmo tempo em que

produtor das mais variadas possíveis vulnerabilidades a serem identificadas.

Os dois documentos publicados pelo PNUD – o RDH regional para a América

Latina de 2004 e a coletânea de artigos Justiça Restaurativa de 2005 – evidenciam o

delineamento e formatação dos conceitos ali presentes como tentativas-táticas do

Programa, ao almejarem constituir-se de forma apta a implementar e orientar práticas de

governo ajustáveis as especificidades de um local.

Sustentado pelo discurso de “crise social” ocasionada pela transição

democrática, por Estados fracos ou falidos, desigualdades, altos índices de violência e

pela falta de oportunidades, o RDH de 2004 para a América Latina enfatiza a busca pela

participação de todos os chamados “atores sociais” para a consolidação da cidadania,

como base de uma democracia sustentável. Para a construção do que define como

cidadania integral, destaca o necessário fortalecimento de capacidades individuais por

meio da participação voluntária articulada ao Estado.

No âmbito do sistema de justiça, as práticas de Justiça Restaurativa apresentam-

se como modelo e processo para a consolidação desta cidadania integral ao “melhorar a

distribuição” da justiça por meio do fortalecimento do vínculo entre indivíduos e

Estado. A partir de John Rawls, a ideia de justiça de Amartya Sem (2009), no sentido

transcendental de cooperação social, encontra na Justiça Restaurativa uma política

produtora de coesão social e práticas de controle descendentes e ascendentes. Centrada

na comunidade como valor eficiente para a positividade de suas práticas, a Justiça

Restaurativa encontra, na capacitação e participação dos indivíduos como cidadãos

integrais “autogovernados”, eficientes propulsoras de penalizações.

Como desdobramento e melhor acabamento deste esforço compartilhado na

produção de práticas de controles e auto-governo que o PNUD denomina,

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224

positivamente, de “coesão social”, em consonância com a estratégia planetária de

pacificação e segurança globais, tem-se o conceito de segurança cidadã, específico à

região latino-americana, e uma modalidade da abordagem da segurança humana.

segurança como estratégia e táticas de penalizações

O Relatório de Desenvolvimento Humano regional para a América Latina

referente ao período de 2013-2014 e subsequente ao de 2004 supracitado, intitula-se

“Segurança Cidadã com Rosto Humano”. Este situa como um dos principais problemas

da região a insegurança como obstáculo ao desenvolvimento econômico e social

inclusivo.

Assim como os discursos do início dos anos 1990 do PNUD focados na

conceitualização da abordagem da segurança humana, a segurança cidadã também é

apresentada como reflexo das transformações da definição tradicional de segurança: a

ideia de segurança restrita à segurança nacional do Estado; as ameaças delimitadas à

questões militares; e as ameaças entendidas de forma independente das questões

políticas que as rodeiam teriam se redimensionado. O caráter transnacional de novas

ameaças evidenciam, na argumentação do PNUD, como problemas globais – o tráfico

de armas, narcotráfico, álcool, etc. – extrapolam as condições locais no interior das

fronteiras nacionais para constituírem-se como virtual ameaça em todo o planeta.

A segurança cidadã, como modalidade da segurança humana, centra-se na

segurança pessoal em relação às ameaças advindas dos considerados crimes e violência

(PNUD, 2013: 5). Porém, segundo este Relatório de 2014, a segurança cidadã não deve

limitar seus objetivos à simples redução dos índices de violência e criminalidade, mas

deve orientar-se como

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225

[Uma] estratégia integral, que inclua a melhora da qualidade de vida da população, a ação comunitária para a prevenção do crime e da violência, uma justiça acessível, ágil e eficaz, uma educação que se baseie em valores de convivência pacífica, em conformidade com a lei, com a tolerância e com a construção de coesão social (Idem: 6 – grifos meus).

O estudo apresentado pelo Relatório concentra-se no elenco de seis principais

ameaças interligadas e características da América Latina: crime nas ruas, criminalidade

exercida contra e pelos jovens, violência de gênero, corrupção, “violência ilegal”

praticada por agentes estatais e “delinquência organizada”. Divide-se, ainda, como

“dimensão objetiva” da segurança cidadã as ameaças relacionadas ao crime e a

violência; e “dimensão subjetiva”, vinculada à percepção de insegurança que se

manifesta em sentimentos de temor e vulnerabilidade que repercute na falta de coesão

social e confiança nas instituições do Estado (Ibidem: 7).

Com relação ao desenvolvimento humano, o aspecto da cidadania como forma

de segurança estaria atrelado a um núcleo básico de direitos que permitem a capacidade

dos indivíduos contribuírem com a melhora de suas comunidades e instituições e,

consequentemente, na construção de ambientes sustentáveis e, portanto, seguros.

O Relatório apresenta que, apesar do crescimento econômico e redução de níveis

de desigualdade notáveis, a criminalidade e a violência aumentaram na América Latina.

A esta “complexa” relação, de acordo com o estudo, responde-se que a maioria das

pessoas pobres que ascenderam economicamente não se integraram diretamente à classe

média, conformando um segmento denominado pelo Banco Mundial como “grupos

vulneráveis” – a classe mais numerosa em toda a América Latina (38% da população) –,

caracterizado pela exposição ao trabalho informal, a estagnação educacional e escassa

cobertura social (Ibidem: 22). Estes aspectos de vulnerabilidade contribuiriam para a

criação de um ambiente favorável para o crime e a violência, no que o Relatório destaca

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226

a importância de políticas públicas que fortaleçam espaços de interação e redes de

segurança social – elementos-chave para a prevenção do crime (Ibidem: 23).

Seguindo a exposição do Relatório, tem-se que, quando uma alta porcentagem

de crimes e violência contra a cidadania não é investigada e punida, cria-se uma

sensação de vulnerabilidade. E mesmo que nem todos os chamados crimes e

delinquentes sejam respectivamente resolvidos e castigados, é preciso de um mínimo

solucionado para que não haja esta desconfiança generalizada. Para resolver o problema

de delitos considerados menos graves, segundo a argumentação do Relatório, bastariam

políticas, projetos e programas como resposta multisetorial coordenada pelo Estado que

integrem serviços básicos de atendimento à população, bem como programas

específicos dirigidos aos chamados “fatores de risco” acumulados em cada localidade

que afetam as pessoas e suas comunidades.

É interessante notar como a cifra negra aparece no discurso do PNUD enquanto

algo nocivo, menos em decorrência da tese de não efetivação da criminalização, e mais

por alimentar o que seria uma “dimensão subjetiva” ligada à sensação de insegurança,

falta de coesão social, vulnerabilidade, etc. Algo que reitera, mais uma vez, a

centralidade na penalização da qual interessa, menos o aspecto repressivo da punição –

não necessariamente pela via institucional – e mais a positividade da produção de uma

conduta específica geradora de segurança e proporcionadora de ambientes seguros, em

contraposição aos vulneráveis e às vulnerabilidades.

Este Relatório do PNUD centrado na segurança cidadã para a América Latina

não faz menção direta à Justiça Restaurativa, mas destaca a importância de iniciativas

de reforma destinadas a fortalecer o Estado de Direito a partir da melhoria do sistema de

justiça, principalmente nos anos 1990, no contexto de transição democrática. Chama

atenção para, mais recentemente, uma crescente pressão para reformar o sistema de

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227

justiça, a fim de aumentar seu acesso aos cidadãos, sobretudo os considerados mais

desfavorecidos. Indica, ainda, que a lógica que impulsiona estes movimentos pela

justiça reside no fato de que o sistema judicial pode contribuir para aliviar condições de

pobreza e desigualdade por meio de medidas que possibilitam o empoderamento dos

segmentos da sociedade tidos como vulneráveis, para que exerçam seus direitos

(Ibidem: 119).

Ao final do Relatório, as “dez recomendações para uma América Latina segura”

(Ibidem: 199), ressaltam, em sua maioria, a relação entre uma cidadania integral

(PNUD, 2004), Justiça Restaurativa (PNUD, 2005) e segurança cidadã (PNUD, 2013):

1. Alinhar os esforços nacionais para reduzir o delito e a violência com base nas lições aprendidas. 2. Gerar políticas públicas orientadas a proteger as pessoas mais afetadas pela violência e criminalidade. 3. Prevenir o crime e a violência, impulsionando um crescimento inclusivo, igualitário e com qualidade. 4. Diminuir a impunidade mediante o fortalecimento das instituições de segurança e justiça, com respeito aos direitos humanos. 5. Aumentar a participação ativa da sociedade, especialmente das comunidades locais, na construção da segurança cidadã. 6. Aumentar as oportunidades reais de desenvolvimento humano para os jovens. 7. Atender e prevenir de modo integral a violência de gênero no espaço doméstico-privado e no âmbito público. 8. Proteger ativamente os direitos das vítimas. (...). 9. Fortalecer os mecanismos de coordenação e avaliação da cooperação internacional. 10. Fortalecer os mecanismos de coordenação e avaliação da cooperação internacional (Ibidem: 199).

A segurança cidadã – como diretriz da ONU focada na América Latina – e a

Justiça Restaurativa – como política em prol da construção de uma cidadania integral –

são tentativas-táticas da estratégia geral de segurança em âmbito planetário. Estas táticas

operam em projetos e programas específicos do PNUD, no menor ao maior local

demarcado e, em nome do desenvolvimento, reforçam a seletividade intrínseca,

também, às penalizações à céu aberto (Passetti, 2006; Augusto, 2012; 2013).

Page 228: 1. DISSERTAÃ⁄Ã…O FINAL

228

Em Política e polícia: cuidados, controles e penalizações de jovens, Acácio

Augusto (2013) expôs como a prisão segue existindo de forma complementar às

políticas penais alternativas. Estas expandem controles a céu aberto em meio à

sociedade de controle atual pela ampliação e disseminação de formas de

encercaramentos elastificados, para a qual contribuem e participam empresas, ONGs,

governos, além de seus próprios alvos de contenção e controle: os jovens que

constituem algum tipo de ameaça à ordem.

Segundo Augusto, principalmente com a chamada abertura democrática no

Brasil, iniciaram-se tentativas de não mais expelir os jovens conformados como

delinquentes e trancá-los em prisões, mas de incorporá-los por meio de convocações

democráticas. Com a Constituição de 1988, o “menor em situação de rua” como

problema de segurança nacional condizente à intervenção autoritária do Estado passou a

ser tido como problema a ser tratado pela formação democrática e cidadã de jovens.

Conforme evidencia o autor, a expressão jurídico-política de tal deslocamento está na

promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, quando o menor

passa a ser criança e adolescente, pressupondo uma condição de desenvolvimento

contínuo e de responsabilidade integral da família, da sociedade e do Estado (Idem: 71).

Interessado em analisar as novas tecnologias de controle a céu aberto pela

perspectiva das resistências, o autor realizou uma pesquisa etnográfica do projeto Pró-

Menino: Jovens em Conflito com a Lei, da Fundação Telefônica – empresa instalada no

Brasil desde 1999 – e desdobrado do programa Proniño, com sede na Espanha, que

objetiva oferecer assistência aos jovens enquadrados como em “situação de risco” ou

“vulnerabilidade social” e administra a aplicação de medidas socioeducativas em meio

aberto, em conformidade com o ECA. Desse modo, mostra como tais projetos, enquanto

políticas de inclusão social, não destinam-se somente aos jovens considerados

Page 229: 1. DISSERTAÃ⁄Ã…O FINAL

229

infratores, mas inserem-se “em uma nova política de controles e contenções de jovens,

uma política de atuação na localidade onde mora esse jovem, tenha ele cometido um ato

infracional ou não, pois, se ele vive em uma situação de risco, esse risco significa que

ele é um potencial infrator” (Ibidem: 82). Diferente da introjeção de regras em

instituições austeras na sociedade disciplinar, hoje se faz muito mais eficiente produzir

condutas que tornem cada um o agente participativo de seu próprio assujeitamento

(Ibidem: 84), buscando a melhoria de si e do ambiente em que vive, principalmente

periferias constituídas como campos de concentração a céu aberto (Ibidem: 87). Este

difere do campo de concentração dos Estados totalitários como zona de exclusão social

e territorial, mas diz respeito a uma tecnologia de controle que não opera mais por

confinamento, mas sim pela administração de um ambiente pelos próprios habitantes:

É um dispositivo de uma prática inclusiva de governo (...) que elastiza os muros da prisão e se faz, também, nas relações estabelecidas entre as pessoas que convivem sob um mesmo regime de governo, respeitando-o e produzindo práticas de assujeitamento que as imobilizam, não por uma imposição externa, mas por um desejo voluntário e devotado em se manter na condição de assujeitados (Ibidem: 166).

Nesse sentido, as penas alternativas estão conformadas às novas penalizações à

céu aberto próprias da sociedade de controle, que ultrapassam a ênfase na internação da

sociedade disciplinar (Passetti, 2006: 86). A democracia como utopia da sociedade de

controle opera menos pela redução de resistências e mais pela busca por sua captura

quando convoca a participar (Idem: 101). Segundo Passetti, se na sociedade disciplinar

o poder se exercia em rede, na atual sociedade de controle o poder se exerce em fluxo,

do que decorre que todo poder implica integrar resistências e que, diferente dos grandes

fascismos da sociedade disciplinar, hoje preponderam os micro-fascismos – vide a

própria política de tolerância zero que opera em busca de “micro-infrações” – “não mais

Page 230: 1. DISSERTAÃ⁄Ã…O FINAL

230

o grande direito de causar a morte ou a vida, mas o direito de participar da vida pelo

pluralismo civil, político, cultural e social” (Idem: 93).

A Justiça Restaurativa e suas penalizações alternativas encontram no ECA

grande possibilidade de efetivação de medidas socioeducativas, que devem ser,

preferencialmente, aplicadas por psicólogos ou assistentes sociais. Além disso, é de

grande importância que sejam pessoas ligadas à mesma comunidade da “vítima” e do

“infrator”. No caso da presente pesquisa, como será exposto adiante, a Justiça

Restaurativa e seus mediadores ou facilitadores podem ser desde policiais a moradores

da própria comunidade em que se identificam focos de vulnerabilidades, operando

sobre um ambiente inteiro, com o aparato seletivo de índices como o IDH e suas

inúmeras variáveis acopláveis – vide o IDH Municipal e Unidades de Desenvolvimento

Humano (UDH). Este último recorte não diz respeito exatamente a bairros, mas são

delineados buscando gerar áreas mais homogêneas do que a ponderação do IBGE

(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), do ponto de vista das condições

socioeconômicas. O UDH visa captar a morfologia e história específica de cada espaço

urbano, o que requer a construção de propostas “customizadas” (ou seja, moduláveis

segundo interesses específicos) para cada espaço, ultrapassando as variáveis mais

restritas, como a variável renda.152

No movimento a seguir, será apresentado um Programa Conjunto da ONU,

coordenado pelo PNUD, como exemplo de investimento de construção e manutenção da

paz, entendida como sinônimo de segurança. Atravessado pela Justiça Restaurativa

como instrumento tático na tentativa de gestão e pacificação de conflitos, evidencia-se,

152 Cf. PNUD, IPEA e Fundação João Pinheiro. “Metodologia” in Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. Disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/o_atlas/metodologia/construcao-das-unidades-de-desenvolvimento-humano/. Acesso em: 02/10/2016.

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231

por meio deste Programa, a penalização preventiva e seletiva sobre um ambiente de

forma a responder às diretrizes globais, estipuladas principalmente pela ONU, e

constitutivas de uma governamentalidade planetária. Assim, tais ambientes não dizem

respeito a um território com fronteiras delimitadas, mas funcionam como laboratórios e

modelos passíveis de replicabilidade. Mais do que políticas que operam pela

repressividade e negatividade do poder, aposta-se na disseminação de relações de

governo principalmente entre aqueles – agentes de segurança ou não – que estão

dispostos à justificar a própria existência das penalizações, em constante

aperfeiçoamento.

3. 2. um programa conjunto e a construção de uma seletividade

breves apontamentos sobre o PNUD e o Brasil

O PNUD passou a trabalhar em colaboração com o governo brasileiro a partir do

Acordo Básico de Assistência Técnica firmado em 1964 e promulgado, em setembro de

1966, pelo Decreto nº 59.308153, entre o país e a ONU, suas Agências Especializadas e a

Agência Internacional de Energia Atômica. Em 1987, foi criada a Agência Brasileira de

Cooperação (ABC), por meio do Decreto nº 94.973154, como integrante da Fundação

Alexandre Gusmão (FUNAG) e vinculada ao Ministério das Relações Exteriores

(MRE). O PNUD foi importante parceiro para a construção da ABC ao apoiá-la na

adoção de técnicas apropriadas à gestão da cooperação técnica brasileira. Segundo a

153 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D59308.htm. Acesso em: 08/03/2016. 154 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/1985-1987/d94973.htm. Acesso em: 10/03/2016.

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232

própria Agência, sua criação remete a um contexto de grandes mudanças nos fluxos de

cooperação internacional para o desenvolvimento.155

Conforme exposto no item “ecopolítica e os redimensionamentos do

desenvolvimento” (movimento 1.3.) desta dissertação, uma nova fase das relações entre

os países considerados em desenvolvimento ganhou espaço num contexto de pós-

descolonização, principalmente ao final dos anos 1980 e início dos anos 1990. A

chamada “Execução Nacional” – efetuada pelos próprios organismos internacionais

responsáveis pela gestão administrativo-financeira e pela condução técnica dos projetos

nos países – cedeu espaço, em decorrência da criação da ABC, ao novo modelo de

gestão de cooperação multilateral, que preconizava o controle dos próprios países

beneficiados sobre os programas de cooperação técnica implementados por organismos

internacionais.156

Dentre os recursos não regulares do PNUD, encontra-se as seguintes fontes de

financiamento: o financiamento pelos governos – quando os próprios países financiam

ou realizam empréstimos de instituições financeiras internacionais para a atuação do

PNUD; o financiamento por terceiros – incluindo recursos fornecidos por doadores ou

instituições financeiras internacionais; e os fundos globais, como o Fundo para o

Alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio do Governo Espanhol, no caso

do Programa implementado pelo PNUD no Brasil a ser apresentado a seguir.

