1. DISSERTAÃ⁄Ã…O FINAL
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Helena Cecília Barreto Bruno Wilke
Política e PNUD:
resiliência, desenvolvimento humano e vulnerabilidades
Mestrado em Ciências Sociais
São Paulo
2017
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Helena Cecília Barreto Bruno Wilke
Política e PNUD:
resiliência, desenvolvimento humano e vulnerabilidades
Mestrado em Ciências Sociais
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais sob orientação da Profa. Dra. Salete Oliveira.
São Paulo
2017
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resumo
Esta pesquisa mapeia a produção dos principais conceitos e abordagens do Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Sua emergência remonta a um
período de revisões liberais e expansão das organizações internacionais ancoradas na
busca pela paz democrática, ainda sob os efeitos da Segunda Guerra Mundial. Seus
empreendimentos evidenciam delineamentos mais acabados após a chamada Guerra
Fria, quando a segurança e o desenvolvimento, calcados no humano, passam a
responder aos redimensionamentos da governamentalidade planetária. O Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), adotado pelo PNUD a partir da década de 1990,
mostra-se importante instrumento na identificação e construção das chamadas
vulnerabilidades como virtuais ameaças aos governos do e no planeta. A análise do
Programa Conjunto Segurança com Cidadania, coordenado pelo PNUD em um bairro
na capital do Espírito Santo, expõe o funcionamento do IDH, aliado à abordagem da
chamada segurança cidadã – específica à América Latina, recentemente incorporada
aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A Justiça Restaurativa situa-se
como uma de suas conexões planetárias preferenciais ao complementar e ampliar o
sistema penal formal e mostra sua flexibilidade punitiva ao implementar políticas
sociais em escolas e comunidades. A pesquisa constatou a eficiência do PNUD em
irradiar práticas penalizadoras operadas em nome da pretensa neutralidade do
desenvolvimento humano, por meio da produção de condutas responsáveis e resilientes
que sustentam a gestão compartilhada da miséria.
Palavras-chave: PNUD, IDH, desenvolvimento humano, resiliência, vulnerabilidade e
Justiça Restaurativa.
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abstract
This research surveys the development of the fundamental concepts and guidelines of
the United Nations Development Program (UNDP). Its creation dates back to a period
of liberalism and expanding of international organizations, seeking for democratic
peace, still under the effects of World War II. Its purposes are correlated to designs
created after the Cold War, when security and development, which were based on
anthropological concepts, begin to respond to the restructuring of the planetary
governmentality. The Human Development Index (HDI), adopted by the UNDP since
the 1990s, is an important tool in identifying and constructing the so-called
vulnerabilities as threats both for local and global governments. The survey of the
Conjunct Program “Segurança com Cidadania”, coordinated by the UNDP in a
neighborhood of Vitória, Espírito Santo, Brazil, disclosure the operational model of the
HDI, together with the so-called “segurança cidadã” specifically designed for Latin
America, which was recently incorporated to the Sustainable Development Objectives
(SDO). The Restorative Justice is considered a complementary planetary connection
aiming to broaden the formal penal system, flexibilizing sentences and implementing
social policies in schools and communities. The present study verified the UNDP's
effectiveness in enforcing penal practices operated in the name of the alleged neutrality
of human development throughout the manufacture of responsible and resilient
conducts that underpins the management of collective misery.
Keywords: UNDP, HDI, human development, resilience, vulnerability and Restorative
Justice.
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agradecimentos
À Salete Oliveira, pelo rigor e liberdade únicos que propiciaram esta pesquisa. Pela intensidade libertária. Pelo tanto que aprendi e pelas transformações incríveis em minha vida.
Ao Edson Passetti, pela coragem e inventividade que ultrapassam a vida na universidade. Pela paciência e generosidade raras desde meus primeiros contatos com uma pesquisa.
Ao Acácio Augusto, pelas leituras e conversas incomensuráveis que atravessam esta pesquisa e a minha vida. Presença vital e fascinante a cada dia. Pelo amor absurdo que sinto, e por viver livremente comigo algo inominável.
Ao Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol). Espaço incessante de abolição e afirmações libertárias. Por ter me mostrado outros jeitos de lidar com a vida. Pela convivência deliciosa e firme.
À Beatriz Carneiro, pelos livros, delírios e conversas sempre incríveis. À Eliane Knorr, pela leveza, atenção e apoio que nunca faltam. À Flávia Lucchesi, pela amizade e trocas pulsantes. Ao Gustavo Simões, pela sensibilidade e vigor singulares. Ao Leandro Siqueira, pelas tantas risadas. À Lúcia Soares, pelos trovões espetaculares e abraços calorosos. À Luíza Uehara, pela força imensa durante toda a pesquisa e frescor na convivência. À Cecília Oliveira, pelas questões empolgantes. À Mayara Cabeleira, pela intensidade de experiências e amizade de toda a vida; pela força até o final da pesquisa. À Sofia Osório, pelo afeto e lindo sorriso. Ao Thiago Rodrigues, pela importância a esta pesquisa. Ao Vitor Osório, pelas trocas e descobertas de se fazer uma pesquisa.
Aos professores Wagner Romão e Vera Chaia, pela leitura atenta e sugestões valiosas na qualificação.
À Nara Borgo, pela disponibilidade e materiais importantes para a pesquisa.
À minha mãe, Regina Wilke, pela linda mulher que é. Pela nossa amizade e pelo senso de humor desconcertante.
Ao meu pai, Reynaldo Wilke, homem incrível e raro. Pela grandeza e delicadeza que sempre me confortaram.
Ao meu irmão, André Wilke, pelo carinho e cuidados de sempre.
Às minhas tias Cássia e Lúcia Bruno, pelas conversas, apoios e gargalhadas.
Aos meus primos queridos, Fabiana, Jan e Marina Bruno, pelas trocas e pelo crescer junto.
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À minha avó, Judith Bruno, pela exuberância na vida e em seu jardim.
À Carolina Mandú, pelos momentos deliciosos e presença preciosa.
À Raquel Santos, pelo abraço. Pelas experiências juntas e sintonia inabalável.
À Lana Efraim, pelo deslumbre que lhe é próprio. Pelas descobertas surpreendentes e inesquecíveis.
À Pamela Leoni, pelo prazer imenso em estar perto. Pela presença forte e irradiante nos acontecimentos.
Ao Renato Lopes e Guilherme Silva, pelas conversas instigantes e momentos sempre sem medida.
À Beatriz Marcos, pela presença tranquila e prazerosa.
Agradeço às professoras coordenadoras do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, Lúcia Bógus e Vera Chaia. À Kátia e ao Rafael.
Ao CNPq pelo financiamento desta pesquisa.
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SUMÁRIO
apresentação 10
______________________________________________________________________
1. RACIONALIDADE NEOLIBERAL E AS MODULAÇÕES DE UMA
ESTRATÉGIA PARA O DESENVOLVIMENTO 20
1.1. guerra, mercado, organizações internacionais e uma trajetória 26
planejamentos e revisões liberais 26
planos de paz para o “mundo livre” 33
1.2. a emergência de uma racionalidade neoliberal e seus itinerários 40
governamentalidade e neoliberalismo 40
itinerários neoliberais 47
organizações internacionais em ascensão 51
1.3. ecopolítica do planeta e o espraiamento das grandes organizações
internacionais 55
ecopolítica e os redimensionamentos do desenvolvimento 55
breves procedências do PNUD 60
emergência do PNUD 68
1.4. os especialistas do desenvolvimento pelo planeta 72
cooperação técnica e seus fluxos 72
um empreendimento planetário 79
fluxos de inteligências e suas irradiações 89
_____________________________________________________________________
2. GOVERNAMENTALIDADE PLANETÁRIA E AS ABORDAGENS DO
DESENVOLVIMENTO 100
2.1. construção de novos alvos sob o jugo da paz planetária 103
construção do fracasso 103
construção do perigo 113
uma disputa complementar 119
reconstrução da guerra 127
2.2. o desenvolvimento humano e a construção de uma abordagem para a vida 132
abordagem da segurança humana 132
abordagem do desenvolvimento humano 142
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uma ampliação oportuna 146
o IDH e a construção de uma medição para a vida 151
IDH e o ambiente brasileiro 158
2.3. a abordagem do desenvolvimento humano sustentável 175
empreendimentos sustentáveis 175
um projeto sustentável para o novo século 184
_____________________________________________________________________
3. RESILIÊNCIA E PENALIZAÇÕES RESTAURATIVAS:
GOVERNO DOS VULNERÁVEIS NO PLANETA 195
3.1. da restauração à segurança cidadã 202
investimentos em cidadania na América Latina 202
táticas de difusão da Justiça Restaurativa 206
uma diferença incontornável 218
segurança como estratégia e táticas de penalizações 224
3.2. um programa conjunto e a construção de uma seletividade 231
breves apontamentos sobre o PNUD e o Brasil 231
implementação de um investimento conjunto 242
fundamentação conceitual em fluxos 247
implementação do conjunto de penalizações restaurativas 252
distinções complementares 257
um projeto policial para os vulneráveis 259
3.3. reinserção da guerra e produção da paz social 266
da tentativa de pacificação das relações sociais 266
moral da restauração 272
abolir, e não restaurar 278
resiliência e racionalidade neoliberal 280
_____________________________________________________________________
a medida do humano e o desenvolvimento das punições e restaurações 290
______________________________________________________________________
lista de imagens 298
lista de abreviaturas e siglas 299
BIBLIOGRAFIA 301
10
apresentação
Quando comecei a pesquisar o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), a “agência líder” da rede para o desenvolvimento da
Organização das Nações Unidas (ONU), esta palavra ou este campo de atuação
denominado “desenvolvimento” apresentou-se de forma bastante genérico, porém nada
despretensioso ou desinteressado, como nada o é. Sempre me impressionou a sua
capacidade de extensão, difusão e flexibilidade, tanto pelo PNUD estar presente em
mais de 170 países e regiões em todo o planeta, como por encontrar seu selo de
financiamento ou cooperação nos mais variados documentos locais, nacionais,
planetários.
O PNUD tem como foco principal a erradicação da pobreza em todo o mundo e
todos os seus esforços voltam-se ao cumprimento dos mais novos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (ODS – 2015-2030). Prioriza-se a implementação de suas
políticas sociais via gestão compartilhada entre Estados, institutos, fundações,
universidades, sociedade civil, tendo como principal agente seus próprios
“beneficiários”. Sua flexibilidade evidencia-se, ainda, por atuar, desde na orientação de
práticas socioambientais sustentáveis para empresas, até na orientação de como
restaurar um jovem sob a forma de aplicação de medida socioeducativa, a partir das
diretrizes do desenvolvimento humano. Uma estratégia geral de gestão e produção de
condutas.
Mapeei os mais diversos relatórios locais e globais, documentos, quadros para
países, e sempre foi muito difícil ter um domínio sobre o que realmente movia o
trabalho do PNUD para além da disputa pela verdade sustentável; sobre qual realmente
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era seu alvo. Não que a busca pela verdade, pela única certeza tenha movido o meu
trabalho. As questões que permearam esta pesquisa não se detiveram ao grau de
eficiência e governabilidade do PNUD, mas sempre estiveram e ainda permanecem em
torno de como governam-se vidas e como disseminam-se práticas de poder e de governo
na produção de uma conduta que responda ao governo do planeta de forma sustentável.
Nesse contexto, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), considerado pelo
próprio PNUD como um de seus maiores empreendimentos nos anos 1990, pareceu-me
de fundamental importância para me aproximar da metodologia do Programa. Conforme
fui lendo e investigando suas orientações, diretrizes, avaliações, cálculos, conceitos,
etc., percebi que o desenvolvimento – posteriormente aprimorado em desenvolvimento
humano sustentável – e a segurança – ajustada para segurança humana composta por
um amplo leque de outras seguranças – extrapola o enquadramento de “objetivo” ou
“metodologia”, mas constitui-se e irradia-se como uma abordagem de vida. Abordagem
exercitada como um jeito de pensar, de calcular a vida alinhada à racionalidade
neoliberal emergente no pós-Segunda Guerra e também depurada e incrementada para
imbuir cada indivíduo como capital humano e agente de si.
Como um índice poderia, então, abarcar esta abordagem de vida? O que estava
em jogo para ser realizado um prognóstico e quais seriam as medidas tomadas pelo
PNUD diante de um certo prognóstico? Que história é essa de fazer a vida caber numa
mediação econométrica?
O IDH tem como variáveis básicas para um país a expectativa de vida – medida
em anos –, a educação – medida pela percentagem de alfabetização de adultos e pelos
anos de escolaridade – e a renda – ajustada ao poder de compra em dólares. Uma vida,
para o PNUD, resume-se a: longevidade biológica (sobrevida), escolarização (educação
para obediência) e capacidade de consumo (inserção no mercado). Nos anos 2000, o
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IDH passou a ser ajustado aos municípios. Em 2013, no Brasil, esta tentativa reuniu
outras inúmeras variáveis, como dados de habitação, trabalho e vulnerabilidade. Na
abordagem do PNUD, pessoas vulneráveis, principalmente pobres e crianças, tidas
como inerentemente vulneráveis, produzem um ambiente vulnerável. A invariante da
cultura do castigo em ter como alvo crianças e jovens, agora em e na produção de um
ambiente.
Ao longo da pesquisa, portanto, o IDH foi se evidenciando instrumento
fundamental para o PNUD que justifica a implementação de políticas sociais. Enquanto
Estados considerados falidos por especialistas e rankings internacionais, e portanto
passíveis de intervenção, uma vez que representam uma ameaça para toda a
“comunidade internacional”, pessoas vulneráveis são entendidas, numa via de mão
dupla, como uma ameaça e ameaças a si mesmas, aos seus próximos, e ao ambiente em
que vivem; no limite, ao ambiente planetário. Estava diante de um monumental aparato
que, ao fazer a vida caber num índice, produz a mortificação cotidiana.
Estudar e pesquisar a carreira, a formação, a experiência das grandes referências
que possibilitaram a configuração do PNUD como um irradiador de práticas de governo
em âmbito planetário foi fundamental para perceber sua abordagem como intrínseca à
racionalidade neoliberal. Mas era preciso conhecer o limite desta racionalidade na vida
das pessoas e de um espaço, para além do que sua pretensa neutralidade almeja estancar.
Quais pessoas se arvoram dizer como deve ser a vida de outras pessoas no planeta?
Como eles geriam a si para disseminar a gestão dos outros?
Pude então conhecer um pouco mais de perto o Programa Conjunto, coordenado
pelo PNUD e implementado juntamente com a UNESCO, UNICEF, OIT, UNODC e
ONU-Habitat, intitulado Segurança com Cidadania – Prevenindo a violência e
fortalecendo a cidadania com foco em crianças, adolescentes e jovens em condições
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vulneráveis em comunidades brasileiras. Este programa foi financiado pelo Fundo para
o Alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) do Governo Espanhol
e foi implementado a partir da seleção de três municípios em regiões metropolitanas
brasileiras: Região do Nacional, em Contagem (MG), Bairro Itinga, em Lauro de Freitas
(BA) e Grande São Pedro, em Vitória (ES), dentre 82 municípios inscritos no edital do
Programa, por meio dos prognósticos do IDH e outros índices.
Ao investigar os prognósticos e metodologias adotadas especificamente na
região da Grande São Pedro (ES) por meio de documentos, vídeos e também após
visitar a Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos de Vitória, que recebeu o
Programa Conjunto, pude ter maior domínio sobre os empreendimentos que estavam em
jogo na abordagem para aquele espaço. Além da metodologia da segurança cidadã –
uma modalidade da segurança humana adaptada à América Latina –, práticas da Justiça
Restaurativa também integraram o Programa Conjunto e fazem parte de um esforço do
PNUD em introduzi-la no Brasil, em meados dos anos 2000. Toda grandiloquência
construída no itinerário de carreiras bem sucedidas de gestores planetários acabava na
disseminação de pequenos tribunais compartilhados por policiais, assistentes sociais e
habitantes das comunidades nos rincões mais miseráveis do planeta, como pude ver na
periferia de Vitória.
Tida como forma alternativa de responder aos chamados crimes, a Justiça
Restaurativa busca a restauração da chamada vítima e do identificado como infrator,
tendo como árbitro principal a comunidade dos envolvidos. Porém, mostra-se, para
além de complementar, fortalecedora e ampliadora do próprio sistema penal, uma vez
que sua aplicação parte, primordialmente, da admissão por parte do considerado
culpado do papel de infrator. Além disso, chamou-me a atenção o fato da eficiência e
abrangência de suas penalizações residir, ainda, quando reconhecida e aplicada como
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política social, atuando tanto em complementariedade às medidas socioeducativas como
em escolas e comunidades. No caso do Programa Conjunto Segurança com Cidadania,
a Justiça Restaurativa foi introduzida enquanto tentativa-tática do PNUD para a
restauração seletiva de um ambiente.
É diante da pretensa neutralidade constitutiva da abordagem do
desenvolvimento, humano e sustentável, que esta pesquisa expõe a eficiência do PNUD
em irradiar práticas penalizadoras mediante esforços em produzir humanos responsáveis
e resilientes. Finda-se na renovação das condutas obedientes entre àqueles outrora
classificados de perigosos e hoje produzidos como vulneráveis pelos índices
econométricos.
***
Esta pesquisa surgiu com o Projeto Temático do Nu-Sol (Núcleo de
Sociabilidade Libertária) Ecopolítica: governamentalidade planetária,
institucionalizações e resistências na sociedade de controle (2010-2015), coordenado
por Edson Passetti. Em 2012, interessei-me pelo tema de iniciação científica que
propunha pesquisar o PNUD no interior do fluxo direitos do Projeto, coordenado por
Salete Oliveira. Mais tarde, minha pesquisa abrangeu também estudo sobre o Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), que embora seja apresentado pela
ONU como principal autoridade global em meio ambiente, não mostra uma capacidade
tão grande de propagação e difusão como o PNUD. Pois a noção de ambiente excede
sua relação com a ecologia. Não diz respeito apenas às intervenções no meio e
constituição de técnicas de segurança para o governo da população, respectiva às
sociedades disciplinares. Conforme as indicações do Projeto Ecopolítica, a noção de
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ambiente está conectada aos novos dispositivos de segurança emergentes no pós-
Segunda Guerra Mundial, referentes não mais ao conjunto da população, mas à
humanidade a ser defendida no planeta como um ambiente a ser governado.
O PNUD se insere neste contexto como irradiador de práticas de governo que,
voltadas ao desenvolvimento humano e sustentável, mostram sua importância como
orientador e replicador de políticas, produtor de condutas, construtor de conceitos e
abordagens fundamentais para a governança global, analisadas aqui como componentes
das tecnologias de governo em uma governamentalidade planetária. Nesse sentido, O
método genealógico proposto por Michel Foucault propiciou uma análise meticulosa e
paciente, de forma a atentar aos acontecimentos onde não parece haver história, ou nada
além da História oficial em meio aos grandiosos esforços e planejamentos da transição
de um tempo de guerra para um tempo de paz.
O pós-Segunda Guerra Mundial acarretou em redimensionamentos e extensão
dos direitos e da segurança pensados então em âmbito planetário, voltados a uma
tentativa de bloqueio do racismo de Estado e seus limites, com o nazismo. A criação da
ONU com a Carta de São Francisco, em 1945, e a Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948, como resposta aos horrores da guerra, marcaram uma nova forma de
pensar no desenvolvimento dos humanos em consonância com seus ambientes e com o
planeta como um corpo a ser gerido.
O primeiro capítulo desta dissertação, Racionalidade neoliberal e as modulações
de uma estratégia para o desenvolvimento, partiu dos programas que permearam o
planejamento de reconstrução europeia ainda ao final da Segunda Guerra Mundial em
meio às revisões do liberalismo e as políticas voltadas à construção da paz planetária.
Interessou atentar para os delineamentos e afinamentos da racionalidade neoliberal
emergente no pós-guerra, aliada às transformações das políticas internacionais e uma
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pretensa neutralidade ancorada na paz democrática. Neste período, há a emergência das
grandes organizações internacionais voltadas ao desenvolvimento, das quais o PNUD
mostra-se fundamental.
Ao pensar na formação do PNUD, emergente da fusão de outros dois
organismos da ONU – o Programa Expandido de Assistência Técnica e o Fundo
Especial –, interessou-me investigar as pessoas que contribuíram em meio aos esforços
de configuração de sua abordagem, tentativas e estratégias voltadas ao desenvolvimento.
Não como sujeitos de uma história, mas como pontos pelos quais o poder transita e se
irradia, sem restringir-se a um espaço delimitado. Não trata, também, de julgar quais
seriam as pessoas mais adequadas ou os meios mais justos e democráticos, mas sim
descrever os itinerários dos fluxos de governo no planeta e seus estatutos de produção
de verdade.
Foram investigados, assim, encontros, itinerários e trânsitos de especialistas e
personalidades do desenvolvimento no âmbito da produção do PNUD, que contribuíram
para a construção e transformação de suas políticas, conceitos e abordagens afeitas, cada
vez mais, às formas de governo do e no planeta. Foram nas grandes figuras advindas do
planejamento em tempos de guerra, de renomadas universidades; empresário, prêmios
Nobel que estiveram direta ou indiretamente ligados às modulações do PNUD como
principal agência da ONU para o desenvolvimento, que pude perceber o amplo leque de
formações – à esquerda e à direita –, experimentos e tentativas na composição da força
de irradiação deste Programa em todo o planeta.
Pela analítica genealógica, a pesquisa se afastou da busca pela origem, como
começo histórico preservado das coisas (Foucault, 2012: 18), e da busca pela verdade,
pelos acertos descritos nas biografias, nos documentos oficiais. Prosseguiram-se os
erros, as tentativas, as disputas de verdades que evidenciam suas modulações, afeitas
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cada vez mais ao compartilhamento de práticas de governo e descentralização
administrativa alinhadas à governamentalidade planetária, que, porém, não prescinde
de centralizações e do fortalecimento do Estado.
O segundo capítulo, Governamentalidade planetária e as abordagens do
desenvolvimento, perseguiu por tais tentativas na composição de novas abordagens
construídas pelo PNUD. A segurança e o desenvolvimento encontraram delineamentos
mais acabados principalmente após o período enquadrado como Guerra Fria, quando,
calcados no humano, passaram a ser concebidos não mais de forma restrita ao formato
dos Estados, mas irão perseguir por virtuais ameaças atribuídas a regiões específicas, e
portanto passíveis de intervenções em prol da configuração de um ambiente planetário
sustentável.
O grande instrumento do PNUD nos anos 1990, tanto na identificação destes
ambientes como na construção de suas vulnerabilidades, será o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH), criado pelos Prêmios Nobel Mahbub ul Haq e
Amartya Sen. O IDH foi implementado pelo PNUD juntamente com a criação dos
Relatórios de Desenvolvimento Humano (RDH) anuais que avaliam o que é construído
como os principais problemas de cada país em termos de promoção do desenvolvimento
humano em âmbito interno e em consonância com as diretrizes globais da ONU.
O IDH evidencia-se como instrumento tático fundamental na
governamentalidade planetária no que concerne, tanto aos prognósticos e avaliações
destinadas aos mais delimitados ambientes considerados vulneráveis, como na produção
de condutas resilientes em prol da restauração destes espaços. É um empreendimento
que auxilia um grande leque de políticas sociais, envolvendo os considerados
beneficiários destas políticas, e dando preferência à gestão compartilhada,
principalmente entre Estados, ONGs, sociedade civil, institutos, fundações,
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universidades, etc., muitas vezes orientados ou via cooperação técnica de Programas
como o PNUD.
Nos anos 1970, o PNUD irradiou-se e expandiu suas políticas por meio de seus
Representantes Residentes em todo o planeta, via assistência técnica para a liberalização
de mercados ou via cooperação técnica, sublinhando a capacidade e responsabilidade
dos países chamados “em desenvolvimento” em prover seu próprio desenvolvimento e
reconhecer suas especificidades. Após a chamada Guerra Fria e a dissolução do
denominado inimigo comum do chamado “mundo livre”, representado pelos EUA,
outros eventuais inimigos passaram a ser construídos desde Estados considerados
falidos, concentrados principalmente na África, aos mais delimitados locais do planeta
construídos como focos de vulnerabilidades e identificados por índices como o IDH e
suas inúmeras variáveis acopláveis.
Assim como o PNUD, esta grande organização internacional para o
desenvolvimento com sua pretensa neutralidade, conseguiu introduzir-se nos mais
remotos ambientes ao redor do planeta, interessou-me adentrar num destes mesmos
espaços para mapear o limite e o começo de suas políticas.
O terceiro e último capítulo desta dissertação, Resiliência e penalizações
restaurativas: governo dos vulneráveis no planeta, mostra o funcionamento do IDH no
que diz respeito à construção de seus prognósticos, e também em relação à sua
eficiência e operacionalização do que estará em jogo para melhorar um ambiente
identificado como de alto grau de vulnerabilidade.
Na América Latina, o enfoque dado pelo PNUD para a promoção do
desenvolvimento humano sustentável baseia-se na chamada segurança cidadã, que
estabelece a construção de uma cidadania integral para a prevenção e controle da
denominada violência na região. No caso do Programa Conjunto da ONU Segurança
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com Cidadania na região da Grande São Pedro, em Vitória (ES), a segurança cidadã
aliou-se à Justiça Restaurativa, enquanto metodologias de seus projetos. As práticas
mediadoras e penalizadoras da Justiça Restaurativa recaíram sobre um ambiente inteiro,
classificado pelo IDH e suas derivações como proliferador de vulnerabilidades e,
portanto, inseguro. Marcado pelo signo da falta numa economia política da escassez que
ultrapassa as medições materiais, a Justiça Restaurativa procura terrenos profícuos para
disseminar-se.
Este experimento local de construção de resiliência em prol da redução de
vulnerabilidades, partindo desde os esforços para a construção da paz democrática no
pós-Segunda Guerra aos seus novos contornos após a chamada Guerra Fria, evidencia
seu alinhamento com as diretrizes globais para um planeta seguro aos fluxos políticos,
liberais e de mercado, por meio da pacificação das relações sociais. Pela gestão das
vulnerabilidades, de forma intrínseca à seletividade do sistema penal, o PNUD e seu
humanismo sustentável não pretendem acabar com a violência e nem estancá-la em seus
infindáveis índices, mas produzir, de forma racionalizada, penalizações com foco nos
alvos identificados pelos mesmos.
A violência segue como atributo central dos Estados na abertura do século XXI e
todo esse aparato de medições, mediações e restauração renova a cultura do castigo e
segue escorada na democratização do tribunal, fazendo da política tecnologia especifica
de gestão da miséria e mortificação de gente.
20
1. RACIONALIDADE NEOLIBERAL E AS
MODULAÇÕES DE UMA ESTRATÉGIA PARA O
DESENVOLVIMENTO
21
O tom preponderante dado às pesquisas sobre o PNUD no Brasil aborda seu
papel em meio às organizações internacionais voltadas ao desenvolvimento analisando a
interligação entre seus conceitos, de forma a demarcar uma evolução de seus
instrumentos e respectiva capacidade de governabilidade – como a capacidade de
governar por meio das condições necessárias e promover equilíbrios políticos.1 Este
trabalho, ao apartar-se deste tom, não procura encontrar conveniências e incongruências
na abordagem do PNUD, abrangências e limitações na implementação de suas políticas,
em vias de melhorar seu sucesso como principal agência da ONU para o
desenvolvimento.2 Algo bastante evidente no que concerne aos trabalhos sobre o Índice
de Desenvolvimento Humano (IDH), maior empreendimento do PNUD na década de
1990 e seu principal instrumento de prognósticos para orientar a implementação de
projetos.
Trabalhos nas áreas de engenharia, administração e contabilidade contêm grande
acervo de produção voltada à melhoria e refinamento do IDH, pensando num modelo
brasileiro de gestão de gastos públicos e, principalmente, na sua eficiência em termos de
investimentos em saúde e educação. Nas áreas de economia política também são feitas
propostas de aprimoramento e melhoria técnica, a partir da abordagem do bem-estar e
das capacidades proposta por Amartya Sen, um dos idealizadores e grandes propulsores
do IDH.3
1 Ver: Nogueira, 2001. 2 Ver: Rocha, 2007. 3 Ver: Bonfim, 2012 e Marques, 2006. Para além dos estudos acadêmicos, o conceito de desenvolvimento humano de Amartya Sen e o IDH são utilizados como parâmetro de programas nacionais, como o Programa Nacional de Direitos Humanos-3, associando desenvolvimento à defesa dos direitos humanos. Especialmente indicado como referência em programas ligado à Justiça Criminal, como expresso no “Objetivo Estratégico III: Utilização de modelos alternativos de solução de conflitos” (p. 177). Ver: SEDH. PNDH-3. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/assuntos/direito-para-todos/programas/pdfs/programa-nacional-de-direitos-humanos-pndh-3. Acesso em: 15/10/2016.
22
Outros trabalhos de pesquisa assumem uma posição crítica ao PNUD, alegando
seu exercício em meio à configuração de uma ideologia hegemônica liberal e capitalista.
Critica-se o significado do termo “desenvolvimento” como associado ao progresso
histórico, por vezes alegando seu desacordo com a essência humana4. Muitas críticas
ocorrem em torno dos fundamentos que orientam as políticas sociais, como as de
combate à pobreza global assumida pelo PNUD e o que seria um determinismo
econômico com base capitalista nas relações internacionais, que prisma por uma forma
individualista de pensar as funções econômicas de alívio da pobreza.5
Percebe-se, a partir de então, redimensionamentos da nuance ou disputa entre
uma ancoragem liberal e uma ancoragem realista afeita à perspectiva marxista. Ainda
após a Primeira Guerra Mundial, o então presidente dos EUA, Woodrow Wilson (1913-
1921), preconizava a criação da Liga das Nações, de 1919, como um projeto de
cooperação liberal com quatorze pontos, levando em conta negociações entre os Estados
como um planejamento para a paz global. A proposta liberal de Wilson influenciou,
mais tarde, centros universitários que marcam o início da área de Relações
Internacionais, que atualizaram suas perspectivas também pela leitura de Immanuel
Kant (Rodrigues, 2010: 21). Em oposição às concepções de paz liberais, e tendo em
vista a emergência da Segunda Guerra Mundial, o chamado realismo denunciava a
utopia e idealização da paz de modo a pensar pacificações mais eficientes e temporárias,
evocando autores como Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes (Idem: 20).
No âmbito das Relações Internacionais, conforme mostrou Thiago Rodrigues,
ambas as ancoragens inseridas nesta disputa vislumbram a política como sinônimo de
paz e o equilíbrio de poder entre os Estados, almejando evitar a guerra. De ambos os
4 Sob a ótica marxista e heideggeriana sobre o desenvolvimento, ver: Tinti, 2014. 5 Ver: Mauriell, 2008.
23
lados, almeja-se a preservação e fortalecimento dos Estados e a ordem de suas relações
(Ibidem: 23).
A presente pesquisa busca mapear as relações de poder que se refazem
continuamente em meio aos ideais de guerra ou paz que transitam no momento da
emergência e composição das organizações internacionais alinhadas à racionalidade
neoliberal, na qual o PNUD está situado. Por meio da análise genealógica, opondo-se às
significações puras e ideais, essa pesquisa realiza um mapeamento, ainda ao final da
Segunda Guerra Mundial, dos trânsitos, encontros, discussões e críticas que permearam
as revisões liberais em meio à transição para a paz. De forma atenta aos detalhes,
almejou-se apreender, não uma evolução, mas as ancoragens de distintos papeis e
diversas tentativas-táticas que compuseram e compõem uma estratégia voltada ao
desenvolvimento, do planejamento de reconstrução pós-guerra e reconversão dos
veteranos de guerra aos programas de cooperação técnica.
Apartando-se da busca pela origem, não se pretende refazer ligações em vistas
de encontrar características gerais que pressuponham uma evolução do passado ainda
presente, mas perseguir, pela proveniência [herkunft] (Foucault, 2012b: 20), os cálculos,
as tentativas, os erros e falhas que constituem, fragilmente e de forma não permanente,
uma abordagem de vida, uma maneira de pensar. Já a emergência [entestehung] (Idem:
23), tida como ponto de surgimento, interessa como lugar de afrontamento. Entende-se,
diferentemente da metafísica ou da tradição racionalista, não a culminação destes
embates numa síntese ou reciprocidade universal acordada, mas o prosseguimento do
jogo de dominações: “o desejo da paz, a doçura do compromisso, a aceitação tácita da
lei, longe de serem a grande conversão moral, ou o útil calculado que deram nascimento
à regra, são apenas seu resultado” (Ibidem: 25).
24
Este primeiro capítulo, ao analisar a emergência da racionalidade neoliberal em
meio às revisões liberais e planejamentos pós-guerra que não se atém às diferenças
ideológicas, não ocupa-se da neutralidade do historiador que pretende nada deixar
escapar. Não lança mão de uma verdade surpreendente no sentido de revelar aquilo que
deve permanecer intacto, ou apresentar uma evolução de ideais na tentativa de
contribuir com melhorias, mas atenta-se às estratégias, efeitos de dominações, sujeições,
assujeitamentos e diferentes interesses que configuram hoje uma governamentalidade
implicada nos mais diversos espaços do planeta, da qual o PNUD evidencia-se como
importante irradiador.
O primeiro movimento deste capítulo, “guerra, mercado, organizações
internacionais e uma trajetória”, situa o contexto de emergência da racionalidade
neoliberal em meios às críticas e revisões dos planejamentos pós-guerras mundiais e da
formação e crescimento de organizações internacionais voltadas para o
desenvolvimento. Percorre-se pontos da trajetória de Paul Gray Hoffman, empresário,
veterano de guerra, e um dos grandes idealizadores do Plano Marshall, bem como de
programas de reconversão para a paz no pós-guerra. Hoffman esteve bastante próximo
dos encontros e discussões em torno da revisão do liberalismo europeu e estadunidense,
e, na década de 1960, foi nomeado o primeiro administrador do PNUD.
O segundo movimento, “a emergência de uma racionalidade neoliberal e seus
itinerários”, apresenta os apontamentos de Michel Foucault sobre a configuração do
neoliberalismo estadunidense e alemão e a emergência da governamentalidade
neoliberal, pensando-a como bastante propícia ao crescimento de organizações
internacionais e fundações filantrópicas, com pretensa neutralidade e ancoradas na
promoção de uma paz democrática. O movimento também expõe a intensificação da
necessidade de construção de figuras mediadoras e espaços de mediações como formas
25
de encaminhar os problemas e os chamados conflitos no plano internacional, mas não
apenas entre as nações (como na precedente Liga das Nações), mas também inter-
nações, sob o ideal da paz. Algo que se mostrará presente não apenas nas políticas
estatais, mas, sobretudo, como se verá ao longo de todo trabalho, na conduta dos vivos
em todo planeta sob o signo comum de humanos.
O terceiro movimento deste capítulo, “ecopolítica do planeta e o espraiamento
das grandes organizações internacionais”, busca acompanhar o crescimento e a difusão
destas organizações internacionais. Expõe-se a ultrapassagem da biopolítica da
população indicada por Foucault para situar a emergência da ecopolítica do planeta.
Esta noção, desenvolvida por Edson Passetti, analisa a emergência de uma nova
governamentalidade no pós-Segunda Guerra Mundial não restrita ao estudo do ambiente
ecológico, mas relativa à possibilidade de configuração do planeta como novo objeto de
governo. Nesse sentido, instâncias como o PNUD e instrumentos como o IDH se
mostram cada vez mais decisivos.
Em seguida, no último movimento, “os especialistas do desenvolvimento pelo
planeta”, são apresentadas algumas procedências do PNUD e as questões que estavam
em jogo na identificação de problemas ao redor de todo o planeta. São acompanhadas
algumas metamorfoses em relação à forma de implementação de programas e projetos
para o desenvolvimento, da assistência à cooperação e compartilhamento de
responsabilidades. Nesse sentido, interessa mostrar os investimentos do PNUD em
alguns países, principalmente na década de 1970, por meio do trânsito de seus
representantes e especialistas do desenvolvimento imbuídos de capital humano. Este
movimento também busca evidenciar o funcionamento do neoliberalismo enquanto uma
racionalidade no âmbito do PNUD, ao aglutinar pessoas de diferentes formações
políticas na composição de uma estratégia.
26
1.1. guerra, mercado, organizações internacionais e uma trajetória
planejamentos e revisões liberais
Pouco antes do início do período enquadrado como Guerra Fria e do término da
Segunda Guerra Mundial, em 1940, Paul Gray Hoffman, o então presidente da empresa
automobilística Studebaker Corporation6, convocava a todos os cidadãos estadunidenses
a participar do que declarava ser o principal objetivo da década que se iniciaria: a defesa
do país. Em discurso proferido na Câmara do Comércio de Iowa, EUA, anunciava:
Tudo deve dar lugar a uma defesa adequada para o nosso país. (...) A última guerra demonstrou claramente para os empresários o caráter efêmero dos lucros de guerra. Um raciocínio comercial egoísta levaria negócios para longe, e não em direção aos acordos governamentais. Nenhuma determinação industrial de que a América deve se fortalecer rapidamente tem sido alimentada por algo muito mais atraente do que o fato de os lucros impulsionarem a proteção e a segurança das nossas instituições livres (Hoffman, 1940: 189).
Seu discurso remete ao fato de, em julho daquele ano, o Congresso ter aprovado
uma lei que dava ao Governo o direito de recrutar industriais. Porém, Hoffman assumia
uma crença na capacidade da indústria privada em construir uma defesa inexpugnável
para a América e considerava que aqueles que favorecessem o controle governamental
da indústria, por serem seduzidos em decorrência de um abalo emocional pós-Guerra,
ou por tomarem o Estado como autoridade suprema, a fim de alcançar máxima
produtividade, estariam aderindo a um totalitarismo em que a força e o medo
predominariam ao serem vistos como “mais eficazes do que a liberdade e a esperança de
recompensa” (Idem: 190). O empresário assimilava tal opção pelo recrutamento
6 Empresa fundada em 1852, originalmente produtora de vagões para fazendeiros, mineiros e as forças armadas, que incorporou o negócio automotivo em 1902. Cf. Studebaker Brothers. Disponível em: http://www.germanheritage.com/biographies/mtoz/studebaker.html. Acesso em: 13/06/2015.
27
industrial à política de Hitler na Alemanha nazista, reiterando que os povos da
“América” jamais tolerariam a utilização de um método totalitário.
O papel do governo, para Hoffman, deveria ser o de assistir e proteger o capital,
o trabalhador e o cliente envolvidos em um empreendimento, para que exercessem
pressão razoável sobre sua gestão. Os direitos dos cidadãos também deveriam ser
assegurados pelo Estado para que pudessem exercer o princípio da livre empresa,
mantendo vivas a liberdade e a esperança de recompensa em seus negócios como
máximas constitutivas da dinâmica estadunidense:
Estas grandes dinâmicas têm sido trabalhadas aqui na América desde 1776. Nós sabemos que os resultados globais que têm sido produzidos causam inveja a todos os outros povos. Aqui na América nós compartilhamos continuamente o mais alto padrão de vida do mundo. Com seis por cento da população mundial, temos acumulado 45% da riqueza mundial (Ibidem: 191).
Tomava como referência a declaração feita pelo ex-presidente Woodrow Wilson
de que “a mais elevada e melhor forma de eficiência é a cooperação espontânea de um
povo livre”7. Ele reiterava a união de uma cultura, de uma forma de pensar e de fabricar
condutas diariamente que fortalecessem um “modo de vida” de liberdade conectada a
recompensas. Nesse sentido, a cooperação não estaria apartada da concorrência, em
virtude do não monopólio econômico e por ser, segundo Hoffman, a vida, não apenas
do comércio, mas também do próprio sistema de livre empresa (Ibidem: 192) e, por
extensão, lógica da vida social e política.
O empresário era também considerado porta voz do “internacionalismo liberal”,
principalmente enquanto esteve bastante próximo da presidência de Dwight Eisenhower
(1953-1961). Tanto como presidente da Studebaker Corporation como quando 7 Woodrow Wilson apud Paul G. Hoffman. “Business and Conscription: Industry Cannot Be Conscripted Unless Totalitarianism Prevails” in Vital Speeches of the Day. New York, 1940-1941, p. 191. Disponível em: http://www.ibiblio.org/pha/policy/1940/1940-12-13a.html. Acesso em: 06/03/2015.
28
presidente do Fundo para a República, era amigo pessoal de Eisenhower e de muitos
membros da administração do país. Era conhecido por incitar o governo a “travar a paz
por meio de políticas esclarecidas” (Raucher, 1986: 120). Mais especificamente,
segundo o historiador da Wayne State University, Alan Raucher, Hoffman almejava
expandir a economia mundial por meio de políticas estadunidenses que combinassem a
liberalização do mercado com ajuda econômica para o desenvolvimento de países,
principalmente africanos e asiáticos; o que, em sua visão, fortaleceria a democracia em
âmbito global e interromperia a propagação do comunismo. Hoffman teria procurado
alertar a presidência, o Congresso e o público estadunidense para as mudanças que
varriam a Ásia e a África, não querendo que os EUA ficassem ao lado de “reacionários
e imperialistas obstruindo a busca do progresso e da justiça social” (Ibidem: 120). Com
esse intuito, Hoffman apoiou-se largamente sobre os novos especialistas em
desenvolvimento econômico nos anos 1950, em particular no trabalho colaborativo de
economistas do MIT (Massachusetts Institute of Technology), como Max F. Millikan,
que havia participado da equipe do Comitê de Harriman8, e W. W. Rostow, que
integrara a Comissão Econômica para a Europa.
De acordo com Raucher, “sofisticadamente anti-comunistas”, eles insistiam que
os EUA adotassem liberdade de mercado simultaneamente à políticas de ajuda
econômica aos países pobres, em prol de uma evolução do sistema operacional estável e
eficaz de sociedades democráticas no exterior. O que, por sua vez, propiciaria a
expansão econômica dos EUA mundialmente sob o pretexto de fortalecimento da
democracia e interrupção do comunismo. Para Raucher, “a América não poderia buscar
8 William Harriman foi Secretário do Comércio durante a presidência de Harry Truman nos EUA (1945-1953).
29
objetivos de curto prazo para ganhar amigos ou para a criação de lucros rápidos”
(Ibidem: 121).
Em 1942, Paul Hoffman, William Benton – co-fundador da agência de
publicidade Benton & Bowloes – e Marion B. Folsom – tesoureiro da empresa Estman
Kodak Company –, lideraram a fundação do Committee for Economic Development
(Comitê para o Desenvolvimento Econômico – CED, na sigla em inglês). Segundo
apresentação oficial, seu objetivo era realizar a transição econômica dos EUA de um
tempo de guerra para um tempo de paz, após a Segunda Guerra Mundial.9 Já Hoffman
apresentava o CED como uma organização privada, sem fins lucrativos, com o objetivo
de encorajar 2 milhões de pessoas a tomarem decisões inteligentes, estimulando o
planejamento do pós-guerra. O CED organizava empresários locais e líderes
comunitários em cidades e municípios em todos os EUA, a fim de que comitês
comunitários fossem organizados de maneira autônoma, e de modo a estimular e assistir
os trabalhadores em suas cidades quando realizavam seus planejamentos individuais
que provessem “empregos úteis e construtivos para quando os veteranos [de guerra]
voltassem” (Hoffman, 1944: 67).
Eram produzidos relatórios de campo regulares para avaliar o sucesso dos novos
empreendimentos. Em Richmon, Virginia, criou-se o Richmon Business Clinic, uma
articulação do CED em que o veterano de guerra dialogava com uma equipe de três
negociantes locais experientes retirados de um grupo rotativo de voluntários. Estes
determinariam suas qualificações em empreender um negócio ou seu encaminhamento a
um arquivo de oportunidades de emprego e requisitos de fornecimento de pessoal
9 Cf. Committe for Economic Development. Disponível em: https://www.ced.org/about/about-ced. Acesso em 15/05/2015.
30
mantido pelas 167 empresas-membro do Richmond Sales Executive Club e outras
companhias cooperadas.
Segundo Hoffman, com o CED almejava-se o “bem estar geral”, e não o bem-
estar de um grupo político ou econômico específico. O planejamento pós-guerra carecia
de políticas fiscais, provisões para o término dos contratos de guerra, a supressão dos
controles da guerra sobre a produção e a distribuição, os créditos e o comércio exterior,
para além de uma relativa prosperidade econômica (Ibidem: 69-70).
O CED existe até hoje e dentre seus principais marcos destaca-se a influência de
seu trabalho que culminou, entre 1944 e 1946, no acordo de Breton Woods, que fundou
o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Em 1948, o CED lançou
um acordo político que viria a se tornar o Plano Marshall: An American Program of
European Economic Cooperation (“Um Programa Americano para a Cooperação
Econômica Europeia”), assinado em 3 de abril de 1948 pelo presidente Harry S.
Truman. Mais tarde, em 1957, o CED assinou um termo de longo prazo, dando início à
Assistência de Desenvolvimento Econômico, “para apoiar o crescimento econômico e
encorajar a independência das nações subdesenvolvidas do mundo livre”10. Na história
oficial do CED, são apresentados alguns de seus feitos considerados relevantes
globalmente: em 1968, realizou a Reforma da Escola Americana, investindo em
inovação na área da educação; em 1985, realizou o projeto “Investindo em Nossas
Crianças”; em 1988, o presidente do CED, Brad Butler, liderou a primeira série da
Cúpula de Negócios e Educação; em 2002, fundou o Business Supports Early Education
(“Suportes aos Negócios em Educação Infantil”) e investiu no envolvimento das
empresas em educação da primeira infância, lançando o Woman on Corporate Boards
Project (“Projeto Mulheres em Quadros Corporativos”) para promover a
10 Idem.
31
competitividade e inclusão das mulheres no mercado de trabalho estadunidense; em
2013, lançou o Sustainable Capitalism Project (“Projeto Capitalismo Sustentável”) para
encorajar líderes empreendedores a terem um papel maior em “responsabilidades
sociais”.11
Segundo a Fundação George Marshall, de 1945 a 1947 os EUA já contribuíam
com a recuperação econômica europeia por meio de ajuda financeira direta. Em janeiro
de 1947, o então presidente dos EUA, Harry Truman, nomeou secretário de Estado
George Marshall – considerado o arquiteto da vitória do país na Segunda Guerra
Mundial.12 Em junho do mesmo ano, o Departamento de Estado, sob liderança de
Marshall, publicou o que seria o Plano Marshall, oficialmente intitulado Programa de
Recuperação Europeia, destinado a reconstruir as economias nacionais da Europa
Ocidental devastadas pela guerra e a combater o avanço do comunismo na região.13 De
acordo com a história oficial do Plano Marshall, George Marshall, Ernest Bevin –
Primeiro Ministro britânico – e Georges Bidault – Primeiro Ministro francês, marcaram
uma conferência em Paris para discutir as ideias do Plano.14 Os governos europeus
estariam com dúvidas em relação aos programas de bem-estar social do governo dos
EUA em meio à propagação de regimes socialistas na Europa. O Ministro do Exterior
soviético, Vyacheslav Molotov, foi convidado para a Conferência de Paris, bem como
alguns países da esfera de influência soviética, como a Polônia e a Tchecoslováquia,
11 Idem. 12 Cf. Marshall Foundation. The Marshall Plan history. Disponível em: http://marshallfoundation.org/marshall/the-marshall-plan/history-marshall-plan/. Acesso em 04/07/2015. 13 Idem. 14 Cf. Marshall Foundation. Marshall Plan speech. Disponível em: http://marshallfoundation.org/marshall/the-marshall-plan/marshall-plan-speech/. Acesso em 04/07/2015.
32
mas não compareceram devido à “rotulagem do imperialismo econômico americano do
Plano Marshall”15.
Em novembro, Truman convocou uma sessão especial do Congresso onde
apresentou o projeto de lei Programa de Recuperação Europeia, solicitando 17 bilhões
de dólares para o período de 1948 a 1951, e Marshall passou a se concentrar na
obtenção da Lei de Cooperação Econômica – para a autorização e financiamento do
Programa de Recuperação Europeia –, insistindo que o Programa reduziria a expansão
da influência soviética.16 Imaginava-se um “espectro do comunismo” tomando conta
principalmente da Itália e da França, na Europa Ocidental, após o lançamento do
chamando manifesto Kominform – acrônimo da organização internacional de vários
Partidos Comunistas da Europa liderada pelo Partido Comunista da União Soviética –,
em que se comprometiam a destruir o capitalismo mundial. A organização havia se
formado em outubro de 1947, poucos dias após o encontro entre partidos comunistas
europeus, convocado por Stalin para resolver divergências entre os governos do Leste
Europeu quanto ao comparecimento na Conferência de Paris (G. I., 1950).
Vyacheslav Molotov propôs o Plano Molotov, em 1947, para fornecer ajuda e
reconstruir os países da Europa Oriental, que se expandiu e culminou, em 1949, no
Comecon (tradução do russo para Council for Mutual Economic Assistance – “Conselho
para Assistência Econômica Mútua”). Além da União Soviética, faziam parte do
Comecon a Bulgária, Tchecoslováquia, Hungria, Polônia, Romênia, Albânia e a
Alemanha Oriental, incluindo, mais tarde, Mongólia, Cuba e Vietnã. Além disso, vários
países, da Etiópia à China, tornaram-se participantes sem direito a voto. Dentre algumas
razões para a emergência do Comecon está a guerra econômica entre a União Soviética
15 Idem. 16 Ibidem.
33
e a Iugoslávia.17 O Comecon almejava constituir-se, ao lado do Cominform (Communist
Information Bureau), como bloco da estrutura do Kremlin para controlar a Europa
Oriental e funcionar como contrapeso ao Plano Marshall e ao combate ao comunismo
soviético (Ibidem: 142).
O Projeto para a Lei de Cooperação Econômica foi autorizado e Marshall
insistiu que o Programa fosse administrado por um órgão autônomo dirigido por uma
única pessoa. Paul Hoffman foi escolhido para o posto, ainda quando presidente da
Studebaker Corporation, e Marshall nunca interferiu no então estabelecido Economic
Cooperation Administration (“Administração de Cooperação Econômica” – ECA, na
sigla em inglês).18 O ECA era ligado ao Departamento de Estado e ao Departamento de
Comércio dos EUA, e possuía um escritório em cada um dos dezesseis países que
aderiram ao Plano Marshall. Após o término do Plano, o ECA foi substituído pela
USAID (United States Agency for International Development – “Agência dos Estados
Unidos para o Desenvolvimento Internacional”), vigente até hoje e atualmente
apresentada como “principal agência governamental dos EUA, focada na erradicação da
extrema pobreza global e na promoção do potencial a ser realizado por sociedades
democráticas e resilientes”19.
planos de paz para o “mundo livre”
Em discurso intitulado “Trade Restrictions and Peace”, proferido em janeiro de
1950, Hoffman apresenta seus planos para a reconstrução da Europa por meio do ECA.
Segundo ele, até a virada do século a Europa era um centro mundial de negócios e 17 Em 1948, o presidente da Iugoslávia, Josip Tito, rompeu decisivamente com Stalin, tornando a Iugoslávia um Estado comunista independente, além de solicitar ajuda estadunidense para a reconstrução do país pós-guerra (Lampe, Prickett e Adamovíc, 1990: 28). 18 Ibidem. 19 Cf. USAID. Who we are. Disponível em: https://www.usaid.gov/who-we-are. Acesso em: 15/03/2016.
34
comércio incontestável, que entrou em colapso com o aumento do nacionalismo político
e econômico e a ascensão do nazismo, fazendo com que “as ferramentas do
nacionalismo em tempos de paz [fossem] convertidas em instrumentos de guerra
econômica; e, após o final das hostilidades, [se mantivessem] os instrumentos de guerra
econômica a serviço do nacionalismo” (Hoffman, 1950: 118). Considera que esse
estrangulamento do comércio intra-Europeu causado por restrições comerciais foi
responsável pela eliminação da competição nas indústrias de base europeias, causando
um deficiente e ineficiente uso dos recursos. Hoffman entendia que se o livre comércio
e uma competição mais viva houvessem prevalecido, a economia europeia teria se
mantido integrada, com livre fluxo de capital, e, assim, nem a Alemanha e nem qualquer
outro país teriam sido capazes de colocar a si mesmos em posição de sustentar um
efetivo ataque a seus vizinhos. Desse modo, para o empresário, não havia como a
Europa encontrar “segurança militar ou bem-estar econômico” sem o fim de tais
barreiras.
Nesse sentido, apontava ter sido a definição de medidas de emergência para
reavivar o comércio intra-europeu uma das primeiras coisas que a Organization for
European Economic Co-operation (“Organização para a Cooperação Econômica
Europeia” – OEEC, na sigla em inglês) fez, em 1948. O centro dessa organização era a
provisão de dólares advindos do ECA para que alguns países comprassem os excedentes
de outros. Sugeriu-se, inicialmente, que os países participantes deste plano tomassem
ações efetivas para remover o excesso de restrições comerciais e, posteriormente, para
eliminar a “prática doentia”, nas palavras de Hoffman, da dupla afixação de preços, a
fim de que se mantivessem os preços de exportação para combustível e material básico
em níveis maiores do que os preços domésticos (Idem: 121).
35
Em 1951, ano seguinte ao seu discurso sobre a paz e as restrições comerciais,
ainda como administrador do ECA, Hoffman publicou o livro Peace can be won, no
qual centra-se sobre como promover a paz, tomando o Kremlin como o principal
inimigo do chamado free world (“mundo livre”), liderado pelos EUA. Na introdução do
livro, discorre sobre como dias após proferir uma palestra na Universidade de Wellesley
sobre a promoção da paz, deu-se conta de que preocupar-se com a paz parecia algo não
realista, uma vez que, naquele momento, norte-coreanos lançavam-se agressivamente
contra a República da Coreia, por exemplo. Na época, o Conselho de Segurança da
ONU (Organização das Nações Unidas) classificou o ataque como uma invasão não
provocada e disse a todos os membros que prestassem assistência para parar a agressão.
Segundo Hoffman, as forças que responderam ao chamado da ONU vieram largamente
dos EUA, e tensões atingiram seu clímax quando o Exército Norte-Coreano foi
reforçado por várias centenas de milhares de novas tropas – os “voluntários” chineses.
Conta que o presidente Truman, em 16 de dezembro de 1950, proclamou estado de
emergência nacional e que, apenas seis dias após o Victory Day, havia forte mobilização
dos homens estadunidenses, materiais e máquinas, fundidos com o poderio militar,
enquanto o Kremlin estaria olhando com avidez cada vez mais nítida para os campos de
petróleo no Irã e na Arábia Saudita. E não apenas na França e na Itália, mas no Líbano,
Brasil e Indonésia, chamava atenção para uma “agitação comunista, subversão,
propaganda e sabotagem (...) crescendo em velocidade e em escopo. Como uma nuvem
negra sobre a Europa Ocidental, (...) a ameaça de um Exército Vermelho marchando
para o Atlântico” (Hoffman, 1951: 14).
Desse modo, apontando para a ameaça de uma terceira guerra mundial, Hoffman
defendia a necessidade dos EUA adentrarem em um programa claramente definido para
a paz com direção à condução dessa guerra: “devemos travar uma guerra não para
36
ganhar a guerra, mas para ganhar a paz” (Idem: 14). Justifica, portanto, esta disputa pelo
monopólio da violência por meio da condução de uma guerra em nome da paz mundial,
como uma obrigação “como humanos sãos e civilizados” (Ibidem: 14) para evitar uma
guerra generalizada provocada pelo comunismo. Enfatizava, ainda, que a União
Soviética teria realizado e ainda realizava um tipo completamente novo de guerra
mundial contra os não-comunistas para alcançar seu objetivo de conquista do mundo,
em que a frente militar seria apenas uma de outras três frentes: econômica, política e
psicológica – e por isso muito mais perigosas e menos visíveis do que uma guerra
puramente de devastação, violência física e destruição de exércitos em confronto.
A frente militar seria uma imensa máquina de guerra comandando, dentro de seu
território, o potencial militar de seus satélites na Europa Oriental e seus parceiros na
Ásia. A frente econômica seria movida por investimentos em fazendas e fábricas em
todas as nações em torno da União Soviética. Segundo Hoffman, em áreas fora de seu
controle direto, ela procurava perturbar e prejudicar a estabilidade econômica e o
progresso, provocando greves, sabotagens e a desaceleração e exploração dos
trabalhadores descontentes com seus baixos salários, assim como o ressentimento dos
camponeses contra o aluguel elevado de suas terras e a fome (Ibidem: 14).
Politicamente, a União Soviética posicionaria nação contra nação para destruir alianças
e fidelidades dentro do “mundo livre”, usando seus apoiadores na ONU para impedir
qualquer esforço em direção à cooperação internacional. Já a frente psicológica se ateria
a gerar conflitos, suspeitas e desconfianças em todos os estratos sociais, ampliando
diferenças políticas e econômicas.
Para Hoffman, a realidade da segurança dos EUA estava inseparavelmente
ligada à de outras “nações livres”. Portanto, ele, que se afirmava isolacionista, diz ter
deixado de sê-lo ao viver as duas primeiras guerras mundiais e ao ver os novos
37
totalitarismos se constituírem. Citando Walter Lippmann, situava ter aguçado e
cristalizado suas ideias referentes ao lugar da “América” nesse novo tipo de mundo
interdependente que emergia no pós-Segunda Guerra Mundial:
Devemos testemunhar o alvorecer do entendimento de que um novo poder existe destinado a ser sucessor de Roma e da Grã-Bretanha como os doadores da paz, e essa missão é preparar a si mesmo para o cumprimento deste destino. Me refiro, é claro, aos Estados Unidos da América (...). Não importa quantos Americanos hoje não gostem disso, eles não podem rejeita-lo. Sua grandeza, sua posição e seu poder dentre as pessoas da Terra implicam que aceitem seu destino (Walter Lippmann apud Paul Hoffman, 1951: 13-15).
Walter Lippmann foi um jornalista estadunidense crítico ao socialismo e
importante para a história do neoliberalismo. Neste caso, Hoffman se refere a uma série
de conferências proferidas por Lippmann, em 1938, na Universidade de Chicago. Um
ano depois fora realizado o Colóquio Walter Lippmann, em que se cruzaram agentes do
liberalismo tradicional europeu – como Wilhelm Röpke, e também referências do
neoliberalismo estadunidense como Friedrich Hayek e Ludwig von Mises –, e em que
se delinearam os princípios do que ficou conhecido como neoliberalismo.
A partir das elucubrações de Lippmann citadas por Hoffman, este estabelece
que, em 1938, os EUA assumiram um pensamento ilusório de neutralidade, mantendo-
se fora da guerra. Já após a Segunda Guerra, considera ter se evidenciado o fato de não
poderem mais abandonar a Europa e a Ásia e fazerem empreendimentos, como sempre
faziam, no que chama de “nossa grande ilha-continente” (Ibidem: 26).
Destaca ter aprendido em seu período como administrador do ECA que se os
EUA conduzissem efetivamente o papel de liderança mundial, deveriam “trabalhar com
o resto do mundo livre em uma base de parceria e união, fundada no respeito de visões e
interesses diferentes dos nossos” (Ibidem: 27). Como exemplo, destaca a parceria dos
EUA com a Turquia:
38
Eu tremo só de pensar na reação deste líder orgulhoso e sábio do povo da Turquia se (como alguns dirigentes em “segundo plano” têm demandado) eu tivesse dito a ele que poderíamos continuar com a ajuda do Plano Marshall apenas se seus generais implantassem uma dúzia de divisões em determinado ponto e em determinado momento. Para ser firme, e até mesmo forte, não significa ser ditatorial; temos de manter sempre em mente que a essência da genuína liderança é compartilhar o poder com as pessoas ao invés de exercer o poder sobre as pessoas (Hoffman, 1951: 28).
A guerra contra a União Soviética era tida por Hoffman como uma postura de
defesa em vias de alcançar uma paz mundial estabilizadora, em que o Kremlin fosse
forçado a travar a paz com as outras nações, ou, citando o Primeiro Ministro britânico
Winston Churchill (1940-45 e 1951-55), em que os EUA pudessem negociar com o
Kremlin “desde que mantivessem sua força”.
“Primeiramente como homem de negócios”, Hoffman propunha um programa de
promoção e consagração da paz para que esta fosse durável, contra as contínuas
despesas da Guerra Fria ou de uma guerra generalizada, que reduzisse as taxas e o
balanceamento do equilíbrio dos EUA. A promessa de paz seria não apenas direcionada
à liberdade das futuras gerações do país, mas a todos os que estavam presos na União
Soviética, concluindo: “Apenas se abraçarmos essa oportunidade com fé em nós mesmo
poderemos manter a fé no homem. Apenas assim poderemos esperar constatar, quando
essa década de decisões terminar, que conformamos o início da primeira paz durável
que o homem já construiu” (Ibidem: 87).
A crítica ao Plano Marshall, como plano de recuperação europeia e de guerra ao
comunismo, veio em grande medida de economistas como Wilhelm Röpke, do
ordoliberalismo alemão, ao alegar que o Plano teria barrado a transição para o livre
mercado na Europa com a adoção de um planejamento central. Ludwig von Mises
também criticou intensamente o Plano Marshall, conforme artigo de 1952, quando
afirma que em um programa de governo o que importa não é a sua popularidade, mas a
39
sua eficiência em termos de alcance ou não das políticas projetadas. Reitera que a
política do laissez-faire, antes de tudo, visa melhorar a vida das pessoas, mas sua falta
de sucesso é agravada devido às medidas socialistas e intervencionistas (von Mises,
1952). Defende que a curto prazo as condições de parte do povo podem ser melhoradas
por meio da expropriação dos empresários e capitalistas e pela distribuição do espólio,
porém tais incursões predatórias sabotam o funcionamento da economia de mercado,
que inclusive prejudicam as condições e esforços dos empresários “em fazerem as
massas mais prósperas” (von Mises, 1952).
Assim, estabelece que o Plano Marshall foi o pior método a ser adotado para
combater o comunismo, uma vez que dá aos beneficiários a impressão de que os EUA
só estão interessados na preservação do sistema de lucro, enquanto seus interesses
requerem um regime comunista. Os beneficiários embolsam este “suborno”, mas se
simpatizam mesmo com o sistema socialista: “os subsídios americanos tornam possível
a que seus governos ocultem parcialmente os efeitos desastrosos das várias medidas
socialistas que adotaram” (Ibidem). Países como a China e a Índia, por exemplo, teriam
sido beneficiados por alguns dos frutos do capitalismo de outros países, sem terem
adotado o modo de produção capitalista. Desse modo, ao impedir a entrada de capital
estrangeiro e a acumulação de capital nacional, o efeito da alta taxa de natalidade e a
ausência de aumento de capital resultaram no aumento de pobreza (Ibidem).
O Plano Marshall obteve críticas à esquerda, na época representada pela União
Soviética, por se apresentar como o fortalecimento do imperialismo estadunidense, bem
como por liberais, como von Mises, ao criticar o caráter centralizador e intervencionista
do Plano, por impedir uma real autonomia e liberdade de mercado. Porém, vê-se como,
desde o CED, que fora criado após a Segunda Guerra para “estimular” pessoas a
tomarem decisões racionais e expandir seus negócios e produtividade pensando na
40
“transição para a paz”, havia a preocupação das organizações nascentes voltadas ao
desenvolvimento em introduzir práticas de “auto capacitação” e “auto
empreendimento”. Práticas estas que estarão conectadas e cada vez mais arraigadas e
afinadas não à ideologias, mas a uma forma de pensar, investir e se organizar referente a
uma racionalidade neoliberal. Além disso, esta racionalidade se fará adequada aos
tempos considerados de paz, prescindindo de grandes guerras pelo e para o poder. Em
nome do desenvolvimento e do humano como valor universal, estará muito mais afeita
às práticas que visem o compartilhamento de poder, ampliando e disseminando suas
relações.
1.2. a emergência de uma racionalidade neoliberal e seus itinerários
governamentalidade e neoliberalismo
No curso Nascimento da Biopolítica, proferido no Collége de France entre 1978
e 1979, Michel Foucault situa as crises do liberalismo que se manifestaram em torno de
John Maynard Keynes e de políticas intervencionistas como as do Welfare, introduzidas
por Franklin Roosevelt, que levaram a certas reavaliações nos EUA, antes e depois da
Segunda Guerra Mundial, mais precisamente ao final dos anos 1970 e início dos anos
1980. Segundo Foucault, as crises do liberalismo estão ligadas às crises da economia do
capitalismo, porém, saber como essas crises são geradas e como se manifestam não é
totalmente dedutível destes episódios, pois são crises do dispositivo geral da
governamentalidade (Foucault, 2004: 95) – entendendo que o Estado não é em si uma
fonte autônoma de poder, não é um universal, não tem uma essência, mas é o “efeito
móvel de um regime de governamentalidades múltiplas” (Ibidem: 106).
41
Governamentalidade, para Foucault, relaciona-se às artes de governar
emergentes em meados do século XVI ao fim do século XVIII. Uma problemática do
governo – de si, do governo das almas e das condutas, do governo da família, etc. – teve
como grandes pontos de apoio a pastoral cristã, com o problema do governo das almas;
uma nova técnica diplomático-militar entre os Estados; e a polícia, como o cálculo e
técnica que visam a estabilidade e controle da ordem interna do Estado e do crescimento
de suas forças (Foucault, 2008: 146). O filósofo situa a emergência desta
governamentalidade no contexto em que os grandes Estados territoriais, administrativos
e coloniais ocupam o lugar das estruturas feudais, e quando reaparece uma literatura que
tem como ponto mais evidente Maquiavel – em um contexto de revoluções que
poderiam ameaçar o poder soberano sobre um Estado; contexto do problema da unidade
territorial da Itália e da Alemanha –, e posteriormente uma literatura anti-Maquiavel.
Esta, diferente da primeira em que o príncipe está em uma posição de exterioridade e
transcendência em relação ao seu principado, instalará a problematização de uma
relação ascendente e descendente do governo na medida em que, para ser capaz de
governar o Estado, deve-se saber governar a si próprio, sua família, etc. Nestas relações
de governo e administração, nesta continuidade de múltiplos governos, segundo
Foucault, o elemento central é a economia; uma economia política que permitirá ao
governo uma disposição certa e calculada das coisas, levando em conta acontecimentos
possíveis, entendendo que existe um fim adequado dentre diversos fins possíveis para
cada uma dessas coisas (Idem: 131). Diferente das leis soberanas impostas para a
obediência dos súditos, esta ruptura provocará uma certa disposição, uma utilização de
mais táticas do que leis, ou mais leis como táticas, para que uma finalidade seja
alcançada. Um deslocamento fundamental será que, enquanto na teoria jurídica do
soberano tem-se uma descontinuidade entre o poder do príncipe e outras formas de
42
poder, as teorias derivadas das artes de governar procuravam estabelecer uma
continuidade – ascendente e descendente, entre quem governa o Estado e sua família,
seu patrimônio, suas relações, etc. (Foucault, 2012a: 281).
Ao lado dessa noção de governo como arte de governar, todo um conjunto de
análises e saberes que se desenvolveram, desde o fim do século XVI, ganhou amplitude
no que se concentrou precisamente como “estatística”, a ciência do Estado por
excelência (Ibidem: 138).
Dentre as razões que teriam impossibilitado a consistência dessa
governamentalidade antes do século XVIII, o filósofo aponta para as grandes revoltas e
crises financeiras que endividaram a política das monarquias ocidentais no fim do
século XVII; e o fato desta arte de governar não encontrar uma autonomia para se
desenvolver em meio ao domínio do problema do exercício da soberania como questão
teórica e de organização política.
