09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

21
7/18/2019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas http://slidepdf.com/reader/full/09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1/21 CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORÂNEO 83 Cad. Psicanál.-CPRJ, Rio de Janeiro, v. 34, n. 27, p. 83-103, jul./dez. 2012 Considerações psicanalíticas sobre o existir no mal-estar contemporâneo Psichoanalytic considerations about the existence in contemporary discontent Rogerio Quintella* Resumo: Partindo de um recorte teórico que a psicanálise opera sobre a concepção do existir , o artigo aborda este tema do ponto de vista do mal-estar contemporâneo, fundamentando a con- cepção de sujeito na condição de existência, ex-sistência  e insistência. Destaca-se a depressão como um sofrimento que, fixado à representação primária da “Criança Maravilhosa” e subjuga- do à evanescência do ideal do eu, insiste como forma de responder à dor da perda. Diferencian- do-o do luto e da melancolia, concebe-se o mal-estar depressivo como resultado de uma tentativa fracassada de suturação da falta no Outro, que visa anular, narcisicamente, a própria falta-a-ser, implicando uma forma sintomática de  existir no mal-estar contemporâneo. Palavras-chave : Psicanálise , existir, mal-estar, depressão, contemporaneidade.  Abstract: From a theoretical framework that psychoanalysis operates about the conception of exist- ing, the article approaches this theme from contemporary discontent point of view, basing the con- ception of subject on its condition of existence, ex-sistence and insistence. We highlight depression as a suffering that   , fixed to the primary representation of the “Wonderful Child” and subjugated to the evanescence of the ego ideal, insists as a way to respond to the loss pain. Differentiating it from  grief and melancholy, the depressive discontent is conceived as result of a failed attempt to suturing the lack in the Other, which aims to annul, narcissistically, the very lack-to-be, implying a symp- tomatic way to exist in contemporary discontent.  Keywords: Psychoanalysis, existing, discontent, depression, contemporaneity. * Psicanalista, doutor em Teoria Psicanalítica/UFRJ, coordenador do Curso de Pós-Graduação em Psicanálise e Saúde Mental/Instituto Superior La Salle (RJ), prof. do Curso de Psicologia (NDE) – Universo (RJ).

description

Psicanalise

Transcript of 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

Page 1: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

83Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Consideraccedilotildees psicanaliacuteticas sobre o existir no

mal-estar contemporacircneo

Psichoanalytic considerations about the existence

in contemporary discontent

Rogerio Quintella

Resumo Partindo de um recorte teoacuterico que a psicanaacutelise opera sobre a concepccedilatildeo do existir oartigo aborda este tema do ponto de vista do mal-estar contemporacircneo fundamentando a con-cepccedilatildeo de sujeito na condiccedilatildeo de existecircncia ex-sistecircncia e insistecircncia Destaca-se a depressatildeocomo um sofrimento que fixado agrave representaccedilatildeo primaacuteria da ldquoCrianccedila Maravilhosardquo e subjuga-

do agrave evanescecircncia do ideal do eu insiste como forma de responder agrave dor da perda Diferencian-do-o do luto e da melancolia concebe-se o mal-estar depressivo como resultado de umatentativa fracassada de suturaccedilatildeo da falta no Outro que visa anular narcisicamente a proacutepria

falta-a-ser implicando uma forma sintomaacutetica de existir no mal-estar contemporacircneoPalavras-chave Psicanaacutelise existir mal-estar depressatildeo contemporaneidade

Abstract From a theoretical framework that psychoanalysis operates about the conception of exist-

ing the article approaches this theme from contemporary discontent point of view basing the con-

ception of subject on its condition of existence ex-sistence and insistence We highlight depression

as a suffering that fixed to the primary representation of the ldquoWonderful Childrdquo and subjugated to

the evanescence of the ego ideal insists as a way to respond to the loss pain Differentiating it from

grief and melancholy the depressive discontent is conceived as result of a failed attempt to suturing

the lack in the Other which aims to annul narcissistically the very lack-to-be implying a symp-tomatic way to exist in contemporary discontent

Keywords Psychoanalysis existing discontent depression contemporaneity

Psicanalista doutor em Teoria PsicanaliacuteticaUFRJ coordenador do Curso de Poacutes-Graduaccedilatildeoem Psicanaacutelise e Sauacutede MentalInstituto Superior La Salle (RJ) prof do Curso de Psicologia(NDE) ndash Universo (RJ)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 221

A DOR E O EXISTIR

84

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

I Introduccedilatildeo

Eacute perene no meio psicanaliacutetico a discussatildeo sobre as diversas formas deenfrentamento do mal-estar inerente agrave constituiccedilatildeo do sujeito na cultura Omovimento psicanaliacutetico desde sua fundaccedilatildeo por Freud em 1900 aponta osujeito como implicado em seu sofrimento psiacutequico agrave medida que responde aomal-estar em sua singularidade sintomaacutetica A psicanaacutelise implica o sujeito emsua proacutepria histoacuteria fantasmaacutetica aquela mesma que sustenta o sintoma cujafunccedilatildeo inconsciente eacute enunciar a posiccedilatildeo desejante e promover um substitutode satisfaccedilatildeo pulsional (F983154983141983157983140 1905)

Freud deixou cunhada a importante concepccedilatildeo de que o mal-estar eacute in-

triacutenseco ao proacuteprio circuito pulsional perante a impossibilidade de satisfaccedilatildeoplena na civilizaccedilatildeo (F983154983141983157983140 1930) Nesse sentido o existir no mundo do de-sejo implica o sujeito em sua divisatildeo e em sua singularidade agrave medida que esteeacute constantemente convocado a dar conta do mal-estar ndash e o faz muitas vezesencontrando saiacuteda nos sintomas da neurose Situando a questatildeo no acircmbito daconstituiccedilatildeo desejante face agrave impossibilidade de reencontro com o objeto per-dido Freud concebe que a proacutepria organizaccedilatildeo da cultura se daacute em torno darenuacutencia pulsional Aponta o mal-estar como iacutendice inelutaacutevel dessa impossi-

bilidade localizando a proacutepria civilizaccedilatildeo como resultante de uma condiccedilatildeocentral que eacute a renuacutencia

O presente trabalho dedica-se a explorar algumas formas de responder aomal-estar situando a condiccedilatildeo do existir no mundo da linguagem e suas espe-cificidades perante o sofrimento contemporacircneo A cliacutenica apresenta comuma frequecircncia cada vez mais acentuada nos dias de hoje uma forma sinto-maacutetica de responder ao mal-estar muito caracteriacutestica da constituiccedilatildeo do su-

jeito na atualidade Trata-se de um tipo especiacutefico de depressatildeo neuroacutetica

distinta da melancolia cujo cerne sustenta uma posiccedilatildeo subjetiva capaz decolocar o processo de luto inteiramente agrave margem Para abordar este temaadentraremos as questotildees intriacutensecas agrave constituiccedilatildeo do ldquosentido de existecircnciade sirdquo fundado no mito primaacuterio da onipotecircncia narciacutesica Conforme veremosesta condiccedilatildeo deflagra uma posiccedilatildeo subjetiva que pode diante da perda fun-cionar como um sintoma ndash o que marca uma das mais pregnantes formas de osujeito lidar com o mal-estar na atualidade

Num patamar proacuteximo deste mas natildeo indistinto o luto aparece como

uma resposta possiacutevel perante a perda a frustraccedilatildeo ou algum significante quealuda agrave castraccedilatildeo Nesse contexto o luto pode ser mobilizado com suas pecu-liaridades intriacutensecas as quais natildeo prescindem da dor sequer de um processo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

85Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

aacuterduo e laborioso Procuraremos abordar o luto assim como uma medida detrabalho que faz da dor o ponto de enlace do fio desejante no qual o sujeito emse tratando de neurose se acha inscrito

Nos dois processos (luto e depressatildeo) como veremos o estatuto de exis-tecircncia eacute tema de imprescindiacutevel abordagem dado que as dimensotildees do ldquoexis-tirrdquo conjugam em sua natureza intriacutenseca a experiecircncia da dor como elementoconstitutivo da subjetividade face ao mal-estar no mundo do desejo da lingua-gem e da cultura Partindo dessas consideraccedilotildees faremos adiante uma exposi-ccedilatildeo sobre o tema do existir na concepccedilatildeo psicanaliacutetica de modo que possamospensaacute-lo no contexto do mal-estar contemporacircneo

II Situando a questatildeo do existir na cliacutenica psicanaliacutetica

Eacute somente na medida do fora-de-sentido dos ditos ndash e natildeo dosentido como se costuma imaginar e como supotildee toda fenome-nologia ndash que existo como pensamento1

Para abordar o tema do existir e suas implicaccedilotildees frente ao mal-estar con-temporacircneo eacute imprescindiacutevel remeter-nos aos diferentes registros da consti-tuiccedilatildeo do sujeito ndash Imaginaacuterio Simboacutelico e Real ndash trabalhados ao longo doensino de Lacan em sua releitura da obra freudiana2

A psicanaacutelise lida no seu fundamento com um ser falante que manifesta via sintoma os efeitos da proacutepria fala no universo da experiecircncia psiacutequica Apartir da escuta psicanaliacutetica fundada na fala livre do sujeito o inconsciente

vai ser teorizado como construto loacutegico dadas as formaccedilotildees simboacutelicas e asposiccedilotildees subjetivas no mundo do fantasma que escapam a sapiecircncia conscien-te daquele mesmo que fala O inconsciente eacute um construto loacutegico menos umdado fenomenoloacutegico do que uma decisatildeo do psicanalista ao operar com ainterpretaccedilatildeo e as pontuaccedilotildees que implicam o sujeito na sua verdade incons-ciente assumindo esta assim um estatuto eacutetico (L983137983139983137983150 1964) Tal como ou-tros conceitos da psicanaacutelise ndash recalque pulsatildeo foraclusatildeo etc ndash oinconsciente natildeo eacute passiacutevel de ser pensado numa base estritamente fenomeno-loacutegica Esta pontuaccedilatildeo caracteriza a psicanaacutelise como um campo de investiga-ccedilatildeo que se afasta da fenomenologia e se distingue do existencialismo Aleacutem de

1 L983137983139983137983150 Jacques (1968) O Seminaacuterio livro 16 De um Outro ao outro Rio de Janeiro Zahar2008

2 A exposiccedilatildeo que se segue sobre a teoria lacaniana visa fundamentar nossa concepccedilatildeo para odesenvolvimento acerca do tema aqui abordado

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 421

A DOR E O EXISTIR

86

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

desenvolver conceitos que natildeo se pautam em uma base fenomecircnica trata natildeoapenas daquilo que ldquoexisterdquo como dado fenomecircnico da experiecircncia subjetivamas tambeacutem e especialmente daquilo que escapa agraves possibilidades de apreen-

satildeo fenomecircnica e mesmo de articulaccedilatildeo simboacutelica tal qual se observa com osconceitos de sujeito objeto e real

A constituiccedilatildeo do sujeito implica um mergulho no universo da fala cujosefeitos se inscrevem na erogeneidade do corpo concebido como corpo pulsionalou eroacutegeno (cf E9831489831459831371995) Esta condiccedilatildeo conjuga os trecircs registros abordadospor Lacan ao longo de sua obra (imaginaacuterio simboacutelico real) numa dimensatildeointriacutenseca natildeo apenas agrave existecircncia mas tambeacutem agrave ex-sistecircncia e agrave insistecircncia (ibid ) Com Lacan pode-se asseverar que do ponto de vista do registro imagi-

naacuterio o sujeito existe como dado fenomecircnico agrave medida que a constituiccedilatildeo do eueacute efeito da captaccedilatildeo da imagem de si no espelho fundada a partir de um outrosemelhante agrave crianccedila que vem a dar suporte agrave constituiccedilatildeo dessa imagem aoniacutevel da idealizaccedilatildeo (L983137983139983137983150 1936) Do ponto de vista do simboacutelico o sujeitoex-siste ao deslizamento da cadeia significante agrave medida que esta produz suadivisatildeo tornando-o extriacutenseco ao simboacutelico e impossibilitando-o de ser captadoou representado plenamente no campo da fala (L983137983139983137983150 1958) O efeito das ope-raccedilotildees simboacutelicas no Real eacute um resto natildeo simbolizaacutevel que insiste como objeto

perdido inapreensiacutevel ao niacutevel da cadeia significante ndash objeto situado comoldquocausa do desejordquo (L983137983139983137983150 1964) Veremos como essas dimensotildees que natildeo po-dem ser abordadas de maneira isolada se assinalam do ponto de vista da cons-tituiccedilatildeo subjetiva bem como das respostas sintomaacuteticas ao mal-estar que seratildeoaqui trabalhadas Buscaremos agrave frente abordar essas dimensotildees uma a umatomando o narcisismo como ferramenta teoacuterica central com objetivo de aden-trar a abordagem sobre a depressatildeo e o luto no mal-estar contemporacircneo

E xistecircncia ex-sistecircncia insistecircncia

O estatuto de existecircncia eacute dado na experiecircncia narciacutesica que funda noimaginaacuterio o eu como instacircncia primaacuteria ancorada na fantasia da onipotecircnciainfantil Essa fantasia se acha subjugada agrave idealizaccedilatildeo dos pais agrave medida que osmesmos elevam a crianccedila agrave majestade de uma posiccedilatildeo impossiacutevel de ser sus-tentada na cultura Em sua anaacutelise do narcisismo Freud (1914) considera queo amor dos pais investido sobre o infante se acha condicionado ao proacuteprio

narcisismo perdido dos pais A expressatildeo ldquoSua majestade o Bebecircrdquo caracteriza ahiperidealizaccedilatildeo parental sobre a crianccedila fundando ali mesmo um discursoque produziraacute efeitos perenes na subjetividade do infante

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

87Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Pinheiro (2002) assinala que a idealizaccedilatildeo parental eacute o ponto de partidado juacutebilo narciacutesico cuja experiecircncia fundamenta o sentimento de existecircncia dacrianccedila Existir eacute efeito antes de tudo da introjeccedilatildeo de uma rede de sentidos

plurais captados do discurso idealizado dos pais Nesse acircmbito existir implicaem princiacutepio responder ao investimento parental com a fantasia da onipotecircn-cia Esta fantasia tem como objetivo rechaccedilar a impermanecircncia a falta e a fini-tude na relaccedilatildeo com os pais na busca da estase sustentada por um tipoparticular de idealizaccedilatildeo que diz respeito ao investimento amoroso dos pais Oinvestimento parental no narcisismo do infante deflagra ali um mundo de ma-ravilhas sob o qual este mesmo infante sustentaraacute seu proacuteprio ideal narciacutesicoAmar-se a si proacuteprio significa render-se ao discurso embalsamador da matildee

que empresta a silhueta necessaacuteria para o advento de uma imagem de si supos-tamente ldquoplenardquo de investimento amoroso A crenccedila narciacutesica referencia para osujeito o germe da formaccedilatildeo dos ideais mediante a apropriaccedilatildeo imaginaacuteria dodiscurso parental hiperidealizado3 Ela eacute a miragem do juacutebilo perdido tomadocomo fonte especular da constituiccedilatildeo narciacutesica Redunda no mito da onipotecircn-

cia narciacutesica fundado na ideacuteia de imortalidade e sobrepujanccedila do eu caracteriacutes-tica da megalomania infantil bem como da busca por satisfaccedilatildeo imediata das

moccedilotildees pulsionais

O estatuto de existecircncia se funda assim na relaccedilatildeo com os pais em posi-ccedilatildeo de grande Outro este uacuteltimo definido como ldquolugar da palavra faladardquo quesustenta o sistema significante e engendra a constituiccedilatildeo do sujeito como efeitoda linguagem e da cultura (L983137983139983137983150 1958-1959) O discurso parental assume afunccedilatildeo simboacutelica da determinaccedilatildeo do sujeito produzindo ao mesmo tempono imaginaacuterio efeitos de organizaccedilatildeo especular e invenccedilatildeo narciacutesica Cabe as-sinalar nesse sentido que o fracasso da fantasia de onipotecircncia se acha subju-gado ao caraacuteter intriacutenseco da falta agrave medida que o sujeito depende do Outro

para existir e vai encontrar nele mesmo a constituiccedilatildeo da proacutepria falta (ibid )Nesse acircmbito o existir na sua plenitude eacute fadado ao fracasso agrave medida que nosimboacutelico o Outro devolve a impossibilidade de plenitude no mundo da fala eda linguagem e no real a fantasia de onipotecircncia eacute insustentaacutevel O enoda-

3 Entende-se como crenccedila o elo narrativo da experiecircncia subjetiva sustentado pelo discursoe pela imagem tomados de empreacutestimo do outro Trata-se do creacutedito depositado no tecidodiscursivo que tem como contrapartida os efeitos subjetivos na constituiccedilatildeo do sujeito

(M983137983156983156983151983155 2007) A crenccedila narciacutesica eacute um tipo de crenccedila que funda a relaccedilatildeo do sujeito comsua proacutepria imagem ideal caracteriacutestica do mito de onipotecircncia infantil (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Anoccedilatildeo de crenccedila narciacutesica seraacute amplamente utilizada como operador teoacuterico para a abordagemaqui visada a respeito da depressatildeo e do existir no mal-estar contemporacircneo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 621

A DOR E O EXISTIR

88

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

mento entre imaginaacuterio simboacutelico e real assinala assim que o tema da existecircn-cia natildeo pode ser abordado de maneira desgarrada dos fatores intriacutensecos agraveproacutepria condiccedilatildeo da falta no campo do sujeito situando a ex-sistecircncia e a insis-

tecircncia como dimensotildees intriacutensecas agrave constituiccedilatildeo subjetiva as quais devem serconsideradas na sua maior relevacircncia

Lacan frisa sobre a relaccedilatildeo ao Outro o caraacuteter falho da estrutura simboacutelicacujo efeito eacute a instauraccedilatildeo mesma do desejo e da divisatildeo do sujeito (L9831379831399831379831501958-1959) mantendo um rasgo na imagem narciacutesica suportada inicialmentepela idealizaccedilatildeo parental Lacan assinala a impossibilidade de completude in-triacutenseca agrave proacutepria constituiccedilatildeo do sujeito no campo do significante agrave medidaque este uacuteltimo natildeo eacute capaz de representaacute-lo plenamente lanccedilando-o a uma

cadeia significante inconsciente e abrindo caminho para a falta o desejo e ogozo Ou seja natildeo haacute em um significante o dizer uacuteltimo que defina o sujeito ouo represente plenamente produzindo o remetimento a outros significantes nacadeia4 Em sua anaacutelise Lacan sublinha a inexistecircncia de uma garantia no Ou-tro a respeito de uma fianccedila sobre o ser do sujeito O autor afirma

S(A) quer dizer isto ndash que em A que natildeo eacute um ser mas o lugarda palavra falada onde descansa o conjunto do sistema signifi-cante quer dizer de uma linguagem aiacute falta alguma coisa algu-

ma coisa que soacute pode ser um significante Um significante faltaao niacutevel do Outro Este eacute se posso dizer o grande segredo dapsicanaacutelise ndash natildeo haacute Outro do Outro () Natildeo haacute no Outro ne-nhum significante que possa no caso responder pelo que sou(L983137983139983137983150 1958-1959 p 46-47)

Sendo assim tributaacuterio de um discurso pinccedilado do Outro que imprimesobre o sujeito o ideal da opulecircncia narciacutesica na relaccedilatildeo amorosa primaacuteria onarcisismo eacute tentativa de rechaccedilar a falta desde jaacute presente na relaccedilatildeo ao Outro

Por um lado resta agrave crianccedila a inscriccedilatildeo de sua condiccedilatildeo sexuada transitoacuteria emortal na superaccedilatildeo do narcisismo primaacuterio sustentando-se como sujeito de-sejante ao preccedilo de uma perda Por outro lado os pais apesar de fiadores daidealizaccedilatildeo narciacutesica deixam para o infante um deacutebito impossiacutevel de ser quita-do sob o jugo da proacutepria alienaccedilatildeo dos pais em seu narcisismo perdido ndash fian-ccedila apoiada naquilo que o Outro natildeo tem natildeo devolvendo este Outro por issomesmo qualquer tipo de garantia para o sujeito

Eacute nessa loacutegica que Lacan implica o sujeito no estatuto de ex-sistecircncia no

4 Eacute nesse sentido que Lacan (1964) aborda o significante como ldquoaquilo que representa o sujeitopara outro significanterdquo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

89Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

que o simboacutelico instaura a falta-a-ser intriacutenseca ao mundo do desejo e do gozoA ex-sistecircncia eacute esse ponto real do sujeito que implica um buraco no simboacutelicoagrave medida que o proacuteprio sujeito natildeo eacute um significante na cadeia ex-siste agrave ca-

deia significante e eacute determinado por esta de maneira sempre incompletaFalta-a-ser eacute assim condiccedilatildeo do ser falante agrave medida que o simboacutelico natildeopode representar plenamente o ser restando algo de irrepresentaacutevel na relaccedilatildeoentre sujeito e objeto de satisfaccedilatildeo implicada no gozo5

Do ponto de vista do real o objeto como objeto perdido na relaccedilatildeo dosujeito ao significante insiste como forccedila que resta da operaccedilatildeo de simboliza-ccedilatildeo em funccedilatildeo de sua ligaccedilatildeo com o corpo Eacute o caraacuteter insistente da pulsatildeo queimplica o real como impossiacutevel naquilo que causa o desejo ndash objeto a ndash e ao

mesmo tempo retorna sempre ao mesmo lugar como repeticcedilatildeo aleacutem do prin-ciacutepio do prazer (L983137983139983137983150 1968) Essa insistecircncia do real se caracteriza como oque insiste como resto natildeo simboacutelizaacutevel denominado por Lacan (1968) comomais-de-gozo Isso implica por um lado a renuacutencia primeira numa dimensatildeoem que a perda faz aparecer o objeto a como causa de desejo implica por outrolado uma dimensatildeo em que a proacutepria renuacutencia reforccedila e fortalece a exigecircnciasuperegoica (F983154983141983157983140 1930) Essa forma de gozo que implica a renuacutencia e aperda como marcas constitutivas do sujeito aparece na dimensatildeo de um resto

suplementar a ser recuperado ndash resto que excede ao niacutevel do imperativo supe-regoico (L983137983139983137983150 1968)

A tentativa narciacutesica de rechaccedilar a falta eacute portanto intriacutenseca agrave experiecircnciaprimaacuteria do sujeito Nesse sentido a plenitude que o discurso do Outro ldquoinven-tourdquo (Sua Majestade o Bebecirc) e ao mesmo tempo assinalou como impossibilida-de intriacutenseca agrave estrutura do simboacutelico subjuga um traccedilado paradoxal expressopelo proacuteprio mito de Narciso Entre o amor e a morte o enamoramento absolu-to de Narciso pela imagem ideal de si mesmo eacute o que o leva agrave sua proacutepria ruiacutena

A paralisaccedilatildeo eacute de tal ordem que qualquer movimento no sentido da mudanccedilatorna-se impossiacutevel o que o faz sucumbir agrave prisatildeo de seu amor miacutetico Narcisoeacute a proacutepria expressatildeo do mito e sua paralisaccedilatildeo na imagem eacute a proacutepria insiacutegniada paralisaccedilatildeo no tempo ndash condiccedilatildeo que como veremos eacute a marca da depressatildeo no circuito do desejo Nesse traccedilado eacute a denegaccedilatildeo do desejo o algoz imediatoe paradoxal da proacutepria destruiccedilatildeo de Narciso bem como a mira mortiacutefera dogozo para a qual a busca da experiecircncia do absoluto empurra

5 Com essa apreensatildeo Lacan busca a fundamentaccedilatildeo do sujeito a partir da noccedilatildeo de ex-sistecircnciaagrave medida que o sujeito eacute suposto na teoria do inconsciente natildeo eacute apreensiacutevel enquantocategoria existencial fenomecircnica mas ex-siste como elemento extriacutenseco agrave cadeia significante(L983137983139983137983150 1975)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 821

A DOR E O EXISTIR

90

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute sob essa rubrica impossiacutevel da experiecircncia narciacutesica caracteriacutestica datragicidade paradoxal que conjuga onipotecircncia e morte que a nosso ver otema do existir deve ser pensado do ponto de vista da psicanaacutelise Sendo assim

tratar o existir na cliacutenica psicanaliacutetica implica especialmente o impossiacutevel na-quilo que escapa ao fenomenicamente dado atingindo sua condiccedilatildeo de ldquomaisaleacutemrdquo caracteriacutestico da ex-sistecircncia e da insistecircncia No contexto dessas consi-deraccedilotildees pretendemos abordar o tema da depressatildeo como uma forma contem-poracircnea de enfrentamento do mal-estar implicada na condiccedilatildeo natildeo apenasexistencial do sujeito mas tambeacutem faltosa e pulsional

Essa apreensatildeo eacute imprescindiacutevel para pensarmos as formas de gozo na cliacute-nica contemporacircnea A depressatildeo ndash marca do gozo na contemporaneidade ndash

prepondera com caracteriacutesticas especiacuteficas de um modo atual de sofrimentoque natildeo representando uma entidade diagnoacutestica do ponto de vista da psica-naacutelise e inscrita no campo da neurose deve ser concebida como uma organi-zaccedilatildeo sintomaacutetica Ela aparece como resultado de uma tentativa de suturaccedilatildeoda falta como insistecircncia de um gozo que excede ao niacutevel da cadeia significan-te agrave medida que visa rechaccedilar o desejo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do

eu6 Com efeito ela natildeo se confunde com a melancolia sequer com o lutoVeremos adiante como isso se assinala conforme o exposto a seguir

III Seguindo com Freud o luto e a depressatildeo como destinospossiacuteveis agrave dor da perda

O luto como dor estruturante

A mobilizaccedilatildeo do luto face agrave perda do objeto implica forccedilas psiacutequicas quetecircm como funccedilatildeo dar um destino especiacutefico agrave relaccedilatildeo do sujeito com a falta no

Outro de modo que este mesmo sujeito sustente sua proacutepria condiccedilatildeo dese- jante Esta apreensatildeo aparece na teoria psicanaliacutetica desde o momento em queFreud situa o luto como um trabalho O luto engendra a proacutepria pulsatildeo na suacondiccedilatildeo de exigecircncia de trabalho implicado na relaccedilatildeo com o corpo (F9831549831419831579831401915) ndash forccedila que mobiliza em seu caraacuteter de insistecircncia a elaboraccedilatildeo simboacute-lica da perda objetal

Em Luto e melancolia Freud (1917) descreve as caracteriacutesticas baacutesicas doprocesso de luto Ali ele considera que no luto prevalece uma inibiccedilatildeo da ativi-

6 A especificidade do ideal do eu na depressatildeo seraacute discutida no terceiro toacutepico da presenteexposiccedilatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

91Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

dade do eu e sua absorccedilatildeo uma ldquoperda [temporaacuteria] da capacidade de adotarum novo objeto de amorrdquo (ibid p 250) ldquoEacute notaacutevel que esse penoso despazerseja aceito por noacutes como algo natural Contudo o fato eacute que quando o traba-

lho do luto se conclui o ego fica outra vez livre e desinibidordquo ( ibid p 251)O enlutado se manteacutem segundo Freud temporariamente num estado de

rebaixamento libidinal e sofrimento ante a morte ou agrave perda cujos efeitos sefazem valer pela possibilidade de finitizaccedilatildeo da dor O luto eacute evocado pelo su-

jeito no sentido de fazer com que perante a perda a dor natildeo se eternize Nessesentido o luto se configura efetivamente como um trabalho psiacutequico Ratifica--se que o trabalho do luto tem a funccedilatildeo de assimilaccedilatildeo da perda e de possibili-tar que o sujeito se separe do objeto perdido e reinvista num substituto O

enlutado martiriza-se pela perda recorda-se constantemente do perdido tra-balhando no sentido mesmo de dar a isso um estatuto efetivo de perda e assi-milaccedilatildeo simboacutelica da perda relanccedilando-se ao desejo

O luto nessa apreensatildeo constitui um doloroso caminho sobre o qual ohumano percorre a fim de assimilar a perda do objeto e a proacutepria transitorie-dade Aleacutem de proporcionar tal assimilaccedilatildeo simboacutelica o enlutado se protegede seu proacuteprio desmoronamento mediante um momento passageiro de acirra-

mento da dor psiacutequica a lembranccedila do objeto perdido o pranteamento a ini-

biccedilatildeo passageira etcAssim o luto eacute dor estruturante agrave medida que move um trabalho de ligaccedilatildeo

e integraccedilatildeo daquilo que irrompe no aparelho psiacutequico e fica momentanea-mente sem metaforizaccedilatildeo Eacute mola propulsora da simbolizaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo nar-rativa da perda mediante reconstruccedilatildeo da dor psiacutequica diante da anguacutestia queirrompe no sujeito quando este se depara com a faceta inominaacutevel do objetoperdido (cf L983137983139983137983150 1962-1963) Em outras palavras o luto tem por funccedilatildeo dar

um nome ao perdido promovendo um lugar no simboacutelico para o perdido La-

can assinala que apoacutes o processo do luto se instaura uma transformaccedilatildeo no euNesse sentido apoacutes o luto o sujeito natildeo seraacute mais o mesmo de antes o queimplica um processo de transformaccedilatildeo do eu e separaccedilatildeo do objeto perdido(L983137983139983137983150 1958-1959) Eacute precisamente na travessia do luto que o sujeito retomaa via do desejo lanccedilando-se a novas formas de existir e a novos investimentos

Veremos adiante que a abordagem do luto a partir de Freud natildeo deixaespaccedilo teoacuterico para uma confluecircncia conceitual entre o luto e a depressatildeo ndash osdois conceitos natildeo se confundem natildeo obstante se relacionarem ainda que de

maneira excludente e heterogecircnea Esses conceitos seratildeo aprofundados a se-guir de forma sustentada no pensamento de Freud e de outros autores comoSerge Leclaire os quais contribuem para o avanccedilo do tema

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1021

A DOR E O EXISTIR

92

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Com Freud aleacutem de Freud luto e depressatildeo

Podemos adentrar o tema da depressatildeo e sua relaccedilatildeo com o luto medianteo estudo de alguns aspectos relativos agrave obra freudiana na depuraccedilatildeo dos pro-blemas concernentes agrave constituiccedilatildeo do sujeito

Em Bate-se numa crianccedila Freud (1919) identificou importantes elemen-tos subjacentes aos movimentos fantasmaacuteticos infantis os quais guardadassuas especificidades revelam a circunstacircncia especiacutefica de um momento sub-

jetivo extremamente relevante no percurso de vida dos sujeitosFreud discute ali algumas peculiaridades determinantes da fantasia infan-

til que podem revelar aspectos decisivos para a compreensatildeo do modo como o

sujeito responde ao impasse da onipotecircncia narciacutesica Ele aponta que a primei-ra fase da fantasia de flagelaccedilatildeo infantil corresponde a uma imagem repetitivana qual uma crianccedila eacute espancada por um adulto ndash em geral o pai A fase sub-sequente corresponde segundo ele agrave posiccedilatildeo inconsciente na qual o sujeito se

vecirc como sendo a proacutepria crianccedila espancada em que se faz verificar um retornoao masoquismo e um sentimento de culpa remetido ao desejo incestuoso Naterceira fase a fantasia se traduz por um sentido de universalizaccedilatildeo dos perso-nagens presentes natildeo havendo nela atribuiccedilotildees identificatoacuterias mas uma

abrangecircncia que natildeo especifica os atores da cenaEste resumo serve para nos referenciarmos na discussatildeo introduzida por

Freud a respeito da posiccedilatildeo do sujeito frente ao desejo dos pais que caracterizao rechaccedilo fantasmaacutetico de sua falta Esta condiccedilatildeo introduz para o sujeito umaexperiecircncia especiacutefica concernente agrave dimensatildeo da finitude e da transitorieda-de Nossa anaacutelise se ateacutem ao primeiro momento da fantasia acerca do qualFreud aponta

() muitas crianccedilas que se acreditavam seguramente entronadasna inabalaacutevel afeiccedilatildeo dos pais foram de um soacute golpe derrubadasde todos os ceacuteus da sua onipotecircncia imaginaacuteria A ideacuteia de o paibatendo nessa odiosa crianccedila eacute portanto agradaacutevel indepen-dente de ter sido realmente visto agindo assim Significa lsquoO meupai natildeo ama essa crianccedila mas apenas a mimrdquo7 (ibid p 202)

Conforme sinalizamos anteriormente a respeito do mito de onipotecircncianarciacutesica na constituiccedilatildeo existencial do sujeito salienta-se que em sua experi-ecircncia subjetiva a crianccedila eacute sumariamente destronada de seu lugar de opulecircn-

cia no discurso dos pais logo que os mesmos apresentam-se como faltosos

7 Grifo do autor

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

93Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

especialmente a matildee para quem os investimentos primaacuterios satildeo dirigidos Taldestronamento que muitas vezes toma a fantasia de flagelaccedilatildeo infantil comosaiacuteda possiacutevel ao impasse da onipotecircncia narciacutesica pode resultar natildeo menos

numa experiecircncia de luto cujo destino proporciona ao sujeito uma relaccedilatildeopositiva com a transitoriedade e o proacuteprio desejo Nesse acircmbito a anguacutestia dosujeito diante do objeto que aiacute se desnuda como perdido e natildeo nomeado moveum trabalho de luto capaz de reinstaurar a condiccedilatildeo do desejo

O trabalho do luto natildeo eacute contudo um movimento necessaacuterio de resposta agraveperda A depressatildeo aparece como uma possibilidade de resposta que difere do lutocuja incidecircncia caracteriza uma vicissitude da crenccedila narciacutesica Diferentemente deum trabalho de luto a depressatildeo aguda constitui em sua proacutepria radicalidade a

outra face de uma mesma moeda onipotecircncia narciacutesica e estase depressivaEsse sentido de onipotecircncia perseguido sintomaticamente pelo deprimido

eacute precisamente o que Serge Leclaire (1975) denomina ldquoCrianccedila Maravilhosardquo ACrianccedila Maravilhosa eacute segundo o autor o fundamento da experiecircncia ldquoprimaacute-riardquo do narcisismo ldquoeacute uma representaccedilatildeo inconsciente primordial na qual seentrelaccedilam mais densos do que em qualquer outra os anseios nostalgias e es-peranccedilas de cada umrdquo (ibid p 11) Essa figuraccedilatildeo faz toda referecircncia agrave crenccediladefinida como aquilo que promove o elo narrativo da experiecircncia de si na cons-

tituiccedilatildeo do sujeito Tal experiecircncia contorna toda uma complexidade que Le-claire situaraacute como o paradoxo da condiccedilatildeo subjetiva se por um lado estaldquomaravilha infantilrdquo faz referecircncia ao juacutebilo da centralidade narciacutesica por outrolado remete ao inescapaacutevel da morte ndash por isso o paradoxo ndash na assunccedilatildeo jubi-losa como primeira figuraccedilatildeo estaacutetica do sentimento de onipotecircncia Eacute o mitoda onipotecircncia produzindo uma fabulaccedilatildeo o absoluto impossiacutevel desfrutadopela insiacutegnia dos pais que emprestam o simboacutelico como mateacuteria-prima e o ima-ginaacuterio como efeito jubiloso da imagem perdida Nesse acircmbito nada mais pre-

ciso do que situar a dimensatildeo intriacutenseca da morte no proacuteprio nascimento dasubjetividade no existir primeiro tal como faz Leclaire Nascer (psiquicamen-te) implica em morrer e morrer implica em nascer sob o jugo de se fazer sujei-to e sustentar o movimento desejante cuja condiccedilatildeo eacute a proacutepria morte daldquoCrianccedila Maravilhosardquo Eacute o que Leclaire demonstra em sua anaacutelise do mito in-fantil aquele mesmo referido por Freud na menccedilatildeo ao ego-ideal marcado pelaalienaccedilatildeo que exige constantemente um trabalho de luto mata-se uma crianccedila8

8 Leclaire salienta em sua obra o aspecto pulsional deste processo no qual se assinala a pulsatildeode morte como condiccedilatildeo para a mobilizaccedilatildeo do proacuteprio luto O fracasso da instauraccedilatildeo desteuacuteltimo deflagra natildeo menos a reverberaccedilatildeo paradoxal da Crianccedila Maravilhosa em sua face cruele mortiacutefera tal como veremos adiante em nossa proposta sobre a depressatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1221

A DOR E O EXISTIR

94

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute notaacutevel entretanto a dificuldade que o sujeito tem muitas vezes deldquomatarrdquo sua proacutepria crianccedila interna ou seja fazer o luto da Crianccedila Maravi-lhosa Leclaire afirma que o sujeito refugia-se na Crianccedila Maravilhosa sob o

risco paradoxal de acelerar o curso inescapaacutevel de sua proacutepria morte de suafinitude objetiva O paradoxo que aqui se instala revela que para sustentar odesejo o sujeito tem de matar natildeo apenas o Outro que o inventou mas tam-beacutem a si mesmo num suiciacutedio sem morte cujo drama enuncia a trajetoacuteria daproacutepria dor narciacutesica Ou seja o sujeito nasce mergulhado numa crenccedila narciacute-

sica sob o risco perene da morte caso natildeo renuncie a esta mesma crenccedila que ofez existente Necessidade que Leclaire situa como funccedilatildeo permanente do mo-

vimento desejante

Se a perda eacute intriacutenseca agrave proacutepria experiecircncia narciacutesica circunscrevem-sea partir disso os conceitos de luto e depressatildeo como destinos heterogecircneos aoimpasse da onipotecircncia narciacutesica e da perda objetal Os contextos especiacuteficosnos quais a depressatildeo se manifesta de maneira mais violenta e criacutetica eacute a ex-pressatildeo maacutexima do paradoxo perfilado por Leclaire ndash paradoxo situado nosliames da vida e da morte (subjetivas) A depressatildeo caracteriza-se por umasaiacuteda contradesejante e natildeo eacute como pode parecer uma aderecircncia direta agrave mor-te Ela eacute diferentemente do luto a negaccedilatildeo da finitude e do desejo que situa o

paradoxo da Crianccedila Maravilhosa Tal paradoxo pode ser constatado pela ou-tra face desta moeda a depressatildeo eacute recurso do sujeito para natildeo se deparar como transitoacuterio e para tentar uma recuperaccedilatildeo do gozo atraveacutes da estagnaccedilatildeo e daprostraccedilatildeo ndash uma parada que exige do tempo aquilo que ele natildeo pode dar

Sobre esse aspecto o pensamento de Freud eacute de extrema fecundidade Emsuas perquiriccedilotildees Freud (1915) dizia que a transitoriedade natildeo reduz mas ao

contraacuterio aumenta o valor das coisas No texto que discute a respeito da tran-sitoriedade o ponto de vista de Freud situa na ponta de sua caneta aquilo que

seu interlocutor ndash o poeta Ranier Maria Rilke ndash apresenta quando se refere aotransitoacuterio O poeta afirma que se as coisas se acabam seu valor se destituinum presente absoluto triste e traacutegico Divergindo desta concepccedilatildeo Freuddenomina tal posiccedilatildeo de ldquorevolta contra o lutordquo vinculada a um dos mais pre-ponderantes anseios narciacutesicos a exigecircncia de imortalidade

() essa exigecircncia de imortalidade por ser tatildeo obviamente umproduto dos nossos desejos natildeo pode reivindicar seu direito agraverealidade o que eacute penoso pode natildeo obstante ser verdadeiro

() Natildeo deixei poreacutem de discutir o ponto de vista pessimistado poeta de que a transitoriedade do que eacute belo implica umaperda de seu valor (ibid p 317)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

95Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Contextualizando a depressatildeo nesta temaacutetica ndash a transitoriedade ndash salien-tamos que para a crenccedila narciacutesica ndash ancoragem fundamental da depressatildeo ndash afinitude eacute incompatiacutevel ao projeto de unidade e permanecircncia no discurso da

perfeiccedilatildeo na relaccedilatildeo ao Outro No caso dessa crenccedila assumir um estatuto cen-tral e hegemocircnico na vida psiacutequica do sujeito a estagnaccedilatildeo depressiva aparececomo a via pela qual diante da perda esse mesmo sujeito nega a morte daCrianccedila Maravilhosa impedindo-se agrave transformaccedilatildeo subjetiva engendradapelo luto marcando ali a natildeo sustentaccedilatildeo do desejo Trata-se de uma tentativafracassada de rechaccedilo da falta que marca o ser como incompleto ndash rechaccedilo da falta-a-ser mediante a representaccedilatildeo primaacuteria da Crianccedila Maravilhosa cujo co-rolaacuterio eacute a depressatildeo como resultado sintomaacutetico desse fracasso

Cabe frisar assim que natildeo se trata na depressatildeo de um desdobramento doafeto de tristeza dado que este como afeto conduz o sujeito ao trabalho deluto por mais intenso que possa se apresentar A depressatildeo natildeo se reduz a umafeto trata-se de uma saiacuteda defensiva que resulta em sintomas graves de estag-naccedilatildeo perda do interesse pela vida desinvestimento conflitos com a imagemde si ndash sintomas que agraves vezes culminam em atos suicidas O deprimido ancora--se no mito da onipotecircncia do eu que natildeo passando de um lampejo de perfei-ccedilatildeo que se apaga no tempo engendra uma posiccedilatildeo inversa de silenciamento

absoluto e denegaccedilatildeo radical da divisatildeo e do desejo Caracteriza-se nisso acontrapartida oposta agravequela subjacente ao desejo este uacuteltimo assumindo sus-tentaccedilatildeo mediante o luto cuja principal funccedilatildeo eacute inscrever a contingecircncia dosujeito sua temporalidade transitoriedade e mortalidade conjugando comisso a relaccedilatildeo entre a perda e o proacuteprio desejo9

Algumas notas sobre a distinccedilatildeo entre depressatildeo e melancolia

Cabe aqui realizar uma breve distinccedilatildeo imprescindiacutevel do ponto de vistateoacuterico-cliacutenico para que natildeo incorramos em equiacutevocos que muitas vezes apa-recem no campo psicanaliacutetico Na melancolia a questatildeo apresenta-se de ma-neira distinta Nela o que ocorre eacute uma retirada da libido para o eu ndash o quediante da perda caracteriza a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto (F983154983141983157983140 1917)

9 A condiccedilatildeo aqui descrita se acha na base da experiecircncia depressiva que se intensifica na con-temporaneidade e de outros sintomas que sobrepujam as manifestaccedilotildees ldquoclaacutessicasrdquo caracteriacutes-

ticas da metaacutefora sintomaacutetica histeacuterica a qual ofertava o corpo como palco de decifraccedilatildeo dodesejo inconsciente Nesse sentido o sintoma da depressatildeo apresenta especificidades outrasque merecem todo cuidado teoacuterico-cliacutenico no que tange agraves possibilidades de saiacuteda diante dacastraccedilatildeo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do eu como veremos agrave frente

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1421

A DOR E O EXISTIR

96

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Essa identificaccedilatildeo marca a impossibilidade mesma de inscriccedilatildeo da perda agravemedida que o objeto fica ldquoinstaladordquo no eu promovendo o automassacre me-lancoacutelico Esse processo eacute engendrado pelo supereu perante o eu ideal evanes-

cente caracteriacutestico da afirmaccedilatildeo freudiana de que ldquoa sombra do objeto recaiusobre o eurdquo (ibid )

Numa apreensatildeo aprofundada Lambotte (2003) situa na constituiccedilatildeo dasubjetividade melancoacutelica uma forma de identificaccedilatildeo que denomina ldquoidentifi-

caccedilatildeo ao nadardquo subjacente agrave ldquodeserccedilatildeo do Outrordquo e agrave ldquoevanescecircncia do eu-ideal rdquoSegundo esta apreensatildeo a crianccedila em sua constituiccedilatildeo subjetiva natildeo eacute fisgadacomo objeto do discurso idealizado dos pais na constituiccedilatildeo especular O olharda matildee segundo a autora atravessa o sujeito natildeo atribuindo a ele qualquer

sentido de existecircncia ou predicaccedilatildeo deflagrando para ele uma existecircncia nonada Desertado o Outro natildeo inclui o sujeito na funccedilatildeo do desejo mas num

vazio sem precedentes que instaura a Identificaccedilatildeo ao nada (ibid) O melancoacute-lico denuncia de maneira violenta e mesmo insuportaacutevel a sua proacutepria insus-tentabilidade existencial Natildeo atingido pela idealizaccedilatildeo narciacutesica que de outrasorte o colocaria numa posiccedilatildeo de centralidade (eu ideal) o eu se precipitadestituiacutedo contudo da ilusatildeo de sua proacutepria onipotecircncia Natildeo houve sequer aconstituiccedilatildeo do objeto como ldquoperdidordquo (H983137983155983155983151983157983150 2002) ndash natildeo havendo reco-

nhecimento ou registro da perda que promoveria a inscriccedilatildeo do sujeito nocampo do desejo Ali a idealizaccedilatildeo se constituiu no ponto de evanescecircncia doolhar da matildee o qual se dirige a um modelo cuja exterioridade representa umideal inacessiacutevel para o sujeito Segundo essa loacutegica o sujeito eacute lanccedilado parafora de qualquer representaccedilatildeo jubilosa caracteriacutestica da formaccedilatildeo primaacuteria dacrenccedila narciacutesica (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Sem chances de alcance o ideal se tornaa proacutepria raiz do aviltamento superegoico Nesse sentido Lambotte fala numaldquoruptura do transitivismo especular que chega ao isolamento e ao reforccedilo do

ideal do eu agraves expensas de um eu-ideal que natildeo pocircde elaborar-se na origemrdquo(L983137983149983138983151983156983156983141 op cit p 224)

Sendo assim o que vai se assinalar na melancolia eacute um ideal do eu riacutegidoateacute as uacuteltimas consequecircncias fortalecido por um supereu capaz de estraccedilalharo eu melancoacutelico A evanescecircncia do eu ideal na melancolia se encontra na basedo massacre superegoacuteico cujo teor discursivo aponta para ldquoeu natildeo valho nadardquoldquoeu natildeo sou nadardquo (L983137983149983138983151983156983156983141 op cit )

Na depressatildeo diferentemente o sujeito reconhece a perda do objeto con-

tudo refugia-se na crenccedila narciacutesica num recuo defensivo que nega qualquerpossibilidade de transformaccedilatildeo ou de se lanccedilar ao ideal do eu Sobre isso cabelembrar que a depressatildeo manifesta uma forma de idealizaccedilatildeo cujo registro

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

97Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

acha-se fixado ao eu ideal da Crianccedila Maravilhosa O que vai distinguir essasformas de sofrimento eacute que a evanescecircncia na subjetivaccedilatildeo dos pacientes depri-

midos natildeo eacute do eu ideal mas do ideal do eu10

Podemos assinalar nesse diferencial o cerne da idealizaccedilatildeo que marca es-sas duas manifestaccedilotildees cliacutenicas na melancolia constata-se a evanescecircncia doeu ideal que abre caminho para a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto na depres-satildeo a evanescecircncia do ideal do eu assinalando-se o recuo para a crenccedila narciacute-sica que passaraacute a funcionar como um sintoma

Como ldquoevanescecircncia do ideal do eurdquo define-se aqui uma fugacidade noancoramento identificatoacuterio edipiano cuja funccedilatildeo seria de permitir ao sujeitoafastar-se da crenccedila narciacutesica e reaparecer transformado apoacutes o processo de

luto sustentando o desejo e lanccedilando-se ao futuro Nesses termos natildeo eacute a fi-gura do Pai o que entra no lugar do ideal do eu ancorado numa imago assimeacute-trica que pudesse engendrar uma saiacuteda identificatoacuteria ndash tal como Freud(1923a) constatava na cliacutenica de sua eacutepoca O que entra no lugar do ideal do eueacute a proacutepria crenccedila narciacutesica funcionando ali como sintoma O deprimido en-contra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num processo psiacutequicode integraccedilatildeo que o filiaria no caso do luto a uma accedilatildeo descolada da idealiza-ccedilatildeo narciacutesica O que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos eacute a pro-

jeccedilatildeo no futuro de um eu ideal impossiacutevel de se realizar ndash e isso quando haacuteuma projeccedilatildeo no futuro Sem estabelecimento de qualquer construccedilatildeo narrati-

va a partir da qual o sujeito dispor-se-ia a agir a idealizaccedilatildeo de si mesmo nofuturo eacute similar agrave proacutepria idealizaccedilatildeo de lsquoSua Majestade o Bebecircrsquo (P9831459831509831449831419831459831549831512005) Ela eacute de tal ordem que o sujeito deprime como expressatildeo de seu proacutepriofracasso narciacutesico A imagem de si no presente eacute sempre insuficiente perante aexigecircncia do eu-ideal ldquoabsolutordquo e ldquoperdidordquo Tal insuficiecircncia beira numa si-milaridade inversa o mesmo absoluto irredutiacutevel da Crianccedila Maravilhosa

(Q983157983145983150983156983141983148983148983137 op cit ) Nesse niacutevel a natildeo instauraccedilatildeo do luto eacute situada no mes-mo ponto de evanescecircncia do ideal do eu que impede ao sujeito o afastamentoda crenccedila narciacutesica e a proacutepria ldquomorterdquo da Crianccedila Maravilhosa

10 O ideal do eu eacute o ponto de ancoragem identificatoacuteria que afasta a crianccedila do narcisismo

primaacuterio (F983154983141983157983140 1914) e consequentemente da crenccedila narciacutesica Eacute a partir da identificaccedilatildeoao ideal do eu que o sujeito internaliza os traccedilos do pai na dialeacutetica do desejo frente agrave condiccedilatildeoda falta no Outro O ideal do eu aparece como uma saiacuteda identificatoacuteria proporcionando amobilizaccedilatildeo do luto e o afastamento da fantasia primaacuteria da onipotecircncia narciacutesica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 2: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 221

A DOR E O EXISTIR

84

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

I Introduccedilatildeo

Eacute perene no meio psicanaliacutetico a discussatildeo sobre as diversas formas deenfrentamento do mal-estar inerente agrave constituiccedilatildeo do sujeito na cultura Omovimento psicanaliacutetico desde sua fundaccedilatildeo por Freud em 1900 aponta osujeito como implicado em seu sofrimento psiacutequico agrave medida que responde aomal-estar em sua singularidade sintomaacutetica A psicanaacutelise implica o sujeito emsua proacutepria histoacuteria fantasmaacutetica aquela mesma que sustenta o sintoma cujafunccedilatildeo inconsciente eacute enunciar a posiccedilatildeo desejante e promover um substitutode satisfaccedilatildeo pulsional (F983154983141983157983140 1905)

Freud deixou cunhada a importante concepccedilatildeo de que o mal-estar eacute in-

triacutenseco ao proacuteprio circuito pulsional perante a impossibilidade de satisfaccedilatildeoplena na civilizaccedilatildeo (F983154983141983157983140 1930) Nesse sentido o existir no mundo do de-sejo implica o sujeito em sua divisatildeo e em sua singularidade agrave medida que esteeacute constantemente convocado a dar conta do mal-estar ndash e o faz muitas vezesencontrando saiacuteda nos sintomas da neurose Situando a questatildeo no acircmbito daconstituiccedilatildeo desejante face agrave impossibilidade de reencontro com o objeto per-dido Freud concebe que a proacutepria organizaccedilatildeo da cultura se daacute em torno darenuacutencia pulsional Aponta o mal-estar como iacutendice inelutaacutevel dessa impossi-

bilidade localizando a proacutepria civilizaccedilatildeo como resultante de uma condiccedilatildeocentral que eacute a renuacutencia