No Brasil, o PNUD atua via financiamento pelo governo combinado à execução

nacional [cost-sharing/national execution modality]. Segundo os economistas João

Guilherme Rocha Machado e João Batista Pamplona, a utilização desta forma de

155 ABC. Histórico. Disponível em: http://www.abc.gov.br/SobreABC/Historico. Acesso em: 10/03/2016. Neste endereço, é possível também apreender resumidamente a trajetória da assistência e cooperação técnica de organismos internacionais no Brasil. 156 Idem.

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233

atuação deve-se, entre outros fatores, ao contexto de redemocratização. Naquele

momento, o PNUD realizou parcerias com o Banco Mundial e com o Banco

Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) para acelerar seus projetos, bem como com

funcionários de alto nível do governo brasileiro, que viram no PNUD possibilidade

qualificada de prestação e implementação de serviços (Idem: 173). Em um segundo

momento, o PNUD e o governo brasileiro não obtinham mais a necessidade de

financiamento via instituições internacionais. O PNUD Brasil passou a atrair muito

recursos, tornando-se o maior escritório do mundo do Programa e, consequentemente,

em um modelo bastante interessante em termos de replicação e exportação para outros

países e regiões (Idem: 173). Conforme ressaltam os autores, esta modalidade do PNUD

no Brasil não necessariamente faz com que toda a equipe executora seja formada por

consultores nacionais. Além disso, ela pode ser realizada também por ONGs, grupos da

sociedade civil e pelo setor privado.

Segundo apontamentos de Wagner de Melo Romão, a Constituição brasileira de

1988 sugeriu a realização das chamadas políticas públicas por meio de gestão

compartilhada, incluindo a participação da sociedade – o que fica evidente, sobretudo

nas áreas da saúde e assistência social, denotando uma forte proximidade à

descentralização das políticas, como com a instituição no Sistema Único de Saúde

(SUS) (Romão, 2015: 39). Segundo o cientista político, esta necessidade de participação

da sociedade na formulação de políticas prevista pela Constituição implica na ideia de

separação entre Estado e sociedade, reforçada pela literatura sobre o tema decorrente

nos anos 1990, em que se buscava estabelecer uma autonomia da sociedade civil, como

efeito das movimentações autonomistas nas décadas de 1970 e 1980 durante o período

ditatorial, no sentido de modificar a estrutura de um Estado autoritário (Idem: 42).

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234

Atualmente, o PNUD Brasil opera por meio do Quadro de Cooperação do País

(Country Cooperation Framework – CCF), em que são descritas estratégias e

identificados objetivos e oportunidades para a implementação de políticas sociais,

quinquenalmente.

Deve-se ressaltar, frente a tantas estratégias e tantos esforços do PNUD em

estabelecer-se no interior de um discurso de “redemocratização”, que o Programa atuou

intensamente no Brasil ainda durante a ditadura-civil-militar, já acompanhando as

diretrizes internacionais de cooperação técnica. Nesse sentido, não cabe estabelecer

uma oposição entre o que foi o regime ditatorial e a democracia após a chamada

abertura, mas sim notar a continuidade dos investimentos do PNUD em educação e

políticas sociais. Sob a égide do desenvolvimento, está sempre em jogo o

aperfeiçoamento da gestão.

***

No Quadro referente aos anos de 2002-2006, o Brasil é considerado pelo PNUD

um país com alto nível de capacidade e experiência no âmbito do governo e da

sociedade civil. No entanto, o argumento utilizado é que a falta de capacidades locais

estaria sobrecarregando os estados e municípios de responsabilidades, principalmente

no quesito financiamento da execução de programas e serviços.157

Sobre este período, e principalmente em relação ao ano de 2006, vale ressaltar

alguns marcos e deslocamentos importantes no que diz respeito a reformulações de

medidas socioeducativas e penas alternativas – como a supracitada Lei 9.099/95,

157 UN. Second country cooperation framework for Brazil (2002-2006). New York, Executive Board of the United Nations Development Programme and of the United Nations Population Fund, 2001, p. 4.

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235

conhecida como Lei das penas alternativas –, com enfoque na Justiça Restaurativa e

aliadas às diretrizes de participação democrática e o envolvimento com a sociedade civil

e comunidade.

Dezesseis anos após a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e

dos Conselhos Tutelares, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da

República (SEDH) e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

(CONANDA) instituíram, no ano de 2006, o Sistema Nacional de Atendimento

Socioeducativo (SINASE). O relatório que apresenta o funcionamento deste novo

Sistema estabelece que a Constituição Federal “é a que mais se aproxima da definição

clássica de República – res publica: coisa pública, o que é pertencente à comunidade”

(SEDH e CONANDA, 2006: 13).

Na esteira destes novos enfoques, o SINASE estabelece priorizar, de um lado, a

municipalização dos programas de meio aberto, mediante a articulação de políticas

intersetoriais em nível local, e a constituição de redes de apoio nas comunidades; de

outro lado, a regionalização dos programas de privatização de liberdade para garantir o

direito à convivência familiar e comunitária dos adolescentes internos, bem como as

especificidades culturais. Enquanto sistema integrado, o SINASE articula a

corresponsabilidade entre a família, o Estado e a comunidade, na garantia da

“ABSOLUTA PRIORIDADE da nação brasileira: a criança e o adolescente” para que

se criem as “condições possíveis para que o adolescente em conflito com a lei deixe de

ser considerado um problema para ser compreendido como uma prioridade social em

nosso país” (Idem: 14 – grifo meu). Destaca-se uma mudança em relação ao que seriam

medidas repressivas-assistenciais para medidas de cooperação – desde à esfera de

financiamento à articulação de diversos órgãos na aplicação das diretrizes do SINASE.

A criação do SINASE enfatiza, segundo relatório,

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236

[Uma] mudança de paradigma e a consolidação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) [, que] ampliaram o compromisso e a responsabilidade do Estado e da Sociedade Civil por soluções eficientes, eficazes e efetivas para o sistema socioeducativo e asseguram aos adolescentes que infracionaram oportunidade de desenvolvimento e uma autêntica experiência de reconstrução de seu projeto de vida (Ibidem: 17 – grifo meu).158

Este conceito de que, ao cometer um considerado ato infracional se está

realizando uma escolha irresponsável no sentindo de não saber aproveitar as

oportunidades concedidas, baseia-se na concepção de desenvolvimento humano do

PNUD, conforme exposição do próprio SINASE, quando se estabelece a necessidade

das pessoas serem preparadas para fazerem escolhas e tomar decisões corretas e

fundamentais. Para tanto, tem-se o Plano Individual de Atendimento (PIA) como

instrumento importante, articulado ao SINASE, para a avaliação da “evolução pessoal

do adolescente” no cumprimento da medida socioeducativa, realizando diagnósticos por

meio de intervenções técnicas que englobam as áreas jurídica, da saúde, psicológica,

social e pedagógica (Ibidem: 52) e que contribuam para a promoção de capacidades dos

jovens envolvidos (Ibidem: 48).

Além do grande esforço para inserir a sociedade civil no sistema de reeducação

do jovem sob medida socioeducativa, o mais importante para a aplicação desta, segundo

o relatório do SINASE, se dá pela “comunidade socioeducativa”, composta por

158 Sobre algumas pesquisas que precederam à institucionalização do SINASE, ver: ILANUD, 2006. Disponível em: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/politicas-2/alternativas-penais-anexos/penasalternativasilanudcompleto.pdf. Acesso em: 05/12/2016. ILANUD, 2005. Acesso em: 05/12/2016. E CONANDA, 2005. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/dh/cc/3/crianca/conferencias.htm. Acesso em: 05/12/2016.

Para uma perspectiva de análise mordaz em relação ao ILANUD e seu processo de humanização das penas que pulverizam controles a céu aberto, ao constituir-se como pólo disseminador do combate à chamada delinquência juvenil na América Latina regido pelas organizações internacionais, ver: Oliveira, 2010. Sobre as continuidades e descontinuidades das reformas e desmembramentos da Secretaria do Menor no estado de São Paulo sob efeitos da transição do Código de Menor de 1979 para o ECA, em 1990, e a clientela-alvo das políticas sociais, ver: Lazzari, 1998.

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237

especialistas, profissionais e pelos próprios jovens. Preza-se por “dispositivos” que

fazem funcionar a medida socioeducativa dentro e fora das Unidades de internação

socioeducativas. São realizados diagnósticos frequentes da situação do programa em

seus aspectos administrativo, pedagógico, de segurança, de gestão, etc., bem como

assembleias que reúnem os jovens, suas famílias, e especialistas, e também comissões

temáticas ou grupos de trabalho que contribuam com a participação do trabalho em

equipe na aplicação da medida, incluindo o próprio jovem:

As ações socioeducativas devem propiciar concretamente a participação crítica dos adolescentes na elaboração, monitoramento e avaliação das práticas sociais desenvolvidas, possibilitando, assim, o exercício – enquanto sujeitos sociais – da responsabilidade, da liderança e da autoconfiança” (Ibidem: 47).

Nesse sentido, de acordo com análise apresentada em Violentados159, é a partir

do pressuposto de que o Estado não é capaz de cumprir a responsabilidade de preencher

as lacunas deixada pelo mercado – como desemprego, abandono, etc. – que a assistência

social e a articulação de especialistas “interdisciplinares”, sob reconhecimento

humanista, reiteram a ambiguidade que concebe o Estado:

Ele é ao mesmo tempo o agente da opressão, campo de realização específica da classe dominante, que se utiliza das políticas sociais como forma de garantir sua dominação, e o libertador da opressão, mediante a justaposição do saber científico à razão política do Bem-Estar Social com democracia, levando à supressão gradativa das desigualdades pelo planejamento governamental intervencionista (Passetti et. alli, 1999: 55-56).

Do que decorre que, o ECA, “aparentemente intervindo apenas como corretor de

rota, se transforma em navegador que localiza, adentra, estabelece, recompõe, julga,

condena e absolve, quer pela lei jurídica, quer pela norma assistencial” (Idem: 57). 159 Violentados é fruto de uma ampla pesquisa sobre violências praticadas contra crianças e jovens por familiares, instituições e sistema judiciário. Expõe uma análise abolicionista penal, inédita no Brasil até então, e propõe saídas para uma sociabilidade autoritária fundada na cultura do castigo, afirmando a urgência em interromper o circuito do aprisionamento.

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238

Todas essas reformulações no âmbito do ECA e do SINASE160, sob a

justificativa de ampliação das medidas socioeducativas em meio aberto, apoiam-se

também em práticas restaurativas, não a fim de suprimir a pena e os procedimentos da

justiça convencional, mas de modo a inovarem em termos de efetividade do sistema

penal socioeducativo.161 De acordo com o SINASE, o ECA enseja, de diversas formas,

a aplicabilidade da chamada Justiça Juvenil Restaurativa, tomando como referência

desta a produção do PNUD sobre o tema e sua importância como instrumento para a

construção da chamada cultura de paz. Porém, ainda conforme o próprio SINASE, na

prática, na maioria das situações utiliza-se a remissão do processo com cumulação de

medida socioeducativa, do que decorre o início de um processo de execução desta em

que o acordo restaurativo pode ser adotado como substituto do PIA, ou contribuir para a

definição das bases para a elaboração do PIA (SINASE, 2014: 56). Assim, a “ampla

margem de oportunidades para a utilização de práticas restaurativas”, nas palavras do

relatório, compreende “mecanismos complementares à atividade jurisdicional” depois

160 De forma a atender às novas diretrizes do SINASE e normas já previstas pelo ECA, a antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) também passou por reformulações. Além da mudança de nomenclatura, passando a chamar-se Fundação CASA, em 2006. Cf. Governo do Estado de São Paulo. Lei Estadual 12.469/2006. Disponível em: http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2006/lei-12469-22.12.2006.html. Acesso em: 05/10/2016. A Fundação CASA deu início a um programa de descentralização, criando inúmeras unidades no interior e litoral do estado de São Paulo, com o objetivo de fazer com que os jovens considerados infratores sejam atendidos próximos de suas famílias e de suas comunidades. Até maio de 2015 foram implantados 72 pequenos centros socioeducativos, sendo parte deles geridos em parceria com organizações da sociedade civil dos municípios onde foram implantados. Cf. Governo do Estado de São Paulo. A Fundação CASA. Disponível em: http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/View.aspx?title=a-funda%C3%A7%C3%A3o&d=10. Acesso em: 05/10/2016. 161 De acordo com documento do SINASE, a Lei que o instituiu contempla diversos dispositivos que dão abertura à aplicação da Justiça Restaurativa: Art. 1, sobre o que objetivam as medidas socioeducativas. Inciso I “A responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação”; Inciso II “A integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento”; Inciso III “A desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos, observados os limites previstos em lei”. Art. 35 “A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios”. Inciso II “excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos”. Inciso III “prioridade às práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, que atendam as necessidades das vítimas”. Brasil. Lei federal 12.594/2012 apud SINASE, 2014: 58-59.

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239

de proferida a sentença, pois “em respeito à sua natureza peculiar de pessoa em

desenvolvimento [jovem considerado infrator], o ECA estabelece também grande

flexibilidade no que se refere ao cumprimento das sentenças impositivas de medidas

socioeducativas” (Idem: 56-57 – grifo meu).

Uma das práticas tidas como de maior sucesso, e capturada de povos chamados

de primitivos pelos denominados civilizados e adaptada à lógica penal, os círculos de

mediação “vítima-ofensor” são aplicados largamente no Brasil, no âmbito da Justiça

Restaurativa, como complementares às medidas socioeducativas, centrada nas

concepções de crime e transgressão, visando a construção de redes de auto-

responsabilização e responsabilidade compartilhada entre o jovem, sua família e a

comunidade. Exemplo disto remonta ao ano de 2014, quando a Secretaria de Direitos

Humanos da Presidência da República (também subsidiando) e o Centro de Direitos

Humanos e Educação Popular de Campo Limpo produziram um projeto piloto para

aplicação da Justiça Juvenil Restaurativa em São Caetano do Sul e Campo Limpo, em

parceria com as Varas de Infância e Juventude de São Paulo e São Caetano do Sul,

Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo,

Ministério Público e Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e

Defensores Públicos da Infância e da Juventude.162

São Caetano do Sul possui diversos outros projetos específicos para orientar

famílias consideradas em situação de risco social e vulnerabilidade, e é tido como

município pioneiro na implementação da Justiça Restaurativa no Brasil, aplicada, desde

2005 na Vara da Infância e da Juventude, incorporada pelo Poder Judiciário e pela

162 Ver: CDHEP, 2014. O relatório ressalta a importância da aplicação do projeto em São Caetano do Sul devido ao alto IDH do município e no Sul do Estado de São Paulo que, em contraposição, possui alto Índice de Vulnerabilidade Social (IVS). Destaca-se também que o projeto responde às recomendações interacionais sobre a aplicação da Justiça Restaurativa, como a Resolução 2002/12 do ECOSOC.

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240

Promotoria da Infância – práticas que também estão presentes na maioria das escolas da

região, segundo relatório, “criando familiaridade com o sistema e tendo efeitos

sinérgicos, quando aplicadas no âmbito da Justiça”163. São aplicados principalmente os

círculos restaurativos ou “cirandas restaurativas”, quando aplicadas em crianças (Rocha

da Silva, 2007: 72).

Todos os projetos de implementação da Justiça Restaurativa no Brasil decorrem

em maior ou menor grau das diretrizes e propostas do PNUD em parceria com a

Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério.164 Interessa perceber como a Justiça

Restaurativa mostra-se longe de abrir mão da cultura do castigo, tanto em relação a sua

fundamental complementariedade ao sistema penal formal, quanto ao ser aplicada como

política social em escolas, comunidades, bairros.

Alguns apontamentos sobre a reformulação de políticas sociais, tendo como

efeito as diretrizes de participação elencadas principalmente pela Constituição Federal

de 1988, interessam, nesse sentido, por sinalizarem para tentativas-táticas de

implementação de políticas em nível local. Não apenas em relação à eficiência da

aplicação de políticas sociais que articulam a comunidade com as diretrizes globais da

ONU e do PNUD, como quando articulam tratamentos tanto individualizantes quanto

coletivos, em prol do fortalecimento de responsabilidades. De políticas repressivas à

políticas sociais voltadas à capacitação e desenvolvimento humano, e suas respectivas

transformações no modo de conceber e aplicar punições tanto na complementariedade

163 Idem, p. 79 (grifos meus). 164 Em Porto Alegre (RS), por exemplo, há o programa de Justiça Restaurativa desenvolvido na 3ª Vara Regional do Juizado da Infância e Juventude da cidade, responsável pela execução das medidas socioeducativas previstas pelo ECA. O programa seleciona casos em que o jovem se assume como culpado de ato considerado infracional para dar início à aplicação dos círculos restaurativos, com ou sem a participação da identificada como vítima, e aos “pós-círculos”, quando os coordenadores do programa verificam o cumprimento da medida (Rocha da Silva, 2007: 71).