O desbloqueio desta nova arte de governar, segundo Foucault, deu-se com a
emergência do problema da população, quando esta emerge como o próprio fim e
instrumento do governo (Ibidem: 139). A estatística, que funcionava de modo restrito
aos marcos administrativos, permite verificar que a população possui regularidades
próprias, como o número de nascimentos, de mortes, de doentes, de acidentes, etc. Não
que antes não houvesse preocupação com a população e com a obediência desta
população, mas esta era vista de modo negativo, relativa a questão de como se repovoar
um território após algum grande desastre ou como elemento de uma conquista político-
militar.
O Estado de polícia e sua prática, que até meados do século XVIII consistia em
uma disciplinarização geral dos indivíduos e do território do reino, será criticado pelos
economistas e fisiocratas da época a partir dos problemas da circulação dos cereais e a
43
questão da escassez alimentar. Emergirá, com os fisiocratas, a percepção de que existe
um certo curso das coisas que não se pode modificar, ou que, precisamente por tentar
modificá-lo, por meio da regulamentação policial, agrava-se seus problemas. E a
população como objeto de governo não será mais pensada de acordo com a
numerosidade dos indivíduos trabalhando, pois será mais importante que este número
seja auto ajustável em função dos recursos que estão à sua disposição. Nessa razão de
governar emergente, o Estado agirá como regulador de interesses. O Estado e a
governamentalidade que lhe será prescrita, terão como princípio o respeito aos
processos naturais. Haverá uma intervenção da governamentalidade estatal limitada,
mas não de forma negativa; haverá um domínio “de intervenções possíveis, de
intervenções necessárias, mas que (...) muitas vezes não terão em absoluto a forma da
intervenção regulamentar. Vai ser preciso manipular, vai ser preciso suscitar, vai ser
preciso facilitar, vai ser preciso deixar fazer, vai ser preciso, em outras palavras, gerir e
não mais regulamentar” (Ibidem: 474).
Há a constituição de um saber de governo indissociável à constituição de um
saber de todos os processos que giram em torno da população, que passa a ser alvo de
intervenção e instrumento do Estado na medida em que será possível, graças a essas
estratégias e esses saberes, que o próprio Estado se defina continuamente (Ibidem: 145).
É nesse sentido, portanto, que Foucault afirma não haver uma “estatização da
sociedade”, mas uma “governamentalização do Estado” (Ibidem: 145), situando-a,
portanto, por governamentalidade,
O conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. [E] (...) a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito tempo, para a preeminência desse tipo de
44
poder que podemos chamar de “governo” sobre os outros – soberania, disciplina – e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo [e, por outro lado], o desenvolvimento de toda uma série de saberes (Ibidem: 143-144).
De forma complementar, mas distinta à disciplina dos corpos durante o século
XVIII, Foucault situa a emergência de uma nova tecnologia de poder que utiliza a
anterior para se efetivar dirigindo-se, não ao homem-corpo, mas ao homem como ser
vivo, ao homem enquanto espécie. A esta tecnologia de poder Foucault denominou
biopolítica da espécie humana, como possibilitadora de intervenção no conjunto que é a
população como problema político, problema científico, problema biológico e problema
de poder em seu meio de existência (Foucault, 2010: 2016). Incidindo sobre a vida, a
biopolítica intervirá de modo a fazer viver e deixa a morte de lado, ultrapassando o
direito soberano de “fazer morrer e deixar viver”.
A governamentalidade contemporânea, segundo Foucault, nasce com a
configuração da economia-política no século XVIII, permitindo a autolimitação do
Estado, antes exercido pelo direito. Ela fará com que funcione uma série de mecanismos
do domínio da economia, que são do domínio da gestão da população e que terá por
função fazer crescer as forças do Estado (Foucault, 2008: 475). Esta
governamentalidade funcionará por meio de uma naturalidade específica das relações
dos homens em sociedade. A sociedade civil será, portanto, um campo específico de
intervenção como produto do Estado; será o que a governamentalidade emergente no
século XVIII fará surgir como correlativo necessário do Estado, que este deverá gerir e
assegurar (Idem: 470). O Estado deverá também reivindicar uma racionalidade sobre os
processos da população a fim de medir e calcular no que se deve, ou não, intervir. Tais
processos envolverão cada um dos indivíduos e suas interações em um vínculo que
passa pelo Estado. Serão processos construídos histórica e politicamente como naturais
45
e, portanto, o Estado não deverá intervir de forma regular, mas suscitar, manipular,
deixar agir, deixar governar, por meio de mecanismos de segurança que regularão a
desordem, os ilegalismos, as irregularidades (Ibidem: 475).
Essa arte de governar, ou esse novo tipo de cálculo, estará atrelado ao
liberalismo, o qual se opõe à razão de Estado ou a modifica, porém sem questionar seus
fundamentos (Foucault, 2004: 30), e será essa nova razão que permitirá unir pontos
aparentemente divergentes, se refazendo em meio à guerra ou à paz.
Na Alemanha, a programação liberal demarcou pontos de ancoragem e pontos
históricos desde a República de Weimar, da crise de 1929 e do desenvolvimento do
nazismo, à crítica do nazismo e aos planos de reconstrução no pós-Segunda Guerra
Mundial (Idem: 107). Já a ancoragem dos EUA remete à política do New Deal, à crítica
da política de Roosevelt e o Welfare State, aos contra posicionamentos em relação aos
intervencionismos pós-guerra e aos programas de assistência implantados
principalmente por Truman, Kennedy, Johnson, etc. (Ibidem: 107). Entre a ancoragem
alemã e a estadunidense existem diversas pontes. Dentre elas, o inimigo comum –
Keynes e o socialismo –; os mesmos objetos de repulsão – a economia dirigida, a
planificação, o intervencionismo de Estado; e uma série de personagens, teorias e livros
que circularam, principalmente em torno da escola austríaca, como Ludwig von Mises e
Friedrich von Hayek (Ibidem: 108).
Ludwig von Mises nasceu em meio a um processo de desmembramento do
partido liberal que gerou governos intervencionistas autoritários em Viena, na Áustria,
durante o século XX. Conforme exposição de Edson Passetti em Política e massa: o
impasse liberal por Ludwig von Mises, Viena sinalizava para convergências estatizantes
como reação ao liberalismo, assumindo a forma do Welfare State. Na década de 1880, a
derrota em Sodowa para Bismarck levou os liberais ao poder com uma política que,
46
mais tarde, cedeu lugar aos partidos de massa ligados a uma renovação católica
(Passetti, 1994: 28).
De acordo com Passetti, von Mises argumentava para a inviabilidade do
socialismo pela ausência de cálculo econômico e o intervencionismo como
subordinação da propriedade privada dos meios de produção à autoridade
governamental, exigindo do liberalismo a defesa do laissez-faire econômico com o
Estado garantindo a cooperação pacífica (Idem: 41). O cálculo econômico monetário do
capitalismo, em oposição ao planejamento econômico do governo no socialismo, teria a
democracia como suporte para uma produção racional de lucratividade e eficiência na
geração de novas empresas e trabalhos, fazendo dela, portanto, uma necessidade liberal,
ao realizar-se na economia (democracia do consumidor) e na política (democracia do
cidadão) (Ibidem: 46-47).
Passetti mostra, ainda, que a concepção de propriedade privada de von Mises
exige do Estado apenas a função de coerção e compulsão, mantendo a liberdade do
indivíduo no mercado como prerrogativa de sua busca utópica dos valores liberais de
propriedade privada, liberdade e paz. Essa lógica de harmonia de interesses “funda-se
na compreensão de que os acontecimentos humanos são resultantes de finalidades
perseguidas pelos indivíduos, onde eles cedem temporariamente, visando obter um
ganho futuro” (Ibidem: 65). Desconhecendo o destino de uma ação, a praxeologia, ou
teoria da ação humana, estabelecida por von Mises, estudará os meios mais apropriados
para o alcance de determinado fim.
Algo que, de acordo com Passetti, evidencia o pensamento de von Mises
inserido numa cômoda posição diante da inevitabilidade de uma praxeologia que pode
tornar-se estática; onde qualquer imprevisto que escape de seu parâmetro finalista
definido a priori seja nada além do que “equívoco da escolha” (Ibidem: 260). Já o
47
anarquismo, ainda segundo Passetti, não possui uma exposição e sistematização de
ideias a ser universalmente aceita, mas dirige-se para a supressão do Estado como forma
de realização do indivíduo (Ibidem: 276). Para o anarquismo, em suas palavras, “sem
autoridade ou poder e postulando relações comunais livres, a primazia é a da liberdade
individual, enquanto que para o liberalismo, a liberdade individual e a autonomia estão
fundadas na competitividade da propriedade” (Ibidem: 288). Nesse sentido, decorre que
“para a liberdade miseana, deve haver correspondência entre democracia política e
democracia econômica, do ponto de vista anarquista, a superação dessas democracias
exige correlação entre mutualismo e federalismo: à inevitabilidade de Estado de um,
corresponde o não-Estado do outro” (Ibidem: 294).
É fundamental ressaltar, ainda acompanhando as análises de Passetti, que a
liberdade individual reiterada pelo liberalismo revestiu também sua justificativa de
conivência com o nazismo, sob o argumento de preferência pela propriedade privada, e
de que uma ditadura com capitalismo dura menos do que uma ditadura com socialismo.
itinerários neoliberais
De acordo com os apontamentos de Foucault e conforme evidencia os esforços
de Hoffman e seus itinerários entre empreendimentos ligados à reconstrução pós-
Segunda Guerra Mundial bastante próximo da reconstituição de um discurso neoliberal,
em toda a Europa, naquele momento, reinavam políticas econômicas fundamentalmente
keynesianas comandadas por uma série de exigências voltadas à reconversão de uma
economia de guerra para uma economia de paz e de planificação. Eram requeridas tanto
por necessidades internas como devido ao peso dos EUA e sua política comandada pelo
Plano Marshall, que implicava uma planificação de cada país europeu e coordenação
48
dos diferentes planos; e também permeadas por objetivos sociais que evitassem o
fascismo e o nazismo que acabavam de ocorrer (Foucault, 20054: 108).
A ideia de uma fundação legitimadora do Estado sobre o exercício garantido de
uma liberdade econômica, como expresso no discurso de Ludwig Erhard na assembleia
de Frankfurt de 1948, garantia a liberdade econômica à Alemanha, que estava se
reconstituindo, e garantia aos estadunidenses a possibilidade de estabelecer com essa
economia alemã as livres relações que pudessem escolher (Ibidem: 113).
Foucault chama atenção para como a economia, no caso da Alemanha, produziu
soberania política e legitimidade para o Estado. Há um deslocamento do liberalismo
programado pelos fisiocratas e economistas do século XVIII, que tinha como problema
abrir espaço para uma necessária liberdade econômica no interior de um Estado em
pleno funcionamento, para a questão da Alemanha de como construir um Estado a partir
do espaço da liberdade econômica (Ibidem: 117).
O economista Walter Eucken, que estava na mesma conferência que Erhard em
1948, fundou a revista Ordo e constituiu a Escola de Friburgo, da qual transitou
Friedrich von Hayek – um dos inspiradores do neoliberalismo estadunidense – quando
nomeado, em 1962, professor em Friburgo (Ibidem: 143). De acordo com Foucault, os
ordoliberais tentaram identificar uma invariante antiliberal presente em regimes
políticos diversos, como o da União Soviética, o do nazismo e o do New Deal, que
parecia não se estabelecer entre as diferenças entre o socialismo e o capitalismo, mas
ligada a um problema liberal relacionado às formas de intervencionismo em diferentes
graus (Ibidem: 151). A Escola de Friburgo, partindo dessas análises, estabeleceu que,
uma vez que o Estado, à direita ou à esquerda, possui defeitos intrínsecos, a economia
de mercado deveria servir como princípio de regulação interno do Estado. Diferente do
liberalismo do século XVIII – em que o mercado era definido a partir da troca livre
49
entre dois parceiros e em que o Estado supervisionava o bom funcionamento dessas
trocas –, nesse novo liberalismo, a essência do mercado seria a concorrência (Ibidem:
161), na medida em que se pressupôs que esta deveria ocorrer de forma plena para
regular as escolhas, sob intervenções do Estado realizadas, no máximo, para impedir a
formação de monopólios. Por meio de uma governamentalidade ativa, conforme expõe
Foucault, torna-se então necessário governar para o mercado, e não por causa do
mercado (Ibidem: 165).
É na esteira do Colóquio Walter Lippmann que se formará a “Comissão
internacional de estudo para a renovação do liberalismo” (CIERL), em 1939, propulsora
de um liberalismo com uma política ativa e de intervenção permanente (Ibidem: 183).
Este Colóquio é importante na história do neoliberalismo por ter cruzado o liberalismo
tradicional do ordoliberalismo alemão, com Röpke e Rüstow, e liberais, como Hayek e
von Mises, que serão os intermediários entre o ordoliberalismo alemão e o
neoliberalismo americano (Ibidem: 222-223).
É interessante na análise de Foucault a exposição sobre as adesões a esta política
de liberação, como a rápida adesão da Democracia Cristã e também dos sindicatos.
Theodor Blank, vice-presidente do sindicato dos mineiros, declara que a ordem liberal
constitui uma alternativa válida ao capitalismo e ao planismo, mas, na realidade, vê que
nesse neoliberalismo haveria uma síntese entre capitalismo e socialismo, uma vez que
“a ordem liberal nunca havia pretendido ou certamente não pretendia, na boca do futuro
chanceler Erhard, ser uma alternativa ao capitalismo, mas sim certa maneira de fazer o
capitalismo funcionar” (Ibidem: 119). Foucault também aponta para a adesão da social-
democracia alemã quando, em 1959, no Congresso de Bad Godesberg, ela renuncia ao
princípio da passagem à socialização dos meios de produção e reconhece que a
propriedade privada destes é não apenas legítima como tem direito à proteção e ao
50
incentivo do Estado (Ibidem: 120). Neste Congresso é aprovado o princípio de uma
economia de mercado onde quer que reine as condições de uma verdadeira concorrência
(Ibidem: 120). Assim, destaca, há “a adesão a todo um conjunto doutrinal e
programático que não é simplesmente uma teoria econômica sobre a eficácia e a
utilidade da liberdade do mercado. Adesão a algo que é um tipo de governamentalidade,
que foi justamente o meio pelo qual a economia alemã serviu de base para o Estado
legítimo” (Ibidem: 120-121).
O modelo de neoliberalismo alemão é importante, segundo Foucault, por ser a
possibilidade de uma governamentalidade neoliberal (Ibidem: 265). Os EUA, porém,
tiveram uma renovação liberal peculiar. O New Deal, tido como uma política
keynesiana desenvolvida por Roosevelt, em 1933-34; o plano Beveridge, na Inglaterra,
e os projetos de intervencionismo econômico e social elaborados durante a Segunda
Guerra; e os programas sobre pobreza, educação e segregação social desenvolvidos
durante a administração de Truman à Johnson, sofreram críticas de ancoragem tanto à
esquerda – pelo desenvolvimento de um Estado imperialista e militar – como à direita –
hostil à políticas relacionadas ao socialismo (Idem: 300). O liberalismo dos EUA não
estaria, portanto, relacionado apenas ao aspecto econômico de livre mercado ou às
políticas liberais instituídas pelos governantes, mas estaria sendo difundido cada vez
mais como uma racionalidade que produz e reproduz uma certa maneira de pensar que
dilui ideologias. Algo que ganhará novos contornos, nos anos 1970, com a teoria do
capital humano de Theodore Schultz, e com Hayek, culminando numa maior
radicalidade na generalização da forma econômica do mercado.
51
organizações internacionais em ascensão
Já ao final dos tempos de guerra, com Programas como o CED de reconversão
dos veteranos de guerra e, principalmente no pós-Segunda Guerra, haverá uma
preocupação com a reconstrução europeia e das políticas entendidas como de
intervencionismo nos próprios EUA. Porém, interessa menos o caráter keynesiano ou
socialista atribuído aos planos de reconstrução, como o próprio Plano Marshall – que
inclusive não deixará de estar presente e de forma constitutiva do próprio Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) – e mais seus efeitos, críticas e
revisões de maneiras alternativas, de uma maneira de pensar, uma maneira de fazer
funcionar a economia-política que permitiram a configuração e a adesão de uma
governamentalidade neoliberal. Este contexto mostra-se favorável ao crescimento de
organizações internacionais, como a própria ONU, em 1945, e a formação de Fundações
e filantropias voltadas para o desenvolvimento, como uma pretensa neutralidade de suas
políticas ancorada nos valores de uma paz democrática.
Após deixar a direção do ECA, Paul Hoffman foi nomeado presidente da
Fundação Ford. Estabelecida em Detroit, EUA, em 1936, ela foi construída a partir de
doações iniciais de Edsel Ford, cujo pai, Henry Ford, havia sido fundador da Ford
Motor Company. Após a morte de ambos, Henry Ford II, filho de Edsel, tornou a
Fundação Ford a maior instituição filantrópica do mundo, expandindo-se, a partir de
1950, para tornar-se internacional.20
O futuro presidente da Fundação, H. Rowan Gaither, um advogado de San
Francisco, recomendou que a Fundação se dedicasse ao avanço do “bem-estar humano”.
Seus objetivos foram elencados em relatório oficial do conselho, em 1949, abrangendo
20 Cf. Ford Foundation. History. Disponível em: http://www.fordfoundation.org/about-us/history. Acesso em 05/05/2015.
52
desde “prometer contribuições significativas para a paz mundial”, “o estabelecimento de
uma ordem mundial da justiça e da lei” e “assegurar uma maior fidelidade aos
princípios básicos da liberdade e da democracia na solução dos problemas de uma
sociedade em constante mudança” até “aumentar o conhecimento de fatores que
influenciam ou determinam a conduta humana e estender esse conhecimento para o
máximo benefício de indivíduos e da sociedade”.21
Durante a Presidência de Paul Hoffman, a Fundação abriu seu primeiro
escritório internacional em Nova Déli, na Índia, que havia se tornado independente dois
anos antes, a convite do primeiro ministro, Jawaharlal Nehru. A Fundação tornou-se
ativamente envolvida nos primeiros programas de desenvolvimento rural em parceria
com instituições governamentais da Índia.
Anos antes, em 1948, o Project RAND – organização formada após a Segunda
Guerra Mundial para conectar planejamento militar com pesquisas e decisões no âmbito
do desenvolvimento – se separou da Douglas Aircraft Company e tornou-se uma
organização independente e sem fins lucrativos, a Rand Corporation. “A entidade
recém-formada dedicou-se a aprofundar e promover o desenvolvimento para fins
científicos, educacionais e de caridade para o bem-estar público e de segurança dos
Estados Unidos”22.
Segundo a própria Rand Corporation, ela desenvolveu um estilo único,
montando, ao longo do tempo, um corpo único de investigadores notáveis por suas
habilidades individuais e por seu compromisso com a cooperação interdisciplinar. Na
21 Idem. 22 Ford Foundation. A Brief history of Rand. Disponível em: http://www.rand.org/about/history/a-brief-history-of-rand.html. Acesso em 05/05/2015.
53
década de 1960, ampliou-se para fora dos Estados Unidos “com o objetivo de tornar os
indivíduos, comunidades e nações mais seguros, mais saudáveis e mais prósperos”23.
Nascida da competição na chamada Guerra Fria com a União Soviética, a
agenda relacionada com a defesa da Rand Corporation logo envolveu a atenção dos
EUA para abranger áreas como o espaço sideral, assuntos econômicos, sociais, políticos
e no exterior, e o papel do governo na resolução de problemas sociais e econômicos.
Ainda como Project Rand, destaca-se, em maio de 1946, onze anos antes da órbita do
Sputnik – primeiro satélite artificial da história –, seu primeiro relatório divulgado
intitulado Preliminary Design of an Experimental World-Circling Spaceship.
Antes de 1950, a Fundação Ford, que era estritamente um órgão local para a
redistribuição de donativos, extrapolou os limites do estado de Michigan ao colaborar,
em 1948, com recursos que permitiram a criação da Rand Corporation, e ao fornecer
subsídios regulares ao MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York), assim como
para instituições de saúde de outros estados (Chaves, 2009: 224).) e instituições de
saúde de outros estados (Chaves, 2009: 224). Sua criação respondia à implantação do
Revenue Act, em 1935, que estabelecia um aumento nos impostos às propriedades de
valor superior a 50 milhões de dólares. Porém, as atividades filantrópicas eram isentas
desta taxação, o que possibilitou a transferência do patrimônio da família Ford e a
doação de empresas privadas para atividades de caridade e de filantropia na Fundação
Ford. Nesse momento, na virada para a década de 1950, o valor de mercado da
Fundação Ford se sobrepôs ao de outras fundações como a Carnegie e a Rockefeller
(Idem: 224).
Em setembro de 1950, foi publicado o Gaither Report, encomendado pelo então
presidente da Fundação Ford, H. Rowan Gaither, Jr., a um comitê composto por
23 Ibidem.
54
diretores e presidentes das principais universidades dos EUA, cientistas sociais,
cientistas políticos, advogados, presidentes e consultores de agências do governo, ONGs
e empresas como a National Academy of Science e a American Psychological
Association. O relatório é tido como marco de uma virada da Fundação entregue às
propostas de uma nova agenda de longa-duração em meio à chamada Guerra Fria.
O primeiro capítulo do relatório intitula-se Human Welfare, em que se determina
a necessidade de todos os esforços para prolongar a vida, erradicando doenças,
prevendo a má nutrição e a fome, removendo as causas de acidentes violentos e, acima
de tudo, a prevenção da guerra (Ford Foundation, 1949: 17). Apresenta como elementos
chaves para essa condição a dignidade humana, a liberdade e os direitos políticos e
pessoais – como a promoção do autogoverno –, a responsabilidade social e o dever de
serviço – em que cada pessoa reconheça sua obrigação moral de usar suas capacidades,
contribuindo positivamente ao bem-estar social (Idem: 17-18). O conceito de bem-estar
humano estaria intimamente relacionado ao ideal de democracia, no qual os indivíduos
podem se tornar mais produtivos e de forma mais segura. Portanto, uma das principais
funções do governo seria a de assegurar a presença das condições para a liberdade, e
então as instituições políticas obteriam significado e uma boa chance de sobreviver
quando refletissem um modo de vida onde todas as organizações e relações entre as
pessoas respirarem o espírito da democracia, estabelecido por meio de um costume, um
modo de vida (Ibidem: 19).
Quando Paul Hoffman fora nomeado presidente da Fundação Ford, em
novembro de 1950, foram empregados sistema de parcerias, num momento em que
havia o consenso de que agências privadas poderiam realizar estudos de interesse
governamental melhor do que agências governamentais (Idem: 236). Determinada a
atuar conforme a caracterização e promoção do “mundo livre” comandado pelos EUA
55
para o mundo, e em especial aos países chamados subdesenvolvidos por meio de uma
agenda política extensa, firmava-se a consolidação da Doutrina Truman e do Plano
Marshall. Em 1952, no âmbito da ONU, Hoffman fundou e tornou-se diretor do Fundo
Especial das Nações Unidas para o Desenvolvimento Econômico. Este viria a se fundir,
em 1964, com o Programa Expandido de Assistência Técnica (EPTA, na sigla em
inglês) para a constituição do PNUD, cujo primeiro administrador foi Paul Hoffman,
considerado herói do Plano Marshall e homem de confiança do Congresso nomeado
pelo presidente Johnson, uma vez que os EUA financiavam mais da metade das
despesas do EPTA.
1.3. ecopolítica do planeta e o espraiamento das grandes organizações
internacionais
ecopolítica e os redimensionamentos do desenvolvimento
Se a biopolítica da população enquanto uma tecnologia de poder tinha como
objeto e objetivo a vida, Foucault questionará como se exercerá o direito de matar se o
poder de soberania de “fazer morrer e deixar viver” recuava. Há, então, que a
emergência desta tecnologia de poder, inseriu ou possibilitou a emergência do racismo
nos mecanismos de Estado, como mecanismo fundamental dos Estados modernos
(Foucault, 2010: 214). No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das
raças fragmentadas no interior da espécie, fará funcionar um mecanismo próprio da
biopolítica, em que o Estado se vê obrigado a eliminar raças em nome da purificação e
regeneração de uma raça:
O que faz sua especificidade [do racismo moderno], não está ligado a mentalidades, a ideologias, a mentiras do poder. Está ligado à técnica
56
do poder, à tecnologia do poder. Está ligado a isto que nos coloca, longe da guerra das raças e dessa inteligibilidade da história, num mecanismo que permite ao biopoder exercer-se. Portanto, o racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação da raça e a purificação da raça para exercer seu poder soberano (Idem: 217).
O Estado mais disciplinar foi o nazista, conforme mostra Foucault. Ao mesmo
tempo em que funcionava como uma sociedade altamente previdenciária,
universalmente seguradora, universalmente regulamentadora e disciplinar, foi ela que
desencadeou o mais completo poder de matar, generalizado para toda uma série de
indivíduos. E, pelo fato da guerra ser explicitamente posta como um objetivo político, e
não meramente como instrumento para obter meios para um fim, “a política deve
resultar na guerra, e a guerra deve ser a fase final e decisiva que vai coroar o conjunto”
(Ibidem: 218).
Após a Segunda Guerra Mundial e seus limites, como o próprio nazismo, a
criação da ONU em 1945 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
vieram como resposta aos horrores da guerra e foram emblemáticos como uma tentativa
de bloqueio do racismo de Estado, concomitantemente à abertura de uma extensão de
direitos que ultrapassaram os nacionais e confirmaram as minorias étnicas e sociais. Se
a biopolítica, como tecnologia de poder própria da sociedade disciplinar, alcançou um
limite, vemos emergir novos investimentos, não mais tendo como objeto a população
em seu território, mas a população em seu ambiente, o planeta. A noção de ecopolítica
desenvolvida por Edson Passetti (2003; 2007; 2013), de forma atenta às considerações
de Gilles Deleuze sobre as sociedades de controle (Deleuze, 2010: 224), busca
responder às novas práticas relativas ao governo do planeta e a tudo aquilo que tem vida
(Passetti, 2013: 10). Atenta às novas institucionalizações no pós-Segunda Guerra, a
ecopolítica não se restringe à ecologia ou ao estudo do ambiente como política de
57
governo que visa reduzir as intervenções do Estado, mas está “relacionada à produção
da verdade capitalista sustentável, que o governamentaliza” (Idem: 8).
Na nova razão governamental emergente no século XVIII apresentada por
Foucault, um governo que não infrinja nem as leis econômicas, nem os princípios do
direito, veria nos indivíduos como sujeitos econômicos governamentalizados elemento
fundamental para o seu exercício (Foucault, 2008: 369). Uma conduta racional foi
tornada objeto da análise econômica sobre o homo oeconomicus por economistas
ingleses e franceses – desde John Locke, Adam Smith e os fisiocratas franceses –, como
aquele que deveria obedecer a seus próprios interesses, a fim de não apenas preservar
como aumentar o interesse dos outros, em uma mecânica egoísta em que as vontades
individuais se harmonizam espontaneamente (Foucault, 2008: 375).
Nesta mecânica individual dos interesses, a economia aparece como
impossibilidade de o soberano visualizar a totalidade do Estado que governa (Idem:
384). O mundo político-jurídico e o mundo econômico emergem heterogêneos e
incompatíveis, e a governamentalidade, para se garantir, encontra um novo objeto
correlativo a essa nova arte de governar: o sujeito de direito-sujeito econômico. Eles
produzirão uma série de elementos que comporão um conjunto complexo do qual será
característica de uma arte liberal de governar. Esta nova referência, este novo campo
encontrado por esta arte de governar foi, precisamente, a sociedade civil (Ibidem: 402),
como seu correlativo e de cuja medida racional deveria indexar-se juridicamente a uma
economia entendida como processo de produção e de troca.
A sociedade civil, portanto, faz parte da tecnologia da governamentalidade
liberal emergente no século XVIII, que tem como característica o princípio de
racionalização da arte de governar no comportamento racional dos que são governados.
A biopolítica, que tem como alvo a população, conduz condutas e coloca em
58
funcionamento a capacidade liberal de assimilar contra-condutas e se fortalecer diante
de ameaças de rebelião e revolução (Passetti, 2013: 6). Conforme expôs Foucault, o que
os economistas no século XVIII farão emergir como domínio de análise é a gestão da
sociedade civil que o Estado deverá assegurar, diferentemente da regulamentação
policial que tratava apenas de uma coleção de súditos (Foucault, 2008: 470-471).
Com a emergência da ecopolítica, conforme situa Passetti, em um fluxo
ininterrupto das chamadas “políticas públicas” entre o Estado e a sociedade civil, esta
funcionará como grande apaziguador de resistências, ao constituir uma ética da
responsabilidade social por meio da convocação à participação em prol de um futuro
melhor (Passetti, 2007).
Partindo de indicações de Passetti, tem-se que após a Segunda Guerra, alguns
pontos permitiram com que a ecopolítica se configurasse como uma nova
governamentalidade planetária: a configuração de um sujeito de direitos como cidadão
universal em meio às novas promessas de paz global frente ao fracasso da antiga Liga
das Nações e do Tratado de Versalhes, frente ao advento da bomba atômica e frente ao
perigo iminente de uma nova guerra com a rápida expansão da União Soviética; os
grandes investimentos tecnológicos no espaço sideral, impulsionados pela corrida
armamentista, que implicaram em redimensionamentos políticos do governo do planeta
e na inteligibilidade deste como um corpo-planeta a ser gerenciado (Siqueira, 2015); a
intensa revisão do discurso liberal, antes, durante e depois da guerra, frente às soluções
estatais e intervencionismos, como o Welfare State.
A arte de governar emergente no século XVI esgotou a estrutura feudal para
instaurar os grandes Estados territoriais administrativos, que fizeram surgir uma
burocracia centrada em governar seus habitantes, suas riquezas; de forma a controla-los
e vigia-los na minúcia, assim como fazia um pai de família. Segundo Maria Cecília da
59
Silva Oliveira (2016: 73), ao analisar o processo dos congressos internacionais desde a
Conferência de Vestfália em 1648, considerada berço das Relações Internacionais, suas
práticas diplomáticas inauguraram um espaço de concorrência política e econômica
entre os Estados. A força dos Estados passa a interessar nesta dinâmica; à razão de
Estado então atrelada aos mercados internacionais e a concorrência política e econômica
buscam seu prolongamento e sua força nestes novos campos internacionais.
Com a emergência da ecopolítica, porém, o nazismo como limite da biopolítica
expôs também o limite do nacionalismo estatal. Atualmente, a configuração de uma
racionalidade governamental planetária possibilitou o desbloqueio de novas táticas de
governo do e no planeta que extrapolaram os limites do Estado-nação. Interessa
perceber, nesse sentido, como a atuação das organizações internacionais, da qual o
PNUD está inserido, são fundamentais para uma governamentalidade que não dispensa
o formato Estado-nação e a diplomacia, mas, complementarmente, o fortalece, auxilia e,
inclusive, amplia a gestão de seus habitantes em consonância com o desenvolvimento
pensado em relação ao planeta e a segurança centrada nos indivíduos.
Com a derrocada da União Soviética, nos anos 1990, e a dissolução do
socialismo como inimigo comum do que se autodenominava “mundo livre”, liderado
pelos EUA, a segurança passou a ter alvos menos conhecidos. Pensando no poder como
tecnologia que produz positividades; que não se detém, mas se exerce por meio de
relações de força, ater-se apenas ao caráter repressivo do poder torna-se insuficiente
para demarcá-los. Se o poder se exerce por meio de relações de força que, em conjunto,
produzem e fazem funcionar táticas e dispositivos que se mostram úteis para a sua
continuidade, constituindo-se enquanto tecnologia, deve-se pensá-lo também de forma
ascendente, transitando, se modificando, se expandido, se reproduzindo por entre os
indivíduos.
60
A segurança, durante o período que abrange a sociedade disciplinar, operou por
meio de probabilidades, regularizando-as em função de estimativas que atingiam uma
multiplicidade de corpos ligados do conjunto da população. Como se verá mais à frente,
principalmente por meio do trabalho do PNUD em âmbito planetário e com a
emergência de novas tecnologias de poder referentes à ecopolítica como
governamentalidade planetária, a segurança pôde expandir-se ao encontrar novos pontos
e novos instrumentos – sem abrir mão dos mais antigos – para intervir no ambiente e
naquilo que o ameaça.
breves procedências do PNUD
Segundo Craig N. Murphy24, apesar das lições muito difundidas das guerras
mundiais e suas aplicabilidades nas relações entre países ricos e pobres, poucos na ONU
imaginaram que seu Secretariado, com sede em Nova York, focaria tanto no
desenvolvimento (Murphy, 2006: 51) – diferente de instituições como o Banco
Mundial, por exemplo, que demorou mais de quinze anos para focar nessa questão. Foi
assim que o PNUD, segundo o historiador, tornou-se o centro do quadro da ONU para o
desenvolvimento.
Homens e mulheres foram convocados a partir de suas participações na política
de Boa Vizinhança criada pelo presidente Franklin Roosevelt (1933-1945), em 1933; no
Middle East Supply Centre (Centro de Abastecimento do Oriente Médio – MESC, na
sigla em inglês); no UN Relief and Rehabilitation Administration (Administração de
Assistência e Reabilitação da ONU – UNRAA, na sigla em inglês); e, em alguns casos,
na Liga das Nações (Idem: 51).
24 Craig N. Murphy é professor de Ciência Política na Wellesley College e foi encarregado pelo PNUD para escrever a história oficial do Programa, publicada em The United Nations Development Programme: a better way?, pela Editora Cambridge, em 2006.
61
A invasão da Itália na Líbia e na atual Etiópia, em 1935, justificaram a aliança
entre o Egito e a Grã-Bretanha, por meio de um Tratado de 1936. Este determinava que
a Grã-Bretanha deveria defender o Egito em caso de agressão, que, por sua vez,
ofereceria todas as facilidades em seu território em caso de guerra. Durante a Segunda
Guerra Mundial, o Cairo tornou-se uma importante base militar para as forças
britânicas. Apoiados no Tratado de 1936, os britânicos alegavam ter o direito de
estacionar tropas em solo egípcio para proteger o Canal de Suez, de grande importância
geoestratégica durante a guerra.
O MESC foi estabelecido neste contexto pelo governo britânico, primeiramente
no Cairo, durante a Segunda Guerra Mundial, em 1941, como um centro voltado a
solucionar o problema de transportes que havia tornado impossível o acesso das
importações ao Oriente Médio, bem como produtos para exportação serem enviados aos
mercados habituais no exterior (D. P. E., 1944: 1). A embaixada dos EUA no Cairo
estava ligada ao MESC quando alegou que as decisões do MESC estavam se tornando
em grande medida relacionadas à alocação de espaço de transporte marítimo a partir dos
EUA.
O MESC exercia a função de um órgão consultivo e de coordenação sem
poderes executivos, porém era a única agência cujas recomendações quanto aos
fornecimentos para os países do Oriente Médio eram aceitas pelos organismos oficiais
em Londres e Washington, onde uma decisão final quanto à atribuição de necessidades
de abastecimento seria definida pelo Conselho.
Robert Jackson foi Diretor Geral do MESC e, mais tarde, adentrou para a UN
Relief and Rehabilitation Administration (UNRRA), considerada a primeira grande
operação de reconstrução no pós-guerra. Em 1950, Jackson tornou-se consultor para os
governos da Índia e do Paquistão. Mais tarde, tornou-se consultor de assistência técnica,
62
logística e de pré-investimentos para os chamados países subdesenvolvidos ao lado de
Paul Hoffman no PNUD.
A UNRRA foi estabelecida em novembro de 1943, por meio de acordo entre 44
nações e, em 1945, foi anexada à ONU. Sucedeu o Escritório de Ajuda Externa e
Reabilitação de Operações do Departamento de Estado dos EUA, criado em novembro
de 1942, e o Comitê Inter-Aliados sobre as Necessidades Pós-Guerra, estabelecido em
Londres em setembro de 1941.25 Basicamente, seu objetivo era fornecer ajuda a países
europeus no imediato pós-guerra e repatriar os refugiados sob o comando dos países
Aliados.26 Na primeira sessão do Conselho da UNRRA, em 1943, foi acordado que a
saúde seria uma de suas responsabilidades primárias e fundamentais, devendo combater
epidemias e administrar a Convenção Sanitária Internacional.27 Em 1946, a UNRRA foi
dissolvida e suas funções transferidas para a atual Comissão Interina da Organização
Mundial da Saúde (OMS).28
Em 1946, David Owen, na época Secretário-Geral assistente e chefe do
Departamento de Economia do Secretariado da ONU, trouxe Folke Hilgerdt, influente
do desenvolvimento econômico da Liga das Nações, para chefiar a divisão principal do
Departamento em função da “estabilidade econômica e desenvolvimento” (Ibidem: 50).
Nos primeiros encontros do Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC, na sigla
em inglês) com a Assembleia Geral, a delegação Chinesa, consciente de como a China
havia sido beneficiada apenas pela abordagem do programa de assistência técnica da
25 Cf. United Nations. Summary of AG-018 United Nations Relief and Rehabilitation Administration (UNRRA) (1943-1946). UN, Archives and Records Management Section. Disponível em: https://archives.un.org/sites/archives.un.org/files/files/Finding%20Aids/2015_Finding_Aids/AG-018.pdf. Acesso em 08/09/2015. 26 Cf. United Nations. Agreement for United Nations Relief and Rehabilitation Administration. UN, 1943. Disponível em: https://www.loc.gov/law/help/us-treaties/bevans/m-ust000003-0845.pdf. Acesso em 09/09/2015. 27 Idem. 28 Ibidem.
63
Liga, juntou-se ao Libanês Charles Malik (chefe da ECOSOC e ex-aluno do MESC)
para propor o primeiro programa de assistência técnica da ONU, argumentando que
uma abordagem multilateral poderia ajudar países em desenvolvimento a não se apoiar
unicamente na assistência das superpotências da Guerra Fria (Ibidem: 51-52). Mesmo
com alguns empecilhos – como quando os representantes de Truman em Nova York se
juntaram ao embaixador da União Soviética para assinar uma resolução que diminuía a
assistência técnica e dava ao Secretariado apenas um papel de coordenação,
determinando o fim da UNRAA –, o Secretariado convenceu a maioria dos membros da
necessidade da assistência técnica para prover “a continuação das urgentes e
importantes funções consultivas no campo do bem-estar social” aos países que recebiam
assistência prévia da UNRRA (Ibidem: 52).
Em 1949, Truman esboçou um programa de “Quatro Pontos” do que percebia
serem os principais problemas globais, em especial o crescimento proeminente da União
Soviética. A celebração dos “Quatro Pontos” foi a garantia para que nações
empreendessem um trabalho conjunto de assistir países considerados subdesenvolvidos
por meio da ONU e suas Agências Especializadas (Ibidem: 55). No mesmo ano, o
ECOSOC e a Assembleia Geral habilitaram resoluções que possibilitaram a criação do
Expanded Programme of Technical Assistance (Programa Expandido de Assistência
Técnica – EPTA, na sigla em inglês), administrado por David Owen.
Owen, durante os anos em que foi presidente Executivo do Quadro de
Assistência Técnica da ONU, percebeu que o EPTA provia um tipo de assistência
externa aceitável por ser uma fonte imparcial e por oferecer uma abordagem de parceria
para o desenvolvimento que se provou eficaz, em grande medida por ser realizada em
pequena escala (Owen, 1959: 26). Porém, suas diretivas, advindas do ECOSOC, da
Assembleia Geral e do próprio funcionamento do Programa, mudaram a cada ano de
64
acordo com o modo em que as organizações internacionais foram respondendo aos
requisitos de governos e aos aprendizados no campo da assistência técnica (Idem: 26).
A assistência técnica multinacional, ou internacional, remete à Organização
Internacional do Trabalho (OIT), estabelecida em 1919 e vinculada à Liga das Nações.
A OIT enviava consultores a pedido de seus governos no período entre guerras, e
continuou seu trabalho quando se tornou uma Agência Especializada da ONU (Ibidem:
26). Outras, como a OMS, a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura) e a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura), foram acionadas pelos Estados-Membros da ONU, logo após a sua criação,
para realizarem assistência técnica em seus campos específicos de competência, por
meio de missões de pesquisa, da concessão de bolsas de estudo e pelo trabalho regular
de consultores técnicos. Mais tarde, quando as solicitações se tornaram muito
numerosas e acabaram por esgotar o número do pessoal regular, outros especialistas
tiveram de ser contratados (Ibidem: 26).
Neste contexto, Truman propôs, no que ficou conhecido como “ponto quatro” de
seu discurso inaugural para a presidência dos EUA, o estabelecimento de um Programa
de assistência técnica e desenvolvimento econômico dos EUA (Ibidem: 28). Em meados
de 1949, essa proposta refletiu na ONU. A Resolução 222 do ECOSOC recebeu a
sanção da Assembleia Geral da ONU no final do ano, e o EPTA passou a existir com
oito organizações da ONU ligadas a seu sistema: a OIT, FAO, UNESCO, Organização
da Aviação Civil Internacional (ICAO), OMS, Organização Meteorológica Mundial
(OMM), União Internacional de Telecomunicações (UIT) e a International Atomic
Energy Agency (“Agência Internacional de Energia Atômica” – IAEA, na sigla em
inglês). O Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) –
instituição financeira do Banco Mundial que financia empréstimos e assistência para os
65
chamados países em desenvolvimento – e o FMI coordenavam seus trabalhos com o
EPTA, bem como fez a UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), a Agência
da ONU de Reconstrução Coreana e a Agência da ONU de Assistência aos Refugiados
da Palestina no Oriente Médio (Ibidem: 27).
Os métodos de administração de projetos e operações do EPTA funcionavam
pelo princípio de conceder assistência apenas mediante a solicitação específica de um
governo. Estes deveriam se comprometer a obrigações específicas no que diz respeito
ao pagamento das despesas locais em conexão com a ajuda que estavam recebendo, e
eram obrigados a contratar funcionários para que o trabalho de especialistas
internacionais fosse mantido após o término de suas atribuições (Ibidem: 28).
Desde que o EPTA passou a funcionar, por meio de instalações individuais da
ONU e das inúmeras Agências Especializadas, foi criado um corpo executivo ao seu
lado: o Quadro de Assistência Técnica, composto por um representante de cada uma das
organizações participantes, um presidente Executivo, e auxiliado por um pequeno
secretariado localizado nos Escritórios da ONU em Nova York (Ibidem: 29). O Quadro
almejava assegurar que as atividades de todas as organizações fossem coordenadas de
modo abrangente; buscava métodos comuns de operação e servia como ponto central de
contato entre todos os governos e organizações envolvidos, como o Programa de
Assistência Técnica dos EUA, o Banco Mundial, etc. (Ibidem: 29). O escritório cada de
país possuía um Representante Residente, que servia como ponto de contato entre
diversos especialistas e entre os Ministérios de governo. O Representante Residente
atuava ao lado deste Quadro e de organizações para ajudar na avaliação e efetividade do
EPTA, além de manter contato com outros representantes de outros programas de
assistência.
66
Segundo Owen, os Representantes Residentes exerceram papel fundamental na
efetividade do EPTA, pois ajudaram a responder às necessidades específicas de cada
país e fizeram com que os próprios governos fizessem melhor uso da assistência
concedida (Ibidem: 29).
Ainda em 1949, com o grande crescimento do EPTA, Owen contratou Raúl
Prebisch – economista argentino que havia sido influente na política de Boa Vizinhança
de Roosevelt – para ser chefe da assistência técnica da ONU. Porém, o Secretário-Geral
da ONU na época, Trygve Lie, decidiu mantê-lo na América Latina – onde realizava
consultoria para a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL),
uma das comissões do ECOSOC –, e Owen teve de optar pelo diplomata canadense
Hugh Keenleyside para assumir o cargo.
Nos anos 1930, Prebisch estimulou a Argentina a adotar políticas keynesianas
para o desenvolvimento industrial do país durante a Depressão (Murphy, 2014: 180) e,
nos anos 1940, destacou-se como proeminente do chamado “movimento terceiro-
mundista” do pós-guerra. Formulou os conceitos de “centro” e “periferia” da economia
industrial, afirmando as diferenças de poder econômico entre Norte e Sul, e defendia o
recebimento de isenções temporárias do liberalismo global e assistência internacional
aos países menos desenvolvidos, entendendo que, ao impedir as importações de
produtos primários do centro e elaborando bens industriais na periferia, haveria um
maior equilíbrio econômico mundial.
Em 1950, Prebisch assumiu a secretaria executiva do CEPAL, quando os EUA
possuía interesse em manter-se aliado à América Latina contra o bloco soviético, e
quando emergia um bloco de votação do chamado “Terceiro Mundo” dentro da ONU
(Ibidem: 181). Na década de 1960, o economista foi um dos responsáveis pela criação
da Associação Latino Americana de Livre Comércio, da Aliança para o Progresso, do
67
Instituto Latino-americano de Planificação Econômica e Social (órgão da CEPAL) e da
Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na
sigla em inglês).
Um artigo de Prebisch publicado na revista do CEPAL, em 1976, evidencia sua
indeterminação ao entender o mercado como o mecanismo mais eficiente para
responder aos requisitos seletivos do avanço técnico, “desde a complexa organização e
gestão do processo de produção até o manejo das máquinas” (Prebisch, 1976: 18).
Porém, longe de ser o regulador supremo do desenvolvimento, assim como o Estado
também não teria demonstrado eficiência para agir sobre o desenvolvimento no que
chamava de capitalismo periférico (Ibidem: 18). Dizia que o Estado e seu jogo de poder
sufocam o mercado ao não interferir nos maiores males deste, porém entendia a
planificação como sempre de alcance limitado, não transformando o estado das coisas já
existente (Ibidem: 18).
Em sua breve passagem pelo EPTA, Prebisch estabeleceu três importantes
soluções para o que chamou de “problema do desenvolvimento”: habilidades, recursos
e instituições – ou o que seria, mais precisamente, assistência técnica, assistência
financeira e um ambiente institucional adequado, tanto doméstico quanto global
(Murphy, 2006: 57).
Segundo Murphy, dos anos 1960 até o fim do século XX, o foco do debate sobre
o desenvolvimento permaneceu no desenvolvimento de tais ambientes institucionais.
Na década de 1950, por sua vez, sobressaía o debate sobre o financiamento adequado
para o desenvolvimento, do qual Owen se destacava e que, mais tarde, Paul Hoffman,
teria desempenhado intenso papel ao fim desse debate com a criação do Fundo Especial
das Nações Unidas para o Desenvolvimento Econômico, antes de sua fusão com a
EPTA, que faria emergir o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
68
(PNUD) (Ibidem: 57-58). Este debate sobre financiamento foi também marcado pela
criação da International Development Authority (Associação Internacional de
Desenvolvimento – IDA, na sigla em inglês), agência dominada pelos chamados países
desenvolvidos, como uma facilidade de concessão de empréstimos (com uma taxa mais
baixa que a do mercado) no interior do Banco Mundial. Foi com o estabelecimento da
IDA, em 1960, que o Banco Mundial envolveu-se oficialmente com a missão do
desenvolvimento, considerada de urgência política e de forte ligação ao que se
delineava como o problema da pobreza (Kapur, Prior e Webb, 1997: 154).
emergência do PNUD
Desde o início das operações do Banco Mundial, os governos dos países
chamados na época de subdesenvolvidos, começando pela América Latina e em seguida
pela Índia, criticaram o fato de não terem auxílios semelhantes aos do Plano Marshall,
restrito à Europa, uma vez que empréstimos do Banco Mundial foram concedidos a
taxas de juro de mercado correntes e, sob o Plano Marshall, a ajuda foi principalmente
concedida sob a forma de subvenções (Toussaint, 2014). Já para o governo dos EUA e
outras potências, um fundo especial controlado pela ONU, separado do Banco Mundial,
era inaceitável (Idem). Neste impasse, os EUA propuseram a criação do International
Finance Corporation (IFC), cujo papel era o de conceder empréstimos à empresas do
setor privado nos chamados países subdesenvolvidos. Estes países, como a Índia, Chile
e Iugoslávia, porém, não ficaram satisfeitos e, a despeito da oposição radical do governo
estadunidense de Eisenhower, preocupado com o aumento da presença da União
Soviética nos debates da ONU entre países subdesenvolvidos e também
industrializados, foi estabelecido, em 1952, pela Assembleia Geral, o Fundo Especial
69
das Nações Unidas para o Desenvolvimento Econômico, no interior do ECOSOC
(Pereira, 2012).
Ao final de 1948, o economista indiano Arthur Lewis apresentou-se à David
Owen, que estava a frente do EPTA. Como Prebisch, Lewis havia escrito sobre a tríade
habilidades, recursos e instituições, baseando-se no governo britânico e na Sociedade
Fabiana sob a política social do desenvolvimento colonial (Murphy, 2006: 59). Por
meio de suas pesquisas sobre a transferência do trabalho a partir de um setor tradicional
para um setor capitalista moderno em condições de oferta de trabalho ilimitadas, Lewis
consolidou a “economia do desenvolvimento” como um campo específico de estudo.29
Para Lewis, os salários no setor capitalista moderno não deveriam ser determinados pela
produtividade do trabalho, mas pelo seu custo de oportunidade, uma vez que os baixos
salários e a pobreza numa economia excedente de trabalho persistiriam enquanto o custo
de oportunidade de trabalho para o setor capitalista fosse baixo.30
Nascido em 1913, em St. Lucia – pequena ilha do arquipélago das Caraíbas –,
Lewis afirmava ser seu interesse no desenvolvimento econômico parte de seu “anti-
imperialismo”. Publicou escritos como Princípios de Planejamento Econômico com a
Sociedade Fabiana – um braço intelectual do Partido Trabalhista britânico –, e como
membro de um grupo de peritos convocado pela ONU, que incluía o neoliberal
Theodore W. Schultz, Lewis formulou um modelo para o desenvolvimento incluindo a
rápida industrialização e reformas sociais.31
29 Cf. United Nations. “W. Arthur Lewis: Pioneer of Development Economics” in UN Chronicle. Disponível em: http://unchronicle.un.org/article/w-arthur-lewis-pioneer-development-economics/. Acesso em 21/06/2015. 30 Idem. 31 Ibidem.
70
Em 1949, Lewis e George Hakim – um dos antigos alunos libaneses do MESC –
foram responsáveis por projetar um relatório que abarcasse o problema global do
chamado subdesenvolvimento sugerido pela ONU. Mais tarde, Lewis afirmou:
Éramos informados de que muitos dos membros das nações da ONU viam com grande preocupação o aumento da disparidade entre o mundo desenvolvido e o subdesenvolvido (...). Esse é o porquê de nos perguntarmos o quê e quanto poderia ter custado ter uma taxa de aumento no mundo subdesenvolvido comparável com a da Europa Ocidental (Lewis apud Murphy, 2006: 59).
A preocupação central do pós-guerra para a ONU e para os EUA era a
reconstrução da Europa e do Japão e suas condições de estabilidade. Porém, as nações
recém descolonizadas ou ainda “jovens” entrariam no quadro da ONU sobre
desenvolvimento como grande ponto a ser debatido. Como efeito, destacaram-se
questões em torno da necessidade de um maior financiamento de investidores e de
maiores empréstimos concedidos pela ONU, além de apenas assistência técnica. As
discussões sobre uma agência multilateral para financiar o desenvolvimento nos países
mais pobres acirravam-se, culminando numa divisão entre a coalizão dos chamados
países desenvolvidos, liderada pelos EUA, em oposição ao Fundo Especial, apoiado por
um bloco formado pela Holanda, União Soviética e Checoslováquia.
De acordo com Murphy, a questão de estabelecer ambientes institucionais para o
desenvolvimento em meio às operações da ONU por muitas décadas limitou-se ao nível
nacional, indiretamente, por meio da assistência técnica do que viria a se tornar o
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) (Ibidem: 65). Segundo
o historiador, o EPTA atribuía um nível de financiamento alvo para cada país, no qual o
Representante Residente, o governante ou o Quadro de Assistência Técnica convocava
especialistas estrangeiros, ou locais que estavam sendo treinados fora do país para uma
série de projetos. Já o Fundo Especial não possuía sistema de autorizações
71
predeterminadas para países ou regiões específicas. Os recursos para pesquisas e
estudos para investimentos de capital envolviam grupos de especialistas e eram
administrados centralizadamente nos escritórios da ONU. Desse modo, a tendência
descentralizadora do EPTA e a tendência centralizadora do Fundo Especial eram
complementares.
A fusão dos dois programas passou a ser discutida em 1962. As Agências
Especializadas, interessadas na descentralização administrativa, tenderam a se opor a
esta combinação. A União Soviética, deste lado, temia o domínio de duas agências
comandadas pelos Estados Unidos e, do outro lado, as chamadas nações em
desenvolvimento exigiam manter a facilidade de financiamento do desenvolvimento da
ONU por meio da fusão (Ibidem: 66). Em 1964, o ECOSOC e o então Secretário Geral
da ONU, U Thant of Burma, endossaram a fusão dos dois programas e a formação de
um grupo de especialistas. Em novembro de 1965 foi assinada a resolução que
oficializou o PNUD, o qual passou a funcionar em janeiro de 1966 (Ibidem: 66), com
Paul Hoffman como administrador e David Owen como coadministrador. Segundo
Murphy (Ibidem: 67), os EUA haviam financiado mais da metade das despesas do
EPTA desde 1949 até a emergência do PNUD, o que justificava o fato do primeiro
administrador do PNUD ser estadunidense, considerado herói do Plano Marshall e
homem de confiança do Congresso e do presidente Johnson.
Com a resolução de número 1020, de agosto de 1964, oficializou-se a fusão do
EPTA com o Fundo Especial, sob a alegação de que tal consolidação
percorreria um longo caminho na racionalização das atividades exercidas separadamente e em conjunto pelos dois programas, simplificaria disposições e procedimentos organizacionais, facilitaria o planejamento e necessitaria da coordenação dos vários tipos de programas de assistência técnica realizados no âmbito do sistema ONU de organizações, aumentando a sua eficácia (ONU, 1964: 1).
72
A resolução reconhecia “o crescimento em volume e em escopo das solicitações
para a assistência por parte dos países em desenvolvimento” (Idem: 1). Previa que a
combinação entre os dois programas fosse entendida como a fusão das funções
específicas de cada programa, a serem mantidas (Ibidem: 2). Além disso, determinava o
estabelecimento de um comitê intergovernamental, o Conselho de Governo do PNUD, a
fim de prover uma política de orientação geral para o PNUD e para os programas
regulares de assistência técnica da ONU, com 37 membros – a serem selecionados pelo
ECOSOC dentre os Estados-membros da ONU, dentre os membros das Agências
Especializadas, ou dentre os membros da International Atomic Energy Agency,
equilibrando as representações entre os países considerados desenvolvidos e os que
passaram a ser chamados “em desenvolvimento” (Ibidem: 3).
As chamadas habilidades constituíram um dos pilares na formação do PNUD
para o foco no desenvolvimento. Interessava enviar pessoas do “mundo em
desenvolvimento” para instituições em países industrializados para treinamento, bem
como enviar especialistas do “mundo desenvolvido” para os chamados países “em
desenvolvimento”. Como se verá no próximo movimento deste capítulo, o trânsito de
especialistas e suas experiências nas mais diversos lugares do planeta, ocasionados pelo
próprio PNUD, tornou-se uma prática bastante comum e útil na produção de capital
humano.
1.4. os especialistas do desenvolvimento pelo planeta
cooperação técnica e seus fluxos
Antes da emergência do PNUD, o Programa Expandido de Assistência Técnica
(EPTA) projetou uma larga gama de especialistas, maior do que qualquer outro
73
programa de ajuda multilateral até então, e formou especialistas habilitados a replicar
“lições” de um lugar em outro. Foi isso que tornou o PNUD, segundo Hugh
Keenleyside, “um sistema de ajuda internacional mútua’ e ‘recíproca’. Foi essa
característica (...) que fez do sistema da ONU para o desenvolvimento a inovação mais
‘importante’ e ‘encorajadora’, talvez desde a Revolução Industrial; algo que pode ajudar
a assegurar a humanidade de um futuro duvidoso” (Keenleyside apud Murphy, 2006:
78-79).
Os governos dos chamados países em desenvolvimento, para Craig Murphy,
tiveram papel central no trabalho para o desenvolvimento do sistema ONU devido ao
modelo de como o desenvolvimento deveria ser atingido, dos anos 1940 aos anos 1970,
de fortalecimento do Estado e de prioridade à criação de um ambiente de instituições
nacionais aptas a assegurar que os recursos fossem encaminhados a seus devidos fins
(Murphy, 2006: 79). Toda a evolução dos “programas para países” do PNUD deu-se
baseada na necessidade de combinar o fluxo de insumos externos com as necessidades
descritas em um plano econômico nacional coerente (Idem: 79). Nesse sentido, afirma
ter Paul Hoffman, ainda mais do que Arthur Lewis, trabalhado contra o “preconceito ao
planejamento”, predominante nos anos 1950, na medida em que, para a ONU, o
planejamento era sempre uma questão dos Estados. Passou-se a combinar, portanto, o
planejamento dos Estados com o das Agências em prol do desenvolvimento.
Em 1959, nos dez anos da criação do Programa Expandido de Assistência
Técnica (EPTA), o conceito de “assistência técnica”, como ajuda internacional aos
países na época chamados de subdesenvolvidos, foi substituído pela Assembleia Geral
da ONU pelo termo “cooperação técnica”:
A Assembleia Geral, Tomando nota do que os programas de assistência técnica das Nações Unidas, após dez anos de operação, tem se tornado, agradecendo ao
74
crescimento contínuo do número de países participando ativamente na execução dos programas de cooperação técnica internacional, 1. Considerando que, nas atuais circunstâncias, o termo “cooperação técnica” pode descrever mais precisamente a natureza da assistência provida pelas Nações Unidas e pelas agências especializadas por meio dos programas de assistência técnica; 2. Expressa-se o desejo de que o termo “assistência técnica” seja substituído pelo termo “cooperação técnica” para designar, tanto o programa regular de assistência técnica das Nações Unidas como o Programa Expandido de Assistência Técnica, e respondendo aos pedidos do Conselho Econômico e Social em considerar a possibilidade dessa mudança e reportá-la] na quinquagésima sessão da Assembleia Geral. 841º reunião plenária 20 de novembro de 1959.32
Pressupondo uma relação de trocas e mutualidade33 para o desenvolvimento
internacional, o termo “cooperação técnica” pareceu mais oportuno por indicar não mais
o caráter passivo dos receptores de intervenções, como maior autonomia e,
simultaneamente, responsabilidade aos países considerados em desenvolvimento.
Junto com esta reformulação, emergiu o conceito de “capacitação institucional”
(institution building). De acordo com documento34 do Escritório da ONU sobre Drogas
e Crimes (UNODC, na sigla em inglês), elementos ligados à capacitação institucional
são encontrados em quase todos os acordos internacionais, planos de ação e projetos
específicos para o desenvolvimento ligados à corrupção ou temas mais gerais como boa 32 General Assembly. Fourteenh Session – 1383 (XIV). Expanded Programme of Technical Assistance. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/142/06/IMG/NR014206.pdf?OpenElement. Acesso em 22/07/2016. 33 O termo “mutualidade” neste contexto, corresponde à responsabilização destes países pelos seus estágios de desenvolvimento. Não se deve confundir com a prática do apoio mútuo proposta pelo anarquista Pierre-Joseph Proudhon, supondo a partilha da terra, divisão das propriedades, independência do trabalho, separação das indústrias, especialidade das funções, responsabilidade individual e coletiva, redução ao mínimo dos gastos gerais, supressão do parasitismo e da miséria (Proudhon, 1986: 122), em uma articulação econômica que substitui gradualmente a unidade do Estado por meio do sistema federativo. Segundo Proudhon, “A sua lei fundamental, característica, é esta: na federação, os atributos da autoridade central especializam-se e restringem-se, diminuem de número, de intermediários, e se ouso assim dizer, de intensidade, na medida em que a Confederação se desenvolve pela acessão de novos Estados” (Proudhon, 2001: 91). 34 UNODC. Chapter III – Institution Building. Disponível em: http://www.unodc.org/pdf/crime/corruption/toolkit/AC_Toolkit_chap3.pdf. Acesso em 20/06/2016.
75
governança. Quando emergiu, o conceito teria focado na construção ou expansão de
instituições e habilidades técnicas para operá-las, o que muitas vezes teria falhado, pois,
segundo o documento, hoje se tem claro que as reformas não devem concernir apenas às
instituições, mas também aos indivíduos que fazem parte delas35 – além da necessidade
de liderança que promova integridade, transparência, confiança e accountability36.
Foi a partir da década de 1970, porém, que se passou a debater de forma mais
direta a autonomia e especificidade de cada país considerado “em desenvolvimento” em
relação ao papel do PNUD e seus Representantes Residentes no local de atuação.
Em 1967, o Banco Mundial e o PNUD iniciaram, conjuntamente, uma série de
avaliações sobre qual seria a melhor forma de coordenar o rápido crescimento de suas
operações e solicitações, devido ao aumento de seus fundos, que cresciam 20% ao ano
desde 1959 (Ibidem: 140). O então presidente do Banco Mundial, Robert McNamara,
almejando um veredito sobre o papel do sistema internacional para o desenvolvimento,
que argumentava ser maior do que nos tempos do Plano Marshall, encomendou um
relatório chefiado por Lester B. Pearson, ex-Primeiro Ministro do Canadá, e levado
intelectualmente por Arthur Lewis. Por parte do PNUD, Hoffman reportou-se a Robert
Jackson – especialista em assistência técnica da ONU para o chamado “mundo em
desenvolvimento” – para uma avaliação do trabalho das Agências Especializadas
(Ibidem: 143).
Tanto Hoffman como Jackson apoiavam-se na necessidade de fortalecer o papel
dos Residentes Representantes do PNUD, em vez de confiar no que chamavam de
“bombardeios” do FMI e do Banco Mundial, referindo-se à missões de curto prazo
35 Idem. 36 Palavra da língua inglesa que remete à capacidade empresarial de transparência e prestação de contas a instâncias superiores e reguladoras, à sociedade e a seus stakeholders. Estes seriam os investidores ou as partes interessadas em um empreendimento.
76
dessas instituições sem conhecimento do local em que estavam atuando (Ibidem: 144).
O relatório de Robert Jackson, que ficou conhecido como Capacity Study, apresentava o
desenvolvimento como um problema multifacetado envolvendo políticas, cultura,
sociedade e economia. Como esse conjunto variaria em cada região, defendia o
“empoderamento” dessa combinação de forças em cada país específico. Remetendo aos
argumentos de Arthur Lewis e Raúl Prebisch sobre planejamento, o relatório concluiu
que projetos específicos poderiam ser formulados pela cooperação entre governos e os
Representantes Residentes, a quem seria dada total autoridade para aprovar pequenos
projetos (Ibidem: 144). Já maiores projetos poderiam envolver, ainda, a cooperação com
uma das Agências, mas seriam os planos de governo que deveriam determinar o que o
PNUD financiaria. Às sedes das Agências Especializadas caberiam responsabilidades de
coordenação de garantias e programação de orçamentos, criando um novo sistema de
contabilidade e de informação que as ligaria e geriria um sistema unificado apoiado no
pessoal da ONU.
O relatório, que segundo Murphy foi apreciado por “encarregados subalternos
mais bem qualificados do mundo em desenvolvimento”, recebeu inúmeras críticas de
grandes nomes. David Owen, por exemplo, alegou que a assistência para o
desenvolvimento da ONU estava sendo sobreposta pelo sistema crescente de
cooperação internacional por meio de Agências Especializadas, muitas das quais não
foram originalmente concebidas como órgãos com responsabilidades operacionais,
fazendo com que o programa de assistência financiado pelo PNUD e por orçamentos
regulares da ONU fosse implementado por mecanismos transplantados de estruturas
jamais pensadas para esse fim (Owen, 1969: 51).
Já as Agências Especializadas viram o relatório como um assassinato às suas
relações que teriam sido tomadas como meros imperativos burocráticos (Murphy, 2006:
77
145). Porém, embora reprovado até mesmo por Hoffman, que inclusive entendeu que o
relatório o atacava pessoalmente como um atraso ao sistema para o desenvolvimento da
ONU, o relatório teve grande suporte dos governos do Sul e, segundo Murphy, de Cuba
governada por Fidel Castro ao Irã (Idem: 148).
De dentro do Conselho de Governo da ONU, um jovem diplomata indiano,
Muchkund Dubey, levantou esforços para direcionar elementos do Capacity Study à
questões relativas aos chamados países em desenvolvimento, resultando no chamado
Consenso do Conselho de Governo de junho de 1970, que acatou a recomendação do
relatório de se criar ciclos de cinco anos específicos para o planejamento de cada país, e
a avaliação de projetos realizadas pelo governo do país concedido e pelo PNUD
juntamente com a Agência executora. (Ibidem: 148).
Em 1971, após a aposentadoria de Hoffman, Rudolph Peterson – banqueiro
estadunidense diretor do Bank of America na Califórnia – foi nomeado administrador do
PNUD pelo então presidente dos EUA, Richard Nixon (1969-1974), em uma época que
os EUA forneciam 40% dos fundos do PNUD. Como Peterson continuou trabalhando
no Banco na Califórnia, escolheu dois vice-administradores para trabalhar a seu lado:
Bert Lidstrom, importante doador sueco, e I. G. Patel – economista indiano que foi
diretor da London School of Economics, trabalhou no governo indiano, no FMI e como
Diretor Executivo suplente do Banco Mundial.
Patel, que via o PNUD como excessivamente burocrático, e considerando que as
“verdadeiras questões” sobre o desenvolvimento ainda não haviam sido resolvidas com
o Consenso coordenado por Dubey, convocou-o para formar um novo consenso em
torno do que chamou de “novas dimensões de cooperação técnica”, aprovado pela
Assembleia Geral em 1975. Passou-se, então, a considerar básico e fundamental que
cada país considerado “em desenvolvimento” construísse sua própria capacidade de
78
executar projetos, por meio de especialistas e meios nacionais (Murphy, 2006: 152).
Tornou-se necessário o investimento em “práticas particulares” de cada país e a
“tradução de conhecimentos” em novos contextos, direcionados ao conhecimento
originário de cada cultura.
Já a gestão de Bradford Morse, terceiro administrador do PNUD, é considerada
importante no quesito financiamento, bem como na difusão e aprovação de
“especialistas do desenvolvimento”, em um contexto de obstáculos de financiamento de
projetos advindos dos EUA na década de 1970, após a guerra do Vietnã e a chamada
“Guerra do Yom Kipur” (Ibidem: 157), em que os membros da Organização dos Países
Exportadores de Petróleo (OPEP), liderados pela Arábia Saudita, apoiaram a guerra do
Egito contra Israel utilizando o petróleo como arma, cortando temporariamente vendas
aos EUA e Holanda, aliados de Israel (Idem: 156). Em 1978, Morse recrutou Arthur
Brown, ex-diretor do Banco Central Jamaicano, como administrador associado do
PNUD para substituir tanto I. G. Patel como Bert Lidstrom. Morse era tido como aliado
da maioria dos países membros do Sul na ONU, e tanto ele como Brown aproveitavam
sua reputação na região para angariar novos programas ou fundos voltados para o
desenvolvimento na ONU (Ibidem: 162). Foi com este mesmo raciocínio, de angariar
esforços e investimentos dos chamados países em desenvolvimento, que foi fundado o
Fundo de População da ONU (UNFPA, na sigla em inglês), em 1969, e o Voluntariado
da ONU (UNV, na sigla em inglês).
