05 - Filosofia Bernoulli
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MDULOFILOSOFIA
QUAL O CAMINHO QUE LEVA VERDADE?
A questo acerca do conhecimento seguro , sem dvida um dos maiores problemas do mundo moderno, o qual difere, essencialmente, do mundo medieval. Neste, o homem estava submetido s verdades reveladas por Deus por meio da Igreja, que se impunha como detentora do saber e do conhecimento em todas as reas, da moral cincia do Universo. Temos como exemplo a trajetria de Giordano Bruno, que foi queimado vivo pela Inquisio em 1600, por defender a teoria do heliocentrismo de Coprnico. Outro exemplo o de Galileu, impedido de falar e publicar suas ideias por estas irem contra as ideias defendidas pela Igreja.
Na Modernidade, veremos a gradativa desmistificao do Universo, o chamado desvelamento ou desencantamento do Universo. Assim, o Universo, a natureza e o prprio homem tornam-se objeto do conhecimento, o qual deve ser construdo pelo homem, no sendo mais determinado pela autoridade eclesistica.
Frans
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Monumento erguido em 1889 no local onde Giordano Bruno foi executado. Campo de Fiori, Roma, Itlia.
O homem moderno, portanto, recuperou sua liberdade e autonomia para pensar, apesar da autoridade da Igreja, que ainda exercia grande influncia no mundo e nos meios intelectuais. As ideias aristotlicas, que at ento tinham servido como base para a Escolstica, no eram mais suficientes para fundamentar o conhecimento seguro sobre o mundo. As supersties cederam lugar subjetividade, e o papel preponderante do homem abriu caminho para o conhecimento verdadeiro. O mundo se mostrava agora um livro aberto, pronto para ser conhecido. Nessa nova realidade, surge ento a questo: qual o caminho que leva ao conhecimento verdadeiro sobre o mundo? Com isso, a questo do mtodo (do grego Methodos: meta: rumo; hodos: caminho: caminho que leva a algum lugar), ou seja, da teoria do conhecimento ou Epistemologia, torna-se urgente.
Nesse contexto, ocorre uma inverso de valores e de paradigmas: desde a Antiguidade, acreditava-se no poder do homem para conhecer todas as coisas, ou seja, acreditava-se que o homem poderia conhecer plenamente o mundo e a si mesmo. Na Modernidade, entretanto, manifestam-se outras questes: Qual ser a capacidade do homem de conhecer? Como ocorre esse conhecimento? Qual a origem das ideias?
Apesar de na Modernidade esse problema apresentar novos contornos, ele no novo. Basta lembrarmos que a Filosofia tem, em sua origem, a nsia pelo saber. Desde os seus primrdios, os filsofos naturalistas, como Herclito e Parmnides, j tentavam solucionar o problema do caminho para o conhecimento verdadeiro, o qual tem sido uma das questes mais discutidas e polemizadas na histria da Filosofia.
Herclito, por exemplo, acreditava que as coisas do mundo no possuem uma essncia imutvel, por isso, a nica forma de conhecermos os seres seria atravs das informaes fornecidas pelos sentidos. J Parmnides, por acreditar que os seres possuem uma essncia imutvel, defendia que a nica maneira de acesso a essa essncia era o pensamento puro, a razo.
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Plato e Aristteles, por sua vez, respeitando algumas diferenas de aspectos menores que podem relativizar o problema, tambm estavam convencidos de que o conhecimento seguro era garantido pela busca das essncias dos seres. Plato buscava estas essncia no mundo inteligvel e Aristteles, nas coisas sensveis. Segundo Plato, o nico instrumento que leva a tal conhecimento a alma, onde est a razo, por meio da ascenso dialtica. J Aristteles acreditava que a experincia levaria, por meio do raciocnio indutivo, a tal verdade.
Na Idade Mdia, Agostinho, principal representante da Patrstica, acreditava que a verdade estava dentro do homem, e esta s seria acessvel pela razo, com a ajuda da iluminao divina. J Toms de Aquino, importante pensador medieval e maior expoente da Escolstica, valorizava a utilizao dos sentidos para as Cincias Naturais e seu papel no conhecimento da natureza.