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241

de medidas, como por meio da disseminação de relações de governo que lançam mão de

práticas penalizadoras, tem-se aspectos importantes na composição de uma

governamentalidade planetária conectada com a racionalidade neoliberal e suas

prerrogativas de gestão compartilhada, que extrapola quesitos meramente financeiros.

***

No Quadro de 2007-2011 do PNUD Brasil, que coincide com a implementação

do Programa Conjunto Segurança com Cidadania exposto a seguir, reitera-se a

abordagem do PNUD Brasil com enfoque no conceito de desenvolvimento humano

sustentável e no investimento de ferramentas mais qualitativas e refinadas, como o IDH,

a partir de esforços compartilhados, que reportem as condições nacionais, estatais e

municipais.165

Sobre as propostas do PNUD no Brasil a serem perseguidas, especificamente no

item “escopo internacional”, no que concerne à “redução de vulnerabilidade à

violência”, são elencados três pontos de ação. O primeiro reitera a parceria

multisetorial, a mobilização de agentes governamentais e não governamentais, o

treinamento e replicação de iniciativas locais de sucesso e a transferência de

conhecimento por meio da cooperação Sul-Sul, enfatizando o necessário alcance

governamental de capacidades que integrem diferentes políticas para a construção de

uma cultura de paz. O segundo ponto destaca que, para a garantia do acesso à justiça, o

PNUD expandirá novos modelos de justiça alternativos, ao mesmo tempo em que

contribuirá para a modernização do sistema judiciário. O último e terceiro ponto, por

165 UN. Country Programme Action Plan Between The Government of Brazil and UNDP. New York, 2007, p. 6.

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242

sua vez, prioriza a modernização do sistema prisional, uma política de imigração

nacional e a implementação de controle de ativos e recuperação.166

A seguir, será então exposto um programa específico liderado pelo PNUD no

interior do estado do Espírito Santo, que responde a tais diretrizes preconizadas para o

país e necessita da participação de todos os envolvidos num mesmo ambiente. Acaba

por diluir, não apenas a separação artificial entre Estado e sociedade civil como entre

polícia e políticas sociais ancoradas na restauração deste ambiente e dos que o habitam.

implementação de um investimento conjunto

Entre 2010 e 2013, o PNUD (como agência líder) realizou o processo de

implementação do Programa Conjunto da ONU Segurança com Cidadania –

Prevenindo a violência e fortalecendo a cidadania com foco em crianças, adolescentes

e jovens em condições vulneráveis em comunidades brasileiras, junto a outras cinco

agências do Sistema167.

Este Programa foi financiado pelo Fundo para o Alcance dos Objetivos de

Desenvolvimento do Milênio (ODM) do Governo Espanhol e foi implementado a partir

da seleção de três municípios em regiões metropolitanas brasileiras: Região do

Nacional, em Contagem (MG), Bairro Itinga, em Lauro de Freitas (BA) e Grande São

Pedro, em Vitória (ES), dentre 82 municípios inscritos no edital do Programa. Dentre os

requisitos avaliados para a seleção, tiveram fundamental importância os índices IDH,

IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), IRFS (Índice de

166 Idem, p. 9. 167 São elas: ONU – UNESCO (Organização da ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura), UNICEF (Fundo da ONU para a Infância), OIT (Organização Internacional do Trabalho), UNODC (Escritório da ONU sobre Drogas e Crime) e ONU-Habitat (Programa da ONU para os Assentamentos Humanos).

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243

Responsabilidade Fiscal, Social e de Gestão), bem como a indicação da área que

receberia o projeto, contendo dados e justificativas (PNUD, 2014a: 22).

O objetivo central do Programa foi “prevenir a violência, criando ambientes

mais seguros e saudáveis para crianças, adolescentes e jovens, entre 10 e 24 anos”, por

meio de atividades focadas na “promoção da convivência (respeito às normas e

fortalecimento da cidadania); redução de fatores de risco relacionados à violência (...);

promoção da resolução pacífica dos conflitos; acesso à justiça; entre outros” (Idem: 9 –

grifo meu).

Para a composição da análise aqui descrita, optou-se pela exposição da

implementação do Programa Conjunto na região da Grande São Pedro, em Vitória, pela

facilidade de acesso que tive à cidade, e também por ser uma capital brasileira com alto

IDH – o quarto maior IDH municipal do Brasil168 –, pensando no interessante contraste

com a região da Grande São Pedro, indicada no processo de inscrição levando em

consideração o que denominam por suas altas taxas de criminalidade e violência e os

déficits socioculturais.

Além do alto IDH-Municipal, Vitória concentra cerca de 30% do PIB do Estado

do Espírito Santo. Possui o que chamam de notoriedade negativa em índices criminais,

com destaque ao envolvimento de jovens e à violência contra a mulher – segundo o

Mapa da Violência de 2010, o Espírito Santo ocupa a 2ª posição no ranking de

homicídios do Brasil e 1º em relação ao sexo feminino (Ibidem: 16).

A Grande São Pedro, região selecionada pelo Programa, ocupa uma área de

aproximadamente 3.605.759 m² e possui uma população de cerca de 33.748 habitantes,

sendo mais de um terço jovens de 14 à 24 anos (Ibidem: 16). É marcada, segundo

168 G1. “Vitória tem 4º melhor IDH Municipal do Brasil, segundo estudo” in ES. 29/07/2013. Disponível em: http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2013/07/vitoria-tem-4-melhor-idh-municipal-do-brasil-segundo-estudo.html. Acesso em: 30/04/2015.

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chavão recorrente, por uma “ocupação desordenada”, em decorrência da explosão

demográfica de Vitória, principalmente com o início das operações da Companhia Vale

do Rio Doce e da construção do Porto de Tubarão no local, ao final da década de 1970.

Situada no noroeste de Vitória, é composta por um conglomerado de bairros, onde antes

predominava uma área de mangue – local onde a prefeitura depositava o lixo da cidade

que, por sinal, provia grande parte do sustento das famílias que ali viviam.

Nas décadas de 1970 e 1980, a falta de infraestrutura e serviços nas áreas

ocupadas, em grande medida por migrantes advindos do sul da Bahia e norte do Rio de

Janeiro, provocou a união de moradores desses espaços, apoiados pela Igreja Católica,

em prol da reivindicação de melhorias à prefeitura e ao Estado. Neste contexto, fora

divulgado o documentário Lugar de Toda Pobreza (1983), de Amylton de Almeida, e a

notoriedade da região ganhou espaço, na época acarretando até mesmo na visita do Papa

João Paulo II quando esteve no Espírito Santo, em 1991 (Ibidem: 18). Na década de

1980, um projeto de urbanização da região com extensa participação dos moradores

resultou na construção de uma usina de lixo, em projetos que visaram a melhoria de

salubridade local, preservação do manguezal, além das atuais 17 escolas municipais e

uma estadual, quatro unidades de saúde, uma Policlínica e dois Centros de Referência

da Assistência Social (CRAS), e diversos programas e projetos desenvolvidos pelo

Estado e pela sociedade civil.

Em 2005, foram incorporadas à então Secretaria Municipal de Segurança Urbana

(SEMSU), as Gerências de Ações de Prevenção à Violência, Gerência de Mobilização

Social e Institucional e Gerência de Pesquisa e Monitoramento da Violência. Visou-se

atuar por meio de ações intersetoriais de prevenção, contando com a participação

comunitária para a redução dos índices de violência e criminalidade. De acordo com

diagnóstico da região de São Pedro feito pela SEMSU em 2005, dentre as causas da

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245

violência juvenil estavam principalmente o tráfico, o “abuso de álcool e outras drogas”,

o desemprego e a “falta de cultura de lazer” (Ibidem: 24). Já o diagnóstico realizado

pelo PNUD, em 2011, período de inscrição do Programa Conjunto, indica que a região

situava-se no topo da lista de homicídios, sendo responsável por 26% dos homicídios de

Vitória (Ibidem: 24).

A região da Grande São Pedro foi também selecionada para dar continuidade aos

investimentos que já haviam sido feitos na região, pelo Programa Nacional de

Segurança com Cidadania (PRONASCI), destinado à prevenção, controle e repressão da

criminalidade, articulando ações de segurança pública com políticas sociais169. O

PRONASCI foi instituído em 2007 para “ser executado pela União, por meio da

articulação dos órgãos federais, em regime de cooperação com Estados, Distrito Federal

e Municípios e com a participação das famílias e da comunidade, mediante programas,

projetos e ações de assistência técnica e financeira e mobilização social, visando à

melhoria da segurança pública”170.

As diretrizes do PRONASCI171 podem ser dividas em três grupos centrais que

formam um ciclo expandido de penalizações: 1) As centradas em políticas de

prevenção, destacando-se a promoção dos direitos humanos pela intensificação de uma

cultura de paz, a criação e fortalecimento de redes sociais e comunitárias,

o fortalecimento dos conselhos tutelares, a promoção da segurança e da convivência

pacífica e a garantia do acesso à justiça, especialmente nos territórios vulneráveis; 2) As

centradas em políticas prisionais, desde a modernização das instituições de segurança

pública e do sistema prisional à participação de jovens e adolescentes, de egressos do

169 Cf. OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA. PRONASCI. Disponível em: http://www.observatoriodeseguranca.org/seguranca/pronasci. Acesso em 07/07/2016. 170 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/Lei/L11530.htm. Acesso em: 07/08/2016. 171 Idem.

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sistema prisional, de famílias expostas à violência urbana e de mulheres em situação de

violência; 3) As centradas em políticas de inclusão, tendo como exemplo a participação

de jovens e adolescentes em situação “vulnerabilidade social” e de moradores de rua em

programas educativos e profissionalizantes com vistas na ressocialização e reintegração

à família; a promoção de estudos, pesquisas e indicadores sobre a violência que

considerem as dimensões de gênero, étnicas, raciais, geracionais e de orientação sexual;

a ressocialização dos indivíduos que cumprem penas privativas de liberdade e egressos

do sistema prisional, mediante implementação de projetos educativos, esportivos e

profissionalizantes.

Vitória é tida como território modelo de efetuação do PRONASCI. Segundo o

ministro da Justiça na época de sua implementação, Tarso Genro, em menos de dois

anos as regiões da cidade atendidas tiveram uma queda significativa nos índices de

homicídio.172 Em São Pedro, foi instalado o projeto Território de Paz, desenvolvido pela

Polícia Militar, integrando diversas ações do PRONASCI em uma única comunidade,

com foco na prevenção e combate à violência. O projeto envolvia iniciativas como o

“Mulheres da Paz” e o “Proteção de Jovens em Território Vulnerável”. Em menos de

um ano, os índices mostraram resultados tidos como satisfatórios pela avaliação do

governo do Estado – a média da redução de homicídios foi de 27% nas regiões com alto

índice de violência em Vitória.173

172 Jus Brasil. Vitória é território modelo do PRONASCI, diz Tarso. Disponível em: http://mj.jusbrasil.com.br/noticias/982951/vitoria-e-territorio-modelo-do-pronasci-diz-tarso. Acesso em: 08/07/2016. 173 Gazeta online. “Homicídios em ‘Território da Paz’ na Grande Vitória tem redução média de 27%” in Notícias. 10/05/2011. Disponível em: http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2011/05/a_gazeta/minuto_a_minuto/847668-homicidios-em-territorio-de-paz-na-grande-vitoria-tem-reducao-media-de-27.html. Acesso em: 08/07/2016.

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247

fundamentação conceitual em fluxos

A metodologia do Programa define convivência e segurança cidadã como

conceito que aponta para as diversas causas da violência e, por isso, esta deve ser

enfrentada não apenas com polícia e justiça, mas também com a construção e reforço

das capacidades locais na gestão de segurança dos cidadãos (Ibidem: 9). Busca-se o

empoderamento dos moradores das comunidades selecionadas para fortalecer a

participação efetiva dos mesmos como fundamental para uma boa governança local e

para a construção de um ambiente seguro em que prevaleça uma cultura de paz.

Em um ciclo de conceitos que se retroalimentam construído pelo PNUD, com

base na exposição da cartilha do Programa Conjunto, pode-se descrever que: a

segurança cidadã é o que permite a convivência segura e pacificada no mais ordinário

das relações cotidianas. Aliada aos direitos humanos – tendo como base os direitos

elencados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 adotada pela ONU –,

ela é parte constitutiva da segurança humana. Esta última pode ser resumida como a

busca pela segurança das pessoas por meio do fortalecimento das instituições

democráticas e do Estado de Direito que proporcionam as condições adequadas ao

desenvolvimento humano – processo de ampliação das oportunidades de escolhas das

pessoas e de fortalecimento de suas capacidades para que façam as melhores escolhas.

Já a chamada governança democrática é, como a segurança humana, também favorável

ao desenvolvimento humano por este ser o exercício de participação das pessoas em prol

da democracia ao lado das instituições. O desenvolvimento humano, por sua vez, é

assegurado pela segurança cidadã, que pressupõe a construção do chamado “controle

social democrático”.

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Legenda: SC – Segurança Cidadã; SH – Segurança Humana; GD – Governança Democrática; DH – Desenvolvimento Humano (Gráfico produzido pela autora).

A segurança cidadã constitui o núcleo duro deste ciclo, porém, o esquema

poderia ser invertido e ela poderia trocar de lugar com desenvolvimento humano, uma

vez que, na própria lógica do PNUD, este último, produto e resultado da segurança

humana e da governança democrática, assegura o “controle social democrático”,

possibilitando a segurança cidadã, entendida como o exercício seguro de participação

dos cidadãos em seus ambientes.

Esta mútua dependência também explica a relação entre as pessoas e o ambiente

– comunitário e institucional –, ou o duplo que compõe o vulnerável à e produtor de

vulnerabilidades. Assim como resiliência e desenvolvimento sustentável, redução de

vulnerabilidades e qualidade de vida. Fluxos de infindáveis práticas produtoras de uma

cultura ampliadora de penalizações, que almeja impedir quaisquer possibilidades de

resistências em meio ao esforço de justificar sua própria existência imbricada em um

emaranhado de conceitos flexíveis e resilientes.

Existe uma vasta e crescente literatura sobre a resiliência, principalmente a partir

dos anos 2000, da qual o PNUD se insere e se utiliza, assumindo a resiliência como uma

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249

prática extremamente eficiente na efetivação de suas políticas por conseguir adentrar

tanto nas políticas internacionais e nacionais dos Estados, quanto nos níveis mais

microscópicos e ordinários da conduta de cada um.

Muitas vezes ligada às mudanças climáticas e ambientais, a resiliência está

presente em muitas áreas, subáreas e, de forma interdisciplinar, na psicologia,

psiquiatria, criminologia, serviço social, geopolítica, biologia, ciências sociais, relações

internacionais e segurança internacional, etc. Derivada do verbo “resílio”, que em latim

significa “saltar para trás”, a resiliência estaria centrada contemporaneamente na

capacidade de se adaptar facilmente às chamadas adversidades.

Alguns teóricos, principalmente psicólogos e criminologistas, almejam, com a

resiliência, descobrir as qualidades elásticas internas e externas desta, a fim de ajudarem

as pessoas a “saltar” para além de seu estado original, adaptando-se melhor do que o

esperado. Outros encontram sua eficiência com a apreensão de situações de emergência

nas sociedades, focando na adaptação individual. De acordo com Philippe Bourbeau,

cientista político da Universidade de Namur, Bélgica, com foco no uso da resiliência

nas políticas de segurança e imigração, o conceito teria adentrado nas áreas de Ciência

Política e Securitização por meio das Relações Internacionais, quando conectou-se

resiliência com governança global, em face da liberalização econômica e das reformas

do mercado de trabalho em meio à globalização (2014: 3).

Assumindo que não pode haver completa imunidade a choques e perturbações,

Bourbeau estabelece que a resiliência se dá constantemente em fluxo, não sendo

atributo fixo ou característica imutável de uma sociedade ou indivíduo (Ibidem: 11).

Nesse sentido, o autor expõe como a resiliência transita entre políticas tidas como

alternativas, políticas estatais, práticas comunitárias, etc., confluindo para os ajustes

necessários à governança global e à manutenção da agenda da segurança.

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Algumas críticas referentes à resiliência no âmbito das estratégias de segurança

nacionais, frente ao que esta literatura define como ameaças – vulnerabilidades –

emergentes da “interdependência global”, giram em torno da relação entre prevenção e

resiliência. Segundo Christian Fjäder (2014: 117-118) – diretor da Agência Nacional de

Emergência de Helsinki, Finlândia –, na ausência de algo como um Estado global, a

resiliência deve corresponder à responsabilidade do Estado nacional na gestão de sua

segurança. Porém, estabelece algumas distinções entre resiliência e segurança,

importantes para perceber a construção estratégia na conceitualização de ambas na

presente análise.

Para o autor, a segurança assume um caráter preventivo de defesa do Estado e

seus cidadãos contra ameaças identificadas pelos meios de inteligência e pela lei.

Portanto, seu sucesso é facilmente verificável. Já a resiliência envolveria a combinação

de medidas pró-ativas e reativas destinadas a reduzir o impacto de ameaças, mas não

preveni-las enquanto tais. A resiliência tende a ser espacialmente menos definida e se

subscrever a uma “abordagem geral de perigos”, quando sugere uma capacidade de se

adaptar às perturbações mais diversas possíveis e se recuperar a partir delas (Idem: 122-

123). Nesse sentido, a resiliência tende a perseguir por uma “gestão de riscos”, fazendo-

se mais eficaz que a própria segurança nacional na medida em que esta possui grandes

chances de falhar frente às probabilidades de efetivação de uma ameaça. Segundo o

autor, não se pretende com a resiliência, porém, substituir a segurança, mas percebê-la

como suporte à segurança dos Estados e à segurança [safety e security] de seus

cidadãos, na medida em que se concentra na capacidade de suportar e adaptar-se a

eventos inesperados, constituindo-se como ótima opção de custo-benefício em termos

de garantia de serviços estatais básicos (Ibidem: 128).