O presente trabalho dedica-se a explorar algumas formas de responder aomal-estar situando a condiccedilatildeo do existir no mundo da linguagem e suas espe-cificidades perante o sofrimento contemporacircneo A cliacutenica apresenta comuma frequecircncia cada vez mais acentuada nos dias de hoje uma forma sinto-maacutetica de responder ao mal-estar muito caracteriacutestica da constituiccedilatildeo do su-

jeito na atualidade Trata-se de um tipo especiacutefico de depressatildeo neuroacutetica

distinta da melancolia cujo cerne sustenta uma posiccedilatildeo subjetiva capaz decolocar o processo de luto inteiramente agrave margem Para abordar este temaadentraremos as questotildees intriacutensecas agrave constituiccedilatildeo do ldquosentido de existecircnciade sirdquo fundado no mito primaacuterio da onipotecircncia narciacutesica Conforme veremosesta condiccedilatildeo deflagra uma posiccedilatildeo subjetiva que pode diante da perda fun-cionar como um sintoma ndash o que marca uma das mais pregnantes formas de osujeito lidar com o mal-estar na atualidade

Num patamar proacuteximo deste mas natildeo indistinto o luto aparece como

uma resposta possiacutevel perante a perda a frustraccedilatildeo ou algum significante quealuda agrave castraccedilatildeo Nesse contexto o luto pode ser mobilizado com suas pecu-liaridades intriacutensecas as quais natildeo prescindem da dor sequer de um processo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

85Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

aacuterduo e laborioso Procuraremos abordar o luto assim como uma medida detrabalho que faz da dor o ponto de enlace do fio desejante no qual o sujeito emse tratando de neurose se acha inscrito

Nos dois processos (luto e depressatildeo) como veremos o estatuto de exis-tecircncia eacute tema de imprescindiacutevel abordagem dado que as dimensotildees do ldquoexis-tirrdquo conjugam em sua natureza intriacutenseca a experiecircncia da dor como elementoconstitutivo da subjetividade face ao mal-estar no mundo do desejo da lingua-gem e da cultura Partindo dessas consideraccedilotildees faremos adiante uma exposi-ccedilatildeo sobre o tema do existir na concepccedilatildeo psicanaliacutetica de modo que possamospensaacute-lo no contexto do mal-estar contemporacircneo

II Situando a questatildeo do existir na cliacutenica psicanaliacutetica

Eacute somente na medida do fora-de-sentido dos ditos ndash e natildeo dosentido como se costuma imaginar e como supotildee toda fenome-nologia ndash que existo como pensamento1

Para abordar o tema do existir e suas implicaccedilotildees frente ao mal-estar con-temporacircneo eacute imprescindiacutevel remeter-nos aos diferentes registros da consti-tuiccedilatildeo do sujeito ndash Imaginaacuterio Simboacutelico e Real ndash trabalhados ao longo doensino de Lacan em sua releitura da obra freudiana2

A psicanaacutelise lida no seu fundamento com um ser falante que manifesta via sintoma os efeitos da proacutepria fala no universo da experiecircncia psiacutequica Apartir da escuta psicanaliacutetica fundada na fala livre do sujeito o inconsciente

vai ser teorizado como construto loacutegico dadas as formaccedilotildees simboacutelicas e asposiccedilotildees subjetivas no mundo do fantasma que escapam a sapiecircncia conscien-te daquele mesmo que fala O inconsciente eacute um construto loacutegico menos umdado fenomenoloacutegico do que uma decisatildeo do psicanalista ao operar com ainterpretaccedilatildeo e as pontuaccedilotildees que implicam o sujeito na sua verdade incons-ciente assumindo esta assim um estatuto eacutetico (L983137983139983137983150 1964) Tal como ou-tros conceitos da psicanaacutelise ndash recalque pulsatildeo foraclusatildeo etc ndash oinconsciente natildeo eacute passiacutevel de ser pensado numa base estritamente fenomeno-loacutegica Esta pontuaccedilatildeo caracteriza a psicanaacutelise como um campo de investiga-ccedilatildeo que se afasta da fenomenologia e se distingue do existencialismo Aleacutem de

1 L983137983139983137983150 Jacques (1968) O Seminaacuterio livro 16 De um Outro ao outro Rio de Janeiro Zahar2008

2 A exposiccedilatildeo que se segue sobre a teoria lacaniana visa fundamentar nossa concepccedilatildeo para odesenvolvimento acerca do tema aqui abordado

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 421

A DOR E O EXISTIR

86

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

desenvolver conceitos que natildeo se pautam em uma base fenomecircnica trata natildeoapenas daquilo que ldquoexisterdquo como dado fenomecircnico da experiecircncia subjetivamas tambeacutem e especialmente daquilo que escapa agraves possibilidades de apreen-

satildeo fenomecircnica e mesmo de articulaccedilatildeo simboacutelica tal qual se observa com osconceitos de sujeito objeto e real

A constituiccedilatildeo do sujeito implica um mergulho no universo da fala cujosefeitos se inscrevem na erogeneidade do corpo concebido como corpo pulsionalou eroacutegeno (cf E9831489831459831371995) Esta condiccedilatildeo conjuga os trecircs registros abordadospor Lacan ao longo de sua obra (imaginaacuterio simboacutelico real) numa dimensatildeointriacutenseca natildeo apenas agrave existecircncia mas tambeacutem agrave ex-sistecircncia e agrave insistecircncia (ibid ) Com Lacan pode-se asseverar que do ponto de vista do registro imagi-

naacuterio o sujeito existe como dado fenomecircnico agrave medida que a constituiccedilatildeo do eueacute efeito da captaccedilatildeo da imagem de si no espelho fundada a partir de um outrosemelhante agrave crianccedila que vem a dar suporte agrave constituiccedilatildeo dessa imagem aoniacutevel da idealizaccedilatildeo (L983137983139983137983150 1936) Do ponto de vista do simboacutelico o sujeitoex-siste ao deslizamento da cadeia significante agrave medida que esta produz suadivisatildeo tornando-o extriacutenseco ao simboacutelico e impossibilitando-o de ser captadoou representado plenamente no campo da fala (L983137983139983137983150 1958) O efeito das ope-raccedilotildees simboacutelicas no Real eacute um resto natildeo simbolizaacutevel que insiste como objeto

perdido inapreensiacutevel ao niacutevel da cadeia significante ndash objeto situado comoldquocausa do desejordquo (L983137983139983137983150 1964) Veremos como essas dimensotildees que natildeo po-dem ser abordadas de maneira isolada se assinalam do ponto de vista da cons-tituiccedilatildeo subjetiva bem como das respostas sintomaacuteticas ao mal-estar que seratildeoaqui trabalhadas Buscaremos agrave frente abordar essas dimensotildees uma a umatomando o narcisismo como ferramenta teoacuterica central com objetivo de aden-trar a abordagem sobre a depressatildeo e o luto no mal-estar contemporacircneo

E xistecircncia ex-sistecircncia insistecircncia

O estatuto de existecircncia eacute dado na experiecircncia narciacutesica que funda noimaginaacuterio o eu como instacircncia primaacuteria ancorada na fantasia da onipotecircnciainfantil Essa fantasia se acha subjugada agrave idealizaccedilatildeo dos pais agrave medida que osmesmos elevam a crianccedila agrave majestade de uma posiccedilatildeo impossiacutevel de ser sus-tentada na cultura Em sua anaacutelise do narcisismo Freud (1914) considera queo amor dos pais investido sobre o infante se acha condicionado ao proacuteprio

narcisismo perdido dos pais A expressatildeo ldquoSua majestade o Bebecircrdquo caracteriza ahiperidealizaccedilatildeo parental sobre a crianccedila fundando ali mesmo um discursoque produziraacute efeitos perenes na subjetividade do infante

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

87Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Pinheiro (2002) assinala que a idealizaccedilatildeo parental eacute o ponto de partidado juacutebilo narciacutesico cuja experiecircncia fundamenta o sentimento de existecircncia dacrianccedila Existir eacute efeito antes de tudo da introjeccedilatildeo de uma rede de sentidos

plurais captados do discurso idealizado dos pais Nesse acircmbito existir implicaem princiacutepio responder ao investimento parental com a fantasia da onipotecircn-cia Esta fantasia tem como objetivo rechaccedilar a impermanecircncia a falta e a fini-tude na relaccedilatildeo com os pais na busca da estase sustentada por um tipoparticular de idealizaccedilatildeo que diz respeito ao investimento amoroso dos pais Oinvestimento parental no narcisismo do infante deflagra ali um mundo de ma-ravilhas sob o qual este mesmo infante sustentaraacute seu proacuteprio ideal narciacutesicoAmar-se a si proacuteprio significa render-se ao discurso embalsamador da matildee

que empresta a silhueta necessaacuteria para o advento de uma imagem de si supos-tamente ldquoplenardquo de investimento amoroso A crenccedila narciacutesica referencia para osujeito o germe da formaccedilatildeo dos ideais mediante a apropriaccedilatildeo imaginaacuteria dodiscurso parental hiperidealizado3 Ela eacute a miragem do juacutebilo perdido tomadocomo fonte especular da constituiccedilatildeo narciacutesica Redunda no mito da onipotecircn-

cia narciacutesica fundado na ideacuteia de imortalidade e sobrepujanccedila do eu caracteriacutes-tica da megalomania infantil bem como da busca por satisfaccedilatildeo imediata das

moccedilotildees pulsionais

O estatuto de existecircncia se funda assim na relaccedilatildeo com os pais em posi-ccedilatildeo de grande Outro este uacuteltimo definido como ldquolugar da palavra faladardquo quesustenta o sistema significante e engendra a constituiccedilatildeo do sujeito como efeitoda linguagem e da cultura (L983137983139983137983150 1958-1959) O discurso parental assume afunccedilatildeo simboacutelica da determinaccedilatildeo do sujeito produzindo ao mesmo tempono imaginaacuterio efeitos de organizaccedilatildeo especular e invenccedilatildeo narciacutesica Cabe as-sinalar nesse sentido que o fracasso da fantasia de onipotecircncia se acha subju-gado ao caraacuteter intriacutenseco da falta agrave medida que o sujeito depende do Outro

para existir e vai encontrar nele mesmo a constituiccedilatildeo da proacutepria falta (ibid )Nesse acircmbito o existir na sua plenitude eacute fadado ao fracasso agrave medida que nosimboacutelico o Outro devolve a impossibilidade de plenitude no mundo da fala eda linguagem e no real a fantasia de onipotecircncia eacute insustentaacutevel O enoda-

3 Entende-se como crenccedila o elo narrativo da experiecircncia subjetiva sustentado pelo discursoe pela imagem tomados de empreacutestimo do outro Trata-se do creacutedito depositado no tecidodiscursivo que tem como contrapartida os efeitos subjetivos na constituiccedilatildeo do sujeito

(M983137983156983156983151983155 2007) A crenccedila narciacutesica eacute um tipo de crenccedila que funda a relaccedilatildeo do sujeito comsua proacutepria imagem ideal caracteriacutestica do mito de onipotecircncia infantil (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Anoccedilatildeo de crenccedila narciacutesica seraacute amplamente utilizada como operador teoacuterico para a abordagemaqui visada a respeito da depressatildeo e do existir no mal-estar contemporacircneo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 621

A DOR E O EXISTIR

88

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

mento entre imaginaacuterio simboacutelico e real assinala assim que o tema da existecircn-cia natildeo pode ser abordado de maneira desgarrada dos fatores intriacutensecos agraveproacutepria condiccedilatildeo da falta no campo do sujeito situando a ex-sistecircncia e a insis-

tecircncia como dimensotildees intriacutensecas agrave constituiccedilatildeo subjetiva as quais devem serconsideradas na sua maior relevacircncia

Lacan frisa sobre a relaccedilatildeo ao Outro o caraacuteter falho da estrutura simboacutelicacujo efeito eacute a instauraccedilatildeo mesma do desejo e da divisatildeo do sujeito (L9831379831399831379831501958-1959) mantendo um rasgo na imagem narciacutesica suportada inicialmentepela idealizaccedilatildeo parental Lacan assinala a impossibilidade de completude in-triacutenseca agrave proacutepria constituiccedilatildeo do sujeito no campo do significante agrave medidaque este uacuteltimo natildeo eacute capaz de representaacute-lo plenamente lanccedilando-o a uma

cadeia significante inconsciente e abrindo caminho para a falta o desejo e ogozo Ou seja natildeo haacute em um significante o dizer uacuteltimo que defina o sujeito ouo represente plenamente produzindo o remetimento a outros significantes nacadeia4 Em sua anaacutelise Lacan sublinha a inexistecircncia de uma garantia no Ou-tro a respeito de uma fianccedila sobre o ser do sujeito O autor afirma

S(A) quer dizer isto ndash que em A que natildeo eacute um ser mas o lugarda palavra falada onde descansa o conjunto do sistema signifi-cante quer dizer de uma linguagem aiacute falta alguma coisa algu-

ma coisa que soacute pode ser um significante Um significante faltaao niacutevel do Outro Este eacute se posso dizer o grande segredo dapsicanaacutelise ndash natildeo haacute Outro do Outro () Natildeo haacute no Outro ne-nhum significante que possa no caso responder pelo que sou(L983137983139983137983150 1958-1959 p 46-47)

Sendo assim tributaacuterio de um discurso pinccedilado do Outro que imprimesobre o sujeito o ideal da opulecircncia narciacutesica na relaccedilatildeo amorosa primaacuteria onarcisismo eacute tentativa de rechaccedilar a falta desde jaacute presente na relaccedilatildeo ao Outro

Por um lado resta agrave crianccedila a inscriccedilatildeo de sua condiccedilatildeo sexuada transitoacuteria emortal na superaccedilatildeo do narcisismo primaacuterio sustentando-se como sujeito de-sejante ao preccedilo de uma perda Por outro lado os pais apesar de fiadores daidealizaccedilatildeo narciacutesica deixam para o infante um deacutebito impossiacutevel de ser quita-do sob o jugo da proacutepria alienaccedilatildeo dos pais em seu narcisismo perdido ndash fian-ccedila apoiada naquilo que o Outro natildeo tem natildeo devolvendo este Outro por issomesmo qualquer tipo de garantia para o sujeito

Eacute nessa loacutegica que Lacan implica o sujeito no estatuto de ex-sistecircncia no

4 Eacute nesse sentido que Lacan (1964) aborda o significante como ldquoaquilo que representa o sujeitopara outro significanterdquo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

89Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

que o simboacutelico instaura a falta-a-ser intriacutenseca ao mundo do desejo e do gozoA ex-sistecircncia eacute esse ponto real do sujeito que implica um buraco no simboacutelicoagrave medida que o proacuteprio sujeito natildeo eacute um significante na cadeia ex-siste agrave ca-

deia significante e eacute determinado por esta de maneira sempre incompletaFalta-a-ser eacute assim condiccedilatildeo do ser falante agrave medida que o simboacutelico natildeopode representar plenamente o ser restando algo de irrepresentaacutevel na relaccedilatildeoentre sujeito e objeto de satisfaccedilatildeo implicada no gozo5

Do ponto de vista do real o objeto como objeto perdido na relaccedilatildeo dosujeito ao significante insiste como forccedila que resta da operaccedilatildeo de simboliza-ccedilatildeo em funccedilatildeo de sua ligaccedilatildeo com o corpo Eacute o caraacuteter insistente da pulsatildeo queimplica o real como impossiacutevel naquilo que causa o desejo ndash objeto a ndash e ao

mesmo tempo retorna sempre ao mesmo lugar como repeticcedilatildeo aleacutem do prin-ciacutepio do prazer (L983137983139983137983150 1968) Essa insistecircncia do real se caracteriza como oque insiste como resto natildeo simboacutelizaacutevel denominado por Lacan (1968) comomais-de-gozo Isso implica por um lado a renuacutencia primeira numa dimensatildeoem que a perda faz aparecer o objeto a como causa de desejo implica por outrolado uma dimensatildeo em que a proacutepria renuacutencia reforccedila e fortalece a exigecircnciasuperegoica (F983154983141983157983140 1930) Essa forma de gozo que implica a renuacutencia e aperda como marcas constitutivas do sujeito aparece na dimensatildeo de um resto

suplementar a ser recuperado ndash resto que excede ao niacutevel do imperativo supe-regoico (L983137983139983137983150 1968)

A tentativa narciacutesica de rechaccedilar a falta eacute portanto intriacutenseca agrave experiecircnciaprimaacuteria do sujeito Nesse sentido a plenitude que o discurso do Outro ldquoinven-tourdquo (Sua Majestade o Bebecirc) e ao mesmo tempo assinalou como impossibilida-de intriacutenseca agrave estrutura do simboacutelico subjuga um traccedilado paradoxal expressopelo proacuteprio mito de Narciso Entre o amor e a morte o enamoramento absolu-to de Narciso pela imagem ideal de si mesmo eacute o que o leva agrave sua proacutepria ruiacutena

A paralisaccedilatildeo eacute de tal ordem que qualquer movimento no sentido da mudanccedilatorna-se impossiacutevel o que o faz sucumbir agrave prisatildeo de seu amor miacutetico Narcisoeacute a proacutepria expressatildeo do mito e sua paralisaccedilatildeo na imagem eacute a proacutepria insiacutegniada paralisaccedilatildeo no tempo ndash condiccedilatildeo que como veremos eacute a marca da depressatildeo no circuito do desejo Nesse traccedilado eacute a denegaccedilatildeo do desejo o algoz imediatoe paradoxal da proacutepria destruiccedilatildeo de Narciso bem como a mira mortiacutefera dogozo para a qual a busca da experiecircncia do absoluto empurra

5 Com essa apreensatildeo Lacan busca a fundamentaccedilatildeo do sujeito a partir da noccedilatildeo de ex-sistecircnciaagrave medida que o sujeito eacute suposto na teoria do inconsciente natildeo eacute apreensiacutevel enquantocategoria existencial fenomecircnica mas ex-siste como elemento extriacutenseco agrave cadeia significante(L983137983139983137983150 1975)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 821

A DOR E O EXISTIR

90

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute sob essa rubrica impossiacutevel da experiecircncia narciacutesica caracteriacutestica datragicidade paradoxal que conjuga onipotecircncia e morte que a nosso ver otema do existir deve ser pensado do ponto de vista da psicanaacutelise Sendo assim

tratar o existir na cliacutenica psicanaliacutetica implica especialmente o impossiacutevel na-quilo que escapa ao fenomenicamente dado atingindo sua condiccedilatildeo de ldquomaisaleacutemrdquo caracteriacutestico da ex-sistecircncia e da insistecircncia No contexto dessas consi-deraccedilotildees pretendemos abordar o tema da depressatildeo como uma forma contem-poracircnea de enfrentamento do mal-estar implicada na condiccedilatildeo natildeo apenasexistencial do sujeito mas tambeacutem faltosa e pulsional

Essa apreensatildeo eacute imprescindiacutevel para pensarmos as formas de gozo na cliacute-nica contemporacircnea A depressatildeo ndash marca do gozo na contemporaneidade ndash

prepondera com caracteriacutesticas especiacuteficas de um modo atual de sofrimentoque natildeo representando uma entidade diagnoacutestica do ponto de vista da psica-naacutelise e inscrita no campo da neurose deve ser concebida como uma organi-zaccedilatildeo sintomaacutetica Ela aparece como resultado de uma tentativa de suturaccedilatildeoda falta como insistecircncia de um gozo que excede ao niacutevel da cadeia significan-te agrave medida que visa rechaccedilar o desejo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do

eu6 Com efeito ela natildeo se confunde com a melancolia sequer com o lutoVeremos adiante como isso se assinala conforme o exposto a seguir

III Seguindo com Freud o luto e a depressatildeo como destinospossiacuteveis agrave dor da perda

O luto como dor estruturante

A mobilizaccedilatildeo do luto face agrave perda do objeto implica forccedilas psiacutequicas quetecircm como funccedilatildeo dar um destino especiacutefico agrave relaccedilatildeo do sujeito com a falta no

Outro de modo que este mesmo sujeito sustente sua proacutepria condiccedilatildeo dese- jante Esta apreensatildeo aparece na teoria psicanaliacutetica desde o momento em queFreud situa o luto como um trabalho O luto engendra a proacutepria pulsatildeo na suacondiccedilatildeo de exigecircncia de trabalho implicado na relaccedilatildeo com o corpo (F9831549831419831579831401915) ndash forccedila que mobiliza em seu caraacuteter de insistecircncia a elaboraccedilatildeo simboacute-lica da perda objetal

Em Luto e melancolia Freud (1917) descreve as caracteriacutesticas baacutesicas doprocesso de luto Ali ele considera que no luto prevalece uma inibiccedilatildeo da ativi-

6 A especificidade do ideal do eu na depressatildeo seraacute discutida no terceiro toacutepico da presenteexposiccedilatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

91Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

dade do eu e sua absorccedilatildeo uma ldquoperda [temporaacuteria] da capacidade de adotarum novo objeto de amorrdquo (ibid p 250) ldquoEacute notaacutevel que esse penoso despazerseja aceito por noacutes como algo natural Contudo o fato eacute que quando o traba-

lho do luto se conclui o ego fica outra vez livre e desinibidordquo ( ibid p 251)O enlutado se manteacutem segundo Freud temporariamente num estado de

rebaixamento libidinal e sofrimento ante a morte ou agrave perda cujos efeitos sefazem valer pela possibilidade de finitizaccedilatildeo da dor O luto eacute evocado pelo su-

jeito no sentido de fazer com que perante a perda a dor natildeo se eternize Nessesentido o luto se configura efetivamente como um trabalho psiacutequico Ratifica--se que o trabalho do luto tem a funccedilatildeo de assimilaccedilatildeo da perda e de possibili-tar que o sujeito se separe do objeto perdido e reinvista num substituto O

enlutado martiriza-se pela perda recorda-se constantemente do perdido tra-balhando no sentido mesmo de dar a isso um estatuto efetivo de perda e assi-milaccedilatildeo simboacutelica da perda relanccedilando-se ao desejo

O luto nessa apreensatildeo constitui um doloroso caminho sobre o qual ohumano percorre a fim de assimilar a perda do objeto e a proacutepria transitorie-dade Aleacutem de proporcionar tal assimilaccedilatildeo simboacutelica o enlutado se protegede seu proacuteprio desmoronamento mediante um momento passageiro de acirra-

mento da dor psiacutequica a lembranccedila do objeto perdido o pranteamento a ini-

biccedilatildeo passageira etcAssim o luto eacute dor estruturante agrave medida que move um trabalho de ligaccedilatildeo

e integraccedilatildeo daquilo que irrompe no aparelho psiacutequico e fica momentanea-mente sem metaforizaccedilatildeo Eacute mola propulsora da simbolizaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo nar-rativa da perda mediante reconstruccedilatildeo da dor psiacutequica diante da anguacutestia queirrompe no sujeito quando este se depara com a faceta inominaacutevel do objetoperdido (cf L983137983139983137983150 1962-1963) Em outras palavras o luto tem por funccedilatildeo dar

um nome ao perdido promovendo um lugar no simboacutelico para o perdido La-

can assinala que apoacutes o processo do luto se instaura uma transformaccedilatildeo no euNesse sentido apoacutes o luto o sujeito natildeo seraacute mais o mesmo de antes o queimplica um processo de transformaccedilatildeo do eu e separaccedilatildeo do objeto perdido(L983137983139983137983150 1958-1959) Eacute precisamente na travessia do luto que o sujeito retomaa via do desejo lanccedilando-se a novas formas de existir e a novos investimentos

Veremos adiante que a abordagem do luto a partir de Freud natildeo deixaespaccedilo teoacuterico para uma confluecircncia conceitual entre o luto e a depressatildeo ndash osdois conceitos natildeo se confundem natildeo obstante se relacionarem ainda que de

maneira excludente e heterogecircnea Esses conceitos seratildeo aprofundados a se-guir de forma sustentada no pensamento de Freud e de outros autores comoSerge Leclaire os quais contribuem para o avanccedilo do tema

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1021

A DOR E O EXISTIR

92

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Com Freud aleacutem de Freud luto e depressatildeo

Podemos adentrar o tema da depressatildeo e sua relaccedilatildeo com o luto medianteo estudo de alguns aspectos relativos agrave obra freudiana na depuraccedilatildeo dos pro-blemas concernentes agrave constituiccedilatildeo do sujeito

Em Bate-se numa crianccedila Freud (1919) identificou importantes elemen-tos subjacentes aos movimentos fantasmaacuteticos infantis os quais guardadassuas especificidades revelam a circunstacircncia especiacutefica de um momento sub-

jetivo extremamente relevante no percurso de vida dos sujeitosFreud discute ali algumas peculiaridades determinantes da fantasia infan-

til que podem revelar aspectos decisivos para a compreensatildeo do modo como o

sujeito responde ao impasse da onipotecircncia narciacutesica Ele aponta que a primei-ra fase da fantasia de flagelaccedilatildeo infantil corresponde a uma imagem repetitivana qual uma crianccedila eacute espancada por um adulto ndash em geral o pai A fase sub-sequente corresponde segundo ele agrave posiccedilatildeo inconsciente na qual o sujeito se

vecirc como sendo a proacutepria crianccedila espancada em que se faz verificar um retornoao masoquismo e um sentimento de culpa remetido ao desejo incestuoso Naterceira fase a fantasia se traduz por um sentido de universalizaccedilatildeo dos perso-nagens presentes natildeo havendo nela atribuiccedilotildees identificatoacuterias mas uma

abrangecircncia que natildeo especifica os atores da cenaEste resumo serve para nos referenciarmos na discussatildeo introduzida por

Freud a respeito da posiccedilatildeo do sujeito frente ao desejo dos pais que caracterizao rechaccedilo fantasmaacutetico de sua falta Esta condiccedilatildeo introduz para o sujeito umaexperiecircncia especiacutefica concernente agrave dimensatildeo da finitude e da transitorieda-de Nossa anaacutelise se ateacutem ao primeiro momento da fantasia acerca do qualFreud aponta

() muitas crianccedilas que se acreditavam seguramente entronadasna inabalaacutevel afeiccedilatildeo dos pais foram de um soacute golpe derrubadasde todos os ceacuteus da sua onipotecircncia imaginaacuteria A ideacuteia de o paibatendo nessa odiosa crianccedila eacute portanto agradaacutevel indepen-dente de ter sido realmente visto agindo assim Significa lsquoO meupai natildeo ama essa crianccedila mas apenas a mimrdquo7 (ibid p 202)

Conforme sinalizamos anteriormente a respeito do mito de onipotecircncianarciacutesica na constituiccedilatildeo existencial do sujeito salienta-se que em sua experi-ecircncia subjetiva a crianccedila eacute sumariamente destronada de seu lugar de opulecircn-

cia no discurso dos pais logo que os mesmos apresentam-se como faltosos

7 Grifo do autor

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

93Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

especialmente a matildee para quem os investimentos primaacuterios satildeo dirigidos Taldestronamento que muitas vezes toma a fantasia de flagelaccedilatildeo infantil comosaiacuteda possiacutevel ao impasse da onipotecircncia narciacutesica pode resultar natildeo menos

numa experiecircncia de luto cujo destino proporciona ao sujeito uma relaccedilatildeopositiva com a transitoriedade e o proacuteprio desejo Nesse acircmbito a anguacutestia dosujeito diante do objeto que aiacute se desnuda como perdido e natildeo nomeado moveum trabalho de luto capaz de reinstaurar a condiccedilatildeo do desejo

O trabalho do luto natildeo eacute contudo um movimento necessaacuterio de resposta agraveperda A depressatildeo aparece como uma possibilidade de resposta que difere do lutocuja incidecircncia caracteriza uma vicissitude da crenccedila narciacutesica Diferentemente deum trabalho de luto a depressatildeo aguda constitui em sua proacutepria radicalidade a

outra face de uma mesma moeda onipotecircncia narciacutesica e estase depressivaEsse sentido de onipotecircncia perseguido sintomaticamente pelo deprimido

eacute precisamente o que Serge Leclaire (1975) denomina ldquoCrianccedila Maravilhosardquo ACrianccedila Maravilhosa eacute segundo o autor o fundamento da experiecircncia ldquoprimaacute-riardquo do narcisismo ldquoeacute uma representaccedilatildeo inconsciente primordial na qual seentrelaccedilam mais densos do que em qualquer outra os anseios nostalgias e es-peranccedilas de cada umrdquo (ibid p 11) Essa figuraccedilatildeo faz toda referecircncia agrave crenccediladefinida como aquilo que promove o elo narrativo da experiecircncia de si na cons-

tituiccedilatildeo do sujeito Tal experiecircncia contorna toda uma complexidade que Le-claire situaraacute como o paradoxo da condiccedilatildeo subjetiva se por um lado estaldquomaravilha infantilrdquo faz referecircncia ao juacutebilo da centralidade narciacutesica por outrolado remete ao inescapaacutevel da morte ndash por isso o paradoxo ndash na assunccedilatildeo jubi-losa como primeira figuraccedilatildeo estaacutetica do sentimento de onipotecircncia Eacute o mitoda onipotecircncia produzindo uma fabulaccedilatildeo o absoluto impossiacutevel desfrutadopela insiacutegnia dos pais que emprestam o simboacutelico como mateacuteria-prima e o ima-ginaacuterio como efeito jubiloso da imagem perdida Nesse acircmbito nada mais pre-

ciso do que situar a dimensatildeo intriacutenseca da morte no proacuteprio nascimento dasubjetividade no existir primeiro tal como faz Leclaire Nascer (psiquicamen-te) implica em morrer e morrer implica em nascer sob o jugo de se fazer sujei-to e sustentar o movimento desejante cuja condiccedilatildeo eacute a proacutepria morte daldquoCrianccedila Maravilhosardquo Eacute o que Leclaire demonstra em sua anaacutelise do mito in-fantil aquele mesmo referido por Freud na menccedilatildeo ao ego-ideal marcado pelaalienaccedilatildeo que exige constantemente um trabalho de luto mata-se uma crianccedila8

8 Leclaire salienta em sua obra o aspecto pulsional deste processo no qual se assinala a pulsatildeode morte como condiccedilatildeo para a mobilizaccedilatildeo do proacuteprio luto O fracasso da instauraccedilatildeo desteuacuteltimo deflagra natildeo menos a reverberaccedilatildeo paradoxal da Crianccedila Maravilhosa em sua face cruele mortiacutefera tal como veremos adiante em nossa proposta sobre a depressatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1221

A DOR E O EXISTIR

94

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute notaacutevel entretanto a dificuldade que o sujeito tem muitas vezes deldquomatarrdquo sua proacutepria crianccedila interna ou seja fazer o luto da Crianccedila Maravi-lhosa Leclaire afirma que o sujeito refugia-se na Crianccedila Maravilhosa sob o

risco paradoxal de acelerar o curso inescapaacutevel de sua proacutepria morte de suafinitude objetiva O paradoxo que aqui se instala revela que para sustentar odesejo o sujeito tem de matar natildeo apenas o Outro que o inventou mas tam-beacutem a si mesmo num suiciacutedio sem morte cujo drama enuncia a trajetoacuteria daproacutepria dor narciacutesica Ou seja o sujeito nasce mergulhado numa crenccedila narciacute-

sica sob o risco perene da morte caso natildeo renuncie a esta mesma crenccedila que ofez existente Necessidade que Leclaire situa como funccedilatildeo permanente do mo-

vimento desejante

Se a perda eacute intriacutenseca agrave proacutepria experiecircncia narciacutesica circunscrevem-sea partir disso os conceitos de luto e depressatildeo como destinos heterogecircneos aoimpasse da onipotecircncia narciacutesica e da perda objetal Os contextos especiacuteficosnos quais a depressatildeo se manifesta de maneira mais violenta e criacutetica eacute a ex-pressatildeo maacutexima do paradoxo perfilado por Leclaire ndash paradoxo situado nosliames da vida e da morte (subjetivas) A depressatildeo caracteriza-se por umasaiacuteda contradesejante e natildeo eacute como pode parecer uma aderecircncia direta agrave mor-te Ela eacute diferentemente do luto a negaccedilatildeo da finitude e do desejo que situa o

paradoxo da Crianccedila Maravilhosa Tal paradoxo pode ser constatado pela ou-tra face desta moeda a depressatildeo eacute recurso do sujeito para natildeo se deparar como transitoacuterio e para tentar uma recuperaccedilatildeo do gozo atraveacutes da estagnaccedilatildeo e daprostraccedilatildeo ndash uma parada que exige do tempo aquilo que ele natildeo pode dar

Sobre esse aspecto o pensamento de Freud eacute de extrema fecundidade Emsuas perquiriccedilotildees Freud (1915) dizia que a transitoriedade natildeo reduz mas ao

contraacuterio aumenta o valor das coisas No texto que discute a respeito da tran-sitoriedade o ponto de vista de Freud situa na ponta de sua caneta aquilo que

seu interlocutor ndash o poeta Ranier Maria Rilke ndash apresenta quando se refere aotransitoacuterio O poeta afirma que se as coisas se acabam seu valor se destituinum presente absoluto triste e traacutegico Divergindo desta concepccedilatildeo Freuddenomina tal posiccedilatildeo de ldquorevolta contra o lutordquo vinculada a um dos mais pre-ponderantes anseios narciacutesicos a exigecircncia de imortalidade

() essa exigecircncia de imortalidade por ser tatildeo obviamente umproduto dos nossos desejos natildeo pode reivindicar seu direito agraverealidade o que eacute penoso pode natildeo obstante ser verdadeiro

() Natildeo deixei poreacutem de discutir o ponto de vista pessimistado poeta de que a transitoriedade do que eacute belo implica umaperda de seu valor (ibid p 317)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

95Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Contextualizando a depressatildeo nesta temaacutetica ndash a transitoriedade ndash salien-tamos que para a crenccedila narciacutesica ndash ancoragem fundamental da depressatildeo ndash afinitude eacute incompatiacutevel ao projeto de unidade e permanecircncia no discurso da

perfeiccedilatildeo na relaccedilatildeo ao Outro No caso dessa crenccedila assumir um estatuto cen-tral e hegemocircnico na vida psiacutequica do sujeito a estagnaccedilatildeo depressiva aparececomo a via pela qual diante da perda esse mesmo sujeito nega a morte daCrianccedila Maravilhosa impedindo-se agrave transformaccedilatildeo subjetiva engendradapelo luto marcando ali a natildeo sustentaccedilatildeo do desejo Trata-se de uma tentativafracassada de rechaccedilo da falta que marca o ser como incompleto ndash rechaccedilo da falta-a-ser mediante a representaccedilatildeo primaacuteria da Crianccedila Maravilhosa cujo co-rolaacuterio eacute a depressatildeo como resultado sintomaacutetico desse fracasso

Cabe frisar assim que natildeo se trata na depressatildeo de um desdobramento doafeto de tristeza dado que este como afeto conduz o sujeito ao trabalho deluto por mais intenso que possa se apresentar A depressatildeo natildeo se reduz a umafeto trata-se de uma saiacuteda defensiva que resulta em sintomas graves de estag-naccedilatildeo perda do interesse pela vida desinvestimento conflitos com a imagemde si ndash sintomas que agraves vezes culminam em atos suicidas O deprimido ancora--se no mito da onipotecircncia do eu que natildeo passando de um lampejo de perfei-ccedilatildeo que se apaga no tempo engendra uma posiccedilatildeo inversa de silenciamento

absoluto e denegaccedilatildeo radical da divisatildeo e do desejo Caracteriza-se nisso acontrapartida oposta agravequela subjacente ao desejo este uacuteltimo assumindo sus-tentaccedilatildeo mediante o luto cuja principal funccedilatildeo eacute inscrever a contingecircncia dosujeito sua temporalidade transitoriedade e mortalidade conjugando comisso a relaccedilatildeo entre a perda e o proacuteprio desejo9

Algumas notas sobre a distinccedilatildeo entre depressatildeo e melancolia

Cabe aqui realizar uma breve distinccedilatildeo imprescindiacutevel do ponto de vistateoacuterico-cliacutenico para que natildeo incorramos em equiacutevocos que muitas vezes apa-recem no campo psicanaliacutetico Na melancolia a questatildeo apresenta-se de ma-neira distinta Nela o que ocorre eacute uma retirada da libido para o eu ndash o quediante da perda caracteriza a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto (F983154983141983157983140 1917)

9 A condiccedilatildeo aqui descrita se acha na base da experiecircncia depressiva que se intensifica na con-temporaneidade e de outros sintomas que sobrepujam as manifestaccedilotildees ldquoclaacutessicasrdquo caracteriacutes-

ticas da metaacutefora sintomaacutetica histeacuterica a qual ofertava o corpo como palco de decifraccedilatildeo dodesejo inconsciente Nesse sentido o sintoma da depressatildeo apresenta especificidades outrasque merecem todo cuidado teoacuterico-cliacutenico no que tange agraves possibilidades de saiacuteda diante dacastraccedilatildeo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do eu como veremos agrave frente

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1421

A DOR E O EXISTIR

96

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Essa identificaccedilatildeo marca a impossibilidade mesma de inscriccedilatildeo da perda agravemedida que o objeto fica ldquoinstaladordquo no eu promovendo o automassacre me-lancoacutelico Esse processo eacute engendrado pelo supereu perante o eu ideal evanes-

cente caracteriacutestico da afirmaccedilatildeo freudiana de que ldquoa sombra do objeto recaiusobre o eurdquo (ibid )

Numa apreensatildeo aprofundada Lambotte (2003) situa na constituiccedilatildeo dasubjetividade melancoacutelica uma forma de identificaccedilatildeo que denomina ldquoidentifi-

caccedilatildeo ao nadardquo subjacente agrave ldquodeserccedilatildeo do Outrordquo e agrave ldquoevanescecircncia do eu-ideal rdquoSegundo esta apreensatildeo a crianccedila em sua constituiccedilatildeo subjetiva natildeo eacute fisgadacomo objeto do discurso idealizado dos pais na constituiccedilatildeo especular O olharda matildee segundo a autora atravessa o sujeito natildeo atribuindo a ele qualquer

sentido de existecircncia ou predicaccedilatildeo deflagrando para ele uma existecircncia nonada Desertado o Outro natildeo inclui o sujeito na funccedilatildeo do desejo mas num

vazio sem precedentes que instaura a Identificaccedilatildeo ao nada (ibid) O melancoacute-lico denuncia de maneira violenta e mesmo insuportaacutevel a sua proacutepria insus-tentabilidade existencial Natildeo atingido pela idealizaccedilatildeo narciacutesica que de outrasorte o colocaria numa posiccedilatildeo de centralidade (eu ideal) o eu se precipitadestituiacutedo contudo da ilusatildeo de sua proacutepria onipotecircncia Natildeo houve sequer aconstituiccedilatildeo do objeto como ldquoperdidordquo (H983137983155983155983151983157983150 2002) ndash natildeo havendo reco-

nhecimento ou registro da perda que promoveria a inscriccedilatildeo do sujeito nocampo do desejo Ali a idealizaccedilatildeo se constituiu no ponto de evanescecircncia doolhar da matildee o qual se dirige a um modelo cuja exterioridade representa umideal inacessiacutevel para o sujeito Segundo essa loacutegica o sujeito eacute lanccedilado parafora de qualquer representaccedilatildeo jubilosa caracteriacutestica da formaccedilatildeo primaacuteria dacrenccedila narciacutesica (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Sem chances de alcance o ideal se tornaa proacutepria raiz do aviltamento superegoico Nesse sentido Lambotte fala numaldquoruptura do transitivismo especular que chega ao isolamento e ao reforccedilo do

ideal do eu agraves expensas de um eu-ideal que natildeo pocircde elaborar-se na origemrdquo(L983137983149983138983151983156983156983141 op cit p 224)

Sendo assim o que vai se assinalar na melancolia eacute um ideal do eu riacutegidoateacute as uacuteltimas consequecircncias fortalecido por um supereu capaz de estraccedilalharo eu melancoacutelico A evanescecircncia do eu ideal na melancolia se encontra na basedo massacre superegoacuteico cujo teor discursivo aponta para ldquoeu natildeo valho nadardquoldquoeu natildeo sou nadardquo (L983137983149983138983151983156983156983141 op cit )

Na depressatildeo diferentemente o sujeito reconhece a perda do objeto con-

tudo refugia-se na crenccedila narciacutesica num recuo defensivo que nega qualquerpossibilidade de transformaccedilatildeo ou de se lanccedilar ao ideal do eu Sobre isso cabelembrar que a depressatildeo manifesta uma forma de idealizaccedilatildeo cujo registro

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

97Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

acha-se fixado ao eu ideal da Crianccedila Maravilhosa O que vai distinguir essasformas de sofrimento eacute que a evanescecircncia na subjetivaccedilatildeo dos pacientes depri-

midos natildeo eacute do eu ideal mas do ideal do eu10

Podemos assinalar nesse diferencial o cerne da idealizaccedilatildeo que marca es-sas duas manifestaccedilotildees cliacutenicas na melancolia constata-se a evanescecircncia doeu ideal que abre caminho para a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto na depres-satildeo a evanescecircncia do ideal do eu assinalando-se o recuo para a crenccedila narciacute-sica que passaraacute a funcionar como um sintoma

Como ldquoevanescecircncia do ideal do eurdquo define-se aqui uma fugacidade noancoramento identificatoacuterio edipiano cuja funccedilatildeo seria de permitir ao sujeitoafastar-se da crenccedila narciacutesica e reaparecer transformado apoacutes o processo de

luto sustentando o desejo e lanccedilando-se ao futuro Nesses termos natildeo eacute a fi-gura do Pai o que entra no lugar do ideal do eu ancorado numa imago assimeacute-trica que pudesse engendrar uma saiacuteda identificatoacuteria ndash tal como Freud(1923a) constatava na cliacutenica de sua eacutepoca O que entra no lugar do ideal do eueacute a proacutepria crenccedila narciacutesica funcionando ali como sintoma O deprimido en-contra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num processo psiacutequicode integraccedilatildeo que o filiaria no caso do luto a uma accedilatildeo descolada da idealiza-ccedilatildeo narciacutesica O que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos eacute a pro-

jeccedilatildeo no futuro de um eu ideal impossiacutevel de se realizar ndash e isso quando haacuteuma projeccedilatildeo no futuro Sem estabelecimento de qualquer construccedilatildeo narrati-

va a partir da qual o sujeito dispor-se-ia a agir a idealizaccedilatildeo de si mesmo nofuturo eacute similar agrave proacutepria idealizaccedilatildeo de lsquoSua Majestade o Bebecircrsquo (P9831459831509831449831419831459831549831512005) Ela eacute de tal ordem que o sujeito deprime como expressatildeo de seu proacutepriofracasso narciacutesico A imagem de si no presente eacute sempre insuficiente perante aexigecircncia do eu-ideal ldquoabsolutordquo e ldquoperdidordquo Tal insuficiecircncia beira numa si-milaridade inversa o mesmo absoluto irredutiacutevel da Crianccedila Maravilhosa

(Q983157983145983150983156983141983148983148983137 op cit ) Nesse niacutevel a natildeo instauraccedilatildeo do luto eacute situada no mes-mo ponto de evanescecircncia do ideal do eu que impede ao sujeito o afastamentoda crenccedila narciacutesica e a proacutepria ldquomorterdquo da Crianccedila Maravilhosa

10 O ideal do eu eacute o ponto de ancoragem identificatoacuteria que afasta a crianccedila do narcisismo

primaacuterio (F983154983141983157983140 1914) e consequentemente da crenccedila narciacutesica Eacute a partir da identificaccedilatildeoao ideal do eu que o sujeito internaliza os traccedilos do pai na dialeacutetica do desejo frente agrave condiccedilatildeoda falta no Outro O ideal do eu aparece como uma saiacuteda identificatoacuteria proporcionando amobilizaccedilatildeo do luto e o afastamento da fantasia primaacuteria da onipotecircncia narciacutesica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 3: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

85Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

aacuterduo e laborioso Procuraremos abordar o luto assim como uma medida detrabalho que faz da dor o ponto de enlace do fio desejante no qual o sujeito emse tratando de neurose se acha inscrito

Nos dois processos (luto e depressatildeo) como veremos o estatuto de exis-tecircncia eacute tema de imprescindiacutevel abordagem dado que as dimensotildees do ldquoexis-tirrdquo conjugam em sua natureza intriacutenseca a experiecircncia da dor como elementoconstitutivo da subjetividade face ao mal-estar no mundo do desejo da lingua-gem e da cultura Partindo dessas consideraccedilotildees faremos adiante uma exposi-ccedilatildeo sobre o tema do existir na concepccedilatildeo psicanaliacutetica de modo que possamospensaacute-lo no contexto do mal-estar contemporacircneo

II Situando a questatildeo do existir na cliacutenica psicanaliacutetica

Eacute somente na medida do fora-de-sentido dos ditos ndash e natildeo dosentido como se costuma imaginar e como supotildee toda fenome-nologia ndash que existo como pensamento1

Para abordar o tema do existir e suas implicaccedilotildees frente ao mal-estar con-temporacircneo eacute imprescindiacutevel remeter-nos aos diferentes registros da consti-tuiccedilatildeo do sujeito ndash Imaginaacuterio Simboacutelico e Real ndash trabalhados ao longo doensino de Lacan em sua releitura da obra freudiana2

A psicanaacutelise lida no seu fundamento com um ser falante que manifesta via sintoma os efeitos da proacutepria fala no universo da experiecircncia psiacutequica Apartir da escuta psicanaliacutetica fundada na fala livre do sujeito o inconsciente

vai ser teorizado como construto loacutegico dadas as formaccedilotildees simboacutelicas e asposiccedilotildees subjetivas no mundo do fantasma que escapam a sapiecircncia conscien-te daquele mesmo que fala O inconsciente eacute um construto loacutegico menos umdado fenomenoloacutegico do que uma decisatildeo do psicanalista ao operar com ainterpretaccedilatildeo e as pontuaccedilotildees que implicam o sujeito na sua verdade incons-ciente assumindo esta assim um estatuto eacutetico (L983137983139983137983150 1964) Tal como ou-tros conceitos da psicanaacutelise ndash recalque pulsatildeo foraclusatildeo etc ndash oinconsciente natildeo eacute passiacutevel de ser pensado numa base estritamente fenomeno-loacutegica Esta pontuaccedilatildeo caracteriza a psicanaacutelise como um campo de investiga-ccedilatildeo que se afasta da fenomenologia e se distingue do existencialismo Aleacutem de

1 L983137983139983137983150 Jacques (1968) O Seminaacuterio livro 16 De um Outro ao outro Rio de Janeiro Zahar2008

2 A exposiccedilatildeo que se segue sobre a teoria lacaniana visa fundamentar nossa concepccedilatildeo para odesenvolvimento acerca do tema aqui abordado

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 421

A DOR E O EXISTIR

86

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

desenvolver conceitos que natildeo se pautam em uma base fenomecircnica trata natildeoapenas daquilo que ldquoexisterdquo como dado fenomecircnico da experiecircncia subjetivamas tambeacutem e especialmente daquilo que escapa agraves possibilidades de apreen-

satildeo fenomecircnica e mesmo de articulaccedilatildeo simboacutelica tal qual se observa com osconceitos de sujeito objeto e real

A constituiccedilatildeo do sujeito implica um mergulho no universo da fala cujosefeitos se inscrevem na erogeneidade do corpo concebido como corpo pulsionalou eroacutegeno (cf E9831489831459831371995) Esta condiccedilatildeo conjuga os trecircs registros abordadospor Lacan ao longo de sua obra (imaginaacuterio simboacutelico real) numa dimensatildeointriacutenseca natildeo apenas agrave existecircncia mas tambeacutem agrave ex-sistecircncia e agrave insistecircncia (ibid ) Com Lacan pode-se asseverar que do ponto de vista do registro imagi-

naacuterio o sujeito existe como dado fenomecircnico agrave medida que a constituiccedilatildeo do eueacute efeito da captaccedilatildeo da imagem de si no espelho fundada a partir de um outrosemelhante agrave crianccedila que vem a dar suporte agrave constituiccedilatildeo dessa imagem aoniacutevel da idealizaccedilatildeo (L983137983139983137983150 1936) Do ponto de vista do simboacutelico o sujeitoex-siste ao deslizamento da cadeia significante agrave medida que esta produz suadivisatildeo tornando-o extriacutenseco ao simboacutelico e impossibilitando-o de ser captadoou representado plenamente no campo da fala (L983137983139983137983150 1958) O efeito das ope-raccedilotildees simboacutelicas no Real eacute um resto natildeo simbolizaacutevel que insiste como objeto

perdido inapreensiacutevel ao niacutevel da cadeia significante ndash objeto situado comoldquocausa do desejordquo (L983137983139983137983150 1964) Veremos como essas dimensotildees que natildeo po-dem ser abordadas de maneira isolada se assinalam do ponto de vista da cons-tituiccedilatildeo subjetiva bem como das respostas sintomaacuteticas ao mal-estar que seratildeoaqui trabalhadas Buscaremos agrave frente abordar essas dimensotildees uma a umatomando o narcisismo como ferramenta teoacuterica central com objetivo de aden-trar a abordagem sobre a depressatildeo e o luto no mal-estar contemporacircneo

E xistecircncia ex-sistecircncia insistecircncia

O estatuto de existecircncia eacute dado na experiecircncia narciacutesica que funda noimaginaacuterio o eu como instacircncia primaacuteria ancorada na fantasia da onipotecircnciainfantil Essa fantasia se acha subjugada agrave idealizaccedilatildeo dos pais agrave medida que osmesmos elevam a crianccedila agrave majestade de uma posiccedilatildeo impossiacutevel de ser sus-tentada na cultura Em sua anaacutelise do narcisismo Freud (1914) considera queo amor dos pais investido sobre o infante se acha condicionado ao proacuteprio

narcisismo perdido dos pais A expressatildeo ldquoSua majestade o Bebecircrdquo caracteriza ahiperidealizaccedilatildeo parental sobre a crianccedila fundando ali mesmo um discursoque produziraacute efeitos perenes na subjetividade do infante

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

87Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Pinheiro (2002) assinala que a idealizaccedilatildeo parental eacute o ponto de partidado juacutebilo narciacutesico cuja experiecircncia fundamenta o sentimento de existecircncia dacrianccedila Existir eacute efeito antes de tudo da introjeccedilatildeo de uma rede de sentidos

plurais captados do discurso idealizado dos pais Nesse acircmbito existir implicaem princiacutepio responder ao investimento parental com a fantasia da onipotecircn-cia Esta fantasia tem como objetivo rechaccedilar a impermanecircncia a falta e a fini-tude na relaccedilatildeo com os pais na busca da estase sustentada por um tipoparticular de idealizaccedilatildeo que diz respeito ao investimento amoroso dos pais Oinvestimento parental no narcisismo do infante deflagra ali um mundo de ma-ravilhas sob o qual este mesmo infante sustentaraacute seu proacuteprio ideal narciacutesicoAmar-se a si proacuteprio significa render-se ao discurso embalsamador da matildee

que empresta a silhueta necessaacuteria para o advento de uma imagem de si supos-tamente ldquoplenardquo de investimento amoroso A crenccedila narciacutesica referencia para osujeito o germe da formaccedilatildeo dos ideais mediante a apropriaccedilatildeo imaginaacuteria dodiscurso parental hiperidealizado3 Ela eacute a miragem do juacutebilo perdido tomadocomo fonte especular da constituiccedilatildeo narciacutesica Redunda no mito da onipotecircn-

cia narciacutesica fundado na ideacuteia de imortalidade e sobrepujanccedila do eu caracteriacutes-tica da megalomania infantil bem como da busca por satisfaccedilatildeo imediata das

moccedilotildees pulsionais

O estatuto de existecircncia se funda assim na relaccedilatildeo com os pais em posi-ccedilatildeo de grande Outro este uacuteltimo definido como ldquolugar da palavra faladardquo quesustenta o sistema significante e engendra a constituiccedilatildeo do sujeito como efeitoda linguagem e da cultura (L983137983139983137983150 1958-1959) O discurso parental assume afunccedilatildeo simboacutelica da determinaccedilatildeo do sujeito produzindo ao mesmo tempono imaginaacuterio efeitos de organizaccedilatildeo especular e invenccedilatildeo narciacutesica Cabe as-sinalar nesse sentido que o fracasso da fantasia de onipotecircncia se acha subju-gado ao caraacuteter intriacutenseco da falta agrave medida que o sujeito depende do Outro

para existir e vai encontrar nele mesmo a constituiccedilatildeo da proacutepria falta (ibid )Nesse acircmbito o existir na sua plenitude eacute fadado ao fracasso agrave medida que nosimboacutelico o Outro devolve a impossibilidade de plenitude no mundo da fala eda linguagem e no real a fantasia de onipotecircncia eacute insustentaacutevel O enoda-