A questo do mtodo, portanto, um dos mais importantes problemas filosficos. Para alguns comentadores, como Caio Prado Jnior, em seu livro O que Filosofia?1, essa a verdadeira questo com a qual a Filosofia deveria se preocupar.
Para resolver tal problema, surgem dois caminhos, que ganham destaque na Modernidade: o racionalismo e o empirismo. Mais tarde, teremos tambm o criticismo kantiano, que consiste em uma sntese entre racionalismo e empirismo.
Racionalismo
1 - [O racionalismo uma] doutrina que privilegia a razo
dentre todas as faculdades humanas, considerando-a como
fundamento de todo conhecimento possvel. O racionalismo
considera que o real , em ltima anlise, racional e que a
razo , portanto, capaz de conhecer o real e de chegar
verdade sobre a natureza das coisas. Segundo Hegel: Aquilo
que racional real, e o que real racional (Filosofia do
direito, Prefcio). Oposto a ceticismo, misticismo.
[...]
3 - Contrariamente ao empirismo (valorizando a experincia)
e ao fidesmo (valorizando a revelao religiosa), o
racionalismo designa doutrinas bastante variadas suscetveis
de submeter razo todas as formas de conhecimento. Em
seu sentido filosfico, ele tanto pode ser uma viso do mundo
que afirma o perfeito acordo entre o racional e a realidade
do universo quanto uma tica que afirma que as aes e as
sociedades humanas so racionais em seu princpio, em sua
conduta e em sua finalidade.
RACIONALISMO. In: JAPIASS, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionrio bsico de Filosofia. Rio de janeiro: Zahar, 1996.
1 PRADO Jr., Caio. O que filosofia?. So Paulo: Brasiliense, 1981 (Primeiros Passos, 37).
No final do sculo XV e durante os sculos XVI e XVII se entusiasmaram pela Matemtica (aritmtica, lgebra e geometria), acreditando, ento, que poderiam aplicar o mtodo matemtico, puramente racional, a todas as reas de investigao, garantindo a exatido dos conhecimentos alcanados. O que se utilizaria no seriam os nmeros e os clculos em si, mas o procedimento dedutivo, isto , o mtodo pelo o qual a Matemtica encadeia as razes ou afirmaes segundo certa ordem, chegando a uma concluso exata e verdadeira. Essa racionalidade se expressaria de modo geomtrico, lgico, dedutivo, caracterizando a viso especfica do racionalismo moderno ou grande racionalismo.
Podemos apontar como filsofos que seguem a linha dos grandes racionalistas, respeitando as devidas diferenas: Parmnides (pr-socrtico), Scrates e Plato (Antiguidade), Santo Agostinho (Idade Mdia), alm dos modernos Descartes, Malebranche, Espinosa, Leibniz e Hegel.
Segundo Nicola Abbagnano, em Dicionrio de Filosofia22, o termo racionalismo foi utilizado pela primeira vez por Kant para se referir sua filosofia transcendental. J Hegel foi o primeiro a utilizar esse termo para se referir filosofia que comea com Descartes e se ope ao empirismo de Locke e seus sucessores.
Uma das querelas da Filosofia diz respeito utilizao do termo racionalista. Afinal, os pensadores anteriores a Descartes, conhecido como o o pai do racionalismo, podem ser tambm chamados de racionalistas? Jos Ferrater Mora, em seu Dicionrio de Filosofia33, encerra essa questo ao se referir a Parmnides e a Plato como racionalistas. Dessa forma, o termo racionalismo, adequadamente utilizado para se referir ao procedimento de filsofos anteriores Modernidade, os quais buscavam a verdade ou o conhecimento por meio da razo. Nesse caso, podemos dizer que o procedimento mais importante que o termo, e, nesse caso, tal procedimento a busca da verdade por meio do pensamento puro.