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Uma das grandes referências e propulsores da inserção da resiliência nas áreas

de estudo contemporâneas foi o canadense Crawford Stanley Holling e seu trabalho

sobre ecossistemas dinâmicos, e a aplicação da teoria da adaptação e resiliência nos

campos da ecologia da população e do comportamento, ainda na década de 1970. De

forma similar ao que Bourbeau aponta sobre a incapacidade da completa erradicação

das ameaças, Holling reconhecera que a busca por um estado de equilíbrio, dando como

exemplo políticas protecionistas, tiveram como consequência a redução da resiliência

em um sistema, deixando-o ainda mais suscetível à perturbações externas. Assumindo a

existência de múltiplos equilíbrios, Holling estabeleceu que mais importante do que a

estabilidade dentro de um domínio é a persistência em se mover de um domínio a outro

(Zebrowski, 2013: 7). No âmbito de sua construção teórica, reitera-se que a resiliência

age como uma capacidade qualitativa para desenvolver a absorção de eventos

inesperados. O papel da governança, correspondendo à resiliência, deveria ser, para

Holling, o de reorientar as condições de capacidades de diversos sistemas, em vez de

mantê-los forçosamente em pontos de equilíbrios.

Quando o neoliberal Friedrich von Hayek ganhou o Prêmio Nobel de economia,

em 1974, por seu trabalho sobre flutuações monetárias e a interdependência dos

fenômenos econômicos, sociais e institucionais174, baseou-se em Holling ao criticar a

aproximação de modelos matemáticos rigorosos à economia. Segundo Christian

Zebrowski (2013: 167), cientista político e editor da revista britânica Resilience, cada

vez mais se utilizou dos discursos de complexidade e resiliência para promover uma

forma de governança econômica liberal sensível ao poder de auto-organizar as

174 Cf. NOBEL PRIZE. Friedrich von Hayek – Facts. Disponível em: https://www.nobelprize.org/nobel_prizes/economic-sciences/laureates/1974/hayek-facts.html. Acesso em: 08/10/2016.

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capacidades do mercado e conferir limites sobre o grau em que o governo poderia

regular e controlar seus processos.

Interessa situar, agora, o processo de identificação dos domínios que deve-se

estabelecer e fazer transitar a resiliência em um ambiente específico e delimitado, por

meio do levantamento de seus focos de vulnerabilidades que indiquem as táticas a

serem utilizadas, de forma sutil e ajustável.

implementação do conjunto de penalizações restaurativas

As atividades do Programa Conjunto foram precedidas pela visita dos gestores

dos três municípios selecionados a outros ambientes com perfil similar. A primeira

visita foi à Bogotá, na Colômbia, onde, segundo o PNUD, políticas alinhadas à

abordagem da segurança cidadã reverteram a tendência de crescimento da violência.

Segundo a cartilha do Programa, é comum delegações de governos estaduais ou federais

visitarem uma experiência internacional. Portanto, a visita à cidade colombiana

representa uma “quebra de paradigma” (Ibidem: 26) e o reconhecimento da importância,

não menor, de um município para a discussão da segurança pública.

Após a ida à Bogotá, representantes dos três municípios selecionados, das

agências da ONU e do Ministério da Justiça visitaram a experiência da Unidade de

Polícia Pacificadora (UPP) em dois complexos de favelas do Rio de Janeiro. Segundo

João José Barbosa Sana, Secretário de Cidadania e Direitos Humanos da Prefeitura de

Vitória na época, que esteve na visita à Bogotá e ao Rio de Janeiro, a Missão Técnica

foi importante por compreender que o conceito de segurança cidadã não se limita às

ações policiais, mesmo que estas sejam indispensáveis (Ibidem: 36). Já a Representante

da comunidade de São Pedro no Comitê Gestor Local do Programa, após visita às UPPs

no Rio de Janeiro, descreveu:

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A experiência que eu vivi foi única. No dia do meu aniversário, caminhando com um grupo de pessoas do bem pelas escadarias dos morros no sol escaldante da Cidade Maravilhosa – que eu só conhecia pela TV. Achava que a situação era somente deles e que era diferente das do meu bairro. Percebi ali que os problemas sociais são os mesmos, apesar das diferenças e dificuldades. Reconheci que no meu bairro há muitas opções e várias oportunidades que, por mais que não nos atentemos para elas, são importantes para a pacificação. E que depende de cada um de nós (...) (Ibidem: 44).

Na implementação do Programa Conjunto tem-se como indispensável a atuação

do chamado Ponto Focal – representante da Prefeitura Municipal com poder de decisão.

Ele se relaciona diretamente com a Equipe Técnica do PNUD, com as outras agências

ONU e com o Comitê Gestor Local. Sua principal função é facilitar o funcionamento

dos projetos e práticas ao contribuir que haja articulação e participação de todos. Na

região da Grande São Pedro, o Ponto Focal foi o supracitado Secretário de Cidadania e

Direitos Humanos da Prefeitura de Vitória, até 2012, quando houve troca de prefeitos, e

assumiu Marcelo Nolasco, secretário da nova gestão que já integrava o Comitê Gestor

Local representando a Polícia Civil (Ibidem: 23). Este Comitê Gestor Local, que

aprovava e propunha ações a serem desenvolvidas, foi composto por representantes das

agências da ONU, da comunidade de São Pedro, de oito secretarias municipais

(Segurança Urbana, Educação, Saúde, Cultura, Esporte, Cidadania e Direitos Humanos,

Gestão Estratégica e Assistência Social), bem como por representantes das Polícias

Civil e Militar e do Governo Estadual.

O Programa Conjunto Segurança com Cidadania não se encerrou em si mesmo,

mas constituiu-se, de 2010 a 2013, como a implementação de um processo em contínua

renovação, como é próprio das políticas que visam à construção e a manutenção da paz

na atual sociedade de controle. O Programa Conjunto contou com a sistematização,

tanto da experiência de cada território, quanto da metodologia utilizada e do modo como

ocorreu a articulação entre os três municípios selecionados (Ibidem: 33). Ao final de

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2013, além das posteriores visitas de consultores do PNUD para a avaliação e

monitoramento, a sistematização da experiência local foi realizada, a fim de garantir que

o “legado” do processo estabelecido pelas atividades prevalecesse, compreendido como

parte de uma “linha evolutiva”.

A metodologia do Programa Conjunto é orientada pelo reforço da cultura de

paz, composto pelo duplo controle e prevenção como garantidor da chamada

governança e participação democrática local (Ibidem: 13).

A seleção do espaço de aplicação, por meio de índices como o IDH e seu ajuste

a outros índices e variáveis mais focalizadas que compõem um conjunto de

instrumentos importantes para definir e mensurar seus alvos, é continuamente refeita

após a aplicação do programa. Monitoramento e avaliação, tidos como dois processos

diferentes, perpassam pela colaboração de Estados, ONGs, instituições, sociedade civil,

setor privado, etc., assim como os indivíduos moradores de um ambiente específico são

vistos como peças fundamentais nas práticas de governo locais alinhadas aos requisitos

da chamada governança global.

Segundo o PNUD, monitorar “é um ato contínuo de observação no qual os

atores sociais envolvidos obtêm retorno de informações sobre o progresso que tem sido

feito para o alcance de metas e objetivos” (PNUD, 2013b: 10). Já avaliar, conectado

diretamente ao ato de monitorar, “é estabelecer um juízo de valor (...). Possibilita um

olhar que identifica responsabilidades e processos a serem disseminados, reforçados ou

reorientados” (Idem: 11).

Nesse sentido, o monitoramento não se constitui apenas como mecanismo

eletrônico, mas está inserido na conduta de cada um na participação e colaboração de

projetos e programas de intervenção. De acordo com Augusto (2012: 92), a eficiência

na gestão de conflitos locais se pauta na contenção de possíveis conflitos ocasionados

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por contingentes identificados como vulneráveis, não pela punição imediata, mas pelo

círculo de responsabilidades comuns, ligada ao que chama de conduta policial,

fomentada pela gestão compartilhada.

Conforme exposto ao final do capítulo anterior, na perspectiva do PNUD as

crianças e os pobres são inerentemente vulneráveis. Logo, devem ser os maiores focos

de investimento em resiliência. Interessa mostrar, especificamente na comunidade da

Grande São Pedro, a aplicação tática dos princípios da Justiça Restaurativa em todo um

ambiente vulnerável como parte de um grande investimento de dimensões planetárias.

Segundo a cartilha do Programa Conjunto, este pode ser compreendido como um

sistema de promoção da segurança cidadã, que supera o paradigma da segurança

pública como tarefa exclusiva das polícias e do sistema de justiça, para apostar na

segurança como responsabilidade compartilhada que combine controle qualificado e

prevenção (Ibidem: 88).

Portanto, será necessário situar alguns dos projetos implementados pelas

agências da ONU na comunidade, divididos em seis eixos transversais na composição

do “fortalecimento da capacidade institucional em Convivência e Segurança Cidadã”.

São eles: Eixo 1 – fortalecimento da coesão social; Eixo 2 – prevenção de fatores de

risco; Eixo 3 – prevenção à violência intergeracional e contra a mulher; Eixo 4 –

potencialização de espaços urbanos seguros; Eixo 5 – fortalecimento da polícia e da

justiça para relação comunitária; Eixo 6 – prevenção e controle de delitos.

O Eixo 1 vincula o baixo exercício da cidadania e inclusão social aos altos

índices de violência na América Latina. Para o aumento da chamada coesão social,

destaca-se a importância da mediação para a prevenção e gestão de conflitos. Nesta

linha, um dos projetos (Ibidem: 53), promovido pela ONU-Habitat, priorizou a

formação de um ambiente de diálogo entre polícia e comunidade, não para formar

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mediadores, mas para auxiliá-los no entendimento das atuações e funções diárias de

ambos. Outro projeto, promovido pela mesma agência, de forma complementar, visou

aperfeiçoar as ações dos técnicos da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos da

Prefeitura na mediação de conflitos e elaborar um projeto de mediação comunitária de

conflitos.

No Eixo 2, dentre os projetos que visam a conscientização em relação ao uso de

armas e substâncias ilícitas como produtores de vulnerabilidades, chama atenção um

programa internacional, promovido pela UNODC (Escritório da ONU sobre Drogas e

Crime) desde 1956. Intitulado Mérito Juvenil, tem como objetivo “promover o

autodesenvolvimento de jovens, através da superação individual por meio do

cumprimento voluntário de regras, da autorregulação do comportamento e da promoção

de mecanismos de controle social” (Ibidem: 60 – grifo meu). O programa visa à

formação de líderes e destaca o voluntariado como impulsionador da cidadania.

Já os Eixos 5 e 6 reúnem projetos focados no fortalecimento da união entre

polícia e comunidade, mediadas pelo sistema de justiça. O Eixo 6 apresenta apenas dois

projetos. Um deles foi uma oficina organizada pela UNICEF sobre o Sistema Nacional

de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Voltada para o fortalecimento do Sistema

de Garantias e Direitos (SGD) que tem como foco o atendimento a adolescentes “em

conflito com a lei”, deu especial atenção à aplicação da Lei Federal 12.594 de abril de

2012175, que instituiu o SINASE e regulamenta o acompanhamento do cumprimento da

medida socioeducativa atribuída ao adolescente considerado “conflitante com a lei”.

Já o Eixo 5 conta com inúmeros projetos, todos voltados para o fortalecimento

tanto da polícia como da comunidade, e também da relação entre ambos. Porém, um

deles merece atenção por ter sido considerado, pelo próprio Programa Conjunto, aquele

175 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm.

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que traduziu e concretizou a compreensão e incorporação dos conceitos e preceitos da

abordagem da segurança cidadã ao integrar todas as políticas de prevenção da

segurança – o projeto Papo Reto, como será exposto à frente, realizado conjuntamente

pela Polícia Militar, Polícia Civil, Guarda Municipal, Corpo de Bombeiros, Prefeitura

de Vitória, o PNUD e a comunidade de São Pedro.

distinções complementares

Conforme já sinalizado176, a nova razão governamental no século XVIII, que

produziu a governamentalização do Estado, teve como pontos de apoio a pastoral, a

nova técnica diplomático-militar entre os Estados e a polícia. Em Segurança, território,

população, Foucault mostra que, se nos séculos XV e XVI “polícia” designava

simplesmente uma autoridade pública que regia uma comunidade, a partir do século

XVII ela designará o conjunto dos meios pelos quais é possível garantir o crescimento

do Estado por meio de uma relação móvel entre sua ordem interna e o crescimento de

suas forças externas (Foucault, 2008: 420-421). Na Alemanha, a divisão territorial fez

com que seus Estados tornassem-se pequenos laboratórios microestatais que puderam

servir de modelo e de estudo da polícia, também por influência das universidades, que

tornaram-se lugares de formação de administradores que deveriam ocupar-se do

desenvolvimento das forças do Estado e de reflexão sobre as técnicas a serem

empregadas (Idem: 427). O que se constituirá, neste momento, como ciência da polícia

(Polizeiwissenschaft), se ocupará da vida das pessoas, sendo capaz de articular,

simplesmente, a força do Estado e a felicidade dos homens como a própria força do

Estado (Ibidem: 439). Ela se ocupará de saber o número dos homens em atividade, das

176 Ver início do item 1.2. desta dissertação.

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258

necessidades dos homens a fim de zelar pelas suas vidas, da saúde deles, do problema

da circulação de mercadorias – oriundas das atividades dos homens –, etc.

Já no século XVIII, com o esboço de uma forma de governamentalidade, esta

incluiu a crítica ao Estado de polícia em função da economia como pensamento que

deveria compreender as possibilidades, eventualidades, novos cálculos específicos dessa

arte de governar. O aparecimento da população como conjunto de fenômenos naturais

que se produz entre as interações dos indivíduos, e que compartilhará da arte de

governar, não mais restrita à prática dos governantes, possibilitará o deslocamento da

forma de intervenção regulamentar para a gestão da população, por meio de

mecanismos de segurança (Ibidem: 473-474). A polícia do século XVII será

desarticulada para tomar corpo dois fenômenos: a economia como gestão da população

e a polícia como instrumento repressor e negativo de impedir certas desordens (Ibidem:

475). Esta distinção, segundo Foucault aparecerá no que os teóricos da época

discerniam como Polizei, mantendo a definição anterior de polícia do século XVI, e

Politik, referente a essa tarefa negativa de controle da população.

Segundo Acácio Augusto, acompanhando a exposição de Foucault, essa

distinção sofrerá uma bifurcação mais precisa ao longo dos séculos XIX e XX,

percebida na língua inglesa com a diferenciação entre police e policy e, no Brasil, entre

“políticas públicas” e polícia. De forma complementar, ambas voltam-se aos mesmos

alvos e assumem uma distinção bastante turva: “cada vez mais as políticas sociais fazem

papel de polícia e a polícia repressiva é convocada a fazer o papel de assistente social.

Ambas se voltam aos contingentes classificados pelos índices econométricos (da

microeconomia) como vulneráveis, ou seja, alvo e agentes de carências (materiais e de

direitos) e violências (simbólicas e diretas)” (Augusto, 2015: 72).

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259

Nesse sentido, merece destaque para a presente análise o projeto Papo Reto,

realizado na Grande São Pedro desde janeiro de 2013, desenvolvido pela Polícia

Militar, Polícia Civil, Guarda Municipal, Corpo de Bombeiros, Prefeitura de Vitória, a

própria comunidade de São Pedro e o PNUD, com o objetivo de estabelecer uma

“reflexão conjunta sobre a corresponsabilidade na segurança” (Ibidem: 74). Faz-se

importante, portanto, para mostrar um pouco desta relação turva, tênue e complementar

entre polícia e política social, entre relações de poder permeadas por repressões e

positividades, entre formas descendentes e ascendentes do poder, bem como os efeitos

produzidos pelas práticas envolvidas neste pequeno projeto – porém de projeção

planetária –, pautadas por princípios tanto formais do Estado quanto de formas tidas

como alternativas, como pretende-se assumir a Justiça Restaurativa.

um projeto policial para os vulneráveis

O projeto Papo Reto teve como objetivo “estreitar as relações entre forças

policiais e comunidade, com foco na juventude”, contando com 20 facilitadores

capacitados e cerca de 500 pessoas envolvidas nas rodas de conversa, até junho de 2013.

Estas rodas de conversa – metodologia do projeto – tinham como principal objetivo

desmistificar a “imagem negativa” do policial para a comunidade e vice-versa, em prol

de disseminar a ideia de corresponsabilidade na segurança. Estas reuniões, realizadas

nas próprias escolas, no CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e também

nas sedes policiais, envolviam policiais, moradores da comunidade, técnicos da

Prefeitura e crianças e jovens das 7ª, 8ª série do Ensino Fundamental e 1º ano do Ensino

Médio da Grande São Pedro.

O Papo Reto é considerado pioneiro neste tipo de trabalho conjunto entre as

forças policiais – Militar, Civil e Guarda Municipal. Seu início foi marcado pela visita

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260

de Jorge Chediek, Coordenador Residente do Sistema ONU no Brasil e Representante-

Residente do PNUD, que participou da roda de abertura do projeto.