3 Entende-se como crenccedila o elo narrativo da experiecircncia subjetiva sustentado pelo discursoe pela imagem tomados de empreacutestimo do outro Trata-se do creacutedito depositado no tecidodiscursivo que tem como contrapartida os efeitos subjetivos na constituiccedilatildeo do sujeito

(M983137983156983156983151983155 2007) A crenccedila narciacutesica eacute um tipo de crenccedila que funda a relaccedilatildeo do sujeito comsua proacutepria imagem ideal caracteriacutestica do mito de onipotecircncia infantil (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Anoccedilatildeo de crenccedila narciacutesica seraacute amplamente utilizada como operador teoacuterico para a abordagemaqui visada a respeito da depressatildeo e do existir no mal-estar contemporacircneo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 621

A DOR E O EXISTIR

88

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

mento entre imaginaacuterio simboacutelico e real assinala assim que o tema da existecircn-cia natildeo pode ser abordado de maneira desgarrada dos fatores intriacutensecos agraveproacutepria condiccedilatildeo da falta no campo do sujeito situando a ex-sistecircncia e a insis-

tecircncia como dimensotildees intriacutensecas agrave constituiccedilatildeo subjetiva as quais devem serconsideradas na sua maior relevacircncia

Lacan frisa sobre a relaccedilatildeo ao Outro o caraacuteter falho da estrutura simboacutelicacujo efeito eacute a instauraccedilatildeo mesma do desejo e da divisatildeo do sujeito (L9831379831399831379831501958-1959) mantendo um rasgo na imagem narciacutesica suportada inicialmentepela idealizaccedilatildeo parental Lacan assinala a impossibilidade de completude in-triacutenseca agrave proacutepria constituiccedilatildeo do sujeito no campo do significante agrave medidaque este uacuteltimo natildeo eacute capaz de representaacute-lo plenamente lanccedilando-o a uma

cadeia significante inconsciente e abrindo caminho para a falta o desejo e ogozo Ou seja natildeo haacute em um significante o dizer uacuteltimo que defina o sujeito ouo represente plenamente produzindo o remetimento a outros significantes nacadeia4 Em sua anaacutelise Lacan sublinha a inexistecircncia de uma garantia no Ou-tro a respeito de uma fianccedila sobre o ser do sujeito O autor afirma

S(A) quer dizer isto ndash que em A que natildeo eacute um ser mas o lugarda palavra falada onde descansa o conjunto do sistema signifi-cante quer dizer de uma linguagem aiacute falta alguma coisa algu-

ma coisa que soacute pode ser um significante Um significante faltaao niacutevel do Outro Este eacute se posso dizer o grande segredo dapsicanaacutelise ndash natildeo haacute Outro do Outro () Natildeo haacute no Outro ne-nhum significante que possa no caso responder pelo que sou(L983137983139983137983150 1958-1959 p 46-47)

Sendo assim tributaacuterio de um discurso pinccedilado do Outro que imprimesobre o sujeito o ideal da opulecircncia narciacutesica na relaccedilatildeo amorosa primaacuteria onarcisismo eacute tentativa de rechaccedilar a falta desde jaacute presente na relaccedilatildeo ao Outro

Por um lado resta agrave crianccedila a inscriccedilatildeo de sua condiccedilatildeo sexuada transitoacuteria emortal na superaccedilatildeo do narcisismo primaacuterio sustentando-se como sujeito de-sejante ao preccedilo de uma perda Por outro lado os pais apesar de fiadores daidealizaccedilatildeo narciacutesica deixam para o infante um deacutebito impossiacutevel de ser quita-do sob o jugo da proacutepria alienaccedilatildeo dos pais em seu narcisismo perdido ndash fian-ccedila apoiada naquilo que o Outro natildeo tem natildeo devolvendo este Outro por issomesmo qualquer tipo de garantia para o sujeito

Eacute nessa loacutegica que Lacan implica o sujeito no estatuto de ex-sistecircncia no

4 Eacute nesse sentido que Lacan (1964) aborda o significante como ldquoaquilo que representa o sujeitopara outro significanterdquo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

89Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

que o simboacutelico instaura a falta-a-ser intriacutenseca ao mundo do desejo e do gozoA ex-sistecircncia eacute esse ponto real do sujeito que implica um buraco no simboacutelicoagrave medida que o proacuteprio sujeito natildeo eacute um significante na cadeia ex-siste agrave ca-

deia significante e eacute determinado por esta de maneira sempre incompletaFalta-a-ser eacute assim condiccedilatildeo do ser falante agrave medida que o simboacutelico natildeopode representar plenamente o ser restando algo de irrepresentaacutevel na relaccedilatildeoentre sujeito e objeto de satisfaccedilatildeo implicada no gozo5

Do ponto de vista do real o objeto como objeto perdido na relaccedilatildeo dosujeito ao significante insiste como forccedila que resta da operaccedilatildeo de simboliza-ccedilatildeo em funccedilatildeo de sua ligaccedilatildeo com o corpo Eacute o caraacuteter insistente da pulsatildeo queimplica o real como impossiacutevel naquilo que causa o desejo ndash objeto a ndash e ao

mesmo tempo retorna sempre ao mesmo lugar como repeticcedilatildeo aleacutem do prin-ciacutepio do prazer (L983137983139983137983150 1968) Essa insistecircncia do real se caracteriza como oque insiste como resto natildeo simboacutelizaacutevel denominado por Lacan (1968) comomais-de-gozo Isso implica por um lado a renuacutencia primeira numa dimensatildeoem que a perda faz aparecer o objeto a como causa de desejo implica por outrolado uma dimensatildeo em que a proacutepria renuacutencia reforccedila e fortalece a exigecircnciasuperegoica (F983154983141983157983140 1930) Essa forma de gozo que implica a renuacutencia e aperda como marcas constitutivas do sujeito aparece na dimensatildeo de um resto

suplementar a ser recuperado ndash resto que excede ao niacutevel do imperativo supe-regoico (L983137983139983137983150 1968)

A tentativa narciacutesica de rechaccedilar a falta eacute portanto intriacutenseca agrave experiecircnciaprimaacuteria do sujeito Nesse sentido a plenitude que o discurso do Outro ldquoinven-tourdquo (Sua Majestade o Bebecirc) e ao mesmo tempo assinalou como impossibilida-de intriacutenseca agrave estrutura do simboacutelico subjuga um traccedilado paradoxal expressopelo proacuteprio mito de Narciso Entre o amor e a morte o enamoramento absolu-to de Narciso pela imagem ideal de si mesmo eacute o que o leva agrave sua proacutepria ruiacutena

A paralisaccedilatildeo eacute de tal ordem que qualquer movimento no sentido da mudanccedilatorna-se impossiacutevel o que o faz sucumbir agrave prisatildeo de seu amor miacutetico Narcisoeacute a proacutepria expressatildeo do mito e sua paralisaccedilatildeo na imagem eacute a proacutepria insiacutegniada paralisaccedilatildeo no tempo ndash condiccedilatildeo que como veremos eacute a marca da depressatildeo no circuito do desejo Nesse traccedilado eacute a denegaccedilatildeo do desejo o algoz imediatoe paradoxal da proacutepria destruiccedilatildeo de Narciso bem como a mira mortiacutefera dogozo para a qual a busca da experiecircncia do absoluto empurra

5 Com essa apreensatildeo Lacan busca a fundamentaccedilatildeo do sujeito a partir da noccedilatildeo de ex-sistecircnciaagrave medida que o sujeito eacute suposto na teoria do inconsciente natildeo eacute apreensiacutevel enquantocategoria existencial fenomecircnica mas ex-siste como elemento extriacutenseco agrave cadeia significante(L983137983139983137983150 1975)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 821

A DOR E O EXISTIR

90

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute sob essa rubrica impossiacutevel da experiecircncia narciacutesica caracteriacutestica datragicidade paradoxal que conjuga onipotecircncia e morte que a nosso ver otema do existir deve ser pensado do ponto de vista da psicanaacutelise Sendo assim

tratar o existir na cliacutenica psicanaliacutetica implica especialmente o impossiacutevel na-quilo que escapa ao fenomenicamente dado atingindo sua condiccedilatildeo de ldquomaisaleacutemrdquo caracteriacutestico da ex-sistecircncia e da insistecircncia No contexto dessas consi-deraccedilotildees pretendemos abordar o tema da depressatildeo como uma forma contem-poracircnea de enfrentamento do mal-estar implicada na condiccedilatildeo natildeo apenasexistencial do sujeito mas tambeacutem faltosa e pulsional

Essa apreensatildeo eacute imprescindiacutevel para pensarmos as formas de gozo na cliacute-nica contemporacircnea A depressatildeo ndash marca do gozo na contemporaneidade ndash

prepondera com caracteriacutesticas especiacuteficas de um modo atual de sofrimentoque natildeo representando uma entidade diagnoacutestica do ponto de vista da psica-naacutelise e inscrita no campo da neurose deve ser concebida como uma organi-zaccedilatildeo sintomaacutetica Ela aparece como resultado de uma tentativa de suturaccedilatildeoda falta como insistecircncia de um gozo que excede ao niacutevel da cadeia significan-te agrave medida que visa rechaccedilar o desejo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do

eu6 Com efeito ela natildeo se confunde com a melancolia sequer com o lutoVeremos adiante como isso se assinala conforme o exposto a seguir

III Seguindo com Freud o luto e a depressatildeo como destinospossiacuteveis agrave dor da perda

O luto como dor estruturante

A mobilizaccedilatildeo do luto face agrave perda do objeto implica forccedilas psiacutequicas quetecircm como funccedilatildeo dar um destino especiacutefico agrave relaccedilatildeo do sujeito com a falta no

Outro de modo que este mesmo sujeito sustente sua proacutepria condiccedilatildeo dese- jante Esta apreensatildeo aparece na teoria psicanaliacutetica desde o momento em queFreud situa o luto como um trabalho O luto engendra a proacutepria pulsatildeo na suacondiccedilatildeo de exigecircncia de trabalho implicado na relaccedilatildeo com o corpo (F9831549831419831579831401915) ndash forccedila que mobiliza em seu caraacuteter de insistecircncia a elaboraccedilatildeo simboacute-lica da perda objetal

Em Luto e melancolia Freud (1917) descreve as caracteriacutesticas baacutesicas doprocesso de luto Ali ele considera que no luto prevalece uma inibiccedilatildeo da ativi-

6 A especificidade do ideal do eu na depressatildeo seraacute discutida no terceiro toacutepico da presenteexposiccedilatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

91Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

dade do eu e sua absorccedilatildeo uma ldquoperda [temporaacuteria] da capacidade de adotarum novo objeto de amorrdquo (ibid p 250) ldquoEacute notaacutevel que esse penoso despazerseja aceito por noacutes como algo natural Contudo o fato eacute que quando o traba-

lho do luto se conclui o ego fica outra vez livre e desinibidordquo ( ibid p 251)O enlutado se manteacutem segundo Freud temporariamente num estado de

rebaixamento libidinal e sofrimento ante a morte ou agrave perda cujos efeitos sefazem valer pela possibilidade de finitizaccedilatildeo da dor O luto eacute evocado pelo su-

jeito no sentido de fazer com que perante a perda a dor natildeo se eternize Nessesentido o luto se configura efetivamente como um trabalho psiacutequico Ratifica--se que o trabalho do luto tem a funccedilatildeo de assimilaccedilatildeo da perda e de possibili-tar que o sujeito se separe do objeto perdido e reinvista num substituto O

enlutado martiriza-se pela perda recorda-se constantemente do perdido tra-balhando no sentido mesmo de dar a isso um estatuto efetivo de perda e assi-milaccedilatildeo simboacutelica da perda relanccedilando-se ao desejo

O luto nessa apreensatildeo constitui um doloroso caminho sobre o qual ohumano percorre a fim de assimilar a perda do objeto e a proacutepria transitorie-dade Aleacutem de proporcionar tal assimilaccedilatildeo simboacutelica o enlutado se protegede seu proacuteprio desmoronamento mediante um momento passageiro de acirra-

mento da dor psiacutequica a lembranccedila do objeto perdido o pranteamento a ini-

biccedilatildeo passageira etcAssim o luto eacute dor estruturante agrave medida que move um trabalho de ligaccedilatildeo

e integraccedilatildeo daquilo que irrompe no aparelho psiacutequico e fica momentanea-mente sem metaforizaccedilatildeo Eacute mola propulsora da simbolizaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo nar-rativa da perda mediante reconstruccedilatildeo da dor psiacutequica diante da anguacutestia queirrompe no sujeito quando este se depara com a faceta inominaacutevel do objetoperdido (cf L983137983139983137983150 1962-1963) Em outras palavras o luto tem por funccedilatildeo dar

um nome ao perdido promovendo um lugar no simboacutelico para o perdido La-

can assinala que apoacutes o processo do luto se instaura uma transformaccedilatildeo no euNesse sentido apoacutes o luto o sujeito natildeo seraacute mais o mesmo de antes o queimplica um processo de transformaccedilatildeo do eu e separaccedilatildeo do objeto perdido(L983137983139983137983150 1958-1959) Eacute precisamente na travessia do luto que o sujeito retomaa via do desejo lanccedilando-se a novas formas de existir e a novos investimentos

Veremos adiante que a abordagem do luto a partir de Freud natildeo deixaespaccedilo teoacuterico para uma confluecircncia conceitual entre o luto e a depressatildeo ndash osdois conceitos natildeo se confundem natildeo obstante se relacionarem ainda que de

maneira excludente e heterogecircnea Esses conceitos seratildeo aprofundados a se-guir de forma sustentada no pensamento de Freud e de outros autores comoSerge Leclaire os quais contribuem para o avanccedilo do tema

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1021

A DOR E O EXISTIR

92

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Com Freud aleacutem de Freud luto e depressatildeo

Podemos adentrar o tema da depressatildeo e sua relaccedilatildeo com o luto medianteo estudo de alguns aspectos relativos agrave obra freudiana na depuraccedilatildeo dos pro-blemas concernentes agrave constituiccedilatildeo do sujeito

Em Bate-se numa crianccedila Freud (1919) identificou importantes elemen-tos subjacentes aos movimentos fantasmaacuteticos infantis os quais guardadassuas especificidades revelam a circunstacircncia especiacutefica de um momento sub-

jetivo extremamente relevante no percurso de vida dos sujeitosFreud discute ali algumas peculiaridades determinantes da fantasia infan-

til que podem revelar aspectos decisivos para a compreensatildeo do modo como o

sujeito responde ao impasse da onipotecircncia narciacutesica Ele aponta que a primei-ra fase da fantasia de flagelaccedilatildeo infantil corresponde a uma imagem repetitivana qual uma crianccedila eacute espancada por um adulto ndash em geral o pai A fase sub-sequente corresponde segundo ele agrave posiccedilatildeo inconsciente na qual o sujeito se

vecirc como sendo a proacutepria crianccedila espancada em que se faz verificar um retornoao masoquismo e um sentimento de culpa remetido ao desejo incestuoso Naterceira fase a fantasia se traduz por um sentido de universalizaccedilatildeo dos perso-nagens presentes natildeo havendo nela atribuiccedilotildees identificatoacuterias mas uma

abrangecircncia que natildeo especifica os atores da cenaEste resumo serve para nos referenciarmos na discussatildeo introduzida por

Freud a respeito da posiccedilatildeo do sujeito frente ao desejo dos pais que caracterizao rechaccedilo fantasmaacutetico de sua falta Esta condiccedilatildeo introduz para o sujeito umaexperiecircncia especiacutefica concernente agrave dimensatildeo da finitude e da transitorieda-de Nossa anaacutelise se ateacutem ao primeiro momento da fantasia acerca do qualFreud aponta

() muitas crianccedilas que se acreditavam seguramente entronadasna inabalaacutevel afeiccedilatildeo dos pais foram de um soacute golpe derrubadasde todos os ceacuteus da sua onipotecircncia imaginaacuteria A ideacuteia de o paibatendo nessa odiosa crianccedila eacute portanto agradaacutevel indepen-dente de ter sido realmente visto agindo assim Significa lsquoO meupai natildeo ama essa crianccedila mas apenas a mimrdquo7 (ibid p 202)

Conforme sinalizamos anteriormente a respeito do mito de onipotecircncianarciacutesica na constituiccedilatildeo existencial do sujeito salienta-se que em sua experi-ecircncia subjetiva a crianccedila eacute sumariamente destronada de seu lugar de opulecircn-

cia no discurso dos pais logo que os mesmos apresentam-se como faltosos

7 Grifo do autor

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

93Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

especialmente a matildee para quem os investimentos primaacuterios satildeo dirigidos Taldestronamento que muitas vezes toma a fantasia de flagelaccedilatildeo infantil comosaiacuteda possiacutevel ao impasse da onipotecircncia narciacutesica pode resultar natildeo menos

numa experiecircncia de luto cujo destino proporciona ao sujeito uma relaccedilatildeopositiva com a transitoriedade e o proacuteprio desejo Nesse acircmbito a anguacutestia dosujeito diante do objeto que aiacute se desnuda como perdido e natildeo nomeado moveum trabalho de luto capaz de reinstaurar a condiccedilatildeo do desejo

O trabalho do luto natildeo eacute contudo um movimento necessaacuterio de resposta agraveperda A depressatildeo aparece como uma possibilidade de resposta que difere do lutocuja incidecircncia caracteriza uma vicissitude da crenccedila narciacutesica Diferentemente deum trabalho de luto a depressatildeo aguda constitui em sua proacutepria radicalidade a

outra face de uma mesma moeda onipotecircncia narciacutesica e estase depressivaEsse sentido de onipotecircncia perseguido sintomaticamente pelo deprimido

eacute precisamente o que Serge Leclaire (1975) denomina ldquoCrianccedila Maravilhosardquo ACrianccedila Maravilhosa eacute segundo o autor o fundamento da experiecircncia ldquoprimaacute-riardquo do narcisismo ldquoeacute uma representaccedilatildeo inconsciente primordial na qual seentrelaccedilam mais densos do que em qualquer outra os anseios nostalgias e es-peranccedilas de cada umrdquo (ibid p 11) Essa figuraccedilatildeo faz toda referecircncia agrave crenccediladefinida como aquilo que promove o elo narrativo da experiecircncia de si na cons-

tituiccedilatildeo do sujeito Tal experiecircncia contorna toda uma complexidade que Le-claire situaraacute como o paradoxo da condiccedilatildeo subjetiva se por um lado estaldquomaravilha infantilrdquo faz referecircncia ao juacutebilo da centralidade narciacutesica por outrolado remete ao inescapaacutevel da morte ndash por isso o paradoxo ndash na assunccedilatildeo jubi-losa como primeira figuraccedilatildeo estaacutetica do sentimento de onipotecircncia Eacute o mitoda onipotecircncia produzindo uma fabulaccedilatildeo o absoluto impossiacutevel desfrutadopela insiacutegnia dos pais que emprestam o simboacutelico como mateacuteria-prima e o ima-ginaacuterio como efeito jubiloso da imagem perdida Nesse acircmbito nada mais pre-

ciso do que situar a dimensatildeo intriacutenseca da morte no proacuteprio nascimento dasubjetividade no existir primeiro tal como faz Leclaire Nascer (psiquicamen-te) implica em morrer e morrer implica em nascer sob o jugo de se fazer sujei-to e sustentar o movimento desejante cuja condiccedilatildeo eacute a proacutepria morte daldquoCrianccedila Maravilhosardquo Eacute o que Leclaire demonstra em sua anaacutelise do mito in-fantil aquele mesmo referido por Freud na menccedilatildeo ao ego-ideal marcado pelaalienaccedilatildeo que exige constantemente um trabalho de luto mata-se uma crianccedila8

8 Leclaire salienta em sua obra o aspecto pulsional deste processo no qual se assinala a pulsatildeode morte como condiccedilatildeo para a mobilizaccedilatildeo do proacuteprio luto O fracasso da instauraccedilatildeo desteuacuteltimo deflagra natildeo menos a reverberaccedilatildeo paradoxal da Crianccedila Maravilhosa em sua face cruele mortiacutefera tal como veremos adiante em nossa proposta sobre a depressatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1221

A DOR E O EXISTIR

94

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute notaacutevel entretanto a dificuldade que o sujeito tem muitas vezes deldquomatarrdquo sua proacutepria crianccedila interna ou seja fazer o luto da Crianccedila Maravi-lhosa Leclaire afirma que o sujeito refugia-se na Crianccedila Maravilhosa sob o

risco paradoxal de acelerar o curso inescapaacutevel de sua proacutepria morte de suafinitude objetiva O paradoxo que aqui se instala revela que para sustentar odesejo o sujeito tem de matar natildeo apenas o Outro que o inventou mas tam-beacutem a si mesmo num suiciacutedio sem morte cujo drama enuncia a trajetoacuteria daproacutepria dor narciacutesica Ou seja o sujeito nasce mergulhado numa crenccedila narciacute-

sica sob o risco perene da morte caso natildeo renuncie a esta mesma crenccedila que ofez existente Necessidade que Leclaire situa como funccedilatildeo permanente do mo-

vimento desejante

Se a perda eacute intriacutenseca agrave proacutepria experiecircncia narciacutesica circunscrevem-sea partir disso os conceitos de luto e depressatildeo como destinos heterogecircneos aoimpasse da onipotecircncia narciacutesica e da perda objetal Os contextos especiacuteficosnos quais a depressatildeo se manifesta de maneira mais violenta e criacutetica eacute a ex-pressatildeo maacutexima do paradoxo perfilado por Leclaire ndash paradoxo situado nosliames da vida e da morte (subjetivas) A depressatildeo caracteriza-se por umasaiacuteda contradesejante e natildeo eacute como pode parecer uma aderecircncia direta agrave mor-te Ela eacute diferentemente do luto a negaccedilatildeo da finitude e do desejo que situa o

paradoxo da Crianccedila Maravilhosa Tal paradoxo pode ser constatado pela ou-tra face desta moeda a depressatildeo eacute recurso do sujeito para natildeo se deparar como transitoacuterio e para tentar uma recuperaccedilatildeo do gozo atraveacutes da estagnaccedilatildeo e daprostraccedilatildeo ndash uma parada que exige do tempo aquilo que ele natildeo pode dar

Sobre esse aspecto o pensamento de Freud eacute de extrema fecundidade Emsuas perquiriccedilotildees Freud (1915) dizia que a transitoriedade natildeo reduz mas ao

contraacuterio aumenta o valor das coisas No texto que discute a respeito da tran-sitoriedade o ponto de vista de Freud situa na ponta de sua caneta aquilo que

seu interlocutor ndash o poeta Ranier Maria Rilke ndash apresenta quando se refere aotransitoacuterio O poeta afirma que se as coisas se acabam seu valor se destituinum presente absoluto triste e traacutegico Divergindo desta concepccedilatildeo Freuddenomina tal posiccedilatildeo de ldquorevolta contra o lutordquo vinculada a um dos mais pre-ponderantes anseios narciacutesicos a exigecircncia de imortalidade

() essa exigecircncia de imortalidade por ser tatildeo obviamente umproduto dos nossos desejos natildeo pode reivindicar seu direito agraverealidade o que eacute penoso pode natildeo obstante ser verdadeiro

() Natildeo deixei poreacutem de discutir o ponto de vista pessimistado poeta de que a transitoriedade do que eacute belo implica umaperda de seu valor (ibid p 317)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

95Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Contextualizando a depressatildeo nesta temaacutetica ndash a transitoriedade ndash salien-tamos que para a crenccedila narciacutesica ndash ancoragem fundamental da depressatildeo ndash afinitude eacute incompatiacutevel ao projeto de unidade e permanecircncia no discurso da

perfeiccedilatildeo na relaccedilatildeo ao Outro No caso dessa crenccedila assumir um estatuto cen-tral e hegemocircnico na vida psiacutequica do sujeito a estagnaccedilatildeo depressiva aparececomo a via pela qual diante da perda esse mesmo sujeito nega a morte daCrianccedila Maravilhosa impedindo-se agrave transformaccedilatildeo subjetiva engendradapelo luto marcando ali a natildeo sustentaccedilatildeo do desejo Trata-se de uma tentativafracassada de rechaccedilo da falta que marca o ser como incompleto ndash rechaccedilo da falta-a-ser mediante a representaccedilatildeo primaacuteria da Crianccedila Maravilhosa cujo co-rolaacuterio eacute a depressatildeo como resultado sintomaacutetico desse fracasso

Cabe frisar assim que natildeo se trata na depressatildeo de um desdobramento doafeto de tristeza dado que este como afeto conduz o sujeito ao trabalho deluto por mais intenso que possa se apresentar A depressatildeo natildeo se reduz a umafeto trata-se de uma saiacuteda defensiva que resulta em sintomas graves de estag-naccedilatildeo perda do interesse pela vida desinvestimento conflitos com a imagemde si ndash sintomas que agraves vezes culminam em atos suicidas O deprimido ancora--se no mito da onipotecircncia do eu que natildeo passando de um lampejo de perfei-ccedilatildeo que se apaga no tempo engendra uma posiccedilatildeo inversa de silenciamento

absoluto e denegaccedilatildeo radical da divisatildeo e do desejo Caracteriza-se nisso acontrapartida oposta agravequela subjacente ao desejo este uacuteltimo assumindo sus-tentaccedilatildeo mediante o luto cuja principal funccedilatildeo eacute inscrever a contingecircncia dosujeito sua temporalidade transitoriedade e mortalidade conjugando comisso a relaccedilatildeo entre a perda e o proacuteprio desejo9

Algumas notas sobre a distinccedilatildeo entre depressatildeo e melancolia

Cabe aqui realizar uma breve distinccedilatildeo imprescindiacutevel do ponto de vistateoacuterico-cliacutenico para que natildeo incorramos em equiacutevocos que muitas vezes apa-recem no campo psicanaliacutetico Na melancolia a questatildeo apresenta-se de ma-neira distinta Nela o que ocorre eacute uma retirada da libido para o eu ndash o quediante da perda caracteriza a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto (F983154983141983157983140 1917)

9 A condiccedilatildeo aqui descrita se acha na base da experiecircncia depressiva que se intensifica na con-temporaneidade e de outros sintomas que sobrepujam as manifestaccedilotildees ldquoclaacutessicasrdquo caracteriacutes-

ticas da metaacutefora sintomaacutetica histeacuterica a qual ofertava o corpo como palco de decifraccedilatildeo dodesejo inconsciente Nesse sentido o sintoma da depressatildeo apresenta especificidades outrasque merecem todo cuidado teoacuterico-cliacutenico no que tange agraves possibilidades de saiacuteda diante dacastraccedilatildeo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do eu como veremos agrave frente

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1421

A DOR E O EXISTIR

96

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Essa identificaccedilatildeo marca a impossibilidade mesma de inscriccedilatildeo da perda agravemedida que o objeto fica ldquoinstaladordquo no eu promovendo o automassacre me-lancoacutelico Esse processo eacute engendrado pelo supereu perante o eu ideal evanes-

cente caracteriacutestico da afirmaccedilatildeo freudiana de que ldquoa sombra do objeto recaiusobre o eurdquo (ibid )

Numa apreensatildeo aprofundada Lambotte (2003) situa na constituiccedilatildeo dasubjetividade melancoacutelica uma forma de identificaccedilatildeo que denomina ldquoidentifi-

caccedilatildeo ao nadardquo subjacente agrave ldquodeserccedilatildeo do Outrordquo e agrave ldquoevanescecircncia do eu-ideal rdquoSegundo esta apreensatildeo a crianccedila em sua constituiccedilatildeo subjetiva natildeo eacute fisgadacomo objeto do discurso idealizado dos pais na constituiccedilatildeo especular O olharda matildee segundo a autora atravessa o sujeito natildeo atribuindo a ele qualquer

sentido de existecircncia ou predicaccedilatildeo deflagrando para ele uma existecircncia nonada Desertado o Outro natildeo inclui o sujeito na funccedilatildeo do desejo mas num

vazio sem precedentes que instaura a Identificaccedilatildeo ao nada (ibid) O melancoacute-lico denuncia de maneira violenta e mesmo insuportaacutevel a sua proacutepria insus-tentabilidade existencial Natildeo atingido pela idealizaccedilatildeo narciacutesica que de outrasorte o colocaria numa posiccedilatildeo de centralidade (eu ideal) o eu se precipitadestituiacutedo contudo da ilusatildeo de sua proacutepria onipotecircncia Natildeo houve sequer aconstituiccedilatildeo do objeto como ldquoperdidordquo (H983137983155983155983151983157983150 2002) ndash natildeo havendo reco-

nhecimento ou registro da perda que promoveria a inscriccedilatildeo do sujeito nocampo do desejo Ali a idealizaccedilatildeo se constituiu no ponto de evanescecircncia doolhar da matildee o qual se dirige a um modelo cuja exterioridade representa umideal inacessiacutevel para o sujeito Segundo essa loacutegica o sujeito eacute lanccedilado parafora de qualquer representaccedilatildeo jubilosa caracteriacutestica da formaccedilatildeo primaacuteria dacrenccedila narciacutesica (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Sem chances de alcance o ideal se tornaa proacutepria raiz do aviltamento superegoico Nesse sentido Lambotte fala numaldquoruptura do transitivismo especular que chega ao isolamento e ao reforccedilo do

ideal do eu agraves expensas de um eu-ideal que natildeo pocircde elaborar-se na origemrdquo(L983137983149983138983151983156983156983141 op cit p 224)

Sendo assim o que vai se assinalar na melancolia eacute um ideal do eu riacutegidoateacute as uacuteltimas consequecircncias fortalecido por um supereu capaz de estraccedilalharo eu melancoacutelico A evanescecircncia do eu ideal na melancolia se encontra na basedo massacre superegoacuteico cujo teor discursivo aponta para ldquoeu natildeo valho nadardquoldquoeu natildeo sou nadardquo (L983137983149983138983151983156983156983141 op cit )

Na depressatildeo diferentemente o sujeito reconhece a perda do objeto con-

tudo refugia-se na crenccedila narciacutesica num recuo defensivo que nega qualquerpossibilidade de transformaccedilatildeo ou de se lanccedilar ao ideal do eu Sobre isso cabelembrar que a depressatildeo manifesta uma forma de idealizaccedilatildeo cujo registro

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

97Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

acha-se fixado ao eu ideal da Crianccedila Maravilhosa O que vai distinguir essasformas de sofrimento eacute que a evanescecircncia na subjetivaccedilatildeo dos pacientes depri-

midos natildeo eacute do eu ideal mas do ideal do eu10

Podemos assinalar nesse diferencial o cerne da idealizaccedilatildeo que marca es-sas duas manifestaccedilotildees cliacutenicas na melancolia constata-se a evanescecircncia doeu ideal que abre caminho para a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto na depres-satildeo a evanescecircncia do ideal do eu assinalando-se o recuo para a crenccedila narciacute-sica que passaraacute a funcionar como um sintoma

Como ldquoevanescecircncia do ideal do eurdquo define-se aqui uma fugacidade noancoramento identificatoacuterio edipiano cuja funccedilatildeo seria de permitir ao sujeitoafastar-se da crenccedila narciacutesica e reaparecer transformado apoacutes o processo de

luto sustentando o desejo e lanccedilando-se ao futuro Nesses termos natildeo eacute a fi-gura do Pai o que entra no lugar do ideal do eu ancorado numa imago assimeacute-trica que pudesse engendrar uma saiacuteda identificatoacuteria ndash tal como Freud(1923a) constatava na cliacutenica de sua eacutepoca O que entra no lugar do ideal do eueacute a proacutepria crenccedila narciacutesica funcionando ali como sintoma O deprimido en-contra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num processo psiacutequicode integraccedilatildeo que o filiaria no caso do luto a uma accedilatildeo descolada da idealiza-ccedilatildeo narciacutesica O que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos eacute a pro-

jeccedilatildeo no futuro de um eu ideal impossiacutevel de se realizar ndash e isso quando haacuteuma projeccedilatildeo no futuro Sem estabelecimento de qualquer construccedilatildeo narrati-

va a partir da qual o sujeito dispor-se-ia a agir a idealizaccedilatildeo de si mesmo nofuturo eacute similar agrave proacutepria idealizaccedilatildeo de lsquoSua Majestade o Bebecircrsquo (P9831459831509831449831419831459831549831512005) Ela eacute de tal ordem que o sujeito deprime como expressatildeo de seu proacutepriofracasso narciacutesico A imagem de si no presente eacute sempre insuficiente perante aexigecircncia do eu-ideal ldquoabsolutordquo e ldquoperdidordquo Tal insuficiecircncia beira numa si-milaridade inversa o mesmo absoluto irredutiacutevel da Crianccedila Maravilhosa

(Q983157983145983150983156983141983148983148983137 op cit ) Nesse niacutevel a natildeo instauraccedilatildeo do luto eacute situada no mes-mo ponto de evanescecircncia do ideal do eu que impede ao sujeito o afastamentoda crenccedila narciacutesica e a proacutepria ldquomorterdquo da Crianccedila Maravilhosa

10 O ideal do eu eacute o ponto de ancoragem identificatoacuteria que afasta a crianccedila do narcisismo

primaacuterio (F983154983141983157983140 1914) e consequentemente da crenccedila narciacutesica Eacute a partir da identificaccedilatildeoao ideal do eu que o sujeito internaliza os traccedilos do pai na dialeacutetica do desejo frente agrave condiccedilatildeoda falta no Outro O ideal do eu aparece como uma saiacuteda identificatoacuteria proporcionando amobilizaccedilatildeo do luto e o afastamento da fantasia primaacuteria da onipotecircncia narciacutesica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 4: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 421

A DOR E O EXISTIR

86

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

desenvolver conceitos que natildeo se pautam em uma base fenomecircnica trata natildeoapenas daquilo que ldquoexisterdquo como dado fenomecircnico da experiecircncia subjetivamas tambeacutem e especialmente daquilo que escapa agraves possibilidades de apreen-

satildeo fenomecircnica e mesmo de articulaccedilatildeo simboacutelica tal qual se observa com osconceitos de sujeito objeto e real

A constituiccedilatildeo do sujeito implica um mergulho no universo da fala cujosefeitos se inscrevem na erogeneidade do corpo concebido como corpo pulsionalou eroacutegeno (cf E9831489831459831371995) Esta condiccedilatildeo conjuga os trecircs registros abordadospor Lacan ao longo de sua obra (imaginaacuterio simboacutelico real) numa dimensatildeointriacutenseca natildeo apenas agrave existecircncia mas tambeacutem agrave ex-sistecircncia e agrave insistecircncia (ibid ) Com Lacan pode-se asseverar que do ponto de vista do registro imagi-

naacuterio o sujeito existe como dado fenomecircnico agrave medida que a constituiccedilatildeo do eueacute efeito da captaccedilatildeo da imagem de si no espelho fundada a partir de um outrosemelhante agrave crianccedila que vem a dar suporte agrave constituiccedilatildeo dessa imagem aoniacutevel da idealizaccedilatildeo (L983137983139983137983150 1936) Do ponto de vista do simboacutelico o sujeitoex-siste ao deslizamento da cadeia significante agrave medida que esta produz suadivisatildeo tornando-o extriacutenseco ao simboacutelico e impossibilitando-o de ser captadoou representado plenamente no campo da fala (L983137983139983137983150 1958) O efeito das ope-raccedilotildees simboacutelicas no Real eacute um resto natildeo simbolizaacutevel que insiste como objeto

perdido inapreensiacutevel ao niacutevel da cadeia significante ndash objeto situado comoldquocausa do desejordquo (L983137983139983137983150 1964) Veremos como essas dimensotildees que natildeo po-dem ser abordadas de maneira isolada se assinalam do ponto de vista da cons-tituiccedilatildeo subjetiva bem como das respostas sintomaacuteticas ao mal-estar que seratildeoaqui trabalhadas Buscaremos agrave frente abordar essas dimensotildees uma a umatomando o narcisismo como ferramenta teoacuterica central com objetivo de aden-trar a abordagem sobre a depressatildeo e o luto no mal-estar contemporacircneo

E xistecircncia ex-sistecircncia insistecircncia

O estatuto de existecircncia eacute dado na experiecircncia narciacutesica que funda noimaginaacuterio o eu como instacircncia primaacuteria ancorada na fantasia da onipotecircnciainfantil Essa fantasia se acha subjugada agrave idealizaccedilatildeo dos pais agrave medida que osmesmos elevam a crianccedila agrave majestade de uma posiccedilatildeo impossiacutevel de ser sus-tentada na cultura Em sua anaacutelise do narcisismo Freud (1914) considera queo amor dos pais investido sobre o infante se acha condicionado ao proacuteprio

narcisismo perdido dos pais A expressatildeo ldquoSua majestade o Bebecircrdquo caracteriza ahiperidealizaccedilatildeo parental sobre a crianccedila fundando ali mesmo um discursoque produziraacute efeitos perenes na subjetividade do infante

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

87Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Pinheiro (2002) assinala que a idealizaccedilatildeo parental eacute o ponto de partidado juacutebilo narciacutesico cuja experiecircncia fundamenta o sentimento de existecircncia dacrianccedila Existir eacute efeito antes de tudo da introjeccedilatildeo de uma rede de sentidos

plurais captados do discurso idealizado dos pais Nesse acircmbito existir implicaem princiacutepio responder ao investimento parental com a fantasia da onipotecircn-cia Esta fantasia tem como objetivo rechaccedilar a impermanecircncia a falta e a fini-tude na relaccedilatildeo com os pais na busca da estase sustentada por um tipoparticular de idealizaccedilatildeo que diz respeito ao investimento amoroso dos pais Oinvestimento parental no narcisismo do infante deflagra ali um mundo de ma-ravilhas sob o qual este mesmo infante sustentaraacute seu proacuteprio ideal narciacutesicoAmar-se a si proacuteprio significa render-se ao discurso embalsamador da matildee

que empresta a silhueta necessaacuteria para o advento de uma imagem de si supos-tamente ldquoplenardquo de investimento amoroso A crenccedila narciacutesica referencia para osujeito o germe da formaccedilatildeo dos ideais mediante a apropriaccedilatildeo imaginaacuteria dodiscurso parental hiperidealizado3 Ela eacute a miragem do juacutebilo perdido tomadocomo fonte especular da constituiccedilatildeo narciacutesica Redunda no mito da onipotecircn-

cia narciacutesica fundado na ideacuteia de imortalidade e sobrepujanccedila do eu caracteriacutes-tica da megalomania infantil bem como da busca por satisfaccedilatildeo imediata das

moccedilotildees pulsionais

O estatuto de existecircncia se funda assim na relaccedilatildeo com os pais em posi-ccedilatildeo de grande Outro este uacuteltimo definido como ldquolugar da palavra faladardquo quesustenta o sistema significante e engendra a constituiccedilatildeo do sujeito como efeitoda linguagem e da cultura (L983137983139983137983150 1958-1959) O discurso parental assume afunccedilatildeo simboacutelica da determinaccedilatildeo do sujeito produzindo ao mesmo tempono imaginaacuterio efeitos de organizaccedilatildeo especular e invenccedilatildeo narciacutesica Cabe as-sinalar nesse sentido que o fracasso da fantasia de onipotecircncia se acha subju-gado ao caraacuteter intriacutenseco da falta agrave medida que o sujeito depende do Outro

para existir e vai encontrar nele mesmo a constituiccedilatildeo da proacutepria falta (ibid )Nesse acircmbito o existir na sua plenitude eacute fadado ao fracasso agrave medida que nosimboacutelico o Outro devolve a impossibilidade de plenitude no mundo da fala eda linguagem e no real a fantasia de onipotecircncia eacute insustentaacutevel O enoda-

3 Entende-se como crenccedila o elo narrativo da experiecircncia subjetiva sustentado pelo discursoe pela imagem tomados de empreacutestimo do outro Trata-se do creacutedito depositado no tecidodiscursivo que tem como contrapartida os efeitos subjetivos na constituiccedilatildeo do sujeito

(M983137983156983156983151983155 2007) A crenccedila narciacutesica eacute um tipo de crenccedila que funda a relaccedilatildeo do sujeito comsua proacutepria imagem ideal caracteriacutestica do mito de onipotecircncia infantil (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Anoccedilatildeo de crenccedila narciacutesica seraacute amplamente utilizada como operador teoacuterico para a abordagemaqui visada a respeito da depressatildeo e do existir no mal-estar contemporacircneo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 621

A DOR E O EXISTIR

88

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

mento entre imaginaacuterio simboacutelico e real assinala assim que o tema da existecircn-cia natildeo pode ser abordado de maneira desgarrada dos fatores intriacutensecos agraveproacutepria condiccedilatildeo da falta no campo do sujeito situando a ex-sistecircncia e a insis-

tecircncia como dimensotildees intriacutensecas agrave constituiccedilatildeo subjetiva as quais devem serconsideradas na sua maior relevacircncia

Lacan frisa sobre a relaccedilatildeo ao Outro o caraacuteter falho da estrutura simboacutelicacujo efeito eacute a instauraccedilatildeo mesma do desejo e da divisatildeo do sujeito (L9831379831399831379831501958-1959) mantendo um rasgo na imagem narciacutesica suportada inicialmentepela idealizaccedilatildeo parental Lacan assinala a impossibilidade de completude in-triacutenseca agrave proacutepria constituiccedilatildeo do sujeito no campo do significante agrave medidaque este uacuteltimo natildeo eacute capaz de representaacute-lo plenamente lanccedilando-o a uma

cadeia significante inconsciente e abrindo caminho para a falta o desejo e ogozo Ou seja natildeo haacute em um significante o dizer uacuteltimo que defina o sujeito ouo represente plenamente produzindo o remetimento a outros significantes nacadeia4 Em sua anaacutelise Lacan sublinha a inexistecircncia de uma garantia no Ou-tro a respeito de uma fianccedila sobre o ser do sujeito O autor afirma

S(A) quer dizer isto ndash que em A que natildeo eacute um ser mas o lugarda palavra falada onde descansa o conjunto do sistema signifi-cante quer dizer de uma linguagem aiacute falta alguma coisa algu-

ma coisa que soacute pode ser um significante Um significante faltaao niacutevel do Outro Este eacute se posso dizer o grande segredo dapsicanaacutelise ndash natildeo haacute Outro do Outro () Natildeo haacute no Outro ne-nhum significante que possa no caso responder pelo que sou(L983137983139983137983150 1958-1959 p 46-47)

Sendo assim tributaacuterio de um discurso pinccedilado do Outro que imprimesobre o sujeito o ideal da opulecircncia narciacutesica na relaccedilatildeo amorosa primaacuteria onarcisismo eacute tentativa de rechaccedilar a falta desde jaacute presente na relaccedilatildeo ao Outro

Por um lado resta agrave crianccedila a inscriccedilatildeo de sua condiccedilatildeo sexuada transitoacuteria emortal na superaccedilatildeo do narcisismo primaacuterio sustentando-se como sujeito de-sejante ao preccedilo de uma perda Por outro lado os pais apesar de fiadores daidealizaccedilatildeo narciacutesica deixam para o infante um deacutebito impossiacutevel de ser quita-do sob o jugo da proacutepria alienaccedilatildeo dos pais em seu narcisismo perdido ndash fian-ccedila apoiada naquilo que o Outro natildeo tem natildeo devolvendo este Outro por issomesmo qualquer tipo de garantia para o sujeito

Eacute nessa loacutegica que Lacan implica o sujeito no estatuto de ex-sistecircncia no

4 Eacute nesse sentido que Lacan (1964) aborda o significante como ldquoaquilo que representa o sujeitopara outro significanterdquo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

89Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

que o simboacutelico instaura a falta-a-ser intriacutenseca ao mundo do desejo e do gozoA ex-sistecircncia eacute esse ponto real do sujeito que implica um buraco no simboacutelicoagrave medida que o proacuteprio sujeito natildeo eacute um significante na cadeia ex-siste agrave ca-

deia significante e eacute determinado por esta de maneira sempre incompletaFalta-a-ser eacute assim condiccedilatildeo do ser falante agrave medida que o simboacutelico natildeopode representar plenamente o ser restando algo de irrepresentaacutevel na relaccedilatildeoentre sujeito e objeto de satisfaccedilatildeo implicada no gozo5

Do ponto de vista do real o objeto como objeto perdido na relaccedilatildeo dosujeito ao significante insiste como forccedila que resta da operaccedilatildeo de simboliza-ccedilatildeo em funccedilatildeo de sua ligaccedilatildeo com o corpo Eacute o caraacuteter insistente da pulsatildeo queimplica o real como impossiacutevel naquilo que causa o desejo ndash objeto a ndash e ao

mesmo tempo retorna sempre ao mesmo lugar como repeticcedilatildeo aleacutem do prin-ciacutepio do prazer (L983137983139983137983150 1968) Essa insistecircncia do real se caracteriza como oque insiste como resto natildeo simboacutelizaacutevel denominado por Lacan (1968) comomais-de-gozo Isso implica por um lado a renuacutencia primeira numa dimensatildeoem que a perda faz aparecer o objeto a como causa de desejo implica por outrolado uma dimensatildeo em que a proacutepria renuacutencia reforccedila e fortalece a exigecircnciasuperegoica (F983154983141983157983140 1930) Essa forma de gozo que implica a renuacutencia e aperda como marcas constitutivas do sujeito aparece na dimensatildeo de um resto

suplementar a ser recuperado ndash resto que excede ao niacutevel do imperativo supe-regoico (L983137983139983137983150 1968)

A tentativa narciacutesica de rechaccedilar a falta eacute portanto intriacutenseca agrave experiecircnciaprimaacuteria do sujeito Nesse sentido a plenitude que o discurso do Outro ldquoinven-tourdquo (Sua Majestade o Bebecirc) e ao mesmo tempo assinalou como impossibilida-de intriacutenseca agrave estrutura do simboacutelico subjuga um traccedilado paradoxal expressopelo proacuteprio mito de Narciso Entre o amor e a morte o enamoramento absolu-to de Narciso pela imagem ideal de si mesmo eacute o que o leva agrave sua proacutepria ruiacutena

A paralisaccedilatildeo eacute de tal ordem que qualquer movimento no sentido da mudanccedilatorna-se impossiacutevel o que o faz sucumbir agrave prisatildeo de seu amor miacutetico Narcisoeacute a proacutepria expressatildeo do mito e sua paralisaccedilatildeo na imagem eacute a proacutepria insiacutegniada paralisaccedilatildeo no tempo ndash condiccedilatildeo que como veremos eacute a marca da depressatildeo no circuito do desejo Nesse traccedilado eacute a denegaccedilatildeo do desejo o algoz imediatoe paradoxal da proacutepria destruiccedilatildeo de Narciso bem como a mira mortiacutefera dogozo para a qual a busca da experiecircncia do absoluto empurra

5 Com essa apreensatildeo Lacan busca a fundamentaccedilatildeo do sujeito a partir da noccedilatildeo de ex-sistecircnciaagrave medida que o sujeito eacute suposto na teoria do inconsciente natildeo eacute apreensiacutevel enquantocategoria existencial fenomecircnica mas ex-siste como elemento extriacutenseco agrave cadeia significante(L983137983139983137983150 1975)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 821

A DOR E O EXISTIR

90

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute sob essa rubrica impossiacutevel da experiecircncia narciacutesica caracteriacutestica datragicidade paradoxal que conjuga onipotecircncia e morte que a nosso ver otema do existir deve ser pensado do ponto de vista da psicanaacutelise Sendo assim

tratar o existir na cliacutenica psicanaliacutetica implica especialmente o impossiacutevel na-quilo que escapa ao fenomenicamente dado atingindo sua condiccedilatildeo de ldquomaisaleacutemrdquo caracteriacutestico da ex-sistecircncia e da insistecircncia No contexto dessas consi-deraccedilotildees pretendemos abordar o tema da depressatildeo como uma forma contem-poracircnea de enfrentamento do mal-estar implicada na condiccedilatildeo natildeo apenasexistencial do sujeito mas tambeacutem faltosa e pulsional

Essa apreensatildeo eacute imprescindiacutevel para pensarmos as formas de gozo na cliacute-nica contemporacircnea A depressatildeo ndash marca do gozo na contemporaneidade ndash

prepondera com caracteriacutesticas especiacuteficas de um modo atual de sofrimentoque natildeo representando uma entidade diagnoacutestica do ponto de vista da psica-naacutelise e inscrita no campo da neurose deve ser concebida como uma organi-zaccedilatildeo sintomaacutetica Ela aparece como resultado de uma tentativa de suturaccedilatildeoda falta como insistecircncia de um gozo que excede ao niacutevel da cadeia significan-te agrave medida que visa rechaccedilar o desejo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do

eu6 Com efeito ela natildeo se confunde com a melancolia sequer com o lutoVeremos adiante como isso se assinala conforme o exposto a seguir

III Seguindo com Freud o luto e a depressatildeo como destinospossiacuteveis agrave dor da perda

O luto como dor estruturante

A mobilizaccedilatildeo do luto face agrave perda do objeto implica forccedilas psiacutequicas quetecircm como funccedilatildeo dar um destino especiacutefico agrave relaccedilatildeo do sujeito com a falta no

Outro de modo que este mesmo sujeito sustente sua proacutepria condiccedilatildeo dese- jante Esta apreensatildeo aparece na teoria psicanaliacutetica desde o momento em queFreud situa o luto como um trabalho O luto engendra a proacutepria pulsatildeo na suacondiccedilatildeo de exigecircncia de trabalho implicado na relaccedilatildeo com o corpo (F9831549831419831579831401915) ndash forccedila que mobiliza em seu caraacuteter de insistecircncia a elaboraccedilatildeo simboacute-lica da perda objetal

Em Luto e melancolia Freud (1917) descreve as caracteriacutesticas baacutesicas doprocesso de luto Ali ele considera que no luto prevalece uma inibiccedilatildeo da ativi-

6 A especificidade do ideal do eu na depressatildeo seraacute discutida no terceiro toacutepico da presenteexposiccedilatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

91Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

dade do eu e sua absorccedilatildeo uma ldquoperda [temporaacuteria] da capacidade de adotarum novo objeto de amorrdquo (ibid p 250) ldquoEacute notaacutevel que esse penoso despazerseja aceito por noacutes como algo natural Contudo o fato eacute que quando o traba-

lho do luto se conclui o ego fica outra vez livre e desinibidordquo ( ibid p 251)O enlutado se manteacutem segundo Freud temporariamente num estado de

rebaixamento libidinal e sofrimento ante a morte ou agrave perda cujos efeitos sefazem valer pela possibilidade de finitizaccedilatildeo da dor O luto eacute evocado pelo su-

jeito no sentido de fazer com que perante a perda a dor natildeo se eternize Nessesentido o luto se configura efetivamente como um trabalho psiacutequico Ratifica--se que o trabalho do luto tem a funccedilatildeo de assimilaccedilatildeo da perda e de possibili-tar que o sujeito se separe do objeto perdido e reinvista num substituto O

enlutado martiriza-se pela perda recorda-se constantemente do perdido tra-balhando no sentido mesmo de dar a isso um estatuto efetivo de perda e assi-milaccedilatildeo simboacutelica da perda relanccedilando-se ao desejo