No podemos afirmar, porm, que o racionalismo de Plato seja pensado nos mesmos moldes que o de Descartes. O mundo material ou sensvel, para Plato tambm importante, sendo incorreto afirmar que existe em sua filosofia um dualismo que diz que as coisas materiais, sensveis, empricas sejam ruins em si mesmas e que as ideias inteligveis sejam alcanadas sem que o homem tenha qualquer contato com as coisas sensveis.
2ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de Filosofia. Traduo de Alfredo Bosi. 21.ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 822.3RACIONALISMO. In.: MORA, Jos Ferrater.Dicionrio de Filosofia. 2. ed. So Paulo: Loyola, 2001
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Empirismo
I- Doutrina ou teoria do conhecimento segundo a qual todo
conhecimento humano deriva, direta ou indiretamente, da
experincia sensvel externa ou interna. Freqentemente
fala-se do emprico como daquilo que se refere
experincia, s sensaes e s percepes, relativamente
aos encadeamentos da razo. O empirismo, sobretudo de
Locke e de Hume, demonstra que no h outra fonte do
conhecimento seno a experincia e a sensao. As ideias s
nascem de um enfraquecimento da sensao e no podem
ser inatas. Da o empirismo rejeitar todas as especulaes
como vs e impossveis de circunscrever.
Seu grande argumento: Nada se encontra no esprito que
no tenha, antes, estado nos sentidos. A no ser o prprio
esprito, responde Leibniz.
EMPIRISMO. In: JAPIASS, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionrio bsico de Filosofia. Rio de janeiro: Zahar, 1996.
Se os grandes racionalistas modernos ocupam espao nos sculos XVI e XVII, os empiristas, principalmente Locke e Hume, o fazem nos sculos XVII e XVIII. Com o aumento da produo industrial, que encontrou seu pice na Revoluo originada na Inglaterra, em meados do sculo XVIII, o conhecimento do mundo passou a ter preocupaes tipicamente prticas, por isso a nfase naquilo que experimentvel, nos sentidos e em um saber que privilegia o conhecimento e a dominao da natureza.
Na linha dos grandes empiristas, encontram-se Herclito (pr-socrtico) e Aristteles (Antiguidade Grega), alm dos modernos Bacon, Pascal, Locke e Hume, sendo os dois ltimos os mais importantes representantes do empirismo moderno, chamado tambm de empirismo ingls.
Assim como racionalismo, o termo empirismo utilizado principalmente para os modernos, porm, podemos estender sua utilizao para os antigos. Aristteles, por exemplo, quando fala de induo, est se referindo experincia. Da mesma forma, em seu pensamento tico, quando diz que o homem deve tornar-se melhor, tambm est se referindo prtica, ou seja, experincia4.
Tal como para Plato, no podemos afirmar que Aristteles despreza a razo como meio de conhecer as coisas. Pelo contrrio, se pensarmos na lgica aristotlica, os argumentos indutivos partem sim de experincias e por meio delas fazem generalizaes, j o argumento silogstico ou dedutivo opera de modo puramente racional, o que prova a importncia da razo para Aristteles.
Realizada essa introduo Epistemologia moderna, falemos agora dos principais pensadores desse perodo: Ren Descartes, Francis Bacon, John Locke e David Hume.
4 EMPIRISMO. In: MORA, Jos Ferrater. Dicionrio de Filosofia. 2. ed. So Paulo: Loyola, 2001.
RACIONALISMO MODERNO
DescartesConhecido como o pai da Filosofia moderna, Ren
Descartes nasceu na Frana, na cidade de La Haye, regio da Touraine, em 31 de maro de 1596. Sua famlia, cujos membros eram comerciantes e mdicos, ascendeu socialmente, tornando-se proprietria de terras e de ttulos de nobreza, o que levou seu pai, Joachin Descartes, a tornar-se conselheiro no Parlamento da Bretanha. Descartes passou a infncia com sua av, devido morte de sua me quando ele tinha apenas um ano de idade.
Aos dez anos, foi enviado para o Colgio Real na cidade de La Flche. O colgio, fundado pelos jesutas sob a proteo do rei Henrique IV, logo ficou conhecido como uma das melhores e mais importantes escolas de toda a Europa. Descartes frequentou essa instituio durante 12 anos, onde obteve uma slida formao cientfica e humanstica, dedicando-se ao estudo da Lgica, da Matemtica e da Filosofia. Logo aps, foi estudar na Universidade de Poitiers, onde obteve bacharelado e licenciatura em Direito.