Este último foi criado pela ONU em 1970 para funcionar como um programa
operacional na cooperação para o desenvolvimento, segundo site oficial do PNUD no
79
Brasil37. E a maioria de seus voluntários advinha de países considerados “em
desenvolvimento” e eram profissionais altamente qualificados.
um empreendimento planetário
Em 1977, Brown e Morse criaram o programa TOKTEN (Transfer of
Knowledge Through Expatriate Nationals – “Transferência de Conhecimentos Através
de Expatriados Nacionais”), em que especialistas altamente qualificados de cada país,
juntamente com o governo do país e o PNUD, identificavam os projetos necessários
para cada local.38
Segundo o site oficial do PNUD no Líbano, o Programa introduziu o TOKTEN
com interesse em reverter as perdas causadas pelo êxodo de seus especialistas
expatriados, ou os efeitos do fenômeno denominado brain-drain [fuga de capital
humano] em brain gain [ganho de capital humano].39 O TOKTEN almeja, nesse
sentido, identificar necessidades específicas por meio do conhecimento dos especialistas
da cultura, linguística, habilidades e capacidades locais para “facilitar a transferência de
tecnologia e as relações locais”40. Segundo o site oficial do UNV, órgão pertencente ao
PNUD que gere o TOKTEN desde 1994, a maioria dos especialistas mantém contato
com especialistas de outros países, dos quais compartilham literatura, equipamentos e
também são frequentemente enviados para treinamentos ou missões em instituições
37 Cf. PNUD. UNV. Disponível em: http://www.pnud.org.br/unv.aspx. Acesso em 10/10/2015. 38 Cf. UN Volunteers. TOKTEN. Disponível em: http://www.unv.org/fileadmin/docdb/pdf/2008/TOKTEN_factsheet_01.12.2008.pdf. Acesso em 10/10/2015. 39 UNDP in Lebanon. TOKTEN Worldwide History. Disponível em: http://www.toktenlebanon.org/about/about.php. Acesso em 11/10/2015. 40 Idem.
80
estrangeiras das quais são filiados, e são responsáveis por abranger uma grande
variedade de técnicas especializadas.41
A maioria dos profissionais do TOKTEN são advindos dos chamados países em
desenvolvimento. Segundo o programa, são pessoas qualificadas que vão trabalhar no
exterior em decorrência “da falta de oportunidades e emprego, diferenças salariais,
insatisfação salarial, em seus países de nascença”42. Em relação à “fuga de capital
humano”, o TOKTEN é considerado bastante eficiente por conseguir fazer com que
esses profissionais regressem a seu país de origem para consultorias de curto prazo em
prol do melhor meio para a promoção do desenvolvimento específico de cada país. É
considerado, portanto, “um sistema de transferência de conhecimentos e de
competências avançadas”43.
41 Cf. UN Volunteers. TOKTEN. Disponível em: http://www.unv.org/fileadmin/docdb/pdf/2008/TOKTEN_factsheet_01.12.2008.pdf. Acesso em 10/10/2015. 42 UNDP in Lebanon. TOKTEN, Brain Drain and Human Development. Disponível em: http://www.toktenlebanon.org/about/tokten_brain.php. Acesso em 10/10/2015. 43 Idem.
81
Logo do Programa TOKTEN.44
A década de 1970 é marcada por transformações do desenvolvimento, seus
objetos e por transformações do próprio neoliberalismo. O desenvolvimento dos
programas e planos voltados para a reconstrução econômica pós-guerra que, como
apresentado, já apresenta proveniências no investimento inteligente dos veteranos de
guerra, refina-se a partir dos investimentos nos indivíduos como imbuídos de capital
humano. Não ocorre como sobreposição, mas há a interligação do desenvolvimento
econômico dos Estados com o desenvolvimento dos indivíduos entendido,
44 UNDP. Tokten. Disponível em: http://www.ps.undp.org/content/papp/en/home/operations/tokten.html. Acesso em: 10/10/2015.
82
principalmente a partir da década de 1970 no campo das relações internacionais, como
oferecimento de capacidades.
Pelo Programa TOKTEN pode-se perceber, na esteira de tais transformações,
um pouco do funcionamento de um campo em que, conforme as análises de Nicolas
Guilhot, atuam defensores dos direitos humanos, ou especialistas na “transição
democrática”, de filiações múltiplas ou missões pontuais, que orbita em torno de uma
política de Estado, e portanto não é possível demarcar limites entre o governamental e
não-governamental, estatal e não-estatal (Guilhot, 2003: 210-211). Nos EUA, esse
mecanismo estaria no cerne da constituição do foreign policy establishment – uma
política externa voltada ao fortalecimento do Estado (Idem: 210). Segundo o cientista
político, estes especialistas advêm principalmente das grandes lutas anti-imperialistas
dos anos 1970 – tanto representantes da sociologia política da modernização durante a
Guerra Fria, quanto saídos do campo dos Latin American Studies45 (Ibidem: 212).
Guilhot sinaliza para uma estratégia de privatização da política exterior
desenvolvida durante a chamada Guerra Fria em que ONGs, Fundos e Programas
permitiram um desengajamento do governo ao mesmo tempo em que mantiveram um
certo tipo de intervencionismo político (Ibidem: 214). Mecanismo que teria permitido
também a contestação de uma administração neoconservadora da pretensão liberal de
monopolizar esse campo como extremo portador de direitos humanos (Ibidem: 214).
Assim como se evidencia o funcionamento da racionalidade neoliberal atrelada a uma
estratégia do desenvolvimento que não opera por meio de ideologias, durante o
momento enquadrado como Guerra Fria houve um grande investimento dos direitos 45 Segundo seu site oficial, “A Latin American Studies Association é a maior associação profissional do mundo composta de indivíduos e instituições dedicadas ao estudo da América Latina. Com mais de 12.000 sócios, quase 60% dos quais residindo fora dos Estados Unidos, a LASA é uma associação que reúne especialistas de todas as disciplinas e profissões que dedicam-se ao estudo da América Latina em todo o mundo”. Cf. LASA. Sobre a LASA. Disponível em: https://lasa.international.pitt.edu/por/about/. Acesso: em 24/05/2016.
83
humanos ou do desenvolvimento humano na democracia, configurando-se em um meio
intelectual que conecta diferentes tendências políticas e formações profissionais.
Guilhot aponta para uma renovação das “classes dirigentes” dos EUA, da qual
decorreu a inserção de um ativismo ideológico na política exterior, possibilitando, por
exemplo, o que chama de “bolchevismo de direita” – antigos esquerdistas que tomaram
parte de um movimento neoconservador contra a radicalização da esquerda; o que irá
aproximá-la ao anticomunismo liberal (Ibidem: 218). Essa formação de militantes será
interessante a uma mobilidade social dentro do campo dessas organizações
internacionais. Nas palavras de Guilhot, pode-se dizer que “as mesmas qualidades que
faziam desses ativistas ‘revolucionários profissionais’, [é] que vão transformá-los em
policy professionals nos anos 1970, depois em democracy experts, sob a administração
Reagan (Ibidem: 221), nos anos 1980. Nesse sentido, será mais interessante o grau de
funcionalidade e utilidade da “bagagem”, formação e experiência destes profissionais
do que o conteúdo “ideológico” propriamente dito pelo que já vivenciaram.
O novo campo de profissionais e especialistas descrito por Guilhot passa pelo
campo universitário, com a produção de política exterior, consultoria, cargos
governamentais, administração de think tanks de direita, instituições do
desenvolvimento, etc. Em relação aos novos Estados descolonizados, principalmente na
década de 1990, por exemplo, se anteciparão os riscos de instabilidade provocados pela
modernização capitalista que os EUA exportavam e, simultaneamente, serão
favorecidas reformas para o desenvolvimento que permitem canalizar as forças sociais
que a mesma exportação mobiliza (Ibidem: 226).
A crítica de Guilhot, porém, gira em torno da privatização da política exterior e
trabalha com uma noção de exportação de dentro dos EUA para fora, seguindo a noção
de “imperialismo do universal” de Pierre Bourdieu. Já a presente análise busca
84
evidenciar um interesse comum do desenvolvimento como uma estratégia que, ligada a
recursos, instituições e especialistas, transforma-os em agentes de uma governança em
âmbito planetário.
No TOKTEN, tido como programa de amplo sucesso, há um grande pessoal
qualificado e investido como capital humano, independentemente de suas aspirações
políticas ou econômicas, para promover melhorias que reflitam as especificidades de um
grupo. Assim, interessa como Guilhot mapeia as migrações de ocupantes de cargos
públicos nos EUA para funções em Fundações e Institutos de organizações
internacionais, mas não desmascarar essas migrações como novas estratégias do
imperialismo estadunidense.
Nos anos 1970, vê-se, ainda, o engajamento do PNUD com partidos e
movimentos revolucionários de diversos países em prol da governança global, com
pretensões “neutras e precisas”, de acordo com valores formatados sob a rubrica desse
novo modo de pensar e se desenvolver.
Na China, por exemplo, o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) global
do PNUD de 2013, intitulado “A Ascensão do Sul: Progresso Humano num Mundo
Diversificado”, sinaliza para uma série de mudanças complexas interligadas pelas quais
o país viveu ao final da década de 1970 – de uma economia planificada para uma
economia de mercado; do rural para o urbano; da agricultura para a indústria
transformadora e os serviços; de atividades econômicas informais para formais; de uma
economia bastante fechada ao mundo exterior para uma superpotência do comércio
internacional, etc. (PNUD, 2013: 74). Todas elas teriam sido orientadas em benefício do
mercado e exigiram uma estratégia a longo prazo do Estado para a construção de
capacidades e instituições.
Além disso, a China teria composto uma administração pública “mais jovem,
85
mais aberta e com um nível superior de educação” (Ibidem: 74). Segundo o RDH, a
reforma para a abertura da China decorreu de uma vontade explícita ao final da década
de 1970 de diminuir restrições econômicas à participação das pessoas (Ibidem: 75). De
acordo com Craig Murphy (2006: 177), em 1978, a China, sob a nova política de Deng
Xiaoping, decidiu chamar o PNUD para engajá-la com a economia global. Incluiu-se
uma abordagem com 22 leis econômicas que explicitamente fundavam uma economia
de mercado, bem como a introdução de um conceito fundamental de governo:
seguridade social (Idem: 178). Foram realizados pelo PNUD fóruns de alto nível sobre a
informatização de cidades na região da Ásia/Pacífico, que trouxeram oficiais de governo
e líderes de corporações de toda a região focados no uso de informação tecnológica para
promover a chamada governança e o acesso a serviços urbanos, bem como interessados
em criar uma infraestrutura necessária para a efetiva participação na economia global
(Ibidem: 180).
Também na década de 1970, o TOKTEN foi implementado no Irã, tornando-o o
maior patrocinador das inovações do PNUD. O governo do Shah Reza Pahlavi (1941-
1979) proveu significante capital inicial para a UNV (“Voluntários da ONU”) e o Fundo
de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM, na sigla em inglês)
(Ibidem: 191). Quando o Shah foi derrubado pela Revolução Iraniana, em janeiro de
1979, os funcionários do PNUD e especialistas estrangeiros foram forçados a evacuar; a
guarda da revolução confiscou os principais veículos do Programa, e seu escritório,
como muitas embaixadas no Teerã, teve de se retirar (Ibidem: 191). Em novembro,
militantes ocuparam a embaixada dos EUA, onde diplomatas foram mantidos reféns por
mais de um ano. Como resposta, os EUA e seus aliados isolaram o regime
revolucionário, tanto econômica quanto politicamente, algo que se intensificou ainda
mais quando o Iraque invadiu o Irã, em setembro de 1980.
86
O PNUD permaneceu com uma única agência em Teerã46, e, portanto,
intermediária entre o Irã e o resto do sistema ONU. O TOKTEN ajudou, no pós-guerra
do Irã, a reestabelecer a indústria do petróleo e aumentar o montante que poderia ser
extraído de suas reservas e, segundo Murphy, outros programas sustentados pelo PNUD
também se moveram em direção à abertura política e a um “ambiente mais eficaz para
os negócios” (Ibidem: 193). Para o historiador, as visitas de conhecidos economistas
iranianos que moravam no exterior e sessões de treinamento com uma variedade de
especialistas internacionais em problemas particulares, bem como a entrada na OMC
(Organização Mundial do Comércio) ou a implementação de um sistema de exportação
alinhado às orientações do FMI, foram de ajuda incalculável, e, em suas palavras,
apenas o PNUD foi considerado “neutro o suficiente” para conectar o país a conselhos
não-partidários (Ibidem: 193).
No ano seguinte à criação do TOKTEN, em 1978, a Assembleia Geral da ONU
institucionalizou a chamada Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento
(CTPD), reiterando a formalização do conceito de “cooperação técnica” – “cooperação
horizontal ou também “cooperação Sul-Sul” –, com foco nos países da América Latina,
como uma modalidade da cooperação internacional para o desenvolvimento, em
contraponto à cooperação Norte-Sul. Com o fomento deste conceito, reconheceu-se,
formalmente, que, em termos de tecnologia e experiência em desenvolvimento, os
países do Sul tinham muito a oferecer a eles mesmos, e que as soluções vindas de países
do Norte eram, muitas vezes, bastante imprecisas pela falta de conhecimentos locais.
46 Anteriormente, foram introduzidas o Alto Comissariado para Refugiados (UNHCR, na sigla em inglês), a União Internacional de Telecomunicação (UIT), a Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA, na sigla em inglês), entre outras, compondo quarenta ou cinquenta agências contando com as organizações regionais e agências bilaterais para o desenvolvimento.
87
A CTPD foi vista como forma de difusão do que chamou de “sustentabilidade
dos projetos de desenvolvimento”, ao aumentar as possibilidades de soluções entres os
países considerados em desenvolvimento, e ao cortar custos advindos de ajuda externa.
Na Conferência da Buenos Aires de 1978, com a participação de todos os países
membros da ONU, foram estabelecidos no PNUD uma Unidade Especial de CTPD e
um Comitê de Alto Nível.47 Em nome do fortalecimento das relações entre os chamados
países em desenvolvimento, estabeleceu-se que estes países poderiam alcançar maior
controle e responsabilidade sobre a distribuição de seus recursos, capacidades e
necessidades, bem como o reconhecimento de uma demanda aos chamados “problemas
do desenvolvimento”, em consonância com uma governança global:
Enquanto o progresso dos países em desenvolvimento depende primariamente de seus próprios esforços, este progresso é também afetado pelas políticas e performance dos países desenvolvidos. Ao mesmo tempo, é evidente que, como consequência do alargamento das relações internacionais, da cooperação e da interdependência em muitos campos, o progresso dos países desenvolvidos agora está, e de modo cada vez maior, afetado pelas políticas e performance dos países em desenvolvimento (UN, 1994: 03).
Como um “processo multidimensional”, a CTPD é tida, pela ONU, como uma
nova dimensão da cooperação internacional para o desenvolvimento, abrindo espaço
para os países “em desenvolvimento”. Em seu estabelecimento, remete-se
principalmente às resoluções anteriores da Assembleia Geral da ONU, como as de maio
de 1974, que contiveram a Declaração e o Programa de Ação para o Estabelecimento de
uma Nova Ordem Econômica Mundial; a de dezembro de 1974, que conteve a Carta de
Direitos Econômicos e Deveres dos Estados; e a de setembro de 1975 sobre cooperação
e desenvolvimento econômico internacional (Idem: 4).
47 Cf. FAO. What is TDCD?. Disponível em: http://www.fao.org/focus/e/tcdc/intro-e.htm. Acesso em 20/07/2016.
88
Em 1995, o Comitê de Alto Nível para a CTPD publicou um relatório em que se
examinam suas experiências, e no que se concluiu que o conceito de “cooperação
técnica entre países em desenvolvimento” permanecia válido e de crescente importância
em meio às alterações que ocorriam na estrutura internacional de cooperação técnica
multilateral. Argumentou-se que apesar das mudanças econômicas que afetaram
negativamente estes países desde o final da década de 1980, a CTPD abriu espaço para
oportunidades e a diferenciação entre eles (UN, 1995: 2). Este relatório ainda previa a
necessidade de identificar países que serviriam como “agilizadores” na implementação
da CTPD, bem como na promoção de um regime de cooperação triangular, em que os
doadores concordariam em financiar o intercâmbio entre países em desenvolvimento, e
o uso de uma Unidade Especial para a CTPD como mecanismo facilitador de
transferência de projetos de sucesso. Remete-se, ainda, à adoção de novas dimensões
em cooperação técnica pelo Conselho de Governo do PNUD, reiterando que “a decisão
do Comitê de Alto Nível sobre novos rumos para a CTPD será de contribuir para o
desenvolvimento ulterior da Comissão como um instrumento dinâmico de apoio a um
empreendimento realmente global para o desenvolvimento” (Idem: 3 – grifos meus)
(UNDP, 1995).
A despeito do aperfeiçoamento, complementariedade ou mesmo substituição de
seus conceitos como instrumentos para as políticas de desenvolvimento, como no caso
da substituição do conceito de “assistência técnica” por “cooperação técnica”, pode se
dizer que o próprio PNUD constitui-se, desde a sua emergência, como este
“empreendimento global para o desenvolvimento”. Em 1995 é também publicado pela
ONU o relatório Our Global Neighborhood, enfatizando o fim da Guerra Fria e as
novas formas de pensar a segurança globalmente. Este relatório, remetendo à Carta de
89
fundação da ONU e os preceitos da paz entre os Estados, evidencia-se como ápice do
discurso da governança global na ONU (Oliveira, 2016: 30).
Estes novos arranjos no âmbito da ONU e do PNUD possibilitaram que os
“países desenvolvidos” adentrassem na cooperação Sul-Sul como investidores deste
novo empreendimento, em que o PNUD, como mediador das trocas ou intercâmbios e
como replicador de modelos entre diversas localidades, porém com características
comuns, tornou-se cada vez mais eficiente ao funcionar em meio a uma
governamentalidade planetária.
fluxos de inteligências e suas irradiações
Ao longo de sua história – desde a sua constituição em meio ao planejamento no
pós-Segunda Guerra Mundial, bem como durante a chamada Guerra Fria e após a
derrocada da União Soviética como inimigo comum do “mundo livre” –, o PNUD
reuniu pessoas advindas de diferentes meios, com diferentes interesses, recursos, de
diferentes instituições e áreas, de países “desenvolvidos” e “em desenvolvimento”.
Na formação do PNUD passaram figuras como Raúl Prebisch, de formação
keynesiana pela Faculdade de Economia em Buenos Aires, que, em 1949, assumiu o
cargo de Secretário Executivo do CEPAL e teve uma breve, porém significativa
passagem pelo EPTA quando estabeleceu importantes diretrizes para o que chamou de
“problema do desenvolvimento”. Arthur Lewis, que publicou escritos com a Sociedade
Fabiana e chegou a se autodeclarar anti-imperialista, consolidou a “economia do
desenvolvimento” como um campo específico de estudo, e dividiu o Prêmio Nobel de
Economia, em 1979, com o neoliberal Theodore Schultz. Ambos foram membros da
mesma equipe na ONU quando Lewis formulou um modelo para o desenvolvimento
incluindo a rápida industrialização e reformas sociais, e quando Schultz analisava o
90
papel da agricultura na economia e desenvolvia a teoria do capital humano, motivando
investimentos no ensino técnico e vocacional pelas instituições do Sistema Breton
Woods (FMI e Banco Mundial).
De forma não restrita ao PNUD, mas conectando o vasto campo do
desenvolvimento como estratégia de governamentalidade, o indiano V. K. R. V. Rao,
que fora estudante de Keynes, foi importante por estabelecer, em 1950, a questão de
empréstimos com taxas reduzidas na agenda da ONU, sugerindo que seria necessário
cinco ou dez vezes o montante transferido anualmente pelo Plano Marshall aos países
“em desenvolvimento”. Rao foi presidente da Sub-Comissão da ONU para o
Desenvolvimento Econômico, que levou ao estabelecimento da IDA (Interational
Development Association – “Associação Internacional de Desenvolvimento”) – agência
do Banco Mundial que concedia empréstimos aos chamados países desenvolvidos com
uma taxa mais baixa que a do mercado.
Muitos iniciaram sua carreira na guerra. Hugh Keenleyside, que serviu para a
Força Expedicionária canadense na Primeira Guerra Mundial, tornou-se Diretor-Geral
da Administração de Assistência Técnica da ONU, em 1949, durante a administração de
David Owen no EPTA.
Já Paul Hoffman, utilizou sua experiência como servidor do Exército na
Primeira Guerra Mundial e como empresário do ramo automobilístico nos EUA para
administrar o Economic Cooperation Administration, um programa de ajuda para a
Europa, no interior do Plano Marshall, introdutor da questão da cooperação em termos
de desenvolvimento. Foi o primeiro administrador do PNUD e, em 1974, foi premiado
com a Medalha Presidencial da Liberdade pelo presidente Nixon. Robert Jackson, que
foi seu consultor em apoio técnico, logístico e de pré-investimento para países
considerados “em desenvolvimento”, iniciou sua carreira profissional na Marinha Real
91
(Royal Navy) do Reino Unido, em 1937, onde se destacou pela defesa de Malta durante
a Segunda Guerra Mundial. Dali foi nomeado conselheiro principal no Gabinete de
Guerra do Cairo, com o MESC (Centro de Abastecimento do Oriente Médio). Jakcson
foi responsável pelos projetos do UNRRA (UN Relief and Rehabilitation
Administration), considerada a primeira grande operação de reconstrução no pós-guerra
na Europa, partes da África e do Extremo Oriente. Durante o ano de 1971, ajudou a
implementar projetos do PNUD em 60 países. Jackson foi casado com Barbara Ward –
presidente, desde 1973, do Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento, e autora de Spaceship Earth48, publicado em 1966.
Lester B. Pearson também serviu o Exército, nas duas guerras mundiais, e
tornou-se Primeiro Ministro do Canadá, em 1963, e líder do Partido Liberal. Pearson é
considerado mentor das Forças de Manutenção de Paz da ONU e recebeu, em 1957,
Prêmio Nobel da Paz por seu papel, como Ministro das Relações Exteriores do Canadá,
na mediação da Crise de Suez, entre o Egito e as potências ocidentais. Em 1967,
Pearson liderou a “Comissão Pearson”, que reuniu durante dois anos especialistas de
diferentes países para uma análise sobre a cooperação internacional para o
desenvolvimento. Em 1970, fundou o International Development Research Centre no
Canadá.
Rudolph Peterson, segundo administrador do PNUD, foi CEO do Bank of
America, desde 1936 e presidente do Banco de Honolulu. Bradford Morse serviu o
Exército dos EUA na Segunda Guerra Mundial. Foi Chefe de Justiça do Tribunal
48 Segundo Leandro Siqueira em Ecopolítica: derivas do espaço sideral (2015), este livro de Ward – que foi resultado de uma série de conferências no laboratório federal de pesquisas nucleares Brookhaven National Laboratory – pretendia reforçar a ideia de interdependência e vulnerabilidade planetária. Ao estabelecer a relação entre desenvolvimento e meio ambiente e a interdependência entre riqueza e recursos naturais, via na proliferação de blocos econômicos, principalmente a ONU, uma unidade global propícia para a estabilidade e a paz onde países mais ricos pudessem ajudar os chamados subdesenvolvidos (Idem: 260).
92
Superior de Justiça de Massachusetts e professor da Faculdade de Direito da
Universidade de Boston. Em 1958, foi administrador adjunto da Administração de
veteranos de guerra dos EUA. Em 1960, foi Representante do Partido Republicano no
Congresso dos EUA e, em 1972, assumiu o cargo de Secretário dos Assuntos Políticos
da Assembleia Geral da ONU, antes de substituir Peterson como administrador do
PNUD, em 1976.
William Draper foi o quarto administrador do PNUD, a partir de 1986. Graduou-
se em economia, junto com George H. Bush (presidente dos EUA entre 1989 e 1993),
na Universidade de Yale. Em 1951, serviu como segundo tenente na Guerra da Coreia.
Em 1954, cursou mestrado em Negócios e, poucos anos depois, tornou-se sócio na
empresa Draper, Gaither & Anderson, a primeira empresa de capital de risco na Costa
Oeste. Em 1965, fundou a Sutter Colina Ventures, que até hoje continua a ser uma das
principais firmas de capital de risco no país, além de ter sido responsável por financiar
várias centenas de companhias de alta tecnologia. Antes de assumir o cargo de
administrador do PNUD, foi presidente do Export-Import Bank dos Estados Unidos
(liderança nos esforços norte-americanos para apoiar o comércio mundial frente aos
problemas de liquidez entre os chamados países em desenvolvimento). Durante sua
gestão, o paquistanês Mahbub ul Haq teve um papel importantíssimo ao liderar a equipe
do Relatório de Desenvolvimento Humano. Ul Haq foi PhD em Economia pela
Universidade de Yale e possuía pós-doutorado pela Universidade de Harvard. Em 1970,
tornou-se diretor de Planejamento Político do Banco Mundial. Em 1982, assumiu o
cargo de Ministro das Finanças e Planejamento do Paquistão e, em 1989, tornou-se
Conselheiro Especial na Administração do PNUD. Em 1990, foi laureado com o Prêmio
Nobel em Economia pela criação do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), grande
empreendimento do PNUD até hoje.
93
Gustave Speth foi o sucessor de Draper como administrador do PNUD, a partir
de 1993. Speth graduou-se na Faculdade de Direito de Yale. Em 1970, tornou-se
advogado sênior e co-fundador do Conselho de Defesa dos Recursos Naturais dos EUA.
Em 1977, foi Conselheiro do governo de Jimmy Carter (1977-1981) sobre questões
ambientais e tinha responsabilidade geral pelo desenvolvimento e coordenação do
programa ambiental do governo. Em 1981, tornou-se professor de Direito Ambiental e
Constitucional na Georgetown University Law Center. Em 1982, fundou o World
Resources Institute, think tank ambiental em Washington. Ao adentrar para o PNUD
também assumiu o cargo de Coordenador Especial para Assuntos Econômicos e Sociais
do Secretário-Geral da ONU na época, Boutros Boutros-Ghali, pilotando o Plano de
Assistência ao Desenvolvimento da ONU e atuando como presidente do Grupo de
Desenvolvimento da ONU.
As estratégias que aglutinam políticas voltadas ao desenvolvimento, como um
vasto campo instrumentalizado pela racionalidade neoliberal que acopla interesses e
formações profissionais, puderam reunir todas essas pessoas de forma heterogênea,
porém não aleatória. Coube sublinhar o trânsito destas figuras tidas como grandes
promotoras da paz entre seus empreendimentos de guerra, vida acadêmica, ambiente
empresarial e cargos na burocracia estatal. Os empreendedores da paz no PNUD são
capacitados pela guerra como gestores dos negócios políticos e econômicos de Estado e
de empresas, assim como são laureados por prêmios e títulos acadêmicos para serem
reconhecidos como produtores de verdades planetárias.
Se o poder é um conjunto de relações de força em exercício de forma ascendente
e também descendente, não cabe analisar o poder no nível da intenção ou decisão; de
perguntar “quem detém o poder” (Foucault, 2010: 25). Se o poder é algo que só
existe em ato, em exercício, e se suas múltiplas relações de força não são de caráter
94
apenas repressivo, pois são impulsionadas, em grande medida, por uma produção
constante que põe em circulação “uma certa economia dos discursos de verdade que
funcionam nesse poder, a partir e através dele” (Foucault, 2010: 22), interessam as
extremidades do poder, suas capilaridades que permitem entrelaçamentos heterogêneos
compondo uma estratégia.
Essas relações, estes entrelaçamentos do poder heterogêneos passam por pontos
singulares que atravessam e são atravessados tanto pelas forças dominadas como pelas
dominantes; por todos os aparelhos e instituições que o fazem convergir de alguma
maneira. E os indivíduos são simultaneamente intermediários e efeitos dessas relações
de força, uma vez que “o poder transita pelo indivíduo que ele constitui” (Idem: 26 –
grifo meu).
Conforme indicações de Gilles Deleuze (1992), a sociedade das disciplinas foi
ultrapassada pelas sociedades de controle, não predominando mais confinamentos, mas
controles contínuos e comunicação instantânea: “os confinamentos são moldes, distintas
moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem
autodeformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira
cujas malhas mudassem de um ponto a outro” (Idem: 225).
Foucault indicou, em Segurança, Território e População, o caráter centrípeto da
disciplina (Foucault, 2008: 58), no que se exerce por meio de confinamentos, isolando
um espaço, determinando um segmento. Ela circunscreve um espaço no qual seu poder
e seus mecanismos se dão. Já os dispositivos de segurança, que se configuraram no
lugar de um sistema jurídico-disciplinar na medida em que a população, com seus
fenômenos regulares, emerge como objeto de governo, são centrífugos (Idem: 59). De
acordo com Foucault, os dispositivos de segurança, que ultrapassaram as disciplinas,
95
ampliam-se continuamente, integram e regulam novos elementos e comportamentos em
circuitos cada vez maiores.
Pensando nos deslocamentos das resistências da sociedade disciplinar para a de
controle, Passetti aponta para que, diferente da repressão e esperada docilidade na
primeira, na atual sociedade de controle ultrapassam-se os confinamentos por fluxos
inteligentes e pelo investimento em participação, organizados sob a forma de
programas (Passetti, 1999: 58). No lugar das especializações, abre-se espaço para
profissionais polivalentes em formação permanente e sob controle contínuo, tendo as
energias inteligentes dos sujeitos extraídas em fluxos de múltiplas procedências (Idem:
58). Em poder e anarquia (2007), as análises de Passetti sobre os novos trânsitos das
relações de poder na sociedade de controle mostram que estas são produzidas em fluxos.
Seus efeitos não são mais dirigidos ao combate ou extermínio de resistências, mas às
capturas que levam à inclusão (Passetti, 2007: 12).
Na presente análise, portanto, é possível pensar em algumas pessoas que
estiveram diretamente ligadas ao PNUD e aos programas que precederam à sua fusão,
não como sujeitos de uma história, mas como pontos pelos quais o poder transita sem
restringir-se a um espaço delimitado. Via pela qual passam e se direcionam os fluxos de
controle.
Assim como o exercício de poder como “condução de condutas” se dá como
uma forma de conduzir e de se comportar diante de uma liberdade entendida como
variedade de possibilidades (Foucault, 1995: 244), a noção de governo, conforme os
apontamentos de Michel Foucault, não se restringe a uma instância suprema. Ela possui
sentido amplo e bastante antigo, da condução da conduta dos homens, encontrando,
tanto no nascimento de uma nova arte de governar no século XVIII como com o
neoliberalismo estadunidense e alemão no pós-Segunda Guerra Mundial, uma
96
racionalidade governamental composta por práticas de governo reproduzidas pelos
indivíduos e suas subjetividades (Foucault, 2007: 283-284).
Nesse sentido, as práticas de governo não devem ser pensadas como presas a
uma rigidez hierárquica de poder restrita às figuras influentes na constituição do PNUD
como programa. Interessa pensar o PNUD como irradiador dessas práticas
funcionando em meio a complexas, velozes e contínuas relações de força atravessadas
por todos aqueles que se disponibilizam a constituir-se como agente de governo, como
aquele que sabe gerir a si e suas escolhas de forma racional e responsável, como se verá
mais a frente, principalmente com os apontamentos de Amartya Sen sobre o
desenvolvimento humano, largamente utilizado pelas políticas orientadas e
implementadas pelo próprio PNUD. Em meio à sociedade de controle, circunscrita a
uma governamentalidade planetária, que, conforme as análises de Passetti, opera pela
inclusão e participação de cada um nos múltiplos fluxos como eficientes amortecedores
de resistências (Passetti, 2007), não cabe pensar sob a perspectiva da dominação e
neutralidade, mas dos assujeitamentos49.
***
A partir das indicações de Foucault sobre as relações de poder, Gilles Deleuze
pôde afirmar que é um erro acreditar que o saber aparece onde estão suspensas as
relações de força. Não há modelo de verdade que não remeta a um tipo de poder, e nem
um saber ou ciência que não exprima ou não implique um ato de poder se exercendo
(Deleuze, 1986: 48). E o que permite este ato do poder é precisamente o saber que
entrelaça pontos visíveis e o enunciável, bem como inversamente, como, por exemplo,
49 Sobre a noção de assujeitamento proposta por Michel Foucault, ver: Castelo Branco, 2000.
97
as visibilidades da prisão e os enunciados do direito penal: “as duas formas não param
de entrar em contato, insinuando-se uma dentro da outra, cada uma arrancando um
segmento da outra: o direito penal não pára de remeter à prisão, de fornecer presos,
enquanto a prisão não para de reproduzir a delinquência, de fazer dela um objeto e de
realizar os objetivos que o direito penal concebia de outra forma” (Idem: 42).
Essas relações, estes entrelaçamentos do poder, são heterogêneos, pois passam
por pontos singulares que compõem uma estratégia, passando tanto pelas forças
dominadas como pelas dominantes; por todos os aparelhos e instituições que o fazem
convergir de alguma maneira.
A partir destes apontamentos sobre o poder e suas singularidades, Deleuze se
ateve à noção de diagrama apresentada por Foucault. Segundo ele, o filósofo define o
Panoptismo, ora como algo concreto – como agenciamento óptico que caracteriza a
prisão –, ora abstratamente, como uma máquina que atravessa todas as funções
enunciáveis, compondo-se não mais como um “ver sem ser visto”, mas “[impondo] uma
conduta qualquer a uma multiplicidade humana qualquer” (Ibidem: 43). Assim, partindo
do panóptico enquanto um dispositivo que compõe um local de troca de relações de
força que exercem uma função, o diagrama seria o mapa, ou os mapas sobrepostos,
destas relações funcionando em campo social, em um mecanismo.
[O diagrama] é a exposição das relações de forças que constituem o poder, segundo os caracteres analisados anteriormente (...), é o mapa das relações de forças, mapa de densidade, de intensidade, que procede por ligações primárias não-localizáveis e que passa a cada instante por todos os pontos (...). Certamente, nada a ver com uma Ideia transcendente, nem com uma superestrutura ideológica; nada a ver tampouco com uma infra-estrutura econômica, já qualificada em sua substância e definida em sua forma e utilidade. Mas não deixa de ser verdade que o diagrama age como uma causa imanente não-unificadora, estendendo-se por todo o campo social: a máquina abstrata é como a causa dos agenciamentos concretos que efetuam suas relações; e essas relações de força passam, “não por cima”, mas pelo próprio tecido dos agenciamentos que produzem (Ibidem: 46).
98
Na presente pesquisa, optou-se, porém, pela organização de um fluxograma,
mais afeito ao itinerários em fluxos dos promotores da paz aqui descritos na sociedade
de controle. Mais do que ocupar o que se poderia supor como postos de poder, o fluxo
em variedades de ocupações, títulos e prêmios nos permite acompanhar como se
compõe uma elite catalizadora e modular que produz as conexões e acoplamentos da
chamada governança global. Seu efeito é a irradiação de condutas assujeitadas, modo
como se conectam modelos e programas em âmbito planetário, produzindo práticas de
governo nos recantos mais ermos construídos como vulneráveis.
A seguir, um fluxograma apresenta algumas das pessoas aqui mencionadas, que
estiveram diretamente relacionadas à gestão dos administradores do EPTA e do Fundo
Especial e, posteriormente, os primeiros cinco administradores do PNUD. Busca-se
apontar para alguns itinerários e deslocamentos em meio ao afinamento e
redimensionamentos centrados no PNUD e sua produção.
99
100
2. GOVERNAMENTALIDADE PLANETÁRIA E AS
ABORDAGENS DO DESENVOLVIMENTO
101
O segundo capítulo desta dissertação, “governamentalidade planetária e as
abordagens do desenvolvimento”, se atém às institucionalizações e instrumentos do
PNUD que se alinham e atendem a uma governamentalidade que funciona em âmbito
planetário. Percorrem-se publicações, relatórios e documentos do Programa que
demonstram tentativas de um redimensionamento da segurança após a chamada Guerra
Fria. Ao conectar-se com as prerrogativas para o desenvolvimento, a segurança calcada
no humano culmina na introdução de práticas de governo e securitizações no mais
ínfimo da conduta das pessoas.
O primeiro movimento do capítulo, “construção de novos alvos sob o jugo da
paz planetária”, acompanhando as análises sobre a ecopolítica do planeta, volta-se para
redimensionamentos específicos da segurança. Parte-se do exemplo da Somália, país
emblemático presente sempre no topo dos rankings de Estados falidos, para enfatizar a
construção de novos alvos a serem perseguidos quando da dissolução do inimigo
soviético, passando a compor uma responsabilidade a ser compartilhada pela chamada
comunidade internacional. O conceito de segurança humana, como abordagem do
PNUD para o alcance do desenvolvimento, emerge na década de 1990 com o objetivo
de responder às novas formas de intervenção, não mais restritas aos países, mas atuando
em ambientes específicos e enfatizando a relação destes com a conduta das pessoas que
o habitam.
Em um segundo movimento, “o desenvolvimento humano e a construção de uma
abordagem para a vida”, dá-se continuidade às análises sobre a segurança humana, com
enfoque no desenvolvimento humano, que mostra sua eficiência na complementaridade
aos próprios direitos humanos. Destaca-se a produção do economista paquistanês
Mahbub ul Haq e do econometrista indiano Amartya Sen na construção das abordagens
da segurança e do desenvolvimento humanos, baseadas na lógica da liberdade, tomada
102
como um valor, e das oportunidades, como garantias para a realização de escolhas
responsáveis.
Em seguida, expõe-se a construção do Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH), também na década de 1990, elaborado por ul Haq e Sen, constituindo-se até hoje
como um dos mais importantes instrumentos táticos do PNUD para a identificação de
focos de vulnerabilidade. Facilmente ajustável e acoplável, o IDH e suas variações são
largamente utilizados pelo PNUD para a orientação e operacionalização das chamadas
“políticas públicas” no âmbito de Estados, ONGs, institutos, organizações da sociedade
civil, etc., evidenciando-se como importante instrumento na governamentalidade
planetária. Este movimento ainda apresenta características e peculiaridades produzidas
pelo IDH brasileiro, buscando expor alguns exemplos de seu funcionamento.
No terceiro e último movimento, intitulado “abordagem do desenvolvimento
humano sustentável”, são apresentados os novos contornos do desenvolvimento no
âmbito do PNUD. O desenvolvimento humano e sustentável não estará restrito à
sustentabilidade do meio ambiente e dos recursos naturais, mas, novamente, almeja
estreitar as relações entre as pessoas e o ambiente em que vivem. Como um
desdobramento deste movimento, encerrando o capítulo, são expostas algumas das
produções e conceitos projetados para a agenda da ONU e do PNUD referente ao século
XXI. Nesse sentido, destaca-se a resiliência como eficiente aglutinador dos conceitos e
abordagens que formatam uma lógica das responsabilidades alinhada à racionalidade
neoliberal. Na busca de minar ameaças e as chamadas vulnerabilidades, a resiliência se
mostra, também, eficiente disseminadora de relações de poder e práticas penalizadoras.
103
2.1. a construção de novos alvos sob o jugo da paz planetária
construção do fracasso
No âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), no período enquadrado
como Guerra Fria, os EUA e a União Soviética interpunham vetos às resoluções que
afetavam seus interesses, muitas vezes paralisando o Conselho de Segurança da ONU
(Rosas, 2008: 21). Com a extinção da União Soviética, o Conselho de Segurança passou
por uma série de reformas, principalmente entre os anos de 2004 e 2005, com a
ampliação do número de membros não permanentes e permanentes.50
Neste período, foram criadas duas novas instituições no sistema ONU: A
Comissão de Construção da Paz (CCP) e o Conselho de Direitos Humanos (CDH).
Ambas fundamentam-se por consenso; suas recomendações são levadas à Assembleia
Geral da ONU e assessoradas pelo Conselho de Segurança. A CCP desenvolve medidas
para a consolidação da paz “pós-conflitos”, para que estes não ressurjam,
principalmente após intervenções das Operações de Manutenção de Paz (OMPs),
realizadas pelos “capacetes azuis” da ONU.
Desde a fundação da ONU, logo após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, até
hoje, foram realizadas mais de 60 destas operações, tendo sido a maior parte
implementada na década de 1990. Segundo o site oficial da ONU, na época de
rivalidades da Guerra Fria, as operações de paz limitavam-se à manutenção e
monitoramento de cessar-fogo. Já após este período, a ONU expandiu seu campo de
50 Em 2004 fizeram parte do Conselho de Segurança da ONU os países: Argélia, Angola, Benin, Brasil, Chile, Alemanha, Paquistão, Filipinas, Romênia e Espanha. Em 2005, participaram Argélia, Argentina, Benin, Brasil, Dinamarca, Grécia, Japão, Filipinas, Romênia e Tanzânia. Cf. UN Security Council. Countries Elected Members of the Security Council. Disponível em: http://www.un.org/en/sc/members/elected.asp. Acesso em: 10/04/2016.
104
atuação, “de missões ‘tradicionais’ envolvendo somente tarefas militares, a complexas
operações ‘multidimensionais’ criadas para assegurar a implementação de abrangentes
acordos de paz e ajudar a estabelecer as bases para uma paz sustentável”51. Ainda
segundo a ONU, embora a força militar seja o suporte principal das operações, as
missões atualmente contam com “administradores e economistas, policiais e peritos em
legislação, especialistas em desminagem e observadores eleitorais, monitores de direitos
humanos e especialistas em governança e questões civis, trabalhadores humanitários e
técnicos em comunicação e informação pública”52; o que parece permitir uma maior
precisão e eficiência das intervenções e das garantias de paz “pós-conflito”.
Um dos primeiros casos e mais emblemáticos desta nova forma de intervenção,
bem como do processo de conservação da paz, remete à Somália, país africano, em
1992. De acordo com o PNUD, o país está em conflito armado desde 1988 e sem um
“governo central funcional” desde 1991, quando o ditador Siad Barre (1969-1991) foi
derrubado por clãs opositores.53 O desencadeamento de “convulsões violentas seguidas
por um período prolongado de anarquia54 e guerra”55 teria levado ao estabelecimento,
pelo Conselho de Segurança da ONU, da Operação da ONU na Somália I (UNOSOM I,
51 Cf. ONU. A ONU, a paz e a segurança. Disponível em: https://nacoesunidas.org/acao/paz-e-seguranca/. Acesso em 08/10/2015. 52 Idem. 53 Cf. UNDP. About Somalia. Disponível em: http://www.so.undp.org/content/somalia/en/home/countryinfo/. Acesso em 08/09/2015. 54 O documento identifica anarquia à guerra de todos contra todos, seguindo a tradição filosófico-política ou jurídico-política em associar a ausência de governo centralizado no Estado como desordem e violência. Argumento este utilizado para justificar o monopólio da violência no Estado. Tal posicionamento ignora, propositalmente, as análises de anarquistas como Pierre-Joseph Proudhon, em afirmar outras formas de convivência livres que suprimem a guerra como atividade central do Estado. O federalismo político descentralizado baseado na associação, para Proudhon, propicia o estabelecimento de relações mutualistas no campo econômico e, portanto, pacíficas no campo político e social (Proudhon, 2001). 55 Idem.
105
na sigla em inglês), em 1992, e a Operação da ONU na Somália II (UNOSOM II, na
sigla em inglês), a partir de maio de 1993.56
De acordo com o documento oficial da ONU sobre a operação, a UNOSOM I foi
criada para “facilitar a ajuda humanitária às pessoas presas pela guerra civil e a fome”57.
A missão teria desenvolvido uma tentativa ampla de interromper seus conflitos locais e
de reconstituir as consideradas instituições básicas de um Estado viável, uma vez que a
Somália ocupa uma posição geopolítica estratégica importante no Chifre da África e sua
cultura política é influenciada pela concorrência entre um número de clãs e facções,
segundo a argumentação do documento.
Este alega que desde 1991 ocorriam fortes combates na capital somali,
Mogadíscio, bem como na cidade portuária Kismayo e no Noroeste do país, onde
predominavam líderes locais e facções. Além disso, tais alianças sem um controle
central teriam se combinado a uma grave seca, culminando no deslocamento de cerca de
2 milhões de pessoas de suas casas.
Em janeiro de 1992, foi aprovada a Resolução n. 733, sob o abrigo do Capítulo
VII da Carta das Nações Unidas58, impondo o embargo completo de armas na Somália.
56 Os países que contribuíram com pessoal militar na UNOSOM I foram: Austrália, Áustria, Bangladesh, Bélgica, Canadá, Tchecoslováquia, Egito, Fiji, Finlândia, Indonésia, Jordânia, Marrocos, Nova Zelândia, Noruega, Paquistão e Zimbábue. Na UNOSOM II contribuíram Austrália, Bangladesh, Bélgica, Botsuana, Canadá, Egito, França, Alemanha, Gana, Grécia, Índia, Indonésia, Irlanda, Itália, Kuwait, Malásia, Marrocos, Nepal, Holanda, Nova Zelândia, Nigéria, Noruega, Paquistão, Filipinas, República da Coréia, Romênia, Arábia Saudita, Suécia, Tunísia, Turquia, Emirados Árabes Unidos, Estados Unidos, Zâmbia e Zimbábue. Cf. UN. Somalia – Unosom I – Facts and Figures. Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unosom1facts.html. Acesso em: 21/09/2015 e UN. Somalia – Unosom II – Facts and Figures. Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unosom2facts.html. Acesso em: 21/09/2015. 57 Cf. UN. United Nations Operation in Somalia I. United Nations, Department of Public Information. Disponível em: http://www.un.org/Depts/DPKO/Missions/unosomi.htm. Acesso em 20/09/2015. 58 Neste capítulo, intitulado “Ação relativa a ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão”, consta que, em caso de ruptura ou ameaça à paz, o Conselho de Segurança deverá tomar medidas efetivas, podendo convidar os membros da ONU para aplicá-las, e podendo incluir “a interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos, ou de qualquer espécie e o rompimento das relações diplomáticas” (ONU, 1945: 25). No caso de tais medidas se mostrarem inadequadas, segundo a Carta, o Conselho de Segurança
106
Em março, uma nova Resolução (n. 746) pediu a continuação do trabalho da ONU,
quando também foram assinados acordos entre partidos rivais em Mogadíscio,
resultando na distribuição de observadores da ONU para monitorar o cessar-fogo – o
que reuniu 40 militares e uma unidade de infantaria para fornecer comboios de
suprimentos de emergência.59 Em abril, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a
Resolução n. 751, que deu início à UNOSOM I. Foram enviados 50 observadores
militares desarmados à Mogadíscio, vindos da Áustria, Bangladesh, Checoslováquia,
Egito, Fiji, Finlândia, Indonésia, Jordânia, Marrocos e Zimbábue. Em julho, a operação
foi reforçada com a criação de quatro zonas operacionais – em Berbera, Bossasso,
Mogadíscio e em Kismayo – apoiadas por uma equipe técnica, cada uma com sua
unidade militar, chegando a totalizar 4219 soldados em setembro.
Em outubro do mesmo ano, segundo o documento da operação, após um conflito
no aeroporto de Mogadíscio e “na ausência de um governo capaz de manter a lei e a
ordem, organizações de socorro vivenciaram um aumento de sequestro de veículos,
saques de comboios e armazéns e detenções de pessoal expatriado”60.
Após o ocorrido, foi aprovado, em dezembro de 1992, a Força Tarefa Unificada
(UNITAF, na sigla em inglês), em que o Conselho de Segurança aprovou a “oferta” dos
EUA de “ajudar a criar um ambiente seguro para a prestação de ajuda humanitária na
Somália”, e autorizou, também sob o abrigo do Capítulo VII da Carta da ONU, o uso de
“todos os meios necessários” para fazê-lo.61 O presidente dos EUA na época, George H.
Bush, deu início à Operação Restore Hope, na qual os EUA assumiram o comando da
poderá lançar mão da ação que julgar necessária, via forças aéreas, navais ou terrestres, “para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais” (Idem: 26). 59 Idem. 60 Ibidem. 61 Ibidem.
107
intervenção da ONU na Somália, além de contar com unidades militares advindas da
Austrália, Bélgica, Botsuana, Canadá, Egito, França, Alemanha, Grécia, Índia, Itália,
Kuwait, Marrocos, Nova Zelândia, Nigéria, Noruega, Paquistão, Arábia Saudita, Suécia,
Tunísia, Turquia, Emirados Árabes Unidos, Reino Unido e Zimbabué. Ao todo, a
UNITAF cobriu cerca de 40% do território somali com seus soldados. No entanto,
segundo o documento oficial da operação, apesar de uma melhora, um ambiente seguro
ainda não havia sido estabelecido, em decorrência da ausência de um governo eficaz em
funcionamento, de uma polícia civil organizada e de um exército nacional
disciplinado.62 Em 1995, em meio a conflitos entre os militares da ONU e as milícias
locais, e a dificuldade de negociações – culminando no conhecido desastre Black Hawk
Down63 –, a UNOSOM foi retirada da Somália.
Em 1997, foi realizada uma conferência de reconciliação nacional em Sodere, na
Etiópia, da qual derivou o estabelecimento do Conselho de Salvação Nacional, com 41
membros, para a criação de um governo de transição para a Somália.64 Segundo a
Missão de União Africana para a Somália, a Conferência foi boicotada pelo então
presidente do país, Mohammed Farah Aidid, e pelo governo da Somalilândia. Apenas
em 2000, após a Conferência de Paz Nacional da Somália (ou Conferência Djibouti), foi
estabelecida a Declaração de Arta e a formação do Governo Nacional de Transição, que
garantiram o reconhecimento internacional do país, bem como seu assento na ONU.65
62 Ibidem 63 Em outubro de 1993, uma força militar de elite estadunidense foi enviada à Mogadíscio para capturar generais que obedeciam ao líder somali Mohammed Farah Aidid, quando dois helicópteros UH-60 Black Hawk foram derrubados, dando início a um confronto que matou 19 soldados estadunidenses e cerca de 1000 somalianos. 64 Cf. AMISON. Somali Peace Process. Disponível em: http://amisom-au.org/about-somalia/somali-peace-process/. Acesso em 23/09/2015. 65 Ibidem.
108
Em 2003, foi realizada a 15ª Conferência de Reconciliação Nacional da Somália,
promovida pela Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento na África
Oriental, que produziu um acordo de cessar-fogo assinado por 24 líderes de facções e
estabeleceu o Governo Federal de Transição, formalmente concluído com a adoção da
Carta Federal de Transição.66 Em 2006, uma missão do exército etíope, apoiada pelos
EUA, expulsou a União de Cortes Islâmicas em Mogadíscio, que teria se dividido em
várias facções e continuado a confrontar o Estado de Transição e a presença militar
etíope na Somália.67 O período de transição política da Somália, que teve o apoio da
ONU, da União Africana e da União Europeia em todo o processo, foi considerado
encerrado, em 2012, com a eleição de Hassan Sheikh Mohamud como presidente.
Mohamud trabalhava como consultor no Governo Nacional de Transição para o
estabelecimento de Coordenação da Ajuda Somália e Unidade de Gestão no interior do
Ministério de Planejamento de Cooperação Internacional.68 Ao longo de sua carreira,
trabalhou como consultor em várias organizações locais e internacionais ligadas ao
desenvolvimento: em 1993, trabalhou na UNICEF como oficial de educação nas zonas
Sul e Central da Somália; em 1995, foi um dos principais envolvidos na mediação e
conciliação entre facções políticas, após a saída da UNOSOM I; em 1999, realizou
pesquisas de avaliação de necessidades de mercado e identificou a importância da
criação de centros técnicos e profissionais na Somália, tornando-se um dos fundadores
do Instituto de Gestão e Desenvolvimento da Somália; e, em 2001, juntou-se ao Centro
de Pesquisa e Diálogo como investigador na reconstrução da Somália pós-conflito, e foi
66 Ibidem. 67 Cf. AMISON. Brief History. Disponível em: http://amisom-au.org/about-somalia/brief-history/. Acesso em 23/09/2015. 68 Cf. Alshahid Webmaster. “The New President of Somalia, who is Hassan Sheikh Mahmoud?” in Network Alshahid. 11/09/2012. Disponível em: http://english.alshahid.net/archives/31546. Acesso em 24/09/2015.
109
eleito pela chamada sociedade civil, em Mogadíscio, como líder do Fórum Somali da
Sociedade Civil.69
Como presidente da Somália, Mohamud fundou o Partido da Paz e
Desenvolvimento, e sua eleição foi considerada “ponto culminante de um processo de
paz regional apoiado pela ONU”70, além de classificada pelos EUA como “um marco
no processo em que o país conflagrado pela guerra tenta por fim a mais de 20 anos de
violência, corrupção e divisão entre clãs”71.
De forma complementar às missões de paz da ONU, o PNUD atua na chamada
“construção da paz” [peacebuilding], treinando equipes locais e recuperando a
infraestrutura e as atividades econômicas locais. Segundo o PNUD global, seu trabalho
concentra-se na “prevenção de conflitos e na construção da paz, promovendo coesão
social de nações e capacitação de comunidades para se tornarem resilientes a choques
externos e internos”72. Seu trabalho se resume em três grandes áreas de atuação: 1)
capacidade para a prevenção e gestão de conflitos – com a criação de marcos
regulatórios e mecanismos institucionais que auxiliem o alcance de acordos e a
antecipação de conflitos futuros, bem como a construção de capacidades de liderança
envolvendo as chamadas sociedade civil e “comunidades marginalizadas”, por meio de
agendas compartilhadas e abordagens participativas; 2) facilitação, diálogo e
construção de consenso – por meio do acompanhamento de mediadores nacionais e
locais em torno de questões de governança e consolidação da paz de maneira inclusiva e
69 Idem. 70 Cf. Yara Bayoumy Reuters. “Após duas décadas de guerra civil, Somália elege presidente” in O Estado de S. Paulo. 10/09/2012. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,apos-duas-decadas-de-guerra-civil-somalia-elege-presidente,928566. Acesso em 24/09/2015. 71 Idem. 72 UNDP. Conflict prevention and peacebuilding. Disponível em: http://www.undp.org/content/undp/en/home/ourwork/democratic-governance-and-peacebuilding/conflict-prevention-and-peacebuilding/. (Grifo meu). Acesso em 09/10/2015.
110
participativa; 3) análise do conflito e avaliação – apoio à prevenção de conflitos em
desenvolvimento dentro do sistema ONU, por meio da avaliação e monitoramento dos
conflitos e suas tendências para uma resposta mais ágil e eficaz.
Desde 2012, quando o processo de construção da paz na Somália foi considerado
encerrado, o PNUD promoveu a construção de uma Constituição, adotada em agosto do
mesmo ano. O Somali Compact, assinado em 16 de setembro de 2013 na New Deal
Conference em Bruxelas, é tido como roteiro para a promoção da construção do Estado
e construção da paz até 2016 na Somália, o que inclui cinco metas de peacebuilding
[“construção da paz”] e statebuilding [construção do Estado] relativas à: processos
políticos inclusivos, segurança, justiça, fundações econômicas e receitas e serviços.73
Segundo o PNUD, o desenvolvimento não pode ser entregue aos somali, mas
deve crescer a partir de dentro, ou seja, o povo da Somália deve estar no centro de seu
próprio desenvolvimento.74 Seu trabalho no país é diretamente ligado ao Governo
Federal de Transição e aos governos da Somalilândia e Puntlândia, bem como à
chamada sociedade civil, ONGs locais e internacionais, e outras agências da ONU.
Atualmente, seus projetos dividem-se em cinco áreas: políticas de inclusão,
segurança, justiça, fundações econômicas e serviços.75 Dentre alguns exemplos,
destaca-se a promoção de “segurança comunitária”, financiada pelo Escritório de
Recuperação e Prevenção de Crises do PNUD (BCPR, na sigla em inglês), pela
Comissão Europeia, pelo Democratic Governance Thematic Trust Fund, e pelos
governos da Suécia, Dinamarca, Alemanha, Japão, Noruega e Bélgica. Segundo o site
73 Cf. UNDP. About UNDP in Somalia. Disponível em: http://www.so.undp.org/content/somalia/en/home/operations/about_undp.html. Acesso em: 24/09/2015. 74 Idem. 75 Cf. UNDP in Somalia. Our Projects. Disponível em: http://www.so.undp.org/content/somalia/en/home/operations/projects/overview.html. Acesso em 23/09/2015.
111
oficial do projeto, almeja-se envolver as comunidades locais com o governo, a polícia
local e o sistema de justiça para construir um ambiente seguro, por meio da participação
ativa dos segmentos “vulneráveis” da sociedade no planejamento, monitoramento e
execução de serviços de segurança.76
Há também o projeto de “Desenvolvimento Econômico Local”, financiado pelo
governo da Noruega, Reino Unido e Grécia, pelo Match Against Poverty, BP
International, Kline, NYK, Stena AB, Shell Foundation, Mitsui & Co. e Bra-Maersk.
Também com foco nas comunidades locais, este projeto se concentra na capacitação
destas por meio da geração de empregos e renda para as populações tidas como
vulneráveis.77 São criados empregos em curto prazo – através do trabalho intensivo de
reabilitação de infraestruturas sociais básicas, como captação de água, estradas de
acesso, escolas, centros de saúde, etc. – e a longo prazo, por meio do chamado
treinamento de habilidades (skillstraining) e da provisão de instrumentos para a
inicialização de trabalhos após este treinamento.78 São os próprios moradores que
aplicam o projeto, trabalhando no aprimoramento das infraestruturas locais e
empreendendo novos negócios criados por meio de políticas de microcréditos e da
capacitação para a prestação de serviços diversos.
O último Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) sobre a Somália data
de 2012 e centra-se nos jovens do país, argumentando que “ao colocar a juventude no
centro da análise, a assistência humanitária e a construção da paz podem se tornar mais
ágeis através da mobilização e capacitação de jovens como agentes positivos de
76 Cf. UNDP in Somalia. Comunity Security. Disponível em: http://www.so.undp.org/content/somalia/en/home/operations/projects/poverty_reduction/Community_Safety_and_Armed_Violence_Reduction.html. Acesso em 24/09/2015. 77 Cf. UNDP in Somalia. Local Economic Development. Disponível em: http://www.so.undp.org/content/somalia/en/home/operations/projects/hiv_aids/local-economics-development-project.html. Acesso em: 24/09/2015. 78 Idem.
112
mudança” (PNUD, 2012: V). De acordo com o relatório, a construção de Estados
[statebuilding] não é sinônimo da construção de paz [peacebuilding], mas é parte
integrante desta:
Intervenções de construção de Estados procuram desenvolver estruturas estatais funcionais e autossustentáveis que restabeleçam o contrato social entre o Estado e os cidadãos e promovam a legitimidade do Estado (...). O plano para um Estado funcional não pode ser importado de outros lugares, pois isso seria negar o caráter endógeno da formação do Estado (...). O desafio para a construção da paz é como trabalhar com a sociedade e convencer aqueles que detêm o poder de construir um Estado que está enraizado na sociedade (Idem: 110-111).
Diante do investimento das Operações de Paz do Conselho de Segurança da
ONU e dos inúmeros projetos do PNUD na Somália, o país é considerado caso
emblemático de Estado falido, liderando o ranking de Estados Falidos do Fund For
Peace79, de 2008 à 2013. A forma de intervir e gerir os chamados “conflitos” em
territórios considerados ao mesmo tempo vulneráveis à e produtores de ameaças para a
paz em âmbito planetário, remete a um deslocamento do objetivo e do objeto da
79 Segundo site oficial, o Fund for Peace é uma organização independente, não partidária e sem fins lucrativos que trabalha para a prevenção de conflitos violentos e para a promoção de segurança sustentável, por meio do treinamento em educação e engajamento da sociedade civil, ligando diversos setores e desenvolvendo tecnologias inovadoras e ferramentas para tomadores de decisões. Cf. Fund for Peace. Disponível em: http://global.fundforpeace.org/aboutus. Acesso em 05/09/2015. Segundo a instituição, o Índice de Estados Falidos “é baseado na Ferramenta do Sistema de Avaliação de Conflitos do Fund for Peace [The Fund for Peace's proprietary Conflict Assessment System Tool (CAST)]. Com base na metodologia abrangente de ciências sociais, os dados de três fontes primárias são triangulados e sujeitos a revisão crítica para obter pontuações finais para o Índice. Milhões de documentos são analisados a cada ano. Utilizando parâmetros de pesquisa altamente especializados, os escores são distribuídos para cada país com base em doze indicadores políticos, sociais e econômicos chave (que por sua vez incluem mais de 100 subindicadores) (...). Guiado por doze indicadores sociais, econômicos e políticos primários (cada um dividido em uma média por 14 subindicadores), o software CAST analisa as informações coletadas usando termos de pesquisa especializados que sinalizam itens relevantes. Utilizando algoritmos diferentes, esta análise é então convertida numa pontuação que representa a importância de cada uma das várias pressões para um dado país. A análise de conteúdo é ainda triangulada com dois outros aspectos fundamentais do processo de avaliação global: análise quantitativa e inputs qualitativos baseados em Principais acontecimentos nos países examinados. Os resultados produzidos pelo software do Fundo para a Paz são comparados com um conjunto abrangente de estatísticas vitais - assim como a análise humana - para garantir que o software não tenha interpretado os dados brutos de forma equivocada. Embora os dados básicos subjacentes ao Índice já estejam livremente e amplamente disponíveis eletronicamente, a força da análise está no rigor metodológico e na integração sistemática de uma vasta gama de fontes de dados”. Cf. FFP. The metodology Behind the Index. Disponível em: http://fsi.fundforpeace.org/methodology. Acesso em: 10/10/2016.
113
segurança, em que todos os Estados são responsáveis pelos compromissos que
determinam, atualmente, uma boa governança global.
construção do perigo
Em junho de 1992, pouco depois da derrocada da União Soviética, o Secretário
Geral da ONU na época, Boutros Boutros-Ghali, publicou um documento intitulado An
Agenda for Peace – Preventive diplomacy, peacemaking and peace-keeping (“Uma
Agenda para a Paz – Diplomacia preventiva, construção da paz e manutenção da paz”).
Neste, que fora adotado pelo Conselho de Segurança da ONU, um novo conceito de
segurança aparece pela primeira vez envolto de uma nova abordagem a ser exercida
pela ONU e todos os seus países-membros, no que concerne ao equilíbrio da paz e da
segurança internacionais: o conceito de segurança humana (UN, 1992).
De acordo com este documento-agenda, as adversidades da Guerra Fria teriam
impossibilitado o cumprimento da “promessa original” de paz contida na Carta das
Nações Unidas de 1945 e, portanto, um novo compromisso assumiria a responsabilidade
de promover, ainda em conformidade com a Carta, a manutenção da paz e da segurança
em todo o planeta. Boutros-Ghali remete à Conferência das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Eco-92) que acabava de ocorrer na cidade do Rio
de Janeiro, no mesmo ano, para firmar este novo compromisso voltado à prevenção de
conflitos e da guerra como intrínseco à promoção do desenvolvimento econômico e
social sustentável.
Em relação ao contexto da época, o documento relata que a “imensa barreira
ideológica” da Guerra Fria havia enfim terminado, e que, mesmo com a intensificação
de questões e desigualdades entre países do Norte e do Sul, a melhoria das relações
entre Leste e Oeste proporcionariam novas possibilidades, tais como um enfrentamento
114
conjunto frente às ameaças à segurança global. O então Secretário Geral da ONU cita o
fim de regimes autoritários que teriam cedido lugar às forças democráticas e governos
responsáveis, indicando maior abertura econômica, bem como chama atenção para a
descolonização e independência de diversos países que reiterariam, no âmbito da
própria ONU, a importância da soberania dos Estados como entidade fundamental na
comunidade internacional. Nesse sentido, as intervenções estariam em vias de sofisticar-
se, almejando-se cada vez mais eficientes ao combinarem a agenda da segurança com a
do desenvolvimento – sendo este apenas possível em países com Estados construídos e
com indivíduos agentes de sua promoção – dentro de um território específico, porém
em consonância com os compromissos firmados em âmbito planetário.
O documento estabelece que nesta era de “transição global”, a paz social estaria
sendo desafiada por conflitos étnicos, religiosos, sociais, culturais ou linguísticos, bem
como por “atos de terrorismo que procuram minar a evolução e mudança através de
meios democráticos”80. A chamada “nova dimensão da insegurança” estaria sendo
provocada por problemas como o crescimento populacional descontrolado, as barreiras
comerciais, as drogas e a crescente disparidade entre ricos e pobres. A pobreza, a
doença, a fome e a opressão, segundo o documento, fariam com que os esforços para a
paz abrangessem assuntos para além de ameaças militares.81 Desse modo, a missão mais
ampla da ONU exigiria a responsabilidade e esforços para a paz de forma compartilhada
entre todos os Estados-Membros, em uma abordagem integrada em prol do que, pela
primeira vez, definiu-se como abordagem da segurança humana. Para tanto, o
documento reitera que o fundamento de estabilidade é, e deve continuar a ser, o Estado.
Enfatiza o princípio de soberania, porém aponta para uma mudança:
80 Idem, item 11. 81 Ibidem, item 13.
115
O tempo da soberania absoluta e exclusiva, no entanto, já passou; sua teoria não foi acompanhada pela realidade. É tarefa dos líderes dos Estados entendê-lo e encontrar um equilíbrio entre as necessidades da boa governança interna e as exigências de um mundo cada vez mais interdependente.82
Assim, justifica-se a necessidade do planejamento de implantação preventiva de
operações e intervenções militares da ONU nas chamadas “áreas de crise”, devendo
inclusive ser solicitado pelos próprios países que sentem que possuem alguma ameaça à
comunidade internacional. Em relação ao pessoal envolvido, além da recomendação de
se utilizar “unidades de imposição da paz”, compostas por tropas voluntárias, pede-se a
disponibilidade dos Estados-Membros para participar das operações de manutenção da
paz, e requer a presença de agentes políticos e civis, monitores de direitos humanos,
funcionários eleitorais, refugiados e especialistas em ajuda humanitária e policiais.
Quando o conflito irrompe, esforços para a pacificação e manutenção da paz deverão
entrar em cena, e, uma vez que atinjam seus objetivos, trabalhos cooperativos entre
organizações, países, programas, etc., deverão então construir um novo ambiente83.
Craig N. Murphy (2006: 17) considera ser a história do PNUD importante em
relação a outras instituições fundadas no mesmo momento – em torno da década de
1960 –, por manter o compromisso e a esperança de uma cooperação internacional entre
o “mundo desenvolvido” e o “em desenvolvimento”, em meio a um “mundo de
terrorismo abastecido pelo desenvolvimento frustrado”, ou à inabilidade de um “mundo
em desenvolvimento” em alcançar o poder e a riqueza da Europa Ocidental, da América
do Norte ou do Japão, e nutrido em “Estados falidos” – desastres do desenvolvimento.