O luto nessa apreensatildeo constitui um doloroso caminho sobre o qual ohumano percorre a fim de assimilar a perda do objeto e a proacutepria transitorie-dade Aleacutem de proporcionar tal assimilaccedilatildeo simboacutelica o enlutado se protegede seu proacuteprio desmoronamento mediante um momento passageiro de acirra-

mento da dor psiacutequica a lembranccedila do objeto perdido o pranteamento a ini-

biccedilatildeo passageira etcAssim o luto eacute dor estruturante agrave medida que move um trabalho de ligaccedilatildeo

e integraccedilatildeo daquilo que irrompe no aparelho psiacutequico e fica momentanea-mente sem metaforizaccedilatildeo Eacute mola propulsora da simbolizaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo nar-rativa da perda mediante reconstruccedilatildeo da dor psiacutequica diante da anguacutestia queirrompe no sujeito quando este se depara com a faceta inominaacutevel do objetoperdido (cf L983137983139983137983150 1962-1963) Em outras palavras o luto tem por funccedilatildeo dar

um nome ao perdido promovendo um lugar no simboacutelico para o perdido La-

can assinala que apoacutes o processo do luto se instaura uma transformaccedilatildeo no euNesse sentido apoacutes o luto o sujeito natildeo seraacute mais o mesmo de antes o queimplica um processo de transformaccedilatildeo do eu e separaccedilatildeo do objeto perdido(L983137983139983137983150 1958-1959) Eacute precisamente na travessia do luto que o sujeito retomaa via do desejo lanccedilando-se a novas formas de existir e a novos investimentos

Veremos adiante que a abordagem do luto a partir de Freud natildeo deixaespaccedilo teoacuterico para uma confluecircncia conceitual entre o luto e a depressatildeo ndash osdois conceitos natildeo se confundem natildeo obstante se relacionarem ainda que de

maneira excludente e heterogecircnea Esses conceitos seratildeo aprofundados a se-guir de forma sustentada no pensamento de Freud e de outros autores comoSerge Leclaire os quais contribuem para o avanccedilo do tema

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1021

A DOR E O EXISTIR

92

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Com Freud aleacutem de Freud luto e depressatildeo

Podemos adentrar o tema da depressatildeo e sua relaccedilatildeo com o luto medianteo estudo de alguns aspectos relativos agrave obra freudiana na depuraccedilatildeo dos pro-blemas concernentes agrave constituiccedilatildeo do sujeito

Em Bate-se numa crianccedila Freud (1919) identificou importantes elemen-tos subjacentes aos movimentos fantasmaacuteticos infantis os quais guardadassuas especificidades revelam a circunstacircncia especiacutefica de um momento sub-

jetivo extremamente relevante no percurso de vida dos sujeitosFreud discute ali algumas peculiaridades determinantes da fantasia infan-

til que podem revelar aspectos decisivos para a compreensatildeo do modo como o

sujeito responde ao impasse da onipotecircncia narciacutesica Ele aponta que a primei-ra fase da fantasia de flagelaccedilatildeo infantil corresponde a uma imagem repetitivana qual uma crianccedila eacute espancada por um adulto ndash em geral o pai A fase sub-sequente corresponde segundo ele agrave posiccedilatildeo inconsciente na qual o sujeito se

vecirc como sendo a proacutepria crianccedila espancada em que se faz verificar um retornoao masoquismo e um sentimento de culpa remetido ao desejo incestuoso Naterceira fase a fantasia se traduz por um sentido de universalizaccedilatildeo dos perso-nagens presentes natildeo havendo nela atribuiccedilotildees identificatoacuterias mas uma

abrangecircncia que natildeo especifica os atores da cenaEste resumo serve para nos referenciarmos na discussatildeo introduzida por

Freud a respeito da posiccedilatildeo do sujeito frente ao desejo dos pais que caracterizao rechaccedilo fantasmaacutetico de sua falta Esta condiccedilatildeo introduz para o sujeito umaexperiecircncia especiacutefica concernente agrave dimensatildeo da finitude e da transitorieda-de Nossa anaacutelise se ateacutem ao primeiro momento da fantasia acerca do qualFreud aponta

() muitas crianccedilas que se acreditavam seguramente entronadasna inabalaacutevel afeiccedilatildeo dos pais foram de um soacute golpe derrubadasde todos os ceacuteus da sua onipotecircncia imaginaacuteria A ideacuteia de o paibatendo nessa odiosa crianccedila eacute portanto agradaacutevel indepen-dente de ter sido realmente visto agindo assim Significa lsquoO meupai natildeo ama essa crianccedila mas apenas a mimrdquo7 (ibid p 202)

Conforme sinalizamos anteriormente a respeito do mito de onipotecircncianarciacutesica na constituiccedilatildeo existencial do sujeito salienta-se que em sua experi-ecircncia subjetiva a crianccedila eacute sumariamente destronada de seu lugar de opulecircn-

cia no discurso dos pais logo que os mesmos apresentam-se como faltosos

7 Grifo do autor

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

93Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

especialmente a matildee para quem os investimentos primaacuterios satildeo dirigidos Taldestronamento que muitas vezes toma a fantasia de flagelaccedilatildeo infantil comosaiacuteda possiacutevel ao impasse da onipotecircncia narciacutesica pode resultar natildeo menos

numa experiecircncia de luto cujo destino proporciona ao sujeito uma relaccedilatildeopositiva com a transitoriedade e o proacuteprio desejo Nesse acircmbito a anguacutestia dosujeito diante do objeto que aiacute se desnuda como perdido e natildeo nomeado moveum trabalho de luto capaz de reinstaurar a condiccedilatildeo do desejo

O trabalho do luto natildeo eacute contudo um movimento necessaacuterio de resposta agraveperda A depressatildeo aparece como uma possibilidade de resposta que difere do lutocuja incidecircncia caracteriza uma vicissitude da crenccedila narciacutesica Diferentemente deum trabalho de luto a depressatildeo aguda constitui em sua proacutepria radicalidade a

outra face de uma mesma moeda onipotecircncia narciacutesica e estase depressivaEsse sentido de onipotecircncia perseguido sintomaticamente pelo deprimido

eacute precisamente o que Serge Leclaire (1975) denomina ldquoCrianccedila Maravilhosardquo ACrianccedila Maravilhosa eacute segundo o autor o fundamento da experiecircncia ldquoprimaacute-riardquo do narcisismo ldquoeacute uma representaccedilatildeo inconsciente primordial na qual seentrelaccedilam mais densos do que em qualquer outra os anseios nostalgias e es-peranccedilas de cada umrdquo (ibid p 11) Essa figuraccedilatildeo faz toda referecircncia agrave crenccediladefinida como aquilo que promove o elo narrativo da experiecircncia de si na cons-

tituiccedilatildeo do sujeito Tal experiecircncia contorna toda uma complexidade que Le-claire situaraacute como o paradoxo da condiccedilatildeo subjetiva se por um lado estaldquomaravilha infantilrdquo faz referecircncia ao juacutebilo da centralidade narciacutesica por outrolado remete ao inescapaacutevel da morte ndash por isso o paradoxo ndash na assunccedilatildeo jubi-losa como primeira figuraccedilatildeo estaacutetica do sentimento de onipotecircncia Eacute o mitoda onipotecircncia produzindo uma fabulaccedilatildeo o absoluto impossiacutevel desfrutadopela insiacutegnia dos pais que emprestam o simboacutelico como mateacuteria-prima e o ima-ginaacuterio como efeito jubiloso da imagem perdida Nesse acircmbito nada mais pre-

ciso do que situar a dimensatildeo intriacutenseca da morte no proacuteprio nascimento dasubjetividade no existir primeiro tal como faz Leclaire Nascer (psiquicamen-te) implica em morrer e morrer implica em nascer sob o jugo de se fazer sujei-to e sustentar o movimento desejante cuja condiccedilatildeo eacute a proacutepria morte daldquoCrianccedila Maravilhosardquo Eacute o que Leclaire demonstra em sua anaacutelise do mito in-fantil aquele mesmo referido por Freud na menccedilatildeo ao ego-ideal marcado pelaalienaccedilatildeo que exige constantemente um trabalho de luto mata-se uma crianccedila8

8 Leclaire salienta em sua obra o aspecto pulsional deste processo no qual se assinala a pulsatildeode morte como condiccedilatildeo para a mobilizaccedilatildeo do proacuteprio luto O fracasso da instauraccedilatildeo desteuacuteltimo deflagra natildeo menos a reverberaccedilatildeo paradoxal da Crianccedila Maravilhosa em sua face cruele mortiacutefera tal como veremos adiante em nossa proposta sobre a depressatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1221

A DOR E O EXISTIR

94

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute notaacutevel entretanto a dificuldade que o sujeito tem muitas vezes deldquomatarrdquo sua proacutepria crianccedila interna ou seja fazer o luto da Crianccedila Maravi-lhosa Leclaire afirma que o sujeito refugia-se na Crianccedila Maravilhosa sob o

risco paradoxal de acelerar o curso inescapaacutevel de sua proacutepria morte de suafinitude objetiva O paradoxo que aqui se instala revela que para sustentar odesejo o sujeito tem de matar natildeo apenas o Outro que o inventou mas tam-beacutem a si mesmo num suiciacutedio sem morte cujo drama enuncia a trajetoacuteria daproacutepria dor narciacutesica Ou seja o sujeito nasce mergulhado numa crenccedila narciacute-

sica sob o risco perene da morte caso natildeo renuncie a esta mesma crenccedila que ofez existente Necessidade que Leclaire situa como funccedilatildeo permanente do mo-

vimento desejante

Se a perda eacute intriacutenseca agrave proacutepria experiecircncia narciacutesica circunscrevem-sea partir disso os conceitos de luto e depressatildeo como destinos heterogecircneos aoimpasse da onipotecircncia narciacutesica e da perda objetal Os contextos especiacuteficosnos quais a depressatildeo se manifesta de maneira mais violenta e criacutetica eacute a ex-pressatildeo maacutexima do paradoxo perfilado por Leclaire ndash paradoxo situado nosliames da vida e da morte (subjetivas) A depressatildeo caracteriza-se por umasaiacuteda contradesejante e natildeo eacute como pode parecer uma aderecircncia direta agrave mor-te Ela eacute diferentemente do luto a negaccedilatildeo da finitude e do desejo que situa o

paradoxo da Crianccedila Maravilhosa Tal paradoxo pode ser constatado pela ou-tra face desta moeda a depressatildeo eacute recurso do sujeito para natildeo se deparar como transitoacuterio e para tentar uma recuperaccedilatildeo do gozo atraveacutes da estagnaccedilatildeo e daprostraccedilatildeo ndash uma parada que exige do tempo aquilo que ele natildeo pode dar

Sobre esse aspecto o pensamento de Freud eacute de extrema fecundidade Emsuas perquiriccedilotildees Freud (1915) dizia que a transitoriedade natildeo reduz mas ao

contraacuterio aumenta o valor das coisas No texto que discute a respeito da tran-sitoriedade o ponto de vista de Freud situa na ponta de sua caneta aquilo que

seu interlocutor ndash o poeta Ranier Maria Rilke ndash apresenta quando se refere aotransitoacuterio O poeta afirma que se as coisas se acabam seu valor se destituinum presente absoluto triste e traacutegico Divergindo desta concepccedilatildeo Freuddenomina tal posiccedilatildeo de ldquorevolta contra o lutordquo vinculada a um dos mais pre-ponderantes anseios narciacutesicos a exigecircncia de imortalidade

() essa exigecircncia de imortalidade por ser tatildeo obviamente umproduto dos nossos desejos natildeo pode reivindicar seu direito agraverealidade o que eacute penoso pode natildeo obstante ser verdadeiro

() Natildeo deixei poreacutem de discutir o ponto de vista pessimistado poeta de que a transitoriedade do que eacute belo implica umaperda de seu valor (ibid p 317)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

95Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Contextualizando a depressatildeo nesta temaacutetica ndash a transitoriedade ndash salien-tamos que para a crenccedila narciacutesica ndash ancoragem fundamental da depressatildeo ndash afinitude eacute incompatiacutevel ao projeto de unidade e permanecircncia no discurso da

perfeiccedilatildeo na relaccedilatildeo ao Outro No caso dessa crenccedila assumir um estatuto cen-tral e hegemocircnico na vida psiacutequica do sujeito a estagnaccedilatildeo depressiva aparececomo a via pela qual diante da perda esse mesmo sujeito nega a morte daCrianccedila Maravilhosa impedindo-se agrave transformaccedilatildeo subjetiva engendradapelo luto marcando ali a natildeo sustentaccedilatildeo do desejo Trata-se de uma tentativafracassada de rechaccedilo da falta que marca o ser como incompleto ndash rechaccedilo da falta-a-ser mediante a representaccedilatildeo primaacuteria da Crianccedila Maravilhosa cujo co-rolaacuterio eacute a depressatildeo como resultado sintomaacutetico desse fracasso

Cabe frisar assim que natildeo se trata na depressatildeo de um desdobramento doafeto de tristeza dado que este como afeto conduz o sujeito ao trabalho deluto por mais intenso que possa se apresentar A depressatildeo natildeo se reduz a umafeto trata-se de uma saiacuteda defensiva que resulta em sintomas graves de estag-naccedilatildeo perda do interesse pela vida desinvestimento conflitos com a imagemde si ndash sintomas que agraves vezes culminam em atos suicidas O deprimido ancora--se no mito da onipotecircncia do eu que natildeo passando de um lampejo de perfei-ccedilatildeo que se apaga no tempo engendra uma posiccedilatildeo inversa de silenciamento

absoluto e denegaccedilatildeo radical da divisatildeo e do desejo Caracteriza-se nisso acontrapartida oposta agravequela subjacente ao desejo este uacuteltimo assumindo sus-tentaccedilatildeo mediante o luto cuja principal funccedilatildeo eacute inscrever a contingecircncia dosujeito sua temporalidade transitoriedade e mortalidade conjugando comisso a relaccedilatildeo entre a perda e o proacuteprio desejo9

Algumas notas sobre a distinccedilatildeo entre depressatildeo e melancolia

Cabe aqui realizar uma breve distinccedilatildeo imprescindiacutevel do ponto de vistateoacuterico-cliacutenico para que natildeo incorramos em equiacutevocos que muitas vezes apa-recem no campo psicanaliacutetico Na melancolia a questatildeo apresenta-se de ma-neira distinta Nela o que ocorre eacute uma retirada da libido para o eu ndash o quediante da perda caracteriza a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto (F983154983141983157983140 1917)

9 A condiccedilatildeo aqui descrita se acha na base da experiecircncia depressiva que se intensifica na con-temporaneidade e de outros sintomas que sobrepujam as manifestaccedilotildees ldquoclaacutessicasrdquo caracteriacutes-

ticas da metaacutefora sintomaacutetica histeacuterica a qual ofertava o corpo como palco de decifraccedilatildeo dodesejo inconsciente Nesse sentido o sintoma da depressatildeo apresenta especificidades outrasque merecem todo cuidado teoacuterico-cliacutenico no que tange agraves possibilidades de saiacuteda diante dacastraccedilatildeo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do eu como veremos agrave frente

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1421

A DOR E O EXISTIR

96

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Essa identificaccedilatildeo marca a impossibilidade mesma de inscriccedilatildeo da perda agravemedida que o objeto fica ldquoinstaladordquo no eu promovendo o automassacre me-lancoacutelico Esse processo eacute engendrado pelo supereu perante o eu ideal evanes-

cente caracteriacutestico da afirmaccedilatildeo freudiana de que ldquoa sombra do objeto recaiusobre o eurdquo (ibid )

Numa apreensatildeo aprofundada Lambotte (2003) situa na constituiccedilatildeo dasubjetividade melancoacutelica uma forma de identificaccedilatildeo que denomina ldquoidentifi-

caccedilatildeo ao nadardquo subjacente agrave ldquodeserccedilatildeo do Outrordquo e agrave ldquoevanescecircncia do eu-ideal rdquoSegundo esta apreensatildeo a crianccedila em sua constituiccedilatildeo subjetiva natildeo eacute fisgadacomo objeto do discurso idealizado dos pais na constituiccedilatildeo especular O olharda matildee segundo a autora atravessa o sujeito natildeo atribuindo a ele qualquer

sentido de existecircncia ou predicaccedilatildeo deflagrando para ele uma existecircncia nonada Desertado o Outro natildeo inclui o sujeito na funccedilatildeo do desejo mas num

vazio sem precedentes que instaura a Identificaccedilatildeo ao nada (ibid) O melancoacute-lico denuncia de maneira violenta e mesmo insuportaacutevel a sua proacutepria insus-tentabilidade existencial Natildeo atingido pela idealizaccedilatildeo narciacutesica que de outrasorte o colocaria numa posiccedilatildeo de centralidade (eu ideal) o eu se precipitadestituiacutedo contudo da ilusatildeo de sua proacutepria onipotecircncia Natildeo houve sequer aconstituiccedilatildeo do objeto como ldquoperdidordquo (H983137983155983155983151983157983150 2002) ndash natildeo havendo reco-

nhecimento ou registro da perda que promoveria a inscriccedilatildeo do sujeito nocampo do desejo Ali a idealizaccedilatildeo se constituiu no ponto de evanescecircncia doolhar da matildee o qual se dirige a um modelo cuja exterioridade representa umideal inacessiacutevel para o sujeito Segundo essa loacutegica o sujeito eacute lanccedilado parafora de qualquer representaccedilatildeo jubilosa caracteriacutestica da formaccedilatildeo primaacuteria dacrenccedila narciacutesica (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Sem chances de alcance o ideal se tornaa proacutepria raiz do aviltamento superegoico Nesse sentido Lambotte fala numaldquoruptura do transitivismo especular que chega ao isolamento e ao reforccedilo do

ideal do eu agraves expensas de um eu-ideal que natildeo pocircde elaborar-se na origemrdquo(L983137983149983138983151983156983156983141 op cit p 224)

Sendo assim o que vai se assinalar na melancolia eacute um ideal do eu riacutegidoateacute as uacuteltimas consequecircncias fortalecido por um supereu capaz de estraccedilalharo eu melancoacutelico A evanescecircncia do eu ideal na melancolia se encontra na basedo massacre superegoacuteico cujo teor discursivo aponta para ldquoeu natildeo valho nadardquoldquoeu natildeo sou nadardquo (L983137983149983138983151983156983156983141 op cit )

Na depressatildeo diferentemente o sujeito reconhece a perda do objeto con-

tudo refugia-se na crenccedila narciacutesica num recuo defensivo que nega qualquerpossibilidade de transformaccedilatildeo ou de se lanccedilar ao ideal do eu Sobre isso cabelembrar que a depressatildeo manifesta uma forma de idealizaccedilatildeo cujo registro

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

97Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

acha-se fixado ao eu ideal da Crianccedila Maravilhosa O que vai distinguir essasformas de sofrimento eacute que a evanescecircncia na subjetivaccedilatildeo dos pacientes depri-

midos natildeo eacute do eu ideal mas do ideal do eu10

Podemos assinalar nesse diferencial o cerne da idealizaccedilatildeo que marca es-sas duas manifestaccedilotildees cliacutenicas na melancolia constata-se a evanescecircncia doeu ideal que abre caminho para a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto na depres-satildeo a evanescecircncia do ideal do eu assinalando-se o recuo para a crenccedila narciacute-sica que passaraacute a funcionar como um sintoma

Como ldquoevanescecircncia do ideal do eurdquo define-se aqui uma fugacidade noancoramento identificatoacuterio edipiano cuja funccedilatildeo seria de permitir ao sujeitoafastar-se da crenccedila narciacutesica e reaparecer transformado apoacutes o processo de

luto sustentando o desejo e lanccedilando-se ao futuro Nesses termos natildeo eacute a fi-gura do Pai o que entra no lugar do ideal do eu ancorado numa imago assimeacute-trica que pudesse engendrar uma saiacuteda identificatoacuteria ndash tal como Freud(1923a) constatava na cliacutenica de sua eacutepoca O que entra no lugar do ideal do eueacute a proacutepria crenccedila narciacutesica funcionando ali como sintoma O deprimido en-contra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num processo psiacutequicode integraccedilatildeo que o filiaria no caso do luto a uma accedilatildeo descolada da idealiza-ccedilatildeo narciacutesica O que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos eacute a pro-

jeccedilatildeo no futuro de um eu ideal impossiacutevel de se realizar ndash e isso quando haacuteuma projeccedilatildeo no futuro Sem estabelecimento de qualquer construccedilatildeo narrati-

va a partir da qual o sujeito dispor-se-ia a agir a idealizaccedilatildeo de si mesmo nofuturo eacute similar agrave proacutepria idealizaccedilatildeo de lsquoSua Majestade o Bebecircrsquo (P9831459831509831449831419831459831549831512005) Ela eacute de tal ordem que o sujeito deprime como expressatildeo de seu proacutepriofracasso narciacutesico A imagem de si no presente eacute sempre insuficiente perante aexigecircncia do eu-ideal ldquoabsolutordquo e ldquoperdidordquo Tal insuficiecircncia beira numa si-milaridade inversa o mesmo absoluto irredutiacutevel da Crianccedila Maravilhosa

(Q983157983145983150983156983141983148983148983137 op cit ) Nesse niacutevel a natildeo instauraccedilatildeo do luto eacute situada no mes-mo ponto de evanescecircncia do ideal do eu que impede ao sujeito o afastamentoda crenccedila narciacutesica e a proacutepria ldquomorterdquo da Crianccedila Maravilhosa

10 O ideal do eu eacute o ponto de ancoragem identificatoacuteria que afasta a crianccedila do narcisismo

primaacuterio (F983154983141983157983140 1914) e consequentemente da crenccedila narciacutesica Eacute a partir da identificaccedilatildeoao ideal do eu que o sujeito internaliza os traccedilos do pai na dialeacutetica do desejo frente agrave condiccedilatildeoda falta no Outro O ideal do eu aparece como uma saiacuteda identificatoacuteria proporcionando amobilizaccedilatildeo do luto e o afastamento da fantasia primaacuteria da onipotecircncia narciacutesica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 5: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

87Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Pinheiro (2002) assinala que a idealizaccedilatildeo parental eacute o ponto de partidado juacutebilo narciacutesico cuja experiecircncia fundamenta o sentimento de existecircncia dacrianccedila Existir eacute efeito antes de tudo da introjeccedilatildeo de uma rede de sentidos

plurais captados do discurso idealizado dos pais Nesse acircmbito existir implicaem princiacutepio responder ao investimento parental com a fantasia da onipotecircn-cia Esta fantasia tem como objetivo rechaccedilar a impermanecircncia a falta e a fini-tude na relaccedilatildeo com os pais na busca da estase sustentada por um tipoparticular de idealizaccedilatildeo que diz respeito ao investimento amoroso dos pais Oinvestimento parental no narcisismo do infante deflagra ali um mundo de ma-ravilhas sob o qual este mesmo infante sustentaraacute seu proacuteprio ideal narciacutesicoAmar-se a si proacuteprio significa render-se ao discurso embalsamador da matildee

que empresta a silhueta necessaacuteria para o advento de uma imagem de si supos-tamente ldquoplenardquo de investimento amoroso A crenccedila narciacutesica referencia para osujeito o germe da formaccedilatildeo dos ideais mediante a apropriaccedilatildeo imaginaacuteria dodiscurso parental hiperidealizado3 Ela eacute a miragem do juacutebilo perdido tomadocomo fonte especular da constituiccedilatildeo narciacutesica Redunda no mito da onipotecircn-

cia narciacutesica fundado na ideacuteia de imortalidade e sobrepujanccedila do eu caracteriacutes-tica da megalomania infantil bem como da busca por satisfaccedilatildeo imediata das

moccedilotildees pulsionais

O estatuto de existecircncia se funda assim na relaccedilatildeo com os pais em posi-ccedilatildeo de grande Outro este uacuteltimo definido como ldquolugar da palavra faladardquo quesustenta o sistema significante e engendra a constituiccedilatildeo do sujeito como efeitoda linguagem e da cultura (L983137983139983137983150 1958-1959) O discurso parental assume afunccedilatildeo simboacutelica da determinaccedilatildeo do sujeito produzindo ao mesmo tempono imaginaacuterio efeitos de organizaccedilatildeo especular e invenccedilatildeo narciacutesica Cabe as-sinalar nesse sentido que o fracasso da fantasia de onipotecircncia se acha subju-gado ao caraacuteter intriacutenseco da falta agrave medida que o sujeito depende do Outro

para existir e vai encontrar nele mesmo a constituiccedilatildeo da proacutepria falta (ibid )Nesse acircmbito o existir na sua plenitude eacute fadado ao fracasso agrave medida que nosimboacutelico o Outro devolve a impossibilidade de plenitude no mundo da fala eda linguagem e no real a fantasia de onipotecircncia eacute insustentaacutevel O enoda-

3 Entende-se como crenccedila o elo narrativo da experiecircncia subjetiva sustentado pelo discursoe pela imagem tomados de empreacutestimo do outro Trata-se do creacutedito depositado no tecidodiscursivo que tem como contrapartida os efeitos subjetivos na constituiccedilatildeo do sujeito

(M983137983156983156983151983155 2007) A crenccedila narciacutesica eacute um tipo de crenccedila que funda a relaccedilatildeo do sujeito comsua proacutepria imagem ideal caracteriacutestica do mito de onipotecircncia infantil (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Anoccedilatildeo de crenccedila narciacutesica seraacute amplamente utilizada como operador teoacuterico para a abordagemaqui visada a respeito da depressatildeo e do existir no mal-estar contemporacircneo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 621

A DOR E O EXISTIR

88

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

mento entre imaginaacuterio simboacutelico e real assinala assim que o tema da existecircn-cia natildeo pode ser abordado de maneira desgarrada dos fatores intriacutensecos agraveproacutepria condiccedilatildeo da falta no campo do sujeito situando a ex-sistecircncia e a insis-

tecircncia como dimensotildees intriacutensecas agrave constituiccedilatildeo subjetiva as quais devem serconsideradas na sua maior relevacircncia

Lacan frisa sobre a relaccedilatildeo ao Outro o caraacuteter falho da estrutura simboacutelicacujo efeito eacute a instauraccedilatildeo mesma do desejo e da divisatildeo do sujeito (L9831379831399831379831501958-1959) mantendo um rasgo na imagem narciacutesica suportada inicialmentepela idealizaccedilatildeo parental Lacan assinala a impossibilidade de completude in-triacutenseca agrave proacutepria constituiccedilatildeo do sujeito no campo do significante agrave medidaque este uacuteltimo natildeo eacute capaz de representaacute-lo plenamente lanccedilando-o a uma

cadeia significante inconsciente e abrindo caminho para a falta o desejo e ogozo Ou seja natildeo haacute em um significante o dizer uacuteltimo que defina o sujeito ouo represente plenamente produzindo o remetimento a outros significantes nacadeia4 Em sua anaacutelise Lacan sublinha a inexistecircncia de uma garantia no Ou-tro a respeito de uma fianccedila sobre o ser do sujeito O autor afirma

S(A) quer dizer isto ndash que em A que natildeo eacute um ser mas o lugarda palavra falada onde descansa o conjunto do sistema signifi-cante quer dizer de uma linguagem aiacute falta alguma coisa algu-

ma coisa que soacute pode ser um significante Um significante faltaao niacutevel do Outro Este eacute se posso dizer o grande segredo dapsicanaacutelise ndash natildeo haacute Outro do Outro () Natildeo haacute no Outro ne-nhum significante que possa no caso responder pelo que sou(L983137983139983137983150 1958-1959 p 46-47)

Sendo assim tributaacuterio de um discurso pinccedilado do Outro que imprimesobre o sujeito o ideal da opulecircncia narciacutesica na relaccedilatildeo amorosa primaacuteria onarcisismo eacute tentativa de rechaccedilar a falta desde jaacute presente na relaccedilatildeo ao Outro

Por um lado resta agrave crianccedila a inscriccedilatildeo de sua condiccedilatildeo sexuada transitoacuteria emortal na superaccedilatildeo do narcisismo primaacuterio sustentando-se como sujeito de-sejante ao preccedilo de uma perda Por outro lado os pais apesar de fiadores daidealizaccedilatildeo narciacutesica deixam para o infante um deacutebito impossiacutevel de ser quita-do sob o jugo da proacutepria alienaccedilatildeo dos pais em seu narcisismo perdido ndash fian-ccedila apoiada naquilo que o Outro natildeo tem natildeo devolvendo este Outro por issomesmo qualquer tipo de garantia para o sujeito

Eacute nessa loacutegica que Lacan implica o sujeito no estatuto de ex-sistecircncia no

4 Eacute nesse sentido que Lacan (1964) aborda o significante como ldquoaquilo que representa o sujeitopara outro significanterdquo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

89Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

que o simboacutelico instaura a falta-a-ser intriacutenseca ao mundo do desejo e do gozoA ex-sistecircncia eacute esse ponto real do sujeito que implica um buraco no simboacutelicoagrave medida que o proacuteprio sujeito natildeo eacute um significante na cadeia ex-siste agrave ca-

deia significante e eacute determinado por esta de maneira sempre incompletaFalta-a-ser eacute assim condiccedilatildeo do ser falante agrave medida que o simboacutelico natildeopode representar plenamente o ser restando algo de irrepresentaacutevel na relaccedilatildeoentre sujeito e objeto de satisfaccedilatildeo implicada no gozo5

Do ponto de vista do real o objeto como objeto perdido na relaccedilatildeo dosujeito ao significante insiste como forccedila que resta da operaccedilatildeo de simboliza-ccedilatildeo em funccedilatildeo de sua ligaccedilatildeo com o corpo Eacute o caraacuteter insistente da pulsatildeo queimplica o real como impossiacutevel naquilo que causa o desejo ndash objeto a ndash e ao

mesmo tempo retorna sempre ao mesmo lugar como repeticcedilatildeo aleacutem do prin-ciacutepio do prazer (L983137983139983137983150 1968) Essa insistecircncia do real se caracteriza como oque insiste como resto natildeo simboacutelizaacutevel denominado por Lacan (1968) comomais-de-gozo Isso implica por um lado a renuacutencia primeira numa dimensatildeoem que a perda faz aparecer o objeto a como causa de desejo implica por outrolado uma dimensatildeo em que a proacutepria renuacutencia reforccedila e fortalece a exigecircnciasuperegoica (F983154983141983157983140 1930) Essa forma de gozo que implica a renuacutencia e aperda como marcas constitutivas do sujeito aparece na dimensatildeo de um resto

suplementar a ser recuperado ndash resto que excede ao niacutevel do imperativo supe-regoico (L983137983139983137983150 1968)

A tentativa narciacutesica de rechaccedilar a falta eacute portanto intriacutenseca agrave experiecircnciaprimaacuteria do sujeito Nesse sentido a plenitude que o discurso do Outro ldquoinven-tourdquo (Sua Majestade o Bebecirc) e ao mesmo tempo assinalou como impossibilida-de intriacutenseca agrave estrutura do simboacutelico subjuga um traccedilado paradoxal expressopelo proacuteprio mito de Narciso Entre o amor e a morte o enamoramento absolu-to de Narciso pela imagem ideal de si mesmo eacute o que o leva agrave sua proacutepria ruiacutena

A paralisaccedilatildeo eacute de tal ordem que qualquer movimento no sentido da mudanccedilatorna-se impossiacutevel o que o faz sucumbir agrave prisatildeo de seu amor miacutetico Narcisoeacute a proacutepria expressatildeo do mito e sua paralisaccedilatildeo na imagem eacute a proacutepria insiacutegniada paralisaccedilatildeo no tempo ndash condiccedilatildeo que como veremos eacute a marca da depressatildeo no circuito do desejo Nesse traccedilado eacute a denegaccedilatildeo do desejo o algoz imediatoe paradoxal da proacutepria destruiccedilatildeo de Narciso bem como a mira mortiacutefera dogozo para a qual a busca da experiecircncia do absoluto empurra

5 Com essa apreensatildeo Lacan busca a fundamentaccedilatildeo do sujeito a partir da noccedilatildeo de ex-sistecircnciaagrave medida que o sujeito eacute suposto na teoria do inconsciente natildeo eacute apreensiacutevel enquantocategoria existencial fenomecircnica mas ex-siste como elemento extriacutenseco agrave cadeia significante(L983137983139983137983150 1975)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 821

A DOR E O EXISTIR

90

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute sob essa rubrica impossiacutevel da experiecircncia narciacutesica caracteriacutestica datragicidade paradoxal que conjuga onipotecircncia e morte que a nosso ver otema do existir deve ser pensado do ponto de vista da psicanaacutelise Sendo assim

tratar o existir na cliacutenica psicanaliacutetica implica especialmente o impossiacutevel na-quilo que escapa ao fenomenicamente dado atingindo sua condiccedilatildeo de ldquomaisaleacutemrdquo caracteriacutestico da ex-sistecircncia e da insistecircncia No contexto dessas consi-deraccedilotildees pretendemos abordar o tema da depressatildeo como uma forma contem-poracircnea de enfrentamento do mal-estar implicada na condiccedilatildeo natildeo apenasexistencial do sujeito mas tambeacutem faltosa e pulsional

Essa apreensatildeo eacute imprescindiacutevel para pensarmos as formas de gozo na cliacute-nica contemporacircnea A depressatildeo ndash marca do gozo na contemporaneidade ndash

prepondera com caracteriacutesticas especiacuteficas de um modo atual de sofrimentoque natildeo representando uma entidade diagnoacutestica do ponto de vista da psica-naacutelise e inscrita no campo da neurose deve ser concebida como uma organi-zaccedilatildeo sintomaacutetica Ela aparece como resultado de uma tentativa de suturaccedilatildeoda falta como insistecircncia de um gozo que excede ao niacutevel da cadeia significan-te agrave medida que visa rechaccedilar o desejo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do

eu6 Com efeito ela natildeo se confunde com a melancolia sequer com o lutoVeremos adiante como isso se assinala conforme o exposto a seguir

III Seguindo com Freud o luto e a depressatildeo como destinospossiacuteveis agrave dor da perda

O luto como dor estruturante

A mobilizaccedilatildeo do luto face agrave perda do objeto implica forccedilas psiacutequicas quetecircm como funccedilatildeo dar um destino especiacutefico agrave relaccedilatildeo do sujeito com a falta no

Outro de modo que este mesmo sujeito sustente sua proacutepria condiccedilatildeo dese- jante Esta apreensatildeo aparece na teoria psicanaliacutetica desde o momento em queFreud situa o luto como um trabalho O luto engendra a proacutepria pulsatildeo na suacondiccedilatildeo de exigecircncia de trabalho implicado na relaccedilatildeo com o corpo (F9831549831419831579831401915) ndash forccedila que mobiliza em seu caraacuteter de insistecircncia a elaboraccedilatildeo simboacute-lica da perda objetal

Em Luto e melancolia Freud (1917) descreve as caracteriacutesticas baacutesicas doprocesso de luto Ali ele considera que no luto prevalece uma inibiccedilatildeo da ativi-

6 A especificidade do ideal do eu na depressatildeo seraacute discutida no terceiro toacutepico da presenteexposiccedilatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

91Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

dade do eu e sua absorccedilatildeo uma ldquoperda [temporaacuteria] da capacidade de adotarum novo objeto de amorrdquo (ibid p 250) ldquoEacute notaacutevel que esse penoso despazerseja aceito por noacutes como algo natural Contudo o fato eacute que quando o traba-

lho do luto se conclui o ego fica outra vez livre e desinibidordquo ( ibid p 251)O enlutado se manteacutem segundo Freud temporariamente num estado de

rebaixamento libidinal e sofrimento ante a morte ou agrave perda cujos efeitos sefazem valer pela possibilidade de finitizaccedilatildeo da dor O luto eacute evocado pelo su-

jeito no sentido de fazer com que perante a perda a dor natildeo se eternize Nessesentido o luto se configura efetivamente como um trabalho psiacutequico Ratifica--se que o trabalho do luto tem a funccedilatildeo de assimilaccedilatildeo da perda e de possibili-tar que o sujeito se separe do objeto perdido e reinvista num substituto O

enlutado martiriza-se pela perda recorda-se constantemente do perdido tra-balhando no sentido mesmo de dar a isso um estatuto efetivo de perda e assi-milaccedilatildeo simboacutelica da perda relanccedilando-se ao desejo

O luto nessa apreensatildeo constitui um doloroso caminho sobre o qual ohumano percorre a fim de assimilar a perda do objeto e a proacutepria transitorie-dade Aleacutem de proporcionar tal assimilaccedilatildeo simboacutelica o enlutado se protegede seu proacuteprio desmoronamento mediante um momento passageiro de acirra-

mento da dor psiacutequica a lembranccedila do objeto perdido o pranteamento a ini-

biccedilatildeo passageira etcAssim o luto eacute dor estruturante agrave medida que move um trabalho de ligaccedilatildeo

e integraccedilatildeo daquilo que irrompe no aparelho psiacutequico e fica momentanea-mente sem metaforizaccedilatildeo Eacute mola propulsora da simbolizaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo nar-rativa da perda mediante reconstruccedilatildeo da dor psiacutequica diante da anguacutestia queirrompe no sujeito quando este se depara com a faceta inominaacutevel do objetoperdido (cf L983137983139983137983150 1962-1963) Em outras palavras o luto tem por funccedilatildeo dar

um nome ao perdido promovendo um lugar no simboacutelico para o perdido La-

can assinala que apoacutes o processo do luto se instaura uma transformaccedilatildeo no euNesse sentido apoacutes o luto o sujeito natildeo seraacute mais o mesmo de antes o queimplica um processo de transformaccedilatildeo do eu e separaccedilatildeo do objeto perdido(L983137983139983137983150 1958-1959) Eacute precisamente na travessia do luto que o sujeito retomaa via do desejo lanccedilando-se a novas formas de existir e a novos investimentos

Veremos adiante que a abordagem do luto a partir de Freud natildeo deixaespaccedilo teoacuterico para uma confluecircncia conceitual entre o luto e a depressatildeo ndash osdois conceitos natildeo se confundem natildeo obstante se relacionarem ainda que de

maneira excludente e heterogecircnea Esses conceitos seratildeo aprofundados a se-guir de forma sustentada no pensamento de Freud e de outros autores comoSerge Leclaire os quais contribuem para o avanccedilo do tema

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1021

A DOR E O EXISTIR

92

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Com Freud aleacutem de Freud luto e depressatildeo

Podemos adentrar o tema da depressatildeo e sua relaccedilatildeo com o luto medianteo estudo de alguns aspectos relativos agrave obra freudiana na depuraccedilatildeo dos pro-blemas concernentes agrave constituiccedilatildeo do sujeito

Em Bate-se numa crianccedila Freud (1919) identificou importantes elemen-tos subjacentes aos movimentos fantasmaacuteticos infantis os quais guardadassuas especificidades revelam a circunstacircncia especiacutefica de um momento sub-

jetivo extremamente relevante no percurso de vida dos sujeitosFreud discute ali algumas peculiaridades determinantes da fantasia infan-

til que podem revelar aspectos decisivos para a compreensatildeo do modo como o

sujeito responde ao impasse da onipotecircncia narciacutesica Ele aponta que a primei-ra fase da fantasia de flagelaccedilatildeo infantil corresponde a uma imagem repetitivana qual uma crianccedila eacute espancada por um adulto ndash em geral o pai A fase sub-sequente corresponde segundo ele agrave posiccedilatildeo inconsciente na qual o sujeito se

vecirc como sendo a proacutepria crianccedila espancada em que se faz verificar um retornoao masoquismo e um sentimento de culpa remetido ao desejo incestuoso Naterceira fase a fantasia se traduz por um sentido de universalizaccedilatildeo dos perso-nagens presentes natildeo havendo nela atribuiccedilotildees identificatoacuterias mas uma

abrangecircncia que natildeo especifica os atores da cenaEste resumo serve para nos referenciarmos na discussatildeo introduzida por

Freud a respeito da posiccedilatildeo do sujeito frente ao desejo dos pais que caracterizao rechaccedilo fantasmaacutetico de sua falta Esta condiccedilatildeo introduz para o sujeito umaexperiecircncia especiacutefica concernente agrave dimensatildeo da finitude e da transitorieda-de Nossa anaacutelise se ateacutem ao primeiro momento da fantasia acerca do qualFreud aponta

() muitas crianccedilas que se acreditavam seguramente entronadasna inabalaacutevel afeiccedilatildeo dos pais foram de um soacute golpe derrubadasde todos os ceacuteus da sua onipotecircncia imaginaacuteria A ideacuteia de o paibatendo nessa odiosa crianccedila eacute portanto agradaacutevel indepen-dente de ter sido realmente visto agindo assim Significa lsquoO meupai natildeo ama essa crianccedila mas apenas a mimrdquo7 (ibid p 202)

Conforme sinalizamos anteriormente a respeito do mito de onipotecircncianarciacutesica na constituiccedilatildeo existencial do sujeito salienta-se que em sua experi-ecircncia subjetiva a crianccedila eacute sumariamente destronada de seu lugar de opulecircn-

cia no discurso dos pais logo que os mesmos apresentam-se como faltosos

7 Grifo do autor

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

93Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

especialmente a matildee para quem os investimentos primaacuterios satildeo dirigidos Taldestronamento que muitas vezes toma a fantasia de flagelaccedilatildeo infantil comosaiacuteda possiacutevel ao impasse da onipotecircncia narciacutesica pode resultar natildeo menos

numa experiecircncia de luto cujo destino proporciona ao sujeito uma relaccedilatildeopositiva com a transitoriedade e o proacuteprio desejo Nesse acircmbito a anguacutestia dosujeito diante do objeto que aiacute se desnuda como perdido e natildeo nomeado moveum trabalho de luto capaz de reinstaurar a condiccedilatildeo do desejo

O trabalho do luto natildeo eacute contudo um movimento necessaacuterio de resposta agraveperda A depressatildeo aparece como uma possibilidade de resposta que difere do lutocuja incidecircncia caracteriza uma vicissitude da crenccedila narciacutesica Diferentemente deum trabalho de luto a depressatildeo aguda constitui em sua proacutepria radicalidade a

outra face de uma mesma moeda onipotecircncia narciacutesica e estase depressivaEsse sentido de onipotecircncia perseguido sintomaticamente pelo deprimido

eacute precisamente o que Serge Leclaire (1975) denomina ldquoCrianccedila Maravilhosardquo ACrianccedila Maravilhosa eacute segundo o autor o fundamento da experiecircncia ldquoprimaacute-riardquo do narcisismo ldquoeacute uma representaccedilatildeo inconsciente primordial na qual seentrelaccedilam mais densos do que em qualquer outra os anseios nostalgias e es-peranccedilas de cada umrdquo (ibid p 11) Essa figuraccedilatildeo faz toda referecircncia agrave crenccediladefinida como aquilo que promove o elo narrativo da experiecircncia de si na cons-

tituiccedilatildeo do sujeito Tal experiecircncia contorna toda uma complexidade que Le-claire situaraacute como o paradoxo da condiccedilatildeo subjetiva se por um lado estaldquomaravilha infantilrdquo faz referecircncia ao juacutebilo da centralidade narciacutesica por outrolado remete ao inescapaacutevel da morte ndash por isso o paradoxo ndash na assunccedilatildeo jubi-losa como primeira figuraccedilatildeo estaacutetica do sentimento de onipotecircncia Eacute o mitoda onipotecircncia produzindo uma fabulaccedilatildeo o absoluto impossiacutevel desfrutadopela insiacutegnia dos pais que emprestam o simboacutelico como mateacuteria-prima e o ima-ginaacuterio como efeito jubiloso da imagem perdida Nesse acircmbito nada mais pre-

ciso do que situar a dimensatildeo intriacutenseca da morte no proacuteprio nascimento dasubjetividade no existir primeiro tal como faz Leclaire Nascer (psiquicamen-te) implica em morrer e morrer implica em nascer sob o jugo de se fazer sujei-to e sustentar o movimento desejante cuja condiccedilatildeo eacute a proacutepria morte daldquoCrianccedila Maravilhosardquo Eacute o que Leclaire demonstra em sua anaacutelise do mito in-fantil aquele mesmo referido por Freud na menccedilatildeo ao ego-ideal marcado pelaalienaccedilatildeo que exige constantemente um trabalho de luto mata-se uma crianccedila8

8 Leclaire salienta em sua obra o aspecto pulsional deste processo no qual se assinala a pulsatildeode morte como condiccedilatildeo para a mobilizaccedilatildeo do proacuteprio luto O fracasso da instauraccedilatildeo desteuacuteltimo deflagra natildeo menos a reverberaccedilatildeo paradoxal da Crianccedila Maravilhosa em sua face cruele mortiacutefera tal como veremos adiante em nossa proposta sobre a depressatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1221

A DOR E O EXISTIR

94

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute notaacutevel entretanto a dificuldade que o sujeito tem muitas vezes deldquomatarrdquo sua proacutepria crianccedila interna ou seja fazer o luto da Crianccedila Maravi-lhosa Leclaire afirma que o sujeito refugia-se na Crianccedila Maravilhosa sob o

risco paradoxal de acelerar o curso inescapaacutevel de sua proacutepria morte de suafinitude objetiva O paradoxo que aqui se instala revela que para sustentar odesejo o sujeito tem de matar natildeo apenas o Outro que o inventou mas tam-beacutem a si mesmo num suiciacutedio sem morte cujo drama enuncia a trajetoacuteria daproacutepria dor narciacutesica Ou seja o sujeito nasce mergulhado numa crenccedila narciacute-

sica sob o risco perene da morte caso natildeo renuncie a esta mesma crenccedila que ofez existente Necessidade que Leclaire situa como funccedilatildeo permanente do mo-

vimento desejante

Se a perda eacute intriacutenseca agrave proacutepria experiecircncia narciacutesica circunscrevem-sea partir disso os conceitos de luto e depressatildeo como destinos heterogecircneos aoimpasse da onipotecircncia narciacutesica e da perda objetal Os contextos especiacuteficosnos quais a depressatildeo se manifesta de maneira mais violenta e criacutetica eacute a ex-pressatildeo maacutexima do paradoxo perfilado por Leclaire ndash paradoxo situado nosliames da vida e da morte (subjetivas) A depressatildeo caracteriza-se por umasaiacuteda contradesejante e natildeo eacute como pode parecer uma aderecircncia direta agrave mor-te Ela eacute diferentemente do luto a negaccedilatildeo da finitude e do desejo que situa o

paradoxo da Crianccedila Maravilhosa Tal paradoxo pode ser constatado pela ou-tra face desta moeda a depressatildeo eacute recurso do sujeito para natildeo se deparar como transitoacuterio e para tentar uma recuperaccedilatildeo do gozo atraveacutes da estagnaccedilatildeo e daprostraccedilatildeo ndash uma parada que exige do tempo aquilo que ele natildeo pode dar

Sobre esse aspecto o pensamento de Freud eacute de extrema fecundidade Emsuas perquiriccedilotildees Freud (1915) dizia que a transitoriedade natildeo reduz mas ao

contraacuterio aumenta o valor das coisas No texto que discute a respeito da tran-sitoriedade o ponto de vista de Freud situa na ponta de sua caneta aquilo que

seu interlocutor ndash o poeta Ranier Maria Rilke ndash apresenta quando se refere aotransitoacuterio O poeta afirma que se as coisas se acabam seu valor se destituinum presente absoluto triste e traacutegico Divergindo desta concepccedilatildeo Freuddenomina tal posiccedilatildeo de ldquorevolta contra o lutordquo vinculada a um dos mais pre-ponderantes anseios narciacutesicos a exigecircncia de imortalidade

() essa exigecircncia de imortalidade por ser tatildeo obviamente umproduto dos nossos desejos natildeo pode reivindicar seu direito agraverealidade o que eacute penoso pode natildeo obstante ser verdadeiro

() Natildeo deixei poreacutem de discutir o ponto de vista pessimistado poeta de que a transitoriedade do que eacute belo implica umaperda de seu valor (ibid p 317)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

95Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Contextualizando a depressatildeo nesta temaacutetica ndash a transitoriedade ndash salien-tamos que para a crenccedila narciacutesica ndash ancoragem fundamental da depressatildeo ndash afinitude eacute incompatiacutevel ao projeto de unidade e permanecircncia no discurso da

perfeiccedilatildeo na relaccedilatildeo ao Outro No caso dessa crenccedila assumir um estatuto cen-tral e hegemocircnico na vida psiacutequica do sujeito a estagnaccedilatildeo depressiva aparececomo a via pela qual diante da perda esse mesmo sujeito nega a morte daCrianccedila Maravilhosa impedindo-se agrave transformaccedilatildeo subjetiva engendradapelo luto marcando ali a natildeo sustentaccedilatildeo do desejo Trata-se de uma tentativafracassada de rechaccedilo da falta que marca o ser como incompleto ndash rechaccedilo da falta-a-ser mediante a representaccedilatildeo primaacuteria da Crianccedila Maravilhosa cujo co-rolaacuterio eacute a depressatildeo como resultado sintomaacutetico desse fracasso

Cabe frisar assim que natildeo se trata na depressatildeo de um desdobramento doafeto de tristeza dado que este como afeto conduz o sujeito ao trabalho deluto por mais intenso que possa se apresentar A depressatildeo natildeo se reduz a umafeto trata-se de uma saiacuteda defensiva que resulta em sintomas graves de estag-naccedilatildeo perda do interesse pela vida desinvestimento conflitos com a imagemde si ndash sintomas que agraves vezes culminam em atos suicidas O deprimido ancora--se no mito da onipotecircncia do eu que natildeo passando de um lampejo de perfei-ccedilatildeo que se apaga no tempo engendra uma posiccedilatildeo inversa de silenciamento

absoluto e denegaccedilatildeo radical da divisatildeo e do desejo Caracteriza-se nisso acontrapartida oposta agravequela subjacente ao desejo este uacuteltimo assumindo sus-tentaccedilatildeo mediante o luto cuja principal funccedilatildeo eacute inscrever a contingecircncia dosujeito sua temporalidade transitoriedade e mortalidade conjugando comisso a relaccedilatildeo entre a perda e o proacuteprio desejo9

Algumas notas sobre a distinccedilatildeo entre depressatildeo e melancolia

Cabe aqui realizar uma breve distinccedilatildeo imprescindiacutevel do ponto de vistateoacuterico-cliacutenico para que natildeo incorramos em equiacutevocos que muitas vezes apa-recem no campo psicanaliacutetico Na melancolia a questatildeo apresenta-se de ma-neira distinta Nela o que ocorre eacute uma retirada da libido para o eu ndash o quediante da perda caracteriza a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto (F983154983141983157983140 1917)

9 A condiccedilatildeo aqui descrita se acha na base da experiecircncia depressiva que se intensifica na con-temporaneidade e de outros sintomas que sobrepujam as manifestaccedilotildees ldquoclaacutessicasrdquo caracteriacutes-

ticas da metaacutefora sintomaacutetica histeacuterica a qual ofertava o corpo como palco de decifraccedilatildeo dodesejo inconsciente Nesse sentido o sintoma da depressatildeo apresenta especificidades outrasque merecem todo cuidado teoacuterico-cliacutenico no que tange agraves possibilidades de saiacuteda diante dacastraccedilatildeo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do eu como veremos agrave frente

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1421

A DOR E O EXISTIR

96

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Essa identificaccedilatildeo marca a impossibilidade mesma de inscriccedilatildeo da perda agravemedida que o objeto fica ldquoinstaladordquo no eu promovendo o automassacre me-lancoacutelico Esse processo eacute engendrado pelo supereu perante o eu ideal evanes-

cente caracteriacutestico da afirmaccedilatildeo freudiana de que ldquoa sombra do objeto recaiusobre o eurdquo (ibid )