Fran
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Retrato de Ren Descartes, conhecido como o fundador da Filosofia Moderna.
Descartes foi um aluno brilhante, tendo seu brilhantismo e sua dedicao levado-o a uma crise profunda em relao a todo o conhecimento cientfico e filosfico que obteve em seus tempos de estudo. Descartes percebeu que todo o conhecimento que aprendera em La Flche e na universidade no era to seguro quanto ele desejava, ou seja, percebeu que, em contraposio a toda e qualquer verdade, sempre havia uma outra ideia, que tambm se pretendia verdadeira, que a contrariava. No Discurso do Mtodo, o filsofo afirma:
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Alimentei-me de letras desde a minha infncia, e, devido ao
fato de me terem persuadido de que por meio delas podia-se
adquirir um conhecimento claro e seguro sobre tudo o que
til vida, tinha extremo desejo de aprend-las. Porm,
assim que terminei todo esse curso de estudos, ao fim do
qual costuma-se ser recebido na fileira de doutores, mudei
inteiramente de opinio.
DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. Primeira Parte, Lisboa, Ed. Marfim, 1989. p. 13.
Dessa forma, Descartes se v imensamente decepcionado com o conhecimento, pois percebe que as ideias que aprendera no poderiam ser satisfatoriamente defendidas pela razo, ou seja, todo o conhecimento aprendido at ento era falho. importante ressaltar que o filsofo no se decepcionou com a escola ou com seus mestres, pelos quais sempre teve grande respeito e admirao, mas de com as prprias Humanidades, nas quais se incluia o estudo Geografia, Histria, Retrica, Direito, Poesia, Teologia, Lgica, Fsica, Metafsica, Moral, Medicina e Jurisprudncia, dentre outros.
Assim, na filosofia que aprende como alis em todos
os domnios das letras -, Descartes defronta-se com
opinies inseguras e sem nenhuma utilidade prtica: as
Humanidades no serviam verdadeiramente ao homem.
DESCARTES. Vida e obra. In: Descartes. So Paulo: Editora Nova Cultural, 2000. p. 12. Coleo Os pensadores.
Gravura do sculo XVIII representando o Colgio de La Flche.
Empolgado com os avanos da Matemtica trazidos por Coprnico e principalmente por Galileu e decepcionado com as Humanidades, Descartes acreditava que o conhecimento seguro deveria ser certo e indubitvel, tal como so os conhecimentos trazidos pela Matemtica. Dedicou-se, ento, a buscar esse conhecimento, no em livros e ensinamentos, mas em si mesmo e no grande livro mundo.
O filsofo pronunciou-se sobre a insegurana das
verdades filosficas que poderiam ser colocadas em dvida
da seguinte forma:
Da Filosofia nada direi, seno que, vendo que foi cultivada
pelos mais excelsos espritos que viveram desde muitos
sculos e que, no entanto, nela no se encontra ainda uma
s coisa sobre a qual no se dispute e, por conseguinte, que
no seja duvidosa, eu no alimentava qualquer presuno
de acertar mais que os outros; e que, considerando quantas
opinies diversas, sustentadas por homens doutos, pode
haver sobre uma mesma matria, sem que jamais possa
existir mais de uma que seja verdadeira, refutava quase
como falso tudo o que era somente verossmil. Eis por
que, to logo a idade me permitiu sair da sujeio de meus
preceptores, deixei inteiramente o estudo das letras.
E, resolvendo-me a no mais procurar outra cincia, alm
daquela que poderia achar em mim prprio, ou ento
no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha
mocidade em viajar, em ver cortes e exrcitos, em freqentar
gente de diversos humores e condies, em recolher
diversas experincias, em provar-me a mim mesmo nos
reencontros que a fortuna me propunha e, por toda parte,
em fazer tal reflexo sobre as coisas que me apresentavam
que eu pudesse tirar delas algum proveito. [...] Mas, depois
que empreguei alguns anos em estudar assim no livro
do mundo, e em procurar adquirir alguma experincia,
tomei um dia a resoluo de estudar tambm a mim prprio
e de empregar todas as foras de meu esprito na escolha
dos caminhos que deveria seguir.
DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. Primeira Parte. So Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 7
nesse contexto que, Descartes ingressa nos exrcitos de
Maurcio de Nassau em 1618, ano em que se deu o incio da
Guerra dos Trinta Anos contra os espanhis pela liberdade
da Holanda, pas onde mais tarde Descartes foi morar,
devido tolerncia e liberdade cultivadas ali. Na cidade
de Breda, conheceu um jovem, de quem se tornou amigo,
chamado Isaac Beeckman, que o incentivou a se dedicar
Fsica e Matemtica. Com o aprofundamento de seus
conhecimentos matemticos, Descartes decide construir uma
Mathesis Universalis (matemtica universal), com a qual ele
poderia alcanar um conhecimento seguro e claro sobre o
mundo, abandonando as incertezas at ento reconhecidas
nas Humanidades.
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O Discurso do mtodo uma das mais importantes obras de Descartes. Nela, o filsofo tentar encontrar o caminho que leva o homem ao conhecimento verdadeiro sobre o mundo.
A partir desse momento, Descartes dedicou-se escrita
de suas obras, tendo sido, Discurso do Mtodo, Meditaes
Metafsicas, Regras para a direo do Esprito, Princpios de Filosofia e Tratado das paixes da Alma suas obras mais importantes. Foi nesse perodo que conheceu Helne Jans,
com quem se casou teve uma filha, Francine, que faleceu com 5 anos, fato que marcou profundamente a vida
de Descartes.
Depois de passar muitos anos na Holanda e de viajar
por muitos outros lugares, as ideias de Descartes j eram
internacionalmente conhecidas. Em 1649, o filsofo aceitou o convite da rainha Cristina da Sucia para se abrigar em
seu palcio em Estocolmo. De sade frgil desde a sua
infncia e tendo que acordar de madrugada durante trs dias da semana para lecionar rainha, Descartes no
suportou o clima rigoroso daquele pas e decidiu ir embora.
Ao abandonar a Corte, o filsofo adoeceu, vtima de uma pneumonia que o levou morte depois de uma semana
de grande sofrimento, em 11 de fevereiro de 1650.
O discurso do mtodoEmpolgado com os avanos da Matemtica e decepcionado
com as falhas dos conhecimentos cientfico e filosfico aprendidos at ento, Descartes deu um passo ousado,
tornando-se conhecido e admirado como grande pensador.
Segundo ele, o edifcio do saber, ou seja, todos os saberes
cientficos que se pretendiam corretos e verdadeiros sobre o mundo e as coisas, no passava de conhecimentos
inseguros e frgeis, os quais poderiam ser contestados pelo
uso de argumentos que os abalassem em suas certezas
e os tornassem questionveis. Dessa maneira, para
Descartes, no era possvel confiar em nenhum conhecimento
cientfico que no fosse claro e distinto, ou seja, que
no fosse transparente para quem a ele recorresse
e que no fosse inconfundvel com qualquer outra ideia.
Foi esta a meta cartesiana: encontrar verdades claras
e distintas sobre todas as coisas; verdades estas que
serviriam como certeza para a constituio do conhecimento
seguro. Porm, Descartes sabia que o edifcio do saber,
tem como fundamento verdades filosficas que, para
ele, tambm so inseguras. Como poderia-se construir
um novo edifcio sobre bases que tambm so inseguras?
Para Descartes, isso era impossvel.
Assim, tomando como base a Matemtica, o filsofo tentar construir a Mathesis Universalis matemtica universal , com o objetivo de, por meio dela, garantir verdades que sejam por si mesmas indubitveis. Veja que a ideia cartesiana no aplicar os nmeros Filosofia ou s Cincias, mas sim utilizar a lgica matemtico-dedutiva
para elaborar um mtodo, um caminho que pudesse garantir
que o conhecimento alcanado pelo homem fosse seguro
e realmente verdadeiro.