Assim, a promoção do desenvolvimento humano, principal proposta do PNUD
desde a criação deste conceito, em 1990 – conforme será visto no próximo movimento
82 Ibidem, item 17. 83 Ibidem, item 57.
116
deste capítulo –, por meio da abordagem da segurança humana, é considerada
fundamental para a criação de condições de paz e de segurança globais.84
Um dos grandes acadêmicos produtores da classificação de Estados tidos como
“falidos”, o liberal Francis Fukuyama – que foi conselheiro político da gestão de Ronald
Reagan (1981-1989), e ficou famoso por ter escrito O fim da história e o último homem
(1992) com a consolidação definitiva das democracias liberais, além de especialista em
apoio humanitário para o capitalismo global –, indica, em Construção de Estados
(2004), que o fim da Guerra Fria teria deixado um grupo de países falidos e fracos:
países dos Bálcãs, do Cáucaso, Oriente Médio, Ásia Central e do Sul da Ásia. Este
fracasso derivaria, em grande medida, da dificuldade no processo de liberalização
econômica devido à ausência de uma estrutura institucional adequada (Idem: 20), bem
como da dificuldade em equilibrar e exercer o que chama de “escopo das atividades do
Estado” – referente às funções e metas assumidas pelos governos –, e a capacidade do
Estado de planejamento, execução de políticas e de fazer respeitar suas leis (Ibidem:
22). Ao fazer essa distinção, Fukuyama atribui aos chamados “países em
desenvolvimento” o que considera ser um erro comum em termos de desempenho
econômico: assumir mais atividades governamentais do que são capazes (Ibidem: 27-
28). Além disso, a sociedade, constituída por cidadãos do Estado, deve ser responsável
pela demanda interna por instituições ou reformas institucionais (Ibidem: 56), o que
estaria sendo um grande obstáculo nos países “em desenvolvimento”. Isso acabaria
levando à necessidade de gerar demanda externa, advinda de organismos de ajuda,
doadores ou credores externos via programas e empréstimos, ou por meio de
autoridades externas que reclamam para si a soberania dos chamados “Estados falidos”
84 Cf. PNUD. O PNUD e a ONU. Disponível em: http://www.pnud.org.br/PNUD_ONU.aspx. Acesso em 05/08/2015.
117
(Ibidem: 56). Porém, destaca que sem uma demanda interna complementar à demanda
externa, as reformas fracassam. Segundo Fukuyama, a África subsaariana, por exemplo,
teria tido a mesma ajuda de outros países, porém não conseguiu seguir orientações
internacionais, pois, em suas palavras,
Doadores alegam querer ajudar os países pobres a escapar da pobreza, mas os países de pior desempenho são provavelmente aqueles que não conseguem decretar reformas institucionais e econômicas; portanto, a capacidade de impor as condições para as reformas é essencial para seu sucesso (Ibidem: 57 – grifo meu).
A construção de Estados, nesse sentido, significa a criação de capacidades que
sobrevivam sem ajuda externa, mas por meio da transferência de conhecimento,
incentivos e monitoramentos que ajudem a elevar a força das instituições estatais, tidas
como fundamentais para o funcionamento de países em fluxos planetários.
Como parte fundamental do mau desempenho de organizações em países pobres,
Fukuyama aponta para os baixos incentivos e a falta de “normas” interiorizadas pelos
agentes. Diferente do sistema altamente hierárquico do taylorismo, em que os
trabalhadores seriam motivados simplesmente por meio de incentivos e
regulamentações, o capital social seria fundamental para o bom funcionamento das
organizações, uma vez que incluiria valores e interesses individuais e coletivos
simultaneamente (Ibidem: 89). Assim, para uma boa governança pelos Estados, o
cientista político reitera o acoplamento de normas informais às estruturas formais, e dos
mecanismos de monitoramento e coerção das normas aos mecanismos mais rígidos
formais via punição (Ibidem: 90).
Ainda segundo ele, como nos países considerados “em desenvolvimento” a
delegação de autoridade aos governos estaduais ou municipais torna-se fonte de
fortalecimento de elites locais e de corrupção recorrentemente – diferente dos países
desenvolvidos que teriam padrões normativos de comportamento individual e coletivo
118
para suportar esta descentralização –, os chamados Estados falidos passaram a ser o
mais importante problema para a ordem internacional por provocarem abusos aos
direitos humanos, desastres humanitários, gerarem grandes ondas de emigração e
atacarem seus vizinhos (Ibidem: 123). Colocando em questão o atentado de 11 de
setembro nos EUA, Fukuyama sublinha a evidência de que esses Estados podem causar
danos aos EUA e a outros países considerados desenvolvidos: “o problema do Estado
falido, que anteriormente era visto, em grande parte, como uma questão humanitária ou
de direitos humanos, assumiu, de um momento para outro, uma importante dimensão de
segurança” (Ibidem: 124). No que conclui que o fim da Guerra Fria teria gerado um
consenso em torno da legitimidade dos direitos humanos em âmbito global, e, assim, as
potências, encabeçadas pelos EUA, teriam não apenas o direito, mas a obrigação de
intervir em nome da legitimidade democrática (Ibidem: 129).
Interessa afirmar que a presente análise aparta-se da lógica liberal construída por
Fukuyama de responsabilização e punição das consideradas incapacidades dos Estados.
Esta pesquisa não parte do julgamento ou pressuposto de que exista um Estado fraco ou
Estado sem escopo, pois, enquanto Estados, não deixam de desempenhar papel
fundamental na continuidade da miséria e massacres nestes espaços de forma conivente
às estratégias alinhadas à ecopolítica e à racionalidade neoliberal que incidem, de
forma seletiva, nos indivíduos também construídos como incapacitados ou vulneráveis.
Esta construção dos Estados falidos será largamente utilizada como forma de justificar
as chamadas intervenções humanitárias, calcadas no discurso sobre ausência de Estado
ou incapacidade de uma instância estatal de fazer valer sua autoridade para ampliar os
campos de intervenção estatal. Em resumo, quando se fala em Estado falido, o que não
falta é Estado. E Estado é Estado, seja ele qual for. O Estado é violento e carnífice.
119
uma disputa complementar
Seguindo a lógica da construção de Estados, grande parte das operações e de
manutenção da paz foram ou são realizadas na África, lugar que rankings e relatórios de
instituições, acadêmicos e de programas como o PNUD apontam haver maior
concentração dos chamados Estados falidos. De acordo com um Relatório de 2004 do
PNUD intitulado African Wars and Ethnic Conflitcts – Rebuilding Failed States
(“Guerras Africanas e Conflitos Étnicos – Reconstruindo os Estados Falidos”), redigido
pelo antropólogo sul africano Kwesi Kwaa Prah – diretor do Centro de Estudos
Avançados da Sociedade Africana (Centre for Advanced Studies of African Society –
CASA),
“Estados falidos” são Estados em diferentes fases de transição da ordem à desordem, da estabilidade ao caos. São Estados cuja inaptidão governamental de desenvolvimento tornou-se tão arraigada que eles não conseguem fazer jus às expectativas universais do Estado no mundo contemporâneo. A esmagadora maioria dos “Estados falidos” está situada na África. “Estados fracassados” são tipificados por padrões de paralisia governamental dentro do Estado. A principal característica é que os grupos a que são confiados o porte de armas são principalmente golpistas, senhores da guerra, bandidos e vigilantes que aterrorizam cidades e campos de extração de produtos e serviços de uma população aterrorizada (...). “Estados falidos”, pela sua própria natureza, como entidades em decomposição, difundem sua podridão através das fronteiras e, invariavelmente, colocam em perigo a segurança de seus Estados vizinhos e regiões inteiras (...). Com o tempo, o “Estado falido” torna-se uma entidade totalmente incapaz de manter-se como um membro viável da comunidade internacional e depende de caridade e generosidade para sua existência (UNDP, 2004: 3-4).
Neste relatório, reitera-se a busca por respostas para a África em termos sociais e
culturais locais, mas que respondam a um requisito de dimensão planetária em que
“instituições universais e ideais políticos compartilhados são cada vez mais a regra do
que a exceção” (Idem: 1). Ainda segundo este relatório, após as décadas de 1970 e
1980, em que ditaduras militares dominavam diversos países africanos, guerras e elites
120
dominantes tomaram conta de grande parte do continente africano. Com cerca de 60%
das mortes por conflitos armados tendo ocorrido neste território, com exceção da África
do Sul, os gastos com armas na África Subsaariana teriam aumentado 15%, enquanto o
crescimento econômico da região teria aumentado menos de 1% (Ibidem: 2). A má
gestão administrativa85 – que teria permitido corrupção, violações de direitos humanos e
dado espaço à doenças, pobreza e declínio da educação – seria característica da
“síndrome do Estado falido” (Ibidem: 3), em que este é visto como incapaz e, portanto,
doente e passível de preocupação para todo o planeta.
O caso da Somália, segundo o Relatório, mostra que as tentativas de construção
de Estado ignoram ou se opõe à convergência – no caso apresentada como naturalizada
e fortalecedora – entre o Estado e a sociedade. Embora tome o fortalecimento do Estado
e de suas instituições como central, critica os processos de manutenção de paz anteriores
que se utilizaram de estratégias “de cima para baixo”, que buscavam a centralização do
poder e não a sua disseminação em uma agenda para a paz. Assim, enfatiza-se que a
segurança do Estado deve estar sempre aliada à chamada segurança humana (Idem:
111).
85 Vale ressaltar que no mesmo período (décadas de 1970 e 1980) muitos outros países não africanos estavam sob regime ditatorial. No entanto, estes nunca configuraram Estados falidos para a ONU e o PNUD, mesmo que haja um consenso sobre a valorização democrática dos anos 1990 em termos de promoção dos direitos humanos e da chamada segurança humana e de cooperação técnica aos moldes das novas diretrizes de uma boa governança global. Apenas na América Latina, pode-se elencar a Argentina (1966-1973 e 1976-1983), Bolívia (1971-1985), Brasil (1964-1985), Chile (1973-1990), El Salvador (1931-1979), Equador (1972-1979), Guatemala (1954-1996), Haiti (1988-1990 e 1991-1994), Honduras (1963-1974), México (1876-1910), Nicarágua (1966-1976 e 1976-1985), Panamá (1968-1989), Paraguai (1954-1989), Peru (1968-1980), Suriname (1980-1988), Uruguai (1973-1984). Mesmo com as milhares de mortes, massacres e torturas regulares referentes àquele período, não conferiram “má gestão administrativa”, “falta de escopo de Estado” e preocupação internacional configurando-os como “passíveis de intervenção” para as grandes organizações e especialistas no assunto. A única exceção é o Haiti, que já ocupou postos de alerta no ranking de Estados falidos do Fund for Peace. O Haiti também sofreu intervenção de missões de paz da ONU de 1994 a 2000 e, mais recentemente, em 2004, o Conselho de Segurança da ONU autorizou a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH, na sigla em francês), coordenada pelo governo brasileiro.
121
Segundo Thiago Rodrigues, a combinação entre o final da Guerra Fria e sua
lógica de segurança associada ao equilíbrio e à política de dissuasão nuclear, e a eclosão
de genocídios e guerras civis, permitiu que os estudos sobre segurança deslocassem “o
foco do problema da segurança do seu vínculo exclusivo com o Estado para associá-lo
a questões para além, para aquém e através do Estado” (Rodrigues, 2012: 8).
Segundo Florian Hoffmann (2010: 249), o discurso dos direitos humanos,
reinante no mundo globalizado pós Guerra Fria, repentinamente passou a se chocar com
uma nova forma discursiva sobre a segurança que, possivelmente, abrangeria de melhor
forma a realidade dos seres humanos no planeta. Desde então, direitos e segurança
passaram a existir para além de interiorizados e controlados por indivíduos e Estados,
mas de forma autônoma, “como signos que flutuam no espaço global compostos de
diferentes tipos de comunicações e que vinculam atores distintos em todos os níveis”
(Idem: 249).
De acordo com o autor, muitos analistas apontam para um predomínio dos
direitos humanos a partir da queda do muro de Berlim e do fim da Guerra Fria no início
dos anos 1990, quando compuseram uma hegemonia discursiva num mundo em
processo de globalização, considerados cada vez mais imprescindíveis no campo das
relações internacionais (Ibidem: 252). Porém, após os ataques de 11 de setembro de
2001, segundo esta argumentação, teriam surgido novas ameaças no âmbito das relações
domésticas e internacionais no que concerne à segurança. E esta teria passado a estar no
centro das preocupações e a concorrer com a defesa dos direitos humanos (Ibidem:
255).
Segundo Barry Buzan e Lene Hansen (2012: 117), entre os anos de 1940 e 1950,
emerge nos Estados Unidos e na Europa uma categoria de cruzamento entre as
especialidades militares e as ciências sociais, voltada aos problemas relacionados aos
122
armamentos nucleares. Tomando a União Soviética como significativa ameaça ao
Ocidente, os autores estimam que nessa época estudos em torno do termo “segurança”
se ampliaram levando em conta também assuntos “não militares”. Assim, teria sido no
período da chamada Guerra Fria que se estabeleceu o significado de “segurança
internacional”, o que provocou o aprofundamento da categoria identificada como
Estudos de Segurança Internacional (ESI) (Idem: 118). Para os autores, esta categoria
teria surgido a partir de debates sobre como proteger o Estado contra ameaças tanto
internas como externas, após a Segunda Guerra Mundial (Ibidem: 32). O conceito de
“segurança” teria se tornado, nesse momento, ponto de união de conjuntos variados de
pesquisas acadêmicas.
Buzan e Hansen argumentam que os ESI se concentram em quatro questões.
Primeiramente, preocupa-se em como privilegiar o Estado como ponto de referência.
Após a Guerra Fria, o conceito de “segurança nacional” funde a segurança do Estado e a
segurança de sua sociedade (Ibidem: 37). Em segundo lugar, os ESI pensam tanto nas
ameaças internas como externas ao Estado, tendo como ponto de referência o princípio
de soberania estatal. A distinção entre “dentro” e “fora”, nesse sentido, teria sido
superada, segundo os autores, com a globalização; o conceito de “segurança
internacional” teria acompanhado o de “segurança nacional”, concomitantemente à
emergência da área conhecida como Relações Internacionais (Ibidem: 38). Em terceiro
lugar, estaria a expansão da segurança para além do uso militar. Afirmam que a
incorporação de outros elementos – como robustez econômica, fornecimento de energia,
ciência e tecnologia, alimentos e recursos naturais – passaram a ser interessantes no que
concerne à segurança do Estado. Destacam, ainda, que durante a Guerra Fria, os
chamados “pesquisadores da paz” apontavam para a necessidade de priorizar as
necessidades humanas em termos de segurança nacional. Por fim, o quarto pilar do
123
debate em torno dos ESI estaria centrado em tomar a segurança como intrínseca às
ameaças urgentes (Ibidem: 39).
A Pesquisa da Paz, segundo os autores, é uma abordagem que se
institucionalizou principalmente nos países escandinavos, na Alemanha, no Japão, na
Grã-Bretanha e nos EUA. Estaria situada como contraponto normativo aos Estudos
Estratégicos, ao argumentar contra a utilização da força nas relações internacionais e
destacar os perigos no debate estratégico, mostrando-se a favor do suporte à segurança
individual (Ibidem: 73).
Intimamente ligada à Pesquisa da Paz e aos Estudos Críticos de Segurança86
estaria, portanto, o conceito de segurança humana. Ainda segundo Buzan e Hensen,
estes Estudos defendem que os seres humanos sejam objetos centrais de segurança e
que, portanto, os ESI devem incluir questões como a pobreza, o subdesenvolvimento, a
fome e os ataques à integridade e ao potencial humano (Ibidem: 72). Esta abordagem,
de acordo com os autores, teria deslocado o objeto de referência da segurança dos
Estados-nação para as pessoas.
No escopo deste posicionamento teórico no interior do campo das Relações
Internacionais, antes da Segunda Guerra Mundial haveria uma noção de segurança
nacional referente ao uso da força entre Estados diante da qual todos os governos
precisavam se precaver (Hoffman, 2010: 256) – o que se transforma após este período,
uma vez que elementos internos passam a ser concebidos como maiores ameaças do que
os outros Estados. De acordo com Hoffmann, tanto o objeto quanto o sujeito da
segurança mudaram, referindo-se nesse momento a atores não estatais de dentro e de
fora do Estado que ameaçam principalmente a população civil (Idem: 258). E a essa
86 Segundo Buzan e Hensen, essa abordagem se assemelha à Pesquisa da Paz, mas utiliza-se de uma metodologia pós-positivista, sendo geralmente um ramo da Teoria Crítica das Relações Internacionais e tendo o conceito de emancipação como central (Buzan e Hensen, 2012: 72).
124
ameaça à vida, tanto sociocultural quanto econômica, a segurança nacional não mais se
adequava, transformando-se juntamente com a concepção de desenvolvimento.
Desenvolvimento estatal, segundo o autor, consistia em um processo de
modernização pelo crescimento econômico. Já a partir do final dos anos 1960, com uma
primeira onda de preocupações ambientais e com o surgimento do conceito de
desenvolvimento sustentável, o conceito de desenvolvimento desloca-se de seu foco
original – o Estado –, para abranger preocupações com os seres humanos
individualmente.
Para Hoffmann, após o 11 de Setembro, houve “um deslocamento de ênfase dos
direitos para um conceito abstrato de segurança, que corresponde à percebida demanda
pública pela securitização das relações sociais” (Ibidem: 271), fortalecendo essa
segunda concepção. O atributo humano articulado à segurança reflete, segundo o autor,
o desejo da sociedade civil pela universalidade ao combate antiterrorista e seu
enraizamento em âmbito mundial (Ibidem: 271). Assim, o discurso da segurança
humana vêm se chocando com o dos direitos humanos. Porém, conforme sugere
Hoffmann,
A tensão fundamental entre os dois discursos não se situa, portanto, na diferença entre segurança e direitos, mas no atributo humano compartilhado pelos dois. Pois cada discurso tem uma inerente aspiração universalista, uma tendência hegemônica que procura estender-se a todos os aspectos da vida de qualquer um (Ibidem: 274).
Nesse sentido, “direitos” denotaria uma busca por autonomia individual e por
propriedades humanas essenciais, e “segurança” significaria a defesa desses valores.
Porém, interessa para esta análise menos um choque entre conceitos ou a mudança de
“preocupações” e mais a disputa entre eles como universal a ser adotado em prol do que
se chama hoje de governança global. Interessa também pensar na articulação e
complementariedade entre direitos e segurança no que concerne à configuração de um
125
novo ambiente planetário que pretende regular e ser regulado pela ideia de
desenvolvimento humano.
Para Thiago Rodrigues, esse movimento – em que o sujeito da segurança teria
passado a se centrar na população civil – implica na primazia da categoria universal
“Homem” sobre o Estado, e a procedência mais evidente dessa rivalidade seria o status
jurídico alcançado pelos seres humanos com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948, que os reconheceu como sujeitos de direito internacional, assim
como reconheceu também o Estado e as organizações internacionais, abrindo a
possibilidade de questionar as ações dos Estados que violassem os direitos humanos
(Rodrigues, 2012: 17). De acordo com ele, se na sua formação a ONU anunciou-se
como destinada a mediar e a julgar conflitos entre os Estados, com o status jurídico
atribuído ao “Homem” também se justificava a formação de novos tribunais e de um
direito penal internacional para proteger e, consequentemente, julgar esse sujeito de
direito (Idem: 18).
Além dessa relação explícita entre o que passou a ser chamado de segurança
humana e os direitos humanos, Rodrigues aponta, conforme sugestão de Simon Dalby
em Security and environmental change (Cambridge, Polity: 2009), para uma outra
questão contribuinte à produção do conceito de segurança humana nos anos 1990: a da
degradação ambiental como geradora de conflitos. Rodrigues chama atenção para a
crescente presença dessa questão na literatura das Relações Internacionais e dos Estudos
Estratégicos, uma vez que há a suposição de que a segurança dos Estados passaria a ser
impactada também por conflitos gerados pelas mudanças climáticas, destacando
principalmente uma literatura que trata a questão do que passou a se chamar segurança
climática ou ambiental como problema não apenas para os Estados, mas também para
os indivíduos. Dessa maneira, explicita o vínculo que há entre segurança climática e
126
segurança humana e o detecta a partir do fato de o segundo conceito ter sido formulado
pelo PNUD, em 1994, ao conectar diretamente segurança a desenvolvimento sustentável
(Ibidem: 22).
Conforme exposição de Beatriz Carneiro, na 1ª Conferência das Nações Unidas
sobre o Meio Ambiente realizada em Estocolmo, em 1972, as discussões, pela primeira
vez, giraram em torno da relação entre desenvolvimento econômico e degradação
ambiental (Carneiro, 2012: 9). Ainda nas reuniões preparatórias para o encontro, em
torno do conceito de meio ambiente foram incluídas, além de questões ecológicas e de
saúde humana, problemas sociais como a fome, a miséria, más condições de habitações,
saneamento e doença (Idem: 9). Segundo Carneiro, a Declaração de Estocolmo seria
equivalente à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 em termos de
dimensão e efeitos de longo prazo, uma vez que em todas as Conferências posteriores,
como na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento
(Eco-92) e, mais recentemente, na Conferência das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), o conceito de “meio ambiente” apareceu de
forma abrangente.
Em 1983, em um contexto de crise econômica que obrigou mudanças nas
políticas e na gestão dos recursos naturais, a ONU criou a Comissão Mundial de Meio-
Ambiente e Economia, presidida pela ex-Primeira Ministra da Noruega, Gro
Brundtland, em que o impasse entre o desenvolvimento econômico, a proteção
ambiental e o desenvolvimento social, segundo Carneiro, foi solucionado com o termo
desenvolvimento sustentável (Ibidem: 11). Ainda segundo a pesquisadora, mais tarde, na
Eco-92, que acontecia logo após a queda do muro de Berlim e a derrocada da União
Soviética, mobilizou-se a comunidade internacional em torno da questão de uma
127
governança global pautada na mudança de comportamento, desde Estados até
indivíduos, para a preservação da vida na Terra (Ibidem: 12).
A partir de tais deslocamentos em torno da construção de um ambiente
planetário que requer a participação de todos, dos países à sua população, na chamada
governança global, em prol da garantia de um ambiente seguro para o desenvolvimento,
interessa pensar na continuação das relações de poder e de governo em tempos
considerados de paz e em que a guerra é entendida de forma cada vez mais local e
precisa, principalmente nos chamados “Estados falidos” e nos países denominados “em
desenvolvimento”.
reconstrução da guerra
Na perspectiva de uma análise histórico-política das relações de poder, oposta ao
discurso jurídico-político e sua tentativa de afirmar que o poder político começa quando
a guerra termina, cabe pensar na manutenção e perpetuação dos ganhos e conquistas sob
o jugo da lei e da paz civil. Rompendo com a teoria do contrato social e do estado de
natureza fundado num “estado de guerra”, como em Thomas Hobbes, que salvou a
teoria do Estado quando eliminou o fato da conquista, entende-se que o poder político
não começa quando a guerra cessa (Foucault, 2010: 43). Ao perceber o poder como uma
relação ou conjunto de relações de força descendentes e ascendentes, interessa analisá-
lo como combate. Segundo Foucault, ao inverter a máxima do general prussiano e
grande teórico da guerra do século XVIII, Carl von Clausewits, de que a guerra é apenas
um instrumento da política, tem-se que “a política é a guerra continuada por outros
meios”, uma vez que
se é verdade que o poder político para a guerra, faz reinar ou tenta fazer reinar uma paz na sociedade civil, não é de modo algum para suspender os efeitos da guerra ou para neutralizar o desequilíbrio que
128
se manifestou na batalha final da guerra. O poder político (...) teria como função reinserir perpetuamente essa relação de força, mediante uma espécie de guerra silenciosa, e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas (...); isto é, a política é a sanção e a recondução do desequilíbrio das forças manifestado na guerra (Idem: 15-16).
No decorrer do século XVIII, um “aburguesamento” ou uma “autodialetização”
do discurso histórico, em que a guerra não será mais tomada como constitutiva e
condição de sobrevivência das relações políticas, mas como protetor da sociedade e dos
perigos que nascem de seu próprio corpo (Ibidem: 182), a noção de “nação” viria
caracterizar uma relação vertical de indivíduos na construção do Estado, tendo por
função administrar a si mesma, e que tomará as relações entre nação e o Estado como
relações civis e não mais guerreiras.
Apartando-se dessa busca, vê-se no discurso inglês específico dos Diggers, pela
primeira vez, um discurso histórico – por articular as memórias locais da história das
lutas – e politicamente descentralizado, buscando analisar as instituições e
conformações como enfrentamentos de guerra, e fundamentando a revolta como uma
“análise histórica que põe a nu a guerra como traço permanente das relações sociais”
(Ibidem: 132). Esse discurso descristaliza, desmobiliza a história que une a lei soberana
com a continuidade de sua glória; deslegitima o poder soberano para afirmar uma
verdade, não no sentido de legitimar uma outra história, mas para afirmar a luta entre as
histórias.
Nesse sentido, a analítica histórico-política proposta por Michel Foucault
interessa na presente análise para que discursos que endossem estratégias de prevenção
e pacificação não sejam compreendidos como alternativas aos horrores das grandes
guerras. Assim como os períodos enquadrados como Guerra Fria, ou pós-Guerra Fria, e
a guerra entre nações ou no interior das nações, por exemplo, não devem ser tomados
129
separadamente. Constituem renovações e articulações de estratégias como relações de
força que encontraram, atualmente, no conceito de governança global um apaziguador
de resistências, ao se pressupor a participação de todos os indivíduos e Estados – falidos
ou não – numa gestão compartilhada dos fluxos planetários.
Partindo do interesse de Michel Foucault pelo discurso histórico-político das
lutas e do direito como situação de guerra, Frédéric Gros mostrou em Estados de
violência que o considerado verdadeiro direito, derivado da justiça verdadeira, é o que
será produzido pela guerra (Gros, 2006: 173). A guerra, como instrumento de decisão,
terá no direito sua autorização e legitimidade, não justificando o direito do mais forte,
mas considerando que a maior força é dada de forma divina ao direito mais legítimo
(Idem: 176). Gros expõe o “direito dos povos” como aquilo que ultrapassou a doutrina
de “guerra justa” constituída pelos teólogos e canonistas católicos por mais de doze
séculos, e como o que enquadrou juridicamente as violências entre nações por
convenções entre Estados soberanos modernos, também constituindo uma das fontes do
direito internacional humanitário contemporâneo, como as Convenções de Haia e
Genebra (Ibidem: 179).
No enunciado da doutrina da guerra justa, segundo o filósofo, será fixada uma
diferenciação entre as guerras pagãs, feitas por aqueles sedentos por dominação e poder,
e as guerras cristãs, feitas por necessidade de se estabelecer a paz e justiça abandonadas
por alguma situação de desordem (Ibidem: 194-195). Passando por Grotius e Vattel, o
filósofo expõe como a mesma desaprovação da guerra advinda da doutrina da guerra
justa será encontrada no chamado “direito dos povos”, que terão a guerra privada como
ilegítima, uma vez que um indivíduo pode sustentar seu direito por meio de outro
tribunal, não devendo recorrer à guerra. A partir de então, a guerra poderá ser exercida
pelo Estado soberano (Ibidem: 201).
130
Será respeitada uma lógica de equilíbrio entre Estados e de igualdade por meio
do princípio da soberania dos mesmos, calcado em regulamentações externas e não mais
em uma consciência universal. Assim, segundo Gros, os mestres do direito dos povos
instituirão o direito da guerra como autorização de todas as violências, e não mais o
direito na guerra. As limitações de um direito de guerra, conforme aponta, não partirão
do Estado, mas de uma moral interior de moderação, humanidade, perdão. Gros dá os
exemplos recentes da Convenção de Genebra e da criação do Tribunal Penal
Internacional como derivados do direito dos povos, em que os massacres de populações
e prisioneiros de guerra não são objetos de intervenção jurídica, mas de apelos morais à
moderação (Ibidem: 209).
Considerando a complementariedade da guerra e da paz, Gros aponta como
sendo esta última não um ideal ou estado perfeito que supõe uma “nova ordem
mundial”, mas a configuração da relação jurídica do Estado quando este não está
fazendo a guerra. Já a vitória não servirá mais como aniquilamento do adversário, mas a
imposição ao inimigo das suas condições de paz (Ibidem: 223).
O filósofo indica que, após a chamada Guerra Fria e a queda do muro de Berlim,
uma nova distribuição de violências emergiu pautada por um sistema de intervenção e
segurança. A intervenção, nesse sentido, “não é criadora, nem instituidora: ela conserta
falhas de funcionamento, restabelece coesões, restaura desequilíbrios, redefine
harmonias” (Ibidem: 224). A intervenção não será mais instituída por Estados inimigos,
mas por “fatores de perturbação” cada vez mais específicos. Não está mais restrita a
intervir apenas em Estados considerados “falidos” – entendo-os como aqueles aos quais
“falta” poder ou escopo –, nem mesmo às operações de paz da ONU e ao uso de suas
forças militares, mas requer, cada vez mais, a participação de todos, especialistas ou
não, nativos ou não, na melhoria do ambiente em que se vive.
131
No discurso do PNUD, o termo governança não é sinônimo de governo no
sentido ascendente por envolver a participação de toda a sociedade e constituir um
processo de articulação e cooperação entre os chamados atores sociais e políticos em
arranjos institucionais. Um manejo léxico da palavra, segundo Rodrigues, teria
pacificado o verbo “governar”, ocultando o “ser governado” para o que pressupõe o
auto-governo de cada um (Rodrigues, 2014: 64). Acompanhando as sugestões de Alain
Deneault em Gouvernance, Rodrigues sublinha que a palavra “governança” advém de
manuais de administração de empresas e de livros de executivos que adentraram na
política, fazendo com que esta passasse a ser tratada como um modo eficaz de gestão
(Idem: 62). Assim, o indivíduo, visto como portador de interesses, transforma-se em
parceiro do Estado e da empresa (Ibidem: 64) para juntos trabalharem em forma de
gestão compartilhada para uma maior eficiência em prol de melhorias conjuntas.
De forma intrínseca, a própria segurança adquiriu novos delineamentos que
passaram a ser adotados por grandes organizações, principalmente na década de 1990,
reestruturando-se, ampliando-se e se re-fundamentando em torno do conceito de
segurança humana para culminar, cada vez mais, e de modo mais intrínseco à vida de
cada um como agente de suas escolhas responsáveis, em cooperação com os outros
setores da sociedade. Nesse sentido, a partir da década de 1990, a segurança estará cada
vez mais próxima do desenvolvimento, ambos calcados no humano. Relação que será
exposta, no próximo movimento deste capítulo, principalmente por meio da produção
do economista paquistanês Mahbub ul Haq, no PNUD, ao lado do econometrista
indiano Amartya Sen, ambos grandes fomentadores dos principais conceitos do PNUD
e idealizadores de um de seus mais eficientes instrumentos no que concerne à requerida
segurança, flexibilidade, ajustabilidade e agilidade próprias da atual sociedade de
controle: o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
132
2.2. o desenvolvimento humano e a construção de uma abordagem para
a vida
abordagem da segurança humana
William H. Draper III assumiu a administração do PNUD em 1986. Considerado
um dos primeiros capitalistas de risco dos EUA e atual acionista majoritário da Draper-
Richards L. P. – um fundo de capital de risco com foco em empresas de tecnologia em
estágio inicial nos EUA – e da Draper International – direcionada a empresas privadas
atuantes nos EUA e na Índia87 – é, atualmente, co-presidente da Fundação Richards
Kaplan – empresa de filantropia de risco focada em organizações promotoras de
mudanças sociais sem fins lucrativos.88 É também consultor de diversos centros e
instituições de pesquisa, como do Conselho do Atlântico, da Harvard Business School
California Research Centre, Hoover Institution, da Freeman Spogli Institute for
International Studies at Standford University, do World Affairs Council of Northern
Carolina e da Associação da ONU nos EUA.89
Draper era bastante próximo de George H. Bush, que sugeriu a Reagan seu nome
para a administração do PNUD. Segundo o historiador do PNUD, Craig Murphy (2006:
234), sua administração parecia distante do círculo de sociais-democratas que David
Owen recrutava para o Programa Expandido de Assistência Técnica (EPTA) e,
posteriormente, para o PNUD. Ele parecia não demonstrar grande interesse no
fortalecimento dos governos do chamado Terceiro Mundo, e alguns escritórios da ONU 87 Cf. Draper-Richards. Our time. Disponível em: http://www.draperrichards.com/our-team.html. Acesso em: 30/08/2015. 88 Idem. 89 Ibidem.
133
o apontavam como incompetente em relação aos cortes das políticas internas do sistema
ONU. Almejava, inicialmente, separar o PNUD da própria ONU e construir uma
espécie de “Organização Mundial para o Desenvolvimento”, sem ter que lidar com a
pesada burocracia da ONU (Idem: 235). Seu pai, o General William H. Draper Jr.,
ajudou a conduzir esforços tanto para a Alemanha como para o Japão, após a Segunda
Guerra, e estava bastante próximo de Paul Hoffman quando este foi chamado para
assumir a administração do Plano Marshall (Ibidem: 235).
Como administrador do PNUD, Draper ficou famoso por promover visões
particulares do desenvolvimento: criou um “Comitê de Ação” onde reunia
semanalmente diretores regionais e profissionais para rever e aprovar projetos.
Calculava todos os “custos de oportunidades” relativos ao financiamento de concessões,
o tempo que os oficiais do governo executariam o projeto, a benevolência do povo a ser
beneficiado, etc. (Ibidem: 238). Preocupava-se, ainda, em encontrar um tipo de foco e
direção que acreditava faltar ao PNUD quando, em 1990, o Conselho de Governo da
ONU direcionou-o a adotar o tema de “desenvolvimento humano”, com foco na
erradicação da pobreza. Os outros focos eram meio ambiente, gestão de
desenvolvimento, cooperação técnica nos “países em desenvolvimento”, transferência
tecnológica e “mulheres”. Antes da nova abordagem do Conselho de Governo, porém,
Draper já procurava algum suporte intelectual para um novo foco do PNUD, quando o
General Muhammad Zia ul Haq (1978-1988), governante militar do Paquistão,
apresentou Mahbub ul Haq para Draper (Ibidem: 241).
Em 1958, Khadija, uma jovem paquistanesa estudante de economia da
Universidade de Manchester, viajou à Cambridge para ouvir o que se tornaria a série de
conferências de W. W. Rostow, The Stages of Economic Growth. Khadija conheceu
Amartya Sen e, mais tarde, ul Haq, que a supervisionou em seu novo trabalho no
134
Instituto Paquistanês de Economia do Desenvolvimento (Ibidem: 241). Khadija e ul
Haq se casaram, e ela foi contratada pela UNICEF (Ibidem: 241). Juntos, mudaram-se
para Nova York, onde ul Haq escreveu o primeiro Relatório do Desenvolvimento
Humano (RDH) para o PNUD, em 1990, intitulado “Conceito e Medição do
Desenvolvimento Humano”. Com a publicação do primeiro RDH, Draper e ul Haq
focaram no tema do desenvolvimento humano.
Uma das grandes influências para ul Haq foi Barbara Ward, quem colaborou,
junto a Arthur Lewis e Sartaj Aziz, a realizar o Relatório da Comissão Pearson90.
Segundo Kadhija, o conceito de desenvolvimento humano de ul Haq de certa forma
trouxe de volta o alarme de Ward em relação aos países considerados “em
desenvolvimento” no boom econômico de 1950 (Ibidem: 243). A pesquisa de ul Haq, ao
longo dos anos 1980, o teria convencido de que, enquanto o crescimento de rendimento
é necessário para que as pessoas tenham longevidade, saúde e vidas criativas, o
crescimento econômico não necessariamente assegura o desenvolvimento humano por
si só (Ibidem: 244). Martha Nussbaum, filósofa que junto com Amartya Sen trabalhou
com a abordagem do desenvolvimento humano, afirma que a questão se deve ao
comando possível de ser adquirido pelas pessoas em relação às suas próprias vidas
(Ibidem: 244).
O primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) colocou o problema
da pobreza como prioridade, obtendo grande impacto, em parte porque coincidiu com o
fim da chamada Guerra Fria, quando os recursos poderiam ser deslocados dos gastos
militares, e também por ter convencido numerosas agências para o desenvolvimento a 90 O Relatório Pearson, de 1969, reuniu resultados da “Comissão Pearson”, liderada por Lester B. Pearson. Este reuniu durante dois anos especialistas de diferentes países para uma análise sobre a cooperação internacional para o desenvolvimento em um momento que se acirravam as discussões sobre os “caminhos” para o desenvolvimento, e em meio à considerada, pela ONU, “década do desenvolvimento”. O Relatório foi encomendado pelo Banco Mundial, porém contou com especialistas da equipe de Pearson, da ONU e de outras organizações internacionais para o desenvolvimento.
135
mudar suas prioridades. No conselho editorial inicial dos RHDs estavam Amartya Sen,
Paul Streeten, Frances Stewart, Gus Ranis e Meghnad Desai – equipe que foi crescendo
rapidamente em decorrência do aumento de elementos a serem abordados.
Em 1995, Mahbub ul Haq publicou o livro Reflections on Human Development,
em que expõe a construção de seu conceito de desenvolvimento humano, que deu início
à produção regular do Relatório de Desenvolvimento Humano pelo PNUD, e sua
relação intrínseca à abordagem da segurança humana. O prefácio é de Paul Streeten,
professor emérito da Universidade de Boston, consultor do PNUD para a produção dos
RDHs e consultor da UNESCO para a produção dos Relatórios Culturais Mundiais. Foi
também diretor do Centro de Estudos Asiático para o Desenvolvimento e do Instituto
Mundial para o Desenvolvimento e trabalhou, ainda, como consultor e assessor especial
do Planejamento de Políticas do Banco Mundial, de 1976 a 1980.91
Streeten conta que trabalhava no Ministério do Desenvolvimento Ultramarino
em Londres quando conheceu Mahbub ul Haq. Este era Ministro das Finanças do
Planejamento do Paquistão e havia ido à Londres apresentar seu projeto sobre
desenvolvimento. No final dos anos 1970, Streeten trabalhou com ul Haq no Banco
Mundial e, juntos, foram os precursores do conceito de “necessidades básicas” para o
desenvolvimento humano. Anos mais tarde, ul Haq, já trabalhando para o PNUD, o
convidou para fazer parte da equipe do Relatório de Desenvolvimento Humano
(Streeten in ul Haq, 1995: VII).
Segundo Streeten, ul Haq “salvou” a Conferência da ONU em Estocolmo sobre
o Meio Ambiente Humano, em 1972, pois os chamados países em desenvolvimento não
queriam participar, e ele teria contornado a situação os convidando para dar suporte à
91 Cf. The Encyclopedia of Earth. Disponível em: http://www.eoearth.org/view/article/156277/. Acesso em 14/10/2015.
136
Conferência ao conectar os conceitos de meio ambiente e desenvolvimento, no que
nomeou “paradigma do desenvolvimento centrado nas pessoas”, uma procedência do
conceito de desenvolvimento humano sustentável, apresentada no Relatório de Founex92
(Ibidem: IX).
Mahbub ul Haq inicia sua discussão estabelecendo o contexto após a Guerra
Fria, em que a segurança teria passado a ser interpretada como a segurança das pessoas
em seu dia a dia: “em suas casas, seus empregos, nas ruas, nas comunidades e em seus
ambientes” (ul Haq, 1995: 39). Nesse sentido, a segurança humana deveria ser
considerada universal, global e indivisível, com os considerados crimes nacionais agora
passando a serem vistos como problemas globais (tais como drogas, poluição e
terrorismo), e tomando as pessoas e o governo de suas próprias vidas como centrais para
o desenvolvimento.
Dois anos após o documento do então Secretário-Geral da ONU, Boutros
Boutros-Ghali, em que o conceito de segurança humana aparece pela primeira vez no
âmbito da ONU, o Relatório de Desenvolvimento Humano de 1994 do PNUD teve
92 No período que antecedeu a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano de 1972, os chamados países em desenvolvimento relatavam sua insatisfação alegando a orientação da discussão ambiental aos interesses dos países industrializados. Maurice Strong, na época Secretário-Geral da Conferência que viria a acontecer, manteve estreitas relações com líderes nacionais e organizações visando uma aproximação de países considerados em desenvolvimento. A Índia, assim como o Brasil, foram países ativos na Conferência de Estocolmo. A Primeira Ministra indiana, Indira Gandhi (1966-1977 e 1980-1984), em seu discurso, afirmou ser a pobreza o maior poluidor de todas, o que obteve efeitos políticos duradouros. Ao aproximar as relações entre ambiente e desenvolvimento, Strong iniciou a realização de um seminário que envolveu especialistas de diversas áreas e países, e preparado por ele e Mahbub ul Haq, Gamani Corea e Barabara Ward. Deste seminário derivou o Relatório Founex, conhecido por lançar as bases para o conceito de “desenvolvimento sustentável”. Nele, argumenta-se que todos os países são afetados pelos problemas ambientais globais e que a preocupação com o meio ambiente deve ser integrada no processo de desenvolvimento, requerendo uma definição mais ampla de metas do que o aumento do PIB (Produto Interno Bruto), possibilitando a emergência de uma compreensão política na discussão internacional de que os recursos limitados nos países considerados em desenvolvimento são uma restrição para a integração global. Em suma, o Relatório Founex constituiu forte base conceitual para a Conferência de Estocolmo, demonstrando a não contradição entre conservação do meio ambiente e desenvolvimento. Cf. The Founex Conference. Disponível em: http://www.mauricestrong.net/index.php/founex-conference?showall=1&limitstart. Acesso em: 25/05/2016.
137
como tema “as novas dimensões da segurança humana”, em que apresenta um novo
projeto para o que chama de “cooperação para o desenvolvimento” e sugere uma agenda
a ser considerada na Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social em Copenhagen,
em 1995.
Durante a Guerra Fria, segundo o Relatório do PNUD, a humanidade havia
sobrevivido à sua primeira ameaça de uma devastação nuclear mundial, no que sugere
uma transição da segurança nuclear para a segurança humana:
O conceito de segurança, por muito tempo, foi interpretado de forma estrita: como segurança do território às ameaças externas, como proteção de interesses nacionais na política externa, ou como segurança global frente à ameaça de um holocausto nuclear. Era mais relacionado aos Estados-nação do que às pessoas. As superpotências fecharam-se em um combate ideológico lutando na Guerra Fria por todo o mundo. Os países em desenvolvimento, tendo conquistado sua independência apenas recentemente, ficaram sensíveis a quaisquer ameaças às suas frágeis identidades nacionais. Esqueceu-se que foram as preocupações legítimas das pessoas comuns que buscaram segurança em suas vidas diárias (...). Com a sombra da guerra fria, pode-se ver agora que muitos dos conflitos ocorrem nas nações ao invés de entre as nações (PNUD, 1994: 22 – grifos meus).
A ideia de segurança humana, que segundo o PNUD revolucionará o século
XXI, considera quatro focos para a sua abordagem: 1) a segurança é universal – existem
interesses que diferem em relação a cada parte do mundo, mas existem muitas questões
comuns; 2) seus componentes são interdependentes – a segurança das pessoas envolve
todas as nações, pois ameaças podem levar a consequências globais; 3) a segurança
humana é mais facilmente garantida por meio de prevenção do que intervenção
posterior, muito por causa dos custos que podem ser altíssimos para tratar de questões
como a AIDS, por exemplo; 4) a segurança humana centra-se nas pessoas e refere-se a
como as pessoas exercitam suas escolhas e ao quanto elas tem de acesso a
oportunidades (Idem: 22-23).
138
Além disso, a segurança humana, segundo o PNUD, possui dois grandes
componentes: freedom from fear (liberdade do medo) e freedom from want (liberdade
das privações). Algo que teria sido reconhecido ainda com a instituição da ONU, porém
o primeiro conceito teria sobreposto o segundo. O Relatório enfatiza, portanto, o desejo
de realizar a transição do conceito de segurança nacional para o conceito abrangente de
segurança humana (Idem: 24).
Nessa lógica, o desenvolvimento humano seria o processo de aumentar o leque
de oportunidades para que as escolhas das pessoas sejam feitas, e a segurança humana
seria a garantia para que as pessoas poderem fazer escolhas simultaneamente livres e
seguras. Segundo Mahbub ul Haq, na esteira desta construção, a segurança deve deixar
de ser feita pelas armas para ser exercida pelas pessoas em seu cotidiano e utilizada pelo
dividendo da paz para financiar uma agenda global para a humanidade (Ibidem: 118).
O que interessa nesta abordagem estratégica da segurança humana é sua
habilidade em se expandir para a conduta individual, ampliando e tornando mais
precisos os focos de intervenção no que não responde da forma esperada, constituindo-
se como virtual ameaça para os fluxos globais. Entende-se, portanto, que não há apenas
interesse econômico no que concerne ao neoliberalismo, mas a utilidade na reprodução
de um senso de responsabilidade compartilhada configurada como uma racionalidade,
política ainda que para tanto seja fundamental a identidade de cada um com seu local,
sua nação, seu ambiente específico.
Ul Haq considera que, após o conflito durante a Guerra Fria entre Leste e Oeste,
o problema passou a ser o chamado, na época, de Terceiro Mundo, no que questiona o
porquê despender mais gastos com armas e soldados do que com saúde e educação.
Aponta para que as grandes potências que travaram a Guerra Fria tem a obrigação moral
de aliviar as tensões globais e construir novas alianças para ajudar os chamados países
139
em desenvolvimento nessa transição. Para tanto, toma o conceito de governança global
como o novo quadro de regulação e monitoramento necessário para gerir os
mecanismos automáticos de mercado.
A renda é tida como apenas uma das atividades possíveis no que concerne ao
desenvolvimento humano. Apresentando-nos como se desenrolou a percepção da
necessidade de um desenvolvimento centrado nas escolhas dos indivíduos, discorre
sobre como o capital humano estava esquecido em muitas nações e por isso não poderia
ser traduzido em um desenvolvimento real. Como economista, queixa-se de ter se
preocupado com investimentos, importações e exportações, tendo como base o Produto
Interno Bruto (PIB) de cada país, e assim deixando de lado uma vasta gama de
contribuições humanas que poderiam ser convertidas em desenvolvimento.
Em meados dos anos 1970, ul Haq relata ter passado a pensar nas necessidades
humanas; na medição de custos não apenas em termos de rendimento, mas relativo ao
potencial humano (ul Haq, 1995: 4). Conforme apresenta, pensava em um plano de
desenvolvimento que tivesse foco nas pessoas e não na produção propriamente dita,
fazendo-se necessário um balanço geral sobre um determinado país que reunisse
diretrizes como a quantidade de recursos, o quanto as pessoas são educadas, qual o
perfil de distribuição de renda relativa e pobreza absoluta, quais as aspirações e cultura
dessas pessoas, etc. Em segundo lugar, este plano deveria primeiramente se concentrar
nas necessidades humanas básicas para depois transformá-las em metas para a produção
e consumo, o que significaria realizar um estudo aprofundado, no mínimo, sobre taxas
de nutrição, educação, saúde, moradia e transporte. Os objetivos de produção e
distribuição deveriam estar integrados e obter a mesma ênfase, e a estratégia para o
desenvolvimento humano deveria ser descentralizada – envolvendo participação
comunitária e autoconfiança. Por último, o plano deveria conter uma estrutura de análise
140
do desempenho humano ao longo de seu investimento, a fim de monitora-los (Idem: 4-
6).
Segundo o economista, Robert McNamara foi um dos primeiros a defender o
aumento da produtividade dos mais pobres e a direcionar todos os programas do Banco
Mundial para esse processo, influenciando também outras instituições internacionais
(Ibidem: 7) e fazendo com que o Banco Mundial fosse um dos primeiros bancos a criar
um planejamento direcionado a questões do desenvolvimento humano em conjunto com
a ONU. Comparava ao Plano Marshall a vontade de realizar um plano que enfrentasse a
relutância de legislações e indústrias de contribuir ao desenvolvimento humano, e que
estabelecesse “a supremacia dos seres humanos no desenvolvimento econômico”
(Ibidem: 11-12).
Reitera, assim, que o desenvolvimento humano não é uma criação, mas um
tributo aos “líderes do pensamento político e econômico”. Primeiramente, refere-se a
Aristóteles e a ideia de “bem humano”, ao distinguir um bom arranjo político de um
ruim a partir de seu sucesso ou não em tornar aptas as pessoas de “prosperarem em suas
vidas” (Ibidem: 12). Em segundo lugar, remete à Kant, por este ter continuado a
tradição de tratar os bens humanos como o fim mesmo de todas as atividades, e não
apenas os meios. Cita também Adam Smith, como promotor do livre mercado e da
iniciativa privada para que as pessoas fossem aptas a viver livremente com outras em
público, integrando os pobres à comunidade como um todo. E, por fim, refere-se a
Robert Malthus, Karl Marx e John Stuart Mill como outros grandes fundadores do
pensamento econômico moderno, ou seja, que pensam a economia a partir do humano
(Ibidem: 12).
Enquanto o desenvolvimento humano promoveria a expansão de uma gama de
oportunidades, o crescimento econômico puramente teria em vista apenas a expansão do
141
lucro. Nesta lógica, é muito mais importante o uso que as pessoas fazem de sua renda
do que a renda em si mesma, e, contornando a automaticidade do ambiente de mercado,
políticas sociais devem ser responsáveis pela conversão do crescimento econômico para
a vida das pessoas. Tudo isso por meio de ações políticas como reforma agrária,
sistemas fiscais progressivos, novos sistemas de crédito de bancos para pessoas mais
pobres, a expansão de serviços sociais básicos, a remoção de barreiras para a entrada de
pessoas nas esferas política e econômica e para a equalização de seus acessos a
oportunidades, etc., todas podendo variar de um país para outro, mas com consideráveis
características em comum. Assim, a construção dessa abordagem do desenvolvimento
humano parece possuir duas frentes complementares: a formação das chamadas
capacidades humanas – no que concerne à promoção de saúde, conhecimento e
habilidades – e o uso racional feito pelos indivíduos de suas oportunidades. E, segundo
ul Haq, essa abordagem possui quatro componentes fundamentais: equidade,
sustentabilidade, produtividade e empoderamento.
A equidade diria respeito ao alargamento das escolhas dos indivíduos e igual
acesso a oportunidades, e não necessariamente à garantia de resultados iguais. Em suas
palavras, “o que as pessoas fazem com suas oportunidades concerne a seus próprios
interesses: a igualdade de oportunidades nem sempre conduz a escolhas ou resultados
similares” (Ibidem: 16). Já a sustentabilidade refere-se ao sustento de todas as formas de
capital – físico, humano, financeiro e ambiental (Ibidem: 17). Este conceito não se
refere aqui à preservação de todos os recursos naturais, espécies e do meio ambiente em
sua forma natural, mas à preservação da capacidade de produzir as mesmas
oportunidades para todos.
A produtividade diz respeito ao investimento em pessoas e na promoção de um
ambiente macroeconômico favorável para que alcancem seu potencial máximo.
142
Diferente de tratá-las apenas como capital humano, o que as reduziria a meios para o
desenvolvimento, deve-se tomá-las responsáveis pelo seu desenvolvimento e seu
próprio fim. Por fim, o empoderamento costura todos esses princípios ao priorizar a
participação das pessoas em atividades, processos e eventos que as insiram no processo
rumo ao desenvolvimento humano. Nas palavras de ul Haq, “empoderamento significa
que as pessoas estejam em posição de exercer escolhas por vontade própria” (Ibidem:
19). Livres de excessivos controles e regulações, este conceito permitiria que as
pessoas, investidas de saúde e educação, possam fazer escolhas particulares e se auto-
governem de forma responsável.
abordagem do desenvolvimento humano
Ao lado de Mahbub ul Haq na construção do conceito de desenvolvimento
humano, o econometrista indiano Amartya Sen teve grande importância ao tratar sobre
o que chamou da abordagem das capacidades humanas. Entendendo que “a liberdade
para participar da avaliação crítica e do processo de formação de valores é, com efeito,
uma das liberdades mais cruciais da existência social” (Sen, 2012: 366), Sen estabelece
ser por meio das capacidades, primeiramente, e liberdade de escolha, depois, que esta
se torna importante para o desenvolvimento. Logo, a “liberdade”, enquanto um valor, de
acordo com Sen, diz respeito “aos processos de tomada de decisão e às oportunidades
de obter resultados considerados valiosos” (Idem: 370).
Amartya Sen foi laureado com o Prêmio Nobel em economia, em 1998, por seu
trabalho sobre a chamada “economia do bem-estar social”, e atualmente é professor na
Universidade de Harvard. Em 1999, publicou o livro Desenvolvimento como liberdade,
como resultado de uma pesquisa financiada pela John D. and Catherine T. MacArthur
Foundation, em que discorre sobre tipos de liberdade, os fins e os meios para o
143
desenvolvimento, oportunidades e capacidades, liberdades intrínsecas à
responsabilidades, e a democracia como modelo ideal para o alcance do
desenvolvimento humano.
As oportunidades sociais, para Sen, devem ser de comprometimento não apenas
do Estado, mas também de outras instituições como organizações políticas e sociais,
disposições de bases comunitárias, ONGs, a mídia, etc. (Sen, 2011: 362). Nesse
contexto, cada indivíduo deve se reconhecer como um agente de suas escolhas. No
interior da abordagem do desenvolvimento humano, a liberdade de escolha é importante
por proporcionar o que chama de razão avaliatória – avaliação do progresso em termos
de aumento de liberdade individual – e razão da eficácia – entendendo que “a
realização do desenvolvimento depende inteiramente da livre condição de agente das
pessoas” (Idem: 17).
Liberdade para Sen, além de um conceito também significa meio e fim para o
desenvolvimento. O que chama de liberdades instrumentais – liberdades políticas,
econômicas, oportunidades sociais, transparência e segurança – seriam as ferramentas
para a promoção de capacidades das pessoas. Já as liberdades substantivas incluiriam
“capacidades elementares”, como ter condições de evitar privações como a fome, morte
prematura, assim como saber ler, ter participação política, liberdade de expressão, etc.
(Ibidem: 55).
Sen estabelece partir do que John Rawls chamou de bens primários, como a
oportunidade real de um indivíduo de promover seus objetivos, para levar em conta
“também as características pessoais relevantes que governam a conversão de bens
primários na capacidade de a pessoa promover seus objetivos” (Ibidem: 104). Uma
pessoa fisicamente incapacitada, por exemplo, pode ter mais bens primários, porém
menos chances de levar uma vida produtiva. As capacidades [capabilities], nesse
144
sentido, consistem na combinação de funcionamentos possíveis para a realização de um
fim diverso. E portanto, a ampliação das necessidades econômicas aumenta a premência
das liberdades políticas.
A democracia, nessa lógica, é importante por ser criadora e oferecedora de um
conjunto de oportunidades, mas que para se efetivarem dependem do modo como são
exercidas as liberdades, e de vários fatores, como o vigor da política multipartidária e o
dinamismo dos argumentos morais e da formação de valores (Ibidem: 204-205). Já o
capitalismo, para Sen, para que tenha um bom funcionamento de mercados, necessita de
instituições sólidas e eficazes e de uma ética de comportamento (Ibidem: 334), que
opere com base em padrões comuns de conduta, confiança mútua e segurança entre os
indivíduos no interior das instituições. Assim, para ele, o papel do Estado e da provisão
social encontra maior eficácia quando combinado com um conjunto de valores sociais e
morais desempenhados por um senso de responsabilidade baseado em escolhas
racionais. Remete, ainda, a Adam Smith como quem observou que a motivação para
uma troca mutuamente benéfica estaria puramente relacionada com o “amor-próprio”,
essencial para a troca e, consequentemente, para a análise econômica (Ibidem: 346).
Além disso, a escolha racional também estaria vinculada à importância de ir além de
objetivos isolados ou imediatos, em prol da durabilidade, eficácia e eficiência de
resultados (Ibidem: 347). Segundo Sen,
O caminho entre liberdade e responsabilidade é de mão dupla. Sem a liberdade substantiva e a capacidade para realizar alguma coisa, a pessoa não pode ser responsável por fazê-la. Mas ter efetivamente a liberdade e a capacidade para fazer alguma coisa impõe à pessoa o dever de refletir sobre fazê-la ou não, e isso envolve responsabilidade individual. Nesse sentido, a liberdade é necessária e suficiente para a responsabilidade (Ibidem: 361).
Enquanto Rawls identifica alguns princípios básicos de justiça específicos como
escolha unânime baseada na concepção de justiça como equidade, mesmo que levando
145
em conta as particularidades de cada sociedade, Sen entende na pluralidade de
interesses, que podem ser conflitantes e imparciais, sua culminação em manifestações
distintas (Sen, 2014: 86-87). O econometrista retoma dois conceitos da justiça
encontrados na antiga ciência indiana do direito, niti e nyaya, para ilustrar a relação
entre capacidades, liberdades e responsabilidades. Enquanto niti estaria restrita a um
entendimento de justiça austera e ao arranjo institucional para a correção de um
comportamento, nyaya teria um aspecto mais abrangente de justiça realizada, não
restrita apenas às instituições e regras, mas incluindo, também, os processos sociais,
incluindo o exercício de direitos e responsabilidades individuais (Idem: 52).
Resultados abrangentes incluem os processos envolvidos que devem ser
distinguidos de meros resultados de culminação. Neste mesmo sentido, a teoria de
Rawls, para Sen, implica a simplificação de uma tarefa multifacetada de combinar a
operação dos princípios de justiça com o comportamento das pessoas – algo necessário
para que qualquer teoria da justiça oriente as escolhas sociais. Ao ultrapassar o que
chama de ética utilitarista, como restrita às avaliações impessoais e puramente
consequencialista, Sen insiste na consideração da agência, quando o agente leva em
conta suas avaliações pessoais de justiça no sentido de nyaya. O indivíduo como agente
participativo deve ter liberdades para saber formular valores: “a liberdade para
participar da avaliação crítica e do processo de formação de valores é, com efeito, uma
das liberdades mais cruciais da existência social” (Sen, 2011: 366), e é por meio da
capacidade, primeiramente, e liberdade de escolha, depois, que esta se torna importante
para o desenvolvimento. Liberdade diz respeito, então, nesta lógica proposta por Sen,
“aos processos de tomada de decisão e às oportunidades de obter resultados
considerados valiosos” (Idem: 370).
146
uma ampliação oportuna
Amartya Sen foi um grande propagador dessa estratégia de medição de
liberdades baseada em responsabilidades. Suscitou uma vasta literatura em torno de sua
abordagem sobre a escolha individual racional ou social como fundamental para o
processo do chamado desenvolvimento humano sustentável. Toda esta literatura estaria
apoiada na “capacidade humana” como abordagem de vida acoplada à teoria do capital
humano.
A teoria do capital humano foi desenvolvida por Theodore Schultz, também
laureado com o Prêmio Nobel de economia, em 1979, pelos seus estudos sobre
desenvolvimento econômico no pós-Segunda Guerra Mundial e suas análises sobre a
rápida recuperação da Alemanha e do Japão relacionadas aos altos investimentos desses
países em educação. No mesmo ano, Arthur Lewis também ganhou o Prêmio Nobel de
Economia por seu pioneirismo no campo do desenvolvimento econômico, com foco nos
chamados países em desenvolvimento, ao estabelecer modelos e causas da pobreza da
população desses países.
Passando por alguns traços gerais que permitem distinguir o neoliberalismo
estadunidense do ordoliberalismo, Michel Foucault destaca a teoria do capital humano,
criada por Schultz e desenvolvida posteriormente por Gary Becker, como sendo
interessante por expressar a incursão da análise econômica num campo inexplorado – o
trabalho –, e a partir daí a possibilidade de reinterpretar, em termos econômicos,
elementos que eram considerados não-econômicos (Foucault, 2004: 302). Um
economista clássico como David Ricardo, por exemplo, querendo analisar o aumento do
trabalho, o fez de maneira quantitativa, apenas segundo a variável temporal (Idem: 303).
Já os neoliberais, partindo de Schultz, tomarão o trabalho de forma qualitativa, devendo
analisar não o estudo dos mecanismos que o envolvem, mas a natureza e as
147
consequências das chamadas opções substituíveis, ou, como são alocados recursos,
pensando no comportamento humano e na racionalidade interna deste comportamento.
De acordo com Foucault, “a economia já não é, portanto, a análise da lógica histórica de
processos, é a análise da racionalidade interna, da programação estratégica da atividade
dos indivíduos” (Ibidem: 307).
Nessa racionalidade, todo indivíduo é responsável por sua conduta econômica,
racionaliza e calculada. O capital será definido como o que torna possível uma renda
futura, indissociável de quem o detém, das competências deste, de quem o exerce como
uma empresa para si mesmo. “Uma economia feita de unidades-empresa, uma
sociedade feita de unidades-empresa: é isso que é, ao mesmo tempo, o princípio de
decifração ligado ao liberalismo e sua programação para a racionalização de uma
sociedade como de uma economia” (Ibidem: 310).
O estudo dos neoliberais, conforme os apontamentos de Foucault, passa a se
concentrar nos elementos inatos ou nos elementos possíveis de aquisição, como o
equipamento genético, saúde e educação. Problemas de higiene pública, de cuidados
médicos, de mobilidade, migração, e até afeto consagrados dos pais aos filhos deverão
ser analisados em termos de investimentos em capital humano (Ibidem: 315).
Dentre as principais atividades de investimento humano delineadas por Schultz,
estão os recursos relativos à saúde e serviços, incluindo a capacidade de vigor e
vitalidade de um povo; o treinamento no local do emprego; educação formalmente
organizada nos níveis elementar, secundário e de maior elevação; programas de estudos
para os adultos que não estão empregados; migração de indivíduos e famílias para
adaptar-se às condições flutuantes de oportunidades de empregos (Schultz, 1973: 43).
Segundo Schultz,
148
Os trabalhadores transformaram-se em capitalistas, não pela difusão da propriedade das ações da empresa, (...) mas pela aquisição de conhecimentos e de capacidades que possuem valor econômico. Esse conhecimento e essa capacidade são em grande parte o produto de investimento e, combinados com outros investimentos humanos, são responsáveis predominantemente pela superioridade produtiva de países tecnicamente avançados (Schultz, 1973: 35).
Se a conduta racional do homo oeconomicus foi tornada, no século XVIII,
sujeito ou objeto do laissez-faire, ou como aquilo em que não se deve intervir, esta
definição será retomada pelos neoliberais estadunidenses, principalmente por Gary
Becker, como aquela que é eminentemente governável, uma vez que responderá
sistematicamente às modificações introduzidas artificialmente no meio (Foucault, 2004:
369). Para Becker, as análises e leis econômicas podem se aplicar, ainda, à escolhas não
racionais, na medida em que a conduta de um indivíduo corresponder à noção de que
suas reações não são aleatórias em relação ao real (Ibidem: 367).
Porém, ao afirmar ser o capital humano uma concentração dos seres humanos
para aumentar suas possibilidades de produção, Amartya Sen diferencia-o da
abordagem das capacidades humanas por estas estarem ligadas não apenas à
concentração de produção, mas também à concentração do potencial, como “liberdade
substantiva”, das pessoas poderem melhorar suas vidas (Sen, 2012: 372).
Embora a prosperidade econômica ajude as pessoas a terem opções mais amplas e a levar uma vida mais gratificante, o mesmo se pode dizer sobre educação, melhores cuidados com saúde, melhores serviços médicos e outros fatores que influenciam causalmente as liberdades efetivas que as pessoas realmente desfrutam (...). Pois os seres humanos não são meramente meios de produção, mas também a finalidade de todo o processo (Idem: 375).
Nesse sentido, evidencia-se que a abordagem das capacidades humanas não é
uma alternativa à teoria do capital humano, mas sua ampliação, uma vez que se mostra
149
muito mais eficaz para o embasamento de uma racionalidade quando aumenta seu leque
de cálculos e consequências das ações e condutas humanas.
O filósofo e pesquisador Trent Hamann, com base nas transformações na vida
individual e social nos EUA, faz uma análise sobre as estratégias da
governamentalidade neoliberal que põe em funcionamento uma subjetividade
historicamente construída em torno do homo economicus como um “atómo” de interesse
próprio, livre e autônomo (Hamann, 2012). Hamann aponta para uma clara diluição
provocada pelo neoliberalismo das tradicionais distinções entre público e privado,
político e pessoal.
Nos EUA, em especial, muitas instituições públicas ou estatais passaram a ser
geridas de forma privada por corporações, inclusive áreas urbanas, conforme situa o
exemplo do Business Improvement Districts – parcerias público-privadas emergentes no
início dos anos 1970 com o objetivo de desenvolver negócios e a chamada “qualidade
de vida” de uma comunidade, com autorização do governo (Idem: 103). Neste processo,
Hamann chama atenção para uma reposição do que era compreendido como social e
político para o campo do “autogoverno” [self-management], e para evidências que
demonstram uma transferência de responsabilidade para o indivíduo, em termos de
estarem sujeitos às demandas de mercado e avaliação de cálculos de riscos econômicos,
responsabilidade financeira, produtividade, eficiência (Ibidem: 105). Assim, o homo
economicus, de comportamento imprevisível, deve ter sua conduta moldada por meio de
uma subjetividade mantida por mecanismos sociais de assujeitamento (Ibidem: 107),
compondo uma ética responsável.
Não é o Estado, o mercado ou uma instância superior que governam os
indivíduos, mas eles mesmos constroem uma subjetividade enquanto revestidos como
capital humano portador de capacidades para realizar escolhas livres, que apenas
150
derivam de “oportunidades” a serem garantidas pelo Estado. Ao serem subjetivados
como plenamente autônomos e livres, a responsabilidade dos indivíduos constitui uma
forma de moralidade de mercado, entendida como maximização da economia por meio
da deliberação racional daqueles, ao passo que o fracasso do engajamento necessário
nesse processo de subjetivação confere ao indivíduo um estatuto de “vida
desgovernada” (Ibidem: 110), ou, como no caso dos Estados, uma “falência”, referente
à falta de escopo necessário para gerir instituições eficientes e prover garantias básicas a
seus cidadãos.
O “autogoverno” à que se referem os neoliberais remete à responsabilização e
julgamento moral das escolhas dos indivíduos como estratégia econômica e de governo.
Não apenas se distancia da “autogestão” – palavra introduzida pelos anarquistas no que
concerne às suas práticas por meio de ação direta –, como estreita e se intensifica com
uma relação de governo intrínseca ao Estado. Interessa para a governança, na medida
em que esta oculta a relação governante-governado, a gestão compartilhada entre
mercados, empresas, organizações, sociedade civil e Estado, pressupondo a conduta
responsável de cada um, capazes de governar a si próprio e aos demais.
No curso O governo de si e dos outros, Foucault faz uma análise de alguns
momentos precisos do texto de Kant, Aufklärung [Iluminismo], que apresenta uma
relação viciada entre o uso que fazemos da nossa razão, ou que poderíamos fazer, e a
direção dos outros, que caracterizaria o estado de menoridade (Foucault, 2013: 32).
Neste, predominam o par obediência e ausência de raciocínio e o par privado e público.
Há, para Kant, que a superimposição da direção dos outros se deve à própria pessoa que
a aceita devido a um déficit de autonomia (Idem: 32). A esfera “privada” seria o uso que
se faz de suas faculdades privadas nas atividades que considera “públicas” – “quando
151
somos os elementos de uma sociedade ou de um governo cujos princípios e objetivos
são os do bem do coletivo” (Ibidem: 34).