Numa apreensatildeo aprofundada Lambotte (2003) situa na constituiccedilatildeo dasubjetividade melancoacutelica uma forma de identificaccedilatildeo que denomina ldquoidentifi-

caccedilatildeo ao nadardquo subjacente agrave ldquodeserccedilatildeo do Outrordquo e agrave ldquoevanescecircncia do eu-ideal rdquoSegundo esta apreensatildeo a crianccedila em sua constituiccedilatildeo subjetiva natildeo eacute fisgadacomo objeto do discurso idealizado dos pais na constituiccedilatildeo especular O olharda matildee segundo a autora atravessa o sujeito natildeo atribuindo a ele qualquer

sentido de existecircncia ou predicaccedilatildeo deflagrando para ele uma existecircncia nonada Desertado o Outro natildeo inclui o sujeito na funccedilatildeo do desejo mas num

vazio sem precedentes que instaura a Identificaccedilatildeo ao nada (ibid) O melancoacute-lico denuncia de maneira violenta e mesmo insuportaacutevel a sua proacutepria insus-tentabilidade existencial Natildeo atingido pela idealizaccedilatildeo narciacutesica que de outrasorte o colocaria numa posiccedilatildeo de centralidade (eu ideal) o eu se precipitadestituiacutedo contudo da ilusatildeo de sua proacutepria onipotecircncia Natildeo houve sequer aconstituiccedilatildeo do objeto como ldquoperdidordquo (H983137983155983155983151983157983150 2002) ndash natildeo havendo reco-

nhecimento ou registro da perda que promoveria a inscriccedilatildeo do sujeito nocampo do desejo Ali a idealizaccedilatildeo se constituiu no ponto de evanescecircncia doolhar da matildee o qual se dirige a um modelo cuja exterioridade representa umideal inacessiacutevel para o sujeito Segundo essa loacutegica o sujeito eacute lanccedilado parafora de qualquer representaccedilatildeo jubilosa caracteriacutestica da formaccedilatildeo primaacuteria dacrenccedila narciacutesica (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Sem chances de alcance o ideal se tornaa proacutepria raiz do aviltamento superegoico Nesse sentido Lambotte fala numaldquoruptura do transitivismo especular que chega ao isolamento e ao reforccedilo do

ideal do eu agraves expensas de um eu-ideal que natildeo pocircde elaborar-se na origemrdquo(L983137983149983138983151983156983156983141 op cit p 224)

Sendo assim o que vai se assinalar na melancolia eacute um ideal do eu riacutegidoateacute as uacuteltimas consequecircncias fortalecido por um supereu capaz de estraccedilalharo eu melancoacutelico A evanescecircncia do eu ideal na melancolia se encontra na basedo massacre superegoacuteico cujo teor discursivo aponta para ldquoeu natildeo valho nadardquoldquoeu natildeo sou nadardquo (L983137983149983138983151983156983156983141 op cit )

Na depressatildeo diferentemente o sujeito reconhece a perda do objeto con-

tudo refugia-se na crenccedila narciacutesica num recuo defensivo que nega qualquerpossibilidade de transformaccedilatildeo ou de se lanccedilar ao ideal do eu Sobre isso cabelembrar que a depressatildeo manifesta uma forma de idealizaccedilatildeo cujo registro

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

97Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

acha-se fixado ao eu ideal da Crianccedila Maravilhosa O que vai distinguir essasformas de sofrimento eacute que a evanescecircncia na subjetivaccedilatildeo dos pacientes depri-

midos natildeo eacute do eu ideal mas do ideal do eu10

Podemos assinalar nesse diferencial o cerne da idealizaccedilatildeo que marca es-sas duas manifestaccedilotildees cliacutenicas na melancolia constata-se a evanescecircncia doeu ideal que abre caminho para a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto na depres-satildeo a evanescecircncia do ideal do eu assinalando-se o recuo para a crenccedila narciacute-sica que passaraacute a funcionar como um sintoma

Como ldquoevanescecircncia do ideal do eurdquo define-se aqui uma fugacidade noancoramento identificatoacuterio edipiano cuja funccedilatildeo seria de permitir ao sujeitoafastar-se da crenccedila narciacutesica e reaparecer transformado apoacutes o processo de

luto sustentando o desejo e lanccedilando-se ao futuro Nesses termos natildeo eacute a fi-gura do Pai o que entra no lugar do ideal do eu ancorado numa imago assimeacute-trica que pudesse engendrar uma saiacuteda identificatoacuteria ndash tal como Freud(1923a) constatava na cliacutenica de sua eacutepoca O que entra no lugar do ideal do eueacute a proacutepria crenccedila narciacutesica funcionando ali como sintoma O deprimido en-contra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num processo psiacutequicode integraccedilatildeo que o filiaria no caso do luto a uma accedilatildeo descolada da idealiza-ccedilatildeo narciacutesica O que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos eacute a pro-

jeccedilatildeo no futuro de um eu ideal impossiacutevel de se realizar ndash e isso quando haacuteuma projeccedilatildeo no futuro Sem estabelecimento de qualquer construccedilatildeo narrati-

va a partir da qual o sujeito dispor-se-ia a agir a idealizaccedilatildeo de si mesmo nofuturo eacute similar agrave proacutepria idealizaccedilatildeo de lsquoSua Majestade o Bebecircrsquo (P9831459831509831449831419831459831549831512005) Ela eacute de tal ordem que o sujeito deprime como expressatildeo de seu proacutepriofracasso narciacutesico A imagem de si no presente eacute sempre insuficiente perante aexigecircncia do eu-ideal ldquoabsolutordquo e ldquoperdidordquo Tal insuficiecircncia beira numa si-milaridade inversa o mesmo absoluto irredutiacutevel da Crianccedila Maravilhosa

(Q983157983145983150983156983141983148983148983137 op cit ) Nesse niacutevel a natildeo instauraccedilatildeo do luto eacute situada no mes-mo ponto de evanescecircncia do ideal do eu que impede ao sujeito o afastamentoda crenccedila narciacutesica e a proacutepria ldquomorterdquo da Crianccedila Maravilhosa

10 O ideal do eu eacute o ponto de ancoragem identificatoacuteria que afasta a crianccedila do narcisismo

primaacuterio (F983154983141983157983140 1914) e consequentemente da crenccedila narciacutesica Eacute a partir da identificaccedilatildeoao ideal do eu que o sujeito internaliza os traccedilos do pai na dialeacutetica do desejo frente agrave condiccedilatildeoda falta no Outro O ideal do eu aparece como uma saiacuteda identificatoacuteria proporcionando amobilizaccedilatildeo do luto e o afastamento da fantasia primaacuteria da onipotecircncia narciacutesica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 6: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 621

A DOR E O EXISTIR

88

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

mento entre imaginaacuterio simboacutelico e real assinala assim que o tema da existecircn-cia natildeo pode ser abordado de maneira desgarrada dos fatores intriacutensecos agraveproacutepria condiccedilatildeo da falta no campo do sujeito situando a ex-sistecircncia e a insis-

tecircncia como dimensotildees intriacutensecas agrave constituiccedilatildeo subjetiva as quais devem serconsideradas na sua maior relevacircncia

Lacan frisa sobre a relaccedilatildeo ao Outro o caraacuteter falho da estrutura simboacutelicacujo efeito eacute a instauraccedilatildeo mesma do desejo e da divisatildeo do sujeito (L9831379831399831379831501958-1959) mantendo um rasgo na imagem narciacutesica suportada inicialmentepela idealizaccedilatildeo parental Lacan assinala a impossibilidade de completude in-triacutenseca agrave proacutepria constituiccedilatildeo do sujeito no campo do significante agrave medidaque este uacuteltimo natildeo eacute capaz de representaacute-lo plenamente lanccedilando-o a uma

cadeia significante inconsciente e abrindo caminho para a falta o desejo e ogozo Ou seja natildeo haacute em um significante o dizer uacuteltimo que defina o sujeito ouo represente plenamente produzindo o remetimento a outros significantes nacadeia4 Em sua anaacutelise Lacan sublinha a inexistecircncia de uma garantia no Ou-tro a respeito de uma fianccedila sobre o ser do sujeito O autor afirma

S(A) quer dizer isto ndash que em A que natildeo eacute um ser mas o lugarda palavra falada onde descansa o conjunto do sistema signifi-cante quer dizer de uma linguagem aiacute falta alguma coisa algu-

ma coisa que soacute pode ser um significante Um significante faltaao niacutevel do Outro Este eacute se posso dizer o grande segredo dapsicanaacutelise ndash natildeo haacute Outro do Outro () Natildeo haacute no Outro ne-nhum significante que possa no caso responder pelo que sou(L983137983139983137983150 1958-1959 p 46-47)

Sendo assim tributaacuterio de um discurso pinccedilado do Outro que imprimesobre o sujeito o ideal da opulecircncia narciacutesica na relaccedilatildeo amorosa primaacuteria onarcisismo eacute tentativa de rechaccedilar a falta desde jaacute presente na relaccedilatildeo ao Outro

Por um lado resta agrave crianccedila a inscriccedilatildeo de sua condiccedilatildeo sexuada transitoacuteria emortal na superaccedilatildeo do narcisismo primaacuterio sustentando-se como sujeito de-sejante ao preccedilo de uma perda Por outro lado os pais apesar de fiadores daidealizaccedilatildeo narciacutesica deixam para o infante um deacutebito impossiacutevel de ser quita-do sob o jugo da proacutepria alienaccedilatildeo dos pais em seu narcisismo perdido ndash fian-ccedila apoiada naquilo que o Outro natildeo tem natildeo devolvendo este Outro por issomesmo qualquer tipo de garantia para o sujeito

Eacute nessa loacutegica que Lacan implica o sujeito no estatuto de ex-sistecircncia no

4 Eacute nesse sentido que Lacan (1964) aborda o significante como ldquoaquilo que representa o sujeitopara outro significanterdquo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

89Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

que o simboacutelico instaura a falta-a-ser intriacutenseca ao mundo do desejo e do gozoA ex-sistecircncia eacute esse ponto real do sujeito que implica um buraco no simboacutelicoagrave medida que o proacuteprio sujeito natildeo eacute um significante na cadeia ex-siste agrave ca-

deia significante e eacute determinado por esta de maneira sempre incompletaFalta-a-ser eacute assim condiccedilatildeo do ser falante agrave medida que o simboacutelico natildeopode representar plenamente o ser restando algo de irrepresentaacutevel na relaccedilatildeoentre sujeito e objeto de satisfaccedilatildeo implicada no gozo5

Do ponto de vista do real o objeto como objeto perdido na relaccedilatildeo dosujeito ao significante insiste como forccedila que resta da operaccedilatildeo de simboliza-ccedilatildeo em funccedilatildeo de sua ligaccedilatildeo com o corpo Eacute o caraacuteter insistente da pulsatildeo queimplica o real como impossiacutevel naquilo que causa o desejo ndash objeto a ndash e ao

mesmo tempo retorna sempre ao mesmo lugar como repeticcedilatildeo aleacutem do prin-ciacutepio do prazer (L983137983139983137983150 1968) Essa insistecircncia do real se caracteriza como oque insiste como resto natildeo simboacutelizaacutevel denominado por Lacan (1968) comomais-de-gozo Isso implica por um lado a renuacutencia primeira numa dimensatildeoem que a perda faz aparecer o objeto a como causa de desejo implica por outrolado uma dimensatildeo em que a proacutepria renuacutencia reforccedila e fortalece a exigecircnciasuperegoica (F983154983141983157983140 1930) Essa forma de gozo que implica a renuacutencia e aperda como marcas constitutivas do sujeito aparece na dimensatildeo de um resto

suplementar a ser recuperado ndash resto que excede ao niacutevel do imperativo supe-regoico (L983137983139983137983150 1968)

A tentativa narciacutesica de rechaccedilar a falta eacute portanto intriacutenseca agrave experiecircnciaprimaacuteria do sujeito Nesse sentido a plenitude que o discurso do Outro ldquoinven-tourdquo (Sua Majestade o Bebecirc) e ao mesmo tempo assinalou como impossibilida-de intriacutenseca agrave estrutura do simboacutelico subjuga um traccedilado paradoxal expressopelo proacuteprio mito de Narciso Entre o amor e a morte o enamoramento absolu-to de Narciso pela imagem ideal de si mesmo eacute o que o leva agrave sua proacutepria ruiacutena

A paralisaccedilatildeo eacute de tal ordem que qualquer movimento no sentido da mudanccedilatorna-se impossiacutevel o que o faz sucumbir agrave prisatildeo de seu amor miacutetico Narcisoeacute a proacutepria expressatildeo do mito e sua paralisaccedilatildeo na imagem eacute a proacutepria insiacutegniada paralisaccedilatildeo no tempo ndash condiccedilatildeo que como veremos eacute a marca da depressatildeo no circuito do desejo Nesse traccedilado eacute a denegaccedilatildeo do desejo o algoz imediatoe paradoxal da proacutepria destruiccedilatildeo de Narciso bem como a mira mortiacutefera dogozo para a qual a busca da experiecircncia do absoluto empurra

5 Com essa apreensatildeo Lacan busca a fundamentaccedilatildeo do sujeito a partir da noccedilatildeo de ex-sistecircnciaagrave medida que o sujeito eacute suposto na teoria do inconsciente natildeo eacute apreensiacutevel enquantocategoria existencial fenomecircnica mas ex-siste como elemento extriacutenseco agrave cadeia significante(L983137983139983137983150 1975)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 821

A DOR E O EXISTIR

90

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute sob essa rubrica impossiacutevel da experiecircncia narciacutesica caracteriacutestica datragicidade paradoxal que conjuga onipotecircncia e morte que a nosso ver otema do existir deve ser pensado do ponto de vista da psicanaacutelise Sendo assim

tratar o existir na cliacutenica psicanaliacutetica implica especialmente o impossiacutevel na-quilo que escapa ao fenomenicamente dado atingindo sua condiccedilatildeo de ldquomaisaleacutemrdquo caracteriacutestico da ex-sistecircncia e da insistecircncia No contexto dessas consi-deraccedilotildees pretendemos abordar o tema da depressatildeo como uma forma contem-poracircnea de enfrentamento do mal-estar implicada na condiccedilatildeo natildeo apenasexistencial do sujeito mas tambeacutem faltosa e pulsional

Essa apreensatildeo eacute imprescindiacutevel para pensarmos as formas de gozo na cliacute-nica contemporacircnea A depressatildeo ndash marca do gozo na contemporaneidade ndash

prepondera com caracteriacutesticas especiacuteficas de um modo atual de sofrimentoque natildeo representando uma entidade diagnoacutestica do ponto de vista da psica-naacutelise e inscrita no campo da neurose deve ser concebida como uma organi-zaccedilatildeo sintomaacutetica Ela aparece como resultado de uma tentativa de suturaccedilatildeoda falta como insistecircncia de um gozo que excede ao niacutevel da cadeia significan-te agrave medida que visa rechaccedilar o desejo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do

eu6 Com efeito ela natildeo se confunde com a melancolia sequer com o lutoVeremos adiante como isso se assinala conforme o exposto a seguir

III Seguindo com Freud o luto e a depressatildeo como destinospossiacuteveis agrave dor da perda

O luto como dor estruturante

A mobilizaccedilatildeo do luto face agrave perda do objeto implica forccedilas psiacutequicas quetecircm como funccedilatildeo dar um destino especiacutefico agrave relaccedilatildeo do sujeito com a falta no

Outro de modo que este mesmo sujeito sustente sua proacutepria condiccedilatildeo dese- jante Esta apreensatildeo aparece na teoria psicanaliacutetica desde o momento em queFreud situa o luto como um trabalho O luto engendra a proacutepria pulsatildeo na suacondiccedilatildeo de exigecircncia de trabalho implicado na relaccedilatildeo com o corpo (F9831549831419831579831401915) ndash forccedila que mobiliza em seu caraacuteter de insistecircncia a elaboraccedilatildeo simboacute-lica da perda objetal

Em Luto e melancolia Freud (1917) descreve as caracteriacutesticas baacutesicas doprocesso de luto Ali ele considera que no luto prevalece uma inibiccedilatildeo da ativi-

6 A especificidade do ideal do eu na depressatildeo seraacute discutida no terceiro toacutepico da presenteexposiccedilatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

91Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

dade do eu e sua absorccedilatildeo uma ldquoperda [temporaacuteria] da capacidade de adotarum novo objeto de amorrdquo (ibid p 250) ldquoEacute notaacutevel que esse penoso despazerseja aceito por noacutes como algo natural Contudo o fato eacute que quando o traba-

lho do luto se conclui o ego fica outra vez livre e desinibidordquo ( ibid p 251)O enlutado se manteacutem segundo Freud temporariamente num estado de

rebaixamento libidinal e sofrimento ante a morte ou agrave perda cujos efeitos sefazem valer pela possibilidade de finitizaccedilatildeo da dor O luto eacute evocado pelo su-

jeito no sentido de fazer com que perante a perda a dor natildeo se eternize Nessesentido o luto se configura efetivamente como um trabalho psiacutequico Ratifica--se que o trabalho do luto tem a funccedilatildeo de assimilaccedilatildeo da perda e de possibili-tar que o sujeito se separe do objeto perdido e reinvista num substituto O

enlutado martiriza-se pela perda recorda-se constantemente do perdido tra-balhando no sentido mesmo de dar a isso um estatuto efetivo de perda e assi-milaccedilatildeo simboacutelica da perda relanccedilando-se ao desejo

O luto nessa apreensatildeo constitui um doloroso caminho sobre o qual ohumano percorre a fim de assimilar a perda do objeto e a proacutepria transitorie-dade Aleacutem de proporcionar tal assimilaccedilatildeo simboacutelica o enlutado se protegede seu proacuteprio desmoronamento mediante um momento passageiro de acirra-

mento da dor psiacutequica a lembranccedila do objeto perdido o pranteamento a ini-

biccedilatildeo passageira etcAssim o luto eacute dor estruturante agrave medida que move um trabalho de ligaccedilatildeo

e integraccedilatildeo daquilo que irrompe no aparelho psiacutequico e fica momentanea-mente sem metaforizaccedilatildeo Eacute mola propulsora da simbolizaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo nar-rativa da perda mediante reconstruccedilatildeo da dor psiacutequica diante da anguacutestia queirrompe no sujeito quando este se depara com a faceta inominaacutevel do objetoperdido (cf L983137983139983137983150 1962-1963) Em outras palavras o luto tem por funccedilatildeo dar

um nome ao perdido promovendo um lugar no simboacutelico para o perdido La-

can assinala que apoacutes o processo do luto se instaura uma transformaccedilatildeo no euNesse sentido apoacutes o luto o sujeito natildeo seraacute mais o mesmo de antes o queimplica um processo de transformaccedilatildeo do eu e separaccedilatildeo do objeto perdido(L983137983139983137983150 1958-1959) Eacute precisamente na travessia do luto que o sujeito retomaa via do desejo lanccedilando-se a novas formas de existir e a novos investimentos

Veremos adiante que a abordagem do luto a partir de Freud natildeo deixaespaccedilo teoacuterico para uma confluecircncia conceitual entre o luto e a depressatildeo ndash osdois conceitos natildeo se confundem natildeo obstante se relacionarem ainda que de

maneira excludente e heterogecircnea Esses conceitos seratildeo aprofundados a se-guir de forma sustentada no pensamento de Freud e de outros autores comoSerge Leclaire os quais contribuem para o avanccedilo do tema

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1021

A DOR E O EXISTIR

92

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Com Freud aleacutem de Freud luto e depressatildeo

Podemos adentrar o tema da depressatildeo e sua relaccedilatildeo com o luto medianteo estudo de alguns aspectos relativos agrave obra freudiana na depuraccedilatildeo dos pro-blemas concernentes agrave constituiccedilatildeo do sujeito

Em Bate-se numa crianccedila Freud (1919) identificou importantes elemen-tos subjacentes aos movimentos fantasmaacuteticos infantis os quais guardadassuas especificidades revelam a circunstacircncia especiacutefica de um momento sub-

jetivo extremamente relevante no percurso de vida dos sujeitosFreud discute ali algumas peculiaridades determinantes da fantasia infan-

til que podem revelar aspectos decisivos para a compreensatildeo do modo como o

sujeito responde ao impasse da onipotecircncia narciacutesica Ele aponta que a primei-ra fase da fantasia de flagelaccedilatildeo infantil corresponde a uma imagem repetitivana qual uma crianccedila eacute espancada por um adulto ndash em geral o pai A fase sub-sequente corresponde segundo ele agrave posiccedilatildeo inconsciente na qual o sujeito se

vecirc como sendo a proacutepria crianccedila espancada em que se faz verificar um retornoao masoquismo e um sentimento de culpa remetido ao desejo incestuoso Naterceira fase a fantasia se traduz por um sentido de universalizaccedilatildeo dos perso-nagens presentes natildeo havendo nela atribuiccedilotildees identificatoacuterias mas uma

abrangecircncia que natildeo especifica os atores da cenaEste resumo serve para nos referenciarmos na discussatildeo introduzida por

Freud a respeito da posiccedilatildeo do sujeito frente ao desejo dos pais que caracterizao rechaccedilo fantasmaacutetico de sua falta Esta condiccedilatildeo introduz para o sujeito umaexperiecircncia especiacutefica concernente agrave dimensatildeo da finitude e da transitorieda-de Nossa anaacutelise se ateacutem ao primeiro momento da fantasia acerca do qualFreud aponta

() muitas crianccedilas que se acreditavam seguramente entronadasna inabalaacutevel afeiccedilatildeo dos pais foram de um soacute golpe derrubadasde todos os ceacuteus da sua onipotecircncia imaginaacuteria A ideacuteia de o paibatendo nessa odiosa crianccedila eacute portanto agradaacutevel indepen-dente de ter sido realmente visto agindo assim Significa lsquoO meupai natildeo ama essa crianccedila mas apenas a mimrdquo7 (ibid p 202)

Conforme sinalizamos anteriormente a respeito do mito de onipotecircncianarciacutesica na constituiccedilatildeo existencial do sujeito salienta-se que em sua experi-ecircncia subjetiva a crianccedila eacute sumariamente destronada de seu lugar de opulecircn-

cia no discurso dos pais logo que os mesmos apresentam-se como faltosos

7 Grifo do autor

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

93Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

especialmente a matildee para quem os investimentos primaacuterios satildeo dirigidos Taldestronamento que muitas vezes toma a fantasia de flagelaccedilatildeo infantil comosaiacuteda possiacutevel ao impasse da onipotecircncia narciacutesica pode resultar natildeo menos

numa experiecircncia de luto cujo destino proporciona ao sujeito uma relaccedilatildeopositiva com a transitoriedade e o proacuteprio desejo Nesse acircmbito a anguacutestia dosujeito diante do objeto que aiacute se desnuda como perdido e natildeo nomeado moveum trabalho de luto capaz de reinstaurar a condiccedilatildeo do desejo

O trabalho do luto natildeo eacute contudo um movimento necessaacuterio de resposta agraveperda A depressatildeo aparece como uma possibilidade de resposta que difere do lutocuja incidecircncia caracteriza uma vicissitude da crenccedila narciacutesica Diferentemente deum trabalho de luto a depressatildeo aguda constitui em sua proacutepria radicalidade a

outra face de uma mesma moeda onipotecircncia narciacutesica e estase depressivaEsse sentido de onipotecircncia perseguido sintomaticamente pelo deprimido

eacute precisamente o que Serge Leclaire (1975) denomina ldquoCrianccedila Maravilhosardquo ACrianccedila Maravilhosa eacute segundo o autor o fundamento da experiecircncia ldquoprimaacute-riardquo do narcisismo ldquoeacute uma representaccedilatildeo inconsciente primordial na qual seentrelaccedilam mais densos do que em qualquer outra os anseios nostalgias e es-peranccedilas de cada umrdquo (ibid p 11) Essa figuraccedilatildeo faz toda referecircncia agrave crenccediladefinida como aquilo que promove o elo narrativo da experiecircncia de si na cons-

tituiccedilatildeo do sujeito Tal experiecircncia contorna toda uma complexidade que Le-claire situaraacute como o paradoxo da condiccedilatildeo subjetiva se por um lado estaldquomaravilha infantilrdquo faz referecircncia ao juacutebilo da centralidade narciacutesica por outrolado remete ao inescapaacutevel da morte ndash por isso o paradoxo ndash na assunccedilatildeo jubi-losa como primeira figuraccedilatildeo estaacutetica do sentimento de onipotecircncia Eacute o mitoda onipotecircncia produzindo uma fabulaccedilatildeo o absoluto impossiacutevel desfrutadopela insiacutegnia dos pais que emprestam o simboacutelico como mateacuteria-prima e o ima-ginaacuterio como efeito jubiloso da imagem perdida Nesse acircmbito nada mais pre-

ciso do que situar a dimensatildeo intriacutenseca da morte no proacuteprio nascimento dasubjetividade no existir primeiro tal como faz Leclaire Nascer (psiquicamen-te) implica em morrer e morrer implica em nascer sob o jugo de se fazer sujei-to e sustentar o movimento desejante cuja condiccedilatildeo eacute a proacutepria morte daldquoCrianccedila Maravilhosardquo Eacute o que Leclaire demonstra em sua anaacutelise do mito in-fantil aquele mesmo referido por Freud na menccedilatildeo ao ego-ideal marcado pelaalienaccedilatildeo que exige constantemente um trabalho de luto mata-se uma crianccedila8

8 Leclaire salienta em sua obra o aspecto pulsional deste processo no qual se assinala a pulsatildeode morte como condiccedilatildeo para a mobilizaccedilatildeo do proacuteprio luto O fracasso da instauraccedilatildeo desteuacuteltimo deflagra natildeo menos a reverberaccedilatildeo paradoxal da Crianccedila Maravilhosa em sua face cruele mortiacutefera tal como veremos adiante em nossa proposta sobre a depressatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1221

A DOR E O EXISTIR

94

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute notaacutevel entretanto a dificuldade que o sujeito tem muitas vezes deldquomatarrdquo sua proacutepria crianccedila interna ou seja fazer o luto da Crianccedila Maravi-lhosa Leclaire afirma que o sujeito refugia-se na Crianccedila Maravilhosa sob o

risco paradoxal de acelerar o curso inescapaacutevel de sua proacutepria morte de suafinitude objetiva O paradoxo que aqui se instala revela que para sustentar odesejo o sujeito tem de matar natildeo apenas o Outro que o inventou mas tam-beacutem a si mesmo num suiciacutedio sem morte cujo drama enuncia a trajetoacuteria daproacutepria dor narciacutesica Ou seja o sujeito nasce mergulhado numa crenccedila narciacute-

sica sob o risco perene da morte caso natildeo renuncie a esta mesma crenccedila que ofez existente Necessidade que Leclaire situa como funccedilatildeo permanente do mo-

vimento desejante

Se a perda eacute intriacutenseca agrave proacutepria experiecircncia narciacutesica circunscrevem-sea partir disso os conceitos de luto e depressatildeo como destinos heterogecircneos aoimpasse da onipotecircncia narciacutesica e da perda objetal Os contextos especiacuteficosnos quais a depressatildeo se manifesta de maneira mais violenta e criacutetica eacute a ex-pressatildeo maacutexima do paradoxo perfilado por Leclaire ndash paradoxo situado nosliames da vida e da morte (subjetivas) A depressatildeo caracteriza-se por umasaiacuteda contradesejante e natildeo eacute como pode parecer uma aderecircncia direta agrave mor-te Ela eacute diferentemente do luto a negaccedilatildeo da finitude e do desejo que situa o

paradoxo da Crianccedila Maravilhosa Tal paradoxo pode ser constatado pela ou-tra face desta moeda a depressatildeo eacute recurso do sujeito para natildeo se deparar como transitoacuterio e para tentar uma recuperaccedilatildeo do gozo atraveacutes da estagnaccedilatildeo e daprostraccedilatildeo ndash uma parada que exige do tempo aquilo que ele natildeo pode dar

Sobre esse aspecto o pensamento de Freud eacute de extrema fecundidade Emsuas perquiriccedilotildees Freud (1915) dizia que a transitoriedade natildeo reduz mas ao

contraacuterio aumenta o valor das coisas No texto que discute a respeito da tran-sitoriedade o ponto de vista de Freud situa na ponta de sua caneta aquilo que

seu interlocutor ndash o poeta Ranier Maria Rilke ndash apresenta quando se refere aotransitoacuterio O poeta afirma que se as coisas se acabam seu valor se destituinum presente absoluto triste e traacutegico Divergindo desta concepccedilatildeo Freuddenomina tal posiccedilatildeo de ldquorevolta contra o lutordquo vinculada a um dos mais pre-ponderantes anseios narciacutesicos a exigecircncia de imortalidade

() essa exigecircncia de imortalidade por ser tatildeo obviamente umproduto dos nossos desejos natildeo pode reivindicar seu direito agraverealidade o que eacute penoso pode natildeo obstante ser verdadeiro

() Natildeo deixei poreacutem de discutir o ponto de vista pessimistado poeta de que a transitoriedade do que eacute belo implica umaperda de seu valor (ibid p 317)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

95Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Contextualizando a depressatildeo nesta temaacutetica ndash a transitoriedade ndash salien-tamos que para a crenccedila narciacutesica ndash ancoragem fundamental da depressatildeo ndash afinitude eacute incompatiacutevel ao projeto de unidade e permanecircncia no discurso da

perfeiccedilatildeo na relaccedilatildeo ao Outro No caso dessa crenccedila assumir um estatuto cen-tral e hegemocircnico na vida psiacutequica do sujeito a estagnaccedilatildeo depressiva aparececomo a via pela qual diante da perda esse mesmo sujeito nega a morte daCrianccedila Maravilhosa impedindo-se agrave transformaccedilatildeo subjetiva engendradapelo luto marcando ali a natildeo sustentaccedilatildeo do desejo Trata-se de uma tentativafracassada de rechaccedilo da falta que marca o ser como incompleto ndash rechaccedilo da falta-a-ser mediante a representaccedilatildeo primaacuteria da Crianccedila Maravilhosa cujo co-rolaacuterio eacute a depressatildeo como resultado sintomaacutetico desse fracasso

Cabe frisar assim que natildeo se trata na depressatildeo de um desdobramento doafeto de tristeza dado que este como afeto conduz o sujeito ao trabalho deluto por mais intenso que possa se apresentar A depressatildeo natildeo se reduz a umafeto trata-se de uma saiacuteda defensiva que resulta em sintomas graves de estag-naccedilatildeo perda do interesse pela vida desinvestimento conflitos com a imagemde si ndash sintomas que agraves vezes culminam em atos suicidas O deprimido ancora--se no mito da onipotecircncia do eu que natildeo passando de um lampejo de perfei-ccedilatildeo que se apaga no tempo engendra uma posiccedilatildeo inversa de silenciamento

absoluto e denegaccedilatildeo radical da divisatildeo e do desejo Caracteriza-se nisso acontrapartida oposta agravequela subjacente ao desejo este uacuteltimo assumindo sus-tentaccedilatildeo mediante o luto cuja principal funccedilatildeo eacute inscrever a contingecircncia dosujeito sua temporalidade transitoriedade e mortalidade conjugando comisso a relaccedilatildeo entre a perda e o proacuteprio desejo9

Algumas notas sobre a distinccedilatildeo entre depressatildeo e melancolia

Cabe aqui realizar uma breve distinccedilatildeo imprescindiacutevel do ponto de vistateoacuterico-cliacutenico para que natildeo incorramos em equiacutevocos que muitas vezes apa-recem no campo psicanaliacutetico Na melancolia a questatildeo apresenta-se de ma-neira distinta Nela o que ocorre eacute uma retirada da libido para o eu ndash o quediante da perda caracteriza a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto (F983154983141983157983140 1917)

9 A condiccedilatildeo aqui descrita se acha na base da experiecircncia depressiva que se intensifica na con-temporaneidade e de outros sintomas que sobrepujam as manifestaccedilotildees ldquoclaacutessicasrdquo caracteriacutes-

ticas da metaacutefora sintomaacutetica histeacuterica a qual ofertava o corpo como palco de decifraccedilatildeo dodesejo inconsciente Nesse sentido o sintoma da depressatildeo apresenta especificidades outrasque merecem todo cuidado teoacuterico-cliacutenico no que tange agraves possibilidades de saiacuteda diante dacastraccedilatildeo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do eu como veremos agrave frente

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1421

A DOR E O EXISTIR

96

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Essa identificaccedilatildeo marca a impossibilidade mesma de inscriccedilatildeo da perda agravemedida que o objeto fica ldquoinstaladordquo no eu promovendo o automassacre me-lancoacutelico Esse processo eacute engendrado pelo supereu perante o eu ideal evanes-

cente caracteriacutestico da afirmaccedilatildeo freudiana de que ldquoa sombra do objeto recaiusobre o eurdquo (ibid )

Numa apreensatildeo aprofundada Lambotte (2003) situa na constituiccedilatildeo dasubjetividade melancoacutelica uma forma de identificaccedilatildeo que denomina ldquoidentifi-

caccedilatildeo ao nadardquo subjacente agrave ldquodeserccedilatildeo do Outrordquo e agrave ldquoevanescecircncia do eu-ideal rdquoSegundo esta apreensatildeo a crianccedila em sua constituiccedilatildeo subjetiva natildeo eacute fisgadacomo objeto do discurso idealizado dos pais na constituiccedilatildeo especular O olharda matildee segundo a autora atravessa o sujeito natildeo atribuindo a ele qualquer

sentido de existecircncia ou predicaccedilatildeo deflagrando para ele uma existecircncia nonada Desertado o Outro natildeo inclui o sujeito na funccedilatildeo do desejo mas num

vazio sem precedentes que instaura a Identificaccedilatildeo ao nada (ibid) O melancoacute-lico denuncia de maneira violenta e mesmo insuportaacutevel a sua proacutepria insus-tentabilidade existencial Natildeo atingido pela idealizaccedilatildeo narciacutesica que de outrasorte o colocaria numa posiccedilatildeo de centralidade (eu ideal) o eu se precipitadestituiacutedo contudo da ilusatildeo de sua proacutepria onipotecircncia Natildeo houve sequer aconstituiccedilatildeo do objeto como ldquoperdidordquo (H983137983155983155983151983157983150 2002) ndash natildeo havendo reco-

nhecimento ou registro da perda que promoveria a inscriccedilatildeo do sujeito nocampo do desejo Ali a idealizaccedilatildeo se constituiu no ponto de evanescecircncia doolhar da matildee o qual se dirige a um modelo cuja exterioridade representa umideal inacessiacutevel para o sujeito Segundo essa loacutegica o sujeito eacute lanccedilado parafora de qualquer representaccedilatildeo jubilosa caracteriacutestica da formaccedilatildeo primaacuteria dacrenccedila narciacutesica (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Sem chances de alcance o ideal se tornaa proacutepria raiz do aviltamento superegoico Nesse sentido Lambotte fala numaldquoruptura do transitivismo especular que chega ao isolamento e ao reforccedilo do

ideal do eu agraves expensas de um eu-ideal que natildeo pocircde elaborar-se na origemrdquo(L983137983149983138983151983156983156983141 op cit p 224)

Sendo assim o que vai se assinalar na melancolia eacute um ideal do eu riacutegidoateacute as uacuteltimas consequecircncias fortalecido por um supereu capaz de estraccedilalharo eu melancoacutelico A evanescecircncia do eu ideal na melancolia se encontra na basedo massacre superegoacuteico cujo teor discursivo aponta para ldquoeu natildeo valho nadardquoldquoeu natildeo sou nadardquo (L983137983149983138983151983156983156983141 op cit )

Na depressatildeo diferentemente o sujeito reconhece a perda do objeto con-

tudo refugia-se na crenccedila narciacutesica num recuo defensivo que nega qualquerpossibilidade de transformaccedilatildeo ou de se lanccedilar ao ideal do eu Sobre isso cabelembrar que a depressatildeo manifesta uma forma de idealizaccedilatildeo cujo registro

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

97Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

acha-se fixado ao eu ideal da Crianccedila Maravilhosa O que vai distinguir essasformas de sofrimento eacute que a evanescecircncia na subjetivaccedilatildeo dos pacientes depri-

midos natildeo eacute do eu ideal mas do ideal do eu10

Podemos assinalar nesse diferencial o cerne da idealizaccedilatildeo que marca es-sas duas manifestaccedilotildees cliacutenicas na melancolia constata-se a evanescecircncia doeu ideal que abre caminho para a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto na depres-satildeo a evanescecircncia do ideal do eu assinalando-se o recuo para a crenccedila narciacute-sica que passaraacute a funcionar como um sintoma

Como ldquoevanescecircncia do ideal do eurdquo define-se aqui uma fugacidade noancoramento identificatoacuterio edipiano cuja funccedilatildeo seria de permitir ao sujeitoafastar-se da crenccedila narciacutesica e reaparecer transformado apoacutes o processo de

luto sustentando o desejo e lanccedilando-se ao futuro Nesses termos natildeo eacute a fi-gura do Pai o que entra no lugar do ideal do eu ancorado numa imago assimeacute-trica que pudesse engendrar uma saiacuteda identificatoacuteria ndash tal como Freud(1923a) constatava na cliacutenica de sua eacutepoca O que entra no lugar do ideal do eueacute a proacutepria crenccedila narciacutesica funcionando ali como sintoma O deprimido en-contra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num processo psiacutequicode integraccedilatildeo que o filiaria no caso do luto a uma accedilatildeo descolada da idealiza-ccedilatildeo narciacutesica O que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos eacute a pro-

jeccedilatildeo no futuro de um eu ideal impossiacutevel de se realizar ndash e isso quando haacuteuma projeccedilatildeo no futuro Sem estabelecimento de qualquer construccedilatildeo narrati-

va a partir da qual o sujeito dispor-se-ia a agir a idealizaccedilatildeo de si mesmo nofuturo eacute similar agrave proacutepria idealizaccedilatildeo de lsquoSua Majestade o Bebecircrsquo (P9831459831509831449831419831459831549831512005) Ela eacute de tal ordem que o sujeito deprime como expressatildeo de seu proacutepriofracasso narciacutesico A imagem de si no presente eacute sempre insuficiente perante aexigecircncia do eu-ideal ldquoabsolutordquo e ldquoperdidordquo Tal insuficiecircncia beira numa si-milaridade inversa o mesmo absoluto irredutiacutevel da Crianccedila Maravilhosa

(Q983157983145983150983156983141983148983148983137 op cit ) Nesse niacutevel a natildeo instauraccedilatildeo do luto eacute situada no mes-mo ponto de evanescecircncia do ideal do eu que impede ao sujeito o afastamentoda crenccedila narciacutesica e a proacutepria ldquomorterdquo da Crianccedila Maravilhosa

10 O ideal do eu eacute o ponto de ancoragem identificatoacuteria que afasta a crianccedila do narcisismo

primaacuterio (F983154983141983157983140 1914) e consequentemente da crenccedila narciacutesica Eacute a partir da identificaccedilatildeoao ideal do eu que o sujeito internaliza os traccedilos do pai na dialeacutetica do desejo frente agrave condiccedilatildeoda falta no Outro O ideal do eu aparece como uma saiacuteda identificatoacuteria proporcionando amobilizaccedilatildeo do luto e o afastamento da fantasia primaacuteria da onipotecircncia narciacutesica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 7: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

89Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

que o simboacutelico instaura a falta-a-ser intriacutenseca ao mundo do desejo e do gozoA ex-sistecircncia eacute esse ponto real do sujeito que implica um buraco no simboacutelicoagrave medida que o proacuteprio sujeito natildeo eacute um significante na cadeia ex-siste agrave ca-

deia significante e eacute determinado por esta de maneira sempre incompletaFalta-a-ser eacute assim condiccedilatildeo do ser falante agrave medida que o simboacutelico natildeopode representar plenamente o ser restando algo de irrepresentaacutevel na relaccedilatildeoentre sujeito e objeto de satisfaccedilatildeo implicada no gozo5

Do ponto de vista do real o objeto como objeto perdido na relaccedilatildeo dosujeito ao significante insiste como forccedila que resta da operaccedilatildeo de simboliza-ccedilatildeo em funccedilatildeo de sua ligaccedilatildeo com o corpo Eacute o caraacuteter insistente da pulsatildeo queimplica o real como impossiacutevel naquilo que causa o desejo ndash objeto a ndash e ao

mesmo tempo retorna sempre ao mesmo lugar como repeticcedilatildeo aleacutem do prin-ciacutepio do prazer (L983137983139983137983150 1968) Essa insistecircncia do real se caracteriza como oque insiste como resto natildeo simboacutelizaacutevel denominado por Lacan (1968) comomais-de-gozo Isso implica por um lado a renuacutencia primeira numa dimensatildeoem que a perda faz aparecer o objeto a como causa de desejo implica por outrolado uma dimensatildeo em que a proacutepria renuacutencia reforccedila e fortalece a exigecircnciasuperegoica (F983154983141983157983140 1930) Essa forma de gozo que implica a renuacutencia e aperda como marcas constitutivas do sujeito aparece na dimensatildeo de um resto

suplementar a ser recuperado ndash resto que excede ao niacutevel do imperativo supe-regoico (L983137983139983137983150 1968)

A tentativa narciacutesica de rechaccedilar a falta eacute portanto intriacutenseca agrave experiecircnciaprimaacuteria do sujeito Nesse sentido a plenitude que o discurso do Outro ldquoinven-tourdquo (Sua Majestade o Bebecirc) e ao mesmo tempo assinalou como impossibilida-de intriacutenseca agrave estrutura do simboacutelico subjuga um traccedilado paradoxal expressopelo proacuteprio mito de Narciso Entre o amor e a morte o enamoramento absolu-to de Narciso pela imagem ideal de si mesmo eacute o que o leva agrave sua proacutepria ruiacutena

A paralisaccedilatildeo eacute de tal ordem que qualquer movimento no sentido da mudanccedilatorna-se impossiacutevel o que o faz sucumbir agrave prisatildeo de seu amor miacutetico Narcisoeacute a proacutepria expressatildeo do mito e sua paralisaccedilatildeo na imagem eacute a proacutepria insiacutegniada paralisaccedilatildeo no tempo ndash condiccedilatildeo que como veremos eacute a marca da depressatildeo no circuito do desejo Nesse traccedilado eacute a denegaccedilatildeo do desejo o algoz imediatoe paradoxal da proacutepria destruiccedilatildeo de Narciso bem como a mira mortiacutefera dogozo para a qual a busca da experiecircncia do absoluto empurra

5 Com essa apreensatildeo Lacan busca a fundamentaccedilatildeo do sujeito a partir da noccedilatildeo de ex-sistecircnciaagrave medida que o sujeito eacute suposto na teoria do inconsciente natildeo eacute apreensiacutevel enquantocategoria existencial fenomecircnica mas ex-siste como elemento extriacutenseco agrave cadeia significante(L983137983139983137983150 1975)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 821

A DOR E O EXISTIR

90

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute sob essa rubrica impossiacutevel da experiecircncia narciacutesica caracteriacutestica datragicidade paradoxal que conjuga onipotecircncia e morte que a nosso ver otema do existir deve ser pensado do ponto de vista da psicanaacutelise Sendo assim

tratar o existir na cliacutenica psicanaliacutetica implica especialmente o impossiacutevel na-quilo que escapa ao fenomenicamente dado atingindo sua condiccedilatildeo de ldquomaisaleacutemrdquo caracteriacutestico da ex-sistecircncia e da insistecircncia No contexto dessas consi-deraccedilotildees pretendemos abordar o tema da depressatildeo como uma forma contem-poracircnea de enfrentamento do mal-estar implicada na condiccedilatildeo natildeo apenasexistencial do sujeito mas tambeacutem faltosa e pulsional

Essa apreensatildeo eacute imprescindiacutevel para pensarmos as formas de gozo na cliacute-nica contemporacircnea A depressatildeo ndash marca do gozo na contemporaneidade ndash

prepondera com caracteriacutesticas especiacuteficas de um modo atual de sofrimentoque natildeo representando uma entidade diagnoacutestica do ponto de vista da psica-naacutelise e inscrita no campo da neurose deve ser concebida como uma organi-zaccedilatildeo sintomaacutetica Ela aparece como resultado de uma tentativa de suturaccedilatildeoda falta como insistecircncia de um gozo que excede ao niacutevel da cadeia significan-te agrave medida que visa rechaccedilar o desejo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do

eu6 Com efeito ela natildeo se confunde com a melancolia sequer com o lutoVeremos adiante como isso se assinala conforme o exposto a seguir

III Seguindo com Freud o luto e a depressatildeo como destinospossiacuteveis agrave dor da perda

O luto como dor estruturante

A mobilizaccedilatildeo do luto face agrave perda do objeto implica forccedilas psiacutequicas quetecircm como funccedilatildeo dar um destino especiacutefico agrave relaccedilatildeo do sujeito com a falta no

Outro de modo que este mesmo sujeito sustente sua proacutepria condiccedilatildeo dese- jante Esta apreensatildeo aparece na teoria psicanaliacutetica desde o momento em queFreud situa o luto como um trabalho O luto engendra a proacutepria pulsatildeo na suacondiccedilatildeo de exigecircncia de trabalho implicado na relaccedilatildeo com o corpo (F9831549831419831579831401915) ndash forccedila que mobiliza em seu caraacuteter de insistecircncia a elaboraccedilatildeo simboacute-lica da perda objetal

Em Luto e melancolia Freud (1917) descreve as caracteriacutesticas baacutesicas doprocesso de luto Ali ele considera que no luto prevalece uma inibiccedilatildeo da ativi-

6 A especificidade do ideal do eu na depressatildeo seraacute discutida no terceiro toacutepico da presenteexposiccedilatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

91Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

dade do eu e sua absorccedilatildeo uma ldquoperda [temporaacuteria] da capacidade de adotarum novo objeto de amorrdquo (ibid p 250) ldquoEacute notaacutevel que esse penoso despazerseja aceito por noacutes como algo natural Contudo o fato eacute que quando o traba-

lho do luto se conclui o ego fica outra vez livre e desinibidordquo ( ibid p 251)O enlutado se manteacutem segundo Freud temporariamente num estado de

rebaixamento libidinal e sofrimento ante a morte ou agrave perda cujos efeitos sefazem valer pela possibilidade de finitizaccedilatildeo da dor O luto eacute evocado pelo su-

jeito no sentido de fazer com que perante a perda a dor natildeo se eternize Nessesentido o luto se configura efetivamente como um trabalho psiacutequico Ratifica--se que o trabalho do luto tem a funccedilatildeo de assimilaccedilatildeo da perda e de possibili-tar que o sujeito se separe do objeto perdido e reinvista num substituto O

enlutado martiriza-se pela perda recorda-se constantemente do perdido tra-balhando no sentido mesmo de dar a isso um estatuto efetivo de perda e assi-milaccedilatildeo simboacutelica da perda relanccedilando-se ao desejo

O luto nessa apreensatildeo constitui um doloroso caminho sobre o qual ohumano percorre a fim de assimilar a perda do objeto e a proacutepria transitorie-dade Aleacutem de proporcionar tal assimilaccedilatildeo simboacutelica o enlutado se protegede seu proacuteprio desmoronamento mediante um momento passageiro de acirra-

mento da dor psiacutequica a lembranccedila do objeto perdido o pranteamento a ini-

biccedilatildeo passageira etcAssim o luto eacute dor estruturante agrave medida que move um trabalho de ligaccedilatildeo

e integraccedilatildeo daquilo que irrompe no aparelho psiacutequico e fica momentanea-mente sem metaforizaccedilatildeo Eacute mola propulsora da simbolizaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo nar-rativa da perda mediante reconstruccedilatildeo da dor psiacutequica diante da anguacutestia queirrompe no sujeito quando este se depara com a faceta inominaacutevel do objetoperdido (cf L983137983139983137983150 1962-1963) Em outras palavras o luto tem por funccedilatildeo dar

um nome ao perdido promovendo um lugar no simboacutelico para o perdido La-

can assinala que apoacutes o processo do luto se instaura uma transformaccedilatildeo no euNesse sentido apoacutes o luto o sujeito natildeo seraacute mais o mesmo de antes o queimplica um processo de transformaccedilatildeo do eu e separaccedilatildeo do objeto perdido(L983137983139983137983150 1958-1959) Eacute precisamente na travessia do luto que o sujeito retomaa via do desejo lanccedilando-se a novas formas de existir e a novos investimentos

Veremos adiante que a abordagem do luto a partir de Freud natildeo deixaespaccedilo teoacuterico para uma confluecircncia conceitual entre o luto e a depressatildeo ndash osdois conceitos natildeo se confundem natildeo obstante se relacionarem ainda que de

maneira excludente e heterogecircnea Esses conceitos seratildeo aprofundados a se-guir de forma sustentada no pensamento de Freud e de outros autores comoSerge Leclaire os quais contribuem para o avanccedilo do tema

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1021

A DOR E O EXISTIR

92

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Com Freud aleacutem de Freud luto e depressatildeo

Podemos adentrar o tema da depressatildeo e sua relaccedilatildeo com o luto medianteo estudo de alguns aspectos relativos agrave obra freudiana na depuraccedilatildeo dos pro-blemas concernentes agrave constituiccedilatildeo do sujeito

Em Bate-se numa crianccedila Freud (1919) identificou importantes elemen-tos subjacentes aos movimentos fantasmaacuteticos infantis os quais guardadassuas especificidades revelam a circunstacircncia especiacutefica de um momento sub-

jetivo extremamente relevante no percurso de vida dos sujeitosFreud discute ali algumas peculiaridades determinantes da fantasia infan-

til que podem revelar aspectos decisivos para a compreensatildeo do modo como o

sujeito responde ao impasse da onipotecircncia narciacutesica Ele aponta que a primei-ra fase da fantasia de flagelaccedilatildeo infantil corresponde a uma imagem repetitivana qual uma crianccedila eacute espancada por um adulto ndash em geral o pai A fase sub-sequente corresponde segundo ele agrave posiccedilatildeo inconsciente na qual o sujeito se

vecirc como sendo a proacutepria crianccedila espancada em que se faz verificar um retornoao masoquismo e um sentimento de culpa remetido ao desejo incestuoso Naterceira fase a fantasia se traduz por um sentido de universalizaccedilatildeo dos perso-nagens presentes natildeo havendo nela atribuiccedilotildees identificatoacuterias mas uma

abrangecircncia que natildeo especifica os atores da cenaEste resumo serve para nos referenciarmos na discussatildeo introduzida por

Freud a respeito da posiccedilatildeo do sujeito frente ao desejo dos pais que caracterizao rechaccedilo fantasmaacutetico de sua falta Esta condiccedilatildeo introduz para o sujeito umaexperiecircncia especiacutefica concernente agrave dimensatildeo da finitude e da transitorieda-de Nossa anaacutelise se ateacutem ao primeiro momento da fantasia acerca do qualFreud aponta

() muitas crianccedilas que se acreditavam seguramente entronadasna inabalaacutevel afeiccedilatildeo dos pais foram de um soacute golpe derrubadasde todos os ceacuteus da sua onipotecircncia imaginaacuteria A ideacuteia de o paibatendo nessa odiosa crianccedila eacute portanto agradaacutevel indepen-dente de ter sido realmente visto agindo assim Significa lsquoO meupai natildeo ama essa crianccedila mas apenas a mimrdquo7 (ibid p 202)