O nome do projeto, “Papo Reto”, diz respeito à importância do diálogo entre

todos os membros da sociedade, como responsáveis pela “cultura da segurança cidadã”

(Ibidem: 75), algo que pode ser percebido, neste contexto, como sinônimo da própria

“cultura de paz”. Uma das grandes demandas avaliadas para o projeto é a necessidade

de interação comunitária entre a Polícia Miliar (PM) e os jovens da comunidade,

considerados vulneráveis, muito por serem “cooptados para a prática criminosa”,

segundo o Comandante da PM e integrante do Comitê Gestor Local. Como encontrado

nos discursos da Justiça Restaurativa, visa-se a aproximação entre polícia e comunidade

como forma de prevenção ligada ao que seria uma justiça alternativa legal, em

contraposição à justiça alternativa ilegal ou “justiça do gueto” que, conforme visto no

RDH de 2014 para a América Latina, exerceriam “violência ilegal”. Já a violência legal,

por parte da polícia, intrínseca à sua abordagem diária, não é entendida como violenta,

mas contendo “energia”. Segundo o Capitão da PM e facilitador do Papo Reto:

Pra que você age com energia? Para você diminuir a possibilidade de ação da outra parte. Nesse contexto, muitos entendem como truculenta a abordagem, porque ela precisa de energia, ela precisa de um pouco de vivacidade, o policial tem que chegar com um pouco de energia, falar com um tom de voz um pouco mais elevado pra demonstrar um pouco mais de... de força mesmo, né? Agora... Eu tenho que procurar identificar as minhas falhas, identificar as falhas dos meus policiais, corrigi-las e prestar um serviço de acordo com os anseios da sociedade (Capitão Alves Christ in PNUD, 2013 – DVD Papo Reto).

Ao mesmo tempo em que o policial assume a necessidade de força ou, como

prefere, de “energia” em sua abordagem – mesmo porque “abordar” carrega

necessariamente a relação descendente entre uma pessoa que aborda e outra que é

abordada –, ele toma como “freio” à esta conduta a prestação à sociedade combinada ao

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261

clamor e anseios desta. A polícia é percebida, inclusive, como agente social integrante

da sociedade, e não uma força externa:

Além de estarmos focados em atingir o objetivo geral do projeto, nos fez internalizar um objetivo maior, que extrapola o escrito na metodologia de trabalho do Papo Reto: unir pessoas, seres humanos. Isso nos faz ainda refletir que, por baixo da farda que os agentes de segurança vestem ou das roupas consideradas estereotipadas que a sociedade veste, existe, antes de tudo, um ser humano, que tem seus acertos, erros, sonhos, anseios, defeitos, etc. (Barcelos e Tristão in PNUD, 2014a: 76).

A polícia como instituição é cada vez mais diluída em meio à comunidade, não

em termos de diminuição de sua importância como agente da ordem, mas quando seu

papel é cada vez mais percebido como propulsor e aliado ao fomento de uma conduta

responsável alinhada à pacificação das relações sociais como conveniente ao

estabelecimento de uma cultura de paz. Segundo depoimento de Lena Côgo, facilitadora

do Papo Reto e coordenadora do Circuito Cultural de Vitória:

A gente vislumbra, com o Papo Reto, um estreitamento de relações, entre órgãos de segurança e comunidade, buscando cultura de paz (...). Esse é o grande efeito dessa ferramenta que é o Papo Reto: é colocar as pessoas, de várias tribos, do mesmo tamanho (Lena Côgo in PNUD, 2013 – DVD Papo Reto).

Assim, uma vez que segurança é tida como sinônimo de paz, e quando a polícia

é entendia como órgão de segurança, a violência é atrelada, cada vez mais à falta de

oportunidades como garantia do uso de capacidades que visem a produção de

resiliência e a redução de vulnerabilidades. A violência está conectada, nesta lógica, à

“falta de acesso” – ao consumo, aos direitos, às oportunidades de escolha, etc. O alvo

não é a abolição da violência, mas a gestão das vulnerabilidades. E estas estão

diretamente vinculadas ao alvo, tanto da proliferação de direitos e deveres em âmbito

planetário, quanto da violência intrínseca da polícia e do sistema penal. Na farda da

Polícia Civil Metropolitana envolvida com o Projeto Papo Reto está escrito, do lado

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esquerdo: “polícia comunitária – CULTURA DE PAZ” e do lado direito:

“JUVENTUDE – núcleo de prevenção”. No depoimento do diretor de uma escola

municipal de São Pedro, onde fora realizado grande parte das atividades do projeto Papo

Reto, fica mais evidente a relação entre política social e polícia, turvada em decorrência

do mesmo alvo a ser combatido:

Então, uma sociedade que não tem uma política para a juventude, uma sociedade onde as pessoas não tem pleno emprego, uma sociedade que não garante segurança alimentar, é uma sociedade excludente. As razões principais da violência não são subjetivas, são objetivas. Então, por mais que nós façamos, e devemos fazer, trabalho com os meninos de conscientização, de discussão dos seus problemas, se não houver de fato uma intervenção social, nós não vamos resolver o problema da violência no Brasil (Madson Batista in PNUD, 2013 – DVD Papo Reto).

Foto: atividade do Projeto Papo Reto (PNUD, 2013 – DVD Papo Reto).

***

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263

Após a chamada Guerra Fria, uma revisão no âmbito do Conselho de Segurança

da ONU possibilitou que as operações de paz se ampliassem de missões tradicionais,

envolvendo somente tarefas estritamente militares, às tarefas “multidimensionais”, que

assegurassem de forma mais eficiente a implementação e acompanhamento dos acordos

de paz em prol de uma paz sustentável. O processo de transição democrática na

Somália, acompanhado pela ONU, fez do país um dos modelos mais bem sucedidos e

emblemáticos, mesmo que até hoje esteja sempre em “alerta máximo” nos rankings dos

chamados Estados falidos. Para o alcance de uma paz sustentável, como pôde mostrar o

trabalho do PNUD na Somália, a intervenção militar parece menos eficiente do que a

cooperação por meio da participação inclusiva junto aos vulneráveis, embora não se

abra mão da “energia” policial como constitutiva das novas formas de penalização

compartilhadas por todos os que estão disponíveis a policiar e ser policiado, inclusive

seus alvos.

Em meados de 2016, em visita à Casa do Cidadão, espaço que oferece diversos

serviços da Prefeitura de Vitória, pude conversar brevemente com a Assistente Social da

Gerência de Juventude no pavilhão da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos

(SEMCID) sobre o processo de implementação do Programa Conjunto da ONU,

Segurança com Cidadania, e do Projeto Papo Reto, um de seus maiores “legados”. A

Assistente Social e integrante do Comitê Gestor Local do Programa contou-me um

pouco da história de São Pedro, antes um lixão, e do forte envolvimento dos jovens

moradores e da luta pela vida que marcou e ainda marca aquele espaço. Ela chamou

atenção sobre a grande quantidade de serviços na região – escolas, hospitais, centros de

atendimento –, bem como o constante investimento da sociedade civil, moradores e

lideranças da região, que nunca conseguiram diminuir as altas taxas de violência

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construídas pelos índices, cujos dados são provenientes da Secretaria Estadual de

Segurança Pública e do Observatório de Segurança e Violência de Vitória.

Ao contar sobre o Projeto Papo Reto, ela mencionou algumas tentativas

anteriores à sua efetivação, e também sobre as disputas entre as polícias, bem como e

existência de projetos similares, como o Projeto Papo Responsa, nas escolas do Rio de

Janeiro, realizado apenas pela Polícia Civil. Elencou como importantes alguns projetos

como o Ocupação Social177, que oferece cursos de qualificação aos jovens considerados

em “situação de risco social”, em cidades do interior do Estado do Espírito Santo, mas

que chegou ao fim quando da troca de prefeitos; e criticou outros projetos, como o

Projeto Estar Presente, implementado pelo então governador do Estado na época,

Renato Casagrande, por causa do investimento em modernização da polícia e mínimo

investimento em políticas sociais.

Ao perguntá-la sobre a seleção e treinamento dos policiais envolvidos no

Programa Conjunto, a Assistente Social e facilitadora respondeu-me que eles eram

selecionados de acordo com o perfil requerido pelo Comandante da PM e integrante do

Comitê Gestor Local do Programa. Porém, ela chamou atenção para a hostilização por

parte dos policiais que denominou de “faca na caveira” aos que se envolveram com as

atividades do Programa, com a provocação de que estes últimos estariam “fugindo do

trabalho” e “com medo de ir para a rua”.

A Assistente Social, assim como outros funcionários da SEMCID que tiveram

algum envolvimento com o Programa Conjunto, não mencionaram nenhuma das

palavras-chave do discurso da segurança cidadã. Falou-se em violência e falou-se em

177 SENAI. “SENAI-ES inicia projeto Ocupação Social com ofertas de vaga gratuitas” in Notícias. Disponível em: http://www.senai-es.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=298:senai-inicia-projeto-ocupacao-social-com-ofertas-de-vagas-gratuitas&catid=23:noticias&Itemid=144. Acesso em: 25/08/2016.

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265

índices, taxas, números. A expressão cultura de paz foi mencionada apenas em termos

protocolares, e nada se falou sobre cidadania, desenvolvimento sustentável, resiliência.

Isso não significa que a linguagem não se faz relevante. A linguagem é um dos inícios

marcados pelos castigos, dos quais abolicionistas e libertários voltaram-se para

combater primeiro em si mesmos, em suas atitudes, em suas relações. Mas alerta para a

naturalização de uma conduta, para a introjeção de regras e normas que operacionalizam

e se retroalimentam junto ao discurso dos infindáveis conceitos carregados do humano,

que não pretendem se ocupar com gente, estancar a violência regular, sistemática e

cotidiana exercida sobre gente e retroalimentada pelas práticas de gente que se entrega,

que se dispõem a identificar-se como vulnerável passível de tornar-se resiliente; em

desenvolvimento. Esta expressão não parece estar limitada aos países, mas também diz

respeito ao alvo preferencial da resiliência: aqueles que estão em vias de tornar-se

humano responsável, racional. Incide, preferencialmente, sobre o que não tem governo;

tem como alvo preferencial as crianças.

***

Para a funcionária da Prefeitura, o Programa não foi um sucesso. Sua

implementação chegou ao fim e deixou como legado uma Cartilha e projetos que

continuaram em funcionamento, como o Papo Reto. Segundo a Assistente Social que

conversei, dois consultores do PNUD foram realizar avaliação do monitoramento no

local, em 2015 e no início de 2016. Porém, houve troca de prefeitos e falta de

investimento nos servidores efetivos da prefeitura. As pessoas logo deixaram de se

engajar com a restauração de São Pedro, e a atual falta de “governabilidade” prejudica a

implementação de novas atividades, complementou.

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Porém, este Programa não foi pequeno, não foi irrelevante, não foi “mal

executado”. Ele possui dimensões que extrapolam a Grande, porém delimitada região de

São Pedro. Poderia ter sido implementado em outro país, na África, ou em qualquer

outro ambiente que os índices e suas variáveis revelam como contendo altos graus de

vulnerabilidades. O investimento dispendido pelo Fundo Espanhol para a realização dos

Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU foi ínfimo se relativo ao imenso

orçamento da ONU, majoritariamente financiado pelos EUA, mas se faz altíssimo em

termos de laboratório e modelo a ser replicado por meio de tentativas táticas de uma

estratégia que se pretende planetária. Conforme uma funcionária da Prefeitura de

Vitória e representante da comunidade no Comitê Gestor Local, durante reunião do

Programa Conjunto, “São Pedro não está ganhando nada. São Pedro está construindo

junto” (PNUD, 2014a: 88).

3.3. reinserção da guerra e produção da paz social

da tentativa de pacificação das relações sociais

Pierre-Joseph Proudhon foi um dos primeiros a utilizar a palavra anarquia de

forma positiva, afastando-se do uso comum que a entende como sinônimo de desordem.

Diferente do regime democrático regido pelo governo de todos por cada um, ou do

comunismo em que prevaleceria o governo de todos por todos, a anarquia seria o

governo de cada um por cada um (Proudhon, 1986: 27). Tampouco a palavra anarquia,

tal como afirmada por Proudhon, poderia ser aproximada aos redimensionamentos

contemporâneos da anarquia como desordem, no âmbito das Relações Internacionais,

quando referida como “anarquia internacional”, entendida como propensão à guerra e

falta de equilíbrio entre os Estados.

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Para o anarquista, a guerra travada pelos Estados, sustentada pelo regime da

propriedade, era completamente diferente do vivo embate de forças que permeiam as

relações cotidianas e constituem a infindável pequena guerra. Em A guerra e a paz,

livro publicado pela primeira vez em 1861, Proudhon afirmava que ambas, longe de

serem estados excludentes, são termos universais inseparáveis que sustentam-se,

definem-se reciprocamente e complementam-se. Evidenciava como a ideia de uma paz

universal é tão categórica quando a ideia de guerra, uma vez que “a paz demonstra e

confirma a guerra; a guerra, por sua vez, é uma reivindicação da paz (...) [e] o

Pacificador é um conquistador, cujo reino se estabelece pelo triunfo” (Proudhon, 2011:

24).

Por meio de sua análise serial apartou-se de sistemas, ciências e objetos

universais para afirmar a continuidade e diversidade das séries de movimentos de

forças, não como substâncias ou causas, mas conjunto de relações e elasticidades

(Proudhon, 1986: 43-44). Na política, as séries “autoridade” e “liberdade”, como

incompatíveis e inconciliáveis, são irredutíveis; não passíveis de atingirem uma síntese,

como na dialética hegeliana. A autoridade, o quanto maior se torna, precisa da liberdade

para fazer concessões, por exemplo. Já a liberdade, como um regime, torna-se cada vez

mais próxima de seu ideal o quanto mais o Estado e sua população crescem, o quanto

mais se multiplicam estas relações (Idem: 70). Da mesma forma, enquanto se instaura a

paz como conquista do mais forte trajada de bem comum, a pequena guerra não cessa

de se exercitar (Proudhon, 2011: 30).

Proudhon entende as relações humanas e também entre as unidades políticas

como uma tensão permanente sem possibilidade de pacificação completa, ainda que a

guerra e os massacres produzidos pelo Estado devam ser superados com seu próprio

fim. Nesse sentido, a anarquia não seria sinônimo de pacificação, mas a guerra material

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fundada no Estado poderia ser superada pelo federalismo político e mutualismo

econômico, e a guerra como combate incessante e elemento articulador da sociedade

seria afirmada nessas livres associações (Rodrigues, 2010: 203).

Em oposição à lógica contratualista sobre o Estado e a justiça como “estado

social” e “paz civil”, Proudhon afirma-o como sendo o próprio “estado de guerra”.

Segundo Thiago Rodrigues, acompanhando Proudhon,

O estado de organização dos homens orientado pelo princípio da centralização do poder político e da defesa da propriedade é uma forma de ordem social produzida e reproduzida pela guerra (...). Isso que chamamos paz é a guerra sob outro aspecto: não é a luta aberta dos campos de batalha, com os exércitos postados frente a frente, mas é uma outra manifestação da guerra (Idem: 209).

As guerras grandes, realizadas entre os Estados sob a justificativa da paz, levam

apenas a uma outra situação, em que a paz se estabelece como pequena guerra (Ibidem:

210-211). A guerra é, portanto, condição do homem (Ibidem: 204); motor das relações

humanas independentemente do regime político, situados tanto nas séries “liberdade”

como “autoridade”. Diferente de Kant e seu conceito de paz perpétua como ausência

total de conflito, Proudhon afasta-se da metafísica e da ideia de “paz” ou de “guerra”,

afirmando o embate perpétuo das forças antagônicas que jamais resultam em uma

síntese definitiva. As federações propostas pelo anarquista poderiam dissolver-se ou

transformar-se continuamente, em consonância com a luta permanente entre os

indivíduos:

Essa paz belicista seria, assim, uma forma de guerra continuada não nas instituições e destinada a sujeitar os indivíduos, mas uma guerra como próprio exercício da liberdade, manifesta nas diferenças sempre inesperadas, inéditas, inventivas; nas divergências, nos estímulos mútuos, nas complementaridades econômicas e no fortalecimento comum pela atividade guerreira (Ibidem: 254).

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Para o PNUD e sua ideia de desenvolvimento humano em que subjaz o princípio

kantiano de igualdade de oportunidades como consagrado na Carta de fundação das

Nações Unidas, a paz é tida como segurança das escolhas “livres” e empoderadas

(PNUD, 2014b: 119). A Justiça Restaurativa, como tentativa-tática, opera sua

seletividade de forma não restrita a um caso, indicação ou estatuto específicos. No caso

do Segurança com Cidadania, como programa local que funcionou como modelo e

laboratório de implementação de políticas, suas práticas mediadoras e penalizadoras

recaíram sobre um ambiente por inteiro, classificado pelo IDH e suas derivações como

proliferador de vulnerabilidades e, portanto, inseguro. A paz, no âmbito deste tipo de

programa, não pretende estancar a violência, apenas gerir vulnerabilidades de forma

seletiva, ampliando penalizações ao voltar-se ao que é situado como pacificação das

relações sociais (De Vitto, 2005: 42). Nesta lógica, a ineficiência do cárcere em termos

de prevenção dos considerados crimes indica que a pena não deve ser um fim em si

mesmo, mas voltada à pacificação das relações sociais como forma de eliminar as

inesperadas e inúmeras possibilidades de embates e confrontos – nomeados, de forma

estratégica, como conflitos, pressupostos como fatos acidentalmente não controlados.