Para isso, Descartes elimina qualquer tipo de conhecimento
obtido por meio das experincias, pois considera
que os sentidos so falhos e, portanto, o conhecimento
alcanado por meio deles impreciso. exatamente por
isso que Descartes o grande racionalista moderno, uma
vez que, para ele, somente a razo, operando com ideias
e dedues matemticas, concatenaes de ideias que
no sejam originadas dos sentidos, poderia encontrar
as verdades.
A (5,3)
B (6,5)
C (4,5;3,5)
D (0,0)
1 2 3 4 5 6
123456
5
6
4
3
2
1
5
6
Y
X
4
3
2
1
Os planos cartesianos ou o sistema de coordenadas no plano cartesianos permitiram a criao da geometria analtica.
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Porm, no basta aplicar a geometria e a lgebra separadas uma da outra, para delas encontrar as verdades. Segundo Descartes, necessrio unir as duas, de modo que seja possvel traduzir os problemas geomtricos em linguagem algbrica para alcanar o conhecimento sobre as formas geomtricas atravs das equaes. Dessa forma, Descartes funda a geometria analtica, aplicando a lgebra geometria e estudando as figuras geomtricas por meio de equaes algbricas.
Para Descartes, procedendo dessa forma, seria possvel alcanar verdades sobre o mundo que fossem evidentes mente humana e sobre as quais no se pudesse duvidar. Nesse sentido, ele afirma, no Discurso do Mtodo:
Aquela longa cadeia de raciocnios, todos simples e fceis, de
que os gemetras tm o hbito de se servir para chegar s
suas difceis demonstraes, me havia possibilitado imaginar
que todas as coisas de que o homem pode ter conhecimento
derivam do mesmo modo e que, desde que se abstenha de
aceitar como verdadeira uma coisa que no o e respeite
sempre a ordem necessria para deduzir uma coisa da outra,
no haver nada de to distante que no se possa alcanar,
nem de to oculto que se no possa descobrir.
DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. So Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 14
Desse modo, Descartes chega seguinte concluso: se fosse possvel aplicar s Cincias e Filosofia a mesma lgica utilizada na Matemtica, a qual levava a verdades inquestionveis, poderia-se encontrar verdades to claras e evidentes que nem os homens mais criativos poderiam ousar duvidar.
Para isso, uma nica coisa era necessria: um mtodo adequado. Portanto, Descartes, antes de buscar conhecer o mundo oferecer regras que, se bem seguidas e adequadamente dispostas, levariam o homem ao conhecimento certo, seguro e verdadeiro sobre tudo aquilo que se pode conhecer, elabora um mtodo para alcanar tais conhecimentos.
O mtodo cartesianoO mtodo pensado por Descartes para se alcanar
a verdade se baseia em quatro passos ou regras. Segundo o filsofo:
[seriam] regras certas e fceis que, sendo observadas
exatamente por quem quer que seja, tornem impossvel
tomar o falso por verdadeiro e, sem qualquer esforo mental
intil, mas aumentando sempre gradualmente a cincia,
levem ao conhecimento verdadeiro de tudo o que se capaz
de conhecer.
DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. So Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 14.
1 - Regra da evidncia
No se deve acatar nunca como verdadeiro aquilo que
no se reconhece ser tal pela evidncia, ou seja, evitar
acuradamente a precipitao e a preveno, assim como
nunca se deve abranger entre nossos juzos aquilo que no
se apresente to clara e distintamente nossa inteligncia
a ponto de excluir qualquer possibilidade de dvida.
DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. So Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 13).
o ponto de partida, mas tambm o ponto de chegada de todo o conhecimento. Mais do que uma regra, apresenta-se como um princpio norteador de todo o conhecimento. De forma mais simples: o homem s deve acolher como verdade aquilo que aparece ao seu esprito, sua mente, como uma ideia clara e distinta, que seja evidente e impossvel de ser confundida com outra ideia qualquer. Tal como 2+2 = 4 e desta concluso ningum em s conscincia poderia duvidar, sendo que essa ideia aparece mente humana com tal clareza que nenhuma outra ideia pode se confundir a ela, toda e qualquer verdade deve obedecer ao mesmo critrio de evidncia. Essa verdade intuitiva e se autojustifica, no necessitando de nenhuma explicao ou argumento que a comprove.