Conforme sinalizamos anteriormente a respeito do mito de onipotecircncianarciacutesica na constituiccedilatildeo existencial do sujeito salienta-se que em sua experi-ecircncia subjetiva a crianccedila eacute sumariamente destronada de seu lugar de opulecircn-

cia no discurso dos pais logo que os mesmos apresentam-se como faltosos

7 Grifo do autor

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

93Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

especialmente a matildee para quem os investimentos primaacuterios satildeo dirigidos Taldestronamento que muitas vezes toma a fantasia de flagelaccedilatildeo infantil comosaiacuteda possiacutevel ao impasse da onipotecircncia narciacutesica pode resultar natildeo menos

numa experiecircncia de luto cujo destino proporciona ao sujeito uma relaccedilatildeopositiva com a transitoriedade e o proacuteprio desejo Nesse acircmbito a anguacutestia dosujeito diante do objeto que aiacute se desnuda como perdido e natildeo nomeado moveum trabalho de luto capaz de reinstaurar a condiccedilatildeo do desejo

O trabalho do luto natildeo eacute contudo um movimento necessaacuterio de resposta agraveperda A depressatildeo aparece como uma possibilidade de resposta que difere do lutocuja incidecircncia caracteriza uma vicissitude da crenccedila narciacutesica Diferentemente deum trabalho de luto a depressatildeo aguda constitui em sua proacutepria radicalidade a

outra face de uma mesma moeda onipotecircncia narciacutesica e estase depressivaEsse sentido de onipotecircncia perseguido sintomaticamente pelo deprimido

eacute precisamente o que Serge Leclaire (1975) denomina ldquoCrianccedila Maravilhosardquo ACrianccedila Maravilhosa eacute segundo o autor o fundamento da experiecircncia ldquoprimaacute-riardquo do narcisismo ldquoeacute uma representaccedilatildeo inconsciente primordial na qual seentrelaccedilam mais densos do que em qualquer outra os anseios nostalgias e es-peranccedilas de cada umrdquo (ibid p 11) Essa figuraccedilatildeo faz toda referecircncia agrave crenccediladefinida como aquilo que promove o elo narrativo da experiecircncia de si na cons-

tituiccedilatildeo do sujeito Tal experiecircncia contorna toda uma complexidade que Le-claire situaraacute como o paradoxo da condiccedilatildeo subjetiva se por um lado estaldquomaravilha infantilrdquo faz referecircncia ao juacutebilo da centralidade narciacutesica por outrolado remete ao inescapaacutevel da morte ndash por isso o paradoxo ndash na assunccedilatildeo jubi-losa como primeira figuraccedilatildeo estaacutetica do sentimento de onipotecircncia Eacute o mitoda onipotecircncia produzindo uma fabulaccedilatildeo o absoluto impossiacutevel desfrutadopela insiacutegnia dos pais que emprestam o simboacutelico como mateacuteria-prima e o ima-ginaacuterio como efeito jubiloso da imagem perdida Nesse acircmbito nada mais pre-

ciso do que situar a dimensatildeo intriacutenseca da morte no proacuteprio nascimento dasubjetividade no existir primeiro tal como faz Leclaire Nascer (psiquicamen-te) implica em morrer e morrer implica em nascer sob o jugo de se fazer sujei-to e sustentar o movimento desejante cuja condiccedilatildeo eacute a proacutepria morte daldquoCrianccedila Maravilhosardquo Eacute o que Leclaire demonstra em sua anaacutelise do mito in-fantil aquele mesmo referido por Freud na menccedilatildeo ao ego-ideal marcado pelaalienaccedilatildeo que exige constantemente um trabalho de luto mata-se uma crianccedila8

8 Leclaire salienta em sua obra o aspecto pulsional deste processo no qual se assinala a pulsatildeode morte como condiccedilatildeo para a mobilizaccedilatildeo do proacuteprio luto O fracasso da instauraccedilatildeo desteuacuteltimo deflagra natildeo menos a reverberaccedilatildeo paradoxal da Crianccedila Maravilhosa em sua face cruele mortiacutefera tal como veremos adiante em nossa proposta sobre a depressatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1221

A DOR E O EXISTIR

94

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute notaacutevel entretanto a dificuldade que o sujeito tem muitas vezes deldquomatarrdquo sua proacutepria crianccedila interna ou seja fazer o luto da Crianccedila Maravi-lhosa Leclaire afirma que o sujeito refugia-se na Crianccedila Maravilhosa sob o

risco paradoxal de acelerar o curso inescapaacutevel de sua proacutepria morte de suafinitude objetiva O paradoxo que aqui se instala revela que para sustentar odesejo o sujeito tem de matar natildeo apenas o Outro que o inventou mas tam-beacutem a si mesmo num suiciacutedio sem morte cujo drama enuncia a trajetoacuteria daproacutepria dor narciacutesica Ou seja o sujeito nasce mergulhado numa crenccedila narciacute-

sica sob o risco perene da morte caso natildeo renuncie a esta mesma crenccedila que ofez existente Necessidade que Leclaire situa como funccedilatildeo permanente do mo-

vimento desejante

Se a perda eacute intriacutenseca agrave proacutepria experiecircncia narciacutesica circunscrevem-sea partir disso os conceitos de luto e depressatildeo como destinos heterogecircneos aoimpasse da onipotecircncia narciacutesica e da perda objetal Os contextos especiacuteficosnos quais a depressatildeo se manifesta de maneira mais violenta e criacutetica eacute a ex-pressatildeo maacutexima do paradoxo perfilado por Leclaire ndash paradoxo situado nosliames da vida e da morte (subjetivas) A depressatildeo caracteriza-se por umasaiacuteda contradesejante e natildeo eacute como pode parecer uma aderecircncia direta agrave mor-te Ela eacute diferentemente do luto a negaccedilatildeo da finitude e do desejo que situa o

paradoxo da Crianccedila Maravilhosa Tal paradoxo pode ser constatado pela ou-tra face desta moeda a depressatildeo eacute recurso do sujeito para natildeo se deparar como transitoacuterio e para tentar uma recuperaccedilatildeo do gozo atraveacutes da estagnaccedilatildeo e daprostraccedilatildeo ndash uma parada que exige do tempo aquilo que ele natildeo pode dar

Sobre esse aspecto o pensamento de Freud eacute de extrema fecundidade Emsuas perquiriccedilotildees Freud (1915) dizia que a transitoriedade natildeo reduz mas ao

contraacuterio aumenta o valor das coisas No texto que discute a respeito da tran-sitoriedade o ponto de vista de Freud situa na ponta de sua caneta aquilo que

seu interlocutor ndash o poeta Ranier Maria Rilke ndash apresenta quando se refere aotransitoacuterio O poeta afirma que se as coisas se acabam seu valor se destituinum presente absoluto triste e traacutegico Divergindo desta concepccedilatildeo Freuddenomina tal posiccedilatildeo de ldquorevolta contra o lutordquo vinculada a um dos mais pre-ponderantes anseios narciacutesicos a exigecircncia de imortalidade

() essa exigecircncia de imortalidade por ser tatildeo obviamente umproduto dos nossos desejos natildeo pode reivindicar seu direito agraverealidade o que eacute penoso pode natildeo obstante ser verdadeiro

() Natildeo deixei poreacutem de discutir o ponto de vista pessimistado poeta de que a transitoriedade do que eacute belo implica umaperda de seu valor (ibid p 317)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

95Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Contextualizando a depressatildeo nesta temaacutetica ndash a transitoriedade ndash salien-tamos que para a crenccedila narciacutesica ndash ancoragem fundamental da depressatildeo ndash afinitude eacute incompatiacutevel ao projeto de unidade e permanecircncia no discurso da

perfeiccedilatildeo na relaccedilatildeo ao Outro No caso dessa crenccedila assumir um estatuto cen-tral e hegemocircnico na vida psiacutequica do sujeito a estagnaccedilatildeo depressiva aparececomo a via pela qual diante da perda esse mesmo sujeito nega a morte daCrianccedila Maravilhosa impedindo-se agrave transformaccedilatildeo subjetiva engendradapelo luto marcando ali a natildeo sustentaccedilatildeo do desejo Trata-se de uma tentativafracassada de rechaccedilo da falta que marca o ser como incompleto ndash rechaccedilo da falta-a-ser mediante a representaccedilatildeo primaacuteria da Crianccedila Maravilhosa cujo co-rolaacuterio eacute a depressatildeo como resultado sintomaacutetico desse fracasso

Cabe frisar assim que natildeo se trata na depressatildeo de um desdobramento doafeto de tristeza dado que este como afeto conduz o sujeito ao trabalho deluto por mais intenso que possa se apresentar A depressatildeo natildeo se reduz a umafeto trata-se de uma saiacuteda defensiva que resulta em sintomas graves de estag-naccedilatildeo perda do interesse pela vida desinvestimento conflitos com a imagemde si ndash sintomas que agraves vezes culminam em atos suicidas O deprimido ancora--se no mito da onipotecircncia do eu que natildeo passando de um lampejo de perfei-ccedilatildeo que se apaga no tempo engendra uma posiccedilatildeo inversa de silenciamento

absoluto e denegaccedilatildeo radical da divisatildeo e do desejo Caracteriza-se nisso acontrapartida oposta agravequela subjacente ao desejo este uacuteltimo assumindo sus-tentaccedilatildeo mediante o luto cuja principal funccedilatildeo eacute inscrever a contingecircncia dosujeito sua temporalidade transitoriedade e mortalidade conjugando comisso a relaccedilatildeo entre a perda e o proacuteprio desejo9

Algumas notas sobre a distinccedilatildeo entre depressatildeo e melancolia

Cabe aqui realizar uma breve distinccedilatildeo imprescindiacutevel do ponto de vistateoacuterico-cliacutenico para que natildeo incorramos em equiacutevocos que muitas vezes apa-recem no campo psicanaliacutetico Na melancolia a questatildeo apresenta-se de ma-neira distinta Nela o que ocorre eacute uma retirada da libido para o eu ndash o quediante da perda caracteriza a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto (F983154983141983157983140 1917)

9 A condiccedilatildeo aqui descrita se acha na base da experiecircncia depressiva que se intensifica na con-temporaneidade e de outros sintomas que sobrepujam as manifestaccedilotildees ldquoclaacutessicasrdquo caracteriacutes-

ticas da metaacutefora sintomaacutetica histeacuterica a qual ofertava o corpo como palco de decifraccedilatildeo dodesejo inconsciente Nesse sentido o sintoma da depressatildeo apresenta especificidades outrasque merecem todo cuidado teoacuterico-cliacutenico no que tange agraves possibilidades de saiacuteda diante dacastraccedilatildeo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do eu como veremos agrave frente

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1421

A DOR E O EXISTIR

96

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Essa identificaccedilatildeo marca a impossibilidade mesma de inscriccedilatildeo da perda agravemedida que o objeto fica ldquoinstaladordquo no eu promovendo o automassacre me-lancoacutelico Esse processo eacute engendrado pelo supereu perante o eu ideal evanes-

cente caracteriacutestico da afirmaccedilatildeo freudiana de que ldquoa sombra do objeto recaiusobre o eurdquo (ibid )

Numa apreensatildeo aprofundada Lambotte (2003) situa na constituiccedilatildeo dasubjetividade melancoacutelica uma forma de identificaccedilatildeo que denomina ldquoidentifi-

caccedilatildeo ao nadardquo subjacente agrave ldquodeserccedilatildeo do Outrordquo e agrave ldquoevanescecircncia do eu-ideal rdquoSegundo esta apreensatildeo a crianccedila em sua constituiccedilatildeo subjetiva natildeo eacute fisgadacomo objeto do discurso idealizado dos pais na constituiccedilatildeo especular O olharda matildee segundo a autora atravessa o sujeito natildeo atribuindo a ele qualquer

sentido de existecircncia ou predicaccedilatildeo deflagrando para ele uma existecircncia nonada Desertado o Outro natildeo inclui o sujeito na funccedilatildeo do desejo mas num

vazio sem precedentes que instaura a Identificaccedilatildeo ao nada (ibid) O melancoacute-lico denuncia de maneira violenta e mesmo insuportaacutevel a sua proacutepria insus-tentabilidade existencial Natildeo atingido pela idealizaccedilatildeo narciacutesica que de outrasorte o colocaria numa posiccedilatildeo de centralidade (eu ideal) o eu se precipitadestituiacutedo contudo da ilusatildeo de sua proacutepria onipotecircncia Natildeo houve sequer aconstituiccedilatildeo do objeto como ldquoperdidordquo (H983137983155983155983151983157983150 2002) ndash natildeo havendo reco-

nhecimento ou registro da perda que promoveria a inscriccedilatildeo do sujeito nocampo do desejo Ali a idealizaccedilatildeo se constituiu no ponto de evanescecircncia doolhar da matildee o qual se dirige a um modelo cuja exterioridade representa umideal inacessiacutevel para o sujeito Segundo essa loacutegica o sujeito eacute lanccedilado parafora de qualquer representaccedilatildeo jubilosa caracteriacutestica da formaccedilatildeo primaacuteria dacrenccedila narciacutesica (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Sem chances de alcance o ideal se tornaa proacutepria raiz do aviltamento superegoico Nesse sentido Lambotte fala numaldquoruptura do transitivismo especular que chega ao isolamento e ao reforccedilo do

ideal do eu agraves expensas de um eu-ideal que natildeo pocircde elaborar-se na origemrdquo(L983137983149983138983151983156983156983141 op cit p 224)

Sendo assim o que vai se assinalar na melancolia eacute um ideal do eu riacutegidoateacute as uacuteltimas consequecircncias fortalecido por um supereu capaz de estraccedilalharo eu melancoacutelico A evanescecircncia do eu ideal na melancolia se encontra na basedo massacre superegoacuteico cujo teor discursivo aponta para ldquoeu natildeo valho nadardquoldquoeu natildeo sou nadardquo (L983137983149983138983151983156983156983141 op cit )

Na depressatildeo diferentemente o sujeito reconhece a perda do objeto con-

tudo refugia-se na crenccedila narciacutesica num recuo defensivo que nega qualquerpossibilidade de transformaccedilatildeo ou de se lanccedilar ao ideal do eu Sobre isso cabelembrar que a depressatildeo manifesta uma forma de idealizaccedilatildeo cujo registro

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

97Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

acha-se fixado ao eu ideal da Crianccedila Maravilhosa O que vai distinguir essasformas de sofrimento eacute que a evanescecircncia na subjetivaccedilatildeo dos pacientes depri-

midos natildeo eacute do eu ideal mas do ideal do eu10

Podemos assinalar nesse diferencial o cerne da idealizaccedilatildeo que marca es-sas duas manifestaccedilotildees cliacutenicas na melancolia constata-se a evanescecircncia doeu ideal que abre caminho para a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto na depres-satildeo a evanescecircncia do ideal do eu assinalando-se o recuo para a crenccedila narciacute-sica que passaraacute a funcionar como um sintoma

Como ldquoevanescecircncia do ideal do eurdquo define-se aqui uma fugacidade noancoramento identificatoacuterio edipiano cuja funccedilatildeo seria de permitir ao sujeitoafastar-se da crenccedila narciacutesica e reaparecer transformado apoacutes o processo de

luto sustentando o desejo e lanccedilando-se ao futuro Nesses termos natildeo eacute a fi-gura do Pai o que entra no lugar do ideal do eu ancorado numa imago assimeacute-trica que pudesse engendrar uma saiacuteda identificatoacuteria ndash tal como Freud(1923a) constatava na cliacutenica de sua eacutepoca O que entra no lugar do ideal do eueacute a proacutepria crenccedila narciacutesica funcionando ali como sintoma O deprimido en-contra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num processo psiacutequicode integraccedilatildeo que o filiaria no caso do luto a uma accedilatildeo descolada da idealiza-ccedilatildeo narciacutesica O que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos eacute a pro-

jeccedilatildeo no futuro de um eu ideal impossiacutevel de se realizar ndash e isso quando haacuteuma projeccedilatildeo no futuro Sem estabelecimento de qualquer construccedilatildeo narrati-

va a partir da qual o sujeito dispor-se-ia a agir a idealizaccedilatildeo de si mesmo nofuturo eacute similar agrave proacutepria idealizaccedilatildeo de lsquoSua Majestade o Bebecircrsquo (P9831459831509831449831419831459831549831512005) Ela eacute de tal ordem que o sujeito deprime como expressatildeo de seu proacutepriofracasso narciacutesico A imagem de si no presente eacute sempre insuficiente perante aexigecircncia do eu-ideal ldquoabsolutordquo e ldquoperdidordquo Tal insuficiecircncia beira numa si-milaridade inversa o mesmo absoluto irredutiacutevel da Crianccedila Maravilhosa

(Q983157983145983150983156983141983148983148983137 op cit ) Nesse niacutevel a natildeo instauraccedilatildeo do luto eacute situada no mes-mo ponto de evanescecircncia do ideal do eu que impede ao sujeito o afastamentoda crenccedila narciacutesica e a proacutepria ldquomorterdquo da Crianccedila Maravilhosa

10 O ideal do eu eacute o ponto de ancoragem identificatoacuteria que afasta a crianccedila do narcisismo

primaacuterio (F983154983141983157983140 1914) e consequentemente da crenccedila narciacutesica Eacute a partir da identificaccedilatildeoao ideal do eu que o sujeito internaliza os traccedilos do pai na dialeacutetica do desejo frente agrave condiccedilatildeoda falta no Outro O ideal do eu aparece como uma saiacuteda identificatoacuteria proporcionando amobilizaccedilatildeo do luto e o afastamento da fantasia primaacuteria da onipotecircncia narciacutesica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 8: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 821

A DOR E O EXISTIR

90

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute sob essa rubrica impossiacutevel da experiecircncia narciacutesica caracteriacutestica datragicidade paradoxal que conjuga onipotecircncia e morte que a nosso ver otema do existir deve ser pensado do ponto de vista da psicanaacutelise Sendo assim

tratar o existir na cliacutenica psicanaliacutetica implica especialmente o impossiacutevel na-quilo que escapa ao fenomenicamente dado atingindo sua condiccedilatildeo de ldquomaisaleacutemrdquo caracteriacutestico da ex-sistecircncia e da insistecircncia No contexto dessas consi-deraccedilotildees pretendemos abordar o tema da depressatildeo como uma forma contem-poracircnea de enfrentamento do mal-estar implicada na condiccedilatildeo natildeo apenasexistencial do sujeito mas tambeacutem faltosa e pulsional

Essa apreensatildeo eacute imprescindiacutevel para pensarmos as formas de gozo na cliacute-nica contemporacircnea A depressatildeo ndash marca do gozo na contemporaneidade ndash

prepondera com caracteriacutesticas especiacuteficas de um modo atual de sofrimentoque natildeo representando uma entidade diagnoacutestica do ponto de vista da psica-naacutelise e inscrita no campo da neurose deve ser concebida como uma organi-zaccedilatildeo sintomaacutetica Ela aparece como resultado de uma tentativa de suturaccedilatildeoda falta como insistecircncia de um gozo que excede ao niacutevel da cadeia significan-te agrave medida que visa rechaccedilar o desejo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do

eu6 Com efeito ela natildeo se confunde com a melancolia sequer com o lutoVeremos adiante como isso se assinala conforme o exposto a seguir

III Seguindo com Freud o luto e a depressatildeo como destinospossiacuteveis agrave dor da perda

O luto como dor estruturante

A mobilizaccedilatildeo do luto face agrave perda do objeto implica forccedilas psiacutequicas quetecircm como funccedilatildeo dar um destino especiacutefico agrave relaccedilatildeo do sujeito com a falta no

Outro de modo que este mesmo sujeito sustente sua proacutepria condiccedilatildeo dese- jante Esta apreensatildeo aparece na teoria psicanaliacutetica desde o momento em queFreud situa o luto como um trabalho O luto engendra a proacutepria pulsatildeo na suacondiccedilatildeo de exigecircncia de trabalho implicado na relaccedilatildeo com o corpo (F9831549831419831579831401915) ndash forccedila que mobiliza em seu caraacuteter de insistecircncia a elaboraccedilatildeo simboacute-lica da perda objetal

Em Luto e melancolia Freud (1917) descreve as caracteriacutesticas baacutesicas doprocesso de luto Ali ele considera que no luto prevalece uma inibiccedilatildeo da ativi-

6 A especificidade do ideal do eu na depressatildeo seraacute discutida no terceiro toacutepico da presenteexposiccedilatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

91Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

dade do eu e sua absorccedilatildeo uma ldquoperda [temporaacuteria] da capacidade de adotarum novo objeto de amorrdquo (ibid p 250) ldquoEacute notaacutevel que esse penoso despazerseja aceito por noacutes como algo natural Contudo o fato eacute que quando o traba-

lho do luto se conclui o ego fica outra vez livre e desinibidordquo ( ibid p 251)O enlutado se manteacutem segundo Freud temporariamente num estado de

rebaixamento libidinal e sofrimento ante a morte ou agrave perda cujos efeitos sefazem valer pela possibilidade de finitizaccedilatildeo da dor O luto eacute evocado pelo su-

jeito no sentido de fazer com que perante a perda a dor natildeo se eternize Nessesentido o luto se configura efetivamente como um trabalho psiacutequico Ratifica--se que o trabalho do luto tem a funccedilatildeo de assimilaccedilatildeo da perda e de possibili-tar que o sujeito se separe do objeto perdido e reinvista num substituto O

enlutado martiriza-se pela perda recorda-se constantemente do perdido tra-balhando no sentido mesmo de dar a isso um estatuto efetivo de perda e assi-milaccedilatildeo simboacutelica da perda relanccedilando-se ao desejo

O luto nessa apreensatildeo constitui um doloroso caminho sobre o qual ohumano percorre a fim de assimilar a perda do objeto e a proacutepria transitorie-dade Aleacutem de proporcionar tal assimilaccedilatildeo simboacutelica o enlutado se protegede seu proacuteprio desmoronamento mediante um momento passageiro de acirra-

mento da dor psiacutequica a lembranccedila do objeto perdido o pranteamento a ini-

biccedilatildeo passageira etcAssim o luto eacute dor estruturante agrave medida que move um trabalho de ligaccedilatildeo

e integraccedilatildeo daquilo que irrompe no aparelho psiacutequico e fica momentanea-mente sem metaforizaccedilatildeo Eacute mola propulsora da simbolizaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo nar-rativa da perda mediante reconstruccedilatildeo da dor psiacutequica diante da anguacutestia queirrompe no sujeito quando este se depara com a faceta inominaacutevel do objetoperdido (cf L983137983139983137983150 1962-1963) Em outras palavras o luto tem por funccedilatildeo dar

um nome ao perdido promovendo um lugar no simboacutelico para o perdido La-

can assinala que apoacutes o processo do luto se instaura uma transformaccedilatildeo no euNesse sentido apoacutes o luto o sujeito natildeo seraacute mais o mesmo de antes o queimplica um processo de transformaccedilatildeo do eu e separaccedilatildeo do objeto perdido(L983137983139983137983150 1958-1959) Eacute precisamente na travessia do luto que o sujeito retomaa via do desejo lanccedilando-se a novas formas de existir e a novos investimentos

Veremos adiante que a abordagem do luto a partir de Freud natildeo deixaespaccedilo teoacuterico para uma confluecircncia conceitual entre o luto e a depressatildeo ndash osdois conceitos natildeo se confundem natildeo obstante se relacionarem ainda que de

maneira excludente e heterogecircnea Esses conceitos seratildeo aprofundados a se-guir de forma sustentada no pensamento de Freud e de outros autores comoSerge Leclaire os quais contribuem para o avanccedilo do tema

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1021

A DOR E O EXISTIR

92

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Com Freud aleacutem de Freud luto e depressatildeo

Podemos adentrar o tema da depressatildeo e sua relaccedilatildeo com o luto medianteo estudo de alguns aspectos relativos agrave obra freudiana na depuraccedilatildeo dos pro-blemas concernentes agrave constituiccedilatildeo do sujeito

Em Bate-se numa crianccedila Freud (1919) identificou importantes elemen-tos subjacentes aos movimentos fantasmaacuteticos infantis os quais guardadassuas especificidades revelam a circunstacircncia especiacutefica de um momento sub-

jetivo extremamente relevante no percurso de vida dos sujeitosFreud discute ali algumas peculiaridades determinantes da fantasia infan-

til que podem revelar aspectos decisivos para a compreensatildeo do modo como o

sujeito responde ao impasse da onipotecircncia narciacutesica Ele aponta que a primei-ra fase da fantasia de flagelaccedilatildeo infantil corresponde a uma imagem repetitivana qual uma crianccedila eacute espancada por um adulto ndash em geral o pai A fase sub-sequente corresponde segundo ele agrave posiccedilatildeo inconsciente na qual o sujeito se

vecirc como sendo a proacutepria crianccedila espancada em que se faz verificar um retornoao masoquismo e um sentimento de culpa remetido ao desejo incestuoso Naterceira fase a fantasia se traduz por um sentido de universalizaccedilatildeo dos perso-nagens presentes natildeo havendo nela atribuiccedilotildees identificatoacuterias mas uma

abrangecircncia que natildeo especifica os atores da cenaEste resumo serve para nos referenciarmos na discussatildeo introduzida por

Freud a respeito da posiccedilatildeo do sujeito frente ao desejo dos pais que caracterizao rechaccedilo fantasmaacutetico de sua falta Esta condiccedilatildeo introduz para o sujeito umaexperiecircncia especiacutefica concernente agrave dimensatildeo da finitude e da transitorieda-de Nossa anaacutelise se ateacutem ao primeiro momento da fantasia acerca do qualFreud aponta

() muitas crianccedilas que se acreditavam seguramente entronadasna inabalaacutevel afeiccedilatildeo dos pais foram de um soacute golpe derrubadasde todos os ceacuteus da sua onipotecircncia imaginaacuteria A ideacuteia de o paibatendo nessa odiosa crianccedila eacute portanto agradaacutevel indepen-dente de ter sido realmente visto agindo assim Significa lsquoO meupai natildeo ama essa crianccedila mas apenas a mimrdquo7 (ibid p 202)

Conforme sinalizamos anteriormente a respeito do mito de onipotecircncianarciacutesica na constituiccedilatildeo existencial do sujeito salienta-se que em sua experi-ecircncia subjetiva a crianccedila eacute sumariamente destronada de seu lugar de opulecircn-

cia no discurso dos pais logo que os mesmos apresentam-se como faltosos

7 Grifo do autor

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

93Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

especialmente a matildee para quem os investimentos primaacuterios satildeo dirigidos Taldestronamento que muitas vezes toma a fantasia de flagelaccedilatildeo infantil comosaiacuteda possiacutevel ao impasse da onipotecircncia narciacutesica pode resultar natildeo menos

numa experiecircncia de luto cujo destino proporciona ao sujeito uma relaccedilatildeopositiva com a transitoriedade e o proacuteprio desejo Nesse acircmbito a anguacutestia dosujeito diante do objeto que aiacute se desnuda como perdido e natildeo nomeado moveum trabalho de luto capaz de reinstaurar a condiccedilatildeo do desejo

O trabalho do luto natildeo eacute contudo um movimento necessaacuterio de resposta agraveperda A depressatildeo aparece como uma possibilidade de resposta que difere do lutocuja incidecircncia caracteriza uma vicissitude da crenccedila narciacutesica Diferentemente deum trabalho de luto a depressatildeo aguda constitui em sua proacutepria radicalidade a

outra face de uma mesma moeda onipotecircncia narciacutesica e estase depressivaEsse sentido de onipotecircncia perseguido sintomaticamente pelo deprimido

eacute precisamente o que Serge Leclaire (1975) denomina ldquoCrianccedila Maravilhosardquo ACrianccedila Maravilhosa eacute segundo o autor o fundamento da experiecircncia ldquoprimaacute-riardquo do narcisismo ldquoeacute uma representaccedilatildeo inconsciente primordial na qual seentrelaccedilam mais densos do que em qualquer outra os anseios nostalgias e es-peranccedilas de cada umrdquo (ibid p 11) Essa figuraccedilatildeo faz toda referecircncia agrave crenccediladefinida como aquilo que promove o elo narrativo da experiecircncia de si na cons-

tituiccedilatildeo do sujeito Tal experiecircncia contorna toda uma complexidade que Le-claire situaraacute como o paradoxo da condiccedilatildeo subjetiva se por um lado estaldquomaravilha infantilrdquo faz referecircncia ao juacutebilo da centralidade narciacutesica por outrolado remete ao inescapaacutevel da morte ndash por isso o paradoxo ndash na assunccedilatildeo jubi-losa como primeira figuraccedilatildeo estaacutetica do sentimento de onipotecircncia Eacute o mitoda onipotecircncia produzindo uma fabulaccedilatildeo o absoluto impossiacutevel desfrutadopela insiacutegnia dos pais que emprestam o simboacutelico como mateacuteria-prima e o ima-ginaacuterio como efeito jubiloso da imagem perdida Nesse acircmbito nada mais pre-

ciso do que situar a dimensatildeo intriacutenseca da morte no proacuteprio nascimento dasubjetividade no existir primeiro tal como faz Leclaire Nascer (psiquicamen-te) implica em morrer e morrer implica em nascer sob o jugo de se fazer sujei-to e sustentar o movimento desejante cuja condiccedilatildeo eacute a proacutepria morte daldquoCrianccedila Maravilhosardquo Eacute o que Leclaire demonstra em sua anaacutelise do mito in-fantil aquele mesmo referido por Freud na menccedilatildeo ao ego-ideal marcado pelaalienaccedilatildeo que exige constantemente um trabalho de luto mata-se uma crianccedila8

8 Leclaire salienta em sua obra o aspecto pulsional deste processo no qual se assinala a pulsatildeode morte como condiccedilatildeo para a mobilizaccedilatildeo do proacuteprio luto O fracasso da instauraccedilatildeo desteuacuteltimo deflagra natildeo menos a reverberaccedilatildeo paradoxal da Crianccedila Maravilhosa em sua face cruele mortiacutefera tal como veremos adiante em nossa proposta sobre a depressatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1221

A DOR E O EXISTIR

94

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute notaacutevel entretanto a dificuldade que o sujeito tem muitas vezes deldquomatarrdquo sua proacutepria crianccedila interna ou seja fazer o luto da Crianccedila Maravi-lhosa Leclaire afirma que o sujeito refugia-se na Crianccedila Maravilhosa sob o

risco paradoxal de acelerar o curso inescapaacutevel de sua proacutepria morte de suafinitude objetiva O paradoxo que aqui se instala revela que para sustentar odesejo o sujeito tem de matar natildeo apenas o Outro que o inventou mas tam-beacutem a si mesmo num suiciacutedio sem morte cujo drama enuncia a trajetoacuteria daproacutepria dor narciacutesica Ou seja o sujeito nasce mergulhado numa crenccedila narciacute-

sica sob o risco perene da morte caso natildeo renuncie a esta mesma crenccedila que ofez existente Necessidade que Leclaire situa como funccedilatildeo permanente do mo-

vimento desejante

Se a perda eacute intriacutenseca agrave proacutepria experiecircncia narciacutesica circunscrevem-sea partir disso os conceitos de luto e depressatildeo como destinos heterogecircneos aoimpasse da onipotecircncia narciacutesica e da perda objetal Os contextos especiacuteficosnos quais a depressatildeo se manifesta de maneira mais violenta e criacutetica eacute a ex-pressatildeo maacutexima do paradoxo perfilado por Leclaire ndash paradoxo situado nosliames da vida e da morte (subjetivas) A depressatildeo caracteriza-se por umasaiacuteda contradesejante e natildeo eacute como pode parecer uma aderecircncia direta agrave mor-te Ela eacute diferentemente do luto a negaccedilatildeo da finitude e do desejo que situa o

paradoxo da Crianccedila Maravilhosa Tal paradoxo pode ser constatado pela ou-tra face desta moeda a depressatildeo eacute recurso do sujeito para natildeo se deparar como transitoacuterio e para tentar uma recuperaccedilatildeo do gozo atraveacutes da estagnaccedilatildeo e daprostraccedilatildeo ndash uma parada que exige do tempo aquilo que ele natildeo pode dar

Sobre esse aspecto o pensamento de Freud eacute de extrema fecundidade Emsuas perquiriccedilotildees Freud (1915) dizia que a transitoriedade natildeo reduz mas ao

contraacuterio aumenta o valor das coisas No texto que discute a respeito da tran-sitoriedade o ponto de vista de Freud situa na ponta de sua caneta aquilo que

seu interlocutor ndash o poeta Ranier Maria Rilke ndash apresenta quando se refere aotransitoacuterio O poeta afirma que se as coisas se acabam seu valor se destituinum presente absoluto triste e traacutegico Divergindo desta concepccedilatildeo Freuddenomina tal posiccedilatildeo de ldquorevolta contra o lutordquo vinculada a um dos mais pre-ponderantes anseios narciacutesicos a exigecircncia de imortalidade

() essa exigecircncia de imortalidade por ser tatildeo obviamente umproduto dos nossos desejos natildeo pode reivindicar seu direito agraverealidade o que eacute penoso pode natildeo obstante ser verdadeiro

() Natildeo deixei poreacutem de discutir o ponto de vista pessimistado poeta de que a transitoriedade do que eacute belo implica umaperda de seu valor (ibid p 317)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

95Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Contextualizando a depressatildeo nesta temaacutetica ndash a transitoriedade ndash salien-tamos que para a crenccedila narciacutesica ndash ancoragem fundamental da depressatildeo ndash afinitude eacute incompatiacutevel ao projeto de unidade e permanecircncia no discurso da

perfeiccedilatildeo na relaccedilatildeo ao Outro No caso dessa crenccedila assumir um estatuto cen-tral e hegemocircnico na vida psiacutequica do sujeito a estagnaccedilatildeo depressiva aparececomo a via pela qual diante da perda esse mesmo sujeito nega a morte daCrianccedila Maravilhosa impedindo-se agrave transformaccedilatildeo subjetiva engendradapelo luto marcando ali a natildeo sustentaccedilatildeo do desejo Trata-se de uma tentativafracassada de rechaccedilo da falta que marca o ser como incompleto ndash rechaccedilo da falta-a-ser mediante a representaccedilatildeo primaacuteria da Crianccedila Maravilhosa cujo co-rolaacuterio eacute a depressatildeo como resultado sintomaacutetico desse fracasso

Cabe frisar assim que natildeo se trata na depressatildeo de um desdobramento doafeto de tristeza dado que este como afeto conduz o sujeito ao trabalho deluto por mais intenso que possa se apresentar A depressatildeo natildeo se reduz a umafeto trata-se de uma saiacuteda defensiva que resulta em sintomas graves de estag-naccedilatildeo perda do interesse pela vida desinvestimento conflitos com a imagemde si ndash sintomas que agraves vezes culminam em atos suicidas O deprimido ancora--se no mito da onipotecircncia do eu que natildeo passando de um lampejo de perfei-ccedilatildeo que se apaga no tempo engendra uma posiccedilatildeo inversa de silenciamento

absoluto e denegaccedilatildeo radical da divisatildeo e do desejo Caracteriza-se nisso acontrapartida oposta agravequela subjacente ao desejo este uacuteltimo assumindo sus-tentaccedilatildeo mediante o luto cuja principal funccedilatildeo eacute inscrever a contingecircncia dosujeito sua temporalidade transitoriedade e mortalidade conjugando comisso a relaccedilatildeo entre a perda e o proacuteprio desejo9

Algumas notas sobre a distinccedilatildeo entre depressatildeo e melancolia

Cabe aqui realizar uma breve distinccedilatildeo imprescindiacutevel do ponto de vistateoacuterico-cliacutenico para que natildeo incorramos em equiacutevocos que muitas vezes apa-recem no campo psicanaliacutetico Na melancolia a questatildeo apresenta-se de ma-neira distinta Nela o que ocorre eacute uma retirada da libido para o eu ndash o quediante da perda caracteriza a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto (F983154983141983157983140 1917)

9 A condiccedilatildeo aqui descrita se acha na base da experiecircncia depressiva que se intensifica na con-temporaneidade e de outros sintomas que sobrepujam as manifestaccedilotildees ldquoclaacutessicasrdquo caracteriacutes-

ticas da metaacutefora sintomaacutetica histeacuterica a qual ofertava o corpo como palco de decifraccedilatildeo dodesejo inconsciente Nesse sentido o sintoma da depressatildeo apresenta especificidades outrasque merecem todo cuidado teoacuterico-cliacutenico no que tange agraves possibilidades de saiacuteda diante dacastraccedilatildeo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do eu como veremos agrave frente

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1421

A DOR E O EXISTIR

96

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Essa identificaccedilatildeo marca a impossibilidade mesma de inscriccedilatildeo da perda agravemedida que o objeto fica ldquoinstaladordquo no eu promovendo o automassacre me-lancoacutelico Esse processo eacute engendrado pelo supereu perante o eu ideal evanes-

cente caracteriacutestico da afirmaccedilatildeo freudiana de que ldquoa sombra do objeto recaiusobre o eurdquo (ibid )

Numa apreensatildeo aprofundada Lambotte (2003) situa na constituiccedilatildeo dasubjetividade melancoacutelica uma forma de identificaccedilatildeo que denomina ldquoidentifi-

caccedilatildeo ao nadardquo subjacente agrave ldquodeserccedilatildeo do Outrordquo e agrave ldquoevanescecircncia do eu-ideal rdquoSegundo esta apreensatildeo a crianccedila em sua constituiccedilatildeo subjetiva natildeo eacute fisgadacomo objeto do discurso idealizado dos pais na constituiccedilatildeo especular O olharda matildee segundo a autora atravessa o sujeito natildeo atribuindo a ele qualquer

sentido de existecircncia ou predicaccedilatildeo deflagrando para ele uma existecircncia nonada Desertado o Outro natildeo inclui o sujeito na funccedilatildeo do desejo mas num

vazio sem precedentes que instaura a Identificaccedilatildeo ao nada (ibid) O melancoacute-lico denuncia de maneira violenta e mesmo insuportaacutevel a sua proacutepria insus-tentabilidade existencial Natildeo atingido pela idealizaccedilatildeo narciacutesica que de outrasorte o colocaria numa posiccedilatildeo de centralidade (eu ideal) o eu se precipitadestituiacutedo contudo da ilusatildeo de sua proacutepria onipotecircncia Natildeo houve sequer aconstituiccedilatildeo do objeto como ldquoperdidordquo (H983137983155983155983151983157983150 2002) ndash natildeo havendo reco-

nhecimento ou registro da perda que promoveria a inscriccedilatildeo do sujeito nocampo do desejo Ali a idealizaccedilatildeo se constituiu no ponto de evanescecircncia doolhar da matildee o qual se dirige a um modelo cuja exterioridade representa umideal inacessiacutevel para o sujeito Segundo essa loacutegica o sujeito eacute lanccedilado parafora de qualquer representaccedilatildeo jubilosa caracteriacutestica da formaccedilatildeo primaacuteria dacrenccedila narciacutesica (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Sem chances de alcance o ideal se tornaa proacutepria raiz do aviltamento superegoico Nesse sentido Lambotte fala numaldquoruptura do transitivismo especular que chega ao isolamento e ao reforccedilo do

ideal do eu agraves expensas de um eu-ideal que natildeo pocircde elaborar-se na origemrdquo(L983137983149983138983151983156983156983141 op cit p 224)

Sendo assim o que vai se assinalar na melancolia eacute um ideal do eu riacutegidoateacute as uacuteltimas consequecircncias fortalecido por um supereu capaz de estraccedilalharo eu melancoacutelico A evanescecircncia do eu ideal na melancolia se encontra na basedo massacre superegoacuteico cujo teor discursivo aponta para ldquoeu natildeo valho nadardquoldquoeu natildeo sou nadardquo (L983137983149983138983151983156983156983141 op cit )

Na depressatildeo diferentemente o sujeito reconhece a perda do objeto con-

tudo refugia-se na crenccedila narciacutesica num recuo defensivo que nega qualquerpossibilidade de transformaccedilatildeo ou de se lanccedilar ao ideal do eu Sobre isso cabelembrar que a depressatildeo manifesta uma forma de idealizaccedilatildeo cujo registro

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

97Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

acha-se fixado ao eu ideal da Crianccedila Maravilhosa O que vai distinguir essasformas de sofrimento eacute que a evanescecircncia na subjetivaccedilatildeo dos pacientes depri-

midos natildeo eacute do eu ideal mas do ideal do eu10

Podemos assinalar nesse diferencial o cerne da idealizaccedilatildeo que marca es-sas duas manifestaccedilotildees cliacutenicas na melancolia constata-se a evanescecircncia doeu ideal que abre caminho para a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto na depres-satildeo a evanescecircncia do ideal do eu assinalando-se o recuo para a crenccedila narciacute-sica que passaraacute a funcionar como um sintoma

Como ldquoevanescecircncia do ideal do eurdquo define-se aqui uma fugacidade noancoramento identificatoacuterio edipiano cuja funccedilatildeo seria de permitir ao sujeitoafastar-se da crenccedila narciacutesica e reaparecer transformado apoacutes o processo de

luto sustentando o desejo e lanccedilando-se ao futuro Nesses termos natildeo eacute a fi-gura do Pai o que entra no lugar do ideal do eu ancorado numa imago assimeacute-trica que pudesse engendrar uma saiacuteda identificatoacuteria ndash tal como Freud(1923a) constatava na cliacutenica de sua eacutepoca O que entra no lugar do ideal do eueacute a proacutepria crenccedila narciacutesica funcionando ali como sintoma O deprimido en-contra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num processo psiacutequicode integraccedilatildeo que o filiaria no caso do luto a uma accedilatildeo descolada da idealiza-ccedilatildeo narciacutesica O que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos eacute a pro-

jeccedilatildeo no futuro de um eu ideal impossiacutevel de se realizar ndash e isso quando haacuteuma projeccedilatildeo no futuro Sem estabelecimento de qualquer construccedilatildeo narrati-

va a partir da qual o sujeito dispor-se-ia a agir a idealizaccedilatildeo de si mesmo nofuturo eacute similar agrave proacutepria idealizaccedilatildeo de lsquoSua Majestade o Bebecircrsquo (P9831459831509831449831419831459831549831512005) Ela eacute de tal ordem que o sujeito deprime como expressatildeo de seu proacutepriofracasso narciacutesico A imagem de si no presente eacute sempre insuficiente perante aexigecircncia do eu-ideal ldquoabsolutordquo e ldquoperdidordquo Tal insuficiecircncia beira numa si-milaridade inversa o mesmo absoluto irredutiacutevel da Crianccedila Maravilhosa

(Q983157983145983150983156983141983148983148983137 op cit ) Nesse niacutevel a natildeo instauraccedilatildeo do luto eacute situada no mes-mo ponto de evanescecircncia do ideal do eu que impede ao sujeito o afastamentoda crenccedila narciacutesica e a proacutepria ldquomorterdquo da Crianccedila Maravilhosa

10 O ideal do eu eacute o ponto de ancoragem identificatoacuteria que afasta a crianccedila do narcisismo

primaacuterio (F983154983141983157983140 1914) e consequentemente da crenccedila narciacutesica Eacute a partir da identificaccedilatildeoao ideal do eu que o sujeito internaliza os traccedilos do pai na dialeacutetica do desejo frente agrave condiccedilatildeoda falta no Outro O ideal do eu aparece como uma saiacuteda identificatoacuteria proporcionando amobilizaccedilatildeo do luto e o afastamento da fantasia primaacuteria da onipotecircncia narciacutesica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 9: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

91Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

dade do eu e sua absorccedilatildeo uma ldquoperda [temporaacuteria] da capacidade de adotarum novo objeto de amorrdquo (ibid p 250) ldquoEacute notaacutevel que esse penoso despazerseja aceito por noacutes como algo natural Contudo o fato eacute que quando o traba-

lho do luto se conclui o ego fica outra vez livre e desinibidordquo ( ibid p 251)O enlutado se manteacutem segundo Freud temporariamente num estado de

rebaixamento libidinal e sofrimento ante a morte ou agrave perda cujos efeitos sefazem valer pela possibilidade de finitizaccedilatildeo da dor O luto eacute evocado pelo su-

jeito no sentido de fazer com que perante a perda a dor natildeo se eternize Nessesentido o luto se configura efetivamente como um trabalho psiacutequico Ratifica--se que o trabalho do luto tem a funccedilatildeo de assimilaccedilatildeo da perda e de possibili-tar que o sujeito se separe do objeto perdido e reinvista num substituto O

enlutado martiriza-se pela perda recorda-se constantemente do perdido tra-balhando no sentido mesmo de dar a isso um estatuto efetivo de perda e assi-milaccedilatildeo simboacutelica da perda relanccedilando-se ao desejo

O luto nessa apreensatildeo constitui um doloroso caminho sobre o qual ohumano percorre a fim de assimilar a perda do objeto e a proacutepria transitorie-dade Aleacutem de proporcionar tal assimilaccedilatildeo simboacutelica o enlutado se protegede seu proacuteprio desmoronamento mediante um momento passageiro de acirra-

mento da dor psiacutequica a lembranccedila do objeto perdido o pranteamento a ini-

biccedilatildeo passageira etcAssim o luto eacute dor estruturante agrave medida que move um trabalho de ligaccedilatildeo

e integraccedilatildeo daquilo que irrompe no aparelho psiacutequico e fica momentanea-mente sem metaforizaccedilatildeo Eacute mola propulsora da simbolizaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo nar-rativa da perda mediante reconstruccedilatildeo da dor psiacutequica diante da anguacutestia queirrompe no sujeito quando este se depara com a faceta inominaacutevel do objetoperdido (cf L983137983139983137983150 1962-1963) Em outras palavras o luto tem por funccedilatildeo dar

um nome ao perdido promovendo um lugar no simboacutelico para o perdido La-

can assinala que apoacutes o processo do luto se instaura uma transformaccedilatildeo no euNesse sentido apoacutes o luto o sujeito natildeo seraacute mais o mesmo de antes o queimplica um processo de transformaccedilatildeo do eu e separaccedilatildeo do objeto perdido(L983137983139983137983150 1958-1959) Eacute precisamente na travessia do luto que o sujeito retomaa via do desejo lanccedilando-se a novas formas de existir e a novos investimentos

Veremos adiante que a abordagem do luto a partir de Freud natildeo deixaespaccedilo teoacuterico para uma confluecircncia conceitual entre o luto e a depressatildeo ndash osdois conceitos natildeo se confundem natildeo obstante se relacionarem ainda que de

maneira excludente e heterogecircnea Esses conceitos seratildeo aprofundados a se-guir de forma sustentada no pensamento de Freud e de outros autores comoSerge Leclaire os quais contribuem para o avanccedilo do tema

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1021

A DOR E O EXISTIR

92

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Com Freud aleacutem de Freud luto e depressatildeo

Podemos adentrar o tema da depressatildeo e sua relaccedilatildeo com o luto medianteo estudo de alguns aspectos relativos agrave obra freudiana na depuraccedilatildeo dos pro-blemas concernentes agrave constituiccedilatildeo do sujeito

Em Bate-se numa crianccedila Freud (1919) identificou importantes elemen-tos subjacentes aos movimentos fantasmaacuteticos infantis os quais guardadassuas especificidades revelam a circunstacircncia especiacutefica de um momento sub-

jetivo extremamente relevante no percurso de vida dos sujeitosFreud discute ali algumas peculiaridades determinantes da fantasia infan-

til que podem revelar aspectos decisivos para a compreensatildeo do modo como o

sujeito responde ao impasse da onipotecircncia narciacutesica Ele aponta que a primei-ra fase da fantasia de flagelaccedilatildeo infantil corresponde a uma imagem repetitivana qual uma crianccedila eacute espancada por um adulto ndash em geral o pai A fase sub-sequente corresponde segundo ele agrave posiccedilatildeo inconsciente na qual o sujeito se

vecirc como sendo a proacutepria crianccedila espancada em que se faz verificar um retornoao masoquismo e um sentimento de culpa remetido ao desejo incestuoso Naterceira fase a fantasia se traduz por um sentido de universalizaccedilatildeo dos perso-nagens presentes natildeo havendo nela atribuiccedilotildees identificatoacuterias mas uma

abrangecircncia que natildeo especifica os atores da cenaEste resumo serve para nos referenciarmos na discussatildeo introduzida por

Freud a respeito da posiccedilatildeo do sujeito frente ao desejo dos pais que caracterizao rechaccedilo fantasmaacutetico de sua falta Esta condiccedilatildeo introduz para o sujeito umaexperiecircncia especiacutefica concernente agrave dimensatildeo da finitude e da transitorieda-de Nossa anaacutelise se ateacutem ao primeiro momento da fantasia acerca do qualFreud aponta

() muitas crianccedilas que se acreditavam seguramente entronadasna inabalaacutevel afeiccedilatildeo dos pais foram de um soacute golpe derrubadasde todos os ceacuteus da sua onipotecircncia imaginaacuteria A ideacuteia de o paibatendo nessa odiosa crianccedila eacute portanto agradaacutevel indepen-dente de ter sido realmente visto agindo assim Significa lsquoO meupai natildeo ama essa crianccedila mas apenas a mimrdquo7 (ibid p 202)

Conforme sinalizamos anteriormente a respeito do mito de onipotecircncianarciacutesica na constituiccedilatildeo existencial do sujeito salienta-se que em sua experi-ecircncia subjetiva a crianccedila eacute sumariamente destronada de seu lugar de opulecircn-

cia no discurso dos pais logo que os mesmos apresentam-se como faltosos

7 Grifo do autor

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

93Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

especialmente a matildee para quem os investimentos primaacuterios satildeo dirigidos Taldestronamento que muitas vezes toma a fantasia de flagelaccedilatildeo infantil comosaiacuteda possiacutevel ao impasse da onipotecircncia narciacutesica pode resultar natildeo menos

numa experiecircncia de luto cujo destino proporciona ao sujeito uma relaccedilatildeopositiva com a transitoriedade e o proacuteprio desejo Nesse acircmbito a anguacutestia dosujeito diante do objeto que aiacute se desnuda como perdido e natildeo nomeado moveum trabalho de luto capaz de reinstaurar a condiccedilatildeo do desejo

O trabalho do luto natildeo eacute contudo um movimento necessaacuterio de resposta agraveperda A depressatildeo aparece como uma possibilidade de resposta que difere do lutocuja incidecircncia caracteriza uma vicissitude da crenccedila narciacutesica Diferentemente deum trabalho de luto a depressatildeo aguda constitui em sua proacutepria radicalidade a

outra face de uma mesma moeda onipotecircncia narciacutesica e estase depressivaEsse sentido de onipotecircncia perseguido sintomaticamente pelo deprimido

eacute precisamente o que Serge Leclaire (1975) denomina ldquoCrianccedila Maravilhosardquo ACrianccedila Maravilhosa eacute segundo o autor o fundamento da experiecircncia ldquoprimaacute-riardquo do narcisismo ldquoeacute uma representaccedilatildeo inconsciente primordial na qual seentrelaccedilam mais densos do que em qualquer outra os anseios nostalgias e es-peranccedilas de cada umrdquo (ibid p 11) Essa figuraccedilatildeo faz toda referecircncia agrave crenccediladefinida como aquilo que promove o elo narrativo da experiecircncia de si na cons-

tituiccedilatildeo do sujeito Tal experiecircncia contorna toda uma complexidade que Le-claire situaraacute como o paradoxo da condiccedilatildeo subjetiva se por um lado estaldquomaravilha infantilrdquo faz referecircncia ao juacutebilo da centralidade narciacutesica por outrolado remete ao inescapaacutevel da morte ndash por isso o paradoxo ndash na assunccedilatildeo jubi-losa como primeira figuraccedilatildeo estaacutetica do sentimento de onipotecircncia Eacute o mitoda onipotecircncia produzindo uma fabulaccedilatildeo o absoluto impossiacutevel desfrutadopela insiacutegnia dos pais que emprestam o simboacutelico como mateacuteria-prima e o ima-ginaacuterio como efeito jubiloso da imagem perdida Nesse acircmbito nada mais pre-

ciso do que situar a dimensatildeo intriacutenseca da morte no proacuteprio nascimento dasubjetividade no existir primeiro tal como faz Leclaire Nascer (psiquicamen-te) implica em morrer e morrer implica em nascer sob o jugo de se fazer sujei-to e sustentar o movimento desejante cuja condiccedilatildeo eacute a proacutepria morte daldquoCrianccedila Maravilhosardquo Eacute o que Leclaire demonstra em sua anaacutelise do mito in-fantil aquele mesmo referido por Freud na menccedilatildeo ao ego-ideal marcado pelaalienaccedilatildeo que exige constantemente um trabalho de luto mata-se uma crianccedila8