Segundo De Vitto, um dos organizadores da coletânea Justiça Restaurativa, publicada

pelo PNUD,

O modelo integrador se apresenta como o mais ambicioso plano de reação ao delito. Ele volta sua atenção não só para a sociedade ou para o infrator, mas pretende conciliar os interesses e expectativas de todas as partes envolvidas no problema criminal, por meio da pacificação da relação social conflituosa que o originou. (...) O modelo se corporifica pela confrontação das partes envolvidas no conflito, com a utilização do instrumental da mediação, por fórmulas que devem observar os direitos fundamentais do infrator (Idem: 43 – grifo meu).

Quando se destaca a importância da chamada resolução de conflitos para além

do escopo do Estado, torna-se evidente a continuidade das estratégias e relações de

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poder que atravessam os indivíduos. No caso da Justiça Restaurativa, destaca-se o

“acesso à justiça” como central para um aumento de percepção e empoderamento dos

indivíduos e da comunidade para tratar de seus conflitos, tendo em vista a pacificação

social (Azevedo, 2005: 135) como principal objetivo.

Conforme explicitado, a pacificação não significa um estágio consolidado de

ausência de guerra e relações de poder. A tentativa de pacificação das relações sociais

pode ser entendida como investimento em resiliência – oposta às resistências que, como

a pequena guerra, não cessam de acontecer. Em meio à manutenção de forças em prol

da melhoria e fortalecimento do Estado, visa-se, também, a construção de Estados

resilientes, uma vez que a Justiça Restaurativa é considerada resposta à “percepção de

que o Estado tem falhado na sua missão pacificadora” (Idem: 139), em razão de fatores

como a sobrecarga dos tribunais e despesas com o excessivo formalismo processual

(Ibidem: 139).

Nesse sentido, conforme pontua um juiz sobre a implantação de um Projeto

Piloto de Justiça Restaurativa em Brasília em citação no artigo inaugural da coletânea

Justiça Restaurativa, “em delitos envolvendo violência doméstica, relações de

vizinhança, no ambiente escolar ou na ofensa à honra, por exemplo, mais importante do

que uma punição é a adoção de medidas que impeçam a instauração de um estado de

beligerância e a consequente agravação do conflito” (Sousa apud Pinto, 2005: 20 –

grifos meus). Como conclusão, Renato Pinto – autor do referido artigo – estabelece que:

O modelo restaurativo pode ser visto como uma síntese dialética, pelo potencial que tem para responder às demandas da sociedade por eficácia do sistema, sem descuidar dos direitos e garantias constitucionais, da necessidade de ressocialização dos infratores, da reparação às vítimas e comunidade e ainda revestir-se de um necessário abolicionismo moderado (Idem: 20 – grifos meus).

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No artigo de Eduardo Rezende Melo, sobre os fundamentos ético-filosóficos da

Justiça Restaurativa, também integrando a coletânea publicada pelo PNUD, o autor

acredita realizar uma crítica radical a Kant e seu conceito de liberdade por meio da

desconstrução de valores morais, como o dever e a necessidade do castigo, para abrir

espaço à emergência de outro sistema, a partir de uma filosofia crítico-valorativa

(Rezende Melo, 2005: 56). Segundo Melo, a necessidade do castigo presente no modelo

retributivo decorre de um modelo de sociedade fundada em valores em que, para fazer

valer sua universalidade, devem extirpar qualquer erro ou desvio, fazendo com que a

coerção e o castigo sejam apresentados como condição para a coexistência humana

(Idem: 58), numa rigidez sempre presa a uma situação passada.

O autor entende a Justiça Restaurativa como contraste radical ao modelo

retributivo por, entre outros pontos elencados, dar vazão a um acertamento horizontal e

pluralista daquilo que pode ser considerado justo pelos envolvidos em uma “situação de

conflito” e por romper com a cisão entre interioridade e exterioridade que marca a

concepção kantiana, remetendo, então, à possibilidade de emancipação pelo

comprometimento pessoal em tais situações (Ibidem: 60):

Colocá-los [vítima e agressor] um em frente ao outro para avaliarem o conflito faz com que tenham necessariamente de atentar a perspectivas outras de avaliação que não as suas e, com isto, de reavaliar suas próprias condutas, de reavaliar a si mesmos. Uma densidade subjetiva própria apenas à negociação e ao estabelecimento do compromisso pode emergir (Ibidem: 62).

O autor defende a passagem de uma ordem fundada no contrato social,

principalmente de matriz kantiana, que expressa uma vontade única geral, para uma

ordem do consenso ou da negociação, em que “o princípio da universalização não está

ao nível de um direito, mas numa sociologia de interdependências objetivas” (Ibidem:

62). Assim, continua, ao pautar sua conduta não mais por uma ética de fundamentação,

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mas sim por uma “ética da reflexão da própria moral ante outras morais” é que se abre

espaço a um chamamento à responsabilidade individual (Ibidem: 65). Rezende conclui,

por fim, que neste contexto de auto-avaliação na qual se insere a Justiça Restaurativa,

abre-se espaço, não para um novo ideal de homem, mas para um novo ideal a ser

decidido pelo homem “dentro de um ambiente negociado e, portanto, democraticamente

participativo para a realização da justiça” (Ibidem: 71).

A única vez em que a palavra “abolicionismo” aparece na coletânea Justiça

Restaurativa, composta por 19 artigos, está acompanhada do adjetivo “moderado” e

compõe uma medida para o impedimento da consolidação de um “estado de

beligerância” e agravação de conflitos. Na exposição de Renato Pinto descrita acima,

sobre um novo ideal para o homem fundado no consenso, encontra-se,

simultaneamente, uma descrição exemplar sobre a moderação e sua eficiência em

termos de captura de resistências por meio de políticas de inclusão e da convocação à

participação (Passetti, 2007). Com a moderação, conforme apontamentos de Passetti e

de acordo com o que a presente pesquisa busca mostrar sobre a relação bastante estreita

entre polícia e política social, que combinam aspectos positivos vinculados a uma ética

da responsabilidade à repressividade do poder, espera-se que cada um saiba se auto-

governar de forma atenta às tendências e comportamentos dos outros.

moral da restauração

Afastando-se, como Proudhon, da lógica contratualista de consolidação da paz

como oposição a um “estado social”, Michel Foucault elabora a noção de guerra civil

como analisadora das relações de poder (Foucault, 2015: 13). Seu curso A sociedade

punitiva, proferido no Collège de France nos anos de 1972 e 1973, antecede e faz parte

do conjunto de análises de Vigiar e Punir, publicado em 1975, e é onde se propõe a

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273

investigar o sistema penal e suas táticas penais, como a reclusão. O filósofo as nomeia

de “táticas de luta” por identificar que, no período de instauração do grande sistema

penal na França, por volta de 1825, não estava em curso a guerra de todos contra todos,

como na perspectiva hobbesiana, mas uma guerra social – dos ricos contra os pobres,

dos proprietários contra os que nada possuem, dos patrões contra os proletários (Ibidem:

21). Nesse sentido, Foucault aponta para a impossibilidade de uma guerra civil sem o

confronto de elementos coletivos: “a guerra civil não é uma espécie de antítese do poder

(...). A guerra civil desenrola-se no teatro do poder. Não há guerra civil a não ser no

elemento do poder político constituído; ela se desenrola para manter ou para conquistar

o poder, para confisca-lo ou transformá-lo” (Ibidem: 28).

É importante ressaltar que a noção de guerra civil utilizada por Foucault – mais

tarde reformulada pelo próprio autor ao afirmar que “a política é a guerra continuada

por outros meios” (Foucault, 2010: 15) – não deve ser confundida com o estatuto

jurídico referente às guerras no interior dos Estados e pelo poder de Estado. No âmbito

do liberalismo, John Locke (2006), por exemplo, lhe concedeu o estatuto da legalidade

em caso específico de quebra do contrato social, em vias de repor um soberano.

Atualmente, o conceito de guerra civil é também utilizado, principalmente no âmbito

das Relações Internacionais, para justificar intervenções militares forjadas pelo discurso

da construção de Estados considerados falidos, como exposto no segundo capítulo desta

dissertação. Ao permanecer sob o ponto de vista da política como guerra civil, portanto,

Foucault observará o desenvolvimento de práticas coercitivas cotidianas cujos efeitos

agem de forma positiva sobre os indivíduos, visando transformá-los e corrigi-los do

ponto de vista moral, e em vias de produzir utilidades no processo de implementação,

pelo capitalismo, de suas próprias formas de poder político (Ibidem: 103).

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274

No que se refere ao sistema penal, tem-se, com os teóricos do século XVIII,

como Beccaria e Bentham, a formulação do crime como aquilo que prejudica a

sociedade; um gesto por meio do qual o indivíduo rompe com o pacto social e entra em

guerra contra a própria sociedade (Ibidem: 31). A partir do fim do século XVIII, tem-se

a instauração de uma série de instituições jurídicas que constituirão o personagem do

criminoso, complementarmente, no âmbito do saber, à emergência da possibilidade de

vincular uma apreensão psicopatológica ou psiquiátrica do criminoso como alguém

incapaz de se adaptar à sociedade (Ibidem: 33-34). Com os fisiocratas, por sua vez,

naquele período, tem-se o “vagabundo” e possível delinquente como hostil, também,

aos mecanismos de produção, demarcando a transformação da força de trabalho em

força produtiva como constitutiva da nossa sociedade (Ibidem: 48).

Foucault observa, sobre a introdução da prisão na mesma época, como, apesar de

correlata ao reconhecimento do criminoso como inimigo social, ela demonstra uma

heterogeneidade em relação à punição e ao que ela organizará como penitência,

assumindo um caráter de prevenção e reeducação social (Ibidem: 61-63). Ele identifica

na sociedade dos quakers americanos, em meio às comunidades protestantes anglo-

saxônicas, ainda no século XVII, a mais precoce organização dessa nova forma punitiva

de prisão, hostil à forma monástica. Ao elaborarem um código penal diferente do inglês,

em que não figurasse a pena de morte, a pena fundamental para os quakers, baseada em

sua concepção de religião, moral e poder, passou a ser a prisão (Ibidem: 81), carregada

de uma heterogeneidade em que, de um lado tem-se um princípio judiciário – o da pena

como consequência da infração e proteção da sociedade – e, de outro lado, o princípio

moral de pena como processo de penitência em decorrência de uma culpa.

Foucault explicita que a prisão parece tão antiga e arraigada à nossa cultura pelo

efeito da cristianização da prisão. Porém, a religião cristã não representa o princípio da

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275

prática judiciária, mas a penetra em seu último estágio, que se tornará seu objeto

privilegiado – a prisão penal. Esta se justifica e se reativa indefinidamente em

decorrência da confluência da moral cristã milenar com um saber que foi possível pela

própria prisão, ao possibilitar o estabelecimento de uma nova forma de conexão

jurídico-religiosa (Ibidem: 85).

Na mesma época em que os teóricos do direito criminal escreviam sobre a

ruptura entre culpa e infração, tem-se, em função dos riscos de revolta com o

desenvolvimento da produção capitalista e da formação de uma classe operária, e diante

da fraqueza do poder central e de um código penal de extremo rigor, a proliferação de

práticas de vigilância espontânea de grupos, de uma classe sobre a outra, procurando

criar uma continuidade entre controle e repressão, de um lado, e sanção penal, de outro.

Decorre uma moralização do sistema penal, que permite sua ampla difusão e seu

deslocamento em direção ao Estado como instrumento de moralização dessas classes

(Ibidem: 99-100). Foucault aponta para a constituição de dois conjuntos heterogêneos: o

conjunto penal, caracterizado pela lei – sanção e proibição –; e o conjunto punitivo,

caracterizado pelo sistema coercitivo penitenciário (Ibidem: 103).178 O problema

genealógico colocado pelo filósofo seria, então, “saber como esses dois conjuntos, de

origem diferente, acabaram por somar-se e funcionar no interior de uma única tática”

(Ibidem: 104).

178 Em História da Sexualidade – A vontade de saber, Foucault apresenta a proliferação das tecnologias que incidiram no corpo, com a emergência da biopolítica. Um poder cuja função mais elevada será investir sobre a vida terá necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos, tendo como efeito a crescente importância da norma, em detrimento do sistema jurídico da lei. Segundo o filósofo, porém, isto não quer dizer “eu a lei se apague ou que as instituições de justiça tendam a desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição jurídica se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos etc.) cujas funções são sobretudo reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida (Foucault, 2011: 157).

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276

Na presente análise interessa perceber como se dá esta articulação entre a

penalidade e a moralidade em meio às tentativas de pacificação das relações sociais,

como pretende a Justiça Restaurativa e sua busca por penas alternativas, e não

“alternativas à pena” (Zehr, 2005: 89).

Em Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a Justiça, Howard Zehr,

reconhecido mundialmente como um dos pioneiros da Justiça Restaurativa, percebe no

interior da bíblia uma alternativa para a justiça retributiva; um caminho para a justiça

comunitária, percorrendo dois conceitos bíblicos: shalom e aliança.

A palavra shalom, segundo o sociólogo, diz respeito às relações sociais e para a

sua aplicação no campo ético, envolvendo honestidade e integridade, ao mesmo tempo

em que molda as esperanças e promessas para o futuro (Idem: 124-125). Já o conceito

bíblico de “aliança” presume responsabilidades e compromissos recíprocos entre os

indivíduos e entre Deus e a humanidade, que possibilitam às pessoas a compreensão e o

cumprimento de suas obrigações por shalom (Ibidem: 127). Ambas as palavras teriam

sido forças transformadoras na sociedade bíblica, que desenvolveram os conceitos de

direito e de justiça em contraste à justiça estatal.

Zehr argumenta que uma mistura de ideias bíblicas com conceitos greco-

romanos teria provocado visões equivocadas a respeito da justiça bíblica – que defende

ser uma justiça restaurativa e não retributiva (Ibidem: 146). A expressão “olho por olho,

dente por dente”, por exemplo, teria sido um preceito destinado a limitar e não encorajar

vinganças, pelo princípio da proporcionalidade, uma vez que a chave da justiça bíblica,

em conformidade com a Justiça Restaurativa, estaria na justificação motivadora como

essência da justiça de aliança (Ibidem: 142). A administração da justiça nos tempos

bíblicos encarnava os pressupostos da justiça da aliança. A palavra julgamento, nesse

sentido, poderia ser traduzida por acordo ou decisão (Ibidem: 133). Recompensar e

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277

retribuir, na mesma lógica, teriam ambas raízes na palavra shalom, como restauração

desta. Já a punição não era tida como fim da justiça, mas visava restaurar num contexto

de amor e na comunidade (Ibidem: 135).

A exposição de Zehr demonstra aspectos morais constitutivos das práticas de

Justiça Restaurativa como fortalecedora de políticas de Estado por meio de práticas

tidas como alternativas. É importante perceber os redimensionamentos de tais princípios

na produção atual em torno de conceitos como autogoverno e empoderamento, na

ampliação de relações de poder entre os indivíduos, em consonância com o Estado.

As experiências da Justiça Restaurativa visam o empoderamento e a

responsabilidade, e à falta de ambos atribui-se uma lacuna preenchida por atos

considerados criminosos. Já a presença de tais condutas é tida como positiva em

resposta à chamada vítima, ao ofensor e à comunidade, não apenas quando ocorre uma

situação considerada criminosa, mas remetem à um processo contínuo na construção de

ambientes seguros, requerendo, por isso, avaliação e monitoramento contínuos dos

considerados focos de vulnerabilidades.

O grande princípio da mediação entre “vítima-ofensor” na Justiça Restaurativa

encontra-se precisamente no empoderamento de ambos uma forma de prevenção a

conflitos futuros, uma vez que consiste no “reconhecimento mútuo de interesses e

sentimentos visando a uma aproximação real e consequente humanização do conflito

decorrente da empatia” (Azevedo, 2005: 146). O empoderamento, como processo

contínuo, refere-se principalmente à percepção de autogoverno do indivíduo diante da

sociedade. O foco no envolvimento de indivíduos considerados vulneráveis está

baseado no preceito de que “participação dá poder” (Oxhorn; Slakmon, 2005: 203).

Portanto, a eficiência de práticas como a Justiça Restaurativa está precisamente no

esforço em fazer com que os próprios envolvidos identifiquem suas falhas, reflitam

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278

sobre suas más escolhas e realizem as próprias reparações de suas falhas – suas

vulnerabilidades – evitando problemas futuros por meio da pacificação de suas

relações.

abolir, e não restaurar

Louk Hulsman (2012) alertava para que a instituição prisão é uma construção

recente, e que sua disseminação e legitimação, combinadas com as construções sobre o

criminoso, no âmbito da criminologia biologicista que hoje parecem absurdas,

estiveram relacionadas com o desenvolvimento do catolicismo e sua moralidade calcada

na ideia de céu, purgatório, inferno e um Deus universal. Porém, por ver o

abolicionismo penal como um tipo de pensamento ativo, como um movimento

propiciador de liberdades, e ao pensar na abolição como, em primeiro lugar, a abolição

da justiça criminal em nós mesmos – nossas percepções, atitudes, linguagem –,

afirmava-se contra os castigos e a punição não apenas restrita à justiça criminal, mas

como forma específica de interação humana observada em muitas práticas sociais. Por

isso, o abolicionismo não insiste na reforma da lei, mas afirma a instauração de práticas

no presente com visões diferentes que não pressupõem a legitimação de uma noção

ontológica do crime.

Nesse sentido, Hulsman buscava atrair as pessoas a olharem para o campo do

direito civil como mais aberto à diversidade, mais próximo da realidade das pessoas e

voltado ao presente, e também por tratar de forma diferente a linguagem – em vez de

“delito”, trata de “incidentes”, “fatos” (Idem).