O que Kant chama de privado é o uso de nossas faculdades enquanto indivíduos
encarregados de uma função coletiva. Já o uso público seria o uso de nossas faculdades
enquanto sujeito universal. O uso que fazemos do nosso entendimento, enquanto
sujeitos racionais, tem uma dimensão universal, e a maioridade é atingida quando a
obediência se fizer na esfera privada – enquanto membro de uma coletividade – e o uso
da razão se fizer na esfera pública, fazendo-se valer a liberdade total de raciocínio
(Ibidem: 35). E, segundo a leitura de Foucault, é precisamente deixando crescer essa
liberdade de pensar pública, essa dimensão autônoma do universal, que a necessidade de
obedecer aparecerá de forma mais evidente na ordem da sociedade civil: “Quanto mais
liberdade para o pensamento vocês deixarem, mais vocês terão certeza de que o espírito
do povo será formado para a obediência. E é assim que se vê desenhar uma
transferência de benefício político do uso livre da razão para a esfera da obediência
privada” (Ibidem: 37).
Desse modo, é importante se ater à introdução destas concepções pela filosofia
moderna se pensarmos na acomodação do discurso da responsabilidade social
envolvendo a acoplagem da teoria do capital humano e sua ampliação e eficácia no
campo social com a abordagem das capacidades enquanto modo de gerir a vida de
forma racional, baseando-se num amplo leque de cálculos e consequências das ações e
condutas humanas.
o IDH e a construção de uma medição para a vida
Segundo Mahbub ul Haq, antes da Segunda Guerra Mundial havia uma obsessão
crescente em relação aos modelos de crescimento econômico e ao que poderia ser
152
medido e precificado, e as pessoas eram cada vez menos vistas como agentes de
mudança e beneficiárias do desenvolvimento (ul Haq, 1995: 22). Para ele, em 1980, por
meio do aumento das taxas de crimes, da poluição, a rápida propagação da Aids, entre
outros fatores, o aumento da produção econômica não estaria acompanhando o aumento
de bem-estar humano. Ao mesmo tempo, os custos de ajustes estruturais para programas
realizados nos chamados países em desenvolvimento, sob a égide do FMI e do Banco
Mundial, haviam sido muito altos na década de 1980. Foi nesse contexto, e em meio aos
questionamentos sobre outras opções disponíveis para equilibrar orçamentos financeiros
e ao mesmo tempo proteger os setores considerados mais vulneráveis da sociedade, que
ul Haq declara ter apresentado a ideia de um relatório anual sobre desenvolvimento
humano para o administrador do PNUD, na época William Draper (Idem: 23).
Concomitante à preparação do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) houve a
criação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), considerado uma medida mais
eficiente do “progresso das nações”, ao levar em conta as escolhas das pessoas,
diferentemente do PIB (Produto Interno Bruto).
O princípio fundamental que guiou a pesquisa para a concepção do IDH, em
1989, foi o de abranger as escolhas das pessoas no que concerne, em primeiro lugar, ao
desejo de ter uma vida longa, adquirir conhecimento, ter uma vida confortável, ter um
emprego remunerado, respirar ar limpo, ser livre, viver em uma comunidade (Ibidem:
47). Foram, inicialmente, estabelecidos um número limitado de variáveis simples e
manejáveis: expectativa de vida; alfabetização na idade adulta, para medir o grau de
educação; e o próprio PIB, ajustado à paridade do poder de compra, como índice do
acesso a escolhas econômicas múltiplas. Outras variáveis foram descartadas por serem
entendidas como subjacentes a outras já estabelecidas; mortalidade infantil, por
exemplo, estaria incluída na variável “expectativa de vida” (Ibidem: 47).
153
De forma distinta ao PIB, do qual o dinheiro serviria como medida comum para
todos os cálculos, não há uma medida comum para medir o progresso socioeconômico.
A expectativa de vida é medida em anos, a educação é medida pela percentagem de
alfabetização de adultos e pelos anos de escolaridade – sendo o primeiro equivalente a
um peso de dois terços em relação a um terço do segundo –, e a renda é ajustada ao
poder de compra em dólares. Assim, estabeleceu-se que o avanço metodológico seria
medir o progresso real em cada indicador como distância relativa de uma meta
desejável. Em uma escala de 0 a 1, cada progresso nacional seria medido em relação a
uma meta pré-estabelecida, com a desvantagem de que cada valor se tornaria relativo a
outro (Ibidem: 48).
No momento de sua formulação também se pretendeu tornar o índice flexível,
sujeito a revisões, refinamentos, pesquisas e investimentos. Além disso, o ranking
produzido pelo IDH foi pensado para persuadir e pressionar decisores políticos a
investir adequadamente na produção de dados relevantes e no encorajamento de
instituições internacionais para prepararem sistemas de dados estatísticos de
comparação (Ibidem: 48).
O IDH, pensado para aplicação em âmbito planetário, não deixa para trás o PIB
como medida socioeconômica ainda referente ao Estado-nação, mas o complementa por
meio das variáveis específicas de cada local. As variáveis básicas do IDH –
longevidade, educação e renda – ampliam a variável renda, medida pelo PIB, no
momento em que se passa a pensar no que a compõe, no que a produz, como é
distribuída, em outros fatores constitutivos do lucro. Países como os Emirados Árabes
Unidos, Iraque, Líbia, Arábia Saudita, por exemplo, revelarão alto PIB e baixo IDH,
segundo ul Haq, por terem adquirido grande parte de sua riqueza após a alta do preço do
petróleo em meados dos anos 1970 (Ibidem: 53). Defende, portanto, um equilíbrio entre
154
o IDH e o PIB, sendo este último ultrapassado como um indicador eficiente de
desenvolvimento humano. O mais importante a ser analisado, nesta lógica, é a forma
como o rendimento é utilizado e distribuído em uma sociedade, devendo ser necessárias
prioridades dos decisores políticos em termos de construir uma base adequada de capital
humano para o crescimento de cada país. Uma base econômica adequada sustentaria o
progresso social e vice-versa.
Conforme relata, a questão recorrente foi mudando de “quanto uma nação
produz?” para “o quão satisfeitas estão as pessoas de uma nação?” (Ibidem: 25). Assim,
o primeiro Relatório do Desenvolvimento Humano (RDH) foi publicado pela Oxford
University Press em maio de 1990 com o tema “Conceito e Medição do
Desenvolvimento Humano”. Partindo-se do pressuposto de que o crescimento
econômico é necessário para o desenvolvimento humano, avaliaram-se as políticas dos
países que conseguiram traduzir seus níveis de renda per capita em desenvolvimento
humano (PNUD, 1990: 1).
Nesse sentido, ul Haq reitera que a pobreza não deve ser considerada como um
objetivo distinto do desenvolvimento humano, mas o investimento de educação e
capacitação, em especial, devem ser tomados como objetivo de longo-prazo para inseri-
las totalmente no bem-estar humano (ul Haq, 1995: 27). Para tanto, estabelece a
necessidade de um compromisso entre eficiência de mercado e políticas sociais com
intervenção do governo, sendo “necessário garantir que as redes de segurança sociais
não sejam rompidas em períodos de rápido crescimento, o que poderia ocasionar
convulsões políticas que perturbem o processo de desenvolvimento” (Ibidem: 28).
O RDH seguinte, de 1991, sobre “Financiamento do Desenvolvimento
Humano”, apresenta a possibilidade de uma reestruturação de orçamentos capaz de
prover recursos suficientes de serviços básicos para todos, dando fim ao que chama de
155
oportunidades desperdiçadas por meio de gastos militares, empreendimentos públicos
ineficientes, a crescente fuga de capitais e aumento de corrupção (PNUD, 1991: 4).
O financiamento, nesse sentido, teria a função de promover um
“desenvolvimento participativo onde as pessoas são colocadas no centro de todas as
tomadas de decisão. É sobre a liberdade humana onde as energias criativas das pessoas
são desencadeadas para gerar oportunidades econômicas e sociais para si mesmas e para
as sociedades” (Idem: III). E as principais estratégias políticas para a alocação e melhor
distribuição dos recursos prioritários seria, precisamente, o “empoderamento de grupos
enfraquecidos, o direcionamento de crédito para os pobres, a construção de coalizões
baseadas em interesses comuns, a compensação de grupos poderosos e a coordenação
de pressões externas” (ul Haq, 1995: 30).
Já o RDH de 1992 trabalhará, por conseguinte, as “Dimensões Internacionais do
Desenvolvimento Humano”, estabelecendo que os mercados competitivos garantem o
desenvolvimento humano por abrirem oportunidades para empresas criativas e aumentar
o acesso das pessoas à uma gama de escolhas econômicas; e vangloria a liberalização do
mercado nacional em todo o mundo – da Polônia e Paquistão à Rússia e México
(PNUD, 1992: III). Assim, o tema trabalhado pelo RDH de 1992 resume-se no
pressuposto de que o desenvolvimento humano deve ser promovido por meio da
melhoria do acesso dos chamados países em desenvolvimento aos mercados globais,
aumentando os fluxos de capital do Norte para o Sul e, consequentemente, os recursos
disponíveis para o investimento em capital humano.
Seguindo a ênfase nas pessoas como central para o desenvolvimento humano, o
RDH de 1993 explora o tema “Participação das pessoas”, onde se destaca que “com a
livre iniciativa vencendo a planificação central, e as vozes corajosas da democracia
aquietando os terrores do autoritarismo, pessoas em todo o mundo estão assegurando o
156
seu direito para determinar o seu próprio destino” (PNUD, 1993: II). A participação é
estabelecida como efeito da descentralização do poder: “não mais sufocantes
regulamentações de um Estado todo-poderoso. Em vez disso, um desejo de libertar
empreendimentos humanos” (Idem: II). E, a esse desenvolvimento que denomina-se
“comunitário”, o Relatório ressalta caber desencadear o “espírito empreendedor” das
pessoas, que assumirão riscos para competir, inovar e direcionar-se para o
desenvolvimento. Esse foco na participação das pessoas alia-se, precisamente à
redefinição de segurança que passa a ser a segurança das pessoas (segurança humana) e
não apenas da nação.
Em artigo inaugural do periódico britânico Journal of Human Development de
2000, intitulado A Década do Desenvolvimento Humano, Amartya Sen destaca que os
anos 1990 foram marcados pelo sucesso da ideia de “desenvolvimento humano” por
responder às múltiplas preocupações e por trazer o que chama de uma concepção
pluralista em cada sociedade – sem concentrar-se apenas em uma medida solitária e
tradicional apenas do progresso econômico –, porém inescapável de reconhecimento e
acomodação dentro de um enquadramento global geral (Sen, 2000: 20). Para Sen, a
“partida inovadora” de ul Haq no mundo da avaliação do desenvolvimento tradicional
envolveu o questionamento à posse da filosofia utilitarista como forma dominante de
raciocínio ético, especialmente na tradição intelectual anglo-americana (Idem: 21). Para
ele, o cálculo utilitarista seria pertinente se tivéssemos que escolher apenas uma variável
a ser considerada, uma vez que não se pode ignorar a importância de se evitar dor e
sofrimento, bem como a felicidade como recompensa. Porém, a “contabilidade” do
desenvolvimento humano encontra eficiência em uma análise sistemática de
informações sobre os seres humanos e as diferentes sociedades em que vivem (Ibidem:
21). Embora considere uma grande vantagem do utilitarismo o fato de levar em conta os
157
resultados de disposições sociais e o envolvimento das pessoas em julgá-las, o
utilitarismo não se atenta para a distribuição das próprias utilidades e possui descaso
para com direitos, liberdades e outras considerações não vinculadas à utilidade, além de
não levar em conta que pessoas destituídas de utilidades podem não ter condições de
julgar o tipo de vida que gostariam de ter e fazer as melhores escolhas para si (Ibidem:
89).
Foi neste contexto “monoconcentracionista” que Mahbub ul Haq teria assumido
a liderança de grande descontentamento em relação ao PIB, de ativistas argumentando
pelo reconhecimento de “necessidades básicas”, intervencionistas internacionais
lamentando “o estado das crianças no mundo”, a fome e a epidemia, e até humanistas
reivindicando justiça social e qualidade de vida. Assim, conforme exposição de Sen, a
visão integradora de ul Haq soube aproveitar diferentes reivindicações para o
desenvolvimento de uma abordagem ampla e flexível:
A ideia de desenvolvimento humano venceu porque o mundo estava pronto para isto. Mahbub deu-lhe o que vinha exigindo de diversas maneiras algumas décadas anteriores (...). Ele disse ao mundo: “aqui temos uma ampla estrutura; se você quer que algo seja incluído nesta lista, ou que algo mereça uma mesa na equipe do Relatório de Desenvolvimento Humano (e com incrível sorte pode até ser incluído em um dos índices, como o Índice de Desenvolvimento Humano ou o Índice de Pobreza Humana), diga-nos e explique porque deve figurar nessa contabilidade”. Com liberdade dos grilhões monoconcentracionistas, o mundo da avaliação foi aberto ao raciocínio pragmático, invocando diferentes tipos de argumento dentro de um amplo e permissivo quadro de avaliação social (Ibidem: 23).
A ideia de desenvolvimento revestida da ideia de humano almeja ter encontrado
no Índice de Desenvolvimento Humano uma maneira eficiente de provar seu sucesso. O
IDH, preciso e flexível, conseguiu inaugurar uma forma poderosa de elencar metas e
objetivos alinhados àquilo que pretende ser a prova da verdade verdadeira sobre um
espaço. Se a chamada sociedade civil foi o campo encontrado pela arte liberal de
158
governar emergente no século XVIII para garantir sua governamentalidade por meio da
introdução de sua racionalidade na conduta dos que são governados, hoje, enquanto
uma sociedade civil planetária, lhe foi permitido, em grande medida pelos saberes
aglutinados em índices, constituir-se como objeto da governança global respondendo
aos arranjos da verdade da racionalidade neoliberal.
Esta sociedade civil, revestida de uma ética de responsabilidade e
transparência, será, ao mesmo tempo, aquilo que monitora, avalia e governa focos de
perturbação, e o que é governado pela produção envolta de uma lógica de metas e
objetivos – do planetário ao cada vez mais ínfimo, e vice-versa. Exemplo deste
funcionamento é o convite para países inovarem, substituírem ou adicionarem novas
dimensões adaptadas do IDH no que nomeiam de nível subnacional como prática
prevista pelo que o índice propõe alcançar, em termos de precisão. Já foram criadas
novas dimensões como liberdade política, meio ambiente, segurança, trabalho, etc., e
alguns países como Gâmbia, Argentina, China, Índia, África do Sul e Letônia já
realizaram este tipo de cálculo. O Brasil foi um dos primeiros países a realizar uma
adaptação do IDH, e mostrou-se como laboratório bastante oportuno para novas
tentativas, medições, revisões e criações de variáveis acopláveis no aperfeiçoamento de
seu exercício passível de replicação em outros ambientes com características similares.
IDH e o ambiente brasileiro
Segundo o PNUD, interessa mostrar, por meio do IDH93, o quanto um local
progrediu, mas ainda o quanto tem a melhorar. Em 1991, o IDH do Brasil era
93 Numa escala de 0 a 1, de 0 a 0,499 tem-se um IDHM “muito baixo”, de 0,5 a 0,599 “baixo”, de 0,6 a 0,6999 “médio”, de 0,7 a 0,799 “alto” e de 0,8 a 1 “muito alto” (PNUD, Ipea e FJP, 2014: 12).
159
considerado “muito baixo” (0,493). Em 2000 foi classificado como “médio” (0,612) e
em 2010 “alto” (0,727).94
Em 2002, o PNUD criou o Prêmio Mahbub ul Haq95 para homenagear líderes
políticos e líderes da sociedade civil que demonstrem empenho excepcional na
promoção do IDH. O primeiro homenageado foi o então presidente do Brasil, Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002), devido a implementação de programas de educação,
combate ao trabalho infantil e à Aids em seu mandato, além da atuação na reforma
agrária, diminuição da população “abaixo da linha de pobreza”, instalação da Comissão
Especial sobre Desaparecidos Políticos e pelo valor do salário mínimo, segundo o
PNUD.96
Em 2012, uma parceria entre o PNUD Brasil, a Fundação João Pinheiro e o Ipea
(Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) permitiu a criação do IDH adaptado aos
municípios brasileiros (IDHM) a partir de informações dos três últimos Censos
Demográficos do IBGE (1991, 2000 e 2010).
Segundo apresentação de Jorge Chediek – Representante Residente do PNUD e
Coordenador do Sistema ONU no Brasil –, a publicação referente ao IDHM brasileiro,
reunida na plataforma online “Atlas de Desenvolvimento no Brasil”, almeja ajudar no
estabelecimento de políticas inclusivas que tenham como fim melhorar a vida das
pessoas “oferecendo informação farta e acessível. Abrindo o caminho para que as
pessoas, os cidadãos, os gestores públicos, os estudantes e acadêmicos possam realizar
94 G1. “IDH municipal do Brasil cresce 47,5% em 20 anos, aponta Pnud” in Brasil. 29/07/2013. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/07/idh-municipal-do-brasil-cresce-475-em-20-anos-aponta-pnud.html. Acesso em 30/08/2013. 95 Ver: UNDP. Human Development Awards. Disponível em: http://hdr.undp.org/en/hd-awards. Acesso em: 09/11/2016. 96 Cf. Folha de S. Paulo. “FHC recebe prêmio e evita ser ‘sombra’ para Lula nos EUA” in Brasil. 08/12/2012. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0812200233.htm. Acesso em: 09/11/2016.
160
cruzamentos e análises entre os mais de 200 indicadores que o site oferece” (Chediek in
PNUD, FJP e Ipea, 2014: I). No que a apresentação de Marilena Chaves, presidente da
Fundação João Pinheiro, complementa: “um instrumento de empoderamento para uma
sociedade que está cada dia mais atenta e participante” (Chaves in PNUD, FJP e Ipea,
2014: II).
O Atlas apresenta, de modo geral, um imenso progresso do país através dos
mapas que reúnem dados de todos os municípios:
161
162
O Atlas enuncia que dos 50 municípios com melhor Índice, 28 estão no Estado
de São Paulo. Ao longo da pesquisa, foi coletada uma grande quantidade de notícias,
reportagens e relatórios a respeito do IDH brasileiro, das quais pude selecionar aquelas
que mais evidenciam características levadas em conta para suas medições. Interessou-
me expor tanto exemplos que carregam uma maior obviedade em sua demarcação,
quanto aqueles em que chama a atenção características que parecem bastante peculiares,
mas, na realidade, demonstram bem a relação entre a segurança ou não de um ambiente
apto a desenvolver-se e as pessoas que o habitam.
163
São Caetano é considerada a cidade com o melhor IDHM do país. Marcada pela
indústria automobilística, possui renda como seu melhor indicador (0.891).97 Segundo o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cidade nunca teve favelas, e, de
acordo com a prefeitura, todas as casas têm água encanada e 100% do esgoto é coletado
e tratado.98 No quesito habitação do indicador “vulnerabilidade” do Atlas, não há
pessoas que morem em domicílios sem energia elétrica e/ou sem abastecimento de água
e saneamento inadequados, e apenas 0.05% de pessoas vivem em domicílios com
paredes inadequadas.
Já Alagoas, além de possuir indicadores bastante baixos, apresenta as piores
taxas de analfabetismo do país, principalmente nas faixas etárias de 11 a 24 anos. De
acordo com o Atlas, a porcentagem de jovens de 15 a 17 anos com Ensino Fundamental
completo é a pior do país, com 39,56%.99 A partir de tais resultados, Maceió buscou
alternativas para sair dessa posição, iniciando, por exemplo, um convênio com o
Instituto C&A, em que desenvolveram o projeto Paralapracá. Atualmente, abrange 30
escolas da rede municipal de ensino. “Em sala de aula, as crianças são estimuladas a
tomar decisões e a fazer as suas próprias escolhas, geralmente em cooperação com os
seus colegas sobre o trabalho a ser realizado, possibilitando aumentar sua confiança”,
afirmou a secretária de Educação.100
97 Folha de S. Paulo. “São Caetano do Sul (SP) mantém 1ª posição no ranking do IDH” in Cotidiano. 29/07/2013. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/07/1318738-sao-caetano-do-sul-sp-mantem-1-posicao-no-ranking-do-idh.shtml. Acesso em: 29/03/2016. 98 Terra. “Classe social: a que classe econômica você pertence?” in Economia. 30/07/2013. Disponível em: http://www.terra.com.br/economia/infograficos/teste-classe-economica. Acesso em: 27/03/2016. 99 Uol. Alagoas tem o pior índice de desenvolvimento humano do país. 29/07/2013. Disponível em: http://tnh1.ne10.uol.com.br/noticia/maceio/2013/07/29/258153/alagoas-tem-o-pior-indice-de-desenvolvimento-humano-do-pais. Acesso em: 28/03/2016. 100 Tribuna. “Educação de Maceió firma parceria com instituto C&A” in Política. 13/08/2013. Disponível em: http://www.tribunahoje.com/noticia/72367/politica/2013/08/13/educaco-de-maceio-firma-parceria-com-instituto-ca.html. Acesso em: 28/03/2016.
164
Melgaço, no Pará, município com o pior IDHM (0.418) do país, possui alto
índice de vulnerabilidade, com a justificativa de que 35.94% da população vive em
domicílios sem energia elétrica, 19.6% em domicílios com paredes inadequadas e
78.93% em domicílios com abastecimento de água e saneamento inadequados. A
variável “educação” também é baixa: 77.89% da população vive em domicílios em que
ninguém possui Ensino Fundamental completo; 31.45%, entre 15 e 24, anos não
estudam e nem trabalham e são vulneráveis à pobreza; 84.96% da população com 18
anos ou mais trabalhar de forma informal; e 50% é analfabeta e 48% considerada pobre.
O mal desempenho de Melgaço e de outras cidades no ranking produzido pelo
IDHM é comumente vinculado à corrupção ou má administração de seus governos.
Segundo o diretor da Transparência Brasil, Cláudio Weber Abramo, “quanto mais pobre
o lugar, piores são as condições de controle e maior é a chance de você ter
corrupção”101.
Por fim, a péssima colocação do Estado do Mato Grosso foi justificada pela
estagnação econômica, tida como consequência da presença de indígenas e
analfabetismo na região. A pior colocação do Estado foi a de Campinápolis, a 565 km
da capital. Para o prefeito da cidade, Jeovan Faria, uma das principais razões do baixo
índice é clara: mais de 50% da população do município é indígena. Quase 8 mil
habitantes, em sua maioria da etnia xavante, pouco se inserem e contribuem para a
economia local, além se serem pouco alfabetizados e receberem assistência à saúde de
maneira precária por parte do governo federal.102 A questão indígena aparece também
101 G1. População denuncia situação de abandono em Melgaço no Pará. 05/08/2013.Disponível em: http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2013/08/populacao-denuncia-situacao-de-abandono-em-melgaco-no-pa.html. Acesso em: 29/03/2016. 102 G1. Da economia à presença indígena, prefeitos de MT justificam baixo IDH. 30/07/2013. Disponível em: http://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/2013/07/da-economia-presenca-indigena-prefeitos-de-mt-justificam-baixo-idh.html. Acesso em: 25/03/2016.
165
no município de Uiramutã, em Roraima, com o quinto pior IDHM do país. Segundo o
secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário, Cléber Buzzato, o baixo IDH
da região é reflexo de um processo histórico de espoliação, pois a posse efetiva dos
índios é extremamente recente e há a falta de políticas públicas para a sustentabilidade
desses povos.103
No caso dos chamados “países em desenvolvimento”, portanto, no que concerne
ao cálculo do IDH, interessa para a presente análise a governamentalização destes
espaços atravessada pelas condutas individuais participativas na melhoria do ambiente
em que vivem, extrapolando o enfoque num território. E, nesse sentido, a chamada
governança global se mostra forte unidade coletiva que requer uma padronização de
condutas racionais independentemente das especificidades de um local, embora utilize
do fortalecimento de identidades como estratégia eficiente para as melhorias em
consonância com um coletivo universal.
Em abril de 2016, por exemplo, foram divulgados dados do IDH referente aos
bairros da cidade de São Paulo. O bairro Marsilac, no extremo Sul da cidade, foi
indicado como o menor IDH do ranking (0.701). Já o bairro de Moema foi considerado
o de IDH mais elevado, e muito se divulgou sobre a possibilidade de se morar em
alguns bairros do Brasil ou, mais especificamente, de São Paulo, de forma similar à vida
em muitos outros lugares do mundo. Moema estaria à frente da Noruega, por exemplo.
Possui um dos metros quadrados mais caros da capital e garante o “privilégio da melhor
qualidade de vida da cidade”104.
103 MidiaMax. Cidade indígena possui 5º pior IDH do Brasil. 30/07/2013. Disponível em: http://www.midiamax.com.br/noticias/865580-cidade+indigena+possui+5+pior+idh+brasil.html#.UhGhl5LVDzk. Acesso em: 25/03/2016. 104 O Estado de S. Paulo. “Moema: bairro é número um em qualidade de vida” in São Paulo. 18/12/2014. Disponível em: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,moema-bairro-e-numero-um-em-qualidade-de-vida,1609248. Acesso em: 13/12/2014.
166
Ao mesmo tempo, tais comparações alinham-se à chamada governança global,
que não prescinde de dados que possibilitem a avaliação e o monitoramento de aspectos
cada vez mais específicos de uma localidade.
No Estado do Piauí, por exemplo, com base na medição do IDH, o economista e
geógrafo François E. J. de Bremaeker revelou dados a partir do Índice de Carência
Humana, criado por ele. Neste, o município de Vera Mendes, a 386 km de Teresina,
ocupou o pior lugar105, o que culminou na provisão de bolsas e programas em prol da
redução do analfabetismo.
Com o intuito de elevar o IDH, o Governo do Piauí adotou o monitoramento
anual de indicadores com impacto no cálculo do IDH por meio da Fundação Cepro, para
que os programas sociais, econômicos e ambientais sejam estrategicamente executados.
O estudo tem assessoria direta do PNUD, que também propôs o monitoramento dos
novos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU (com vigência de
2015 a 2030), e também do Ipea e Fundação João Pinheiro – representantes brasileiros
no cálculo do IDH municipal (IDHM).106
Foi também firmado um termo de “cooperação técnica” entre a Fundação Centro
de Pesquisas Econômicas e Sociais (Cepro), do Governo do Estado, com o Insper
(Instituto de Ensino e Pesquisa), para o desenvolvimento de estudos sobre a situação
atual e a evolução do IDH no Piauí.107
É interessante notar como a “cooperação técnica”, conceito que se
institucionalizou no âmbito da ONU, ainda em 1959, em substituição ao de “assistência
105 Portal O Dia. Levantamento estima que o Piauí tenha mais de 900 mil carentes. 31/03/2015. Disponível em: http://www.portalodia.com/noticias/piaui/levantamento-estima-que-o-piaui-tenha-mais-de-900-mil-carentes-229710.html. Acesso em: 02/04/2015. 106 Piauí. Piauí vai monitorar indicadores que têm impactado o cálculo do IDH. 22/03/2016. Disponível em: http://www.piaui.pi.gov.br/noticias/index/id/24687. Acesso em: 23/03/2016. 107 Piauí. Piauí faz parcerias com institutos de pesquisas para estudo do IDH no Estado. 18/08/2016. Disponível em: http://www.piaui.pi.gov.br/noticias/index/categoria/2/id/27091. Acesso em: 19/08/2016.
167
técnica”, referente aos países envolvidos na estratégia do desenvolvimento (inclusive os
considerados carecedores de intervenção), pressupondo uma relação de maior
autonomia e responsabilidade, também pode ser utilizado em referência a um projeto,
programa ou objetivo local, ao envolver diversos “parceiros”, desde a sociedade civil ao
Estado, empresas, organizações, as chamadas parcerias público-privadas, etc.,
evidenciando a necessária flexibilidade e facilidade de acoplamento do IDH.
Em 2004, foi ainda sancionada a Lei federal de nº 11.709108 que “institui normas
gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da
administração pública”. Segundo o site do Governo Federal, sobre a lei das Parcerias
Público-Privadas, “em ambiente de demandas sociais crescentes e competitividade
global os governos procuram novos meios de financiar projetos, construir infraestrutura
e disponibilizar serviços de interesse social. As parcerias público-privadas (PPPs)
tornam-se instrumento moderno no esforço de unir forças dos dois setores”109. As PPPs
diferem da concessão comum110 e da privatização, em que há “transferência integral ou
definitiva de uma função, ativo ou atividade específica para o setor privado, reservando-
se ao poder público apenas o papel de regulador”111. Assim, as PPPs caracterizam-se
por compartilharem o governo dos serviços prestados com o Estado, havendo a
“indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de
polícia e de outras atividades exclusivas do Estado”112. Nesse sentido, instrumentos
108 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/Lei/L11079.htm. Acesso em: 07/11/2016. 109 Cf. Brasil. Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Disponível em: http://www.planejamento.gov.br/assuntos/desenvolvimento/parcerias-publico-privadas/referencias/copy_of_perguntas-frequentes. Acesso em: 07/11/2016. 110 “Nas concessões comuns a remuneração do concessionário advém exclusivamente das tarifas cobradas aos usuários, nas parcerias público-privadas há pagamento de contraprestação pela Administração Pública, com ou sem cobrança de tarifa dos usuários” (Cf. Idem). 111 Idem.
168
como o IDH, pensado como suporte e auxílio para estas novas formas de
compartilhamento, não apenas não se desprende do formato do Estado como o fortalece
e amplia-o aos moldes da chamada governança global.
O IDH é ao mesmo tempo um meio e um objetivo; é um instrumento e um ideal;
se refaz de forma necessariamente veloz e contínua, pretendendo-se cada vez mais
preciso; é rígido por indicar, provar e produzir verdades, e é flexível por ser altamente
ajustável às mais altas metas, que, enquanto tais, nunca são alcançadas por completo – o
que garante sua renovação contínua; requer a participação e colaboração de todos, mas
não prescinde da centralização de poder; não se desprende do formato do Estado, mas é
um instrumento próprio de uma governamentalidade planetária; por meio da
implantação de políticas sociais, alia-se a uma ética responsável de agentes-gestores; na
lógica do 0 à 1, classifica, elenca, esquadrinha; transita e conecta; introduz, induz,
incita, agrega, melhora.
Ao final de 2015, os estudos sobre o IDH referente às nações mostraram que o
Brasil perdeu uma posição no ranking planetário, mas continuou progredindo. Numa
posição denominada pelos técnicos do PNUD como “alto desenvolvimento humano”, o
Brasil caminha para a categoria de “muito alto desenvolvimento humano”. O IDH
mostra que este avanço se deve, em grande medida, aos programas de transferência de
renda para os mais pobres, como o Bolsa Família.113 A preocupação inicial de que o
programa poderia reduzir o número de pessoas dispostas a trabalhar entre os
112 Brasil. Lei federal 11.709/04. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/Lei/L11079.htm. Acesso em: 07/11/2016. 113 Mundo Lusíada. IDH prova que programas sociais são de extrema importância no Brasil. 25/08/2016. Disponível em: http://www.mundolusiada.com.br/colunas/economia-cultura-e-sociedade/idh-prova-que-programas-sociais-sao-de-extrema-importancia-no-brasil/. Acesso em: 26/08/2016.
169
beneficiários se reverteu quando o programa constatou que isso não acontecia e, pela
experiência de êxito, seu modelo pôde ser replicado em outros países pobres.114
Já no que concerne ao interior do território brasileiro, às mais ínfimas
delimitações de espaço possíveis, ao mais local e ao específico, o IDH pretende ter
eficiente capacidade de abrangência e precisão, ao mesmo tempo em que necessita de
experimentos diversos para apurar a eficácia de metodologias e a possibilidade de
reproduzi-las. Uma cidade minúscula no interior do Estado de Minas Gerais, Águas de
São Pedro, contendo 3,6 km quadrados e cerca de 3000 habitantes, grande parte de
aposentados, é o município com o segundo maior IDH do país, e primeiro maior em
educação (0.825).115 Na cidade, onde praticamente todos se conhecem, há mais ônibus
escolares do que municipais. Esta estratégia não é aplicável nas grandes cidades, mas
outras podem servir de exemplo, como o sistema de educação integral, contendo aulas
de diferentes idiomas, artes marciais, dança, artes, robótica, culinária, etc. A secretária
da escola atribui o alto desempenho revelado pelo IDH, além das cobranças e
participação da comunidade, às parcerias com instituições privadas, como o Senac, o
Instituto Tellus e a Fundação Telefônica. Segundo ela, os investimentos em educação
levaram o índice de analfabetismo do município à zero: “nenhuma criança está fora da
escola. (...) O água-pedrense pode estudar desde a creche até a pós-graduação no
município”116.
O IDH funciona também como importante ferramenta para empresas terem
maior precisão de onde e em quem investir. O Sebrae de Brasília (Serviço de Apoio às
Micro e Pequenas Empresas - DF), por exemplo, identificou 17 regiões administrativas 114 Idem. 115 El País. “Como uma cidade de 3.000 habitantes conquistou o maior IDH de educação do Brasil” in Política. 29/07/2016. Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/23/politica/1469235498_364210.html. Acesso em: 29/07/2016. 116 Idem.
170
no Estado com baixo Índice. O projeto em parceria com o Governo de Brasília pretende
inserir totens do Sebrae nestes 17 locais, contendo informações relevantes ao
microempreendedor com uma linguagem simples. Ali, o totem pode emitir o boleto de
microempreendedor individual (MEI) e permitir seja pago pela pessoa no próprio
terminal, além de poder inscrevê-la em cursos gratuitos do Sebrae. Este serviço ainda
determinou que cada administração regional tenha dois servidores para auxiliarem o uso
destes totens; ambos participarão de um curso de “agente de desenvolvimento
avançado”, identificarão os estabelecimentos com “potencial de crescimento” e os
indicarão aos profissionais do Sebrae. Segundo o Vice-governador do Estado, “essas
pessoas farão a ponte entre governo, administrações e Sebrae e serão uma espécie de
facilitadores”117. Eles também ajudam a diagnosticar as vocações econômicas de cada
região, a fim de mostrar ao governo, “ponto por ponto, o que a comunidade quer com o
desenvolvimento”, tendo como objetivo capacitar 100 mil pessoas, além dos servidores
do governo que trabalham com contas governamentais. Além disso, para uma maior
eficácia da implementação, cinco missões serão realizadas pelo Brasil para que haja
troca de experiências e conhecimento entre os estados.118
O ramo da filantropia estatal, privada ou ambos, via “negócios sociais” ou
“negócios inclusivos” [inclusive business], também se beneficia dos dados fornecidos
pelo IDH e outros índices. Segundo a “ativista da filantropia do terceiro setor”, Carol
Civita, em países onde as oscilações de mercado são ajustes cotidianos, a filantropia tem
papel determinante no desenvolvimento, além de ser instrumento para o crescimento do
IDH e, consequentemente, um impulsionador da própria economia, uma vez que “uma
117 Agência Brasília. Cooperação com o Sebrae capacitará 10 mil pequenos empreendedores. 19/06/2015. Disponível em: http://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2015/06/19/cooperacao-com-o-sebrae-capacitara-10-mil-pequenos-empreendedores/. Acesso em: 20/06/2015. 118 Idem.
171
sociedade não se mede pelo seu poder de consumo imediato (...), mas pela sua
capacidade de inserir indivíduos no crescimento como um todo, através da saúde,
educação, na capacitação profissional e na sua conscientização em relação ao ambiente
em que vive”119.
Em julho de 2014, foi oficializada a sanção do Projeto de Lei que institui o Novo
Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil e suas relações de parceria
com o Estado, em decorrência de parceria entre o Governo Federal e as organizações da
chamada sociedade civil, tidas como “agentes fundamentais para a execução de
iniciativas de interesse público e para o aprofundamento da democracia”120. Em janeiro
de 2016, foi dado início a um novo Marco Regulatório, que aprovou o papel das
Organizações da Sociedade Civil (OSCs) e dos movimentos sociais “para a redução da
pobreza, das desigualdades e para o fortalecimento da democracia no Brasil,
proporcionando um ambiente jurídico próprio às organizações e suas relações com o
Estado”121.
As OSCs empregam cerca de 2 milhões de pessoas e compõem 323 mil
organizações no país, atuando em áreas como cultura, assistência social, saúde,
educação, desenvolvimento sustentável e “defesa dos direitos de grupos historicamente
excluídos”. Elas participam da formulação e do controle social das chamadas políticas
públicas por meio de conselhos, conferências e mesas de diálogo estabelecidas pelo
Governo Federal, e estão presentes na fase de execução de políticas como o Programa 119 Carol Civita. “Filantropia é coisa séria” in Brasil Post. O1/08/2014. Disponível em: http://www.brasilpost.com.br/carol-civita/filantropia-e-coisa-seria_b_5639048.html?utm_hp_ref=pais. Acesso em 02/08/2014. 120 Secretaria de governo. Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil. Disponível em: http://www.secretariadegoverno.gov.br/iniciativas/mrosc. Acesso em: 04/02/2014. 121 Ricardo Berzoini. “A conquista do novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil” in Brasil 247. 25/01/2016. Disponível em: http://www.brasil247.com/pt/colunistas/ricardoberzoini/214515/A-conquista-do-novo-Marco-Regulat%C3%B3rio-das-Organiza%C3%A7%C3%B5es-da-Sociedade-Civil.htm. Acesso em: 26/01/2016.
172
Minha Casa, Minha Vida, Programa Um Milhão de Cisternas Rurais no Semiárido,
etc.122
No Brasil, o terceiro setor compõe-se principalmente das Fundações, como é o
caso do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) que, com estreita parceria
com as Organizações da Sociedade Civil, geralmente financia doações à ONGs e outras
entidades beneficentes, podendo também executar projetos. Segundo o site oficial do
GIFE, a rede cresceu no Brasil nos anos 1990 quando houve uma difusão dos conceitos
de “terceiro setor” e “responsabilidade social empresarial”. Fase em que também se
intensificou o debate internacional sobre a incapacidade do Estado de cumprir sozinho
suas obrigações no campo do bem comum.123 Hoje, a Rede reúne 130 associados que,
somados, investem aproximadamente 2,4 bilhões por ano na área social por meio de
projetos próprios ou de terceiros, além de promover cursos, congresso, eventos e
reuniões sobre o trabalho do Grupo, bem como pesquisas, artigos e publicações em prol
do “desenvolvimento sustentável no Brasil, por meio do fortalecimento político-
institucional e do apoio à atuação estratégica dos investidores sociais privados”.124 Se
apresenta, portanto, como um grupo de organizações que investem recursos privados
com fins públicos, e “fruto do processo de redemocratização do país, do fortalecimento
da sociedade civil e, especialmente, da crescente conscientização do empresariado
brasileiro de sua responsabilidade na minimização das desigualdades sociais existentes
no país”125.
Segundo a pesquisadora Donna M. Mertens, a Fundação Itaú Social, a Fundação
Roberto Marinho e a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal são exemplos de
122 Ibidem. 123 GIFE. Disponível em http://www.gife.org.br/. Acesso em: 20/04/2014. 124 Idem. 125 Ibidem.
173
organizações que oferecem forte suporte social, das quais fazem da avaliação de suas
atividades algo fundamental. A discussão em torno da avaliação dos investimentos faz-
se crucial, uma vez que viabiliza e põe em questão a melhor organização e aplicação do
lucro de uma fundação, empresa ou organização, sem deixar de se vincular à
responsabilidade social tanto do setor privado, quanto dos atores políticos, de
organizações não governamentais e do próprio beneficiário. Deve-se distinguir,
portanto, a melhor forma de avaliação para cada tipo de intervenção e investimento126.
Filantropia pode ser “investimento social privado” ou “empreendedorismo
social”, assim como “negócios inclusivos” dizem-se diferente de ambos por buscarem
retorno financeiro para além da “autossuficiência”, e diferente de empresas do
mainstream que adotam práticas inclusivas como estratégia secundária ou auxiliar. A
despeito da forma mais eficiente de avaliação e implementação de um negócio por uma
Fundação, empresa, Estado, ONGs, entre outras entidades administrativas, interessa
para a análise a abrangência modulável de “atores” envolvidos nestes empreendimentos,
que, em conformidade com a abordagem do desenvolvimento humano, extrapolam
lucros financeiros, pois requerem uma conduta específica na composição da governança
local em consonância com a governança global.
A economia política, como conjunto de relações contínuas entre a população, o
território e a riqueza, constituiu-se, no século XVIII, como intervenção característica do
governo, marcando a passagem de um regime dominado pelas estruturas de soberania a
um regime dotado de técnicas de governo (Foucault, 2008: 141). Se a
126 Mertens destaca quatro abordagens principais de avaliação: há aquela que acredita haver uma realidade a ser medida e portanto foca na avaliação do impacto e no uso de métodos quantitativos; em contraposição, há os avaliadores construtivistas, que priorizam o uso de métodos qualitativos; a terceira abordagem consiste no que chama de “pragmáticos”, que acreditam ser as perguntas avaliativas determinantes para a escolhas dos métodos, podendo-se lançar mão de métodos qualitativos e quantitativos. A quarta abordagem, considerada pela autora a mais transformadora, tem a avaliação como uma maneira de contribuir para mudanças sociais positivas; enfatiza as perguntas de uma avaliação como predeterminantes para o investimento social privado (Mertens, 2013: 32).
174
governamentalização do Estado permitiu sua sobrevivência, caracterizando-se por um
conjunto de cálculos e análises, e tendo por alvo principal a população, por principal
forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos
de segurança (Idem: 143), uma série de novas estratégias de avaliação e monitoramento,
que envolvem a participação e capacitação de indivíduos investidos de capital humano,
e uma série de novos conhecimentos e conexões, aliados à racionalidade neoliberal,
permitiram, conforme indicações de Edson Passetti, a redução da governamentalização
do Estado de forma diametralmente proporcional à governamentalização da sociedade
(Passetti, 2013: 19): “A regulação da população não se restringe mais à biopolítica, mas
conecta-se a uma nova produção da verdade sobre capitalismo e ambiente, de
trabalhador como empreendedor, da democracia com gestão do planeta, com
sentimentos e afeições” (Idem: 19).
Se as relações de poder que atravessam a governamentalidade enquanto
tecnologia de governo não se constituem apenas de forma descendente ou de fora para
dentro, o que instrumentos de governo como o Índice de Desenvolvimento Humano
mostram é sua habilidade em produzir e reproduzir relações de governo dos indivíduos
sobre si, como empreendedor e gestor de suas escolhas, sobre os outros e sobre o
ambiente em que se vive, por meio do monitoramento e avaliação que estes índices
produzem e pela incitação contínua na coleta de novos dados. Pela necessária
participação de todos, busca-se, cada vez mais, informações precisas sobre
determinados locais, bem como a composição de uma ampla metodologia sustentável
facilmente replicável.
175
2.3. a abordagem do desenvolvimento humano sustentável
empreendimentos sustentáveis
Em meados dos anos 1990, o sucessor de William Draper como administrador
do PNUD, Gustave Speth, trabalhou para fazer com que o desenvolvimento humano
fosse realmente um quadro operacional dos programas do PNUD. Speth graduou-se em
direito pela Universidade de Yale e seguiu em uma pós-graduação em Oxford. Em
1986, doou 15 milhões de dólares da The John D. and Catherine T. MacArthur
Foundation of Chicago para a criação do World Resource Institute, a fim de inserir
questões de longo prazo de sustentabilidade e “bem-estar humano” na agenda global.127
Sua maior estratégia, na administração do PNUD, foi dar aos escritórios de
países maior autonomia e difusão de conhecimentos locais para expandir programas
voltados à promoção do desenvolvimento humano, principalmente por meio do
estabelecimento de centros de conhecimentos locais – as chamadas “facilidades de
recursos sub-regionais” (SURFs, na sigla em inglês) (Murphy, 2006: 267).
Speth foi responsável pela introdução do conceito de desenvolvimento humano
sustentável no PNUD, ligado à criação de um ambiente favorável à expansão e
alargamento das escolhas das pessoas por meio de um maior acesso a recursos
econômicos e da promoção de suas habilidades de adquirir conhecimento, relacionando
empoderamento, igualdade de gênero, crescimento equitativo, participação e redução da
pobreza.128 O desenvolvimento humano sustentável, no posicionamento do PNUD, seria
abordado no que afetaria as pessoas tidas como “pobres e vulneráveis”, e seu foco
127 Cf. World Resources Institute. History. Disponível em: http://www.wri.org/about/history. Acesso em 08/06/2015. 128 Cf. Gustave Speth. “Capacity Development and Sustainable Human Development” in Global transformations and world futures. Yale, Yale University. Disponível em: http://www.eolss.net/Sample-Chapters/C13/E1-24-08.pdf.
176
estaria na erradicação da pobreza, na criação de empregos, na promoção de modos de
vida sustentáveis e do avanço das mulheres e na proteção e regeneração do meio
ambiente.129
Nesse sentido, o que Speth, por meio do PNUD, denominou de desenvolvimento
de capacidades, envolve muito mais do que ajudar pessoas a prover suas habilidades
técnicas e organizacionais, consistindo “também em criar segurança [safety e
securuty]130 para as pessoas que desejam realizar o progresso”131. Refere-se ao processo
de transformar crescimento em “capacidades” – que seriam habilidades, condutas,
valores, relações e comportamentos que tornam as pessoas aptas a alcançarem seus
objetivos. Refere-se, consequentemente, à construção de novos papeis sociais e
responsabilidades, uma vez que organizações, governos, assistência bilateral,
multilateral, etc., teriam como grande função a promoção de oportunidades para o bom
funcionamento das “capacidades” de cada um, a governar suas escolhas de maneira
sustentável.
Speth via explicitar-se uma nova ordem mundial, após a Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Eco-92), em 1992, no Rio de
Janeiro, ao sugerir uma nova leva de valores, novas fontes de fortalecimento
internacional e novas áreas para a liderança mundial (Speth, 1992: 145). O novo
administrador do PNUD referia-se a um novo conceito de segurança, a segurança
ambiental, destacado na Eco-92, e à necessidade de diminuir lacunas entre ricos e 129 Idem. 130 Segundo Maria Cecília da Silva Oliveira (2016: 60), a noção de segurança humana evidencia-se definida entre a segurança como safety – ligado à proteção de ameaças como a fome, a doença e repressão – e security – como a proteção frente disfunções repentinas na vida cotidiana. No discurso de Speth sobre a abordagem das capacidades, o duplo safety-security remete e reforça, também, as articulações entre liberdades e responsabilidades, uma vez que as capacidades estão atreladas à segurança advinda da agência de cada um sobre suas escolhas em seu ambiente. 131 Cf. Gustave Speth. “Capacity Development and Sustainable Human Development” in Global transformations and world futures. Yale, Yale University. Disponível em: http://www.eolss.net/Sample-Chapters/C13/E1-24-08.pdf.
177
pobres por meio de uma aceleração do desenvolvimento nos países pobres (Idem: 145).
A força que via na Eco-92 não estaria, para ele, restrita aos compromissos
governamentais, mas em uma agenda global como definidora de valores. O encontro
teria sugerido, também, uma mudança diplomática de gestão de conflitos para um
“esforço comum” após a Guerra Fria; um novo sistema de responsabilidades
internacionais por meio de acordos multilaterais.
Em artigo publicado na revista Foreign Policy do mesmo ano, 1992, logo após a
Eco-92 e pouco antes de tornar-se administrador do PNUD, em 1993, Speth comenta
sobre como a Conferência teria assinalado a emergência de um poderoso grupo na
diplomacia internacional: as ONGs – trabalhando com uma comunidade de cientistas,
especialistas, grupos de negócios e ativistas que representariam uma mesma gama de
interesses. Segundo ele, a Eco-92 também teria feito a importante nota sobre o
deslocamento da oposição entre Ocidente-Oriente, após a Segunda Guerra Mundial,
para Norte-Sul, após a Guerra Fria. Acompanhando o discurso dos “Estados falidos”,
destaca ser o Sul a “casa” do “mundo em desenvolvimento”, de virtuais conflitos
violentos, e de maior necessidade de transição para a democracia e os direitos humanos
(Speth, 1992: 146). Assim, critica a ênfase na segurança militar em programas dos EUA
e defende que, naquele contexto pós-Guerra Fria, o país deveria reinventar uma política
em prol do chamado “mundo em desenvolvimento”, junto com a criação de um
programa norte-americano voltado para o crescimento sustentável “que reflita a
generosidade do povo americano e seu desejo de ter um mundo melhor e mais seguro
para a futura geração” (Idem: 148).
Speth aponta para a preocupação sobre os combustíveis fósseis e as graves
poluições e chuvas ácidas em regiões. Cita o Painel Intergovernamental de Mudança
Climática (IPCC, na sigla em inglês), criado em 1988 pela ONU, e reitera a necessidade
178
de diminuição da emissão de gás carbônico pela metade durante os cinquenta anos que
viriam, quando ocorreria a grande expansão da economia mundial e o “mundo em
desenvolvimento” teria uma rápida industrialização. Sinaliza, ainda, para uma grande
preocupação na época: o rápido crescimento populacional e o consequente aumento da
pobreza, que causariam estresses tanto em sistemas naturais como sociais. E, partindo
deste contexto, estabelecia ser maior do que nunca o novo compromisso dos EUA com
os chamados países em desenvolvimento.
Esse interesse dos EUA, segundo Speth, teria se intensificado com a emergência
de um único mercado global e com “o mundo em desenvolvimento se mostrando como
um vasto potencial de mercado para os Estados Unidos” (Ibidem: 152). Destaca que um
terço das exportações dos EUA era destinado aos chamados países em desenvolvimento
e que quase 60% das importações da América Latina provinha dos EUA, assim como
milhões de empregos dependiam da saúde econômica do “mundo em desenvolvimento”,
e o fracasso dos países altamente endividados nos anos 1980 teriam custado cerca de 1,7
milhões de empregos aos EUA.
Em suas palavras, deixava claro, portanto, uma nova oportunidade, bastante
segura, de investimento estadunidense: “iniciativas dos EUA de ajudar os países em
desenvolvimento criarão novos mercados, trarão novos empregos e oportunidades
econômicas para os EUA” (Ibidem: 152). Os interesses políticos e em segurança dos
EUA, segundo sua argumentação, dependeriam, em grande medida, de sua boa relação
com os países da África, Ásia e América Latina, e do progresso dos mesmos, a serem
alcançados por meio da cooperação como parte das diretrizes políticas de promoção do
desenvolvimento sustentável, uma vez que “Os Estados Unidos precisam da cooperação
do mundo em desenvolvimento para proteger o seu próprio ambiente” (Ibidem: 155).
179
Nesta lógica, defendia a construção de um novo programa dos EUA ampliado a
outras áreas que afetassem os chamados países em desenvolvimento, como o acesso a
capital e tecnologia, reformas de mercado, etc. Um programa que se concentrasse na
construção de capacidades humanas e institucionais necessárias para o
desenvolvimento sustentável, devendo:
Enfatizar educação e treinamento, aumentar as capacidades de governos locais e ONGs, enfatizar o planejamento nacional e políticas de desenvolvimento, a cooperação técnica e científica, serviços de informação e monitoramento, parcerias do setor privado e projetos demonstrativos em áreas como agricultura sustentável e energia sustentável. Os Estados Unidos devem se utilizar do potencial de ONGs para transmitir cuidados ambientais básicos e instituições-chave como universidades (Ibidem: 156-157).
Em seu primeiro ano como administrador do PNUD, Speth buscou identificar o
Programa com a abordagem do desenvolvimento humano sustentável. Para que cada
país pudesse atingir esse princípio, o PNUD listou três objetivos básicos a serem
seguidos: o patrocínio do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH), servindo
como recurso para atingir essa visão; ajudar a “família” ONU a se tornar uma força
poderosa e unificada para o desenvolvimento humano sustentável – referindo-se ao
papel dos Representantes Residentes do PNUD como Coordenadores Residentes da
ONU e ao novo papel dos administradores como cadeira regular em encontros dos
líderes das agências da ONU para o desenvolvimento –; e, por fim, a formulação do uso
de recursos do próprio PNUD para proteger o meio ambiente, encorajar a chamada “boa
governança”, avançar na questão dos direitos das mulheres e promover a redução da
pobreza (Murphy, 2006: 267).
Speth esteve no cerne da abordagem dos anos 1990, de conexão da preservação
do meio ambiente com o desenvolvimento em uma agenda planetária. Ao seu lado
estava Maurice Strong, que havia sido um empresário canadense de sucesso antes de
180
liderar programas de assistência estrangeira nos anos 1960 no Canadá. Na Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, Suécia,
em 1972, Strong presidiu o primeiro dos encontros globais para o meio ambiente, e
tornou-se o primeiro diretor executivo do Programa da ONU para o Meio Ambiente
(PNUMA), criado para promover o trabalho da Conferência. Em 1987, um dos dois
grandes estudos decorrentes da Conferência foi produzido pela Comissão Independente
sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Primeira Ministra da Noruega, Gro
Brundtland, e refletia, sobretudo, a visão de Strong. O outro estudo foi produzido pelo
World Resources Institute, liderado por Gustave Speth, em colaboração com o PNUD
(Idem: 269). Ambos os estudos eram relativos ao financiamento de países do Norte na
provisão de atividades no Sul voltadas para a preservação do meio ambiente. No mesmo
ano, governos trabalharam para a realização do Protocolo de Montreal, projetado para
acabar com o uso de substâncias químicas que destroem a camada de ozônio. Em 1990,
foi adicionado ao Protocolo um “Fundo Multilateral” para auxiliar os chamados países
em desenvolvimento que haviam parado de utilizar tais substâncias e que, em 1991, o
tornou-se uma instituição permanente, juntamente com o PNUD, o PNUMA, o Banco
Mundial e a Organização da ONU para o Desenvolvimento Industrial, em torno da
“responsabilidade de governança sobre o clima”132.
Ainda durante a administração de Speth, este percebeu que um terço dos projetos
do PNUD realizados entre 1994 e 1995 relacionavam-se à chamada governança, o que
considerou ser uma conexão entre a democratização e o desenvolvimento humano
globais, decorrentes, em grande medida, do impacto do PNUD sobre as novas demandas
após o fim da União Soviética e a emergência de conflitos violentos com o fim da
132 Cf. Multilateral Fund. Disponível em: http://www.multilateralfund.org/aboutMLF/Implementingagencies/default.aspx. Acesso em 24/08/2015.
181
Guerra Fria (Ibidem: 275). Em muitos de seus discursos, reiterava essa conexão como
sendo um dos pilares do desenvolvimento humano sustentável, não sendo possível
atingi-lo “sem o governo das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas” (Speth apud
Murphy, 2006: 276).
Em 1996, o então Secretário Geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali, apresentou
o documento An Agenda for Democratization, como suplemento de dois relatórios sobre
democratização e como documento oficial da 51ª sessão da Assembleia Geral da ONU
sobre o princípio do “apoio do Sistema ONU aos esforços dos governos para promover
e consolidar as democracias novas ou restauradas” (ONU, 1996: 2).
O documento se esforça em firmar o impacto da ONU sobre o processo de
democratização de novos Estados independentes e a proteção dos direitos humanos
vinda dos departamentos, agências e programas do Sistema ONU que contribuíram para
a participação dos cidadãos, fazendo emergir uma “produtiva sociedade civil” (Idem: 2).
Chama atenção para o suporte à democratização também advindo de uma proliferação
de atores ligados por um “empreendimento global”, como Estados, ONGs – de nível
global à local –, bem como profissionais, acadêmicos, instituições privadas e grupos da
sociedade civil, e defende que a democratização é uma nova força nas questões
mundiais, podendo ser assimilada por todas as culturas e tradições – devendo toda
sociedade estar apta a formular e caracterizar seu processo de desenvolvimento próprio
(Ibidem: 4).
Assim, elenca que a democracia de cada país decida sua forma e caráter de
desenvolvimento; que a democratização se baseie em esforços de criação de uma
cultura democrática, com uma política cultural de não violência e de consenso social
sobre o processo e abordagem da política democrática; que a democratização almeje
alcançar uma balança institucional entre o Estado e a sociedade civil; e, por fim, que o
182
suporte para a democratização seja acoplado ao suporte para o desenvolvimento, a fim
de que os direitos socioeconômicos, bem como os políticos e civis, sejam respeitados
(Ibidem: 8-9). A base da democracia estaria, portanto, fundada na legitimação do
governo e na participação das pessoas em decisões que afetem suas vidas, contribuindo
para a efetividade das políticas de Estado e estratégias para o desenvolvimento.
Na mesma época, dialogando com a definição do relatório da Comissão de
Brundtland de que o desenvolvimento requer o encontro entre as necessidades do
presente sem comprometer as futuras gerações, Mahbub ul Haq defendia ser a
sustentabilidade do meio ambiente um meio e não um fim, assim como o crescimento
do PIB seria apenas um meio para o desenvolvimento humano (ul Haq, 1995: 78). Todo
o raciocínio de ul Haq concentrava-se em que a resposta às preocupações ambientais –
desde o aquecimento global até pessoas pobres que vivem em áreas consideradas
vulneráveis – não deveriam interromper o crescimento econômico, mas projetar novas
oportunidades para o desenvolvimento, em vias de consumir menos energia e focar na
preservação do meio ambiente. Defendia, neste contexto, o equilíbrio do consumo de
recursos por meio de taxas e preços específicos para cada país, bem como instrumentos
de regulação, monitoramento e penalizações estabelecidas principalmente por quadros
institucionais globais para a garantia da implementação de cotas e auditorias nacionais.
Na época, o Protocolo de Montreal já havia estabelecido tetos para emissões de
clorofluorcarbonos (CFCs) e outras substâncias prejudiciais à camada de ozônio.
Ao enfatizar que as diretrizes globais promovidas e formuladas pela ONU, e
centradas nos conceitos de segurança humana, justiça humana e segurança econômica e
ecológica, considerava a Agenda 21, documento proveniente da Eco-92, um dos
primeiros acordos rigorosos entre nações pobres e ricas e um marco para uma “nova era
de cooperação” (Idem: 92). Ao abrirem suas economias para o mercado internacional e
183
construírem uma estrutura apta à democracia, considerava que os países pobres estariam
seguindo esse caminho de mudança, no que cita como referência a Conferência Mundial
para o Desenvolvimento Social de Copenhagen, de março de 1995, como o primeiro
passo rumo à construção do desenvolvimento humano sustentável – o que sintetizaria
toda essa nova “arquitetura para a paz”.
Mahbub ul Haq concluía a construção de sua nova visão global centrada no
desenvolvimento humano remetendo ao livro de Barbara Ward, de 1966, Spaceship
Earth, em que dizia: “nossa unidade física tem ido muito à frente da nossa unidade
moral” (Ward apud ul Haq, 1995: 200). Segundo o economista, esta frase de Ward
sintetizava sua constante pesquisa sobre igualdade social, justiça humana e as lacunas
entre ricos e pobres para a sobrevivência planetária, que deveriam ser suprimidas por
meio da moral, a fim de se pensar a partir de uma unidade humana.
De acordo com ul Haq, para Ward, nem a premissa socialista de que os homens
são motivados por um idealismo não-materialista, nem a premissa capitalista de que os
homens são motivados por uma ganância egoísta, resultam em soluções eficazes. Para
Ward, a solução estaria em um novo humanismo, em que as pessoas percebessem que
elas apenas podem sobreviver conjuntamente. Assim, sem moralidade as sociedades
pereceriam (Ul Haq, 1995: 202). A partir das sugestões de Ward, o grande introdutor do
conceito de desenvolvimento humano no PNUD e criador de seu correlato Índice de
Desenvolvimento Humano, sinalizava para que o que começava a ser conhecido por
segurança humana traria muito mais do que um ambiente físico em comum a ser
compartilhado, mas seria uma grande oportunidade para a construção de um novo
edifício de civilização humana no século XXI baseado na igualdade de oportunidades e
na centralidade do ser humano (Idem: 204).
184
um projeto sustentável para o novo século
Na virada do século, ainda no ano 2000, outras institucionalizações foram
formatadas no âmbito da ONU, na esteira dos anseios pelo desenvolvimento sustentável
em âmbito planetário calcado na gestão dos conflitos depositados, principalmente, nos
países considerados “em desenvolvimento”.
Em setembro de 2000, os países-membros da ONU reuniram-se em Nova York
para adotar a Declaração do Milênio da ONU. Por meio desta, as Nações Unidas
comprometeram-se a uma parceria global para reduzir a “pobreza extrema” (conforme
expressão do PNUD), em uma série de oito objetivos, os Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio (ODM), vigentes até 2015, e dos quais todos os trabalhos do PNUD
estariam voltados.133
De acordo com o Secretário-Geral da ONU na época, Kofi Annan, a Declaração
do Milênio utilizou-se da força simbólica da virada do milênio para ir de encontro às
necessidades reais das pessoas em todo o mundo. Foram ouvidas as vozes das pessoas e,
de acordo com Annan, as opiniões dos dirigentes mundiais e Chefes de Estado sobre os
desafios a serem enfrentados convergiram de maneira impressionante (ONU, 2000).
Segundo o Secretário-Geral, além dos objetivos elencados, “pediram o reforço das
operações de paz das Nações Unidas para que as comunidades vulneráveis possam
contar conosco nas horas difíceis. E pediram-nos também que combatêssemos a
injustiça e a desigualdade, o terror e o crime, e que protegêssemos o nosso patrimônio
comum, a Terra, em benefício das gerações futuras” (Idem).
133 Os ODM são: 1) redução da pobreza, 2) atingir o ensino básico universal, 3) igualdade entre os sexos e autonomia das mulheres, 4) reduzir a mortalidade na infância, 5) melhorar a saúde materna, 6) combater o HIV/Aids, a malária e outras doenças, 7) garantir a sustentabilidade ambiental, e 8) estabelecer uma parceria Mundial para o Desenvolvimento. Cf. PNUD. ODM. Disponível em: http://www.pnud.org.br/ODM.aspx. Acesso em: 20/03/2016.
185
Estabeleceu-se os valores da liberdade, igualdade, solidariedade, tolerância,
respeito pela natureza e responsabilidade comum, no que se remete à adesão aos
princípios da Carta de fundação da ONU, de 1945, pela pertinência e multiplicação dos
vínculos que foram se consolidando mediante a interdependência entre as nações e os
povos (Ibidem: 1). Reitera-se a igualdade e soberania dos Estados, a resolução de
conflitos por meios pacíficos em consonância com os princípios de justiça e do direito
internacional e reitera a importância do papel central da ONU, enquanto “organização
de caráter mais universal e representativo de todo o mundo”, na gestão do
desenvolvimento econômico e social atrelado ao enfrentamento das ameaças à paz e
segurança internacionais (Ibidem: 2).
O ano de 2000 foi também proclamado pela ONU como o Ano Internacional da
Cultura de Paz, coordenado pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura). Em março de 1999 foi lançado, em Paris, o Manifesto
2000 por uma Cultura de Paz e Não-Violência, redigido por um grupo de Prêmios
Nobel da Paz134, como uma petição em vistas de alcançar 100 milhões de assinaturas até
a convocação da Assembleia Geral da ONU em 2000, quando também foi adotada a
Declaração do Milênio. A UNESCO foi responsável pela distribuição do Manifesto por
todo o planeta, lançando um apelo de cooperação à organizações e governos e de
mobilização à escolas, universidades, cientistas, políticos, jornalistas, acadêmicos,
organizações religiosas e militares, etc.135 Ao enfatizar a responsabilidade de cada um
em colocar em prática condutas que inspirem uma cultura de paz no cotidiano, o
134 Entre os primeiros signatários do Manifesto 2000 estavam Norman Borlaug, Adolfo Perez Esquivel, Michail Gorbatchev, Mairead Maguire, Rigoberta Menchu Tum, Shimon Peres, José Ramos Horata, Joseph Hotblat, David Trimble, Desmond Tutu, Elie Wiesel, Carlos F. Ximenes Belo, Nelson Mandela e Dalai Lama. Cf. Comitê da Paz. O Manifesto. Disponível em: http://www.comitepaz.org.br/o_manifesto.htm. Acesso em 08/04/2016. 135 Idem.
186
manifesto convoca a todos a contribuir – de dentro da família, do bairro, da cidade, da
região, do país – na promoção da não-violência, da tolerância, do diálogo, da
reconciliação.
A primeira década do novo milênio foi proclamada a Década Internacional da
Promoção da Cultura de Paz e Não Violência em Benefício às Crianças do Mundo. De
acordo com o documento “Cultura de paz: da ação à reflexão”, publicado pela
UNESCO em 2010, como um balanço da década,
A cultura de paz está intrinsecamente relacionada à prevenção e à resolução não violenta dos conflitos. É uma cultura baseada em tolerância e solidariedade, uma cultura que respeita todos os direitos individuais, que assegura e sustenta a liberdade de opinião e que se empenha em prevenir conflitos, resolvendo-os em suas fontes, que englobam novas ameaças não militares para a paz e para a segurança, como a exclusão, a pobreza extrema e a degradação ambiental. A cultura de paz procura resolver os problemas por meio do diálogo, da negociação e da mediação, de forma a tornar a guerra e a violência inviáveis (...). No mundo interativo, tudo é uma questão de conscientização, mobilização, educação, prevenção e informação de todos os níveis sociais em todos os países (...). Para a UNESCO, paz não é meramente ausência de guerra (...) (UNESCO, 2010:11-12).
Ao final do documento, são apresentadas sinopses dos fóruns realizados pelo
Comitê da Cultura de Paz, coordenado pela Associação Palas Athena em parceria com a
UNESCO. Nestes, um dos pilares que se mostra fundamental para a construção
estratégica da cultura de paz é a resiliência, como instrumento de prevenção e redução
de vulnerabilidades, principalmente ligada às práticas pedagógicas e políticas relativas à
chamada primeira infância.
Ao final da década de 1990, o termo vulnerabilidade aparece, em seu uso mais
recente, em uma pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) que
objetivava traçar estratégias para a redução da pobreza, sendo imediatamente
incorporado como referência nas áreas de estudos sobre a violência por pesquisadores
187
da América Latina (Oliveira, 2007: 155). Em 2000, o termo é utilizado conceitualmente
na criação de um sistema de indicadores, pela Fundação SEADE (Fundação Sistema
Estadual de Análise de Dados): o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS). No
mesmo ano, é também criado o Índice de Vulnerabilidade Juvenil (IVJ) pela Secretaria
Municipal de Cultura de São Paulo, no âmbito do Projeto Fábrica de Cultura, com o
intuito de mapear áreas passíveis de intervenção no município (Idem: 156).
Em 2008, o Índice de Vulnerabilidade Juvenil foi redimensionado como Índice
de Vulnerabilidade Juvenil ajustado à Violência, desenvolvido pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública e pelo Ministério da Justiça.
Segundo o relatório “Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e
Desigualdade Racial 2014”, derivado do projeto de cooperação técnica entre a
Secretaria Geral da Presidência da República e a UNESCO, intitulado
“Desenvolvimento da Democracia Participativa por meio da especialização das Políticas
Públicas de Juventude e dos Mecanismos de Participação Popular”, este Índice
renovado aufere a violência entre os jovens, a frequência escolar e situação de emprego
e a pobreza no município (Brasil, 2015). De forma complementar, funciona um segundo
conjunto de indicadores que considera “o risco relativo de jovens negros e brancos
serem vítimas de assassinatos” (Idem: 11). De acordo com o próprio relatório, este outro
índice “tem por objetivo gerar insumos e indicadores para a formulação e
implementação de políticas públicas que levem em consideração a incorporação de
estratégias de prevenção e enfrentamento das altas taxas de violência observadas no país
contra adolescentes e jovens entre 12 e 29 anos de idade, em especial jovens negros”
(Ibidem: 11).