8 Leclaire salienta em sua obra o aspecto pulsional deste processo no qual se assinala a pulsatildeode morte como condiccedilatildeo para a mobilizaccedilatildeo do proacuteprio luto O fracasso da instauraccedilatildeo desteuacuteltimo deflagra natildeo menos a reverberaccedilatildeo paradoxal da Crianccedila Maravilhosa em sua face cruele mortiacutefera tal como veremos adiante em nossa proposta sobre a depressatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1221

A DOR E O EXISTIR

94

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute notaacutevel entretanto a dificuldade que o sujeito tem muitas vezes deldquomatarrdquo sua proacutepria crianccedila interna ou seja fazer o luto da Crianccedila Maravi-lhosa Leclaire afirma que o sujeito refugia-se na Crianccedila Maravilhosa sob o

risco paradoxal de acelerar o curso inescapaacutevel de sua proacutepria morte de suafinitude objetiva O paradoxo que aqui se instala revela que para sustentar odesejo o sujeito tem de matar natildeo apenas o Outro que o inventou mas tam-beacutem a si mesmo num suiciacutedio sem morte cujo drama enuncia a trajetoacuteria daproacutepria dor narciacutesica Ou seja o sujeito nasce mergulhado numa crenccedila narciacute-

sica sob o risco perene da morte caso natildeo renuncie a esta mesma crenccedila que ofez existente Necessidade que Leclaire situa como funccedilatildeo permanente do mo-

vimento desejante

Se a perda eacute intriacutenseca agrave proacutepria experiecircncia narciacutesica circunscrevem-sea partir disso os conceitos de luto e depressatildeo como destinos heterogecircneos aoimpasse da onipotecircncia narciacutesica e da perda objetal Os contextos especiacuteficosnos quais a depressatildeo se manifesta de maneira mais violenta e criacutetica eacute a ex-pressatildeo maacutexima do paradoxo perfilado por Leclaire ndash paradoxo situado nosliames da vida e da morte (subjetivas) A depressatildeo caracteriza-se por umasaiacuteda contradesejante e natildeo eacute como pode parecer uma aderecircncia direta agrave mor-te Ela eacute diferentemente do luto a negaccedilatildeo da finitude e do desejo que situa o

paradoxo da Crianccedila Maravilhosa Tal paradoxo pode ser constatado pela ou-tra face desta moeda a depressatildeo eacute recurso do sujeito para natildeo se deparar como transitoacuterio e para tentar uma recuperaccedilatildeo do gozo atraveacutes da estagnaccedilatildeo e daprostraccedilatildeo ndash uma parada que exige do tempo aquilo que ele natildeo pode dar

Sobre esse aspecto o pensamento de Freud eacute de extrema fecundidade Emsuas perquiriccedilotildees Freud (1915) dizia que a transitoriedade natildeo reduz mas ao

contraacuterio aumenta o valor das coisas No texto que discute a respeito da tran-sitoriedade o ponto de vista de Freud situa na ponta de sua caneta aquilo que

seu interlocutor ndash o poeta Ranier Maria Rilke ndash apresenta quando se refere aotransitoacuterio O poeta afirma que se as coisas se acabam seu valor se destituinum presente absoluto triste e traacutegico Divergindo desta concepccedilatildeo Freuddenomina tal posiccedilatildeo de ldquorevolta contra o lutordquo vinculada a um dos mais pre-ponderantes anseios narciacutesicos a exigecircncia de imortalidade

() essa exigecircncia de imortalidade por ser tatildeo obviamente umproduto dos nossos desejos natildeo pode reivindicar seu direito agraverealidade o que eacute penoso pode natildeo obstante ser verdadeiro

() Natildeo deixei poreacutem de discutir o ponto de vista pessimistado poeta de que a transitoriedade do que eacute belo implica umaperda de seu valor (ibid p 317)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

95Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Contextualizando a depressatildeo nesta temaacutetica ndash a transitoriedade ndash salien-tamos que para a crenccedila narciacutesica ndash ancoragem fundamental da depressatildeo ndash afinitude eacute incompatiacutevel ao projeto de unidade e permanecircncia no discurso da

perfeiccedilatildeo na relaccedilatildeo ao Outro No caso dessa crenccedila assumir um estatuto cen-tral e hegemocircnico na vida psiacutequica do sujeito a estagnaccedilatildeo depressiva aparececomo a via pela qual diante da perda esse mesmo sujeito nega a morte daCrianccedila Maravilhosa impedindo-se agrave transformaccedilatildeo subjetiva engendradapelo luto marcando ali a natildeo sustentaccedilatildeo do desejo Trata-se de uma tentativafracassada de rechaccedilo da falta que marca o ser como incompleto ndash rechaccedilo da falta-a-ser mediante a representaccedilatildeo primaacuteria da Crianccedila Maravilhosa cujo co-rolaacuterio eacute a depressatildeo como resultado sintomaacutetico desse fracasso

Cabe frisar assim que natildeo se trata na depressatildeo de um desdobramento doafeto de tristeza dado que este como afeto conduz o sujeito ao trabalho deluto por mais intenso que possa se apresentar A depressatildeo natildeo se reduz a umafeto trata-se de uma saiacuteda defensiva que resulta em sintomas graves de estag-naccedilatildeo perda do interesse pela vida desinvestimento conflitos com a imagemde si ndash sintomas que agraves vezes culminam em atos suicidas O deprimido ancora--se no mito da onipotecircncia do eu que natildeo passando de um lampejo de perfei-ccedilatildeo que se apaga no tempo engendra uma posiccedilatildeo inversa de silenciamento

absoluto e denegaccedilatildeo radical da divisatildeo e do desejo Caracteriza-se nisso acontrapartida oposta agravequela subjacente ao desejo este uacuteltimo assumindo sus-tentaccedilatildeo mediante o luto cuja principal funccedilatildeo eacute inscrever a contingecircncia dosujeito sua temporalidade transitoriedade e mortalidade conjugando comisso a relaccedilatildeo entre a perda e o proacuteprio desejo9

Algumas notas sobre a distinccedilatildeo entre depressatildeo e melancolia

Cabe aqui realizar uma breve distinccedilatildeo imprescindiacutevel do ponto de vistateoacuterico-cliacutenico para que natildeo incorramos em equiacutevocos que muitas vezes apa-recem no campo psicanaliacutetico Na melancolia a questatildeo apresenta-se de ma-neira distinta Nela o que ocorre eacute uma retirada da libido para o eu ndash o quediante da perda caracteriza a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto (F983154983141983157983140 1917)

9 A condiccedilatildeo aqui descrita se acha na base da experiecircncia depressiva que se intensifica na con-temporaneidade e de outros sintomas que sobrepujam as manifestaccedilotildees ldquoclaacutessicasrdquo caracteriacutes-

ticas da metaacutefora sintomaacutetica histeacuterica a qual ofertava o corpo como palco de decifraccedilatildeo dodesejo inconsciente Nesse sentido o sintoma da depressatildeo apresenta especificidades outrasque merecem todo cuidado teoacuterico-cliacutenico no que tange agraves possibilidades de saiacuteda diante dacastraccedilatildeo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do eu como veremos agrave frente

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1421

A DOR E O EXISTIR

96

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Essa identificaccedilatildeo marca a impossibilidade mesma de inscriccedilatildeo da perda agravemedida que o objeto fica ldquoinstaladordquo no eu promovendo o automassacre me-lancoacutelico Esse processo eacute engendrado pelo supereu perante o eu ideal evanes-

cente caracteriacutestico da afirmaccedilatildeo freudiana de que ldquoa sombra do objeto recaiusobre o eurdquo (ibid )

Numa apreensatildeo aprofundada Lambotte (2003) situa na constituiccedilatildeo dasubjetividade melancoacutelica uma forma de identificaccedilatildeo que denomina ldquoidentifi-

caccedilatildeo ao nadardquo subjacente agrave ldquodeserccedilatildeo do Outrordquo e agrave ldquoevanescecircncia do eu-ideal rdquoSegundo esta apreensatildeo a crianccedila em sua constituiccedilatildeo subjetiva natildeo eacute fisgadacomo objeto do discurso idealizado dos pais na constituiccedilatildeo especular O olharda matildee segundo a autora atravessa o sujeito natildeo atribuindo a ele qualquer

sentido de existecircncia ou predicaccedilatildeo deflagrando para ele uma existecircncia nonada Desertado o Outro natildeo inclui o sujeito na funccedilatildeo do desejo mas num

vazio sem precedentes que instaura a Identificaccedilatildeo ao nada (ibid) O melancoacute-lico denuncia de maneira violenta e mesmo insuportaacutevel a sua proacutepria insus-tentabilidade existencial Natildeo atingido pela idealizaccedilatildeo narciacutesica que de outrasorte o colocaria numa posiccedilatildeo de centralidade (eu ideal) o eu se precipitadestituiacutedo contudo da ilusatildeo de sua proacutepria onipotecircncia Natildeo houve sequer aconstituiccedilatildeo do objeto como ldquoperdidordquo (H983137983155983155983151983157983150 2002) ndash natildeo havendo reco-

nhecimento ou registro da perda que promoveria a inscriccedilatildeo do sujeito nocampo do desejo Ali a idealizaccedilatildeo se constituiu no ponto de evanescecircncia doolhar da matildee o qual se dirige a um modelo cuja exterioridade representa umideal inacessiacutevel para o sujeito Segundo essa loacutegica o sujeito eacute lanccedilado parafora de qualquer representaccedilatildeo jubilosa caracteriacutestica da formaccedilatildeo primaacuteria dacrenccedila narciacutesica (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Sem chances de alcance o ideal se tornaa proacutepria raiz do aviltamento superegoico Nesse sentido Lambotte fala numaldquoruptura do transitivismo especular que chega ao isolamento e ao reforccedilo do

ideal do eu agraves expensas de um eu-ideal que natildeo pocircde elaborar-se na origemrdquo(L983137983149983138983151983156983156983141 op cit p 224)

Sendo assim o que vai se assinalar na melancolia eacute um ideal do eu riacutegidoateacute as uacuteltimas consequecircncias fortalecido por um supereu capaz de estraccedilalharo eu melancoacutelico A evanescecircncia do eu ideal na melancolia se encontra na basedo massacre superegoacuteico cujo teor discursivo aponta para ldquoeu natildeo valho nadardquoldquoeu natildeo sou nadardquo (L983137983149983138983151983156983156983141 op cit )

Na depressatildeo diferentemente o sujeito reconhece a perda do objeto con-

tudo refugia-se na crenccedila narciacutesica num recuo defensivo que nega qualquerpossibilidade de transformaccedilatildeo ou de se lanccedilar ao ideal do eu Sobre isso cabelembrar que a depressatildeo manifesta uma forma de idealizaccedilatildeo cujo registro

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

97Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

acha-se fixado ao eu ideal da Crianccedila Maravilhosa O que vai distinguir essasformas de sofrimento eacute que a evanescecircncia na subjetivaccedilatildeo dos pacientes depri-

midos natildeo eacute do eu ideal mas do ideal do eu10

Podemos assinalar nesse diferencial o cerne da idealizaccedilatildeo que marca es-sas duas manifestaccedilotildees cliacutenicas na melancolia constata-se a evanescecircncia doeu ideal que abre caminho para a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto na depres-satildeo a evanescecircncia do ideal do eu assinalando-se o recuo para a crenccedila narciacute-sica que passaraacute a funcionar como um sintoma

Como ldquoevanescecircncia do ideal do eurdquo define-se aqui uma fugacidade noancoramento identificatoacuterio edipiano cuja funccedilatildeo seria de permitir ao sujeitoafastar-se da crenccedila narciacutesica e reaparecer transformado apoacutes o processo de

luto sustentando o desejo e lanccedilando-se ao futuro Nesses termos natildeo eacute a fi-gura do Pai o que entra no lugar do ideal do eu ancorado numa imago assimeacute-trica que pudesse engendrar uma saiacuteda identificatoacuteria ndash tal como Freud(1923a) constatava na cliacutenica de sua eacutepoca O que entra no lugar do ideal do eueacute a proacutepria crenccedila narciacutesica funcionando ali como sintoma O deprimido en-contra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num processo psiacutequicode integraccedilatildeo que o filiaria no caso do luto a uma accedilatildeo descolada da idealiza-ccedilatildeo narciacutesica O que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos eacute a pro-

jeccedilatildeo no futuro de um eu ideal impossiacutevel de se realizar ndash e isso quando haacuteuma projeccedilatildeo no futuro Sem estabelecimento de qualquer construccedilatildeo narrati-

va a partir da qual o sujeito dispor-se-ia a agir a idealizaccedilatildeo de si mesmo nofuturo eacute similar agrave proacutepria idealizaccedilatildeo de lsquoSua Majestade o Bebecircrsquo (P9831459831509831449831419831459831549831512005) Ela eacute de tal ordem que o sujeito deprime como expressatildeo de seu proacutepriofracasso narciacutesico A imagem de si no presente eacute sempre insuficiente perante aexigecircncia do eu-ideal ldquoabsolutordquo e ldquoperdidordquo Tal insuficiecircncia beira numa si-milaridade inversa o mesmo absoluto irredutiacutevel da Crianccedila Maravilhosa

(Q983157983145983150983156983141983148983148983137 op cit ) Nesse niacutevel a natildeo instauraccedilatildeo do luto eacute situada no mes-mo ponto de evanescecircncia do ideal do eu que impede ao sujeito o afastamentoda crenccedila narciacutesica e a proacutepria ldquomorterdquo da Crianccedila Maravilhosa

10 O ideal do eu eacute o ponto de ancoragem identificatoacuteria que afasta a crianccedila do narcisismo

primaacuterio (F983154983141983157983140 1914) e consequentemente da crenccedila narciacutesica Eacute a partir da identificaccedilatildeoao ideal do eu que o sujeito internaliza os traccedilos do pai na dialeacutetica do desejo frente agrave condiccedilatildeoda falta no Outro O ideal do eu aparece como uma saiacuteda identificatoacuteria proporcionando amobilizaccedilatildeo do luto e o afastamento da fantasia primaacuteria da onipotecircncia narciacutesica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 10: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1021

A DOR E O EXISTIR

92

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Com Freud aleacutem de Freud luto e depressatildeo

Podemos adentrar o tema da depressatildeo e sua relaccedilatildeo com o luto medianteo estudo de alguns aspectos relativos agrave obra freudiana na depuraccedilatildeo dos pro-blemas concernentes agrave constituiccedilatildeo do sujeito

Em Bate-se numa crianccedila Freud (1919) identificou importantes elemen-tos subjacentes aos movimentos fantasmaacuteticos infantis os quais guardadassuas especificidades revelam a circunstacircncia especiacutefica de um momento sub-

jetivo extremamente relevante no percurso de vida dos sujeitosFreud discute ali algumas peculiaridades determinantes da fantasia infan-

til que podem revelar aspectos decisivos para a compreensatildeo do modo como o

sujeito responde ao impasse da onipotecircncia narciacutesica Ele aponta que a primei-ra fase da fantasia de flagelaccedilatildeo infantil corresponde a uma imagem repetitivana qual uma crianccedila eacute espancada por um adulto ndash em geral o pai A fase sub-sequente corresponde segundo ele agrave posiccedilatildeo inconsciente na qual o sujeito se

vecirc como sendo a proacutepria crianccedila espancada em que se faz verificar um retornoao masoquismo e um sentimento de culpa remetido ao desejo incestuoso Naterceira fase a fantasia se traduz por um sentido de universalizaccedilatildeo dos perso-nagens presentes natildeo havendo nela atribuiccedilotildees identificatoacuterias mas uma

abrangecircncia que natildeo especifica os atores da cenaEste resumo serve para nos referenciarmos na discussatildeo introduzida por

Freud a respeito da posiccedilatildeo do sujeito frente ao desejo dos pais que caracterizao rechaccedilo fantasmaacutetico de sua falta Esta condiccedilatildeo introduz para o sujeito umaexperiecircncia especiacutefica concernente agrave dimensatildeo da finitude e da transitorieda-de Nossa anaacutelise se ateacutem ao primeiro momento da fantasia acerca do qualFreud aponta

() muitas crianccedilas que se acreditavam seguramente entronadasna inabalaacutevel afeiccedilatildeo dos pais foram de um soacute golpe derrubadasde todos os ceacuteus da sua onipotecircncia imaginaacuteria A ideacuteia de o paibatendo nessa odiosa crianccedila eacute portanto agradaacutevel indepen-dente de ter sido realmente visto agindo assim Significa lsquoO meupai natildeo ama essa crianccedila mas apenas a mimrdquo7 (ibid p 202)

Conforme sinalizamos anteriormente a respeito do mito de onipotecircncianarciacutesica na constituiccedilatildeo existencial do sujeito salienta-se que em sua experi-ecircncia subjetiva a crianccedila eacute sumariamente destronada de seu lugar de opulecircn-

cia no discurso dos pais logo que os mesmos apresentam-se como faltosos

7 Grifo do autor

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

93Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

especialmente a matildee para quem os investimentos primaacuterios satildeo dirigidos Taldestronamento que muitas vezes toma a fantasia de flagelaccedilatildeo infantil comosaiacuteda possiacutevel ao impasse da onipotecircncia narciacutesica pode resultar natildeo menos

numa experiecircncia de luto cujo destino proporciona ao sujeito uma relaccedilatildeopositiva com a transitoriedade e o proacuteprio desejo Nesse acircmbito a anguacutestia dosujeito diante do objeto que aiacute se desnuda como perdido e natildeo nomeado moveum trabalho de luto capaz de reinstaurar a condiccedilatildeo do desejo

O trabalho do luto natildeo eacute contudo um movimento necessaacuterio de resposta agraveperda A depressatildeo aparece como uma possibilidade de resposta que difere do lutocuja incidecircncia caracteriza uma vicissitude da crenccedila narciacutesica Diferentemente deum trabalho de luto a depressatildeo aguda constitui em sua proacutepria radicalidade a

outra face de uma mesma moeda onipotecircncia narciacutesica e estase depressivaEsse sentido de onipotecircncia perseguido sintomaticamente pelo deprimido

eacute precisamente o que Serge Leclaire (1975) denomina ldquoCrianccedila Maravilhosardquo ACrianccedila Maravilhosa eacute segundo o autor o fundamento da experiecircncia ldquoprimaacute-riardquo do narcisismo ldquoeacute uma representaccedilatildeo inconsciente primordial na qual seentrelaccedilam mais densos do que em qualquer outra os anseios nostalgias e es-peranccedilas de cada umrdquo (ibid p 11) Essa figuraccedilatildeo faz toda referecircncia agrave crenccediladefinida como aquilo que promove o elo narrativo da experiecircncia de si na cons-

tituiccedilatildeo do sujeito Tal experiecircncia contorna toda uma complexidade que Le-claire situaraacute como o paradoxo da condiccedilatildeo subjetiva se por um lado estaldquomaravilha infantilrdquo faz referecircncia ao juacutebilo da centralidade narciacutesica por outrolado remete ao inescapaacutevel da morte ndash por isso o paradoxo ndash na assunccedilatildeo jubi-losa como primeira figuraccedilatildeo estaacutetica do sentimento de onipotecircncia Eacute o mitoda onipotecircncia produzindo uma fabulaccedilatildeo o absoluto impossiacutevel desfrutadopela insiacutegnia dos pais que emprestam o simboacutelico como mateacuteria-prima e o ima-ginaacuterio como efeito jubiloso da imagem perdida Nesse acircmbito nada mais pre-

ciso do que situar a dimensatildeo intriacutenseca da morte no proacuteprio nascimento dasubjetividade no existir primeiro tal como faz Leclaire Nascer (psiquicamen-te) implica em morrer e morrer implica em nascer sob o jugo de se fazer sujei-to e sustentar o movimento desejante cuja condiccedilatildeo eacute a proacutepria morte daldquoCrianccedila Maravilhosardquo Eacute o que Leclaire demonstra em sua anaacutelise do mito in-fantil aquele mesmo referido por Freud na menccedilatildeo ao ego-ideal marcado pelaalienaccedilatildeo que exige constantemente um trabalho de luto mata-se uma crianccedila8

8 Leclaire salienta em sua obra o aspecto pulsional deste processo no qual se assinala a pulsatildeode morte como condiccedilatildeo para a mobilizaccedilatildeo do proacuteprio luto O fracasso da instauraccedilatildeo desteuacuteltimo deflagra natildeo menos a reverberaccedilatildeo paradoxal da Crianccedila Maravilhosa em sua face cruele mortiacutefera tal como veremos adiante em nossa proposta sobre a depressatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1221

A DOR E O EXISTIR

94

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute notaacutevel entretanto a dificuldade que o sujeito tem muitas vezes deldquomatarrdquo sua proacutepria crianccedila interna ou seja fazer o luto da Crianccedila Maravi-lhosa Leclaire afirma que o sujeito refugia-se na Crianccedila Maravilhosa sob o

risco paradoxal de acelerar o curso inescapaacutevel de sua proacutepria morte de suafinitude objetiva O paradoxo que aqui se instala revela que para sustentar odesejo o sujeito tem de matar natildeo apenas o Outro que o inventou mas tam-beacutem a si mesmo num suiciacutedio sem morte cujo drama enuncia a trajetoacuteria daproacutepria dor narciacutesica Ou seja o sujeito nasce mergulhado numa crenccedila narciacute-

sica sob o risco perene da morte caso natildeo renuncie a esta mesma crenccedila que ofez existente Necessidade que Leclaire situa como funccedilatildeo permanente do mo-

vimento desejante

Se a perda eacute intriacutenseca agrave proacutepria experiecircncia narciacutesica circunscrevem-sea partir disso os conceitos de luto e depressatildeo como destinos heterogecircneos aoimpasse da onipotecircncia narciacutesica e da perda objetal Os contextos especiacuteficosnos quais a depressatildeo se manifesta de maneira mais violenta e criacutetica eacute a ex-pressatildeo maacutexima do paradoxo perfilado por Leclaire ndash paradoxo situado nosliames da vida e da morte (subjetivas) A depressatildeo caracteriza-se por umasaiacuteda contradesejante e natildeo eacute como pode parecer uma aderecircncia direta agrave mor-te Ela eacute diferentemente do luto a negaccedilatildeo da finitude e do desejo que situa o

paradoxo da Crianccedila Maravilhosa Tal paradoxo pode ser constatado pela ou-tra face desta moeda a depressatildeo eacute recurso do sujeito para natildeo se deparar como transitoacuterio e para tentar uma recuperaccedilatildeo do gozo atraveacutes da estagnaccedilatildeo e daprostraccedilatildeo ndash uma parada que exige do tempo aquilo que ele natildeo pode dar

Sobre esse aspecto o pensamento de Freud eacute de extrema fecundidade Emsuas perquiriccedilotildees Freud (1915) dizia que a transitoriedade natildeo reduz mas ao

contraacuterio aumenta o valor das coisas No texto que discute a respeito da tran-sitoriedade o ponto de vista de Freud situa na ponta de sua caneta aquilo que

seu interlocutor ndash o poeta Ranier Maria Rilke ndash apresenta quando se refere aotransitoacuterio O poeta afirma que se as coisas se acabam seu valor se destituinum presente absoluto triste e traacutegico Divergindo desta concepccedilatildeo Freuddenomina tal posiccedilatildeo de ldquorevolta contra o lutordquo vinculada a um dos mais pre-ponderantes anseios narciacutesicos a exigecircncia de imortalidade

() essa exigecircncia de imortalidade por ser tatildeo obviamente umproduto dos nossos desejos natildeo pode reivindicar seu direito agraverealidade o que eacute penoso pode natildeo obstante ser verdadeiro

() Natildeo deixei poreacutem de discutir o ponto de vista pessimistado poeta de que a transitoriedade do que eacute belo implica umaperda de seu valor (ibid p 317)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

95Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Contextualizando a depressatildeo nesta temaacutetica ndash a transitoriedade ndash salien-tamos que para a crenccedila narciacutesica ndash ancoragem fundamental da depressatildeo ndash afinitude eacute incompatiacutevel ao projeto de unidade e permanecircncia no discurso da

perfeiccedilatildeo na relaccedilatildeo ao Outro No caso dessa crenccedila assumir um estatuto cen-tral e hegemocircnico na vida psiacutequica do sujeito a estagnaccedilatildeo depressiva aparececomo a via pela qual diante da perda esse mesmo sujeito nega a morte daCrianccedila Maravilhosa impedindo-se agrave transformaccedilatildeo subjetiva engendradapelo luto marcando ali a natildeo sustentaccedilatildeo do desejo Trata-se de uma tentativafracassada de rechaccedilo da falta que marca o ser como incompleto ndash rechaccedilo da falta-a-ser mediante a representaccedilatildeo primaacuteria da Crianccedila Maravilhosa cujo co-rolaacuterio eacute a depressatildeo como resultado sintomaacutetico desse fracasso

Cabe frisar assim que natildeo se trata na depressatildeo de um desdobramento doafeto de tristeza dado que este como afeto conduz o sujeito ao trabalho deluto por mais intenso que possa se apresentar A depressatildeo natildeo se reduz a umafeto trata-se de uma saiacuteda defensiva que resulta em sintomas graves de estag-naccedilatildeo perda do interesse pela vida desinvestimento conflitos com a imagemde si ndash sintomas que agraves vezes culminam em atos suicidas O deprimido ancora--se no mito da onipotecircncia do eu que natildeo passando de um lampejo de perfei-ccedilatildeo que se apaga no tempo engendra uma posiccedilatildeo inversa de silenciamento

absoluto e denegaccedilatildeo radical da divisatildeo e do desejo Caracteriza-se nisso acontrapartida oposta agravequela subjacente ao desejo este uacuteltimo assumindo sus-tentaccedilatildeo mediante o luto cuja principal funccedilatildeo eacute inscrever a contingecircncia dosujeito sua temporalidade transitoriedade e mortalidade conjugando comisso a relaccedilatildeo entre a perda e o proacuteprio desejo9

Algumas notas sobre a distinccedilatildeo entre depressatildeo e melancolia

Cabe aqui realizar uma breve distinccedilatildeo imprescindiacutevel do ponto de vistateoacuterico-cliacutenico para que natildeo incorramos em equiacutevocos que muitas vezes apa-recem no campo psicanaliacutetico Na melancolia a questatildeo apresenta-se de ma-neira distinta Nela o que ocorre eacute uma retirada da libido para o eu ndash o quediante da perda caracteriza a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto (F983154983141983157983140 1917)

9 A condiccedilatildeo aqui descrita se acha na base da experiecircncia depressiva que se intensifica na con-temporaneidade e de outros sintomas que sobrepujam as manifestaccedilotildees ldquoclaacutessicasrdquo caracteriacutes-

ticas da metaacutefora sintomaacutetica histeacuterica a qual ofertava o corpo como palco de decifraccedilatildeo dodesejo inconsciente Nesse sentido o sintoma da depressatildeo apresenta especificidades outrasque merecem todo cuidado teoacuterico-cliacutenico no que tange agraves possibilidades de saiacuteda diante dacastraccedilatildeo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do eu como veremos agrave frente

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1421

A DOR E O EXISTIR

96

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Essa identificaccedilatildeo marca a impossibilidade mesma de inscriccedilatildeo da perda agravemedida que o objeto fica ldquoinstaladordquo no eu promovendo o automassacre me-lancoacutelico Esse processo eacute engendrado pelo supereu perante o eu ideal evanes-

cente caracteriacutestico da afirmaccedilatildeo freudiana de que ldquoa sombra do objeto recaiusobre o eurdquo (ibid )

Numa apreensatildeo aprofundada Lambotte (2003) situa na constituiccedilatildeo dasubjetividade melancoacutelica uma forma de identificaccedilatildeo que denomina ldquoidentifi-

caccedilatildeo ao nadardquo subjacente agrave ldquodeserccedilatildeo do Outrordquo e agrave ldquoevanescecircncia do eu-ideal rdquoSegundo esta apreensatildeo a crianccedila em sua constituiccedilatildeo subjetiva natildeo eacute fisgadacomo objeto do discurso idealizado dos pais na constituiccedilatildeo especular O olharda matildee segundo a autora atravessa o sujeito natildeo atribuindo a ele qualquer

sentido de existecircncia ou predicaccedilatildeo deflagrando para ele uma existecircncia nonada Desertado o Outro natildeo inclui o sujeito na funccedilatildeo do desejo mas num

vazio sem precedentes que instaura a Identificaccedilatildeo ao nada (ibid) O melancoacute-lico denuncia de maneira violenta e mesmo insuportaacutevel a sua proacutepria insus-tentabilidade existencial Natildeo atingido pela idealizaccedilatildeo narciacutesica que de outrasorte o colocaria numa posiccedilatildeo de centralidade (eu ideal) o eu se precipitadestituiacutedo contudo da ilusatildeo de sua proacutepria onipotecircncia Natildeo houve sequer aconstituiccedilatildeo do objeto como ldquoperdidordquo (H983137983155983155983151983157983150 2002) ndash natildeo havendo reco-

nhecimento ou registro da perda que promoveria a inscriccedilatildeo do sujeito nocampo do desejo Ali a idealizaccedilatildeo se constituiu no ponto de evanescecircncia doolhar da matildee o qual se dirige a um modelo cuja exterioridade representa umideal inacessiacutevel para o sujeito Segundo essa loacutegica o sujeito eacute lanccedilado parafora de qualquer representaccedilatildeo jubilosa caracteriacutestica da formaccedilatildeo primaacuteria dacrenccedila narciacutesica (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Sem chances de alcance o ideal se tornaa proacutepria raiz do aviltamento superegoico Nesse sentido Lambotte fala numaldquoruptura do transitivismo especular que chega ao isolamento e ao reforccedilo do

ideal do eu agraves expensas de um eu-ideal que natildeo pocircde elaborar-se na origemrdquo(L983137983149983138983151983156983156983141 op cit p 224)

Sendo assim o que vai se assinalar na melancolia eacute um ideal do eu riacutegidoateacute as uacuteltimas consequecircncias fortalecido por um supereu capaz de estraccedilalharo eu melancoacutelico A evanescecircncia do eu ideal na melancolia se encontra na basedo massacre superegoacuteico cujo teor discursivo aponta para ldquoeu natildeo valho nadardquoldquoeu natildeo sou nadardquo (L983137983149983138983151983156983156983141 op cit )

Na depressatildeo diferentemente o sujeito reconhece a perda do objeto con-

tudo refugia-se na crenccedila narciacutesica num recuo defensivo que nega qualquerpossibilidade de transformaccedilatildeo ou de se lanccedilar ao ideal do eu Sobre isso cabelembrar que a depressatildeo manifesta uma forma de idealizaccedilatildeo cujo registro

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

97Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

acha-se fixado ao eu ideal da Crianccedila Maravilhosa O que vai distinguir essasformas de sofrimento eacute que a evanescecircncia na subjetivaccedilatildeo dos pacientes depri-

midos natildeo eacute do eu ideal mas do ideal do eu10

Podemos assinalar nesse diferencial o cerne da idealizaccedilatildeo que marca es-sas duas manifestaccedilotildees cliacutenicas na melancolia constata-se a evanescecircncia doeu ideal que abre caminho para a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto na depres-satildeo a evanescecircncia do ideal do eu assinalando-se o recuo para a crenccedila narciacute-sica que passaraacute a funcionar como um sintoma

Como ldquoevanescecircncia do ideal do eurdquo define-se aqui uma fugacidade noancoramento identificatoacuterio edipiano cuja funccedilatildeo seria de permitir ao sujeitoafastar-se da crenccedila narciacutesica e reaparecer transformado apoacutes o processo de

luto sustentando o desejo e lanccedilando-se ao futuro Nesses termos natildeo eacute a fi-gura do Pai o que entra no lugar do ideal do eu ancorado numa imago assimeacute-trica que pudesse engendrar uma saiacuteda identificatoacuteria ndash tal como Freud(1923a) constatava na cliacutenica de sua eacutepoca O que entra no lugar do ideal do eueacute a proacutepria crenccedila narciacutesica funcionando ali como sintoma O deprimido en-contra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num processo psiacutequicode integraccedilatildeo que o filiaria no caso do luto a uma accedilatildeo descolada da idealiza-ccedilatildeo narciacutesica O que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos eacute a pro-

jeccedilatildeo no futuro de um eu ideal impossiacutevel de se realizar ndash e isso quando haacuteuma projeccedilatildeo no futuro Sem estabelecimento de qualquer construccedilatildeo narrati-

va a partir da qual o sujeito dispor-se-ia a agir a idealizaccedilatildeo de si mesmo nofuturo eacute similar agrave proacutepria idealizaccedilatildeo de lsquoSua Majestade o Bebecircrsquo (P9831459831509831449831419831459831549831512005) Ela eacute de tal ordem que o sujeito deprime como expressatildeo de seu proacutepriofracasso narciacutesico A imagem de si no presente eacute sempre insuficiente perante aexigecircncia do eu-ideal ldquoabsolutordquo e ldquoperdidordquo Tal insuficiecircncia beira numa si-milaridade inversa o mesmo absoluto irredutiacutevel da Crianccedila Maravilhosa

(Q983157983145983150983156983141983148983148983137 op cit ) Nesse niacutevel a natildeo instauraccedilatildeo do luto eacute situada no mes-mo ponto de evanescecircncia do ideal do eu que impede ao sujeito o afastamentoda crenccedila narciacutesica e a proacutepria ldquomorterdquo da Crianccedila Maravilhosa

10 O ideal do eu eacute o ponto de ancoragem identificatoacuteria que afasta a crianccedila do narcisismo

primaacuterio (F983154983141983157983140 1914) e consequentemente da crenccedila narciacutesica Eacute a partir da identificaccedilatildeoao ideal do eu que o sujeito internaliza os traccedilos do pai na dialeacutetica do desejo frente agrave condiccedilatildeoda falta no Outro O ideal do eu aparece como uma saiacuteda identificatoacuteria proporcionando amobilizaccedilatildeo do luto e o afastamento da fantasia primaacuteria da onipotecircncia narciacutesica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 11: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

93Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

especialmente a matildee para quem os investimentos primaacuterios satildeo dirigidos Taldestronamento que muitas vezes toma a fantasia de flagelaccedilatildeo infantil comosaiacuteda possiacutevel ao impasse da onipotecircncia narciacutesica pode resultar natildeo menos

numa experiecircncia de luto cujo destino proporciona ao sujeito uma relaccedilatildeopositiva com a transitoriedade e o proacuteprio desejo Nesse acircmbito a anguacutestia dosujeito diante do objeto que aiacute se desnuda como perdido e natildeo nomeado moveum trabalho de luto capaz de reinstaurar a condiccedilatildeo do desejo

O trabalho do luto natildeo eacute contudo um movimento necessaacuterio de resposta agraveperda A depressatildeo aparece como uma possibilidade de resposta que difere do lutocuja incidecircncia caracteriza uma vicissitude da crenccedila narciacutesica Diferentemente deum trabalho de luto a depressatildeo aguda constitui em sua proacutepria radicalidade a

outra face de uma mesma moeda onipotecircncia narciacutesica e estase depressivaEsse sentido de onipotecircncia perseguido sintomaticamente pelo deprimido

eacute precisamente o que Serge Leclaire (1975) denomina ldquoCrianccedila Maravilhosardquo ACrianccedila Maravilhosa eacute segundo o autor o fundamento da experiecircncia ldquoprimaacute-riardquo do narcisismo ldquoeacute uma representaccedilatildeo inconsciente primordial na qual seentrelaccedilam mais densos do que em qualquer outra os anseios nostalgias e es-peranccedilas de cada umrdquo (ibid p 11) Essa figuraccedilatildeo faz toda referecircncia agrave crenccediladefinida como aquilo que promove o elo narrativo da experiecircncia de si na cons-

tituiccedilatildeo do sujeito Tal experiecircncia contorna toda uma complexidade que Le-claire situaraacute como o paradoxo da condiccedilatildeo subjetiva se por um lado estaldquomaravilha infantilrdquo faz referecircncia ao juacutebilo da centralidade narciacutesica por outrolado remete ao inescapaacutevel da morte ndash por isso o paradoxo ndash na assunccedilatildeo jubi-losa como primeira figuraccedilatildeo estaacutetica do sentimento de onipotecircncia Eacute o mitoda onipotecircncia produzindo uma fabulaccedilatildeo o absoluto impossiacutevel desfrutadopela insiacutegnia dos pais que emprestam o simboacutelico como mateacuteria-prima e o ima-ginaacuterio como efeito jubiloso da imagem perdida Nesse acircmbito nada mais pre-

ciso do que situar a dimensatildeo intriacutenseca da morte no proacuteprio nascimento dasubjetividade no existir primeiro tal como faz Leclaire Nascer (psiquicamen-te) implica em morrer e morrer implica em nascer sob o jugo de se fazer sujei-to e sustentar o movimento desejante cuja condiccedilatildeo eacute a proacutepria morte daldquoCrianccedila Maravilhosardquo Eacute o que Leclaire demonstra em sua anaacutelise do mito in-fantil aquele mesmo referido por Freud na menccedilatildeo ao ego-ideal marcado pelaalienaccedilatildeo que exige constantemente um trabalho de luto mata-se uma crianccedila8

8 Leclaire salienta em sua obra o aspecto pulsional deste processo no qual se assinala a pulsatildeode morte como condiccedilatildeo para a mobilizaccedilatildeo do proacuteprio luto O fracasso da instauraccedilatildeo desteuacuteltimo deflagra natildeo menos a reverberaccedilatildeo paradoxal da Crianccedila Maravilhosa em sua face cruele mortiacutefera tal como veremos adiante em nossa proposta sobre a depressatildeo

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1221

A DOR E O EXISTIR

94

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute notaacutevel entretanto a dificuldade que o sujeito tem muitas vezes deldquomatarrdquo sua proacutepria crianccedila interna ou seja fazer o luto da Crianccedila Maravi-lhosa Leclaire afirma que o sujeito refugia-se na Crianccedila Maravilhosa sob o

risco paradoxal de acelerar o curso inescapaacutevel de sua proacutepria morte de suafinitude objetiva O paradoxo que aqui se instala revela que para sustentar odesejo o sujeito tem de matar natildeo apenas o Outro que o inventou mas tam-beacutem a si mesmo num suiciacutedio sem morte cujo drama enuncia a trajetoacuteria daproacutepria dor narciacutesica Ou seja o sujeito nasce mergulhado numa crenccedila narciacute-

sica sob o risco perene da morte caso natildeo renuncie a esta mesma crenccedila que ofez existente Necessidade que Leclaire situa como funccedilatildeo permanente do mo-

vimento desejante

Se a perda eacute intriacutenseca agrave proacutepria experiecircncia narciacutesica circunscrevem-sea partir disso os conceitos de luto e depressatildeo como destinos heterogecircneos aoimpasse da onipotecircncia narciacutesica e da perda objetal Os contextos especiacuteficosnos quais a depressatildeo se manifesta de maneira mais violenta e criacutetica eacute a ex-pressatildeo maacutexima do paradoxo perfilado por Leclaire ndash paradoxo situado nosliames da vida e da morte (subjetivas) A depressatildeo caracteriza-se por umasaiacuteda contradesejante e natildeo eacute como pode parecer uma aderecircncia direta agrave mor-te Ela eacute diferentemente do luto a negaccedilatildeo da finitude e do desejo que situa o

paradoxo da Crianccedila Maravilhosa Tal paradoxo pode ser constatado pela ou-tra face desta moeda a depressatildeo eacute recurso do sujeito para natildeo se deparar como transitoacuterio e para tentar uma recuperaccedilatildeo do gozo atraveacutes da estagnaccedilatildeo e daprostraccedilatildeo ndash uma parada que exige do tempo aquilo que ele natildeo pode dar

Sobre esse aspecto o pensamento de Freud eacute de extrema fecundidade Emsuas perquiriccedilotildees Freud (1915) dizia que a transitoriedade natildeo reduz mas ao

contraacuterio aumenta o valor das coisas No texto que discute a respeito da tran-sitoriedade o ponto de vista de Freud situa na ponta de sua caneta aquilo que

seu interlocutor ndash o poeta Ranier Maria Rilke ndash apresenta quando se refere aotransitoacuterio O poeta afirma que se as coisas se acabam seu valor se destituinum presente absoluto triste e traacutegico Divergindo desta concepccedilatildeo Freuddenomina tal posiccedilatildeo de ldquorevolta contra o lutordquo vinculada a um dos mais pre-ponderantes anseios narciacutesicos a exigecircncia de imortalidade

() essa exigecircncia de imortalidade por ser tatildeo obviamente umproduto dos nossos desejos natildeo pode reivindicar seu direito agraverealidade o que eacute penoso pode natildeo obstante ser verdadeiro

() Natildeo deixei poreacutem de discutir o ponto de vista pessimistado poeta de que a transitoriedade do que eacute belo implica umaperda de seu valor (ibid p 317)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

95Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Contextualizando a depressatildeo nesta temaacutetica ndash a transitoriedade ndash salien-tamos que para a crenccedila narciacutesica ndash ancoragem fundamental da depressatildeo ndash afinitude eacute incompatiacutevel ao projeto de unidade e permanecircncia no discurso da

perfeiccedilatildeo na relaccedilatildeo ao Outro No caso dessa crenccedila assumir um estatuto cen-tral e hegemocircnico na vida psiacutequica do sujeito a estagnaccedilatildeo depressiva aparececomo a via pela qual diante da perda esse mesmo sujeito nega a morte daCrianccedila Maravilhosa impedindo-se agrave transformaccedilatildeo subjetiva engendradapelo luto marcando ali a natildeo sustentaccedilatildeo do desejo Trata-se de uma tentativafracassada de rechaccedilo da falta que marca o ser como incompleto ndash rechaccedilo da falta-a-ser mediante a representaccedilatildeo primaacuteria da Crianccedila Maravilhosa cujo co-rolaacuterio eacute a depressatildeo como resultado sintomaacutetico desse fracasso

Cabe frisar assim que natildeo se trata na depressatildeo de um desdobramento doafeto de tristeza dado que este como afeto conduz o sujeito ao trabalho deluto por mais intenso que possa se apresentar A depressatildeo natildeo se reduz a umafeto trata-se de uma saiacuteda defensiva que resulta em sintomas graves de estag-naccedilatildeo perda do interesse pela vida desinvestimento conflitos com a imagemde si ndash sintomas que agraves vezes culminam em atos suicidas O deprimido ancora--se no mito da onipotecircncia do eu que natildeo passando de um lampejo de perfei-ccedilatildeo que se apaga no tempo engendra uma posiccedilatildeo inversa de silenciamento

absoluto e denegaccedilatildeo radical da divisatildeo e do desejo Caracteriza-se nisso acontrapartida oposta agravequela subjacente ao desejo este uacuteltimo assumindo sus-tentaccedilatildeo mediante o luto cuja principal funccedilatildeo eacute inscrever a contingecircncia dosujeito sua temporalidade transitoriedade e mortalidade conjugando comisso a relaccedilatildeo entre a perda e o proacuteprio desejo9

Algumas notas sobre a distinccedilatildeo entre depressatildeo e melancolia

Cabe aqui realizar uma breve distinccedilatildeo imprescindiacutevel do ponto de vistateoacuterico-cliacutenico para que natildeo incorramos em equiacutevocos que muitas vezes apa-recem no campo psicanaliacutetico Na melancolia a questatildeo apresenta-se de ma-neira distinta Nela o que ocorre eacute uma retirada da libido para o eu ndash o quediante da perda caracteriza a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto (F983154983141983157983140 1917)

9 A condiccedilatildeo aqui descrita se acha na base da experiecircncia depressiva que se intensifica na con-temporaneidade e de outros sintomas que sobrepujam as manifestaccedilotildees ldquoclaacutessicasrdquo caracteriacutes-

ticas da metaacutefora sintomaacutetica histeacuterica a qual ofertava o corpo como palco de decifraccedilatildeo dodesejo inconsciente Nesse sentido o sintoma da depressatildeo apresenta especificidades outrasque merecem todo cuidado teoacuterico-cliacutenico no que tange agraves possibilidades de saiacuteda diante dacastraccedilatildeo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do eu como veremos agrave frente

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1421

A DOR E O EXISTIR

96

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Essa identificaccedilatildeo marca a impossibilidade mesma de inscriccedilatildeo da perda agravemedida que o objeto fica ldquoinstaladordquo no eu promovendo o automassacre me-lancoacutelico Esse processo eacute engendrado pelo supereu perante o eu ideal evanes-

cente caracteriacutestico da afirmaccedilatildeo freudiana de que ldquoa sombra do objeto recaiusobre o eurdquo (ibid )

Numa apreensatildeo aprofundada Lambotte (2003) situa na constituiccedilatildeo dasubjetividade melancoacutelica uma forma de identificaccedilatildeo que denomina ldquoidentifi-

caccedilatildeo ao nadardquo subjacente agrave ldquodeserccedilatildeo do Outrordquo e agrave ldquoevanescecircncia do eu-ideal rdquoSegundo esta apreensatildeo a crianccedila em sua constituiccedilatildeo subjetiva natildeo eacute fisgadacomo objeto do discurso idealizado dos pais na constituiccedilatildeo especular O olharda matildee segundo a autora atravessa o sujeito natildeo atribuindo a ele qualquer

sentido de existecircncia ou predicaccedilatildeo deflagrando para ele uma existecircncia nonada Desertado o Outro natildeo inclui o sujeito na funccedilatildeo do desejo mas num

vazio sem precedentes que instaura a Identificaccedilatildeo ao nada (ibid) O melancoacute-lico denuncia de maneira violenta e mesmo insuportaacutevel a sua proacutepria insus-tentabilidade existencial Natildeo atingido pela idealizaccedilatildeo narciacutesica que de outrasorte o colocaria numa posiccedilatildeo de centralidade (eu ideal) o eu se precipitadestituiacutedo contudo da ilusatildeo de sua proacutepria onipotecircncia Natildeo houve sequer aconstituiccedilatildeo do objeto como ldquoperdidordquo (H983137983155983155983151983157983150 2002) ndash natildeo havendo reco-

nhecimento ou registro da perda que promoveria a inscriccedilatildeo do sujeito nocampo do desejo Ali a idealizaccedilatildeo se constituiu no ponto de evanescecircncia doolhar da matildee o qual se dirige a um modelo cuja exterioridade representa umideal inacessiacutevel para o sujeito Segundo essa loacutegica o sujeito eacute lanccedilado parafora de qualquer representaccedilatildeo jubilosa caracteriacutestica da formaccedilatildeo primaacuteria dacrenccedila narciacutesica (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Sem chances de alcance o ideal se tornaa proacutepria raiz do aviltamento superegoico Nesse sentido Lambotte fala numaldquoruptura do transitivismo especular que chega ao isolamento e ao reforccedilo do

ideal do eu agraves expensas de um eu-ideal que natildeo pocircde elaborar-se na origemrdquo(L983137983149983138983151983156983156983141 op cit p 224)

Sendo assim o que vai se assinalar na melancolia eacute um ideal do eu riacutegidoateacute as uacuteltimas consequecircncias fortalecido por um supereu capaz de estraccedilalharo eu melancoacutelico A evanescecircncia do eu ideal na melancolia se encontra na basedo massacre superegoacuteico cujo teor discursivo aponta para ldquoeu natildeo valho nadardquoldquoeu natildeo sou nadardquo (L983137983149983138983151983156983156983141 op cit )

Na depressatildeo diferentemente o sujeito reconhece a perda do objeto con-

tudo refugia-se na crenccedila narciacutesica num recuo defensivo que nega qualquerpossibilidade de transformaccedilatildeo ou de se lanccedilar ao ideal do eu Sobre isso cabelembrar que a depressatildeo manifesta uma forma de idealizaccedilatildeo cujo registro

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

97Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

acha-se fixado ao eu ideal da Crianccedila Maravilhosa O que vai distinguir essasformas de sofrimento eacute que a evanescecircncia na subjetivaccedilatildeo dos pacientes depri-

midos natildeo eacute do eu ideal mas do ideal do eu10

Podemos assinalar nesse diferencial o cerne da idealizaccedilatildeo que marca es-sas duas manifestaccedilotildees cliacutenicas na melancolia constata-se a evanescecircncia doeu ideal que abre caminho para a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto na depres-satildeo a evanescecircncia do ideal do eu assinalando-se o recuo para a crenccedila narciacute-sica que passaraacute a funcionar como um sintoma

Como ldquoevanescecircncia do ideal do eurdquo define-se aqui uma fugacidade noancoramento identificatoacuterio edipiano cuja funccedilatildeo seria de permitir ao sujeitoafastar-se da crenccedila narciacutesica e reaparecer transformado apoacutes o processo de

luto sustentando o desejo e lanccedilando-se ao futuro Nesses termos natildeo eacute a fi-gura do Pai o que entra no lugar do ideal do eu ancorado numa imago assimeacute-trica que pudesse engendrar uma saiacuteda identificatoacuteria ndash tal como Freud(1923a) constatava na cliacutenica de sua eacutepoca O que entra no lugar do ideal do eueacute a proacutepria crenccedila narciacutesica funcionando ali como sintoma O deprimido en-contra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num processo psiacutequicode integraccedilatildeo que o filiaria no caso do luto a uma accedilatildeo descolada da idealiza-ccedilatildeo narciacutesica O que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos eacute a pro-

jeccedilatildeo no futuro de um eu ideal impossiacutevel de se realizar ndash e isso quando haacuteuma projeccedilatildeo no futuro Sem estabelecimento de qualquer construccedilatildeo narrati-

va a partir da qual o sujeito dispor-se-ia a agir a idealizaccedilatildeo de si mesmo nofuturo eacute similar agrave proacutepria idealizaccedilatildeo de lsquoSua Majestade o Bebecircrsquo (P9831459831509831449831419831459831549831512005) Ela eacute de tal ordem que o sujeito deprime como expressatildeo de seu proacutepriofracasso narciacutesico A imagem de si no presente eacute sempre insuficiente perante aexigecircncia do eu-ideal ldquoabsolutordquo e ldquoperdidordquo Tal insuficiecircncia beira numa si-milaridade inversa o mesmo absoluto irredutiacutevel da Crianccedila Maravilhosa

(Q983157983145983150983156983141983148983148983137 op cit ) Nesse niacutevel a natildeo instauraccedilatildeo do luto eacute situada no mes-mo ponto de evanescecircncia do ideal do eu que impede ao sujeito o afastamentoda crenccedila narciacutesica e a proacutepria ldquomorterdquo da Crianccedila Maravilhosa

10 O ideal do eu eacute o ponto de ancoragem identificatoacuteria que afasta a crianccedila do narcisismo

primaacuterio (F983154983141983157983140 1914) e consequentemente da crenccedila narciacutesica Eacute a partir da identificaccedilatildeoao ideal do eu que o sujeito internaliza os traccedilos do pai na dialeacutetica do desejo frente agrave condiccedilatildeoda falta no Outro O ideal do eu aparece como uma saiacuteda identificatoacuteria proporcionando amobilizaccedilatildeo do luto e o afastamento da fantasia primaacuteria da onipotecircncia narciacutesica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 12: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1221