2 Regra da anlise
Dividir cada problema que se estuda em tantas partes
menores, quantas for possvel e necessrio para melhor
resolv-lo.
DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. Primeira Parte. So Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 13.
Se a intuio da evidncia se d na simplicidade, a segunda regra diz que, diante de um problema, necessrio dividi-lo em tantas partes quanto for possvel, evitando, assim, qualquer ambiguidade que possa aparecer e confundir o homem. De acordo com essa regra, deve-se reduzir o complexo ao simples, de forma que aquilo que era maior seja dividido em partes menores e indivisveis de um todo.
3 Regra da sntese
A terceira regra a de conduzir com ordem os pensamentos,
comeando pelos mais simples e mais fceis de conhecer,
para elevar-se, pouco a pouco, como por degraus, at o
conhecimento dos mais complexos, supondo uma ordem
tambm entre aqueles nos quais uns no precedem
naturalmente aos outros.
DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. Primeira Parte. So Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 13.
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Essa regra diz que, enquanto a regra da anlise divide o problema em partes menores, necessrio que esses problemas sejam resolvidos individualmente, comeando dos mais simples at alcanar a resoluo dos mais complexos ou mais difceis.
4 Regra da enumerao
A ltima regra a de fazer sempre enumeraes to
completas e revises to gerais a ponto de se ficar seguro
de no ter omitido nada.
DESCARTES, Ren. Discurso do mtodo. Primeira Parte. So Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 13.
Essa regra diz que, depois de ter dividido o problema em partes menores e de comear a resolv-los dos mais simples para os mais complexos, deve-se, de tempo em tempo, voltar-se sobre todo o caminho percorrido e verificar se alguma coisa ficou esquecida, ou seja, fazer revises constantes para verificar se tudo foi dividido na anlise e ainda se tudo foi resolvido na sntese.
Segundo Descartes, aplicando esse mtodo a toda e qualquer pesquisa natural ou filosfica, o homem encontraria um conhecimento que fosse obediente primeira regra, ou seja, que fosse evidente e sem qualquer sombra de dvida. Se observarmos com cuidado, perceberemos que o mtodo cartesiano baseia-se na simplicidade da resoluo das questes matemticas, em que se parte da ideia de que a resposta alcanada com a resoluo do problema deve ser exata e indubitvel. Depois, partindo para a resoluo propriamente dita, divide-se o problema e inicia-se sua resoluo das partes mais simples para as mais complexas. No final ou durante o processo, verifica-se todas as operaes realizadas, observando cuidadosamente se no ficou nada sem ser resolvido ou se no se esqueceu de nenhum detalhe. Procedendo deste modo, pode-se afirmar com certeza de que a resposta obtida correta, ou seja, evidente.
Cogito, ergo sum!Uma vez estabelecido o mtodo, Descartes tem certeza
de que uma verdade s pode ser aceita como tal se aparecer mente humana com clareza e distino. Desse modo, ele estabelece o modelo universal, a Mathesis Universalis, que guiar o homem em busca de todo e qualquer saber, ou seja, que servir como instrumento ao novo edifcio do saber, j tendo o antigo desmoronado uma vez que suas certezas eram contestveis.
Porm, para que esse novo edifcio do saber seja erguido, necessrio que existam certezas claras e distintas da Filosofia, base de toda e qualquer cincia. Mas, que certezas seriam estas? Que verdades filosficas poderiam sustentar esse novo edifcio do saber que trouxesse consigo toda clareza e distino essenciais ao saber nos moldes cartesianos?