Em uma perspectiva libertária apartada da lógica das responsabilidades, Salete
Oliveira situa o termo “resiliência” como proveniente da física, no início do século XIX,
188
indicando a capacidade de um material de deformar-se e retornar ao seu estado original
(Oliveira, 2012: 106). A pesquisadora chama atenção para um deslocamento deste
conceito na biopolítica, como medo-contágio-risco, para uma nova combinação, após a
Segunda Guerra Mundial, que seria resiliência, vulnerabilidade e proteção (Idem: 111).
Oliveira atenta para que, naquele período, a resiliência estava atrelada ao que era
construído como “situações de risco” e, depois, “condições adversas”, acompanhando
os efeitos da guerra e abarcando a questão da sobrevivência daquele que é capaz de
superar sua própria condição e desenvolver-se (Idem: 112). De acordo com a
pesquisadora, um deslocamento importante ocorreu no que concerne à construção da
resiliência como sinônimo de invulnerável para, mais tarde, ser revista como adjetivo
para o vulnerável que é capaz de revestir-se de mecanismos de proteção (Ibidem: 112).
Este deslocamento é de crucial importância para a presente análise, na tentativa
de expor, de forma mais adensada no próximo capítulo desta dissertação, como a
seletividade penal opera atualmente pelo planeta, combinando políticas alternativas e
jurisdições, a participação de todos com foco na inovação e a ampliação e
fortalecimento dos mecanismos estatais, menos por medidas repressivas e mais por
práticas de inclusão e proteção dos vulneráveis como potenciais criminosos. Segundo
Oliveira,
Agora se investe no governo do planeta, também, enquanto restauração do vivo frente à iminência ou consecuções de sua degradação, que se inicia pela prerrogativa da sobrevivência; neste caso, a resiliência articula-se de forma indissociável ao conceito de vulnerabilidade e adversidade e se mostra como um elemento imprescindível ao lado de sustentabilidade, promovendo adaptações, mais próximas de adequações e simultâneos apaziguamentos (Ibidem: 108).
Por sua vez, a resiliência é apresentada pelo PNUD como forma de superação de
grupos considerados vulneráveis, indicando novos contornos da cultura do castigo
189
calcada na disponibilidade para a obediência. Diante da tentativa de aproximar
resiliência e resistência, Oliveira evidencia que, a primeira é radicalmente oposta às
resistências, uma vez que, “como plasticidades amorfas e modulares, não suportam
fissuras” (Ibidem: 107). Algo que fica claro no discurso do próprio PNUD e em seus
esforços pela utopia da segurança e prevenção de vulnerabilidades alinhadas ao
investimento na obediência desde o útero materno. Segundo Oliveira, há “uma relação
recíproca atual de sustentabilidade de novas configurações de governos, que se
estabelece a partir de um tríptico: desenvolvimento da primeira infância,
desenvolvimento humano e promoção de capital humano” (Oliveira, 2016: 35). A
resiliência, neste contexto, também, teria possibilitado o deslocamento da “situação de
risco” para a condição de vulnerabilidade (Idem: 39).
O tema do RDH global do PNUD de 2014 foi “Sustentar o Progresso Humano:
Reduzir as Vulnerabilidades e Reforçar a Resiliência”. Neste, a relação entre
vulnerabilidade e resiliência se dá por meio de três grandes áreas: prevenção – dos
choques financeiros, climáticos, ligada ao desenvolvimento na chamada primeira
infância, às políticas macroeconômicas e à coesão social; promoção – de capacidades,
como prestação universal de educação e saúde, pleno emprego, promoção da igualdade
de gênero e grupo, instituições com capacidade de resposta, preparação para catástrofes;
e proteção – por meio da garantia de oportunidades de escolhas, da criação de empregos
e das competências, do combate à discriminação e da recuperação de crises e conflitos
(PNUD, 2014b: 26).
Na perspectiva do PNUD, pessoas pobres são inerentemente vulneráveis por lhes
faltarem “capacidades básicas suficientes para o exercício da sua agência humana”
(Idem: 19). Assim como as crianças, que constituem o foco primeiro da construção da
resiliência, de modo a impedir perturbações futuras. Logo, nesta lógica, conforme Mary
190
Young136 para o RDH, crianças pobres “são ainda piores nos resultados da educação,
saúde e nutrição”, uma vez que:
A pobreza se correlaciona fortemente com resultados negativos a curto, médio e longo prazo, tais como taxas de mortalidade infantil elevadas e desnutrição, baixa escolarização e realização, a prevalência de doenças infecciosas e crônicas na infância e na idade adulta, as taxas de desemprego mais elevadas, ao comportamento criminoso e muitas outras consequências sociais indesejáveis (Young apud PNUD, 2014b: 3 – grifos meus).
A resiliência é importante no que concerne ao aperfeiçoamento da conduta
referente à abordagem das capacidades humanas, disseminada necessariamente desde
cedo como forma de redução de vulnerabilidades futuras, de forma intrínseca ao
fortalecimento do Estado e suas instituições. Nesse sentido, como estratégia de
prevenção, a resiliência evidencia-se como instrumento eficiente na disseminação de
uma certa conduta dos indivíduos atrelada ao governo do ambiente, extrapolando uma
relação apenas de contenção e gestão de riscos de desastres ambientais.
De acordo com a atual administradora do PNUD, Helen Clark (desde 2009), o
conceito de resiliência, como é entendido na área da psicologia, é um processo de
transformação que se baseia na força inata dos indivíduos, suas comunidades e
instituições para que se previna e amenizem os impactos e choques de qualquer
natureza.137 Para Clark, o PNUD entende a resiliência como um processo para além da
adaptação:
A prioridade deve ser a prevenção complementada por esforços explícitos para reduzir as vulnerabilidades sociais e um compromisso para manter a integridade das comunidades, instituições e
136 Mary Eming Young é PhD em desenvolvimento infantil pela Universidade de Harvard. Foi especialista sênior em Desenvolvimento da Primeira Infância do Banco Mundial e responsável por grande parte de suas publicações. Ver: Young, 2010. 137 Clark, Helen in UNDP. Helen Clark: Putting Resilience at the Heart of the Development Agenda. 16/04/2012. Disponível em: http://www.undp.org/content/undp/en/home/presscenter/speeches/2012/04/16/helen-clark-putting-resilience-at-the-heart-of-the-development-agenda. Acesso em: 27/05/2016.
191
ecossistemas. Estes são os alicerces da resiliência. Desenvolvimento sustentável baseado na resiliência também invoca o agenciamento de pessoas, instituições e sistemas. Ele clama para o desenvolvimento da agência ou da capacidade dos pobres para superar as suas condições.138
Para o reforço da resiliência, investe-se, portanto, em uma cultura empreendida
de capacitação e mobilização das pessoas que respondam, também, a um compromisso
estratégico e contínuo do PNUD em países considerados “em desenvolvimento” para
que se tornem cada vez mais resilientes e um ambiente não favorável à vulnerabilidades
e proliferação de “entidades criminosas”.139
Assim, se muitas vezes a resiliência é atrelada à redução de risco de desastres
ambientais, investe-se, também, na construção de sujeitos vulneráveis, devendo se
empoderar como cidadão participativo no governo, monitoramento e avaliação conjunta
de seu ambiente. Alguns exemplos podem ser encontrados em projetos, campanhas e
prêmios referentes à resiliência de cidades140, principalmente vinculados à promoção
dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU (ODM – 2000-2015).
Em 2012, foi divulgado o relatório “Como Construir Cidades Mais Resilientes –
Um Guia para Gestores Públicos”141, pelo Escritório da ONU para Redução de Riscos
de Desastres (UNISDR, na sigla em inglês), como uma contribuição à Campanha
Global da ONU “Construindo Cidades Resilientes”, de 2010 a 2015. No prefácio do
Relatório, consta que as cidades são os motores do crescimento e da dinâmica nacional,
a partir de seus sistemas de governança e capacidades e que, no decorrer da história,
138 Idem. 139 Ibidem. 140 Ver: BRASIL. Construindo Cidades Resilientes.Disponível em: http://www.mi.gov.br/web/guest/cidades-resilientes. Acesso em 28/06/2016; UNISDR. Making Cities Resilient: My City is Getting Ready. Disponível em: http://www.unisdr.org/campaign/resilientcities/. Acesso em 28/06/2016. 141 Disponível em: http://www.unisdr.org/files/26462_guiagestorespublicosweb.pdf. Acesso em 17/04/2016.
192
desastres têm interrompido a vida em áreas urbanas.
O Relatório fornece um quadro geral de boas práticas para a redução de riscos de
desastres, que já foram aplicadas em diferentes cidades. Porém, estabelece-se que o
desastre não é natural; os fatores de risco expõem as pessoas e bens a ameaças de
possíveis desastres e a vulnerabilidades, mas estes fatores não são estáticos e podem ser
prevenidos de acordo com as capacidades institucionais e individuais em enfrentar e/ou
agir em função da redução do risco (UNISDR, 2012: 8).
Assim, reforça-se uma ética responsável a fim de gerir riscos por meio de
padrões de segurança de forma atrelada ao empoderamento dos cidadãos para a
participação no planejamento e governança conjunta de sua cidade e na construção da
resiliência às mudanças ambientais, que não se restringem à ecologia. Esta campanha
faz parte da agenda global do Quadro de Ação de Hyogo142 2005-2015 “Construindo a
resiliência das nações e comunidades frente aos desastres”, que guia as chamadas
“políticas públicas” nacionais e internacionais, abordando os papeis dos estados,
organizações e chamando à participação a sociedade civil, a academia, organizações
voluntárias e iniciativa privada (Idem: 12). De acordo com o relatório, a participação
deve ser estabelecida mediante uma “descentralização do poder” e alocação de recursos
para que todos possam ser responsáveis pela garantia da resiliência.
A resiliência mostra-se como produtora de condutas específicas, articulada à
situações de adversidade, que sustentam o a abordagem do desenvolvimento humano
sustentável como garantia de um ambiente seguro que não favoreça a proliferação de
142 O Quadro de Ação de Hyogo foi adotado pela Assembleia Geral da ONU para 2005-2015 e aprovado por 168 países após o tsunami do Oceano Índico. De acordo com o Escritório da ONU para a Redução de Risco de Desastres, o Quadro é o instrumento mais importante para a implementação da redução de riscos de desastres que adotaram os Estados Membros das Nações Unidas, e seu objetivo geral é aumentar a resiliência das nações e das comunidades frente aos desastres ao alcançar uma redução considerável das perdas que ocasionaram os desastres, tanto em termos de vidas humanas quanto aos bens sociais, econômicos e ambientais das comunidades e dos países. Cf. UNISDR. Hyogo Framework for Action (HFA). Disponível em: https://www.unisdr.org/we/coordinate/hfa. Acesso em: 18/04/2016.
193
vulnerabilidades. A resiliência evidencia-se, atualmente, como importante forma de
contenção de possíveis resistências, ao se constituir como facilmente modulável em
diferentes âmbitos da vida no planeta. Está atrelada ao ambiente em que se vive,
abrangendo, da redução de riscos de desastres ambientais, infraestruturas das cidades, à
saúde, à psicologia, à psiquiatria e à mediação de conflitos. Diz respeito ao governo das
condutas, de forma descendente e também ascendente. Transita facilmente por todos
aqueles que se disponibilizam a governar a si para governar aos demais,
independentemente da posição social, política, econômica que se está situado.
A resiliência mostra-se como um instrumento-chave na orientação das chamadas
“políticas públicas” na construção de uma cultura de paz atrelada às novas formas de
segurança cada vez mais íntimas às condutas individuais. Em sua flexibilidade, opera
de forma eficiente a partir da conexão entre os indivíduos e o ambiente em que se
encontram, lançando mão de penalizações que visam a restauração das chamadas
vulnerabilidades, com foco em crianças e jovens. O próximo capítulo desta dissertação
buscará situar esta relação e funcionamento por meio de tentativas táticas locais
implementadas pelo PNUD.
Nesse sentido, a Justiça Restaurativa, introduzida no Brasil pelo PNUD e pela
Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça no início dos anos 2000,
será analisada enquanto forma tida como alternativa de responder aos considerados
crimes em sua complementariedade intrínseca ao sistema penal, como também enquanto
política social e metodologia de redução de vulnerabilidades. Aliada ao IDH como
eficiente orientador para a seletividade penal, a Justiça Restaurativa compõe a busca
pela governança local em consonância às estratégias globais da ONU para a construção
de um ambiente seguro, oportuno e conveniente ao desenvolvimento humano
sustentável, sem abrir mão dos castigos, da centralização do poder e autoritarismos
194
conjugados de forma inerente à democracia na perpetuação de sua própria abordagem
lógica de vida.
195
3. RESILIÊNCIA E PENALIZAÇÕES
RESTAURATIVAS: GOVERNO DOS
VULNERÁVEIS NO PLANETA
196
Nas décadas de 1940 e 1950, do esgotamento do café nas vilas do Espírito Santo
e a expansão migratória para a capital do estado decorreu uma massiva industrialização
de Vitória e planos urbanísticos aliados à emergência das grandes empresas. Naquele
momento, a região hoje conhecida como Grande São Pedro, no noroeste do estado, na
qual comunidades de pescadores viviam e produziam a partir dos vastos manguezais ali
presentes, recebeu muitos migrantes rurais, imigrantes, dentre muitas outras pessoas que
foram expulsas de suas casas devido aos novos empreendimentos.
Décadas mais tarde, as tentativas de territorialização e urbanização da área por
parte do governo do estado e a criação de “áreas naturais protegidas” acarretaram na
reestruturação do solo, na devastação do mangue e na miséria e aumento de confrontos
e disputas entre os que ali viviam. Os manguezais, considerados áreas insalubres e focos
de doenças pelos planos urbanísticos e políticas sanitaristas (Botelho, 2011: 112),
transformaram-se em depósitos de lixo advindo da grande metrópole, tornados renovada
fonte de renda e alimento.
Ao final dos anos 1980, após diagnóstico da Prefeitura Municipal de Vitória de
que as áreas naturais não dispunham mais de capacidade de auto-recuperação, e ações
populares principalmente reivindicando moradia, adotou-se a Política de Inversão de
Prioridades, com o objetivo de oferecer melhorias à denominada população e ao
chamado meio ambiente. Iniciou-se a implementação de investimentos em infra-
estrutura, “conscientização dos moradores para a preservação do mangue”,
“participação e organização das comunidades no processo de urbanização das áreas”,
etc. Anseios dos moradores por “qualidade de vida” foram aclamados e ganharam
amplitude com incontáveis programas sociais, culturais e de segurança, pautados em
gestão participativa, protagonismo comunitário e empoderamento social pela busca por
identidades e memórias da região.
197
A segurança da região, inicialmente contra a sua ocupação “desordenada”,
acarretou na queima de moradias e muitas mortes perpetradas pela polícia. Atualmente,
a transmutação da luta pela sobrevivência na “luta por urbanização” alinha-se aos
moldes de gestão compartilhada da segurança. Desde 2010, a Polícia Militar age na
região de São Pedro priorizando a prevenção à repressão, articulada às políticas sociais,
por meio do projeto Territórios da Paz, implementado em 2010 com apoio do PNUD,
do Governo Federal e da Defensoria Pública do Estado. A diminuição dos denominados
índices de criminalidade, após o lançamento do projeto, é considerada fruto de um
conjunto de ações que extrapolam o mérito da Polícia Militar, ou polícia comunitária,
ou polícia interativa, ou política restaurativa.
Mas este é apenas um exemplo dos incontáveis projetos e programas permeados
por táticas policiais e de segurança compartilhadas por órgãos estatais, organizações
internacionais, institutos, fundações, universidades, empresas, comunidade e sociedade
civil articulados às diretrizes internacionais para uma boa governança global. E se há
um investimento monumental em incrementar os índices para contabilizar de forma
otimizada a violência é porque as torturas, mortes e massacres em nome da segurança
são inestancáveis, e porque os investimentos sociais também em segurança são
incontáveis e extrapolam quesitos financeiros na lucratividade da gestão da miséria. Em
ambos os casos os alvos são os mesmos, e precisamente porque segurança sempre foi
sinônimo de busca pela paz, como exercício de mortificação da vida, ou, retraduzindo
para os dias atuais, entregar-se ao apanágio da qualidade de vida é a forma mais segura
de mortificar a vida em paz.
***
198
O último capítulo desta dissertação expõe a identificação, seleção e aplicação de
projetos voltados ao desenvolvimento e restauração de regiões consideradas focos de
vulnerabilidades ao redor do planeta. Com base no IDH e suas derivações ou ajustes
acopláveis a ele, não apenas na identificação desses ambientes selecionados, opera-se
pelo monitoramento e avaliação contínuos das atividades realizadas alinhadas às metas
e diretrizes globais voltadas à construção de um ambiente planetário seguro. A
produção de uma conduta resiliente, para o PNUD, possibilita a construção de um
ambiente resiliente e, portanto, seguro para o desenvolvimento sustentável. A noção de
ambiente não está estritamente relacionada à ecologia ou ao ecossistema, mas à
produção de condutas individuais conectadas à governamentalidade planetária, que
requer a gestão compartilhada, principalmente entre Estados, ONGs, sociedade civil,
institutos, fundações, universidades, etc., muitas vezes orientados ou via cooperação
técnica de programas como o PNUD.143
Os anos 1990 foram marcados pela justificativa de planejamento preventivo de
operações e intervenções militares da ONU de construção e manutenção da paz nas
chamadas “áreas de crise”, acompanhada de um intenso discurso em torno dos
denominados Estados falidos, situados principalmente na África. Interessa destacar,
agora, sobre a estratégia de construção da segurança em âmbito planetário, os
deslocamentos, redimensionamentos e especificidades de suas táticas. Sobretudo em
relação às chamadas intervenções, estas parecem ter sido modificadas e sofisticadas pela
disseminação de condutas responsáveis e resilientes em regiões com perfil delimitado e
bastante especificado. No entanto, mesmo que a implementação de programas e projetos
em prol da construção e manutenção da chamada cultura de paz leve em conta as
143 Ver item 1. 2. desta dissertação, em que se apresenta a emergência da ecopolítica e seus deslocamentos que ultrapassam a biopolítica da população.
199
especificidades locais para melhores resultados, há um expressivo interesse na
replicação de modelos ajustáveis a outros ambientes.
A segurança humana, como abordagem que estabelece uma missão
compartilhada de garantia de estabilidade que não prescinde da centralidade do Estado e
da boa governança interna de cada um, também é capaz de desdobrar-se em vista de
alvos mais delimitados. Este capítulo expõe o que está em jogo na metodologia da
chamada segurança cidadã, como construção de uma cidadania integral para a
prevenção e controle da violência, referente à América Latina. Porém, a exposição do
material da pesquisa se restringirá a mostrar um programa muito pontual, em uma
região da capital Vitória, no Espírito Santo. Optou-se por esta delimitação frente ao fato
de se estar diante de um investimento sem precedentes, não em termos financeiros, mas
pela elaboração de laboratórios da paz, que expandem e ampliam penalizações, não
abrindo mão da cultura do castigo e de seus alvos iniciais: crianças e jovens
considerados vulneráveis.
O IDH, nesse sentido, não funciona apenas para identificar focos passíveis de
aplicação de programas, como fomenta processos que requerem a participação de todos
em prol da melhoria de suas inúmeras e ajustáveis variáveis referentes, desde à menor
região possível, em termos geográficos, até aos Estados nacionais, compondo um
prognóstico geral para construir e indicar as maiores vulnerabilidades do planeta a
serem superadas. No caso do Brasil e, mais precisamente, em relação à experiência de
cooperação técnica do Programa Conjunto da ONU coordenado pelo PNUD, Segurança
com Cidadania: prevenindo a violência e fortalecendo a cidadania, com foco em
crianças, adolescentes e jovens em condições vulneráveis nas comunidades brasileiras,
interessa deter-se na análise das implicações punitivas da Justiça Restaurativa, que o
PNUD também esforçou-se para introduzir no Brasil no início dos anos 2000, como
200
tentativa de pacificação de conflitos por visar fortalecer o papel da comunidade como
árbitro das relações sociais.
A Justiça Restaurativa, tida como forma alternativa de responder aos
considerados crimes, buscando a restauração da vítima e do infrator, se faz presente em
conselhos tutelares, escolas e é atualmente possibilitada pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) e pelo Estatuto do Idoso, bem como pode ser aplicado quando da
participação voluntária dos envolvidos em um considerado conflito ou crime. Porém, na
presente pesquisa, interessa mostrar seu funcionamento enquanto uma tentativa de tática
local, aliada ao IDH como produtor e disseminador de uma estratégia planetária, de
pacificação em um espaço delimitado, não restrita a um ou mais eventos, mas atuando,
preventivamente e pro-ativamente, de forma resiliente, pela participação de todos na
construção de um ambiente seguro.
O primeiro movimento deste capítulo, “da restauração à segurança cidadã”,
busca evidenciar um refinamento de conceitos referentes aos prognósticos do PNUD
por meio da exposição de três documentos. O primeiro é o Relatório de
Desenvolvimento Humano (RDH) de 2004 referente à América Latina, que reforça a
importância da cidadania como conduta fortalecedora e integradora da governança
democrática na região, marcada por altos níveis de pobreza e violência elencados pelos
índices. No ano seguinte, 2005, o PNUD publica a coletânea de artigos Justiça
Restaurativa, documento importante que marca o interesse do Programa na introdução
desta prática no Brasil, como orientadora de relações específicas de governo
comunitárias, centradas no exercício da cidadania, com foco na prevenção. O terceiro
documento analisado é o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) de 2013-2014,
também referente à América Latina, que avalia como sendo a melhor abordagem à
região a chamada segurança cidadã, por vincular de forma mais acabada a conduta
201
segura de cada um com a segurança de um ambiente, sem descartar práticas tidas como
alternativas que visem, não apenas a prevenção como a pacificação pós-conflito.
O segundo movimento, “um programa conjunto e a construção de uma
seletividade”, apresenta a implementação do Programa Conjunto da ONU Segurança
com Cidadania em uma região situada no noroeste de Vitória (ES), como processo
contínuo de restauração e pacificação de um ambiente considerado inseguro. O
Programa Conjunto aglutina a gestão compartilhada entre a comunidade, suas lideranças
e moradores, empresas, policiais, inúmeros assistentes e especialistas das Secretarias
Municipais, Estaduais e do PNUD e outras cinco agências da ONU. Funciona de forma
aliada aos valores da Justiça Restaurativa como tentativa tática do PNUD que atua nesta
região identificada como vulnerável. A Justiça Restaurativa, por sua vez, também
chamada micro-justiça, mostra-se eficiente ampliadora de penalizações e
diametralmente oposta à propostas abolicionistas penais de supressão do campo de
atuação do sistema penal.
No último movimento do capítulo, “reinserção da guerra e produção da paz
social”, serão trabalhados alguns conceitos específicos da Justiça Restaurativa em torno
da tentativa de uma pacificação. Junto à perspectiva de Pierre-Joseph Proudhon,
apartada da síntese e da impossibilidade da pacificação, e à perspectiva da guerra como
continuação da política, sugerida por Michel Foucault, busca-se mostrar que esta paz,
como sinônimo de segurança, não pretende estancar e nem abolir a violência, mas
disseminar relações de governo e de poder que ampliam penalizações. Por fim,
proponho pensar a resiliência como o grande conceito encontrado, trabalhado e aliado à
racionalidade neoliberal na eficiência de contenções de possíveis resistências. Em sua
flexibilidade intrínseca, a resiliência está inserida nas mais diversas áreas científicas e
encontra na área do desenvolvimento de crianças terreno fértil para a aplicação de
202
pesquisas e testes que visem a disseminação de condutas apaziguadas o mais cedo
possível. A resiliência evidencia-se como grande aposta da ONU e permeia fortemente
seus mais novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), lançados em 2015.
Ajusta-se facilmente a toda a área de abrangência requerida pela ONU e funciona de
modo a justificar a própria existência da atuação deste Sistema que garante sua força,
primordialmente, por meio da disseminação de condutas resilientes.
3. 1. da restauração à segurança cidadã
investimentos em cidadania na América Latina
O Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) regional de 2004 para a
América Latina teve como tema: “Rumo a uma democracia de cidadãs e cidadãos”
(PNUD, 2004). Reunindo o resultado de atividades conjuntas e estudos que abrangem o
período de 2001 a 2004, o Relatório foi redigido e organizado por uma grande equipe de
analistas, presidentes e ex-presidentes, líderes políticos e sociais e cidadãos
entrevistados em 18 países. É fruto do Projeto sobre o Desenvolvimento da Democracia
na América Latina (PRODDAL), levado pelo PNUD com apoio de governos,
instituições e da União Europeia. Na época, as metas da ONU vigentes centravam-se
nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM – 2000-2015), em que prevalecia
a perspectiva de pacto global entre países ricos, de um lado, e países pobres, de outro, e
o entendimento de uma oportunidade provida pelos ODM para que os países latino-
americanos impulsionassem seu desenvolvimento social e econômico. Nesse sentido, o
RDH de 2004 é entendido pelo PNUD como estratégia global de fortalecimento da
203
chamada governabilidade democrática e do desenvolvimento humano na América
Latina (Idem: 25).
O Relatório comemora duas décadas de democracia nestes países, porém aponta
para uma “crise social” intensa, em que persistiriam desigualdades, pobreza,
crescimento econômico insuficiente e insatisfação – ponto elencando como crucial por
inviabilizar o equilíbrio democrático e o pleno exercício de cidadania. A essa
insatisfação, somam-se frustrações de grupos “tradicionalmente excluídos” que,
segundo o Relatório, ao não encontrarem acesso ao poder tradicional para a resolução
de seus problemas, manifestam-se por meios alternativos e, muitas vezes, violentos. O
grande desafio para a efetiva consolidação da democracia atrelada à cidadania é a busca
de soluções pela participação de todos os “atores sociais” – incluindo polícia,
especialistas e sociedade civil – na luta contra a corrupção e má administração de
governos e empresas (Ibidem: 16).
O Relatório lança mão do Índice de Democracia Eleitoral (IDE) e do Índice de
Apoio à Democracia (IAD). Ao considerar como grande problema da região os altos
níveis de pobreza e a maior desigualdade do mundo, postula que a democracia implica
em uma cidadania integral de pleno reconhecimento político, civil e social, não
reduzido às eleições. Estes índices teriam detectado tendências preocupantes, uma vez
que “os grupos mais excluídos do exercício pleno da cidadania social são os mesmos
que sofrem carências nas outras dimensões da cidadania” (Ibidem: 2 – grifos meus).
Pobreza e desigualdade, portanto, impediriam o exercício da cidadania com plenos
direitos, o que, por sua vez, impede a chamada inclusão social e a consolidação de uma
democracia sustentável.
O Relatório assume um discurso de que a política está em crise devido ao seu
desequilíbrio em relação ao mercado; a uma ordem institucional que limita a capacidade
204
dos Estados de agirem com autonomia; devido ao aumento da complexidade das
sociedades não processada pelos sistemas representativos. Como resposta estratégica
para uma revalorização da política, apresenta-se o necessário fortalecimento da
participação, do pluralismo, de formas alternativas de representação que não substituam
as formais, mas as complementem, bem como o fortalecimento da sociedade civil e sua
articulação com o Estado.
Nesta perspectiva estratégica fundada nas concepções liberais de auto-
governo144, os cidadãos, mais do que “portadores de direitos e obrigações”, são tidos
como fonte e justificativa da autoridade estatal, uma vez que a democracia deve
conceber – de forma filosófica, moral e legal – o indivíduo como ser dotado da
capacidade de escolher entre opções diversas de forma responsável (Ibidem: 59). Em
uma discussão sobre direitos e capacidades como pilares da construção da cidadania, em
que o cidadão é entendido como “sujeito e ator”, “autônomo e responsável”, o PNUD
destaca a importância de “políticas que pressupõem a ação do cidadão como indivíduo,
como ator político que se expressa por meio de representantes e – nas circunstâncias
previstas – diretamente, e como integrante da sociedade, atuando em sua comunidade e
nas associações voluntárias que formam a rica trama da sociedade civil” (Ibidem: 68).
No momento da publicação do Relatório, tinha-se como grande problema o
impedimento da expansão da cidadania social, que seria, precisamente, a possibilidade
dos indivíduos de desenvolver suas capacidades, nem sempre tendo uma clara base nas
144 O relatório situa a emergência de concepções morais de “auto-governo” durante os séculos XVII e XVIII centradas na ideia de que todos os indivíduos normais são igualmente capazes de viver juntos, em contestação às concepções de moralidade como obediência (Pierre Rosanvallon apud PNUD, 2004: 60). Em seguida, argumenta-se que a democracia cidadã excede o regime político, devendo guiar-se também em direção aos direitos civis e sociais e, consequentemente, ampliar a “autonomia responsável” do ser humano dotado de sua capacidade como “ser moral” a outras esferas da vida que não apenas a política (Idem: 61).
205
constituições e legislações nacionais ou internacionais, apesar de ser tida como
componente efetivo da chamada cidadania integral.
O PNUD reitera que não há democracia sem Estado e não há desenvolvimento
da democracia sem um Estado que garanta a cidadania universal. A democracia como
valor instrumental, no âmbito do PNUD, é baseada na concepção de Amartya Sen
(1999) de que, na transição para o século XX, ela teria se expandido como valor
universal, partindo da participação e aceitação voluntárias. Neste momento, teria se
sobressaído um consenso sobre a importância de processos casuais que envolvem o
crescimento econômico intrínseco ao desenvolvimento: “políticas úteis” que incluem e
ampliam a participação cidadã no processo de expansão econômica – como a abertura à
concorrência, o uso de mercados internacionais, a oferta pública de incentivos ao
investimento e à exportação, um alto nível de alfabetização e escolarização, reformas
agrárias bem sucedidas e oportunidades sociais.
No âmbito do sistema de justiça, o fortalecimento da sociedade civil e seu
vínculo com o Estado como constitutivas da cidadania social para uma democracia
sustentável, encontra na chamada Justiça Restaurativa uma importante tentativa tática
apresentada pelo PNUD a ser introduzida na América Latina. Visando “melhorar a
distribuição” da Justiça, esta forma alternativa de justiça não substitui, mas
complementa, fortalece e amplia o sistema formal de justiça estatal. Ou seja, não há
uma tendência em questionar o sistema de justiça como tal, mas em ampliar sua área de
influência e promover a adesão voluntária das pessoas a sua forma de resolução de
problemas.
206
táticas de difusão da Justiça Restaurativa
A emergência do modelo de Justiça Restaurativa, em contraposição à concepção
formal da justiça criminal, ou modelo retributivo, remonta ao final da década de 1970,
sendo implementada e disseminada, principalmente a partir da década de 1980, em
países como a África do Sul, Nova Zelândia, Canadá, EUA, Argentina, Brasil, etc.
Na África do Sul, a Justiça Restaurativa se fez presente enquanto política de
transição após o fim do regime do apartheid. Apesar deste ter sido oficializado em
1948, a localização do país, como ponto estratégico das rotas comerciais europeias para
o Oriente, contribuiu para sua história marcada, desde o século XV – quando da
colonização pelos holandeses e britânicos –, pela escravidão e separação étnica
(Rodrigues Pinto, 2007: 393). Nos anos 1990, com a libertação de Nelson Mandela, a
legalização do Congresso Nacional Africano e a revogação das leis raciais, teve início
um processo de transição democrática no país baseado nas concepções restaurativas de
conciliação, liderado por Mandela – que venceu as eleições para presidir o governo de
transição – e conduzido moralmente pelo arcebispo anglicano Desmond Tutu.
Em 1995, após uma série de conferências e relatórios sobre as milhares de
mortes e casos de tortura durante o apartheid, o parlamento sul-africano aprovou o Ato
de Promoção da Unidade e Reconciliação Nacional, que estabelecia a Comissão de
Verdade e Reconciliação, abrangendo o período de março de 1960 – quando ocorreu um
massacre na cidade de Shaperville – a dezembro de 1993 (Idem: 404). Baseado no
conceito indígena africano de ubuntu – que seria a ideia de compartilhamento, de
pertencimento a uma comunidade – e nos preceitos cristãos em torno da ideia de perdão,
o arcebispo conduziu a Comissão aos moldes da Justiça Restaurativa. Teve como
objetivos o alcance da verdade – como esforço de construção de uma nova identidade
207
baseada em uma nova ordem moral; do perdão e anistia; e, por fim, o reconhecimento e
restauração.
Neste processo de anistia da África do Sul, os considerados culpados tiveram de
identificar-se como tais, a fim de dar início ao processo de perdão ligado à ideia de
graça cristã, e constitutivo dos valores de restauração. Segundo Simone Rodrigues
Pinto, a punição, neste caso, foi considerada de caráter moral, configurando a perda da
honra pessoal, e requereu a participação da comunidade na decisão de aceitação ou
rejeição dos que confessaram e se identificaram como culpados (Ibidem: 412). Este
processo envolveu a Justiça Restaurativa, segundo a autora, para não por em risco uma
transição pacífica e negociada, de forma a “ajudar a comunidade a criar uma história
compartilhada como base para a cooperação política futura” (Ibidem: 416).
Em outros países, como Canadá e Nova Zelândia, as tentativas de
institucionalização da Justiça Restaurativa também recorreram às práticas indígenas. O
Canadá é considerado pioneiro na conhecida prática “mediação vítima-ofensor” da
Justiça Restaurativa. Neste processo, as consideradas vítimas contra a propriedade e de
lesão corporal leve reúnem-se com os identificados como ofensores em um ambiente
mediado para a confissão por parte do ofensor e compensação à vítima (Azevedo, 2005:
141). Conforme o modelo de Kitchener, Ontário e também de Indiana, EUA, esta
prática é organizada independente e externamente ao sistema de justiça criminal formal,
porém trabalha em cooperação com ele, uma vez que o acusado assuma seu papel de
ofensor em meio ao processo penal (Zehr, 2005: 151).
Faz-se fundamental ressaltar, agora, as capturas por meio da Justiça
Restaurativa. Esta, ao tragar de outros povos práticas distintas e apartadas das
concepções ocidentais de crime, criminoso ou vítima, promove, por meio das
submissões discursivas, a pacificação de práticas avessas à linguagem penal. Povos
208
como os maori, na Nova Zelândia e os inuit, no Canadá – comumente diluídos em suas
singularidades nas denominações “indígena” ou “aborígene” – possuem outras formas
de resolver seus problemas. Muitas vezes, estes saberes sujeitados (Foucault, 2010: 8-
10), desqualificados, hierarquicamente inferiores e tidos como ingênuos na sua “falta”
de cientificidade, posteriormente mascarados em coerências funcionais, foram
adequados às práticas penais da Justiça Restaurativa. No caso dos “círculos de paz”, por
exemplo, a concepção de “família” destes povos – no mínimo distinta do modelo
familiar monogâmico burguês ocidental –, é apropriada como “família distendida” de
modo a articular-se à comunidade como árbitro das decisões, no caso da Justiça
Restaurativa.
Na Nova Zelândia, o país tornou-se mundialmente reconhecido como uma das
grandes referências da Justiça Restaurativa como modelo de construção da paz
(peacebuilding), quando na segunda metade da década de 1980 foram introduzidos
encontros restaurativos como parte do programa nacional (Froestad e Shearing,
2005:82). Em 1989, culminou na criação da Lei das Crianças, Jovens e suas Famílias,
que exigia que todos os jovens considerados infratores fossem encaminhados para os
encontros restaurativos com grupos de familiares (Marshall, Boyack, Bowen, 2005:
267). Desse modo, partindo de uma análise abolicionista libertária, a Justiça
Restaurativa configura-se como:
Conceito difuso, fundamentado na noção de comunidade e proveniente da política de prevenção geral como resposta pacificadora à guerra civil e às resistências de minorias. Sua inserção no Direito Contemporâneo, na década de 1990, como efeito da colonização criminal de práticas específicas apartadas de um olhar penal da cultura Maori na solução de seus problemas. Como programa governamental ela emerge na Nova Zelândia, em 1989, como prática apaziguadora dos protestos e revoltas Maori em relação ao tratamento criminal dirigido a suas crianças e jovens. Imediatamente ela passa a ser aplicada tanto na África como no Canadá. Do ponto de vista do sistema penal a justiça restaurativa designa um campo oposto à
209
justiça retributiva. (...) A justiça restaurativa se internacionalizou por meio de processos e programas, locais e regionais. No Brasil, foi introduzida a partir de projeto-piloto em Brasília dimensionado para Rio Grande do Sul e São Paulo. Pretende institucionalizar a criminalização ampliada e seletiva, exercitada, mais uma vez, como tribunal sobre o corpo dos jovens, agora como modulações da mediação de conflitos a partir da casa, da escola, da comunidade. A justiça restaurativa expressa a captura histórica da experimentação abolicionista entre os Maori e a tentativa de apaziguamento político do modelo conciliatório do abolicionismo penal”145.
No Brasil, em 2005, a partir de parceria entre o PNUD e a Secretaria de Reforma
do Judiciário do Ministério da Justiça, foi produzida a coletânea Justiça Restaurativa.
Pela primeira vez em língua portuguesa, a publicação reuniu artigos sobre o tema e sua
aplicação em todo o planeta. Interessa apresentar brevemente, por meio da própria
exposição dos autores reunidos, o que está implicado nesta publicação, de forma não a
avaliá-la ou perseguir sua implementação, mas tomá-la como documento relevante e
importante à estratégia geral do PNUD na composição da almejada governança global –
tida como equilíbrio ideal, universal e permanente dos fluxos políticos e de mercado em
âmbito planetário, por intermédio da tentativa de pacificação das relações sociais.
A fim de problematizá-la como tentativa-tática no âmbito do PNUD, parte-se da
noção de governo acordada aos apontamentos de Michel Foucault146, em que, mesmo
que as relações de poder e de governo direcionem-se a uma governamentalização
racionalizada no Estado, não restringem-se a uma instância suprema. Uma vez que o
exercício do poder como “condução das condutas” se dá diante de uma variedade de
possibilidades, interessa menos a submissão e mais uma oposição permanente entre
poder e liberdade como uma relação de agonismo (Foucault, 1995: 244-245), em que
ambos não são tomados como elementos puros, incontornáveis ou de dominação total
145 Cf. Nu-Sol. “Justiça Restaurativa” in Verbetes Nu-sol. Disponível em: http://www.nu-sol.org/verbetes/index.php?id=21. Acesso em: 05/09/2016. 146 Conforme exposto ao final do movimento 2.1. desta dissertação.
210
um sobre o outro. Assim, também, o termo “estratégia” é tomado não necessariamente
como forma de dominação, mas como racionalidade que se expande pelo e para além do
próprio PNUD, do Estado e seus agentes e instituições, e engloba, captura ou pretende
pacificar seus alvos e lutas pela própria participação destes. Na analítica do agonismo
do poder e da “política como guerra prolongada por outros meios”, a tentativa de
pacificação não significa a suspensão da guerra, mas a reinserção perpétua da guerra nas
relações de força em uma incitação recíproca de luta e em provocação permanente
(Idem: 245).
No caso específico do Brasil, interessa esmiuçar o que se define como a
“construção de um sistema de justiça mais acessível e apto a intervir de forma mais
efetiva na prevenção e solução de conflitos” (PNUD, 2005: 12). Faz-se pertinente
perceber a introdução da Justiça Restaurativa no Brasil como resposta e tentativa de
rever e, consequentemente, retroalimentar, a própria existência e o exercício dos
inúmeros índices que, no caso da América Latina, apontam para o que é construído
histórica e politicamente como alta violência e criminalidade, compondo um ambiente
de insegurança.
Em artigo que integra a coletânea, as autoras Silvana Sandra Paz e Silvina
Marcela Paz (2005: 125), na esteira deste discurso, apontam para os “alarmantes índices
de delinquência, que dão conta do decréscimo da qualidade de vida e a baixa taxa de
resolução judicial, o que instala um sentimento de impunidade (...)”. Porém,
argumentam que o restabelecimento e a revalidação de uma “consciência de que há
ordem” não está necessariamente na pena imposta pelo sistema de justiça estatal, mas
em novos caminhos vinculados a “movimentos participativos”. Segundo as autoras,
movimentos populares na América Latina, como o Movimento dos Sem Terra (MST)
no Brasil, grupos de foreiros, associações de vizinhos, movimentos de vítimas, de
211
minorias, do que chamam de grupos vulneráveis e movimentos religiosos, teriam sido a
base do surgimento de movimentos restaurativos com base comunitária e popular, como
uma estratégia que inclui níveis de participação de baixo para cima (Idem: 125 – grifos
meus). Enquadrada nesta busca por participação, a Justiça Restaurativa seria um
processo em que as “partes” resolvem seus conflitos priorizando sua restauração e
manutenção voltada para o futuro, em termos de efetividade de pacificação das relações
conflituosas.
A Justiça Restaurativa é considerada um sistema flexível da justiça criminal,
com condutas adequadas à variedade das transgressões e suas localidades, e
complementar ao sistema de justiça formal, também chamado de modelo retributivo.
Baseia-se, conceitualmente, num procedimento que enfatiza o consenso entre as partes
(classificadas como vítima ou infrator) mediado por membros da comunidade afetada,
especialistas, facilitadores e/ou conciliadores. Deve ser, necessariamente, um processo
voluntário e ocorrer em um “ambiente comunitário” (Ibidem: 128).
Renato Pinto – procurador de Justiça aposentado, presidente do Instituto de
Direito Comparado e Internacional de Brasília e um dos organizadores da coletânea –,
considera ser a Justiça Restaurativa fonte de renovação de esperanças diante da
ineficácia do sistema de justiça criminal e das ameaças dos modelos de desconstrução
dos direitos humanos, dando como exemplo as políticas de tolerância zero. Desse modo,
ela promove a democracia participativa na área de justiça criminal ao propor uma busca
compartilhada de restauração, ou cura, entre vítima, infrator e comunidade (Pinto,
2005: 21) de forma intrínseca aos direitos humanos, uma vez que ambos buscam “o
respeito à dignidade humana”, conforme complementa Renato De Vitto (2005: 47-48),
também organizador da publicação do PNUD. Ainda segundo este último, a correta
aplicação do modelo restaurativo – em contraposição ao modelo dissuasório e ao
212
modelo ressocializador – deve provocar uma mudança de concepção em relação ao
papel do Estado frente ao considerado crime por meio da efetiva inclusão da chamada
vítima e fortalecimento do papel da comunidade neste processo (Idem: 48). Nesse
lógica, faz-se fundamental a correta preparação de intervenções e capacitação de
técnicos e a integração do modelo com programas securitários e sociais, bem como o
monitoramento e avaliação contínuos destas práticas (Ibidem: 49). Em resumo, para a
efetivação do modelo restaurativo cabe ampliar o campo de atuação e o número de
técnicos envolvidos direta ou indiretamente com o sistema de justiça criminal.
De acordo com Jan Froestad e Clifford Shearing, a Justiça Restaurativa compôs-
se na década de 1990 como movimento social que reivindicava reformas da justiça
criminal. Segundo os autores, da necessidade de humaniza-lo nasceu o primeiro
programa de reconciliação vítima-infrator, em 1974, em Kitchener, Ontario, pela
comunidade Mennonite, que enfatizava a “mediação direta” e focava na cura de
ferimentos e assistência às consideradas vítimas (Froestad; Shearing, 2005: 81).
No Brasil, o modelo restaurativo é compatível com o sistema de justiça estatal,
desde quando o princípio da “indisponibilidade e da obrigatoriedade da ação penal
pública” flexibilizou-se com a possibilidade de suspensão da transação penal pela Lei
9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, conhecida como Lei da Penas
Alternativas). Com esta Lei, permite-se que o juiz possibilite a aplicação de pena
imediata não privativa de liberdade, e que o processo seja encaminhado a um Núcleo de
Justiça Restaurativa. A Lei abre espaço à Justiça Restaurativa, também, por meio da
suspensão condicional de processos para os considerados crimes cuja pena seja de no
máximo dois anos (Pinto, 2005: 30-31). Além desta Lei, considera-se que o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) também recomenda o modelo restaurativo, assim
como o Estatuto do Idoso, o qual prevê que penas para crimes contra idosos não
213
ultrapassem quatro anos. Desse modo, mesmo que o modelo restaurativo não esteja
previsto na Constituição como devido processo legal, ele pode ser aplicado quando da
participação voluntária dos envolvidos em um considerado conflito ou crime (Idem: 32-
33). Opera, portanto, pela captura da possibilidade de conciliação transformada em
disposição dos envolvidos em um processo alternativo, e complementar ao modelo
formal ao não abrir mão do julgamento e atribuição de culpa, crime e castigo.
No âmbito da ONU, pouco antes da publicação do PNUD sobre Justiça
Restaurativa voltada à América Latina e ao Brasil, a Resolução do Conselho Econômico
e Social das Nações Unidas (ECOSOC) de 13 de agosto de 2002147 recomendou o
modelo de Justiça Restaurativa para todos os países. Conforme ressalta o autor do
artigo, Renato Pinto, o processo restaurativo é validado apenas quando o acusado
assumir autoria e houver consenso entre as partes (Ibidem: 24).
Assim, a Justiça Restaurativa se faz complementar, fortalecedora e, para o
PNUD, é inclusive uma evolução do sistema jurídico penal formal. Ela não apenas não
rompe com os papeis “vítima-ofensor” como a faz constitutiva de seu processo de
restauração por meio da identificação e julgamento sob estas representações. Além
disso, na perspectiva do PNUD, mecanismos de ressocialização, prevenção,
humanização e empoderamento são expostos como instrumentos não punitivos, apesar
de tornarem o processo penal mais eficiente.
O mais importante a se destacar, nesse sentido, diz respeito ao fato da Justiça
Restaurativa não impedir a entrada e a inclusão de um considerado criminoso no
sistema penal, uma vez que é estabelecida, primordialmente, quando aquele confessa
seu ato identificado como infracional ou crime e se assume como culpado. A
“evolução” da Justiça Restaurativa em relação ao sistema jurídico penal formal deve-se
147 Disponível em: http://www.justica21.org.br/j21.php?id=366&. Acesso em: 06/09/2016.
214
à tendência de que os cidadãos se incluam no processo de resolução de conflitos de
modo a auxiliar o Estado – relação que aparece de forma mais clara no artigo de Philip
Oxhorn e Catherine Slakmon (2005) sobre a construção da sociedade civil através da
Justiça Restaurativa no Brasil.
Segundo estes últimos – respectivamente, diretor do Instituto de Estudos de
Desenvolvimento Internacional da Universidade de Harvard e Cientista Política da
Universidade de Montreal –, o controle efetivo do crime, por meio de sua prevenção,
requer a cooperação entre a polícia e o sistema judiciário, por um lado, e entre a polícia
e as comunidades, por outro, permeados pelo Estado, instituições e sociedade civil
fortes que impeçam a falta de confiança neles mesmos e a consequente proliferação de
insegurança por meio de políticas repressivas que desrespeitem os direitos civis (Idem:
187).
A Justiça Restaurativa aparece como tentativa de fortalecimento do Estado e de
sua sociedade civil pelo que chamam de aumento de sinergia entre estes, como solução
para a violência e exclusão social ao capacitar e fomentar a participação de cidadãos na
resolução dos considerados conflitos e crimes, visando a construção social de
cidadania. Nesta argumentação, Estado e sociedade civil são apresentados como
dissociados, e a cidadania e reconhecimento dos direitos civis são tidos como reflexos
de lutas sociais, de não subordinação e até como “resistência” ao Estado. Para os
autores, o deslocamento das lutas sociais de “protesto” para a “proposição” e
negociação em decorrência das transições democráticas na América Latina, é tido como
positivo por representar uma evolução rumo à democracia participativa.
Deve-se ressaltar, porém, pela perspectiva analítica do agonismo do poder, que
se os direitos refletem e são muitas vezes efeitos de lutas sociais, isso não significa
resistência ao Estado, mas a pacificação de lutas no e pelo Estado. Não há dissociação e
215
muito menos resistências entre Estado e sociedade civil, apenas ajustes e acomodação
frente aos mesmos objetivos. Não se governa sobre, mas junto à sociedade civil, como
conjunto de sujeitos de direitos/sujeitos econômicos de forma centrada no
comportamento racional destes.148
No caso da Justiça Restaurativa, essa correlação entre Estado e sociedade civil se
evidencia quando a chamada sinergia entre ambos pressupõe seu fortalecimento
conjunto e alcance dos mesmos objetivos: a pacificação como prevenção de conflitos
futuros e a disseminação de uma racionalidade neoliberal como conduta entre os
indivíduos que conjugue a realização de escolhas racionais do indivíduo enquanto
capital humano capacitado e apto a empreender-se.
Como exemplo histórico de forte sinergia entre Estado e sociedade civil, o artigo
de Oxhorn e Slakmon apresenta o Estado de Bem-Estar social na Europa do pós-
Segunda Guerra Mundial. Na lógica dos autores, um Estado Democrático de Direito é
oposto a um Estado policial (entendido como repressivo), pela respectiva presença e
ausência de sinergia entre Estado e sociedade civil. Esta sinergia é tida como necessária
para a chamada prevenção do crime, sendo a Justiça Restaurativa considerada o gancho
capaz de desempenhar a construção da cidadania “de baixo para cima” (Ibidem: 189),
pela tomada de decisão a nível local e empoderamento na comunidade. Consideram
opostas, ainda, o que chamam de justiça alternativa ilegal (ou “justiça do gueto” nas
favelas e, por exemplo, a lei de Talião) – por serem entendidas como arbitrárias e
148 Com a nova razão governamental emergente na segunda metade do século XVIII, o Estado não governará mais uma coleção de súditos, mas terá na sociedade civil seu campo correlativo, seu produto e resultado que permitirá que governe sujeitos como sujeitos de direitos-sujeitos econômicos, a fim de não infringir nem a mecânica da economia e nem os princípios do direito (Foucault, 2008: 470; Foucault 2004: 403). Desloca-se a regulação do governo pela verdade soberana para uma racionalidade relativa aos cálculos de força, a partir dos séculos XVI-XVII. A regulação do próprio governo não estará mais centrada na racionalidade do soberano, mas no comportamento racional dos que são governados como sujeitos econômicos e sujeitos de interesse (Foucault, 2004: 422-424).
216
“paralelas” ao sistema de justiça estatal – e justiça alternativa legal, como no caso da
Justiça Restaurativa.
Pretende-se, aqui, apartar-se da dicotomia entre poder e liberdade como
elementos puros e representados pelo que seria um Estado Democrático de Direito
oposto a um Estado policial. O que também implica não partilhar da divisão entre
justiça legal e ilegal a partir da perspectiva do Estado, pois trata-se de analisar um
conjunto integrado de ações que compõem o sistema de justiça como uma economia da
pena, ou, nas palavras de Foucault, um regime de gestão dos ilegalismos. Deve-se
ressaltar a complementariedade e indissociação entre ambos, uma vez que, na lógica da
restauração, não se abre mão da polícia – entendida aqui não apenas como instituição,
mas, também, como conduta policial e cidadã, como será apresentado mais adiante, que
extrapola o âmbito do Estado e da chamada sociedade civil, explicitando-se nas relações
sociais – destacando-se aqui sua funcionalidade num ambiente comunitário.
Lançando mão da analítica genealógica, Salete Oliveira mostrou em Política e
Peste (Crueldade, Plano Beveridge e Abolicionismo Penal) (2001) que, muito diferente
do encontrado na argumentação de autores como Loïc Wacquant de que a retração do
Estado de Bem-Estar Social teria cedido lugar a um Estado Penalizador com a política
de tolerância zero nos EUA como consequência da ascensão do neoliberalismo, a
incrementação da política de segurança nos anos 1980 teve como base-matriz,
precisamente, a emergência do Estado de Bem-Estar Social moderno (Idem: 192). Uma
das maneiras em que a pesquisadora evidencia esta relação é pela proveniência do
conceito de “qualidade de vida”, descartando sua demarcação de origem ao final do
século XX presente na política de tolerância zero como forma de limpeza seletiva das
ruas, mas localizando suas procedências no combate ao mal no Plano Beveridge, na
Inglaterra do início dos anos 1940.
217
O Plano Beveridge, como um dos importantes fomentadores na consolidação do
Estado-providência moderno (Ibidem: 117) tinha como grandes objetivos o “combate ao
mal” como sinônimo de combate à miséria, e a cooperação entre Estado e indivíduo,
encorajando a ação voluntária para a garantia do seguro social (Ibidem: 120). Oliveira
mostrou as articulações que perseguiram o “combate ao mal” sob o parâmetro da
promoção da seguridade, situando o Plano Beveridge no limiar da sociedade disciplinar
e da sociedade de controle:
Este controle disciplinar democrático, intrínseco ao dispositivo panóptico, entendendo-se que o dispositivo ultrapassa o território da prisão intramuros, assume no Plano Beveridge um tom de disposição democrática universal, redimensionando o tribunal do mundo em torno de uma das procedências da sociedade de controle. Trata-se do limiar tênue que vai se despedindo da sociedade disciplinar e levanta os vestígios do que viria a ser o longo aceno de um novo espaço, o controle como promoção da seguridade sob a égide democrática e o prenúncio da edificação do controle da segurança (Ibidem: 130-131).
Partindo da afirmação de Foucault de que “a política é a guerra prolongada por
outros meios”, a pesquisadora expõe como a guerra é explicitada, no Plano Beveridge,
como momento propício para se forjar planos para os momentos de paz, e evidencia a
totalização da guerra presente no Plano como diretamente correspondente à idealização
da paz universal, “edificada no substrato da primazia democrática como único elemento
capaz de estancar o extermínio que ela própria fomenta” (Ibidem: 142).
Em relação à Justiça Restaurativa, muitos autores149 argumentam que esta teria
nascido com a expansão do neoliberalismo e a desagregação do modelo estatal de Bem-
Estar Social, em prol da reestruturação de princípios de participação e co-administração
em setores sociais quando da liberação do Estado de parte da promoção da segurança.
Afirmando o abolicionismo penal libertário, o trabalho de Salete Oliveira também
149 Ver, em especial, Jaccoud, 2005: 166.
218
aponta para como o investimento na segurança imbricada na busca por “qualidade de
vida” de forma alinhada à promoção dos direitos humanos, e para como políticas
consideradas de desconstrução destes, como a de tolerância zero, não apenas não são
opostas como podem complementar-se. No caso da Justiça Restaurativa e práticas que
enfatizam a chamada “resolução de conflitos” em instância comunitária como
alternativa ao sistema penal, essa relação evidencia-se pelo destaque e ênfase da
promoção de “qualidade de vida” quando da restauração e até mesmo cura dos
envolvidos em um conflito, com enfoque nos grupos considerados vulneráveis, em
nome da “dignidade humana” como prerrogativa do ordenamento democrático liberal
universal.
uma diferença incontornável
A Justiça Restaurativa é também comumente chamada de micro-justiça
(Oxhornd; Slakmon, 2005) por descentralizar a administração das demandas da justiça e
prover a participação dos cidadãos na tomada de decisão em nível local, porém sem
desfazer-se da centralização política. Almeja-se fortalecer o funcionamento e a
confiança no sistema judiciário estatal e revestir e diluir, ao mesmo tempo ampliando e
disseminando, a figura de juízes, fiscais, burocratas, advogados e policiais ao
empoderar, por meio da participação, os indivíduos como agentes. Nesse sentido,
mostra-se, mais uma vez, que, como complemento ao sistema de justiça formal, a
Justiça Restaurativa é eficiente ampliadora de práticas penalizadoras por se pretender o
mais local, precisa e coercitiva no interior de uma comunidade, bem como ao pretender
capacitar a todos para participar ativamente na resolução dos mais ínfimos problemas,
que poderiam ser resolvidos sem nenhum tipo de mediação. Conforme expresso no
artigo de Oxhorn e Slakmon,
219
A micro-justiça se refere às transferências de recursos de poder pela administração da justiça no nível local. Ao transferir a administração de certas demandas da justiça ao nível local, a micro-justiça deixa mais recursos de poder disponíveis para as pessoas no final da escala social na forma de informações e capacidade de agir. Os cidadãos podem se tornar participantes ativos na resolução de conflitos e de crimes, que frequentemente tem origem na pobreza e precariedade locais, que afetam suas vidas cotidianas em vez de vítimas passivas de injustiças sobre as quais elas têm pouco ou nenhum poder para mudar (2005: 201).
Ao romper com os castigos e as penalizações, não restritas às prisões, Louk
Hulsman150, abolicionista penal que foi professor emérito da Universidade de Rotterdam
e integrante de diversos foros internacionais, chama atenção para o que na criminologia
é chamado de “cifra negra” – a diferença entre os crimes comunicados pelas estatísticas
policiais e a estatística dos tribunais. Segundo Hulsman, a cifra negra demonstra,
diferente do que pretende a criminologia ou o direito penal, que a maioria esmagadora
dos fatos passíveis de criminalização são tratados fora da justiça criminal (Hulsman,
2004: 49). Fato que também demonstra o equívoco da oposição entre justiça alternativa
legal e justiça alternativa ilegal, uma vez que possibilidades de se lidar com fatos
considerados crimes são geralmente simplesmente aplicadas por quem se sente
diretamente envolvido e, portanto, a legislação da regra é rara (Idem: 50).
O abolicionismo penal remonta ao pós-Segunda Guerra Mundial, e emerge do
interior de movimentos que abalaram as certezas universalistas, em 1968, não como
alternativa ao sistema penal, mas como potencialidade que requer práticas de liberdade
(Passetti, 2004: 17). Radicalmente oposto aos preceitos da Justiça Restaurativa, o
abolicionismo penal jamais se situa na busca de sanções alternativas.
150 Sobre o abolicionismo penal de Louk Hulsman e capturas e tentativas de imobilização do abolicionismo pela incorporação de suas sugestões em programas alternativos de justiça, ver: Salles, 2011.
220
Hulsman afirmava como o sistema penal é uma máquina burocrática dispersa
que produz decisões reducionistas, expropriando as pessoas de seus próprios problemas.
Na medida em que retira um evento considerado criminoso de seu contexto, priva-o de
sua densidade e atua sobre “falsos problemas”, precisamente ao pressupor que a justiça
deve ser “igual para todos” (Hulsman; de Celis, 2005: 251-252). A própria palavra
crime é considerada pela justiça criminal um evento excepcional que difere de outros
não assim definidos, evidenciando como os considerados “criminosos” são apenas uma
pequena e seletiva parte dos envolvidos em eventos criminalizáveis – a grande maioria
jovens pobres (Hulsman, 2003: 195).
A noção de situação-problema desenvolvida pelo abolicionista, nesse sentido,
implica no rompimento com o conceito legal e universalista de “crime” e permite adotar
uma postura abolicionista que deixa aos interessados a possibilidade de interpretar, em
suas múltiplas dimensões, uma situação que não necessariamente necessita de
intervenções (Hulsman, 2005: 265-266). Ao estabelecer que um abolicionista não
intervém como aval ao que já foi decidido, mas tenta evitar a captura de situações pelo
sistema penal, Hulsman sugere alguns modelos de reposta, além do punitivo, a uma
situação em que uma pessoa considera insuportável e provocada por outra pessoa: o
modelo compensatório, o terapêutico, o educativo e o conciliatório (Idem: 251).
O abolicionista não se situa como propositor de programas que substituam a
justiça criminal. Aparta-se, dessa forma, da organização cultural desta última (Idem:
142). Nesse sentido, o modelo conciliatório do abolicionismo penal proposto por
Hulsman não pode ser aproximado da Justiça Restaurativa ou das penas alternativas,
pois longe de reduzirem os aprisionamentos e reincidências, essas alternativas e
reformas contribuem continuamente para a produção de condutas policiais e para a
ampliação de penalizações que se aproximam de programas como o tolerância zero, na
221
busca utópica de capturar toda e qualquer infração por meio da prevenção de conflitos
futuros. Ao propor que se lide como situações-problema no âmbito do direito civil, o
abolicionista aparta-se do conceito de prevenção assim como das práticas que o nutrem
e propõe a abolição do direito penal e do sistema penal. Já a Justiça Restaurativa, ao
estabelecer-se, também, como forma de micro-justiça, provoca o extremo aposto do
abolicionismo penal, ampliando e disseminando a entrada do sistema penal por meio de
suas complementares políticas-micro e alternativas.
Esta relação complementar se evidencia também pela Justiça Restaurativa ser
entendida como “política pública” importante para a América Latina. Devido à sua
abordagem de reintegração das relações sociais (Carvalho, 2015: 211), argumenta-se
que ela aumenta a interação dos indivíduos, enquanto cidadãos, com o Estado,
principalmente por parte dos grupos considerados mais vulneráveis da população –
jovens e pobres.
A partir de tal complementariedade e fortalecimento de políticas estatais pela
implementação de políticas alternativas centradas na participação como base da
chamada democracia sustentável e inclusiva, evidencia-se uma relação que se exerce de
forma mais ampla do que a simples introjeção de regras, e que corresponde a tentativas
de juridicialização da vida (Augusto, 2012). Participar, assim como empoderar-se,
confere a produção e disseminação de relações de poder como formas de inclusão
democrática que mantém e ampliam penalizações ao não prescindirem do julgamento e
a correlata aplicação de castigos.
Conforme situou Acácio Augusto, se à juridicialização da análise institucional
derivada da teoria política liberal confere o grau de governabilidade do Estado em
relação à sociedade civil, tomar o liberalismo como racionalidade emergente no século
XVIII conformada com uma governamentalização do Estado não nos leva a concluir
222
que há uma estatização do social, conforme já havia apontado Foucault. Assim,
desmembrar as especificidades da racionalidade liberal e suas transformações com o
neoliberalismo no pós-Segunda Guerra, permite analisarmos a democracia não apenas
como conjunto de regras institucionais, mas como forma de pensar e organizar a vida
em relação à política, do que decorre uma juridicialização da vida e não uma
judicialização da política, esta, um efeito secundário daquela (Ibidem: 33).
No caso da Justiça Restaurativa ficam claras as convergências entre as mais
antigas práticas da lei, do direito, da justiça e do julgamento e as práticas democráticas
contemporâneas alinhadas à racionalidade neoliberal que visam capacitar, empoderar,
incluir e fazer os indivíduos participarem dentro de suas comunidades. No caso dos
jovens pobres (grupo considerado vulnerável pelo PNUD), os Conselhos Tutelares
entregam às comunidades as funções dos juízes do antigo Código de Menores (1979),
ampliando a aplicação de medidas socioeducativas por meio de novos tribunais
funcionando por meio da administração voluntária dos próprios moradores locais.151 A
Justiça Restaurativa ainda reforça a antiga assimetria formal vítima-infrator ao replicá-la
e fundi-la sob o argumento da vulneralidade, quando o vulnerável é tido como aquele
que causa perigos para si mesmo (enquadrado como vítima), bem como para os outros
(enquadrado como infrator). Nesta lógica, é por lhe faltarem capacidades de realizar
151 Segundo Estela Scheinvar, os Conselhos Tutelares, criados na esteira da argumentação da Constituição Federal de 1988 em prol da participação democrática, encontraram forte aliança com as escolas e seus vieses punitivos, principalmente ao se partir do pressuposto de que as famílias não assumem um papel correto em educar seus filhos. Para Scheinvar, os Conselhos Tutelares se constituem como lugar de execução penal e proliferam-se como “pequenos tribunais institucionalizados ao longo do país, financiados com dinheiro público, ocupados pela sociedade civil, instalados em nome da eliminação da prática jurídica de julgamento-punição, em favor das práticas de assistência social e da garantia de direitos” (Scheinvar, 2012: 45-51). Sobre as continuidades e descontinuidades das reformas e desmembramentos da Secretaria do Menor no estado de São Paulo sob efeitos da transição do Código de Menor de 1979 para o ECA, em 1990, e a clientela-alvo das políticas sociais, ver: Lazzari, 1998.
223
escolhas de forma racional que ele se torna vulnerável, ao mesmo tempo em que
produtor das mais variadas possíveis vulnerabilidades a serem identificadas.
Os dois documentos publicados pelo PNUD – o RDH regional para a América
Latina de 2004 e a coletânea de artigos Justiça Restaurativa de 2005 – evidenciam o
delineamento e formatação dos conceitos ali presentes como tentativas-táticas do
Programa, ao almejarem constituir-se de forma apta a implementar e orientar práticas de
governo ajustáveis as especificidades de um local.
Sustentado pelo discurso de “crise social” ocasionada pela transição
democrática, por Estados fracos ou falidos, desigualdades, altos índices de violência e
pela falta de oportunidades, o RDH de 2004 para a América Latina enfatiza a busca pela
participação de todos os chamados “atores sociais” para a consolidação da cidadania,
como base de uma democracia sustentável. Para a construção do que define como
cidadania integral, destaca o necessário fortalecimento de capacidades individuais por
meio da participação voluntária articulada ao Estado.
No âmbito do sistema de justiça, as práticas de Justiça Restaurativa apresentam-
se como modelo e processo para a consolidação desta cidadania integral ao “melhorar a
distribuição” da justiça por meio do fortalecimento do vínculo entre indivíduos e
Estado. A partir de John Rawls, a ideia de justiça de Amartya Sem (2009), no sentido
transcendental de cooperação social, encontra na Justiça Restaurativa uma política
produtora de coesão social e práticas de controle descendentes e ascendentes. Centrada
na comunidade como valor eficiente para a positividade de suas práticas, a Justiça
Restaurativa encontra, na capacitação e participação dos indivíduos como cidadãos
integrais “autogovernados”, eficientes propulsoras de penalizações.
Como desdobramento e melhor acabamento deste esforço compartilhado na
produção de práticas de controles e auto-governo que o PNUD denomina,
224
positivamente, de “coesão social”, em consonância com a estratégia planetária de
pacificação e segurança globais, tem-se o conceito de segurança cidadã, específico à
região latino-americana, e uma modalidade da abordagem da segurança humana.
segurança como estratégia e táticas de penalizações
O Relatório de Desenvolvimento Humano regional para a América Latina
referente ao período de 2013-2014 e subsequente ao de 2004 supracitado, intitula-se
“Segurança Cidadã com Rosto Humano”. Este situa como um dos principais problemas
da região a insegurança como obstáculo ao desenvolvimento econômico e social
inclusivo.
Assim como os discursos do início dos anos 1990 do PNUD focados na
conceitualização da abordagem da segurança humana, a segurança cidadã também é
apresentada como reflexo das transformações da definição tradicional de segurança: a
ideia de segurança restrita à segurança nacional do Estado; as ameaças delimitadas à
questões militares; e as ameaças entendidas de forma independente das questões
políticas que as rodeiam teriam se redimensionado. O caráter transnacional de novas
ameaças evidenciam, na argumentação do PNUD, como problemas globais – o tráfico
de armas, narcotráfico, álcool, etc. – extrapolam as condições locais no interior das
fronteiras nacionais para constituírem-se como virtual ameaça em todo o planeta.
A segurança cidadã, como modalidade da segurança humana, centra-se na
segurança pessoal em relação às ameaças advindas dos considerados crimes e violência
(PNUD, 2013: 5). Porém, segundo este Relatório de 2014, a segurança cidadã não deve
limitar seus objetivos à simples redução dos índices de violência e criminalidade, mas
deve orientar-se como
225
[Uma] estratégia integral, que inclua a melhora da qualidade de vida da população, a ação comunitária para a prevenção do crime e da violência, uma justiça acessível, ágil e eficaz, uma educação que se baseie em valores de convivência pacífica, em conformidade com a lei, com a tolerância e com a construção de coesão social (Idem: 6 – grifos meus).