Rompendo com a lógica punitiva da justiça criminal, Louk Hulsman afirmava

que “a criminalização não é uma resposta específica aos eventos, mas sim um modo

específico de olhar para os eventos e, assim, de construir os próprios eventos”

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(Hulsman, 2004: 52). Ele expôs como há uma especificidade da justiça criminal no ato

de construir um evento por meio de filtros que estereotipam o indivíduo, seu meio e seu

ato, além de focar num acontecimento e negligenciar qualquer tipo de relação anterior

entre os envolvidos. Congela-se um acontecimento de modo que jamais seja possível

compreendê-lo de outra forma, ignorando não apenas outras perspectivas como a

passagem do próprio tempo das experiências anteriores e de vida das pessoas (Hulsman,

2009: 27).

No interior do modelo conciliatório que propunha, como rompimento com o

sistema burocrático do sistema penal, Hulsman insistia que os conciliadores não

deveriam ser preparados para resolver conflitos, mas para não propor soluções, e, assim,

auxiliar as pessoas a resolver, por si mesmas, seus problemas, de forma a adquirir

alguma experiência da situação em que viveram e encerrá-la em seu próprio contexto

(Hulsman, 1993: 134-135).

A Justiça Restaurativa e seus assistentes sociais, psicólogos, policiais,

advogados, sociólogos, que são também representantes, especialistas, técnicos,

conciliadores, facilitadores, mediadores, não abrem mão do Estado e seu aval,

integrando-se a uma cultura penal que recria continuamente seus papeis e

representações de vítima e do ofensor para se estabelecer. Se a prisão justifica-se em

prol da defesa da sociedade, as penas alternativas e/ou restaurativas não se apartam da

justiça como valor universal, mas a legitima pela comunidade como árbitro de decisões

locais em consonância com uma governamentalidade que carece da participação de

todos para se retroalimentar e garantir a segurança em âmbito planetário.

Conforme exposto, acompanhando as análises de Edson Passetti, na atual

sociedade de controle a prevenção opera por meio da pacificação de possíveis

resistências que requerem a participação de todos (Passetti, 2006: 101). Por isso, a

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produção e a ampliação de penalizações pela esperada conduta de cada um, que se

pretendem mais eficientes e com focos cada vez mais precisos, fazem com que a prisão

deixe de ser o lugar preferencial para aquele que deve ser restaurado e restaurar-se. Por

isso, também, o abolicionismo penal emerge na sociedade de controle como

amplificador de resistências, atuando em fluxos incorporadores, mas não

uniformizadores (Idem: 101). Sem rigidez e pretensa formulação de ideais, o

abolicionismo penal aproxima-se dos anarquismos e seu rompimento com os castigos

primeiramente em cada um, em suas relações, nas relações com as crianças, nas relações

em associações, em seus percursos179.

resiliência e racionalidade neoliberal

As condutas participativas e de empoderamento que visam o auto-governo estão

atreladas e são impulsionadas, em grande medida a uma moral cristã que pôde unir seus

preceitos de salvação e direção às práticas penalizadoras que buscam a restauração.

Estas condutas, por sua vez, estão também presentes em uma racionalidade neoliberal

tornada bastante arraigada e naturalizada, que prevê a capacidade de cada um como

capital-humano de realizar escolhas responsáveis, vinculando a construção da paz como

aliada às possibilidades de empreendedorismos.

Um modelo de sucesso de Justiça Restaurativa, também conhecido como modelo

de Pacificação, foi o implantado na comunidade de Zwelethembra, próxima à cidade do

Cabo, na África, patrocinado pelo Ministro da Justiça, e que pôde ser replicado em

179 Ver noção de resposta-percurso de Salete Oliveira em OLIVEIRA, Salete. Política e peste (crueldade, Plano Beveridge e abolicionismo penal). Tese de Doutorado. São Paulo, PUC-SP, 2001. Segundo a autora, a elaboração da noção de resposta-percurso proveio de seminários internos do Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária do PEPGCS/PUC-SP), radicalizando a própria discussão sobre abolicionismo penal quando a propôs fora do conceito de modelo, não referente apenas ao modelo terapêutico, que estava sendo problematizado no momento, mas a todos os outros. Cf. Idem, pp. 221.

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281

outras 20 comunidades africanas e também argentinas (Froestad; Shearing, 2005: 98-

99). A atuação de Comitês da Paz e a construção de um Código de Boa Prática que

implementa os valores restaurativos evidencia a conexão entre a paz e a segurança para

realizar empreendimentos (Idem: 104). Os Comitês recebem um pagamento monetário

por cada reunião realizada de acordo com o Código; uma parte é paga aos membros dos

Comitês e outra parte é direcionada aos projetos locais de desenvolvimento, com

preferência para apoiar os empresários locais como parte do aporte que contribui para a

redução da pobreza, para a criação de empregos e desenvolvimento da comunidade.

Assim, “devido a isso, os Comitês podem ser concebidos como pequenas empresas

societárias que respondem às demandas locais de administração de conflitos e investem

em suas comunidades como “micro-bancos” de investimento” (Ibidem: 106).

Segundo Froestad e Shearing, este modelo buscou misturar características de

mecanismos administrativos baseados no mercado com uma abordagem keynesiana no

uso dos recursos dos impostos dos governos locais ao “aumentar a auto-direção e o

‘engrossamento’ do capital social e da ‘eficiência coletiva em comunidades pobres’”

(Ibidem: 106). Os autores tomam tal abordagem keynesiana como oposta ao

neoliberalismo como abordagem que imporia “poder” de fora às comunidades. Interessa

perceber, porém, ambas as abordagens aglutinadas no neoliberalismo enquanto

racionalidade vinculada a empreendedorismos, porém, menos enquanto aspecto

puramente econômico, e mais enquanto formação de uma conduta individual

responsável focada na produção de capital humano.

Para os autores,

O modelo de Zwelethemba não subscreve a uma estratégia neo-liberal de gestão, pela qual o Estado ‘fica no leme’ e a comunidade ‘rema’. Pelo contrário, o modelo assume uma devolução tanto do ‘leme’ como dos ‘remos’ como uma forma de fortalecer a capacidade para a auto-direção local dentro de comunidades pobres (Ibidem: 108-109).

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Porém, o que fica evidente é que práticas focadas no desenvolvimento local por

meio de empreendimentos, que priorizam o indivíduo como capaz de gerar valor pela

“auto-direção” ou “auto-governo”, tem como efeito a constituição do sujeito como

capital humano. A “devolução” do “leme” significaria, portanto, compartilhar “o leme”

por meio da gestão dos “remos”.

***

“—A parada é: não deixa a bola cair no chão! São todas! São todas! (...) Vamo parar pra

refletir uma paradinha só. Imagina o seguinte: cada bola dessa, que estava na mão de

vocês lá no ar.

—Todas?

—Todas. Visualizem como os problemas. Quando estava sozinho segurando aquele

turbilhão de bolas, de problemas, tava fácil ou tava difícil?

—Tava difícil.

—Pra caramba... E quando tava todo mundo junto, segurando os problemas, e tentando

tocar a bola, tava fácil ou tava difícil?

—Tava fácil.

—Fácil não é, né, gente? Porque problema, aqui pra nós... Problema se fosse fácil não

era problema, né? Mas dava pra jogar um pouquinho melhor, não é? Jogar um

pouquinho melhor...”

(Daniele Leoneol – Policial Civil e Facilitadora do Programa Conjunto in PNUD, 2013

– DVD Papo Reto).

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283

Foto: Policial comunitária dirigindo atividade em que as crianças jogam uma “teia” de barbante em cima dos policiais e assistentes sociais, agachados: “A gente tá aqui, de cabecinha baixa, pra dizer com muita humildade, que a gente tá aqui com vocês, falou?! Podem jogar essa teia em cima da gente, podem soltar! Valeu! (Palmas de todos)” (Idem).

***

O neoliberalismo não é ideologia e não se restringe a uma política de mercado.

O neoliberalismo é uma racionalidade, é uma forma de pensar, é uma forma de gerir,

uma forma de compartilhar, uma forma de se dirigir, de se conduzir, é uma forma de

responder que, para além de não prescindir, requer e possibilita a ampliação de

penalizações por meio da inclusão e participação – deste imenso investimento que se

mostra aliado à cultura do castigo, por incidir, necessariamente desde cedo, nos jovens e

crianças, que devem ser resilientes desde o útero materno.

Segundo o PNUD e seu discurso sobre desenvolvimento humano, este não se

restringe ao alargamento de escolhas, mas também diz respeito à possibilidade dessas

escolhas serem seguras e passíveis de subsistirem livremente no futuro (PNUD, 2014b:

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284

56). Nesta lógica, o investimento em resiliência na infância é fundamental para impedir

vulnerabilidades futuras, que impeçam, por exemplo, a capacidade de manutenção do

emprego, que reflitam em incertezas associadas ao envelhecimento ou que transmitam

vulnerabilidades à próxima geração.

A primeira infância, segundo o PNUD, é “uma janela de oportunidades” para o

sucesso de um desenvolvimento socioeconômico sustentável e inclusivo (Ibidem: 57).

Segundo James Heckman para o PNUD, ganhador do Prêmio Nobel em Economia em

2000 por seu trabalho no campo da microeconomia e econometria,

Os primeiros anos são importantes na criação de capacidades humanas. Os decisores políticos devem agir no entendimento de que as competências geram competências, que as vidas prósperas assentam em bases sólidas estabelecidas desde o início (...), desde o útero materno e continuando até a velhice. (...) A nova ciência da primeira infância mostra que o que é socialmente justo pode ser economicamente eficiente (...). Um desenvolvimento de qualidade na primeira infância pode dar um importante contributo para uma estratégia de desenvolvimento econômico nacional coroada de êxito (Heckman in PNUD, 2014b: 58).

Para obter tal êxito, Heckman sugere para a convergência entre economia,

psicologia e neurociência do desenvolvimento humano. O PNUD e seus especialistas

argumentam que a “arquitetura das aptidões”, como formação das competências, é

fortemente influenciada por circuitos neurais que se desenvolvem em consequência de

interações entre genes e ambientes no início da vida. Assim, as intervenções no

ambiente da primeira infância ajudam a garantir a progressão da criança e, mais tarde,

seu sucesso no mercado de trabalho:

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285

Fonte: PNUD, 2014b: 59.

A falta de investimentos na infância, segundo o PNUD, tende a produzir

vulnerabilidades e más escolhas, associando-as à criminalidade: “os comportamentos

agressivos, antissociais e de violação das regras podem levar ao crime e a um mau

desempenho no mercado de trabalho” (Idem: 60).

Nesse sentido, a resiliência mostra-se uma abordagem extremamente competente

e eficiente de renovação da cultura do castigo, ancorada na racionalidade neoliberal, por

possibilitar a gestão de si mesmo, a gestão da miséria, a gestão da violência, a gestão

das vulnerabilidades, em nome do desenvolvimento. São inúmeras as produções

acadêmicas e pesquisas com foco primeiro nas crianças e tudo que a envolve: sua

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escola, suas amizades, seus interesses, suas emoções, suas possíveis competências.

Todos esses itens devem ser seguros.

Se as primeiras relações de afeto seguras puderem ser fomentadas, elas devem ser o lócus primário do trabalho sobre a competência social. No entanto, a falta de competência social também pode impedir o desenvolvimento de novas relações, por isso, se a criança aparenta lacunas neste sentido, pode ser útil para relações futuras garantir que um trabalho reparador seja realizado (Brigid e Wassel, 2002: 114).

O grande laboratório de pesquisas a serem aplicadas, testadas, monitoradas e

avaliadas com enfoque na performance resiliente não se concentra em países, Estados,

regiões pobres e consideradas vulneráveis. As crianças, desde o útero materno, são o

grande alvo, o grande foco, a grande certeza dos investimentos neoliberais, não apenas

em termos financeiros. São aplicadas em grupos de crianças testes que avaliam a relação

das vulnerabilidades com a cognição, comportamento, empatia, com a pobreza, com o

rendimento dos pais e a relação com eles, com saúde, nutrição, etc., permitindo um

imenso cruzamento de dados de forma a tentar apreender aspectos da vida em seu

início, em sua ausência de governo.180

Acompanhando a emergência de uma racionalidade neoliberal, principalmente a

partir do pós-Segunda Guerra Mundial, o campo da psicologia do desenvolvimento da

criança ampliou o campo centrado em intervenções externas na criança, medindo

estímulos, punição, recompensa, para abarcar o próprio comportamento da criança,

julgando e avaliando suas interpretações e tendências, à agressividade, à rebeldia, etc.

Ressalta-se a importância de crianças terem capacidade de agência sobre si o mais cedo

possível, por um processo de “confiança nas relações sociais” (Nijnatten, 2010)

suscitado por aqueles que estão a sua volta, como seus pais e professores. Defende-se

180 Ver: Hansen; Joshi e Dex (eds.), 2005; Bornstein, e Putnick, 2012.

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que as crianças, como inerentemente vulneráveis, sejam reconhecidas como cidadãos,

estimulando a responsabilidade e a participação democrática desde cedo.

No caso da região da Grande São Pedro aqui apresentado, o foco nas crianças

deu-se de forma a tentar reverter suas vulnerabilidades futuras. Os mediadores e

facilitadores na aproximação entre os jovens e policiais, incentivando a identificação

com a comunidade, com o ambiente em que vivem, também resulta de pesquisas,

tentativas, inúmeras conceitualizações.

Conforme exposto no segundo capítulo desta dissertação, economistas como

Mahbub ul Haq e Amartya Sen foram centrais na fundamentação de conceitos como

segurança humana e o próprio desenvolvimento humano, também revisto para

desenvolvimento humano sustentável, bem como para a construção de suas derivações e

enfoques, como a segurança cidadã e as inúmeras variáveis acopláveis ao Índice de

Desenvolvimento Humano (IDH) – um dos grandes instrumentos de seleção e

identificação dos problemas relativos a cada espaço.

Os administradores do PNUD, a começar pelo empresário e veterano de guerra,

Paul G. Hoffman, e todos os seus sucessores, advindos, majoritariamente, do mercado

financeiro, grandes universidades e da guerra, moveram grandes esforços e

investimentos, cada qual em pontos diferentes – desde o espraiamento da atuação do

PNUD pelo planeta ao foco em questões ambientais e climáticas –, que possibilitaram a

flexibilidade e ajustabilidade constitutivas do PNUD, tão bem acomodado à

racionalidade neoliberal. Foi e é possível a sua entrada e atuação nas regiões com os

mais diferentes dados, perfis, culturas, bem como facilmente se dá a reprodução de sua

lógica, a disseminação de seus conceitos, porém muito menos por meio de uma

fundamentação teórica e mais pela naturalização com que um policial ou um assistente

social do interior do Espírito Santo é capaz de absorver, reproduzir e assim justificar a

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existência e perpetuação do próprio PNUD e suas políticas sociais mais ínfimas,

alinhadas às grandes e econometricamente pontuadas diretrizes globais da ONU.

O grande foco da atual administradora do PNUD, Helen Clark, é a construção da

resiliência, e não restrita aos desastres ambientais, mas abarcando toda a versatilidade

constitutiva do próprio conceito. Após amplas pesquisas de opinião à sociedade civil em

todo o planeta, com especial atenção aos mais pobres e os mais vulneráveis, conforme

declaração, foram definidos, na 70ª sessão da Assembleia Geral da ONU, os novos

Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS – 2016-2030), em substituição aos

Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM – 2000-2015), compondo “um plano

de ação para as pessoas, o planeta e a prosperidade”181, aberto à ajustes, revisões,

complementariedades, centrado em 17 objetivos que aglutinam 169 metas, cada qual

correspondendo à indicadores qualitativos e quantitativos que avaliam seu

cumprimento.

Reafirmando a Carta das Nações Unidas de 1945, a Declaração Universal dos

Direitos Humanos de 1948, entre outras declarações como a Declaração final da

Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) e os ultrapassados

ODMs, volta-se para a busca do desenvolvimento sustentável em todo o planeta,

integrando todos os países e aplicável a todos – “em desenvolvimento” e

“desenvolvidos”182 –, sem deixar de reconhecer que cada país é o principal responsável

pelo seu próprio desenvolvimento econômico e social183.

181 ONU. Agenda 2030. Disponível em: http://www.agenda2030.com.br/aagenda2030.php. Acesso em: 08/05/2016. 182 ONU. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. 2016. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf. Acesso em: 08/05/2016. 183 Idem, p. 13.

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A resiliência aparece no título de dois Objetivos, mas se faz presente em toda a

Agenda: atrelada à redução de vulnerabilidades a choques externos – de desastres

econômicos à ambientais –, à produtividade agrícola e à capacidade de adaptação às

mudanças do clima, à infraestrutura de acesso à bens e serviços, à segurança das cidades

e assentamentos humanos, às comunidades, aos inerentemente vulneráveis: mulheres,

pobres e, principalmente, crianças: o futuro imprevisto.

Os países não estão sofrendo erosão de sua soberania. Aos Estados falidos não

falta escopo, no sentido daquilo que tem mira, alvo. Não está em jogo o fim da

violência, da pobreza – abaixo ou acima da linha da miséria –, das punições, do castigo.

Interessam gestões, consensos, negociações, agenciamento, policiamento – de si, dos

outros e do ambiente –, restaurações. Não falta Estado. E talvez, a força, ou o escopo da

ONU e seus organismos esteja, precisamente, na flexibilidade e abrangência da

resiliência que lhe é intrínseca, funcionando de forma eficiente na disseminação de

condutas apaziguadas que justificam a própria existência de suas políticas penalizadoras

e garantem a elasticidade e alcance destas: das mais miseráveis e delimitadas regiões

aos objetivos globais; e desde o corpo de uma criança como laboratório fértil e

carregado de oportunidades a todo o planeta como um corpo que deve ser, inteiramente,

resiliente.