A DOR E O EXISTIR

94

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Eacute notaacutevel entretanto a dificuldade que o sujeito tem muitas vezes deldquomatarrdquo sua proacutepria crianccedila interna ou seja fazer o luto da Crianccedila Maravi-lhosa Leclaire afirma que o sujeito refugia-se na Crianccedila Maravilhosa sob o

risco paradoxal de acelerar o curso inescapaacutevel de sua proacutepria morte de suafinitude objetiva O paradoxo que aqui se instala revela que para sustentar odesejo o sujeito tem de matar natildeo apenas o Outro que o inventou mas tam-beacutem a si mesmo num suiciacutedio sem morte cujo drama enuncia a trajetoacuteria daproacutepria dor narciacutesica Ou seja o sujeito nasce mergulhado numa crenccedila narciacute-

sica sob o risco perene da morte caso natildeo renuncie a esta mesma crenccedila que ofez existente Necessidade que Leclaire situa como funccedilatildeo permanente do mo-

vimento desejante

Se a perda eacute intriacutenseca agrave proacutepria experiecircncia narciacutesica circunscrevem-sea partir disso os conceitos de luto e depressatildeo como destinos heterogecircneos aoimpasse da onipotecircncia narciacutesica e da perda objetal Os contextos especiacuteficosnos quais a depressatildeo se manifesta de maneira mais violenta e criacutetica eacute a ex-pressatildeo maacutexima do paradoxo perfilado por Leclaire ndash paradoxo situado nosliames da vida e da morte (subjetivas) A depressatildeo caracteriza-se por umasaiacuteda contradesejante e natildeo eacute como pode parecer uma aderecircncia direta agrave mor-te Ela eacute diferentemente do luto a negaccedilatildeo da finitude e do desejo que situa o

paradoxo da Crianccedila Maravilhosa Tal paradoxo pode ser constatado pela ou-tra face desta moeda a depressatildeo eacute recurso do sujeito para natildeo se deparar como transitoacuterio e para tentar uma recuperaccedilatildeo do gozo atraveacutes da estagnaccedilatildeo e daprostraccedilatildeo ndash uma parada que exige do tempo aquilo que ele natildeo pode dar

Sobre esse aspecto o pensamento de Freud eacute de extrema fecundidade Emsuas perquiriccedilotildees Freud (1915) dizia que a transitoriedade natildeo reduz mas ao

contraacuterio aumenta o valor das coisas No texto que discute a respeito da tran-sitoriedade o ponto de vista de Freud situa na ponta de sua caneta aquilo que

seu interlocutor ndash o poeta Ranier Maria Rilke ndash apresenta quando se refere aotransitoacuterio O poeta afirma que se as coisas se acabam seu valor se destituinum presente absoluto triste e traacutegico Divergindo desta concepccedilatildeo Freuddenomina tal posiccedilatildeo de ldquorevolta contra o lutordquo vinculada a um dos mais pre-ponderantes anseios narciacutesicos a exigecircncia de imortalidade

() essa exigecircncia de imortalidade por ser tatildeo obviamente umproduto dos nossos desejos natildeo pode reivindicar seu direito agraverealidade o que eacute penoso pode natildeo obstante ser verdadeiro

() Natildeo deixei poreacutem de discutir o ponto de vista pessimistado poeta de que a transitoriedade do que eacute belo implica umaperda de seu valor (ibid p 317)

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

95Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Contextualizando a depressatildeo nesta temaacutetica ndash a transitoriedade ndash salien-tamos que para a crenccedila narciacutesica ndash ancoragem fundamental da depressatildeo ndash afinitude eacute incompatiacutevel ao projeto de unidade e permanecircncia no discurso da

perfeiccedilatildeo na relaccedilatildeo ao Outro No caso dessa crenccedila assumir um estatuto cen-tral e hegemocircnico na vida psiacutequica do sujeito a estagnaccedilatildeo depressiva aparececomo a via pela qual diante da perda esse mesmo sujeito nega a morte daCrianccedila Maravilhosa impedindo-se agrave transformaccedilatildeo subjetiva engendradapelo luto marcando ali a natildeo sustentaccedilatildeo do desejo Trata-se de uma tentativafracassada de rechaccedilo da falta que marca o ser como incompleto ndash rechaccedilo da falta-a-ser mediante a representaccedilatildeo primaacuteria da Crianccedila Maravilhosa cujo co-rolaacuterio eacute a depressatildeo como resultado sintomaacutetico desse fracasso

Cabe frisar assim que natildeo se trata na depressatildeo de um desdobramento doafeto de tristeza dado que este como afeto conduz o sujeito ao trabalho deluto por mais intenso que possa se apresentar A depressatildeo natildeo se reduz a umafeto trata-se de uma saiacuteda defensiva que resulta em sintomas graves de estag-naccedilatildeo perda do interesse pela vida desinvestimento conflitos com a imagemde si ndash sintomas que agraves vezes culminam em atos suicidas O deprimido ancora--se no mito da onipotecircncia do eu que natildeo passando de um lampejo de perfei-ccedilatildeo que se apaga no tempo engendra uma posiccedilatildeo inversa de silenciamento

absoluto e denegaccedilatildeo radical da divisatildeo e do desejo Caracteriza-se nisso acontrapartida oposta agravequela subjacente ao desejo este uacuteltimo assumindo sus-tentaccedilatildeo mediante o luto cuja principal funccedilatildeo eacute inscrever a contingecircncia dosujeito sua temporalidade transitoriedade e mortalidade conjugando comisso a relaccedilatildeo entre a perda e o proacuteprio desejo9

Algumas notas sobre a distinccedilatildeo entre depressatildeo e melancolia

Cabe aqui realizar uma breve distinccedilatildeo imprescindiacutevel do ponto de vistateoacuterico-cliacutenico para que natildeo incorramos em equiacutevocos que muitas vezes apa-recem no campo psicanaliacutetico Na melancolia a questatildeo apresenta-se de ma-neira distinta Nela o que ocorre eacute uma retirada da libido para o eu ndash o quediante da perda caracteriza a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto (F983154983141983157983140 1917)

9 A condiccedilatildeo aqui descrita se acha na base da experiecircncia depressiva que se intensifica na con-temporaneidade e de outros sintomas que sobrepujam as manifestaccedilotildees ldquoclaacutessicasrdquo caracteriacutes-

ticas da metaacutefora sintomaacutetica histeacuterica a qual ofertava o corpo como palco de decifraccedilatildeo dodesejo inconsciente Nesse sentido o sintoma da depressatildeo apresenta especificidades outrasque merecem todo cuidado teoacuterico-cliacutenico no que tange agraves possibilidades de saiacuteda diante dacastraccedilatildeo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do eu como veremos agrave frente

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1421

A DOR E O EXISTIR

96

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Essa identificaccedilatildeo marca a impossibilidade mesma de inscriccedilatildeo da perda agravemedida que o objeto fica ldquoinstaladordquo no eu promovendo o automassacre me-lancoacutelico Esse processo eacute engendrado pelo supereu perante o eu ideal evanes-

cente caracteriacutestico da afirmaccedilatildeo freudiana de que ldquoa sombra do objeto recaiusobre o eurdquo (ibid )

Numa apreensatildeo aprofundada Lambotte (2003) situa na constituiccedilatildeo dasubjetividade melancoacutelica uma forma de identificaccedilatildeo que denomina ldquoidentifi-

caccedilatildeo ao nadardquo subjacente agrave ldquodeserccedilatildeo do Outrordquo e agrave ldquoevanescecircncia do eu-ideal rdquoSegundo esta apreensatildeo a crianccedila em sua constituiccedilatildeo subjetiva natildeo eacute fisgadacomo objeto do discurso idealizado dos pais na constituiccedilatildeo especular O olharda matildee segundo a autora atravessa o sujeito natildeo atribuindo a ele qualquer

sentido de existecircncia ou predicaccedilatildeo deflagrando para ele uma existecircncia nonada Desertado o Outro natildeo inclui o sujeito na funccedilatildeo do desejo mas num

vazio sem precedentes que instaura a Identificaccedilatildeo ao nada (ibid) O melancoacute-lico denuncia de maneira violenta e mesmo insuportaacutevel a sua proacutepria insus-tentabilidade existencial Natildeo atingido pela idealizaccedilatildeo narciacutesica que de outrasorte o colocaria numa posiccedilatildeo de centralidade (eu ideal) o eu se precipitadestituiacutedo contudo da ilusatildeo de sua proacutepria onipotecircncia Natildeo houve sequer aconstituiccedilatildeo do objeto como ldquoperdidordquo (H983137983155983155983151983157983150 2002) ndash natildeo havendo reco-

nhecimento ou registro da perda que promoveria a inscriccedilatildeo do sujeito nocampo do desejo Ali a idealizaccedilatildeo se constituiu no ponto de evanescecircncia doolhar da matildee o qual se dirige a um modelo cuja exterioridade representa umideal inacessiacutevel para o sujeito Segundo essa loacutegica o sujeito eacute lanccedilado parafora de qualquer representaccedilatildeo jubilosa caracteriacutestica da formaccedilatildeo primaacuteria dacrenccedila narciacutesica (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Sem chances de alcance o ideal se tornaa proacutepria raiz do aviltamento superegoico Nesse sentido Lambotte fala numaldquoruptura do transitivismo especular que chega ao isolamento e ao reforccedilo do

ideal do eu agraves expensas de um eu-ideal que natildeo pocircde elaborar-se na origemrdquo(L983137983149983138983151983156983156983141 op cit p 224)

Sendo assim o que vai se assinalar na melancolia eacute um ideal do eu riacutegidoateacute as uacuteltimas consequecircncias fortalecido por um supereu capaz de estraccedilalharo eu melancoacutelico A evanescecircncia do eu ideal na melancolia se encontra na basedo massacre superegoacuteico cujo teor discursivo aponta para ldquoeu natildeo valho nadardquoldquoeu natildeo sou nadardquo (L983137983149983138983151983156983156983141 op cit )

Na depressatildeo diferentemente o sujeito reconhece a perda do objeto con-

tudo refugia-se na crenccedila narciacutesica num recuo defensivo que nega qualquerpossibilidade de transformaccedilatildeo ou de se lanccedilar ao ideal do eu Sobre isso cabelembrar que a depressatildeo manifesta uma forma de idealizaccedilatildeo cujo registro

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

97Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

acha-se fixado ao eu ideal da Crianccedila Maravilhosa O que vai distinguir essasformas de sofrimento eacute que a evanescecircncia na subjetivaccedilatildeo dos pacientes depri-

midos natildeo eacute do eu ideal mas do ideal do eu10

Podemos assinalar nesse diferencial o cerne da idealizaccedilatildeo que marca es-sas duas manifestaccedilotildees cliacutenicas na melancolia constata-se a evanescecircncia doeu ideal que abre caminho para a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto na depres-satildeo a evanescecircncia do ideal do eu assinalando-se o recuo para a crenccedila narciacute-sica que passaraacute a funcionar como um sintoma

Como ldquoevanescecircncia do ideal do eurdquo define-se aqui uma fugacidade noancoramento identificatoacuterio edipiano cuja funccedilatildeo seria de permitir ao sujeitoafastar-se da crenccedila narciacutesica e reaparecer transformado apoacutes o processo de

luto sustentando o desejo e lanccedilando-se ao futuro Nesses termos natildeo eacute a fi-gura do Pai o que entra no lugar do ideal do eu ancorado numa imago assimeacute-trica que pudesse engendrar uma saiacuteda identificatoacuteria ndash tal como Freud(1923a) constatava na cliacutenica de sua eacutepoca O que entra no lugar do ideal do eueacute a proacutepria crenccedila narciacutesica funcionando ali como sintoma O deprimido en-contra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num processo psiacutequicode integraccedilatildeo que o filiaria no caso do luto a uma accedilatildeo descolada da idealiza-ccedilatildeo narciacutesica O que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos eacute a pro-

jeccedilatildeo no futuro de um eu ideal impossiacutevel de se realizar ndash e isso quando haacuteuma projeccedilatildeo no futuro Sem estabelecimento de qualquer construccedilatildeo narrati-

va a partir da qual o sujeito dispor-se-ia a agir a idealizaccedilatildeo de si mesmo nofuturo eacute similar agrave proacutepria idealizaccedilatildeo de lsquoSua Majestade o Bebecircrsquo (P9831459831509831449831419831459831549831512005) Ela eacute de tal ordem que o sujeito deprime como expressatildeo de seu proacutepriofracasso narciacutesico A imagem de si no presente eacute sempre insuficiente perante aexigecircncia do eu-ideal ldquoabsolutordquo e ldquoperdidordquo Tal insuficiecircncia beira numa si-milaridade inversa o mesmo absoluto irredutiacutevel da Crianccedila Maravilhosa

(Q983157983145983150983156983141983148983148983137 op cit ) Nesse niacutevel a natildeo instauraccedilatildeo do luto eacute situada no mes-mo ponto de evanescecircncia do ideal do eu que impede ao sujeito o afastamentoda crenccedila narciacutesica e a proacutepria ldquomorterdquo da Crianccedila Maravilhosa

10 O ideal do eu eacute o ponto de ancoragem identificatoacuteria que afasta a crianccedila do narcisismo

primaacuterio (F983154983141983157983140 1914) e consequentemente da crenccedila narciacutesica Eacute a partir da identificaccedilatildeoao ideal do eu que o sujeito internaliza os traccedilos do pai na dialeacutetica do desejo frente agrave condiccedilatildeoda falta no Outro O ideal do eu aparece como uma saiacuteda identificatoacuteria proporcionando amobilizaccedilatildeo do luto e o afastamento da fantasia primaacuteria da onipotecircncia narciacutesica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 13: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1321

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

95Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Contextualizando a depressatildeo nesta temaacutetica ndash a transitoriedade ndash salien-tamos que para a crenccedila narciacutesica ndash ancoragem fundamental da depressatildeo ndash afinitude eacute incompatiacutevel ao projeto de unidade e permanecircncia no discurso da

perfeiccedilatildeo na relaccedilatildeo ao Outro No caso dessa crenccedila assumir um estatuto cen-tral e hegemocircnico na vida psiacutequica do sujeito a estagnaccedilatildeo depressiva aparececomo a via pela qual diante da perda esse mesmo sujeito nega a morte daCrianccedila Maravilhosa impedindo-se agrave transformaccedilatildeo subjetiva engendradapelo luto marcando ali a natildeo sustentaccedilatildeo do desejo Trata-se de uma tentativafracassada de rechaccedilo da falta que marca o ser como incompleto ndash rechaccedilo da falta-a-ser mediante a representaccedilatildeo primaacuteria da Crianccedila Maravilhosa cujo co-rolaacuterio eacute a depressatildeo como resultado sintomaacutetico desse fracasso

Cabe frisar assim que natildeo se trata na depressatildeo de um desdobramento doafeto de tristeza dado que este como afeto conduz o sujeito ao trabalho deluto por mais intenso que possa se apresentar A depressatildeo natildeo se reduz a umafeto trata-se de uma saiacuteda defensiva que resulta em sintomas graves de estag-naccedilatildeo perda do interesse pela vida desinvestimento conflitos com a imagemde si ndash sintomas que agraves vezes culminam em atos suicidas O deprimido ancora--se no mito da onipotecircncia do eu que natildeo passando de um lampejo de perfei-ccedilatildeo que se apaga no tempo engendra uma posiccedilatildeo inversa de silenciamento

absoluto e denegaccedilatildeo radical da divisatildeo e do desejo Caracteriza-se nisso acontrapartida oposta agravequela subjacente ao desejo este uacuteltimo assumindo sus-tentaccedilatildeo mediante o luto cuja principal funccedilatildeo eacute inscrever a contingecircncia dosujeito sua temporalidade transitoriedade e mortalidade conjugando comisso a relaccedilatildeo entre a perda e o proacuteprio desejo9

Algumas notas sobre a distinccedilatildeo entre depressatildeo e melancolia

Cabe aqui realizar uma breve distinccedilatildeo imprescindiacutevel do ponto de vistateoacuterico-cliacutenico para que natildeo incorramos em equiacutevocos que muitas vezes apa-recem no campo psicanaliacutetico Na melancolia a questatildeo apresenta-se de ma-neira distinta Nela o que ocorre eacute uma retirada da libido para o eu ndash o quediante da perda caracteriza a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto (F983154983141983157983140 1917)

9 A condiccedilatildeo aqui descrita se acha na base da experiecircncia depressiva que se intensifica na con-temporaneidade e de outros sintomas que sobrepujam as manifestaccedilotildees ldquoclaacutessicasrdquo caracteriacutes-

ticas da metaacutefora sintomaacutetica histeacuterica a qual ofertava o corpo como palco de decifraccedilatildeo dodesejo inconsciente Nesse sentido o sintoma da depressatildeo apresenta especificidades outrasque merecem todo cuidado teoacuterico-cliacutenico no que tange agraves possibilidades de saiacuteda diante dacastraccedilatildeo numa relaccedilatildeo peculiar com o ideal do eu como veremos agrave frente

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1421

A DOR E O EXISTIR

96

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Essa identificaccedilatildeo marca a impossibilidade mesma de inscriccedilatildeo da perda agravemedida que o objeto fica ldquoinstaladordquo no eu promovendo o automassacre me-lancoacutelico Esse processo eacute engendrado pelo supereu perante o eu ideal evanes-

cente caracteriacutestico da afirmaccedilatildeo freudiana de que ldquoa sombra do objeto recaiusobre o eurdquo (ibid )

Numa apreensatildeo aprofundada Lambotte (2003) situa na constituiccedilatildeo dasubjetividade melancoacutelica uma forma de identificaccedilatildeo que denomina ldquoidentifi-

caccedilatildeo ao nadardquo subjacente agrave ldquodeserccedilatildeo do Outrordquo e agrave ldquoevanescecircncia do eu-ideal rdquoSegundo esta apreensatildeo a crianccedila em sua constituiccedilatildeo subjetiva natildeo eacute fisgadacomo objeto do discurso idealizado dos pais na constituiccedilatildeo especular O olharda matildee segundo a autora atravessa o sujeito natildeo atribuindo a ele qualquer

sentido de existecircncia ou predicaccedilatildeo deflagrando para ele uma existecircncia nonada Desertado o Outro natildeo inclui o sujeito na funccedilatildeo do desejo mas num

vazio sem precedentes que instaura a Identificaccedilatildeo ao nada (ibid) O melancoacute-lico denuncia de maneira violenta e mesmo insuportaacutevel a sua proacutepria insus-tentabilidade existencial Natildeo atingido pela idealizaccedilatildeo narciacutesica que de outrasorte o colocaria numa posiccedilatildeo de centralidade (eu ideal) o eu se precipitadestituiacutedo contudo da ilusatildeo de sua proacutepria onipotecircncia Natildeo houve sequer aconstituiccedilatildeo do objeto como ldquoperdidordquo (H983137983155983155983151983157983150 2002) ndash natildeo havendo reco-

nhecimento ou registro da perda que promoveria a inscriccedilatildeo do sujeito nocampo do desejo Ali a idealizaccedilatildeo se constituiu no ponto de evanescecircncia doolhar da matildee o qual se dirige a um modelo cuja exterioridade representa umideal inacessiacutevel para o sujeito Segundo essa loacutegica o sujeito eacute lanccedilado parafora de qualquer representaccedilatildeo jubilosa caracteriacutestica da formaccedilatildeo primaacuteria dacrenccedila narciacutesica (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Sem chances de alcance o ideal se tornaa proacutepria raiz do aviltamento superegoico Nesse sentido Lambotte fala numaldquoruptura do transitivismo especular que chega ao isolamento e ao reforccedilo do

ideal do eu agraves expensas de um eu-ideal que natildeo pocircde elaborar-se na origemrdquo(L983137983149983138983151983156983156983141 op cit p 224)

Sendo assim o que vai se assinalar na melancolia eacute um ideal do eu riacutegidoateacute as uacuteltimas consequecircncias fortalecido por um supereu capaz de estraccedilalharo eu melancoacutelico A evanescecircncia do eu ideal na melancolia se encontra na basedo massacre superegoacuteico cujo teor discursivo aponta para ldquoeu natildeo valho nadardquoldquoeu natildeo sou nadardquo (L983137983149983138983151983156983156983141 op cit )

Na depressatildeo diferentemente o sujeito reconhece a perda do objeto con-

tudo refugia-se na crenccedila narciacutesica num recuo defensivo que nega qualquerpossibilidade de transformaccedilatildeo ou de se lanccedilar ao ideal do eu Sobre isso cabelembrar que a depressatildeo manifesta uma forma de idealizaccedilatildeo cujo registro

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

97Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

acha-se fixado ao eu ideal da Crianccedila Maravilhosa O que vai distinguir essasformas de sofrimento eacute que a evanescecircncia na subjetivaccedilatildeo dos pacientes depri-

midos natildeo eacute do eu ideal mas do ideal do eu10

Podemos assinalar nesse diferencial o cerne da idealizaccedilatildeo que marca es-sas duas manifestaccedilotildees cliacutenicas na melancolia constata-se a evanescecircncia doeu ideal que abre caminho para a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto na depres-satildeo a evanescecircncia do ideal do eu assinalando-se o recuo para a crenccedila narciacute-sica que passaraacute a funcionar como um sintoma

Como ldquoevanescecircncia do ideal do eurdquo define-se aqui uma fugacidade noancoramento identificatoacuterio edipiano cuja funccedilatildeo seria de permitir ao sujeitoafastar-se da crenccedila narciacutesica e reaparecer transformado apoacutes o processo de

luto sustentando o desejo e lanccedilando-se ao futuro Nesses termos natildeo eacute a fi-gura do Pai o que entra no lugar do ideal do eu ancorado numa imago assimeacute-trica que pudesse engendrar uma saiacuteda identificatoacuteria ndash tal como Freud(1923a) constatava na cliacutenica de sua eacutepoca O que entra no lugar do ideal do eueacute a proacutepria crenccedila narciacutesica funcionando ali como sintoma O deprimido en-contra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num processo psiacutequicode integraccedilatildeo que o filiaria no caso do luto a uma accedilatildeo descolada da idealiza-ccedilatildeo narciacutesica O que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos eacute a pro-

jeccedilatildeo no futuro de um eu ideal impossiacutevel de se realizar ndash e isso quando haacuteuma projeccedilatildeo no futuro Sem estabelecimento de qualquer construccedilatildeo narrati-

va a partir da qual o sujeito dispor-se-ia a agir a idealizaccedilatildeo de si mesmo nofuturo eacute similar agrave proacutepria idealizaccedilatildeo de lsquoSua Majestade o Bebecircrsquo (P9831459831509831449831419831459831549831512005) Ela eacute de tal ordem que o sujeito deprime como expressatildeo de seu proacutepriofracasso narciacutesico A imagem de si no presente eacute sempre insuficiente perante aexigecircncia do eu-ideal ldquoabsolutordquo e ldquoperdidordquo Tal insuficiecircncia beira numa si-milaridade inversa o mesmo absoluto irredutiacutevel da Crianccedila Maravilhosa

(Q983157983145983150983156983141983148983148983137 op cit ) Nesse niacutevel a natildeo instauraccedilatildeo do luto eacute situada no mes-mo ponto de evanescecircncia do ideal do eu que impede ao sujeito o afastamentoda crenccedila narciacutesica e a proacutepria ldquomorterdquo da Crianccedila Maravilhosa

10 O ideal do eu eacute o ponto de ancoragem identificatoacuteria que afasta a crianccedila do narcisismo

primaacuterio (F983154983141983157983140 1914) e consequentemente da crenccedila narciacutesica Eacute a partir da identificaccedilatildeoao ideal do eu que o sujeito internaliza os traccedilos do pai na dialeacutetica do desejo frente agrave condiccedilatildeoda falta no Outro O ideal do eu aparece como uma saiacuteda identificatoacuteria proporcionando amobilizaccedilatildeo do luto e o afastamento da fantasia primaacuteria da onipotecircncia narciacutesica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 14: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1421

A DOR E O EXISTIR

96

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Essa identificaccedilatildeo marca a impossibilidade mesma de inscriccedilatildeo da perda agravemedida que o objeto fica ldquoinstaladordquo no eu promovendo o automassacre me-lancoacutelico Esse processo eacute engendrado pelo supereu perante o eu ideal evanes-

cente caracteriacutestico da afirmaccedilatildeo freudiana de que ldquoa sombra do objeto recaiusobre o eurdquo (ibid )

Numa apreensatildeo aprofundada Lambotte (2003) situa na constituiccedilatildeo dasubjetividade melancoacutelica uma forma de identificaccedilatildeo que denomina ldquoidentifi-

caccedilatildeo ao nadardquo subjacente agrave ldquodeserccedilatildeo do Outrordquo e agrave ldquoevanescecircncia do eu-ideal rdquoSegundo esta apreensatildeo a crianccedila em sua constituiccedilatildeo subjetiva natildeo eacute fisgadacomo objeto do discurso idealizado dos pais na constituiccedilatildeo especular O olharda matildee segundo a autora atravessa o sujeito natildeo atribuindo a ele qualquer

sentido de existecircncia ou predicaccedilatildeo deflagrando para ele uma existecircncia nonada Desertado o Outro natildeo inclui o sujeito na funccedilatildeo do desejo mas num

vazio sem precedentes que instaura a Identificaccedilatildeo ao nada (ibid) O melancoacute-lico denuncia de maneira violenta e mesmo insuportaacutevel a sua proacutepria insus-tentabilidade existencial Natildeo atingido pela idealizaccedilatildeo narciacutesica que de outrasorte o colocaria numa posiccedilatildeo de centralidade (eu ideal) o eu se precipitadestituiacutedo contudo da ilusatildeo de sua proacutepria onipotecircncia Natildeo houve sequer aconstituiccedilatildeo do objeto como ldquoperdidordquo (H983137983155983155983151983157983150 2002) ndash natildeo havendo reco-

nhecimento ou registro da perda que promoveria a inscriccedilatildeo do sujeito nocampo do desejo Ali a idealizaccedilatildeo se constituiu no ponto de evanescecircncia doolhar da matildee o qual se dirige a um modelo cuja exterioridade representa umideal inacessiacutevel para o sujeito Segundo essa loacutegica o sujeito eacute lanccedilado parafora de qualquer representaccedilatildeo jubilosa caracteriacutestica da formaccedilatildeo primaacuteria dacrenccedila narciacutesica (Q983157983145983150983156983141983148983148983137 2008) Sem chances de alcance o ideal se tornaa proacutepria raiz do aviltamento superegoico Nesse sentido Lambotte fala numaldquoruptura do transitivismo especular que chega ao isolamento e ao reforccedilo do

ideal do eu agraves expensas de um eu-ideal que natildeo pocircde elaborar-se na origemrdquo(L983137983149983138983151983156983156983141 op cit p 224)

Sendo assim o que vai se assinalar na melancolia eacute um ideal do eu riacutegidoateacute as uacuteltimas consequecircncias fortalecido por um supereu capaz de estraccedilalharo eu melancoacutelico A evanescecircncia do eu ideal na melancolia se encontra na basedo massacre superegoacuteico cujo teor discursivo aponta para ldquoeu natildeo valho nadardquoldquoeu natildeo sou nadardquo (L983137983149983138983151983156983156983141 op cit )

Na depressatildeo diferentemente o sujeito reconhece a perda do objeto con-

tudo refugia-se na crenccedila narciacutesica num recuo defensivo que nega qualquerpossibilidade de transformaccedilatildeo ou de se lanccedilar ao ideal do eu Sobre isso cabelembrar que a depressatildeo manifesta uma forma de idealizaccedilatildeo cujo registro

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

97Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

acha-se fixado ao eu ideal da Crianccedila Maravilhosa O que vai distinguir essasformas de sofrimento eacute que a evanescecircncia na subjetivaccedilatildeo dos pacientes depri-

midos natildeo eacute do eu ideal mas do ideal do eu10

Podemos assinalar nesse diferencial o cerne da idealizaccedilatildeo que marca es-sas duas manifestaccedilotildees cliacutenicas na melancolia constata-se a evanescecircncia doeu ideal que abre caminho para a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto na depres-satildeo a evanescecircncia do ideal do eu assinalando-se o recuo para a crenccedila narciacute-sica que passaraacute a funcionar como um sintoma

Como ldquoevanescecircncia do ideal do eurdquo define-se aqui uma fugacidade noancoramento identificatoacuterio edipiano cuja funccedilatildeo seria de permitir ao sujeitoafastar-se da crenccedila narciacutesica e reaparecer transformado apoacutes o processo de

luto sustentando o desejo e lanccedilando-se ao futuro Nesses termos natildeo eacute a fi-gura do Pai o que entra no lugar do ideal do eu ancorado numa imago assimeacute-trica que pudesse engendrar uma saiacuteda identificatoacuteria ndash tal como Freud(1923a) constatava na cliacutenica de sua eacutepoca O que entra no lugar do ideal do eueacute a proacutepria crenccedila narciacutesica funcionando ali como sintoma O deprimido en-contra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num processo psiacutequicode integraccedilatildeo que o filiaria no caso do luto a uma accedilatildeo descolada da idealiza-ccedilatildeo narciacutesica O que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos eacute a pro-

jeccedilatildeo no futuro de um eu ideal impossiacutevel de se realizar ndash e isso quando haacuteuma projeccedilatildeo no futuro Sem estabelecimento de qualquer construccedilatildeo narrati-

va a partir da qual o sujeito dispor-se-ia a agir a idealizaccedilatildeo de si mesmo nofuturo eacute similar agrave proacutepria idealizaccedilatildeo de lsquoSua Majestade o Bebecircrsquo (P9831459831509831449831419831459831549831512005) Ela eacute de tal ordem que o sujeito deprime como expressatildeo de seu proacutepriofracasso narciacutesico A imagem de si no presente eacute sempre insuficiente perante aexigecircncia do eu-ideal ldquoabsolutordquo e ldquoperdidordquo Tal insuficiecircncia beira numa si-milaridade inversa o mesmo absoluto irredutiacutevel da Crianccedila Maravilhosa

(Q983157983145983150983156983141983148983148983137 op cit ) Nesse niacutevel a natildeo instauraccedilatildeo do luto eacute situada no mes-mo ponto de evanescecircncia do ideal do eu que impede ao sujeito o afastamentoda crenccedila narciacutesica e a proacutepria ldquomorterdquo da Crianccedila Maravilhosa

10 O ideal do eu eacute o ponto de ancoragem identificatoacuteria que afasta a crianccedila do narcisismo

primaacuterio (F983154983141983157983140 1914) e consequentemente da crenccedila narciacutesica Eacute a partir da identificaccedilatildeoao ideal do eu que o sujeito internaliza os traccedilos do pai na dialeacutetica do desejo frente agrave condiccedilatildeoda falta no Outro O ideal do eu aparece como uma saiacuteda identificatoacuteria proporcionando amobilizaccedilatildeo do luto e o afastamento da fantasia primaacuteria da onipotecircncia narciacutesica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 15: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1521

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

97Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

acha-se fixado ao eu ideal da Crianccedila Maravilhosa O que vai distinguir essasformas de sofrimento eacute que a evanescecircncia na subjetivaccedilatildeo dos pacientes depri-

midos natildeo eacute do eu ideal mas do ideal do eu10

Podemos assinalar nesse diferencial o cerne da idealizaccedilatildeo que marca es-sas duas manifestaccedilotildees cliacutenicas na melancolia constata-se a evanescecircncia doeu ideal que abre caminho para a identificaccedilatildeo narciacutesica ao objeto na depres-satildeo a evanescecircncia do ideal do eu assinalando-se o recuo para a crenccedila narciacute-sica que passaraacute a funcionar como um sintoma

Como ldquoevanescecircncia do ideal do eurdquo define-se aqui uma fugacidade noancoramento identificatoacuterio edipiano cuja funccedilatildeo seria de permitir ao sujeitoafastar-se da crenccedila narciacutesica e reaparecer transformado apoacutes o processo de

luto sustentando o desejo e lanccedilando-se ao futuro Nesses termos natildeo eacute a fi-gura do Pai o que entra no lugar do ideal do eu ancorado numa imago assimeacute-trica que pudesse engendrar uma saiacuteda identificatoacuteria ndash tal como Freud(1923a) constatava na cliacutenica de sua eacutepoca O que entra no lugar do ideal do eueacute a proacutepria crenccedila narciacutesica funcionando ali como sintoma O deprimido en-contra grandes dificuldades de ligar presente e futuro num processo psiacutequicode integraccedilatildeo que o filiaria no caso do luto a uma accedilatildeo descolada da idealiza-ccedilatildeo narciacutesica O que se verifica no discurso dos pacientes deprimidos eacute a pro-

jeccedilatildeo no futuro de um eu ideal impossiacutevel de se realizar ndash e isso quando haacuteuma projeccedilatildeo no futuro Sem estabelecimento de qualquer construccedilatildeo narrati-

va a partir da qual o sujeito dispor-se-ia a agir a idealizaccedilatildeo de si mesmo nofuturo eacute similar agrave proacutepria idealizaccedilatildeo de lsquoSua Majestade o Bebecircrsquo (P9831459831509831449831419831459831549831512005) Ela eacute de tal ordem que o sujeito deprime como expressatildeo de seu proacutepriofracasso narciacutesico A imagem de si no presente eacute sempre insuficiente perante aexigecircncia do eu-ideal ldquoabsolutordquo e ldquoperdidordquo Tal insuficiecircncia beira numa si-milaridade inversa o mesmo absoluto irredutiacutevel da Crianccedila Maravilhosa

(Q983157983145983150983156983141983148983148983137 op cit ) Nesse niacutevel a natildeo instauraccedilatildeo do luto eacute situada no mes-mo ponto de evanescecircncia do ideal do eu que impede ao sujeito o afastamentoda crenccedila narciacutesica e a proacutepria ldquomorterdquo da Crianccedila Maravilhosa

10 O ideal do eu eacute o ponto de ancoragem identificatoacuteria que afasta a crianccedila do narcisismo

primaacuterio (F983154983141983157983140 1914) e consequentemente da crenccedila narciacutesica Eacute a partir da identificaccedilatildeoao ideal do eu que o sujeito internaliza os traccedilos do pai na dialeacutetica do desejo frente agrave condiccedilatildeoda falta no Outro O ideal do eu aparece como uma saiacuteda identificatoacuteria proporcionando amobilizaccedilatildeo do luto e o afastamento da fantasia primaacuteria da onipotecircncia narciacutesica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 16: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1621

A DOR E O EXISTIR

98

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

IV A depressatildeo e o existir na atualidade

A questatildeo do ideal do eu

O tipo de depressatildeo que procuramos abordar aqui eacute uma realidade sinto-maacutetica constataacutevel na cliacutenica psicanaliacutetica contemporacircnea As implicaccedilotildees sin-tomaacuteticas aqui trabalhadas definem um tipo especial de sofrimento depressivoque se ancora na crenccedila narciacutesica caracteriacutestica de uma forma peculiar de su-tura da falta no Outro A circunstacircncia em pauta se situa num niacutevel em que odepressivo inscrito no campo do desejo responde diante da perda na contra-matildeo deste uacuteltimo subjugando-se agrave evanescecircncia do ideal do eu tal como

apontamos acimaEsse tipo de depressatildeo se intensifica na cliacutenica psicanaliacutetica agrave medida que

se torna cada vez mais evidente a evanescecircncia do ideal do eu na atualidade abusca pelo imediatismo da satisfaccedilatildeo pulsional e a tentativa de supressatildeo datemporalidade Colocada sintomaticamente no lugar do ideal do eu a crenccedilanarciacutesica assume hoje muitas vezes hegemonia no discurso do sujeito numabusca sintomaacutetica de rechaccedilo da falta Nesse contexto a castraccedilatildeo cuja especi-ficidade implica a falta no Outro assume cada vez mais um caraacuteter de insupor-

tabilidade dado que o sujeito encontra hoje maiores dificuldades de lanccedilarmatildeo de uma ancoragem no ideal do eu capaz de operar a renuacutencia agrave crenccedilanarciacutesica

Sobre esse aspecto cabe assinalar que Freud situava no ideal do eu umprocesso identificatoacuterio que afasta o mesmo do narcisismo primaacuterio mobili-zando o trabalho do luto

O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narci-sismo primaacuterio e daacute margem a uma vigorosa tentativa de recu-pareccedilatildeo desse estado Esse afastamento eacute ocasionado pelodeslocamento da libido em direccedilatildeo a um ideal do ego impostode fora sendo a satisfaccedilatildeo provocada pela realizaccedilatildeo desse ideal(F983154983141983157983140 1914 p 106)

Em Psicologia das massas e anaacutelise do eu Freud apontou ainda que oideal do eu individual eacute substituiacutedo por um ideal coletivo ocupado por umafigura de autoridade ndash o liacuteder o padre o juiz o presidente o professor o hipno-tizador etc (F983154983141983157983140 1923b) Ali o que se constatava era a instauraccedilatildeo ldquobem

definidardquo do ideal como marca da prevalecircncia de uma imago ldquoassimeacutetricardquo quesustentava a coesatildeo tanto grupal quanto psiacutequica

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 17: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1721

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

99Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Como se constata hoje os modelos de cultura que na modernidade en-contravam sustentaccedilatildeo no ideal do eu perdem lugar de maneira radical des-

vanecem ou natildeo assumem valor instaurando mais intensamente o sentimento

de desamparo Hoje o sujeito eacute lanccedilado consequentemente a uma instabilida-de extrema ndash muitas vezes insuportaacutevel ndash posto que os modelos ideais alicer-ccedilados por um coacutedigo definido sobre os caminhos a serem trilhados acham-sedesvanecidos em nome da busca imageacutetica do eu bem como do imediatismono campo da satisfaccedilatildeo pulsional ndash vetores que apontam para a sobrepujanccedilada crenccedila narciacutesica Esta prevalecircncia da imagem de si subjugada ao imediatis-mo da satisfaccedilatildeo pulsional agrave busca pela ldquoplenitude narciacutesicardquo ou ao ldquomito deonipotecircnciardquo parece substituir qualquer possibilidade de projeccedilatildeo num futuro

que suporte o ldquotempo de esperardquo (P983145983150983144983141983145983154983151 op cit ) na sustentaccedilatildeo do desejoCabe frisar se a cultura eacute o lugar a partir do qual o sujeito se constitui na

relaccedilatildeo ao Outro faz-se imprescindiacutevel a anaacutelise sobre as formas peculiares deenfrentamento do mal-estar na cultura contemporacircnea A evanescecircncia doideal do eu na atualidade e o sintoma depressivo satildeo intriacutensecos agrave perseguiccedilatildeoimageacutetica cuja sobrepujanccedila assinala o lugar que a crenccedila narciacutesica assumehoje no campo das formaccedilotildees sintomaacuteticas como formas de gozo frente aomal-estar contemporacircneo

Gozo depressivo insistecircncia na contemporaneidade

No traccedilado teoacuterico ateacute aqui percorrido vimos que a constituiccedilatildeo do sujei-to marcada pela falta na relaccedilatildeo ao simboacutelico implica a resposta singular decada um no universo do desejo A proposta teoacuterica fundamental do presentetrabalho assinala a depressatildeo como uma forma sintomaacutetica do sujeito existirno mal-estar contemporacircneo Ela eacute resultado de uma tentativa fracassada de

suturaccedilatildeo da falta no Outro tentativa essa peculiar na atualidade subjugada agraveevanescecircncia do ideal do eu Ela visa anular narcisicamente a proacutepria falta-a-serna dialeacutetica desejante Caracteriza aleacutem disso os percalccedilos da vida psiacutequica naatualidade na forma de um gozo mortiacutefero que insiste ao niacutevel do real extrapo-lando as formaccedilotildees sintomaacuteticas ldquoclaacutessicasrdquo Este uacuteltimo aspecto aparece deuma maneira muito mais notaacutevel nos dias de hoje do que aquela abordada peladecifraccedilatildeo psicanaliacutetica do tempo de Freud e repensada por Lacan no iniacutecio deseu ensino O sintoma depressivo agrave medida que marca o fracasso da crenccedila

narciacutesica colocada no lugar do ideal do eu diferencia-se dos sintomas ldquoclaacutessi-cosrdquo que mapeados pela condensaccedilatildeo fazem prevalecer as formaccedilotildees simboacuteli-cas como formas de responder ao enigma do desejo do Outro A depressatildeo na

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 18: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1821

A DOR E O EXISTIR

100

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

contemporaneidade funciona como uma forma de gozar resultado de um restosuplementar da operaccedilatildeo simboacutelica submetido agrave castraccedilatildeo e agrave renuacutencia pri-mordial supostamente capaz de ser recuperado mediante a fixaccedilatildeo na imagem

perdida da Crianccedila MaravilhosaAssim na atualidade a busca pela suturaccedilatildeo da falta caracteriza novas for-

mas do sujeito lidar com o mal-estar A depressatildeo eacute o signo de uma dificuldaderadical de lidar com a falta e a transitoriedade na cultura contemporacircnea o quese evidencia pela busca do imediatismo no campo da satisfaccedilatildeo e pela persegui-ccedilatildeo imageacutetica do eu traduzindo a face mais radical dos discursos atuais

Sobre isso cabe assinalar que em sua configuraccedilatildeo a teacutecnica e o desempe-nho visam dentre outras coisas agrave supressatildeo da finitude A cultura atual parece

apontar para o que podemos chamar de discurso da imortalidade cuja caracte-riacutestica eacute situada por Baudrillard (2001) quando aborda os insidiosos poderestecnoloacutegicos do adiamento ou mesmo dissipaccedilatildeo da morte numa suposiccedilatildeo deque abrir matildeo da ideacuteia de degradaccedilatildeo intriacutenseca agrave vida seja possiacutevel A culturacontemporacircnea parece enunciar em suas entrelinhas uma nova negaccedilatildeo da fi-nitude Nesse contexto a morte poderia ser supostamente suplantada com agarantia prometida dos avanccedilos cientiacuteficos a partir dos quais o mundo hoje seorganiza (ibid ) A nova salvaccedilatildeo para a finitude centraliza-se no aparato tecno-

loacutegico o qual se associa terminantemente agrave perseguiccedilatildeo narciacutesica do bem-estarabsoluto e da satisfaccedilatildeo imediata ndash bem como da auto-imagem perfeita e natildeoatingida pelo tempo

Pode-se perceber claramente essa negaccedilatildeo da finitude no desenvolvimen-to cotidiano de teacutecnicas que lutam contra o envelhecimento ou em obsessotildeesrelacionadas agrave manutenccedilatildeo do status corporal perseguido nas academias mui-tas vezes compulsivamente ou ainda a busca cientiacutefica pela extensatildeo da vidamediante pesquisas no campo da biogeneacutetica etc Nesse iacutenterim o que a cul-

tura atual parece emitir em suas enunciaccedilotildees eacute o discurso mesmo da imortali-dade impossiacutevel pela via das promessas de extensatildeo da vida de permanecircnciada beleza relacionada agrave imagem corporal e da perseguiccedilatildeo atroz pela perfeiccedilatildeoimageacutetica do eu

O autocentramento subjetivo contemporacircneo faz do eu ideal a referecircnciado sujeito na atualidade Na depressatildeo o sujeito acha-se centrado no eu idealperdido em que a negaccedilatildeo do desejo aparece como outra ponta do fio da ne-gaccedilatildeo da finitude como resultado de uma tentativa particular de suturaccedilatildeo da

falta no Outro tal como apontamos A depressatildeo eacute a marca do fracasso dessesistema defensivo posto que essa tentativa de suturar a falta natildeo conduz o su-

jeito agrave felicidade mas assinala ali mesmo a ldquoincurabilidaderdquo da castraccedilatildeo redi-

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 19: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 1921

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

101Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

recionando este mesmo sujeito ao funcionamento aleacutem do princiacutepio do prazerpreponderante no sofrimento depressivo A depressatildeo indica uma saiacuteda defen-siva que coloca em questatildeo o proacuteprio estatuto de existecircncia do sujeito Este

uacuteltimo se situa na proacutepria fundaccedilatildeo do existir em sua faceta sintomaacutetica anco-rada na imagem da Crianccedila Maravilhosa agrave medida que deflagra uma posiccedilatildeocontradesejante a partir da qual o sujeito se furta ao trabalho do luto e agrave proacute-pria superaccedilatildeo da crenccedila narciacutesica11

Conclusatildeo

Constituir-se como sujeito desejante implica portanto superar o estatuto

de existecircncia conflagrado no narcisismo primaacuterio suportando a falta-a-ser e ainsistecircncia pulsional Se partirmos desta consideraccedilatildeo cabe ponderar que asobrepujanccedila da crenccedila narciacutesica e do mito de onipotecircncia tatildeo perseguidosnos dias de hoje satildeo iacutendices de uma defesa peculiar diante do ideal do eu eva-nescente Essa defesa que se inscreve como dissemos no campo da neurosebusca desviar-se da castraccedilatildeo e culmina no fracasso da proacutepria defesa o qualleva ao mergulho numa dor que dilacera e denuncia a inoperacircncia da crenccedilanarciacutesica perante a transitoriedade e a proacutepria castraccedilatildeo simboacutelica Ela implica

o naufraacutegio do desejo numa condiccedilatildeo mortiacutefera caracteriacutestica da estagnaccedilatildeodepressiva aqui discutida

No contexto dessas consideraccedilotildees a depressatildeo que assume hoje um papeldecisivo no fortalecimento da induacutestria farmacoloacutegica (B983151983143983151983139983144983158983151983148 2001)natildeo eacute uma simples produccedilatildeo da psicofarmacologia ndash natildeo obstante o uso indis-criminado de seu diagnoacutestico no campo meacutedico O tipo de depressatildeo que pro-curamos abordar no presente trabalho eacute uma realidade sintomaacutetica constataacuteveldo ponto de vista da psicanaacutelise o que natildeo pode a nosso ver ser negligencia-

do Ela indica especialmente que a dificuldade atual de instauraccedilatildeo do lutocaracteriza a relaccedilatildeo peculiar que se estabelece hoje com a temporalidade atransitoriedade e o ideal do eu Como dissemos a busca por satisfaccedilatildeo imedia-

ta com sua contrapartida depressiva diante da falta substitui muitas vezes olaborioso processo do luto na atualidade Trata-se entatildeo de uma tentativasempre fracassada de supressatildeo da proacutepria temporalidade ndash tentativa ancora-da no mito da onipotecircncia infantil tatildeo perseguido nos dias de hoje

11 Cabe frisar assim que a depressatildeo natildeo representa uma entidade diagnoacutestica do ponto de vistada psicanaacutelise mas deve ser concebida como um arranjo sintomaacutetico no campo da neuroseque segue a loacutegica aqui discutida

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 20: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2021

A DOR E O EXISTIR

102

ARTIGOS TEMAacuteTICOS

Cad Psicanaacutel-CPRJ Rio de Janeiro v 34 n 27 p 83-103 juldez 2012

Sendo assim a configuraccedilatildeo cliacutenica da depressatildeo revela um modo de defe-

sa proacuteprio do sofrimento subjetivo na contemporaneidade Esta constataccedilatildeo exi-ge aprofundamento equacircnime agrave questatildeo do sujeito contemporacircneo

especialmente com relaccedilatildeo ao ideal do eu Cabe portanto investigar a especi-ficidade da teacutecnica defensiva que se acha na base do sintoma depressivo Talmodalidade defensiva deve ser definida sob os paracircmetros psicanaliacuteticos demodo que possamos avanccedilar em direccedilatildeo a elementos teoacutericos capazes de lan-ccedilar luz sobre o existir no campo do desejo e do mal-estar nos dias de hoje

Rogerio Quintella

e-mail rrquintellahotmailcom

Tramitaccedilatildeo

Recebido em 11052012

Aprovado em 21062012

Referecircncias

B983137983157983140983154983145983148983148983137983154983140 Jean A ilusatildeo vital Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2003

E983148983145983137 Luciano Corpo e sexualidade em Freud e Lacan Rio de Janeiro Uapecirc 1995

F983154983141983157983140 Sigmund (1905) Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das

neuroses Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 7)

______ (1914) Sobre o narcisismo uma introduccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 14)

______ (1915) Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1917) Luto e melancolia Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 14)

______ (1919) Bate-se em uma crianccedila Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923a) O ego e o id Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 19)

______ (1923b) Psicologia das massas e anaacutelise do eu Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 18)

______ (1925-1926) Inibiccedilotildees sintoma e anguacutestia Rio de Janeiro Imago 1976(ESB 20)

______ (1930) Mal-estar na civilizaccedilatildeo Rio de Janeiro Imago 1976 (ESB 22)

H983137983155983155983151983157983150 Jacques A crueldade melancoacutelica Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira2002

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008

Page 21: 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

7182019 09-CADERNOS de PSICANALISE 27 2012 Consideracoes Psicanaliticas

httpslidepdfcomreaderfull09-cadernos-de-psicanalise-27-2012-consideracoes-psicanaliticas 2121

CONSIDERACcedilOtildeES PSICANALIacuteTICAS SOBRE O EXISTIR NO MAL-ESTAR CONTEMPORAcircNEO

H983141983154983162983151983143 Regina O laccedilo social na contemporaneidade Revista Latinoamericana de

Psicopatologia Fundamental Satildeo Paulo Escuta ano 7 n 3 p 40-55 2002

L983137983139983137983150 Jacques (1936) O estaacutedio do espelho como formador da funccedilatildeo do eu talcomo se revela na experiecircncia psicanaliacutetica In______ Escritos Rio de JaneiroZahar 1990

______ (1957-1958) O seminaacuterio livro 5 As formaccedilotildees do inconsciente Rio deJaneiro Jorge Zahar

______ (1958-1959) Textos psicanaliacuteticos I Hamlet por Lacan Satildeo Paulo EscutaLiubliuacute 2005

______ (1962 ndash 1963) O seminaacuterio livro 10 a anguacutestia Rio de Janeiro Jorge Zahar

2005

______ (1964) O seminaacuterio livro 11 os quatro conceitos fundamentais dapsicanaacutelise Rio de Janeiro Jorge Zahar 1985

______ (1968) O seminaacuterio livro 16 de um outro ao outro Rio de Janeiro JorgeZahar 2008

______ (1969-1970) O seminaacuterio livro 17 o avesso da psicanaacutelise Rio de JaneiroJorge Zahar 2000

______ (1975) Encore Rio de Janeiro Escola de Psicanaacutelise Letra FreudianaTraduccedilatildeo ineacutedita da Escola de Psicanaacutelise Letra Freudiana

L983137983149983138983151983156983156983141 Marie-Claude Le discours meacutelancolique de la pheacutenomeacutenologie ParisAnthropos 2egraveme eacutedition 2003

L983141983139983148983137983145983154983141 Serge Mata-se uma crianccedila um estudo sobre o narcisismo primaacuterio e apulsatildeo de morte Rio de Janeiro Jorge Zahar 1975

M983137983156983156983151983155 Paulo Os confins da psicanaacutelise e a crueldade das incertezas Satildeo Paulo

Escuta 2007P983145983150983144983141983145983154983151 Teresa Escuta psicanaliacutetica e novas demandas cliacutenicas sobre a melancoliana contemporaneidade Psychecirc - Revista de Psicanaacutelise Satildeo Paulo ano 6 n 9 p167-176 2002

______ Depressatildeo na contemporaneidade Pulsional - Revista de Psicanaacutelise SatildeoPaulo ano 18 n 182 p 101-109 jun 2005

Q983157983145983150983156983141983148983148983137 Rogerio Vicissitudes da crenccedila narciacutesica a depressatildeo no mundocontemporacircneo Rio de Janeiro UFRJ 2008 Originalmente apresentada como tese

de doutorado Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teoria Psicanaliacutetica Instituto dePsicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2008