O estudo apresentado pelo Relatório concentra-se no elenco de seis principais
ameaças interligadas e características da América Latina: crime nas ruas, criminalidade
exercida contra e pelos jovens, violência de gênero, corrupção, “violência ilegal”
praticada por agentes estatais e “delinquência organizada”. Divide-se, ainda, como
“dimensão objetiva” da segurança cidadã as ameaças relacionadas ao crime e a
violência; e “dimensão subjetiva”, vinculada à percepção de insegurança que se
manifesta em sentimentos de temor e vulnerabilidade que repercute na falta de coesão
social e confiança nas instituições do Estado (Ibidem: 7).
Com relação ao desenvolvimento humano, o aspecto da cidadania como forma
de segurança estaria atrelado a um núcleo básico de direitos que permitem a capacidade
dos indivíduos contribuírem com a melhora de suas comunidades e instituições e,
consequentemente, na construção de ambientes sustentáveis e, portanto, seguros.
O Relatório apresenta que, apesar do crescimento econômico e redução de níveis
de desigualdade notáveis, a criminalidade e a violência aumentaram na América Latina.
A esta “complexa” relação, de acordo com o estudo, responde-se que a maioria das
pessoas pobres que ascenderam economicamente não se integraram diretamente à classe
média, conformando um segmento denominado pelo Banco Mundial como “grupos
vulneráveis” – a classe mais numerosa em toda a América Latina (38% da população) –,
caracterizado pela exposição ao trabalho informal, a estagnação educacional e escassa
cobertura social (Ibidem: 22). Estes aspectos de vulnerabilidade contribuiriam para a
criação de um ambiente favorável para o crime e a violência, no que o Relatório destaca
226
a importância de políticas públicas que fortaleçam espaços de interação e redes de
segurança social – elementos-chave para a prevenção do crime (Ibidem: 23).
Seguindo a exposição do Relatório, tem-se que, quando uma alta porcentagem
de crimes e violência contra a cidadania não é investigada e punida, cria-se uma
sensação de vulnerabilidade. E mesmo que nem todos os chamados crimes e
delinquentes sejam respectivamente resolvidos e castigados, é preciso de um mínimo
solucionado para que não haja esta desconfiança generalizada. Para resolver o problema
de delitos considerados menos graves, segundo a argumentação do Relatório, bastariam
políticas, projetos e programas como resposta multisetorial coordenada pelo Estado que
integrem serviços básicos de atendimento à população, bem como programas
específicos dirigidos aos chamados “fatores de risco” acumulados em cada localidade
que afetam as pessoas e suas comunidades.
É interessante notar como a cifra negra aparece no discurso do PNUD enquanto
algo nocivo, menos em decorrência da tese de não efetivação da criminalização, e mais
por alimentar o que seria uma “dimensão subjetiva” ligada à sensação de insegurança,
falta de coesão social, vulnerabilidade, etc. Algo que reitera, mais uma vez, a
centralidade na penalização da qual interessa, menos o aspecto repressivo da punição –
não necessariamente pela via institucional – e mais a positividade da produção de uma
conduta específica geradora de segurança e proporcionadora de ambientes seguros, em
contraposição aos vulneráveis e às vulnerabilidades.
Este Relatório do PNUD centrado na segurança cidadã para a América Latina
não faz menção direta à Justiça Restaurativa, mas destaca a importância de iniciativas
de reforma destinadas a fortalecer o Estado de Direito a partir da melhoria do sistema de
justiça, principalmente nos anos 1990, no contexto de transição democrática. Chama
atenção para, mais recentemente, uma crescente pressão para reformar o sistema de
227
justiça, a fim de aumentar seu acesso aos cidadãos, sobretudo os considerados mais
desfavorecidos. Indica, ainda, que a lógica que impulsiona estes movimentos pela
justiça reside no fato de que o sistema judicial pode contribuir para aliviar condições de
pobreza e desigualdade por meio de medidas que possibilitam o empoderamento dos
segmentos da sociedade tidos como vulneráveis, para que exerçam seus direitos
(Ibidem: 119).
Ao final do Relatório, as “dez recomendações para uma América Latina segura”
(Ibidem: 199), ressaltam, em sua maioria, a relação entre uma cidadania integral
(PNUD, 2004), Justiça Restaurativa (PNUD, 2005) e segurança cidadã (PNUD, 2013):
1. Alinhar os esforços nacionais para reduzir o delito e a violência com base nas lições aprendidas. 2. Gerar políticas públicas orientadas a proteger as pessoas mais afetadas pela violência e criminalidade. 3. Prevenir o crime e a violência, impulsionando um crescimento inclusivo, igualitário e com qualidade. 4. Diminuir a impunidade mediante o fortalecimento das instituições de segurança e justiça, com respeito aos direitos humanos. 5. Aumentar a participação ativa da sociedade, especialmente das comunidades locais, na construção da segurança cidadã. 6. Aumentar as oportunidades reais de desenvolvimento humano para os jovens. 7. Atender e prevenir de modo integral a violência de gênero no espaço doméstico-privado e no âmbito público. 8. Proteger ativamente os direitos das vítimas. (...). 9. Fortalecer os mecanismos de coordenação e avaliação da cooperação internacional. 10. Fortalecer os mecanismos de coordenação e avaliação da cooperação internacional (Ibidem: 199).
A segurança cidadã – como diretriz da ONU focada na América Latina – e a
Justiça Restaurativa – como política em prol da construção de uma cidadania integral –
são tentativas-táticas da estratégia geral de segurança em âmbito planetário. Estas táticas
operam em projetos e programas específicos do PNUD, no menor ao maior local
demarcado e, em nome do desenvolvimento, reforçam a seletividade intrínseca,
também, às penalizações à céu aberto (Passetti, 2006; Augusto, 2012; 2013).
228
Em Política e polícia: cuidados, controles e penalizações de jovens, Acácio
Augusto (2013) expôs como a prisão segue existindo de forma complementar às
políticas penais alternativas. Estas expandem controles a céu aberto em meio à
sociedade de controle atual pela ampliação e disseminação de formas de
encercaramentos elastificados, para a qual contribuem e participam empresas, ONGs,
governos, além de seus próprios alvos de contenção e controle: os jovens que
constituem algum tipo de ameaça à ordem.
Segundo Augusto, principalmente com a chamada abertura democrática no
Brasil, iniciaram-se tentativas de não mais expelir os jovens conformados como
delinquentes e trancá-los em prisões, mas de incorporá-los por meio de convocações
democráticas. Com a Constituição de 1988, o “menor em situação de rua” como
problema de segurança nacional condizente à intervenção autoritária do Estado passou a
ser tido como problema a ser tratado pela formação democrática e cidadã de jovens.
Conforme evidencia o autor, a expressão jurídico-política de tal deslocamento está na
promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, quando o menor
passa a ser criança e adolescente, pressupondo uma condição de desenvolvimento
contínuo e de responsabilidade integral da família, da sociedade e do Estado (Idem: 71).
Interessado em analisar as novas tecnologias de controle a céu aberto pela
perspectiva das resistências, o autor realizou uma pesquisa etnográfica do projeto Pró-
Menino: Jovens em Conflito com a Lei, da Fundação Telefônica – empresa instalada no
Brasil desde 1999 – e desdobrado do programa Proniño, com sede na Espanha, que
objetiva oferecer assistência aos jovens enquadrados como em “situação de risco” ou
“vulnerabilidade social” e administra a aplicação de medidas socioeducativas em meio
aberto, em conformidade com o ECA. Desse modo, mostra como tais projetos, enquanto
políticas de inclusão social, não destinam-se somente aos jovens considerados
229
infratores, mas inserem-se “em uma nova política de controles e contenções de jovens,
uma política de atuação na localidade onde mora esse jovem, tenha ele cometido um ato
infracional ou não, pois, se ele vive em uma situação de risco, esse risco significa que
ele é um potencial infrator” (Ibidem: 82). Diferente da introjeção de regras em
instituições austeras na sociedade disciplinar, hoje se faz muito mais eficiente produzir
condutas que tornem cada um o agente participativo de seu próprio assujeitamento
(Ibidem: 84), buscando a melhoria de si e do ambiente em que vive, principalmente
periferias constituídas como campos de concentração a céu aberto (Ibidem: 87). Este
difere do campo de concentração dos Estados totalitários como zona de exclusão social
e territorial, mas diz respeito a uma tecnologia de controle que não opera mais por
confinamento, mas sim pela administração de um ambiente pelos próprios habitantes:
É um dispositivo de uma prática inclusiva de governo (...) que elastiza os muros da prisão e se faz, também, nas relações estabelecidas entre as pessoas que convivem sob um mesmo regime de governo, respeitando-o e produzindo práticas de assujeitamento que as imobilizam, não por uma imposição externa, mas por um desejo voluntário e devotado em se manter na condição de assujeitados (Ibidem: 166).
Nesse sentido, as penas alternativas estão conformadas às novas penalizações à
céu aberto próprias da sociedade de controle, que ultrapassam a ênfase na internação da
sociedade disciplinar (Passetti, 2006: 86). A democracia como utopia da sociedade de
controle opera menos pela redução de resistências e mais pela busca por sua captura
quando convoca a participar (Idem: 101). Segundo Passetti, se na sociedade disciplinar
o poder se exercia em rede, na atual sociedade de controle o poder se exerce em fluxo,
do que decorre que todo poder implica integrar resistências e que, diferente dos grandes
fascismos da sociedade disciplinar, hoje preponderam os micro-fascismos – vide a
própria política de tolerância zero que opera em busca de “micro-infrações” – “não mais
230
o grande direito de causar a morte ou a vida, mas o direito de participar da vida pelo
pluralismo civil, político, cultural e social” (Idem: 93).
A Justiça Restaurativa e suas penalizações alternativas encontram no ECA
grande possibilidade de efetivação de medidas socioeducativas, que devem ser,
preferencialmente, aplicadas por psicólogos ou assistentes sociais. Além disso, é de
grande importância que sejam pessoas ligadas à mesma comunidade da “vítima” e do
“infrator”. No caso da presente pesquisa, como será exposto adiante, a Justiça
Restaurativa e seus mediadores ou facilitadores podem ser desde policiais a moradores
da própria comunidade em que se identificam focos de vulnerabilidades, operando
sobre um ambiente inteiro, com o aparato seletivo de índices como o IDH e suas
inúmeras variáveis acopláveis – vide o IDH Municipal e Unidades de Desenvolvimento
Humano (UDH). Este último recorte não diz respeito exatamente a bairros, mas são
delineados buscando gerar áreas mais homogêneas do que a ponderação do IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), do ponto de vista das condições
socioeconômicas. O UDH visa captar a morfologia e história específica de cada espaço
urbano, o que requer a construção de propostas “customizadas” (ou seja, moduláveis
segundo interesses específicos) para cada espaço, ultrapassando as variáveis mais
restritas, como a variável renda.152
No movimento a seguir, será apresentado um Programa Conjunto da ONU,
coordenado pelo PNUD, como exemplo de investimento de construção e manutenção da
paz, entendida como sinônimo de segurança. Atravessado pela Justiça Restaurativa
como instrumento tático na tentativa de gestão e pacificação de conflitos, evidencia-se,
152 Cf. PNUD, IPEA e Fundação João Pinheiro. “Metodologia” in Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. Disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/o_atlas/metodologia/construcao-das-unidades-de-desenvolvimento-humano/. Acesso em: 02/10/2016.
231
por meio deste Programa, a penalização preventiva e seletiva sobre um ambiente de
forma a responder às diretrizes globais, estipuladas principalmente pela ONU, e
constitutivas de uma governamentalidade planetária. Assim, tais ambientes não dizem
respeito a um território com fronteiras delimitadas, mas funcionam como laboratórios e
modelos passíveis de replicabilidade. Mais do que políticas que operam pela
repressividade e negatividade do poder, aposta-se na disseminação de relações de
governo principalmente entre aqueles – agentes de segurança ou não – que estão
dispostos à justificar a própria existência das penalizações, em constante
aperfeiçoamento.
3. 2. um programa conjunto e a construção de uma seletividade
breves apontamentos sobre o PNUD e o Brasil
O PNUD passou a trabalhar em colaboração com o governo brasileiro a partir do
Acordo Básico de Assistência Técnica firmado em 1964 e promulgado, em setembro de
1966, pelo Decreto nº 59.308153, entre o país e a ONU, suas Agências Especializadas e a
Agência Internacional de Energia Atômica. Em 1987, foi criada a Agência Brasileira de
Cooperação (ABC), por meio do Decreto nº 94.973154, como integrante da Fundação
Alexandre Gusmão (FUNAG) e vinculada ao Ministério das Relações Exteriores
(MRE). O PNUD foi importante parceiro para a construção da ABC ao apoiá-la na
adoção de técnicas apropriadas à gestão da cooperação técnica brasileira. Segundo a
153 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D59308.htm. Acesso em: 08/03/2016. 154 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/1985-1987/d94973.htm. Acesso em: 10/03/2016.
232
própria Agência, sua criação remete a um contexto de grandes mudanças nos fluxos de
cooperação internacional para o desenvolvimento.155
Conforme exposto no item “ecopolítica e os redimensionamentos do
desenvolvimento” (movimento 1.3.) desta dissertação, uma nova fase das relações entre
os países considerados em desenvolvimento ganhou espaço num contexto de pós-
descolonização, principalmente ao final dos anos 1980 e início dos anos 1990. A
chamada “Execução Nacional” – efetuada pelos próprios organismos internacionais
responsáveis pela gestão administrativo-financeira e pela condução técnica dos projetos
nos países – cedeu espaço, em decorrência da criação da ABC, ao novo modelo de
gestão de cooperação multilateral, que preconizava o controle dos próprios países
beneficiados sobre os programas de cooperação técnica implementados por organismos
internacionais.156
Dentre os recursos não regulares do PNUD, encontra-se as seguintes fontes de
financiamento: o financiamento pelos governos – quando os próprios países financiam
ou realizam empréstimos de instituições financeiras internacionais para a atuação do
PNUD; o financiamento por terceiros – incluindo recursos fornecidos por doadores ou
instituições financeiras internacionais; e os fundos globais, como o Fundo para o
Alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio do Governo Espanhol, no caso
do Programa implementado pelo PNUD no Brasil a ser apresentado a seguir.
No Brasil, o PNUD atua via financiamento pelo governo combinado à execução
nacional [cost-sharing/national execution modality]. Segundo os economistas João
Guilherme Rocha Machado e João Batista Pamplona, a utilização desta forma de
155 ABC. Histórico. Disponível em: http://www.abc.gov.br/SobreABC/Historico. Acesso em: 10/03/2016. Neste endereço, é possível também apreender resumidamente a trajetória da assistência e cooperação técnica de organismos internacionais no Brasil. 156 Idem.
233
atuação deve-se, entre outros fatores, ao contexto de redemocratização. Naquele
momento, o PNUD realizou parcerias com o Banco Mundial e com o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) para acelerar seus projetos, bem como com
funcionários de alto nível do governo brasileiro, que viram no PNUD possibilidade
qualificada de prestação e implementação de serviços (Idem: 173). Em um segundo
momento, o PNUD e o governo brasileiro não obtinham mais a necessidade de
financiamento via instituições internacionais. O PNUD Brasil passou a atrair muito
recursos, tornando-se o maior escritório do mundo do Programa e, consequentemente,
em um modelo bastante interessante em termos de replicação e exportação para outros
países e regiões (Idem: 173). Conforme ressaltam os autores, esta modalidade do PNUD
no Brasil não necessariamente faz com que toda a equipe executora seja formada por
consultores nacionais. Além disso, ela pode ser realizada também por ONGs, grupos da
sociedade civil e pelo setor privado.
Segundo apontamentos de Wagner de Melo Romão, a Constituição brasileira de
1988 sugeriu a realização das chamadas políticas públicas por meio de gestão
compartilhada, incluindo a participação da sociedade – o que fica evidente, sobretudo
nas áreas da saúde e assistência social, denotando uma forte proximidade à
descentralização das políticas, como com a instituição no Sistema Único de Saúde
(SUS) (Romão, 2015: 39). Segundo o cientista político, esta necessidade de participação
da sociedade na formulação de políticas prevista pela Constituição implica na ideia de
separação entre Estado e sociedade, reforçada pela literatura sobre o tema decorrente
nos anos 1990, em que se buscava estabelecer uma autonomia da sociedade civil, como
efeito das movimentações autonomistas nas décadas de 1970 e 1980 durante o período
ditatorial, no sentido de modificar a estrutura de um Estado autoritário (Idem: 42).
234
Atualmente, o PNUD Brasil opera por meio do Quadro de Cooperação do País
(Country Cooperation Framework – CCF), em que são descritas estratégias e
identificados objetivos e oportunidades para a implementação de políticas sociais,
quinquenalmente.
Deve-se ressaltar, frente a tantas estratégias e tantos esforços do PNUD em
estabelecer-se no interior de um discurso de “redemocratização”, que o Programa atuou
intensamente no Brasil ainda durante a ditadura-civil-militar, já acompanhando as
diretrizes internacionais de cooperação técnica. Nesse sentido, não cabe estabelecer
uma oposição entre o que foi o regime ditatorial e a democracia após a chamada
abertura, mas sim notar a continuidade dos investimentos do PNUD em educação e
políticas sociais. Sob a égide do desenvolvimento, está sempre em jogo o
aperfeiçoamento da gestão.
***
No Quadro referente aos anos de 2002-2006, o Brasil é considerado pelo PNUD
um país com alto nível de capacidade e experiência no âmbito do governo e da
sociedade civil. No entanto, o argumento utilizado é que a falta de capacidades locais
estaria sobrecarregando os estados e municípios de responsabilidades, principalmente
no quesito financiamento da execução de programas e serviços.157
Sobre este período, e principalmente em relação ao ano de 2006, vale ressaltar
alguns marcos e deslocamentos importantes no que diz respeito a reformulações de
medidas socioeducativas e penas alternativas – como a supracitada Lei 9.099/95,
157 UN. Second country cooperation framework for Brazil (2002-2006). New York, Executive Board of the United Nations Development Programme and of the United Nations Population Fund, 2001, p. 4.
235
conhecida como Lei das penas alternativas –, com enfoque na Justiça Restaurativa e
aliadas às diretrizes de participação democrática e o envolvimento com a sociedade civil
e comunidade.
Dezesseis anos após a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e
dos Conselhos Tutelares, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da
República (SEDH) e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CONANDA) instituíram, no ano de 2006, o Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo (SINASE). O relatório que apresenta o funcionamento deste novo
Sistema estabelece que a Constituição Federal “é a que mais se aproxima da definição
clássica de República – res publica: coisa pública, o que é pertencente à comunidade”
(SEDH e CONANDA, 2006: 13).
Na esteira destes novos enfoques, o SINASE estabelece priorizar, de um lado, a
municipalização dos programas de meio aberto, mediante a articulação de políticas
intersetoriais em nível local, e a constituição de redes de apoio nas comunidades; de
outro lado, a regionalização dos programas de privatização de liberdade para garantir o
direito à convivência familiar e comunitária dos adolescentes internos, bem como as
especificidades culturais. Enquanto sistema integrado, o SINASE articula a
corresponsabilidade entre a família, o Estado e a comunidade, na garantia da
“ABSOLUTA PRIORIDADE da nação brasileira: a criança e o adolescente” para que
se criem as “condições possíveis para que o adolescente em conflito com a lei deixe de
ser considerado um problema para ser compreendido como uma prioridade social em
nosso país” (Idem: 14 – grifo meu). Destaca-se uma mudança em relação ao que seriam
medidas repressivas-assistenciais para medidas de cooperação – desde à esfera de
financiamento à articulação de diversos órgãos na aplicação das diretrizes do SINASE.
A criação do SINASE enfatiza, segundo relatório,
236
[Uma] mudança de paradigma e a consolidação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) [, que] ampliaram o compromisso e a responsabilidade do Estado e da Sociedade Civil por soluções eficientes, eficazes e efetivas para o sistema socioeducativo e asseguram aos adolescentes que infracionaram oportunidade de desenvolvimento e uma autêntica experiência de reconstrução de seu projeto de vida (Ibidem: 17 – grifo meu).158
Este conceito de que, ao cometer um considerado ato infracional se está
realizando uma escolha irresponsável no sentindo de não saber aproveitar as
oportunidades concedidas, baseia-se na concepção de desenvolvimento humano do
PNUD, conforme exposição do próprio SINASE, quando se estabelece a necessidade
das pessoas serem preparadas para fazerem escolhas e tomar decisões corretas e
fundamentais. Para tanto, tem-se o Plano Individual de Atendimento (PIA) como
instrumento importante, articulado ao SINASE, para a avaliação da “evolução pessoal
do adolescente” no cumprimento da medida socioeducativa, realizando diagnósticos por
meio de intervenções técnicas que englobam as áreas jurídica, da saúde, psicológica,
social e pedagógica (Ibidem: 52) e que contribuam para a promoção de capacidades dos
jovens envolvidos (Ibidem: 48).
Além do grande esforço para inserir a sociedade civil no sistema de reeducação
do jovem sob medida socioeducativa, o mais importante para a aplicação desta, segundo
o relatório do SINASE, se dá pela “comunidade socioeducativa”, composta por
158 Sobre algumas pesquisas que precederam à institucionalização do SINASE, ver: ILANUD, 2006. Disponível em: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/politicas-2/alternativas-penais-anexos/penasalternativasilanudcompleto.pdf. Acesso em: 05/12/2016. ILANUD, 2005. Acesso em: 05/12/2016. E CONANDA, 2005. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/dh/cc/3/crianca/conferencias.htm. Acesso em: 05/12/2016.
Para uma perspectiva de análise mordaz em relação ao ILANUD e seu processo de humanização das penas que pulverizam controles a céu aberto, ao constituir-se como pólo disseminador do combate à chamada delinquência juvenil na América Latina regido pelas organizações internacionais, ver: Oliveira, 2010. Sobre as continuidades e descontinuidades das reformas e desmembramentos da Secretaria do Menor no estado de São Paulo sob efeitos da transição do Código de Menor de 1979 para o ECA, em 1990, e a clientela-alvo das políticas sociais, ver: Lazzari, 1998.
237
especialistas, profissionais e pelos próprios jovens. Preza-se por “dispositivos” que
fazem funcionar a medida socioeducativa dentro e fora das Unidades de internação
socioeducativas. São realizados diagnósticos frequentes da situação do programa em
seus aspectos administrativo, pedagógico, de segurança, de gestão, etc., bem como
assembleias que reúnem os jovens, suas famílias, e especialistas, e também comissões
temáticas ou grupos de trabalho que contribuam com a participação do trabalho em
equipe na aplicação da medida, incluindo o próprio jovem:
As ações socioeducativas devem propiciar concretamente a participação crítica dos adolescentes na elaboração, monitoramento e avaliação das práticas sociais desenvolvidas, possibilitando, assim, o exercício – enquanto sujeitos sociais – da responsabilidade, da liderança e da autoconfiança” (Ibidem: 47).
Nesse sentido, de acordo com análise apresentada em Violentados159, é a partir
do pressuposto de que o Estado não é capaz de cumprir a responsabilidade de preencher
as lacunas deixada pelo mercado – como desemprego, abandono, etc. – que a assistência
social e a articulação de especialistas “interdisciplinares”, sob reconhecimento
humanista, reiteram a ambiguidade que concebe o Estado:
Ele é ao mesmo tempo o agente da opressão, campo de realização específica da classe dominante, que se utiliza das políticas sociais como forma de garantir sua dominação, e o libertador da opressão, mediante a justaposição do saber científico à razão política do Bem-Estar Social com democracia, levando à supressão gradativa das desigualdades pelo planejamento governamental intervencionista (Passetti et. alli, 1999: 55-56).
Do que decorre que, o ECA, “aparentemente intervindo apenas como corretor de
rota, se transforma em navegador que localiza, adentra, estabelece, recompõe, julga,
condena e absolve, quer pela lei jurídica, quer pela norma assistencial” (Idem: 57). 159 Violentados é fruto de uma ampla pesquisa sobre violências praticadas contra crianças e jovens por familiares, instituições e sistema judiciário. Expõe uma análise abolicionista penal, inédita no Brasil até então, e propõe saídas para uma sociabilidade autoritária fundada na cultura do castigo, afirmando a urgência em interromper o circuito do aprisionamento.
238
Todas essas reformulações no âmbito do ECA e do SINASE160, sob a
justificativa de ampliação das medidas socioeducativas em meio aberto, apoiam-se
também em práticas restaurativas, não a fim de suprimir a pena e os procedimentos da
justiça convencional, mas de modo a inovarem em termos de efetividade do sistema
penal socioeducativo.161 De acordo com o SINASE, o ECA enseja, de diversas formas,
a aplicabilidade da chamada Justiça Juvenil Restaurativa, tomando como referência
desta a produção do PNUD sobre o tema e sua importância como instrumento para a
construção da chamada cultura de paz. Porém, ainda conforme o próprio SINASE, na
prática, na maioria das situações utiliza-se a remissão do processo com cumulação de
medida socioeducativa, do que decorre o início de um processo de execução desta em
que o acordo restaurativo pode ser adotado como substituto do PIA, ou contribuir para a
definição das bases para a elaboração do PIA (SINASE, 2014: 56). Assim, a “ampla
margem de oportunidades para a utilização de práticas restaurativas”, nas palavras do
relatório, compreende “mecanismos complementares à atividade jurisdicional” depois
160 De forma a atender às novas diretrizes do SINASE e normas já previstas pelo ECA, a antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) também passou por reformulações. Além da mudança de nomenclatura, passando a chamar-se Fundação CASA, em 2006. Cf. Governo do Estado de São Paulo. Lei Estadual 12.469/2006. Disponível em: http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2006/lei-12469-22.12.2006.html. Acesso em: 05/10/2016. A Fundação CASA deu início a um programa de descentralização, criando inúmeras unidades no interior e litoral do estado de São Paulo, com o objetivo de fazer com que os jovens considerados infratores sejam atendidos próximos de suas famílias e de suas comunidades. Até maio de 2015 foram implantados 72 pequenos centros socioeducativos, sendo parte deles geridos em parceria com organizações da sociedade civil dos municípios onde foram implantados. Cf. Governo do Estado de São Paulo. A Fundação CASA. Disponível em: http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/View.aspx?title=a-funda%C3%A7%C3%A3o&d=10. Acesso em: 05/10/2016. 161 De acordo com documento do SINASE, a Lei que o instituiu contempla diversos dispositivos que dão abertura à aplicação da Justiça Restaurativa: Art. 1, sobre o que objetivam as medidas socioeducativas. Inciso I “A responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação”; Inciso II “A integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento”; Inciso III “A desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos, observados os limites previstos em lei”. Art. 35 “A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios”. Inciso II “excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos”. Inciso III “prioridade às práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, que atendam as necessidades das vítimas”. Brasil. Lei federal 12.594/2012 apud SINASE, 2014: 58-59.
239
de proferida a sentença, pois “em respeito à sua natureza peculiar de pessoa em
desenvolvimento [jovem considerado infrator], o ECA estabelece também grande
flexibilidade no que se refere ao cumprimento das sentenças impositivas de medidas
socioeducativas” (Idem: 56-57 – grifo meu).
Uma das práticas tidas como de maior sucesso, e capturada de povos chamados
de primitivos pelos denominados civilizados e adaptada à lógica penal, os círculos de
mediação “vítima-ofensor” são aplicados largamente no Brasil, no âmbito da Justiça
Restaurativa, como complementares às medidas socioeducativas, centrada nas
concepções de crime e transgressão, visando a construção de redes de auto-
responsabilização e responsabilidade compartilhada entre o jovem, sua família e a
comunidade. Exemplo disto remonta ao ano de 2014, quando a Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República (também subsidiando) e o Centro de Direitos
Humanos e Educação Popular de Campo Limpo produziram um projeto piloto para
aplicação da Justiça Juvenil Restaurativa em São Caetano do Sul e Campo Limpo, em
parceria com as Varas de Infância e Juventude de São Paulo e São Caetano do Sul,
Coordenadoria da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo,
Ministério Público e Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e
Defensores Públicos da Infância e da Juventude.162
São Caetano do Sul possui diversos outros projetos específicos para orientar
famílias consideradas em situação de risco social e vulnerabilidade, e é tido como
município pioneiro na implementação da Justiça Restaurativa no Brasil, aplicada, desde
2005 na Vara da Infância e da Juventude, incorporada pelo Poder Judiciário e pela
162 Ver: CDHEP, 2014. O relatório ressalta a importância da aplicação do projeto em São Caetano do Sul devido ao alto IDH do município e no Sul do Estado de São Paulo que, em contraposição, possui alto Índice de Vulnerabilidade Social (IVS). Destaca-se também que o projeto responde às recomendações interacionais sobre a aplicação da Justiça Restaurativa, como a Resolução 2002/12 do ECOSOC.
240
Promotoria da Infância – práticas que também estão presentes na maioria das escolas da
região, segundo relatório, “criando familiaridade com o sistema e tendo efeitos
sinérgicos, quando aplicadas no âmbito da Justiça”163. São aplicados principalmente os
círculos restaurativos ou “cirandas restaurativas”, quando aplicadas em crianças (Rocha
da Silva, 2007: 72).
Todos os projetos de implementação da Justiça Restaurativa no Brasil decorrem
em maior ou menor grau das diretrizes e propostas do PNUD em parceria com a
Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério.164 Interessa perceber como a Justiça
Restaurativa mostra-se longe de abrir mão da cultura do castigo, tanto em relação a sua
fundamental complementariedade ao sistema penal formal, quanto ao ser aplicada como
política social em escolas, comunidades, bairros.
Alguns apontamentos sobre a reformulação de políticas sociais, tendo como
efeito as diretrizes de participação elencadas principalmente pela Constituição Federal
de 1988, interessam, nesse sentido, por sinalizarem para tentativas-táticas de
implementação de políticas em nível local. Não apenas em relação à eficiência da
aplicação de políticas sociais que articulam a comunidade com as diretrizes globais da
ONU e do PNUD, como quando articulam tratamentos tanto individualizantes quanto
coletivos, em prol do fortalecimento de responsabilidades. De políticas repressivas à
políticas sociais voltadas à capacitação e desenvolvimento humano, e suas respectivas
transformações no modo de conceber e aplicar punições tanto na complementariedade
163 Idem, p. 79 (grifos meus). 164 Em Porto Alegre (RS), por exemplo, há o programa de Justiça Restaurativa desenvolvido na 3ª Vara Regional do Juizado da Infância e Juventude da cidade, responsável pela execução das medidas socioeducativas previstas pelo ECA. O programa seleciona casos em que o jovem se assume como culpado de ato considerado infracional para dar início à aplicação dos círculos restaurativos, com ou sem a participação da identificada como vítima, e aos “pós-círculos”, quando os coordenadores do programa verificam o cumprimento da medida (Rocha da Silva, 2007: 71).
241
de medidas, como por meio da disseminação de relações de governo que lançam mão de
práticas penalizadoras, tem-se aspectos importantes na composição de uma
governamentalidade planetária conectada com a racionalidade neoliberal e suas
prerrogativas de gestão compartilhada, que extrapola quesitos meramente financeiros.
***
No Quadro de 2007-2011 do PNUD Brasil, que coincide com a implementação
do Programa Conjunto Segurança com Cidadania exposto a seguir, reitera-se a
abordagem do PNUD Brasil com enfoque no conceito de desenvolvimento humano
sustentável e no investimento de ferramentas mais qualitativas e refinadas, como o IDH,
a partir de esforços compartilhados, que reportem as condições nacionais, estatais e
municipais.165
Sobre as propostas do PNUD no Brasil a serem perseguidas, especificamente no
item “escopo internacional”, no que concerne à “redução de vulnerabilidade à
violência”, são elencados três pontos de ação. O primeiro reitera a parceria
multisetorial, a mobilização de agentes governamentais e não governamentais, o
treinamento e replicação de iniciativas locais de sucesso e a transferência de
conhecimento por meio da cooperação Sul-Sul, enfatizando o necessário alcance
governamental de capacidades que integrem diferentes políticas para a construção de
uma cultura de paz. O segundo ponto destaca que, para a garantia do acesso à justiça, o
PNUD expandirá novos modelos de justiça alternativos, ao mesmo tempo em que
contribuirá para a modernização do sistema judiciário. O último e terceiro ponto, por
165 UN. Country Programme Action Plan Between The Government of Brazil and UNDP. New York, 2007, p. 6.
242
sua vez, prioriza a modernização do sistema prisional, uma política de imigração
nacional e a implementação de controle de ativos e recuperação.166
A seguir, será então exposto um programa específico liderado pelo PNUD no
interior do estado do Espírito Santo, que responde a tais diretrizes preconizadas para o
país e necessita da participação de todos os envolvidos num mesmo ambiente. Acaba
por diluir, não apenas a separação artificial entre Estado e sociedade civil como entre
polícia e políticas sociais ancoradas na restauração deste ambiente e dos que o habitam.
implementação de um investimento conjunto
Entre 2010 e 2013, o PNUD (como agência líder) realizou o processo de
implementação do Programa Conjunto da ONU Segurança com Cidadania –
Prevenindo a violência e fortalecendo a cidadania com foco em crianças, adolescentes
e jovens em condições vulneráveis em comunidades brasileiras, junto a outras cinco
agências do Sistema167.
Este Programa foi financiado pelo Fundo para o Alcance dos Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio (ODM) do Governo Espanhol e foi implementado a partir
da seleção de três municípios em regiões metropolitanas brasileiras: Região do
Nacional, em Contagem (MG), Bairro Itinga, em Lauro de Freitas (BA) e Grande São
Pedro, em Vitória (ES), dentre 82 municípios inscritos no edital do Programa. Dentre os
requisitos avaliados para a seleção, tiveram fundamental importância os índices IDH,
IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), IRFS (Índice de
166 Idem, p. 9. 167 São elas: ONU – UNESCO (Organização da ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura), UNICEF (Fundo da ONU para a Infância), OIT (Organização Internacional do Trabalho), UNODC (Escritório da ONU sobre Drogas e Crime) e ONU-Habitat (Programa da ONU para os Assentamentos Humanos).
243
Responsabilidade Fiscal, Social e de Gestão), bem como a indicação da área que
receberia o projeto, contendo dados e justificativas (PNUD, 2014a: 22).
O objetivo central do Programa foi “prevenir a violência, criando ambientes
mais seguros e saudáveis para crianças, adolescentes e jovens, entre 10 e 24 anos”, por
meio de atividades focadas na “promoção da convivência (respeito às normas e
fortalecimento da cidadania); redução de fatores de risco relacionados à violência (...);
promoção da resolução pacífica dos conflitos; acesso à justiça; entre outros” (Idem: 9 –
grifo meu).
Para a composição da análise aqui descrita, optou-se pela exposição da
implementação do Programa Conjunto na região da Grande São Pedro, em Vitória, pela
facilidade de acesso que tive à cidade, e também por ser uma capital brasileira com alto
IDH – o quarto maior IDH municipal do Brasil168 –, pensando no interessante contraste
com a região da Grande São Pedro, indicada no processo de inscrição levando em
consideração o que denominam por suas altas taxas de criminalidade e violência e os
déficits socioculturais.
Além do alto IDH-Municipal, Vitória concentra cerca de 30% do PIB do Estado
do Espírito Santo. Possui o que chamam de notoriedade negativa em índices criminais,
com destaque ao envolvimento de jovens e à violência contra a mulher – segundo o
Mapa da Violência de 2010, o Espírito Santo ocupa a 2ª posição no ranking de
homicídios do Brasil e 1º em relação ao sexo feminino (Ibidem: 16).
A Grande São Pedro, região selecionada pelo Programa, ocupa uma área de
aproximadamente 3.605.759 m² e possui uma população de cerca de 33.748 habitantes,
sendo mais de um terço jovens de 14 à 24 anos (Ibidem: 16). É marcada, segundo
168 G1. “Vitória tem 4º melhor IDH Municipal do Brasil, segundo estudo” in ES. 29/07/2013. Disponível em: http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2013/07/vitoria-tem-4-melhor-idh-municipal-do-brasil-segundo-estudo.html. Acesso em: 30/04/2015.
244
chavão recorrente, por uma “ocupação desordenada”, em decorrência da explosão
demográfica de Vitória, principalmente com o início das operações da Companhia Vale
do Rio Doce e da construção do Porto de Tubarão no local, ao final da década de 1970.
Situada no noroeste de Vitória, é composta por um conglomerado de bairros, onde antes
predominava uma área de mangue – local onde a prefeitura depositava o lixo da cidade
que, por sinal, provia grande parte do sustento das famílias que ali viviam.
Nas décadas de 1970 e 1980, a falta de infraestrutura e serviços nas áreas
ocupadas, em grande medida por migrantes advindos do sul da Bahia e norte do Rio de
Janeiro, provocou a união de moradores desses espaços, apoiados pela Igreja Católica,
em prol da reivindicação de melhorias à prefeitura e ao Estado. Neste contexto, fora
divulgado o documentário Lugar de Toda Pobreza (1983), de Amylton de Almeida, e a
notoriedade da região ganhou espaço, na época acarretando até mesmo na visita do Papa
João Paulo II quando esteve no Espírito Santo, em 1991 (Ibidem: 18). Na década de
1980, um projeto de urbanização da região com extensa participação dos moradores
resultou na construção de uma usina de lixo, em projetos que visaram a melhoria de
salubridade local, preservação do manguezal, além das atuais 17 escolas municipais e
uma estadual, quatro unidades de saúde, uma Policlínica e dois Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS), e diversos programas e projetos desenvolvidos pelo
Estado e pela sociedade civil.
Em 2005, foram incorporadas à então Secretaria Municipal de Segurança Urbana
(SEMSU), as Gerências de Ações de Prevenção à Violência, Gerência de Mobilização
Social e Institucional e Gerência de Pesquisa e Monitoramento da Violência. Visou-se
atuar por meio de ações intersetoriais de prevenção, contando com a participação
comunitária para a redução dos índices de violência e criminalidade. De acordo com
diagnóstico da região de São Pedro feito pela SEMSU em 2005, dentre as causas da
245
violência juvenil estavam principalmente o tráfico, o “abuso de álcool e outras drogas”,
o desemprego e a “falta de cultura de lazer” (Ibidem: 24). Já o diagnóstico realizado
pelo PNUD, em 2011, período de inscrição do Programa Conjunto, indica que a região
situava-se no topo da lista de homicídios, sendo responsável por 26% dos homicídios de
Vitória (Ibidem: 24).
A região da Grande São Pedro foi também selecionada para dar continuidade aos
investimentos que já haviam sido feitos na região, pelo Programa Nacional de
Segurança com Cidadania (PRONASCI), destinado à prevenção, controle e repressão da
criminalidade, articulando ações de segurança pública com políticas sociais169. O
PRONASCI foi instituído em 2007 para “ser executado pela União, por meio da
articulação dos órgãos federais, em regime de cooperação com Estados, Distrito Federal
e Municípios e com a participação das famílias e da comunidade, mediante programas,
projetos e ações de assistência técnica e financeira e mobilização social, visando à
melhoria da segurança pública”170.
As diretrizes do PRONASCI171 podem ser dividas em três grupos centrais que
formam um ciclo expandido de penalizações: 1) As centradas em políticas de
prevenção, destacando-se a promoção dos direitos humanos pela intensificação de uma
cultura de paz, a criação e fortalecimento de redes sociais e comunitárias,
o fortalecimento dos conselhos tutelares, a promoção da segurança e da convivência
pacífica e a garantia do acesso à justiça, especialmente nos territórios vulneráveis; 2) As
centradas em políticas prisionais, desde a modernização das instituições de segurança
pública e do sistema prisional à participação de jovens e adolescentes, de egressos do
169 Cf. OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA. PRONASCI. Disponível em: http://www.observatoriodeseguranca.org/seguranca/pronasci. Acesso em 07/07/2016. 170 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/Lei/L11530.htm. Acesso em: 07/08/2016. 171 Idem.
246
sistema prisional, de famílias expostas à violência urbana e de mulheres em situação de
violência; 3) As centradas em políticas de inclusão, tendo como exemplo a participação
de jovens e adolescentes em situação “vulnerabilidade social” e de moradores de rua em
programas educativos e profissionalizantes com vistas na ressocialização e reintegração
à família; a promoção de estudos, pesquisas e indicadores sobre a violência que
considerem as dimensões de gênero, étnicas, raciais, geracionais e de orientação sexual;
a ressocialização dos indivíduos que cumprem penas privativas de liberdade e egressos
do sistema prisional, mediante implementação de projetos educativos, esportivos e
profissionalizantes.
Vitória é tida como território modelo de efetuação do PRONASCI. Segundo o
ministro da Justiça na época de sua implementação, Tarso Genro, em menos de dois
anos as regiões da cidade atendidas tiveram uma queda significativa nos índices de
homicídio.172 Em São Pedro, foi instalado o projeto Território de Paz, desenvolvido pela
Polícia Militar, integrando diversas ações do PRONASCI em uma única comunidade,
com foco na prevenção e combate à violência. O projeto envolvia iniciativas como o
“Mulheres da Paz” e o “Proteção de Jovens em Território Vulnerável”. Em menos de
um ano, os índices mostraram resultados tidos como satisfatórios pela avaliação do
governo do Estado – a média da redução de homicídios foi de 27% nas regiões com alto
índice de violência em Vitória.173
172 Jus Brasil. Vitória é território modelo do PRONASCI, diz Tarso. Disponível em: http://mj.jusbrasil.com.br/noticias/982951/vitoria-e-territorio-modelo-do-pronasci-diz-tarso. Acesso em: 08/07/2016. 173 Gazeta online. “Homicídios em ‘Território da Paz’ na Grande Vitória tem redução média de 27%” in Notícias. 10/05/2011. Disponível em: http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2011/05/a_gazeta/minuto_a_minuto/847668-homicidios-em-territorio-de-paz-na-grande-vitoria-tem-reducao-media-de-27.html. Acesso em: 08/07/2016.
247
fundamentação conceitual em fluxos
A metodologia do Programa define convivência e segurança cidadã como
conceito que aponta para as diversas causas da violência e, por isso, esta deve ser
enfrentada não apenas com polícia e justiça, mas também com a construção e reforço
das capacidades locais na gestão de segurança dos cidadãos (Ibidem: 9). Busca-se o
empoderamento dos moradores das comunidades selecionadas para fortalecer a
participação efetiva dos mesmos como fundamental para uma boa governança local e
para a construção de um ambiente seguro em que prevaleça uma cultura de paz.
Em um ciclo de conceitos que se retroalimentam construído pelo PNUD, com
base na exposição da cartilha do Programa Conjunto, pode-se descrever que: a
segurança cidadã é o que permite a convivência segura e pacificada no mais ordinário
das relações cotidianas. Aliada aos direitos humanos – tendo como base os direitos
elencados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 adotada pela ONU –,
ela é parte constitutiva da segurança humana. Esta última pode ser resumida como a
busca pela segurança das pessoas por meio do fortalecimento das instituições
democráticas e do Estado de Direito que proporcionam as condições adequadas ao
desenvolvimento humano – processo de ampliação das oportunidades de escolhas das
pessoas e de fortalecimento de suas capacidades para que façam as melhores escolhas.
Já a chamada governança democrática é, como a segurança humana, também favorável
ao desenvolvimento humano por este ser o exercício de participação das pessoas em prol
da democracia ao lado das instituições. O desenvolvimento humano, por sua vez, é
assegurado pela segurança cidadã, que pressupõe a construção do chamado “controle
social democrático”.
248
Legenda: SC – Segurança Cidadã; SH – Segurança Humana; GD – Governança Democrática; DH – Desenvolvimento Humano (Gráfico produzido pela autora).
A segurança cidadã constitui o núcleo duro deste ciclo, porém, o esquema
poderia ser invertido e ela poderia trocar de lugar com desenvolvimento humano, uma
vez que, na própria lógica do PNUD, este último, produto e resultado da segurança
humana e da governança democrática, assegura o “controle social democrático”,
possibilitando a segurança cidadã, entendida como o exercício seguro de participação
dos cidadãos em seus ambientes.
Esta mútua dependência também explica a relação entre as pessoas e o ambiente
– comunitário e institucional –, ou o duplo que compõe o vulnerável à e produtor de
vulnerabilidades. Assim como resiliência e desenvolvimento sustentável, redução de
vulnerabilidades e qualidade de vida. Fluxos de infindáveis práticas produtoras de uma
cultura ampliadora de penalizações, que almeja impedir quaisquer possibilidades de
resistências em meio ao esforço de justificar sua própria existência imbricada em um
emaranhado de conceitos flexíveis e resilientes.
Existe uma vasta e crescente literatura sobre a resiliência, principalmente a partir
dos anos 2000, da qual o PNUD se insere e se utiliza, assumindo a resiliência como uma
249
prática extremamente eficiente na efetivação de suas políticas por conseguir adentrar
tanto nas políticas internacionais e nacionais dos Estados, quanto nos níveis mais
microscópicos e ordinários da conduta de cada um.
Muitas vezes ligada às mudanças climáticas e ambientais, a resiliência está
presente em muitas áreas, subáreas e, de forma interdisciplinar, na psicologia,
psiquiatria, criminologia, serviço social, geopolítica, biologia, ciências sociais, relações
internacionais e segurança internacional, etc. Derivada do verbo “resílio”, que em latim
significa “saltar para trás”, a resiliência estaria centrada contemporaneamente na
capacidade de se adaptar facilmente às chamadas adversidades.
Alguns teóricos, principalmente psicólogos e criminologistas, almejam, com a
resiliência, descobrir as qualidades elásticas internas e externas desta, a fim de ajudarem
as pessoas a “saltar” para além de seu estado original, adaptando-se melhor do que o
esperado. Outros encontram sua eficiência com a apreensão de situações de emergência
nas sociedades, focando na adaptação individual. De acordo com Philippe Bourbeau,
cientista político da Universidade de Namur, Bélgica, com foco no uso da resiliência
nas políticas de segurança e imigração, o conceito teria adentrado nas áreas de Ciência
Política e Securitização por meio das Relações Internacionais, quando conectou-se
resiliência com governança global, em face da liberalização econômica e das reformas
do mercado de trabalho em meio à globalização (2014: 3).
Assumindo que não pode haver completa imunidade a choques e perturbações,
Bourbeau estabelece que a resiliência se dá constantemente em fluxo, não sendo
atributo fixo ou característica imutável de uma sociedade ou indivíduo (Ibidem: 11).
Nesse sentido, o autor expõe como a resiliência transita entre políticas tidas como
alternativas, políticas estatais, práticas comunitárias, etc., confluindo para os ajustes
necessários à governança global e à manutenção da agenda da segurança.
250
Algumas críticas referentes à resiliência no âmbito das estratégias de segurança
nacionais, frente ao que esta literatura define como ameaças – vulnerabilidades –
emergentes da “interdependência global”, giram em torno da relação entre prevenção e
resiliência. Segundo Christian Fjäder (2014: 117-118) – diretor da Agência Nacional de
Emergência de Helsinki, Finlândia –, na ausência de algo como um Estado global, a
resiliência deve corresponder à responsabilidade do Estado nacional na gestão de sua
segurança. Porém, estabelece algumas distinções entre resiliência e segurança,
importantes para perceber a construção estratégia na conceitualização de ambas na
presente análise.
Para o autor, a segurança assume um caráter preventivo de defesa do Estado e
seus cidadãos contra ameaças identificadas pelos meios de inteligência e pela lei.
Portanto, seu sucesso é facilmente verificável. Já a resiliência envolveria a combinação
de medidas pró-ativas e reativas destinadas a reduzir o impacto de ameaças, mas não
preveni-las enquanto tais. A resiliência tende a ser espacialmente menos definida e se
subscrever a uma “abordagem geral de perigos”, quando sugere uma capacidade de se
adaptar às perturbações mais diversas possíveis e se recuperar a partir delas (Idem: 122-
123). Nesse sentido, a resiliência tende a perseguir por uma “gestão de riscos”, fazendo-
se mais eficaz que a própria segurança nacional na medida em que esta possui grandes
chances de falhar frente às probabilidades de efetivação de uma ameaça. Segundo o
autor, não se pretende com a resiliência, porém, substituir a segurança, mas percebê-la
como suporte à segurança dos Estados e à segurança [safety e security] de seus
cidadãos, na medida em que se concentra na capacidade de suportar e adaptar-se a
eventos inesperados, constituindo-se como ótima opção de custo-benefício em termos
de garantia de serviços estatais básicos (Ibidem: 128).
251
Uma das grandes referências e propulsores da inserção da resiliência nas áreas
de estudo contemporâneas foi o canadense Crawford Stanley Holling e seu trabalho
sobre ecossistemas dinâmicos, e a aplicação da teoria da adaptação e resiliência nos
campos da ecologia da população e do comportamento, ainda na década de 1970. De
forma similar ao que Bourbeau aponta sobre a incapacidade da completa erradicação
das ameaças, Holling reconhecera que a busca por um estado de equilíbrio, dando como
exemplo políticas protecionistas, tiveram como consequência a redução da resiliência
em um sistema, deixando-o ainda mais suscetível à perturbações externas. Assumindo a
existência de múltiplos equilíbrios, Holling estabeleceu que mais importante do que a
estabilidade dentro de um domínio é a persistência em se mover de um domínio a outro
(Zebrowski, 2013: 7). No âmbito de sua construção teórica, reitera-se que a resiliência
age como uma capacidade qualitativa para desenvolver a absorção de eventos
inesperados. O papel da governança, correspondendo à resiliência, deveria ser, para
Holling, o de reorientar as condições de capacidades de diversos sistemas, em vez de
mantê-los forçosamente em pontos de equilíbrios.
Quando o neoliberal Friedrich von Hayek ganhou o Prêmio Nobel de economia,
em 1974, por seu trabalho sobre flutuações monetárias e a interdependência dos
fenômenos econômicos, sociais e institucionais174, baseou-se em Holling ao criticar a
aproximação de modelos matemáticos rigorosos à economia. Segundo Christian
Zebrowski (2013: 167), cientista político e editor da revista britânica Resilience, cada
vez mais se utilizou dos discursos de complexidade e resiliência para promover uma
forma de governança econômica liberal sensível ao poder de auto-organizar as
174 Cf. NOBEL PRIZE. Friedrich von Hayek – Facts. Disponível em: https://www.nobelprize.org/nobel_prizes/economic-sciences/laureates/1974/hayek-facts.html. Acesso em: 08/10/2016.
252
capacidades do mercado e conferir limites sobre o grau em que o governo poderia
regular e controlar seus processos.
Interessa situar, agora, o processo de identificação dos domínios que deve-se
estabelecer e fazer transitar a resiliência em um ambiente específico e delimitado, por
meio do levantamento de seus focos de vulnerabilidades que indiquem as táticas a
serem utilizadas, de forma sutil e ajustável.
implementação do conjunto de penalizações restaurativas
As atividades do Programa Conjunto foram precedidas pela visita dos gestores
dos três municípios selecionados a outros ambientes com perfil similar. A primeira
visita foi à Bogotá, na Colômbia, onde, segundo o PNUD, políticas alinhadas à
abordagem da segurança cidadã reverteram a tendência de crescimento da violência.
Segundo a cartilha do Programa, é comum delegações de governos estaduais ou federais
visitarem uma experiência internacional. Portanto, a visita à cidade colombiana
representa uma “quebra de paradigma” (Ibidem: 26) e o reconhecimento da importância,
não menor, de um município para a discussão da segurança pública.
Após a ida à Bogotá, representantes dos três municípios selecionados, das
agências da ONU e do Ministério da Justiça visitaram a experiência da Unidade de
Polícia Pacificadora (UPP) em dois complexos de favelas do Rio de Janeiro. Segundo
João José Barbosa Sana, Secretário de Cidadania e Direitos Humanos da Prefeitura de
Vitória na época, que esteve na visita à Bogotá e ao Rio de Janeiro, a Missão Técnica
foi importante por compreender que o conceito de segurança cidadã não se limita às
ações policiais, mesmo que estas sejam indispensáveis (Ibidem: 36). Já a Representante
da comunidade de São Pedro no Comitê Gestor Local do Programa, após visita às UPPs
no Rio de Janeiro, descreveu:
253
A experiência que eu vivi foi única. No dia do meu aniversário, caminhando com um grupo de pessoas do bem pelas escadarias dos morros no sol escaldante da Cidade Maravilhosa – que eu só conhecia pela TV. Achava que a situação era somente deles e que era diferente das do meu bairro. Percebi ali que os problemas sociais são os mesmos, apesar das diferenças e dificuldades. Reconheci que no meu bairro há muitas opções e várias oportunidades que, por mais que não nos atentemos para elas, são importantes para a pacificação. E que depende de cada um de nós (...) (Ibidem: 44).
Na implementação do Programa Conjunto tem-se como indispensável a atuação
do chamado Ponto Focal – representante da Prefeitura Municipal com poder de decisão.
Ele se relaciona diretamente com a Equipe Técnica do PNUD, com as outras agências
ONU e com o Comitê Gestor Local. Sua principal função é facilitar o funcionamento
dos projetos e práticas ao contribuir que haja articulação e participação de todos. Na
região da Grande São Pedro, o Ponto Focal foi o supracitado Secretário de Cidadania e
Direitos Humanos da Prefeitura de Vitória, até 2012, quando houve troca de prefeitos, e
assumiu Marcelo Nolasco, secretário da nova gestão que já integrava o Comitê Gestor
Local representando a Polícia Civil (Ibidem: 23). Este Comitê Gestor Local, que
aprovava e propunha ações a serem desenvolvidas, foi composto por representantes das
agências da ONU, da comunidade de São Pedro, de oito secretarias municipais
(Segurança Urbana, Educação, Saúde, Cultura, Esporte, Cidadania e Direitos Humanos,
Gestão Estratégica e Assistência Social), bem como por representantes das Polícias
Civil e Militar e do Governo Estadual.
O Programa Conjunto Segurança com Cidadania não se encerrou em si mesmo,
mas constituiu-se, de 2010 a 2013, como a implementação de um processo em contínua
renovação, como é próprio das políticas que visam à construção e a manutenção da paz
na atual sociedade de controle. O Programa Conjunto contou com a sistematização,
tanto da experiência de cada território, quanto da metodologia utilizada e do modo como
ocorreu a articulação entre os três municípios selecionados (Ibidem: 33). Ao final de
254
2013, além das posteriores visitas de consultores do PNUD para a avaliação e
monitoramento, a sistematização da experiência local foi realizada, a fim de garantir que
o “legado” do processo estabelecido pelas atividades prevalecesse, compreendido como
parte de uma “linha evolutiva”.
A metodologia do Programa Conjunto é orientada pelo reforço da cultura de
paz, composto pelo duplo controle e prevenção como garantidor da chamada
governança e participação democrática local (Ibidem: 13).
A seleção do espaço de aplicação, por meio de índices como o IDH e seu ajuste
a outros índices e variáveis mais focalizadas que compõem um conjunto de
instrumentos importantes para definir e mensurar seus alvos, é continuamente refeita
após a aplicação do programa. Monitoramento e avaliação, tidos como dois processos
diferentes, perpassam pela colaboração de Estados, ONGs, instituições, sociedade civil,
setor privado, etc., assim como os indivíduos moradores de um ambiente específico são
vistos como peças fundamentais nas práticas de governo locais alinhadas aos requisitos
da chamada governança global.
Segundo o PNUD, monitorar “é um ato contínuo de observação no qual os
atores sociais envolvidos obtêm retorno de informações sobre o progresso que tem sido
feito para o alcance de metas e objetivos” (PNUD, 2013b: 10). Já avaliar, conectado
diretamente ao ato de monitorar, “é estabelecer um juízo de valor (...). Possibilita um
olhar que identifica responsabilidades e processos a serem disseminados, reforçados ou
reorientados” (Idem: 11).
Nesse sentido, o monitoramento não se constitui apenas como mecanismo
eletrônico, mas está inserido na conduta de cada um na participação e colaboração de
projetos e programas de intervenção. De acordo com Augusto (2012: 92), a eficiência
na gestão de conflitos locais se pauta na contenção de possíveis conflitos ocasionados
255
por contingentes identificados como vulneráveis, não pela punição imediata, mas pelo
círculo de responsabilidades comuns, ligada ao que chama de conduta policial,
fomentada pela gestão compartilhada.
Conforme exposto ao final do capítulo anterior, na perspectiva do PNUD as
crianças e os pobres são inerentemente vulneráveis. Logo, devem ser os maiores focos
de investimento em resiliência. Interessa mostrar, especificamente na comunidade da
Grande São Pedro, a aplicação tática dos princípios da Justiça Restaurativa em todo um
ambiente vulnerável como parte de um grande investimento de dimensões planetárias.
Segundo a cartilha do Programa Conjunto, este pode ser compreendido como um
sistema de promoção da segurança cidadã, que supera o paradigma da segurança
pública como tarefa exclusiva das polícias e do sistema de justiça, para apostar na
segurança como responsabilidade compartilhada que combine controle qualificado e
prevenção (Ibidem: 88).
Portanto, será necessário situar alguns dos projetos implementados pelas
agências da ONU na comunidade, divididos em seis eixos transversais na composição
do “fortalecimento da capacidade institucional em Convivência e Segurança Cidadã”.
São eles: Eixo 1 – fortalecimento da coesão social; Eixo 2 – prevenção de fatores de
risco; Eixo 3 – prevenção à violência intergeracional e contra a mulher; Eixo 4 –
potencialização de espaços urbanos seguros; Eixo 5 – fortalecimento da polícia e da
justiça para relação comunitária; Eixo 6 – prevenção e controle de delitos.
O Eixo 1 vincula o baixo exercício da cidadania e inclusão social aos altos
índices de violência na América Latina. Para o aumento da chamada coesão social,
destaca-se a importância da mediação para a prevenção e gestão de conflitos. Nesta
linha, um dos projetos (Ibidem: 53), promovido pela ONU-Habitat, priorizou a
formação de um ambiente de diálogo entre polícia e comunidade, não para formar
256
mediadores, mas para auxiliá-los no entendimento das atuações e funções diárias de
ambos. Outro projeto, promovido pela mesma agência, de forma complementar, visou
aperfeiçoar as ações dos técnicos da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos da
Prefeitura na mediação de conflitos e elaborar um projeto de mediação comunitária de
conflitos.
No Eixo 2, dentre os projetos que visam a conscientização em relação ao uso de
armas e substâncias ilícitas como produtores de vulnerabilidades, chama atenção um
programa internacional, promovido pela UNODC (Escritório da ONU sobre Drogas e
Crime) desde 1956. Intitulado Mérito Juvenil, tem como objetivo “promover o
autodesenvolvimento de jovens, através da superação individual por meio do
cumprimento voluntário de regras, da autorregulação do comportamento e da promoção
de mecanismos de controle social” (Ibidem: 60 – grifo meu). O programa visa à
formação de líderes e destaca o voluntariado como impulsionador da cidadania.
Já os Eixos 5 e 6 reúnem projetos focados no fortalecimento da união entre
polícia e comunidade, mediadas pelo sistema de justiça. O Eixo 6 apresenta apenas dois
projetos. Um deles foi uma oficina organizada pela UNICEF sobre o Sistema Nacional
de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Voltada para o fortalecimento do Sistema
de Garantias e Direitos (SGD) que tem como foco o atendimento a adolescentes “em
conflito com a lei”, deu especial atenção à aplicação da Lei Federal 12.594 de abril de
2012175, que instituiu o SINASE e regulamenta o acompanhamento do cumprimento da
medida socioeducativa atribuída ao adolescente considerado “conflitante com a lei”.
Já o Eixo 5 conta com inúmeros projetos, todos voltados para o fortalecimento
tanto da polícia como da comunidade, e também da relação entre ambos. Porém, um
deles merece atenção por ter sido considerado, pelo próprio Programa Conjunto, aquele
175 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm.
257
que traduziu e concretizou a compreensão e incorporação dos conceitos e preceitos da
abordagem da segurança cidadã ao integrar todas as políticas de prevenção da
segurança – o projeto Papo Reto, como será exposto à frente, realizado conjuntamente
pela Polícia Militar, Polícia Civil, Guarda Municipal, Corpo de Bombeiros, Prefeitura
de Vitória, o PNUD e a comunidade de São Pedro.
distinções complementares
Conforme já sinalizado176, a nova razão governamental no século XVIII, que
produziu a governamentalização do Estado, teve como pontos de apoio a pastoral, a
nova técnica diplomático-militar entre os Estados e a polícia. Em Segurança, território,
população, Foucault mostra que, se nos séculos XV e XVI “polícia” designava
simplesmente uma autoridade pública que regia uma comunidade, a partir do século
XVII ela designará o conjunto dos meios pelos quais é possível garantir o crescimento
do Estado por meio de uma relação móvel entre sua ordem interna e o crescimento de
suas forças externas (Foucault, 2008: 420-421). Na Alemanha, a divisão territorial fez
com que seus Estados tornassem-se pequenos laboratórios microestatais que puderam
servir de modelo e de estudo da polícia, também por influência das universidades, que
tornaram-se lugares de formação de administradores que deveriam ocupar-se do
desenvolvimento das forças do Estado e de reflexão sobre as técnicas a serem
empregadas (Idem: 427). O que se constituirá, neste momento, como ciência da polícia
(Polizeiwissenschaft), se ocupará da vida das pessoas, sendo capaz de articular,
simplesmente, a força do Estado e a felicidade dos homens como a própria força do
Estado (Ibidem: 439). Ela se ocupará de saber o número dos homens em atividade, das
176 Ver início do item 1.2. desta dissertação.
258
necessidades dos homens a fim de zelar pelas suas vidas, da saúde deles, do problema
da circulação de mercadorias – oriundas das atividades dos homens –, etc.
Já no século XVIII, com o esboço de uma forma de governamentalidade, esta
incluiu a crítica ao Estado de polícia em função da economia como pensamento que
deveria compreender as possibilidades, eventualidades, novos cálculos específicos dessa
arte de governar. O aparecimento da população como conjunto de fenômenos naturais
que se produz entre as interações dos indivíduos, e que compartilhará da arte de
governar, não mais restrita à prática dos governantes, possibilitará o deslocamento da
forma de intervenção regulamentar para a gestão da população, por meio de
mecanismos de segurança (Ibidem: 473-474). A polícia do século XVII será
desarticulada para tomar corpo dois fenômenos: a economia como gestão da população
e a polícia como instrumento repressor e negativo de impedir certas desordens (Ibidem:
475). Esta distinção, segundo Foucault aparecerá no que os teóricos da época
discerniam como Polizei, mantendo a definição anterior de polícia do século XVI, e
Politik, referente a essa tarefa negativa de controle da população.
Segundo Acácio Augusto, acompanhando a exposição de Foucault, essa
distinção sofrerá uma bifurcação mais precisa ao longo dos séculos XIX e XX,
percebida na língua inglesa com a diferenciação entre police e policy e, no Brasil, entre
“políticas públicas” e polícia. De forma complementar, ambas voltam-se aos mesmos
alvos e assumem uma distinção bastante turva: “cada vez mais as políticas sociais fazem
papel de polícia e a polícia repressiva é convocada a fazer o papel de assistente social.
Ambas se voltam aos contingentes classificados pelos índices econométricos (da
microeconomia) como vulneráveis, ou seja, alvo e agentes de carências (materiais e de
direitos) e violências (simbólicas e diretas)” (Augusto, 2015: 72).
259
Nesse sentido, merece destaque para a presente análise o projeto Papo Reto,
realizado na Grande São Pedro desde janeiro de 2013, desenvolvido pela Polícia
Militar, Polícia Civil, Guarda Municipal, Corpo de Bombeiros, Prefeitura de Vitória, a
própria comunidade de São Pedro e o PNUD, com o objetivo de estabelecer uma
“reflexão conjunta sobre a corresponsabilidade na segurança” (Ibidem: 74). Faz-se
importante, portanto, para mostrar um pouco desta relação turva, tênue e complementar
entre polícia e política social, entre relações de poder permeadas por repressões e
positividades, entre formas descendentes e ascendentes do poder, bem como os efeitos
produzidos pelas práticas envolvidas neste pequeno projeto – porém de projeção
planetária –, pautadas por princípios tanto formais do Estado quanto de formas tidas
como alternativas, como pretende-se assumir a Justiça Restaurativa.
um projeto policial para os vulneráveis
O projeto Papo Reto teve como objetivo “estreitar as relações entre forças
policiais e comunidade, com foco na juventude”, contando com 20 facilitadores
capacitados e cerca de 500 pessoas envolvidas nas rodas de conversa, até junho de 2013.
Estas rodas de conversa – metodologia do projeto – tinham como principal objetivo
desmistificar a “imagem negativa” do policial para a comunidade e vice-versa, em prol
de disseminar a ideia de corresponsabilidade na segurança. Estas reuniões, realizadas
nas próprias escolas, no CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e também
nas sedes policiais, envolviam policiais, moradores da comunidade, técnicos da
Prefeitura e crianças e jovens das 7ª, 8ª série do Ensino Fundamental e 1º ano do Ensino
Médio da Grande São Pedro.
O Papo Reto é considerado pioneiro neste tipo de trabalho conjunto entre as
forças policiais – Militar, Civil e Guarda Municipal. Seu início foi marcado pela visita
260
de Jorge Chediek, Coordenador Residente do Sistema ONU no Brasil e Representante-
Residente do PNUD, que participou da roda de abertura do projeto.
O nome do projeto, “Papo Reto”, diz respeito à importância do diálogo entre
todos os membros da sociedade, como responsáveis pela “cultura da segurança cidadã”
(Ibidem: 75), algo que pode ser percebido, neste contexto, como sinônimo da própria
“cultura de paz”. Uma das grandes demandas avaliadas para o projeto é a necessidade
de interação comunitária entre a Polícia Miliar (PM) e os jovens da comunidade,
considerados vulneráveis, muito por serem “cooptados para a prática criminosa”,
segundo o Comandante da PM e integrante do Comitê Gestor Local. Como encontrado
nos discursos da Justiça Restaurativa, visa-se a aproximação entre polícia e comunidade
como forma de prevenção ligada ao que seria uma justiça alternativa legal, em
contraposição à justiça alternativa ilegal ou “justiça do gueto” que, conforme visto no
RDH de 2014 para a América Latina, exerceriam “violência ilegal”. Já a violência legal,
por parte da polícia, intrínseca à sua abordagem diária, não é entendida como violenta,
mas contendo “energia”. Segundo o Capitão da PM e facilitador do Papo Reto:
Pra que você age com energia? Para você diminuir a possibilidade de ação da outra parte. Nesse contexto, muitos entendem como truculenta a abordagem, porque ela precisa de energia, ela precisa de um pouco de vivacidade, o policial tem que chegar com um pouco de energia, falar com um tom de voz um pouco mais elevado pra demonstrar um pouco mais de... de força mesmo, né? Agora... Eu tenho que procurar identificar as minhas falhas, identificar as falhas dos meus policiais, corrigi-las e prestar um serviço de acordo com os anseios da sociedade (Capitão Alves Christ in PNUD, 2013 – DVD Papo Reto).
Ao mesmo tempo em que o policial assume a necessidade de força ou, como
prefere, de “energia” em sua abordagem – mesmo porque “abordar” carrega
necessariamente a relação descendente entre uma pessoa que aborda e outra que é
abordada –, ele toma como “freio” à esta conduta a prestação à sociedade combinada ao
261
clamor e anseios desta. A polícia é percebida, inclusive, como agente social integrante
da sociedade, e não uma força externa:
Além de estarmos focados em atingir o objetivo geral do projeto, nos fez internalizar um objetivo maior, que extrapola o escrito na metodologia de trabalho do Papo Reto: unir pessoas, seres humanos. Isso nos faz ainda refletir que, por baixo da farda que os agentes de segurança vestem ou das roupas consideradas estereotipadas que a sociedade veste, existe, antes de tudo, um ser humano, que tem seus acertos, erros, sonhos, anseios, defeitos, etc. (Barcelos e Tristão in PNUD, 2014a: 76).