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a medida do humano e o desenvolvimento das punições e restaurações

O que é o humano? Como se constrói a “pessoas humana” e como se busca,

enquanto utopia, a sua dignidade? Ao final do século XVIII, William Godwin disse que

“a questão da punição talvez seja a mais fundamental da ciência política” (2004: 11). E

é em nome do humano que ainda se pune. Foi a partir da ideia de humano que, na

abertura do século XXI, constituíram-se e reconstituíram-se discursos como práticas,

medições, preceitos morais, índices econométricos, práticas restaurativas, novas e

velhas tecnologias de governo.

Dentre as inúmeras tentativas que permearam o campo do desenvolvimento e,

sobretudo as políticas formuladas no âmbito do PNUD, esta pesquisa se interessou pelas

positividades do poder nestas imbricações, não se atendo meramente às expectativas e

falhas dos empreendimentos.

A criação da Liga das Nações em Versalhes, França, após a Primeira Guerra

Mundial, remonta aos esforços das potências vencedoras em negociar um acordo de paz

mundial. No início dos anos 1940, porém, a Liga estava extinta em decorrência do seu

notável fracasso e a emergência de uma segunda guerra mundial marcada pelos horrores

do nazismo e devastação da Europa. O fim da Segunda Guerra Mundial deu início aos

acordos, repasses, divisões e fronteiras políticas e econômicas, seguidos pelos planos de

reconstrução pós-guerra, revisões do liberalismo, bem como pela tentativa de

conservação e manutenção da paz, preconizada principalmente pela Carta de fundação

da Organização das Nações Unidas de 1945, a Carta de São Francisco, e a Declaração

Universal dos Direitos Humanos de 1948. Aos chamados “atos de barbárie”, terror e

miséria, proclamava-se o “reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da

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família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis” como fundamentais para a

“liberdade, a justiça e a paz no mundo”.

A paz como um empreendimento a ser perseguido abriu espaço para um amplo

leque de organizações internacionais espalhadas por todo o planeta com vistas a

promover o desenvolvimento das nações e adaptá-las aos novos fluxos globais do

liberalismo democrático. O próprio conceito de desenvolvimento, como estágio contínuo

na busca e apreensão de um Estado forte e democrático, foi se adaptando aos novos

investimentos voltados ao atendimento e à participação.

Neste contexto, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento,

emergente da fusão de outros dois organismos da ONU – o Programa Expandido de

Assistência Técnica e o Fundo Especial – aglutinou pessoas advindas e formadas pelos

mais variados campos e áreas. Do planejamento da guerra ao planejamento da paz,

muitos especialistas, renomados intelectuais, economistas, políticos, contribuíram para

agregar valor e aplicabilidade aos conceitos resilientes que permeiam a ideia de

desenvolvimento, e construir a necessidade da própria existência do PNUD como

agência de mediação de “conflitos” e de cooperação para a construção e manutenção da

paz.

Os direitos humanos foram complementados pela chamada segurança humana

na garantia do desenvolvimento humano – mais do que um objetivo, uma abordagem. À

este último foi agregada a palavra sustentável, quando o meio ambiente é tomado de

forma abrangente, incluindo questões para além das ecológicas no que concerne às

relações e responsabilidades humanas com o planeta, conforme evidenciava a

Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento de 1992 e as

preocupações em torno dos novos perigos após a chamada Guerra Fria.

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Ainda durante aquele período, em 1986, o acidente na usina de Chernobyl,

Ucrânia, decorreu da intenção de observar novas performances do comportamento do

reator nuclear, e acarretou em uma série de falhas que resultaram na formação e

explosão de hidrogênio, liberando material radioativo rico em Urânio. Na carta de

esclarecimento sobre esta explosão atômica, enviada pelo Representante Permanente da

União Soviética, Y. V. Dubinin, para a ONU, este relata que o ocorrido estava gerando

uma experiência dolorosa e havia causado apreensão em todo o mundo: “foi a primeira

vez que nos deparamos com a impressionante força da energia nuclear sem controle”

(UN, 1986: 2). Dubinin agradece a ajuda recebida dos cidadãos e países socialistas e faz

um apelo à ONU para que algumas de suas agências especializadas se aproximem em

meio aos esforços em assegurar o desenvolvimento de operações nucleares pacíficas.

Pede-se a cobertura da Agência Internacional de Energia Atômica da ONU em um

acordo com os EUA sobre a proibição dos testes nucleares, e, em nome da saúde e

segurança humanas, assume-se o compromisso de interromper suas atividades até o dia

6 de agosto daquele ano, quando fariam 40 anos da primeira bomba atômica lançada

pelos EUA em Hiroshima.

As negociações em nome da vida da humanidade no planeta e da cooperação

entre as nações que precederam o fim da chamada Guerra Fria, bem como a derrocada

da União Soviética como inimigo do autointitulado “mundo livre”, cederam espaço às

reconfigurações da segurança em âmbito planetário. O conceito de segurança humana

apresentado pelo PNUD em 1994 propôs ampliar a proteção dos Estados por meio de

uma segurança mais efetiva da vida no planeta, a ser realizada para as pessoas e pelas

pessoas. As recentes independências e fim das ditaduras dos países considerados “em

desenvolvimento”, neste discurso, apontavam para um deslocamento das ameaças entre

as nações para uma era de conflitos recorrentes no interior dos Estados. Inícios e novas

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institucionalizações da indistinção entre dentro e fora, nacional e internacional, formas

variadas e modulares da reiteração da centralidade dos Estados na política e na

condução das pessoas. Além da ampliação e sofisticação das tecnologias de produção e

investimento na paz por meio da construção de uma cidadania planetária como

obediência de cada um em seus ambientes participando da continuidade das misérias e

massacres.

Os Estados considerados falidos deveriam ser reconstruídos e ter força e escopo

suficiente para assegurar as oportunidades necessárias para o desenvolvimento humano

sustentável. Os grandes perigos para a humanidade, porém, deveriam ser minados

também no próprio homem, no que há de inumano e singular no homem. Sua fraqueza,

sua falta de discernimento, falta de racionalidade, as inúmeras vulnerabilidades

possíveis, em contraposição ao amplo leque que a segurança humana estaria disposta a

abarcar – segurança alimentar, segurança energética, segurança climática, segurança

cidadã, etc. –, deveriam ser superadas pela construção de humanos e ambientes

resilientes. Novamente, a ampliação modular de novas tecnologias políticas para

produção de obediência.

Uma inteligibilidade econômica dos Estados produziu-se a partir dos indivíduos

e em suas relações que deveriam ser mediadas e calculadas para a prevenção, gestão e

mediação de conflitos como configuração resiliente produtora e disseminadora de

restaurações variáveis. Uma nova forma de preparar humanos, capacitá-los, incluí-los,

estimulá-los, passa atualmente por uma racionalidade neoliberal que extrapola quesitos

financeiros, mas produz-se como política. Uma forma de pensar direcionada à paz

mundial, a paz do mercado, a paz das nações, não deixa de reinserir continuamente a

guerra por meio da própria política, do fracasso, da seletividade, das punições e

penalizações, pelos massacres.

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A pretensa neutralidade asséptica do PNUD reside precisamente no foco de

todos os seus investimentos que giram em torno do humano. Da construção de um

humano e de uma tecnologia que permeia a vida deste humano voltada para o bem da

humanidade. Todo este esforço pelo humano presente na reformulação e ampliação de

conceitos, refinamento de cálculos e índices na precisão e identificação de focos de

vulnerabilidades, culmina no contínuo “em desenvolvimento”. Gente rebaixada à

pessoa que precisa ser agente de si como humano responsável pelas melhorias de seu

ambiente. A inclusão, na racionalidade neoliberal, evidencia uma relação estreita com as

penalizações.

No Brasil, a Justiça Restaurativa mostrou sua eficiência e resiliência ao

configurar-se como forma alternativa, porém fortalecedora e ampliadora do sistema

penal, ao mesmo tempo em que se insere como política social na promoção do

desenvolvimento humano em escolas, bairros, comunidades. Tem como alvo indivíduos

identificados como criminosos, principalmente jovens, e funciona de forma

complementar (e a ampliar) a medida socioeducativa ao centrar-se na construção de

redes de responsabilidade compartilhada entre o jovem, sua família e sua comunidade.

Em sua flexibilidade intrínseca, a Justiça Restaurativa pode também

caracterizar-se como metodologia, ou abordagem de política social e de inclusão

presenteada a ambientes distendidos quando identificados com grau de vulnerabilidade

alarmante. A Justiça Restaurativa possui a mesma seletividade do sistema penal,

incidindo preferencialmente sobre trocar por: gente pobre ou gente considerada

perigosa, produzidas como vulneráveis. Além disso, tanto enquanto política penal ou

como política social, seus alvos são os mesmos: pessoas consideradas vulneráveis à e

produtoras de vulnerabilidades. Pessoas “em desenvolvimento”, em formação para se

tornarem humanos, desinteressados, sem nada que lhe seja próprio.

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Na esteira desta construção, um ambiente também pode ser considerado de baixo

IDH pela presença de indígenas, como no caso da péssima colocação do Estado do

Mato Grosso no ranking de 2013 do IDH municipal. O prognóstico é “falta de políticas

públicas para a sustentabilidade dos povos indígenas”. Falta de oportunidades; falta de

participação. A anulação da diferença mais ou menos autoritária, mais ou menos

violenta, também opera pela inclusão. E como afirmou Pierre Clastres (2011: 80) “a

espiritualidade do etnocídio é a ética do humanismo”.

No entanto, neste amplo leque de prognósticos, o mais fértil laboratório de

identificação de vulnerabilidades e métodos para a produção de resiliência é

precisamente àquele e a quem não faltam políticas, oportunidades, orientações,

direcionamentos, apontamentos, imposições, fixações, conduções: as crianças. Desde o

útero materno, como mencionado, são realizados testes em grupos de crianças,

preferencialmente de famílias miseráveis, a fim de avaliar a performance resiliente em

sua educação, seus neurônios, sua capacidade de obediência. As “cirandas

restaurativas”, específicas para crianças serem formadas em humanos, dão continuidade

à cultura do castigo.

***

Em É isto um homem?, Primo Levi, preso pela milícia fascista em 1943 e

enviado para o campo de concentração de Auschwitz, Polônia, relata sobre a vergonha

que sentiu de ser homem e também a angústia da impossibilidade de sê-lo. Tanto pelo

que foi o próprio nazismo, realizado por meio de uma rígida racionalidade humana,

como pela redução da luta pela vida, redução dos instintos, e a pressão, necessidade, que

fizeram-no, como homem, trabalhar e sobreviver ao campo. Levi insistiu no que seria

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verdadeiramente humano e em como garantir sua dignidade, e sucumbiu diante da

culpa.

O nazismo foi o limite da biopolítica e do racismo de Estado em meio a uma

política que tem como foco a vida. A tentativa de bloqueio dessa capacidade

impressionante de extermínio com a ampliação dos direitos e o reconhecimento de

cidadãos em âmbito planetário permitiram, por sua vez, o desbloqueio de novas táticas e

estratégias na composição de uma governamentalidade do planeta e da humanidade no

planeta. Houve um grande esforço para a construção deste novo Homem, efeito dos

discursos, efeito das relações de poder. Tantos investimentos no humano – dos grandes

conceitos e formulações aos técnicos e assistentes que os aplicam e disseminam – nunca

impediram, porém, os castigos, as torturas, os extermínios calculados e regulares de

gente, inclusive em países como o Brasil, modelo de sustentabilidade dos países “em

desenvolvimento”. A busca pelo ideal de humano segue produzindo mortes e miséria

incalculável, impossível de ser estancada ou mesmo mensurada por índices

econométricos.

Se o racismo inserido nos mecanismos de Estado era o que permitia tirar a vida

na biopolítica, interessa pensar agora em como ele está projetado atualmente com a

ecopolítica. Ao centrar a análise no PNUD como principal agência da ONU para o

desenvolvimento e voltado à erradicação da pobreza, este Programa planetário que

conseguiu adentrar nos mais diferentes países e culturas, nas áreas mais remotas do

planeta, persiste a questão de como realmente se dá sua eficiência. No Programa

Conjunto Segurança com Cidadania, coordenado pelo PNUD em São Pedro (ES), as

agências da ONU e seus diplomatas estiveram presentes na aplicação e estabelecimento

do Programa, retornando pouquíssimas vezes para sua avaliação, e todo o trabalho foi

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feito pela própria comunidade convocada e envolvida, afinal é isto que se espera das

gestões compartilhadas.

Nas orientações do PNUD, seus conceitos e suas abordagens planetárias, que

almejam ser precisos em relação ao local que incidem e eficientes em sua

replicabilidade, há de um tudo. Menos gente. Gente da carne, osso e sangue. Investe-se

na construção de humanos para dar continuidade a sua própria existência. Isso não

significa que agências como o PNUD não possuam força ou escopo. Mas sinaliza para o

impressionante espraiamento de suas práticas, que alcançam desde as orientações para

um “consumo sustentável” e gestão dos recursos naturais, até a introdução de práticas

ligadas ao sistema penal que incidem diretamente na abordagem das medidas

socioeducativas. Sua eficiência não se evidencia pelas metas em contínuo alcance ou

pela porcentagem de pessoas que conseguiram sair “debaixo da linha da pobreza”, mas

é efeito de seus empreendimentos em si mesmo e na utilidade de suas penalizações para

a construção do humano, este ser sublime, inalcançável... este genérico que não existe –

assim como não há natureza ontológica do crime –, tão oportuno à política, à moral e ao

castigo.

E em nome deste humano, a política segue como a distribuição racional do

castigo e da violência, hoje calcada na gestão planetária da miséria da existência.

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298

lista de imagens

Imagem 1 (p. 81): Logo do Programa TOKTEN, retirado do site oficial do PNUD.

Imagem 2 (p. 99): Fluxograma dos colaboradores e elaboradores do PUND e suas

políticas. Elaborado pela autora.

Imagens 3, 4 e 5 (pp. 160-162): Mapas dos contrastes do IDH dos Municípios

brasileiros em 1991, 2000 e 2010. Elaborado pelo IPEA e a Fundação João Pinheiro em

2013, retirado do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil.

Imagem 6 (p. 248): Ciclo de Conceitos do PNUD. Elaborado pela autora.

Imagem 7 (p. 262): Frame do DVD Projeto Papo Reto. Material de divulgação do

PNUD do Programa Conjunto Segurança com Cidadania realizado em São Pedro no

Espírito Santo, publicado em 2014.

Imagem 8 (p. 283): Frame do DVD Projeto Papo Reto. Daniele Leoneol – Policial

Civil e Facilitadora do Programa Conjunto in PNUD, 2013 – DVD Papo Reto,

publicado em 2014.

Imagem 9 (p. 285): Quadro do PNUD sobre resiliência na primeira infância – uma

“janela de oportunidades”.

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lista de abreviaturas e siglas

ABC – Agência Brasileira de Cooperação. BIRD – Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento. CCF – Country Cooperation Framework (Quadro de Cooperação do País). CED – Committee for Economic Development (Comitê para o Desenvolvimento Econômico). CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. Comecon – (tradução do russo para Council for Mutual Economic Assistance (Conselho para Assistência Econômica Mútua). Cominform – Communist Information Bureau (Central Comunista de Informação). CTPD – Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento. ECA – Economic Cooperation Administration (Administração de Cooperação Econômica). ECOSOC – Conselho Econômico e Social da ONU. EPTA – Expanded Programa of Technical Assistance (Programa Expandido de Assistência Técnica). FAO – Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. FMI – Fundo Monetário Internacional. FUNAG – Fundação Alexandre Gusmão. GIFE – Grupo de Institutos, Fundações e Empresas. IAEA – International Atomic Energy Agency. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. ICAO – Organização da Aviação Civil Internacional. IDA – International Development Authority (Associação Internacional de Desenvolvimento). IDH – Índice de Desenvolvimento Humano. IFC – International Finance Corporation. MESC – Middle East Supply Centre (Centro de Abastecimento do Oriente Médio). ODM – Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. MRE – Ministério das Relações Exteriores. ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. OEEC – Organization for European Economic Co-operation (Organização para a Cooperação Econômica Europeia). OIT – Organização Internacional do Trabalho. OMC – Organização Mundial do Comércio. OMM – Organização Meteorológica Mundial. OMS – Organização Mundial da Saúde. ONU – Organização das Nações Unidas. OPEP – Organização dos Países Exportadores de Petróleo. OSC – Organizações da Sociedade Civil. PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. RDH – Relatório de Desenvolvimento Humano.

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TOKTEN – Transfer of Knowledge Through Expatriate Nationals (Transferência de Conhecimentos Através de Expatriados Nacionais). UIT – União Internacional de Telecomunicações. UNCTAD – Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. UNFPA – United Nations Population Fund (Fundo de População da ONU). UNHCR – The UN Refugee Agency (Alto Comissariado para Refugiados). UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância. UNIFEM – United Nations Development Fund for Woman (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher). UNODC – United Nations Office on Drugs and Crimes (Escritório da ONU sobre Drogas e Crimes). UNOSOM – United Nations Operation in Somalia (Operação das Nações Unidas na Somália). UNRAA – UN Relief and Rehabilitation Administration (Administração de Assistência e Reabilitação da ONU). UNV – UN Volunteers (Voluntariado da ONU). USAID – United States Agency for International Development (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional).

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Audiovisual PNUD. Projeto Papo Reto. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7C_nZSWTP7U.