A polícia como instituição é cada vez mais diluída em meio à comunidade, não
em termos de diminuição de sua importância como agente da ordem, mas quando seu
papel é cada vez mais percebido como propulsor e aliado ao fomento de uma conduta
responsável alinhada à pacificação das relações sociais como conveniente ao
estabelecimento de uma cultura de paz. Segundo depoimento de Lena Côgo, facilitadora
do Papo Reto e coordenadora do Circuito Cultural de Vitória:
A gente vislumbra, com o Papo Reto, um estreitamento de relações, entre órgãos de segurança e comunidade, buscando cultura de paz (...). Esse é o grande efeito dessa ferramenta que é o Papo Reto: é colocar as pessoas, de várias tribos, do mesmo tamanho (Lena Côgo in PNUD, 2013 – DVD Papo Reto).
Assim, uma vez que segurança é tida como sinônimo de paz, e quando a polícia
é entendia como órgão de segurança, a violência é atrelada, cada vez mais à falta de
oportunidades como garantia do uso de capacidades que visem a produção de
resiliência e a redução de vulnerabilidades. A violência está conectada, nesta lógica, à
“falta de acesso” – ao consumo, aos direitos, às oportunidades de escolha, etc. O alvo
não é a abolição da violência, mas a gestão das vulnerabilidades. E estas estão
diretamente vinculadas ao alvo, tanto da proliferação de direitos e deveres em âmbito
planetário, quanto da violência intrínseca da polícia e do sistema penal. Na farda da
Polícia Civil Metropolitana envolvida com o Projeto Papo Reto está escrito, do lado
262
esquerdo: “polícia comunitária – CULTURA DE PAZ” e do lado direito:
“JUVENTUDE – núcleo de prevenção”. No depoimento do diretor de uma escola
municipal de São Pedro, onde fora realizado grande parte das atividades do projeto Papo
Reto, fica mais evidente a relação entre política social e polícia, turvada em decorrência
do mesmo alvo a ser combatido:
Então, uma sociedade que não tem uma política para a juventude, uma sociedade onde as pessoas não tem pleno emprego, uma sociedade que não garante segurança alimentar, é uma sociedade excludente. As razões principais da violência não são subjetivas, são objetivas. Então, por mais que nós façamos, e devemos fazer, trabalho com os meninos de conscientização, de discussão dos seus problemas, se não houver de fato uma intervenção social, nós não vamos resolver o problema da violência no Brasil (Madson Batista in PNUD, 2013 – DVD Papo Reto).
Foto: atividade do Projeto Papo Reto (PNUD, 2013 – DVD Papo Reto).
***
263
Após a chamada Guerra Fria, uma revisão no âmbito do Conselho de Segurança
da ONU possibilitou que as operações de paz se ampliassem de missões tradicionais,
envolvendo somente tarefas estritamente militares, às tarefas “multidimensionais”, que
assegurassem de forma mais eficiente a implementação e acompanhamento dos acordos
de paz em prol de uma paz sustentável. O processo de transição democrática na
Somália, acompanhado pela ONU, fez do país um dos modelos mais bem sucedidos e
emblemáticos, mesmo que até hoje esteja sempre em “alerta máximo” nos rankings dos
chamados Estados falidos. Para o alcance de uma paz sustentável, como pôde mostrar o
trabalho do PNUD na Somália, a intervenção militar parece menos eficiente do que a
cooperação por meio da participação inclusiva junto aos vulneráveis, embora não se
abra mão da “energia” policial como constitutiva das novas formas de penalização
compartilhadas por todos os que estão disponíveis a policiar e ser policiado, inclusive
seus alvos.
Em meados de 2016, em visita à Casa do Cidadão, espaço que oferece diversos
serviços da Prefeitura de Vitória, pude conversar brevemente com a Assistente Social da
Gerência de Juventude no pavilhão da Secretaria de Cidadania e Direitos Humanos
(SEMCID) sobre o processo de implementação do Programa Conjunto da ONU,
Segurança com Cidadania, e do Projeto Papo Reto, um de seus maiores “legados”. A
Assistente Social e integrante do Comitê Gestor Local do Programa contou-me um
pouco da história de São Pedro, antes um lixão, e do forte envolvimento dos jovens
moradores e da luta pela vida que marcou e ainda marca aquele espaço. Ela chamou
atenção sobre a grande quantidade de serviços na região – escolas, hospitais, centros de
atendimento –, bem como o constante investimento da sociedade civil, moradores e
lideranças da região, que nunca conseguiram diminuir as altas taxas de violência
264
construídas pelos índices, cujos dados são provenientes da Secretaria Estadual de
Segurança Pública e do Observatório de Segurança e Violência de Vitória.
Ao contar sobre o Projeto Papo Reto, ela mencionou algumas tentativas
anteriores à sua efetivação, e também sobre as disputas entre as polícias, bem como e
existência de projetos similares, como o Projeto Papo Responsa, nas escolas do Rio de
Janeiro, realizado apenas pela Polícia Civil. Elencou como importantes alguns projetos
como o Ocupação Social177, que oferece cursos de qualificação aos jovens considerados
em “situação de risco social”, em cidades do interior do Estado do Espírito Santo, mas
que chegou ao fim quando da troca de prefeitos; e criticou outros projetos, como o
Projeto Estar Presente, implementado pelo então governador do Estado na época,
Renato Casagrande, por causa do investimento em modernização da polícia e mínimo
investimento em políticas sociais.
Ao perguntá-la sobre a seleção e treinamento dos policiais envolvidos no
Programa Conjunto, a Assistente Social e facilitadora respondeu-me que eles eram
selecionados de acordo com o perfil requerido pelo Comandante da PM e integrante do
Comitê Gestor Local do Programa. Porém, ela chamou atenção para a hostilização por
parte dos policiais que denominou de “faca na caveira” aos que se envolveram com as
atividades do Programa, com a provocação de que estes últimos estariam “fugindo do
trabalho” e “com medo de ir para a rua”.
A Assistente Social, assim como outros funcionários da SEMCID que tiveram
algum envolvimento com o Programa Conjunto, não mencionaram nenhuma das
palavras-chave do discurso da segurança cidadã. Falou-se em violência e falou-se em
177 SENAI. “SENAI-ES inicia projeto Ocupação Social com ofertas de vaga gratuitas” in Notícias. Disponível em: http://www.senai-es.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=298:senai-inicia-projeto-ocupacao-social-com-ofertas-de-vagas-gratuitas&catid=23:noticias&Itemid=144. Acesso em: 25/08/2016.
265
índices, taxas, números. A expressão cultura de paz foi mencionada apenas em termos
protocolares, e nada se falou sobre cidadania, desenvolvimento sustentável, resiliência.
Isso não significa que a linguagem não se faz relevante. A linguagem é um dos inícios
marcados pelos castigos, dos quais abolicionistas e libertários voltaram-se para
combater primeiro em si mesmos, em suas atitudes, em suas relações. Mas alerta para a
naturalização de uma conduta, para a introjeção de regras e normas que operacionalizam
e se retroalimentam junto ao discurso dos infindáveis conceitos carregados do humano,
que não pretendem se ocupar com gente, estancar a violência regular, sistemática e
cotidiana exercida sobre gente e retroalimentada pelas práticas de gente que se entrega,
que se dispõem a identificar-se como vulnerável passível de tornar-se resiliente; em
desenvolvimento. Esta expressão não parece estar limitada aos países, mas também diz
respeito ao alvo preferencial da resiliência: aqueles que estão em vias de tornar-se
humano responsável, racional. Incide, preferencialmente, sobre o que não tem governo;
tem como alvo preferencial as crianças.
***
Para a funcionária da Prefeitura, o Programa não foi um sucesso. Sua
implementação chegou ao fim e deixou como legado uma Cartilha e projetos que
continuaram em funcionamento, como o Papo Reto. Segundo a Assistente Social que
conversei, dois consultores do PNUD foram realizar avaliação do monitoramento no
local, em 2015 e no início de 2016. Porém, houve troca de prefeitos e falta de
investimento nos servidores efetivos da prefeitura. As pessoas logo deixaram de se
engajar com a restauração de São Pedro, e a atual falta de “governabilidade” prejudica a
implementação de novas atividades, complementou.
266
Porém, este Programa não foi pequeno, não foi irrelevante, não foi “mal
executado”. Ele possui dimensões que extrapolam a Grande, porém delimitada região de
São Pedro. Poderia ter sido implementado em outro país, na África, ou em qualquer
outro ambiente que os índices e suas variáveis revelam como contendo altos graus de
vulnerabilidades. O investimento dispendido pelo Fundo Espanhol para a realização dos
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU foi ínfimo se relativo ao imenso
orçamento da ONU, majoritariamente financiado pelos EUA, mas se faz altíssimo em
termos de laboratório e modelo a ser replicado por meio de tentativas táticas de uma
estratégia que se pretende planetária. Conforme uma funcionária da Prefeitura de
Vitória e representante da comunidade no Comitê Gestor Local, durante reunião do
Programa Conjunto, “São Pedro não está ganhando nada. São Pedro está construindo
junto” (PNUD, 2014a: 88).
3.3. reinserção da guerra e produção da paz social
da tentativa de pacificação das relações sociais
Pierre-Joseph Proudhon foi um dos primeiros a utilizar a palavra anarquia de
forma positiva, afastando-se do uso comum que a entende como sinônimo de desordem.
Diferente do regime democrático regido pelo governo de todos por cada um, ou do
comunismo em que prevaleceria o governo de todos por todos, a anarquia seria o
governo de cada um por cada um (Proudhon, 1986: 27). Tampouco a palavra anarquia,
tal como afirmada por Proudhon, poderia ser aproximada aos redimensionamentos
contemporâneos da anarquia como desordem, no âmbito das Relações Internacionais,
quando referida como “anarquia internacional”, entendida como propensão à guerra e
falta de equilíbrio entre os Estados.
267
Para o anarquista, a guerra travada pelos Estados, sustentada pelo regime da
propriedade, era completamente diferente do vivo embate de forças que permeiam as
relações cotidianas e constituem a infindável pequena guerra. Em A guerra e a paz,
livro publicado pela primeira vez em 1861, Proudhon afirmava que ambas, longe de
serem estados excludentes, são termos universais inseparáveis que sustentam-se,
definem-se reciprocamente e complementam-se. Evidenciava como a ideia de uma paz
universal é tão categórica quando a ideia de guerra, uma vez que “a paz demonstra e
confirma a guerra; a guerra, por sua vez, é uma reivindicação da paz (...) [e] o
Pacificador é um conquistador, cujo reino se estabelece pelo triunfo” (Proudhon, 2011:
24).
Por meio de sua análise serial apartou-se de sistemas, ciências e objetos
universais para afirmar a continuidade e diversidade das séries de movimentos de
forças, não como substâncias ou causas, mas conjunto de relações e elasticidades
(Proudhon, 1986: 43-44). Na política, as séries “autoridade” e “liberdade”, como
incompatíveis e inconciliáveis, são irredutíveis; não passíveis de atingirem uma síntese,
como na dialética hegeliana. A autoridade, o quanto maior se torna, precisa da liberdade
para fazer concessões, por exemplo. Já a liberdade, como um regime, torna-se cada vez
mais próxima de seu ideal o quanto mais o Estado e sua população crescem, o quanto
mais se multiplicam estas relações (Idem: 70). Da mesma forma, enquanto se instaura a
paz como conquista do mais forte trajada de bem comum, a pequena guerra não cessa
de se exercitar (Proudhon, 2011: 30).
Proudhon entende as relações humanas e também entre as unidades políticas
como uma tensão permanente sem possibilidade de pacificação completa, ainda que a
guerra e os massacres produzidos pelo Estado devam ser superados com seu próprio
fim. Nesse sentido, a anarquia não seria sinônimo de pacificação, mas a guerra material
268
fundada no Estado poderia ser superada pelo federalismo político e mutualismo
econômico, e a guerra como combate incessante e elemento articulador da sociedade
seria afirmada nessas livres associações (Rodrigues, 2010: 203).
Em oposição à lógica contratualista sobre o Estado e a justiça como “estado
social” e “paz civil”, Proudhon afirma-o como sendo o próprio “estado de guerra”.
Segundo Thiago Rodrigues, acompanhando Proudhon,
O estado de organização dos homens orientado pelo princípio da centralização do poder político e da defesa da propriedade é uma forma de ordem social produzida e reproduzida pela guerra (...). Isso que chamamos paz é a guerra sob outro aspecto: não é a luta aberta dos campos de batalha, com os exércitos postados frente a frente, mas é uma outra manifestação da guerra (Idem: 209).
As guerras grandes, realizadas entre os Estados sob a justificativa da paz, levam
apenas a uma outra situação, em que a paz se estabelece como pequena guerra (Ibidem:
210-211). A guerra é, portanto, condição do homem (Ibidem: 204); motor das relações
humanas independentemente do regime político, situados tanto nas séries “liberdade”
como “autoridade”. Diferente de Kant e seu conceito de paz perpétua como ausência
total de conflito, Proudhon afasta-se da metafísica e da ideia de “paz” ou de “guerra”,
afirmando o embate perpétuo das forças antagônicas que jamais resultam em uma
síntese definitiva. As federações propostas pelo anarquista poderiam dissolver-se ou
transformar-se continuamente, em consonância com a luta permanente entre os
indivíduos:
Essa paz belicista seria, assim, uma forma de guerra continuada não nas instituições e destinada a sujeitar os indivíduos, mas uma guerra como próprio exercício da liberdade, manifesta nas diferenças sempre inesperadas, inéditas, inventivas; nas divergências, nos estímulos mútuos, nas complementaridades econômicas e no fortalecimento comum pela atividade guerreira (Ibidem: 254).
269
Para o PNUD e sua ideia de desenvolvimento humano em que subjaz o princípio
kantiano de igualdade de oportunidades como consagrado na Carta de fundação das
Nações Unidas, a paz é tida como segurança das escolhas “livres” e empoderadas
(PNUD, 2014b: 119). A Justiça Restaurativa, como tentativa-tática, opera sua
seletividade de forma não restrita a um caso, indicação ou estatuto específicos. No caso
do Segurança com Cidadania, como programa local que funcionou como modelo e
laboratório de implementação de políticas, suas práticas mediadoras e penalizadoras
recaíram sobre um ambiente por inteiro, classificado pelo IDH e suas derivações como
proliferador de vulnerabilidades e, portanto, inseguro. A paz, no âmbito deste tipo de
programa, não pretende estancar a violência, apenas gerir vulnerabilidades de forma
seletiva, ampliando penalizações ao voltar-se ao que é situado como pacificação das
relações sociais (De Vitto, 2005: 42). Nesta lógica, a ineficiência do cárcere em termos
de prevenção dos considerados crimes indica que a pena não deve ser um fim em si
mesmo, mas voltada à pacificação das relações sociais como forma de eliminar as
inesperadas e inúmeras possibilidades de embates e confrontos – nomeados, de forma
estratégica, como conflitos, pressupostos como fatos acidentalmente não controlados.
Segundo De Vitto, um dos organizadores da coletânea Justiça Restaurativa, publicada
pelo PNUD,
O modelo integrador se apresenta como o mais ambicioso plano de reação ao delito. Ele volta sua atenção não só para a sociedade ou para o infrator, mas pretende conciliar os interesses e expectativas de todas as partes envolvidas no problema criminal, por meio da pacificação da relação social conflituosa que o originou. (...) O modelo se corporifica pela confrontação das partes envolvidas no conflito, com a utilização do instrumental da mediação, por fórmulas que devem observar os direitos fundamentais do infrator (Idem: 43 – grifo meu).
Quando se destaca a importância da chamada resolução de conflitos para além
do escopo do Estado, torna-se evidente a continuidade das estratégias e relações de
270
poder que atravessam os indivíduos. No caso da Justiça Restaurativa, destaca-se o
“acesso à justiça” como central para um aumento de percepção e empoderamento dos
indivíduos e da comunidade para tratar de seus conflitos, tendo em vista a pacificação
social (Azevedo, 2005: 135) como principal objetivo.
Conforme explicitado, a pacificação não significa um estágio consolidado de
ausência de guerra e relações de poder. A tentativa de pacificação das relações sociais
pode ser entendida como investimento em resiliência – oposta às resistências que, como
a pequena guerra, não cessam de acontecer. Em meio à manutenção de forças em prol
da melhoria e fortalecimento do Estado, visa-se, também, a construção de Estados
resilientes, uma vez que a Justiça Restaurativa é considerada resposta à “percepção de
que o Estado tem falhado na sua missão pacificadora” (Idem: 139), em razão de fatores
como a sobrecarga dos tribunais e despesas com o excessivo formalismo processual
(Ibidem: 139).
Nesse sentido, conforme pontua um juiz sobre a implantação de um Projeto
Piloto de Justiça Restaurativa em Brasília em citação no artigo inaugural da coletânea
Justiça Restaurativa, “em delitos envolvendo violência doméstica, relações de
vizinhança, no ambiente escolar ou na ofensa à honra, por exemplo, mais importante do
que uma punição é a adoção de medidas que impeçam a instauração de um estado de
beligerância e a consequente agravação do conflito” (Sousa apud Pinto, 2005: 20 –
grifos meus). Como conclusão, Renato Pinto – autor do referido artigo – estabelece que:
O modelo restaurativo pode ser visto como uma síntese dialética, pelo potencial que tem para responder às demandas da sociedade por eficácia do sistema, sem descuidar dos direitos e garantias constitucionais, da necessidade de ressocialização dos infratores, da reparação às vítimas e comunidade e ainda revestir-se de um necessário abolicionismo moderado (Idem: 20 – grifos meus).
271
No artigo de Eduardo Rezende Melo, sobre os fundamentos ético-filosóficos da
Justiça Restaurativa, também integrando a coletânea publicada pelo PNUD, o autor
acredita realizar uma crítica radical a Kant e seu conceito de liberdade por meio da
desconstrução de valores morais, como o dever e a necessidade do castigo, para abrir
espaço à emergência de outro sistema, a partir de uma filosofia crítico-valorativa
(Rezende Melo, 2005: 56). Segundo Melo, a necessidade do castigo presente no modelo
retributivo decorre de um modelo de sociedade fundada em valores em que, para fazer
valer sua universalidade, devem extirpar qualquer erro ou desvio, fazendo com que a
coerção e o castigo sejam apresentados como condição para a coexistência humana
(Idem: 58), numa rigidez sempre presa a uma situação passada.
O autor entende a Justiça Restaurativa como contraste radical ao modelo
retributivo por, entre outros pontos elencados, dar vazão a um acertamento horizontal e
pluralista daquilo que pode ser considerado justo pelos envolvidos em uma “situação de
conflito” e por romper com a cisão entre interioridade e exterioridade que marca a
concepção kantiana, remetendo, então, à possibilidade de emancipação pelo
comprometimento pessoal em tais situações (Ibidem: 60):
Colocá-los [vítima e agressor] um em frente ao outro para avaliarem o conflito faz com que tenham necessariamente de atentar a perspectivas outras de avaliação que não as suas e, com isto, de reavaliar suas próprias condutas, de reavaliar a si mesmos. Uma densidade subjetiva própria apenas à negociação e ao estabelecimento do compromisso pode emergir (Ibidem: 62).
O autor defende a passagem de uma ordem fundada no contrato social,
principalmente de matriz kantiana, que expressa uma vontade única geral, para uma
ordem do consenso ou da negociação, em que “o princípio da universalização não está
ao nível de um direito, mas numa sociologia de interdependências objetivas” (Ibidem:
62). Assim, continua, ao pautar sua conduta não mais por uma ética de fundamentação,
272
mas sim por uma “ética da reflexão da própria moral ante outras morais” é que se abre
espaço a um chamamento à responsabilidade individual (Ibidem: 65). Rezende conclui,
por fim, que neste contexto de auto-avaliação na qual se insere a Justiça Restaurativa,
abre-se espaço, não para um novo ideal de homem, mas para um novo ideal a ser
decidido pelo homem “dentro de um ambiente negociado e, portanto, democraticamente
participativo para a realização da justiça” (Ibidem: 71).
A única vez em que a palavra “abolicionismo” aparece na coletânea Justiça
Restaurativa, composta por 19 artigos, está acompanhada do adjetivo “moderado” e
compõe uma medida para o impedimento da consolidação de um “estado de
beligerância” e agravação de conflitos. Na exposição de Renato Pinto descrita acima,
sobre um novo ideal para o homem fundado no consenso, encontra-se,
simultaneamente, uma descrição exemplar sobre a moderação e sua eficiência em
termos de captura de resistências por meio de políticas de inclusão e da convocação à
participação (Passetti, 2007). Com a moderação, conforme apontamentos de Passetti e
de acordo com o que a presente pesquisa busca mostrar sobre a relação bastante estreita
entre polícia e política social, que combinam aspectos positivos vinculados a uma ética
da responsabilidade à repressividade do poder, espera-se que cada um saiba se auto-
governar de forma atenta às tendências e comportamentos dos outros.
moral da restauração
Afastando-se, como Proudhon, da lógica contratualista de consolidação da paz
como oposição a um “estado social”, Michel Foucault elabora a noção de guerra civil
como analisadora das relações de poder (Foucault, 2015: 13). Seu curso A sociedade
punitiva, proferido no Collège de France nos anos de 1972 e 1973, antecede e faz parte
do conjunto de análises de Vigiar e Punir, publicado em 1975, e é onde se propõe a
273
investigar o sistema penal e suas táticas penais, como a reclusão. O filósofo as nomeia
de “táticas de luta” por identificar que, no período de instauração do grande sistema
penal na França, por volta de 1825, não estava em curso a guerra de todos contra todos,
como na perspectiva hobbesiana, mas uma guerra social – dos ricos contra os pobres,
dos proprietários contra os que nada possuem, dos patrões contra os proletários (Ibidem:
21). Nesse sentido, Foucault aponta para a impossibilidade de uma guerra civil sem o
confronto de elementos coletivos: “a guerra civil não é uma espécie de antítese do poder
(...). A guerra civil desenrola-se no teatro do poder. Não há guerra civil a não ser no
elemento do poder político constituído; ela se desenrola para manter ou para conquistar
o poder, para confisca-lo ou transformá-lo” (Ibidem: 28).
É importante ressaltar que a noção de guerra civil utilizada por Foucault – mais
tarde reformulada pelo próprio autor ao afirmar que “a política é a guerra continuada
por outros meios” (Foucault, 2010: 15) – não deve ser confundida com o estatuto
jurídico referente às guerras no interior dos Estados e pelo poder de Estado. No âmbito
do liberalismo, John Locke (2006), por exemplo, lhe concedeu o estatuto da legalidade
em caso específico de quebra do contrato social, em vias de repor um soberano.
Atualmente, o conceito de guerra civil é também utilizado, principalmente no âmbito
das Relações Internacionais, para justificar intervenções militares forjadas pelo discurso
da construção de Estados considerados falidos, como exposto no segundo capítulo desta
dissertação. Ao permanecer sob o ponto de vista da política como guerra civil, portanto,
Foucault observará o desenvolvimento de práticas coercitivas cotidianas cujos efeitos
agem de forma positiva sobre os indivíduos, visando transformá-los e corrigi-los do
ponto de vista moral, e em vias de produzir utilidades no processo de implementação,
pelo capitalismo, de suas próprias formas de poder político (Ibidem: 103).
274
No que se refere ao sistema penal, tem-se, com os teóricos do século XVIII,
como Beccaria e Bentham, a formulação do crime como aquilo que prejudica a
sociedade; um gesto por meio do qual o indivíduo rompe com o pacto social e entra em
guerra contra a própria sociedade (Ibidem: 31). A partir do fim do século XVIII, tem-se
a instauração de uma série de instituições jurídicas que constituirão o personagem do
criminoso, complementarmente, no âmbito do saber, à emergência da possibilidade de
vincular uma apreensão psicopatológica ou psiquiátrica do criminoso como alguém
incapaz de se adaptar à sociedade (Ibidem: 33-34). Com os fisiocratas, por sua vez,
naquele período, tem-se o “vagabundo” e possível delinquente como hostil, também,
aos mecanismos de produção, demarcando a transformação da força de trabalho em
força produtiva como constitutiva da nossa sociedade (Ibidem: 48).
Foucault observa, sobre a introdução da prisão na mesma época, como, apesar de
correlata ao reconhecimento do criminoso como inimigo social, ela demonstra uma
heterogeneidade em relação à punição e ao que ela organizará como penitência,
assumindo um caráter de prevenção e reeducação social (Ibidem: 61-63). Ele identifica
na sociedade dos quakers americanos, em meio às comunidades protestantes anglo-
saxônicas, ainda no século XVII, a mais precoce organização dessa nova forma punitiva
de prisão, hostil à forma monástica. Ao elaborarem um código penal diferente do inglês,
em que não figurasse a pena de morte, a pena fundamental para os quakers, baseada em
sua concepção de religião, moral e poder, passou a ser a prisão (Ibidem: 81), carregada
de uma heterogeneidade em que, de um lado tem-se um princípio judiciário – o da pena
como consequência da infração e proteção da sociedade – e, de outro lado, o princípio
moral de pena como processo de penitência em decorrência de uma culpa.
Foucault explicita que a prisão parece tão antiga e arraigada à nossa cultura pelo
efeito da cristianização da prisão. Porém, a religião cristã não representa o princípio da
275
prática judiciária, mas a penetra em seu último estágio, que se tornará seu objeto
privilegiado – a prisão penal. Esta se justifica e se reativa indefinidamente em
decorrência da confluência da moral cristã milenar com um saber que foi possível pela
própria prisão, ao possibilitar o estabelecimento de uma nova forma de conexão
jurídico-religiosa (Ibidem: 85).
Na mesma época em que os teóricos do direito criminal escreviam sobre a
ruptura entre culpa e infração, tem-se, em função dos riscos de revolta com o
desenvolvimento da produção capitalista e da formação de uma classe operária, e diante
da fraqueza do poder central e de um código penal de extremo rigor, a proliferação de
práticas de vigilância espontânea de grupos, de uma classe sobre a outra, procurando
criar uma continuidade entre controle e repressão, de um lado, e sanção penal, de outro.
Decorre uma moralização do sistema penal, que permite sua ampla difusão e seu
deslocamento em direção ao Estado como instrumento de moralização dessas classes
(Ibidem: 99-100). Foucault aponta para a constituição de dois conjuntos heterogêneos: o
conjunto penal, caracterizado pela lei – sanção e proibição –; e o conjunto punitivo,
caracterizado pelo sistema coercitivo penitenciário (Ibidem: 103).178 O problema
genealógico colocado pelo filósofo seria, então, “saber como esses dois conjuntos, de
origem diferente, acabaram por somar-se e funcionar no interior de uma única tática”
(Ibidem: 104).
178 Em História da Sexualidade – A vontade de saber, Foucault apresenta a proliferação das tecnologias que incidiram no corpo, com a emergência da biopolítica. Um poder cuja função mais elevada será investir sobre a vida terá necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos, tendo como efeito a crescente importância da norma, em detrimento do sistema jurídico da lei. Segundo o filósofo, porém, isto não quer dizer “eu a lei se apague ou que as instituições de justiça tendam a desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição jurídica se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos etc.) cujas funções são sobretudo reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida (Foucault, 2011: 157).
276
Na presente análise interessa perceber como se dá esta articulação entre a
penalidade e a moralidade em meio às tentativas de pacificação das relações sociais,
como pretende a Justiça Restaurativa e sua busca por penas alternativas, e não
“alternativas à pena” (Zehr, 2005: 89).
Em Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a Justiça, Howard Zehr,
reconhecido mundialmente como um dos pioneiros da Justiça Restaurativa, percebe no
interior da bíblia uma alternativa para a justiça retributiva; um caminho para a justiça
comunitária, percorrendo dois conceitos bíblicos: shalom e aliança.
A palavra shalom, segundo o sociólogo, diz respeito às relações sociais e para a
sua aplicação no campo ético, envolvendo honestidade e integridade, ao mesmo tempo
em que molda as esperanças e promessas para o futuro (Idem: 124-125). Já o conceito
bíblico de “aliança” presume responsabilidades e compromissos recíprocos entre os
indivíduos e entre Deus e a humanidade, que possibilitam às pessoas a compreensão e o
cumprimento de suas obrigações por shalom (Ibidem: 127). Ambas as palavras teriam
sido forças transformadoras na sociedade bíblica, que desenvolveram os conceitos de
direito e de justiça em contraste à justiça estatal.
Zehr argumenta que uma mistura de ideias bíblicas com conceitos greco-
romanos teria provocado visões equivocadas a respeito da justiça bíblica – que defende
ser uma justiça restaurativa e não retributiva (Ibidem: 146). A expressão “olho por olho,
dente por dente”, por exemplo, teria sido um preceito destinado a limitar e não encorajar
vinganças, pelo princípio da proporcionalidade, uma vez que a chave da justiça bíblica,
em conformidade com a Justiça Restaurativa, estaria na justificação motivadora como
essência da justiça de aliança (Ibidem: 142). A administração da justiça nos tempos
bíblicos encarnava os pressupostos da justiça da aliança. A palavra julgamento, nesse
sentido, poderia ser traduzida por acordo ou decisão (Ibidem: 133). Recompensar e
277
retribuir, na mesma lógica, teriam ambas raízes na palavra shalom, como restauração
desta. Já a punição não era tida como fim da justiça, mas visava restaurar num contexto
de amor e na comunidade (Ibidem: 135).
A exposição de Zehr demonstra aspectos morais constitutivos das práticas de
Justiça Restaurativa como fortalecedora de políticas de Estado por meio de práticas
tidas como alternativas. É importante perceber os redimensionamentos de tais princípios
na produção atual em torno de conceitos como autogoverno e empoderamento, na
ampliação de relações de poder entre os indivíduos, em consonância com o Estado.
As experiências da Justiça Restaurativa visam o empoderamento e a
responsabilidade, e à falta de ambos atribui-se uma lacuna preenchida por atos
considerados criminosos. Já a presença de tais condutas é tida como positiva em
resposta à chamada vítima, ao ofensor e à comunidade, não apenas quando ocorre uma
situação considerada criminosa, mas remetem à um processo contínuo na construção de
ambientes seguros, requerendo, por isso, avaliação e monitoramento contínuos dos
considerados focos de vulnerabilidades.
O grande princípio da mediação entre “vítima-ofensor” na Justiça Restaurativa
encontra-se precisamente no empoderamento de ambos uma forma de prevenção a
conflitos futuros, uma vez que consiste no “reconhecimento mútuo de interesses e
sentimentos visando a uma aproximação real e consequente humanização do conflito
decorrente da empatia” (Azevedo, 2005: 146). O empoderamento, como processo
contínuo, refere-se principalmente à percepção de autogoverno do indivíduo diante da
sociedade. O foco no envolvimento de indivíduos considerados vulneráveis está
baseado no preceito de que “participação dá poder” (Oxhorn; Slakmon, 2005: 203).
Portanto, a eficiência de práticas como a Justiça Restaurativa está precisamente no
esforço em fazer com que os próprios envolvidos identifiquem suas falhas, reflitam
278
sobre suas más escolhas e realizem as próprias reparações de suas falhas – suas
vulnerabilidades – evitando problemas futuros por meio da pacificação de suas
relações.
abolir, e não restaurar
Louk Hulsman (2012) alertava para que a instituição prisão é uma construção
recente, e que sua disseminação e legitimação, combinadas com as construções sobre o
criminoso, no âmbito da criminologia biologicista que hoje parecem absurdas,
estiveram relacionadas com o desenvolvimento do catolicismo e sua moralidade calcada
na ideia de céu, purgatório, inferno e um Deus universal. Porém, por ver o
abolicionismo penal como um tipo de pensamento ativo, como um movimento
propiciador de liberdades, e ao pensar na abolição como, em primeiro lugar, a abolição
da justiça criminal em nós mesmos – nossas percepções, atitudes, linguagem –,
afirmava-se contra os castigos e a punição não apenas restrita à justiça criminal, mas
como forma específica de interação humana observada em muitas práticas sociais. Por
isso, o abolicionismo não insiste na reforma da lei, mas afirma a instauração de práticas
no presente com visões diferentes que não pressupõem a legitimação de uma noção
ontológica do crime.
Nesse sentido, Hulsman buscava atrair as pessoas a olharem para o campo do
direito civil como mais aberto à diversidade, mais próximo da realidade das pessoas e
voltado ao presente, e também por tratar de forma diferente a linguagem – em vez de
“delito”, trata de “incidentes”, “fatos” (Idem).
Rompendo com a lógica punitiva da justiça criminal, Louk Hulsman afirmava
que “a criminalização não é uma resposta específica aos eventos, mas sim um modo
específico de olhar para os eventos e, assim, de construir os próprios eventos”
279
(Hulsman, 2004: 52). Ele expôs como há uma especificidade da justiça criminal no ato
de construir um evento por meio de filtros que estereotipam o indivíduo, seu meio e seu
ato, além de focar num acontecimento e negligenciar qualquer tipo de relação anterior
entre os envolvidos. Congela-se um acontecimento de modo que jamais seja possível
compreendê-lo de outra forma, ignorando não apenas outras perspectivas como a
passagem do próprio tempo das experiências anteriores e de vida das pessoas (Hulsman,
2009: 27).
No interior do modelo conciliatório que propunha, como rompimento com o
sistema burocrático do sistema penal, Hulsman insistia que os conciliadores não
deveriam ser preparados para resolver conflitos, mas para não propor soluções, e, assim,
auxiliar as pessoas a resolver, por si mesmas, seus problemas, de forma a adquirir
alguma experiência da situação em que viveram e encerrá-la em seu próprio contexto
(Hulsman, 1993: 134-135).
A Justiça Restaurativa e seus assistentes sociais, psicólogos, policiais,
advogados, sociólogos, que são também representantes, especialistas, técnicos,
conciliadores, facilitadores, mediadores, não abrem mão do Estado e seu aval,
integrando-se a uma cultura penal que recria continuamente seus papeis e
representações de vítima e do ofensor para se estabelecer. Se a prisão justifica-se em
prol da defesa da sociedade, as penas alternativas e/ou restaurativas não se apartam da
justiça como valor universal, mas a legitima pela comunidade como árbitro de decisões
locais em consonância com uma governamentalidade que carece da participação de
todos para se retroalimentar e garantir a segurança em âmbito planetário.
Conforme exposto, acompanhando as análises de Edson Passetti, na atual
sociedade de controle a prevenção opera por meio da pacificação de possíveis
resistências que requerem a participação de todos (Passetti, 2006: 101). Por isso, a
280
produção e a ampliação de penalizações pela esperada conduta de cada um, que se
pretendem mais eficientes e com focos cada vez mais precisos, fazem com que a prisão
deixe de ser o lugar preferencial para aquele que deve ser restaurado e restaurar-se. Por
isso, também, o abolicionismo penal emerge na sociedade de controle como
amplificador de resistências, atuando em fluxos incorporadores, mas não
uniformizadores (Idem: 101). Sem rigidez e pretensa formulação de ideais, o
abolicionismo penal aproxima-se dos anarquismos e seu rompimento com os castigos
primeiramente em cada um, em suas relações, nas relações com as crianças, nas relações
em associações, em seus percursos179.
resiliência e racionalidade neoliberal
As condutas participativas e de empoderamento que visam o auto-governo estão
atreladas e são impulsionadas, em grande medida a uma moral cristã que pôde unir seus
preceitos de salvação e direção às práticas penalizadoras que buscam a restauração.
Estas condutas, por sua vez, estão também presentes em uma racionalidade neoliberal
tornada bastante arraigada e naturalizada, que prevê a capacidade de cada um como
capital-humano de realizar escolhas responsáveis, vinculando a construção da paz como
aliada às possibilidades de empreendedorismos.
Um modelo de sucesso de Justiça Restaurativa, também conhecido como modelo
de Pacificação, foi o implantado na comunidade de Zwelethembra, próxima à cidade do
Cabo, na África, patrocinado pelo Ministro da Justiça, e que pôde ser replicado em
179 Ver noção de resposta-percurso de Salete Oliveira em OLIVEIRA, Salete. Política e peste (crueldade, Plano Beveridge e abolicionismo penal). Tese de Doutorado. São Paulo, PUC-SP, 2001. Segundo a autora, a elaboração da noção de resposta-percurso proveio de seminários internos do Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária do PEPGCS/PUC-SP), radicalizando a própria discussão sobre abolicionismo penal quando a propôs fora do conceito de modelo, não referente apenas ao modelo terapêutico, que estava sendo problematizado no momento, mas a todos os outros. Cf. Idem, pp. 221.
281
outras 20 comunidades africanas e também argentinas (Froestad; Shearing, 2005: 98-
99). A atuação de Comitês da Paz e a construção de um Código de Boa Prática que
implementa os valores restaurativos evidencia a conexão entre a paz e a segurança para
realizar empreendimentos (Idem: 104). Os Comitês recebem um pagamento monetário
por cada reunião realizada de acordo com o Código; uma parte é paga aos membros dos
Comitês e outra parte é direcionada aos projetos locais de desenvolvimento, com
preferência para apoiar os empresários locais como parte do aporte que contribui para a
redução da pobreza, para a criação de empregos e desenvolvimento da comunidade.
Assim, “devido a isso, os Comitês podem ser concebidos como pequenas empresas
societárias que respondem às demandas locais de administração de conflitos e investem
em suas comunidades como “micro-bancos” de investimento” (Ibidem: 106).
Segundo Froestad e Shearing, este modelo buscou misturar características de
mecanismos administrativos baseados no mercado com uma abordagem keynesiana no
uso dos recursos dos impostos dos governos locais ao “aumentar a auto-direção e o
‘engrossamento’ do capital social e da ‘eficiência coletiva em comunidades pobres’”
(Ibidem: 106). Os autores tomam tal abordagem keynesiana como oposta ao
neoliberalismo como abordagem que imporia “poder” de fora às comunidades. Interessa
perceber, porém, ambas as abordagens aglutinadas no neoliberalismo enquanto
racionalidade vinculada a empreendedorismos, porém, menos enquanto aspecto
puramente econômico, e mais enquanto formação de uma conduta individual
responsável focada na produção de capital humano.
Para os autores,
O modelo de Zwelethemba não subscreve a uma estratégia neo-liberal de gestão, pela qual o Estado ‘fica no leme’ e a comunidade ‘rema’. Pelo contrário, o modelo assume uma devolução tanto do ‘leme’ como dos ‘remos’ como uma forma de fortalecer a capacidade para a auto-direção local dentro de comunidades pobres (Ibidem: 108-109).
282
Porém, o que fica evidente é que práticas focadas no desenvolvimento local por
meio de empreendimentos, que priorizam o indivíduo como capaz de gerar valor pela
“auto-direção” ou “auto-governo”, tem como efeito a constituição do sujeito como
capital humano. A “devolução” do “leme” significaria, portanto, compartilhar “o leme”
por meio da gestão dos “remos”.
***
“—A parada é: não deixa a bola cair no chão! São todas! São todas! (...) Vamo parar pra
refletir uma paradinha só. Imagina o seguinte: cada bola dessa, que estava na mão de
vocês lá no ar.
—Todas?
—Todas. Visualizem como os problemas. Quando estava sozinho segurando aquele
turbilhão de bolas, de problemas, tava fácil ou tava difícil?
—Tava difícil.
—Pra caramba... E quando tava todo mundo junto, segurando os problemas, e tentando
tocar a bola, tava fácil ou tava difícil?
—Tava fácil.
—Fácil não é, né, gente? Porque problema, aqui pra nós... Problema se fosse fácil não
era problema, né? Mas dava pra jogar um pouquinho melhor, não é? Jogar um
pouquinho melhor...”
(Daniele Leoneol – Policial Civil e Facilitadora do Programa Conjunto in PNUD, 2013
– DVD Papo Reto).
283
Foto: Policial comunitária dirigindo atividade em que as crianças jogam uma “teia” de barbante em cima dos policiais e assistentes sociais, agachados: “A gente tá aqui, de cabecinha baixa, pra dizer com muita humildade, que a gente tá aqui com vocês, falou?! Podem jogar essa teia em cima da gente, podem soltar! Valeu! (Palmas de todos)” (Idem).
***
O neoliberalismo não é ideologia e não se restringe a uma política de mercado.
O neoliberalismo é uma racionalidade, é uma forma de pensar, é uma forma de gerir,
uma forma de compartilhar, uma forma de se dirigir, de se conduzir, é uma forma de
responder que, para além de não prescindir, requer e possibilita a ampliação de
penalizações por meio da inclusão e participação – deste imenso investimento que se
mostra aliado à cultura do castigo, por incidir, necessariamente desde cedo, nos jovens e
crianças, que devem ser resilientes desde o útero materno.
Segundo o PNUD e seu discurso sobre desenvolvimento humano, este não se
restringe ao alargamento de escolhas, mas também diz respeito à possibilidade dessas
escolhas serem seguras e passíveis de subsistirem livremente no futuro (PNUD, 2014b:
284
56). Nesta lógica, o investimento em resiliência na infância é fundamental para impedir
vulnerabilidades futuras, que impeçam, por exemplo, a capacidade de manutenção do
emprego, que reflitam em incertezas associadas ao envelhecimento ou que transmitam
vulnerabilidades à próxima geração.
A primeira infância, segundo o PNUD, é “uma janela de oportunidades” para o
sucesso de um desenvolvimento socioeconômico sustentável e inclusivo (Ibidem: 57).
Segundo James Heckman para o PNUD, ganhador do Prêmio Nobel em Economia em
2000 por seu trabalho no campo da microeconomia e econometria,
Os primeiros anos são importantes na criação de capacidades humanas. Os decisores políticos devem agir no entendimento de que as competências geram competências, que as vidas prósperas assentam em bases sólidas estabelecidas desde o início (...), desde o útero materno e continuando até a velhice. (...) A nova ciência da primeira infância mostra que o que é socialmente justo pode ser economicamente eficiente (...). Um desenvolvimento de qualidade na primeira infância pode dar um importante contributo para uma estratégia de desenvolvimento econômico nacional coroada de êxito (Heckman in PNUD, 2014b: 58).
Para obter tal êxito, Heckman sugere para a convergência entre economia,
psicologia e neurociência do desenvolvimento humano. O PNUD e seus especialistas
argumentam que a “arquitetura das aptidões”, como formação das competências, é
fortemente influenciada por circuitos neurais que se desenvolvem em consequência de
interações entre genes e ambientes no início da vida. Assim, as intervenções no
ambiente da primeira infância ajudam a garantir a progressão da criança e, mais tarde,
seu sucesso no mercado de trabalho:
285
Fonte: PNUD, 2014b: 59.
A falta de investimentos na infância, segundo o PNUD, tende a produzir
vulnerabilidades e más escolhas, associando-as à criminalidade: “os comportamentos
agressivos, antissociais e de violação das regras podem levar ao crime e a um mau
desempenho no mercado de trabalho” (Idem: 60).
Nesse sentido, a resiliência mostra-se uma abordagem extremamente competente
e eficiente de renovação da cultura do castigo, ancorada na racionalidade neoliberal, por
possibilitar a gestão de si mesmo, a gestão da miséria, a gestão da violência, a gestão
das vulnerabilidades, em nome do desenvolvimento. São inúmeras as produções
acadêmicas e pesquisas com foco primeiro nas crianças e tudo que a envolve: sua
286
escola, suas amizades, seus interesses, suas emoções, suas possíveis competências.
Todos esses itens devem ser seguros.
Se as primeiras relações de afeto seguras puderem ser fomentadas, elas devem ser o lócus primário do trabalho sobre a competência social. No entanto, a falta de competência social também pode impedir o desenvolvimento de novas relações, por isso, se a criança aparenta lacunas neste sentido, pode ser útil para relações futuras garantir que um trabalho reparador seja realizado (Brigid e Wassel, 2002: 114).
O grande laboratório de pesquisas a serem aplicadas, testadas, monitoradas e
avaliadas com enfoque na performance resiliente não se concentra em países, Estados,
regiões pobres e consideradas vulneráveis. As crianças, desde o útero materno, são o
grande alvo, o grande foco, a grande certeza dos investimentos neoliberais, não apenas
em termos financeiros. São aplicadas em grupos de crianças testes que avaliam a relação
das vulnerabilidades com a cognição, comportamento, empatia, com a pobreza, com o
rendimento dos pais e a relação com eles, com saúde, nutrição, etc., permitindo um
imenso cruzamento de dados de forma a tentar apreender aspectos da vida em seu
início, em sua ausência de governo.180
Acompanhando a emergência de uma racionalidade neoliberal, principalmente a
partir do pós-Segunda Guerra Mundial, o campo da psicologia do desenvolvimento da
criança ampliou o campo centrado em intervenções externas na criança, medindo
estímulos, punição, recompensa, para abarcar o próprio comportamento da criança,
julgando e avaliando suas interpretações e tendências, à agressividade, à rebeldia, etc.
Ressalta-se a importância de crianças terem capacidade de agência sobre si o mais cedo
possível, por um processo de “confiança nas relações sociais” (Nijnatten, 2010)
suscitado por aqueles que estão a sua volta, como seus pais e professores. Defende-se
180 Ver: Hansen; Joshi e Dex (eds.), 2005; Bornstein, e Putnick, 2012.
287
que as crianças, como inerentemente vulneráveis, sejam reconhecidas como cidadãos,
estimulando a responsabilidade e a participação democrática desde cedo.
No caso da região da Grande São Pedro aqui apresentado, o foco nas crianças
deu-se de forma a tentar reverter suas vulnerabilidades futuras. Os mediadores e
facilitadores na aproximação entre os jovens e policiais, incentivando a identificação
com a comunidade, com o ambiente em que vivem, também resulta de pesquisas,
tentativas, inúmeras conceitualizações.
Conforme exposto no segundo capítulo desta dissertação, economistas como
Mahbub ul Haq e Amartya Sen foram centrais na fundamentação de conceitos como
segurança humana e o próprio desenvolvimento humano, também revisto para
desenvolvimento humano sustentável, bem como para a construção de suas derivações e
enfoques, como a segurança cidadã e as inúmeras variáveis acopláveis ao Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) – um dos grandes instrumentos de seleção e
identificação dos problemas relativos a cada espaço.
Os administradores do PNUD, a começar pelo empresário e veterano de guerra,
Paul G. Hoffman, e todos os seus sucessores, advindos, majoritariamente, do mercado
financeiro, grandes universidades e da guerra, moveram grandes esforços e
investimentos, cada qual em pontos diferentes – desde o espraiamento da atuação do
PNUD pelo planeta ao foco em questões ambientais e climáticas –, que possibilitaram a
flexibilidade e ajustabilidade constitutivas do PNUD, tão bem acomodado à
racionalidade neoliberal. Foi e é possível a sua entrada e atuação nas regiões com os
mais diferentes dados, perfis, culturas, bem como facilmente se dá a reprodução de sua
lógica, a disseminação de seus conceitos, porém muito menos por meio de uma
fundamentação teórica e mais pela naturalização com que um policial ou um assistente
social do interior do Espírito Santo é capaz de absorver, reproduzir e assim justificar a
288
existência e perpetuação do próprio PNUD e suas políticas sociais mais ínfimas,
alinhadas às grandes e econometricamente pontuadas diretrizes globais da ONU.
O grande foco da atual administradora do PNUD, Helen Clark, é a construção da
resiliência, e não restrita aos desastres ambientais, mas abarcando toda a versatilidade
constitutiva do próprio conceito. Após amplas pesquisas de opinião à sociedade civil em
todo o planeta, com especial atenção aos mais pobres e os mais vulneráveis, conforme
declaração, foram definidos, na 70ª sessão da Assembleia Geral da ONU, os novos
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS – 2016-2030), em substituição aos
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM – 2000-2015), compondo “um plano
de ação para as pessoas, o planeta e a prosperidade”181, aberto à ajustes, revisões,
complementariedades, centrado em 17 objetivos que aglutinam 169 metas, cada qual
correspondendo à indicadores qualitativos e quantitativos que avaliam seu
cumprimento.
Reafirmando a Carta das Nações Unidas de 1945, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948, entre outras declarações como a Declaração final da
Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) e os ultrapassados
ODMs, volta-se para a busca do desenvolvimento sustentável em todo o planeta,
integrando todos os países e aplicável a todos – “em desenvolvimento” e
“desenvolvidos”182 –, sem deixar de reconhecer que cada país é o principal responsável
pelo seu próprio desenvolvimento econômico e social183.
181 ONU. Agenda 2030. Disponível em: http://www.agenda2030.com.br/aagenda2030.php. Acesso em: 08/05/2016. 182 ONU. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. 2016. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf. Acesso em: 08/05/2016. 183 Idem, p. 13.
289
A resiliência aparece no título de dois Objetivos, mas se faz presente em toda a
Agenda: atrelada à redução de vulnerabilidades a choques externos – de desastres
econômicos à ambientais –, à produtividade agrícola e à capacidade de adaptação às
mudanças do clima, à infraestrutura de acesso à bens e serviços, à segurança das cidades
e assentamentos humanos, às comunidades, aos inerentemente vulneráveis: mulheres,
pobres e, principalmente, crianças: o futuro imprevisto.
Os países não estão sofrendo erosão de sua soberania. Aos Estados falidos não
falta escopo, no sentido daquilo que tem mira, alvo. Não está em jogo o fim da
violência, da pobreza – abaixo ou acima da linha da miséria –, das punições, do castigo.
Interessam gestões, consensos, negociações, agenciamento, policiamento – de si, dos
outros e do ambiente –, restaurações. Não falta Estado. E talvez, a força, ou o escopo da
ONU e seus organismos esteja, precisamente, na flexibilidade e abrangência da
resiliência que lhe é intrínseca, funcionando de forma eficiente na disseminação de
condutas apaziguadas que justificam a própria existência de suas políticas penalizadoras
e garantem a elasticidade e alcance destas: das mais miseráveis e delimitadas regiões
aos objetivos globais; e desde o corpo de uma criança como laboratório fértil e
carregado de oportunidades a todo o planeta como um corpo que deve ser, inteiramente,
resiliente.
290
a medida do humano e o desenvolvimento das punições e restaurações
O que é o humano? Como se constrói a “pessoas humana” e como se busca,
enquanto utopia, a sua dignidade? Ao final do século XVIII, William Godwin disse que
“a questão da punição talvez seja a mais fundamental da ciência política” (2004: 11). E
é em nome do humano que ainda se pune. Foi a partir da ideia de humano que, na
abertura do século XXI, constituíram-se e reconstituíram-se discursos como práticas,
medições, preceitos morais, índices econométricos, práticas restaurativas, novas e
velhas tecnologias de governo.
Dentre as inúmeras tentativas que permearam o campo do desenvolvimento e,
sobretudo as políticas formuladas no âmbito do PNUD, esta pesquisa se interessou pelas
positividades do poder nestas imbricações, não se atendo meramente às expectativas e
falhas dos empreendimentos.
A criação da Liga das Nações em Versalhes, França, após a Primeira Guerra
Mundial, remonta aos esforços das potências vencedoras em negociar um acordo de paz
mundial. No início dos anos 1940, porém, a Liga estava extinta em decorrência do seu
notável fracasso e a emergência de uma segunda guerra mundial marcada pelos horrores
do nazismo e devastação da Europa. O fim da Segunda Guerra Mundial deu início aos
acordos, repasses, divisões e fronteiras políticas e econômicas, seguidos pelos planos de
reconstrução pós-guerra, revisões do liberalismo, bem como pela tentativa de
conservação e manutenção da paz, preconizada principalmente pela Carta de fundação
da Organização das Nações Unidas de 1945, a Carta de São Francisco, e a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948. Aos chamados “atos de barbárie”, terror e
miséria, proclamava-se o “reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da
291
família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis” como fundamentais para a
“liberdade, a justiça e a paz no mundo”.
A paz como um empreendimento a ser perseguido abriu espaço para um amplo
leque de organizações internacionais espalhadas por todo o planeta com vistas a
promover o desenvolvimento das nações e adaptá-las aos novos fluxos globais do
liberalismo democrático. O próprio conceito de desenvolvimento, como estágio contínuo
na busca e apreensão de um Estado forte e democrático, foi se adaptando aos novos
investimentos voltados ao atendimento e à participação.
Neste contexto, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento,
emergente da fusão de outros dois organismos da ONU – o Programa Expandido de
Assistência Técnica e o Fundo Especial – aglutinou pessoas advindas e formadas pelos
mais variados campos e áreas. Do planejamento da guerra ao planejamento da paz,
muitos especialistas, renomados intelectuais, economistas, políticos, contribuíram para
agregar valor e aplicabilidade aos conceitos resilientes que permeiam a ideia de
desenvolvimento, e construir a necessidade da própria existência do PNUD como
agência de mediação de “conflitos” e de cooperação para a construção e manutenção da
paz.
Os direitos humanos foram complementados pela chamada segurança humana
na garantia do desenvolvimento humano – mais do que um objetivo, uma abordagem. À
este último foi agregada a palavra sustentável, quando o meio ambiente é tomado de
forma abrangente, incluindo questões para além das ecológicas no que concerne às
relações e responsabilidades humanas com o planeta, conforme evidenciava a
Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento de 1992 e as
preocupações em torno dos novos perigos após a chamada Guerra Fria.
292
Ainda durante aquele período, em 1986, o acidente na usina de Chernobyl,
Ucrânia, decorreu da intenção de observar novas performances do comportamento do
reator nuclear, e acarretou em uma série de falhas que resultaram na formação e
explosão de hidrogênio, liberando material radioativo rico em Urânio. Na carta de
esclarecimento sobre esta explosão atômica, enviada pelo Representante Permanente da
União Soviética, Y. V. Dubinin, para a ONU, este relata que o ocorrido estava gerando
uma experiência dolorosa e havia causado apreensão em todo o mundo: “foi a primeira
vez que nos deparamos com a impressionante força da energia nuclear sem controle”
(UN, 1986: 2). Dubinin agradece a ajuda recebida dos cidadãos e países socialistas e faz
um apelo à ONU para que algumas de suas agências especializadas se aproximem em
meio aos esforços em assegurar o desenvolvimento de operações nucleares pacíficas.
Pede-se a cobertura da Agência Internacional de Energia Atômica da ONU em um
acordo com os EUA sobre a proibição dos testes nucleares, e, em nome da saúde e
segurança humanas, assume-se o compromisso de interromper suas atividades até o dia
6 de agosto daquele ano, quando fariam 40 anos da primeira bomba atômica lançada
pelos EUA em Hiroshima.
As negociações em nome da vida da humanidade no planeta e da cooperação
entre as nações que precederam o fim da chamada Guerra Fria, bem como a derrocada
da União Soviética como inimigo do autointitulado “mundo livre”, cederam espaço às
reconfigurações da segurança em âmbito planetário. O conceito de segurança humana
apresentado pelo PNUD em 1994 propôs ampliar a proteção dos Estados por meio de
uma segurança mais efetiva da vida no planeta, a ser realizada para as pessoas e pelas
pessoas. As recentes independências e fim das ditaduras dos países considerados “em
desenvolvimento”, neste discurso, apontavam para um deslocamento das ameaças entre
as nações para uma era de conflitos recorrentes no interior dos Estados. Inícios e novas
293
institucionalizações da indistinção entre dentro e fora, nacional e internacional, formas
variadas e modulares da reiteração da centralidade dos Estados na política e na
condução das pessoas. Além da ampliação e sofisticação das tecnologias de produção e
investimento na paz por meio da construção de uma cidadania planetária como
obediência de cada um em seus ambientes participando da continuidade das misérias e
massacres.
Os Estados considerados falidos deveriam ser reconstruídos e ter força e escopo
suficiente para assegurar as oportunidades necessárias para o desenvolvimento humano
sustentável. Os grandes perigos para a humanidade, porém, deveriam ser minados
também no próprio homem, no que há de inumano e singular no homem. Sua fraqueza,
sua falta de discernimento, falta de racionalidade, as inúmeras vulnerabilidades
possíveis, em contraposição ao amplo leque que a segurança humana estaria disposta a
abarcar – segurança alimentar, segurança energética, segurança climática, segurança
cidadã, etc. –, deveriam ser superadas pela construção de humanos e ambientes
resilientes. Novamente, a ampliação modular de novas tecnologias políticas para
produção de obediência.
Uma inteligibilidade econômica dos Estados produziu-se a partir dos indivíduos
e em suas relações que deveriam ser mediadas e calculadas para a prevenção, gestão e
mediação de conflitos como configuração resiliente produtora e disseminadora de
restaurações variáveis. Uma nova forma de preparar humanos, capacitá-los, incluí-los,
estimulá-los, passa atualmente por uma racionalidade neoliberal que extrapola quesitos
financeiros, mas produz-se como política. Uma forma de pensar direcionada à paz
mundial, a paz do mercado, a paz das nações, não deixa de reinserir continuamente a
guerra por meio da própria política, do fracasso, da seletividade, das punições e
penalizações, pelos massacres.
294
A pretensa neutralidade asséptica do PNUD reside precisamente no foco de
todos os seus investimentos que giram em torno do humano. Da construção de um
humano e de uma tecnologia que permeia a vida deste humano voltada para o bem da
humanidade. Todo este esforço pelo humano presente na reformulação e ampliação de
conceitos, refinamento de cálculos e índices na precisão e identificação de focos de
vulnerabilidades, culmina no contínuo “em desenvolvimento”. Gente rebaixada à
pessoa que precisa ser agente de si como humano responsável pelas melhorias de seu
ambiente. A inclusão, na racionalidade neoliberal, evidencia uma relação estreita com as
penalizações.
No Brasil, a Justiça Restaurativa mostrou sua eficiência e resiliência ao
configurar-se como forma alternativa, porém fortalecedora e ampliadora do sistema
penal, ao mesmo tempo em que se insere como política social na promoção do
desenvolvimento humano em escolas, bairros, comunidades. Tem como alvo indivíduos
identificados como criminosos, principalmente jovens, e funciona de forma
complementar (e a ampliar) a medida socioeducativa ao centrar-se na construção de
redes de responsabilidade compartilhada entre o jovem, sua família e sua comunidade.
Em sua flexibilidade intrínseca, a Justiça Restaurativa pode também
caracterizar-se como metodologia, ou abordagem de política social e de inclusão
presenteada a ambientes distendidos quando identificados com grau de vulnerabilidade
alarmante. A Justiça Restaurativa possui a mesma seletividade do sistema penal,
incidindo preferencialmente sobre trocar por: gente pobre ou gente considerada
perigosa, produzidas como vulneráveis. Além disso, tanto enquanto política penal ou
como política social, seus alvos são os mesmos: pessoas consideradas vulneráveis à e
produtoras de vulnerabilidades. Pessoas “em desenvolvimento”, em formação para se
tornarem humanos, desinteressados, sem nada que lhe seja próprio.
295
Na esteira desta construção, um ambiente também pode ser considerado de baixo
IDH pela presença de indígenas, como no caso da péssima colocação do Estado do
Mato Grosso no ranking de 2013 do IDH municipal. O prognóstico é “falta de políticas
públicas para a sustentabilidade dos povos indígenas”. Falta de oportunidades; falta de
participação. A anulação da diferença mais ou menos autoritária, mais ou menos
violenta, também opera pela inclusão. E como afirmou Pierre Clastres (2011: 80) “a
espiritualidade do etnocídio é a ética do humanismo”.
No entanto, neste amplo leque de prognósticos, o mais fértil laboratório de
identificação de vulnerabilidades e métodos para a produção de resiliência é
precisamente àquele e a quem não faltam políticas, oportunidades, orientações,
direcionamentos, apontamentos, imposições, fixações, conduções: as crianças. Desde o
útero materno, como mencionado, são realizados testes em grupos de crianças,
preferencialmente de famílias miseráveis, a fim de avaliar a performance resiliente em
sua educação, seus neurônios, sua capacidade de obediência. As “cirandas
restaurativas”, específicas para crianças serem formadas em humanos, dão continuidade
à cultura do castigo.
***
Em É isto um homem?, Primo Levi, preso pela milícia fascista em 1943 e
enviado para o campo de concentração de Auschwitz, Polônia, relata sobre a vergonha
que sentiu de ser homem e também a angústia da impossibilidade de sê-lo. Tanto pelo
que foi o próprio nazismo, realizado por meio de uma rígida racionalidade humana,
como pela redução da luta pela vida, redução dos instintos, e a pressão, necessidade, que
fizeram-no, como homem, trabalhar e sobreviver ao campo. Levi insistiu no que seria
296
verdadeiramente humano e em como garantir sua dignidade, e sucumbiu diante da
culpa.
O nazismo foi o limite da biopolítica e do racismo de Estado em meio a uma
política que tem como foco a vida. A tentativa de bloqueio dessa capacidade
impressionante de extermínio com a ampliação dos direitos e o reconhecimento de
cidadãos em âmbito planetário permitiram, por sua vez, o desbloqueio de novas táticas e
estratégias na composição de uma governamentalidade do planeta e da humanidade no
planeta. Houve um grande esforço para a construção deste novo Homem, efeito dos
discursos, efeito das relações de poder. Tantos investimentos no humano – dos grandes
conceitos e formulações aos técnicos e assistentes que os aplicam e disseminam – nunca
impediram, porém, os castigos, as torturas, os extermínios calculados e regulares de
gente, inclusive em países como o Brasil, modelo de sustentabilidade dos países “em
desenvolvimento”. A busca pelo ideal de humano segue produzindo mortes e miséria
incalculável, impossível de ser estancada ou mesmo mensurada por índices
econométricos.
Se o racismo inserido nos mecanismos de Estado era o que permitia tirar a vida
na biopolítica, interessa pensar agora em como ele está projetado atualmente com a
ecopolítica. Ao centrar a análise no PNUD como principal agência da ONU para o
desenvolvimento e voltado à erradicação da pobreza, este Programa planetário que
conseguiu adentrar nos mais diferentes países e culturas, nas áreas mais remotas do
planeta, persiste a questão de como realmente se dá sua eficiência. No Programa
Conjunto Segurança com Cidadania, coordenado pelo PNUD em São Pedro (ES), as
agências da ONU e seus diplomatas estiveram presentes na aplicação e estabelecimento
do Programa, retornando pouquíssimas vezes para sua avaliação, e todo o trabalho foi
297
feito pela própria comunidade convocada e envolvida, afinal é isto que se espera das
gestões compartilhadas.
Nas orientações do PNUD, seus conceitos e suas abordagens planetárias, que
almejam ser precisos em relação ao local que incidem e eficientes em sua
replicabilidade, há de um tudo. Menos gente. Gente da carne, osso e sangue. Investe-se
na construção de humanos para dar continuidade a sua própria existência. Isso não
significa que agências como o PNUD não possuam força ou escopo. Mas sinaliza para o
impressionante espraiamento de suas práticas, que alcançam desde as orientações para
um “consumo sustentável” e gestão dos recursos naturais, até a introdução de práticas
ligadas ao sistema penal que incidem diretamente na abordagem das medidas
socioeducativas. Sua eficiência não se evidencia pelas metas em contínuo alcance ou
pela porcentagem de pessoas que conseguiram sair “debaixo da linha da pobreza”, mas
é efeito de seus empreendimentos em si mesmo e na utilidade de suas penalizações para
a construção do humano, este ser sublime, inalcançável... este genérico que não existe –
assim como não há natureza ontológica do crime –, tão oportuno à política, à moral e ao
castigo.
E em nome deste humano, a política segue como a distribuição racional do
castigo e da violência, hoje calcada na gestão planetária da miséria da existência.
298
lista de imagens
Imagem 1 (p. 81): Logo do Programa TOKTEN, retirado do site oficial do PNUD.
Imagem 2 (p. 99): Fluxograma dos colaboradores e elaboradores do PUND e suas
políticas. Elaborado pela autora.
Imagens 3, 4 e 5 (pp. 160-162): Mapas dos contrastes do IDH dos Municípios
brasileiros em 1991, 2000 e 2010. Elaborado pelo IPEA e a Fundação João Pinheiro em
2013, retirado do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil.
Imagem 6 (p. 248): Ciclo de Conceitos do PNUD. Elaborado pela autora.
Imagem 7 (p. 262): Frame do DVD Projeto Papo Reto. Material de divulgação do
PNUD do Programa Conjunto Segurança com Cidadania realizado em São Pedro no
Espírito Santo, publicado em 2014.
Imagem 8 (p. 283): Frame do DVD Projeto Papo Reto. Daniele Leoneol – Policial
Civil e Facilitadora do Programa Conjunto in PNUD, 2013 – DVD Papo Reto,
publicado em 2014.
Imagem 9 (p. 285): Quadro do PNUD sobre resiliência na primeira infância – uma
“janela de oportunidades”.
299
lista de abreviaturas e siglas
ABC – Agência Brasileira de Cooperação. BIRD – Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento. CCF – Country Cooperation Framework (Quadro de Cooperação do País). CED – Committee for Economic Development (Comitê para o Desenvolvimento Econômico). CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe. Comecon – (tradução do russo para Council for Mutual Economic Assistance (Conselho para Assistência Econômica Mútua). Cominform – Communist Information Bureau (Central Comunista de Informação). CTPD – Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento. ECA – Economic Cooperation Administration (Administração de Cooperação Econômica). ECOSOC – Conselho Econômico e Social da ONU. EPTA – Expanded Programa of Technical Assistance (Programa Expandido de Assistência Técnica). FAO – Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. FMI – Fundo Monetário Internacional. FUNAG – Fundação Alexandre Gusmão. GIFE – Grupo de Institutos, Fundações e Empresas. IAEA – International Atomic Energy Agency. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. ICAO – Organização da Aviação Civil Internacional. IDA – International Development Authority (Associação Internacional de Desenvolvimento). IDH – Índice de Desenvolvimento Humano. IFC – International Finance Corporation. MESC – Middle East Supply Centre (Centro de Abastecimento do Oriente Médio). ODM – Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. MRE – Ministério das Relações Exteriores. ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. OEEC – Organization for European Economic Co-operation (Organização para a Cooperação Econômica Europeia). OIT – Organização Internacional do Trabalho. OMC – Organização Mundial do Comércio. OMM – Organização Meteorológica Mundial. OMS – Organização Mundial da Saúde. ONU – Organização das Nações Unidas. OPEP – Organização dos Países Exportadores de Petróleo. OSC – Organizações da Sociedade Civil. PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. RDH – Relatório de Desenvolvimento Humano.
300
TOKTEN – Transfer of Knowledge Through Expatriate Nationals (Transferência de Conhecimentos Através de Expatriados Nacionais). UIT – União Internacional de Telecomunicações. UNCTAD – Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. UNFPA – United Nations Population Fund (Fundo de População da ONU). UNHCR – The UN Refugee Agency (Alto Comissariado para Refugiados). UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância. UNIFEM – United Nations Development Fund for Woman (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher). UNODC – United Nations Office on Drugs and Crimes (Escritório da ONU sobre Drogas e Crimes). UNOSOM – United Nations Operation in Somalia (Operação das Nações Unidas na Somália). UNRAA – UN Relief and Rehabilitation Administration (Administração de Assistência e Reabilitação da ONU). UNV – UN Volunteers (Voluntariado da ONU). USAID – United States Agency for International Development (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional).
301
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