Buscando a verdade filosfica que sustentaria todo o edifcio do saber, Descartes, mesmo no sendo um ctico, utiliza-se do caminho dos cticos, acreditando que possvel encontrar uma verdade utilizando-se da dvida somente como instrumento e no como um fim em si mesma. O filsofo coloca tudo em dvida com objetivo de verificar se, ao final, alguma verdade que possa ser considerada indubitvel resiste. Dessa maneira, Descartes desenvolve um caminho sistemtico ao colocar em dvida tudo aquilo que at ento era considerado como certeza, o que ficou conhecido como a dvida metdica, dividida em trs passos ou estgios
Primeiramente, Descartes duvida de todas as verdades que tm como fundamento os sentidos. De acordo com ele, se os sentidos j nos enganaram uma nica vez, isto j o suficiente para que desconfiemos deles todas as vezes. Portanto, no possvel acreditar ou confiar em nenhuma verdade que tenha como fundamento os cinco sentidos, ou seja, o empirismo.
Em segundo lugar, Descartes duvida das realidades do mundo e de si mesmo, propondo que as ideias que temos de nossa existncia e do mundo podem no passar de iluses ou sonhos. Se algumas vezes temos sonhos to verdadeiros que parecem realidade, no h nada que assegure que estamos acordados ou dormindo, portanto, no h qualquer instrumento ou ideia que sirva para distinguir verdade de sonho, de iluso. Assim, ele afirma:
[...] E, persistindo nesta meditao, percebo to claramente
que no existem quaisquer indcios categricos, nem sinais
bastante seguros por meio dos quais se possa fazer uma
ntida distino entre a viglia e o sono, que me sinto
completamente assombrado: e meu assombro tanto que
quase me convence de que estou dormindo.
DESCARTES, Ren. Meditaes primeiras. In: Meditaes. So Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 87.
Em terceiro lugar, Descartes chega dvida hiperblica, dvida exagerada ou hiptese do gnio maligno. At ento, o filsofo havia desconfiado de todo o conhecimento, salvando de sua desconfiana somente a Matemtica, que para ele era o nico conhecimento seguro e exato, porque totalmente racional. Nesse terceiro momento da dvida metdica, Descartes coloca em dvida inclusive as verdades matemticas. E se as verdades matemticas que aparecem mente humana de modo intuitivo e evidente no passarem de iluses coletivas, de mentiras forjadas por um grande e malvolo gnio que engana todos os homens ao mesmo tempo, fazendo-os acreditar que 2 + 2 = 4 quando isso no passa de uma iluso? O saber matemtico no poderia ser fruto de um ser superior que sadicamente engana os homens para deles rir? As prprias coisas do mundo, as imagens que temos delas, as ideias, no poderiam ser tambm uma iluso de um ser enganador, ardiloso e astuto?
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Presumirei, ento, que existe no um verdadeiro Deus, que
a suprema fonte da verdade, mas um certo gnio maligno,
no menos astucioso e enganador do que poderoso, que
dedicou todo o seu empenho em enganar-me. Pensarei que
o cu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as
coisas exteriores que vemos no passam de iluso e fraudes
que Ele utiliza para surpreender minha credulidade.
DESCARTES, Ren Meditaes primeiras. In: Meditaes. So Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 88.
Porm, ao final de seu caminho em que colocou todas as coisas, inclusive as verdades matemticas, em dvida, Descartes alcana a verdade clara, distinta e inabalvel que sustentar todo o edifcio do saber, de forma intuitiva e to evidente que seria impossvel que qualquer homem duvide dela: a verdade do cogito. Assim, ele afirma:
[...] Somente depois tive que constatar que, embora
eu quisesse pensar que tudo era falso, era preciso
necessariamente que eu, que assim pensava, fosse alguma
coisa. E observando que essa verdade penso, logo sou
era to firme e slida que nenhuma das mais extravagantes
hipteses dos cticos seria capaz de abal-la, julguei que
podia aceit-la sem reservas como o princpio primeiro
da filosofia que procurava.
DESCARTES, Ren. Discurso do Mtodo. Traduo de J. Guinsburg e Bento Prado Jnior.
So Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 46.
Para Descartes, o homem pode duvidar de absolutamente tudo. Pode duvidar dos conhecimentos empricos, de sua existncia e da existncia do mundo. Pode duvidar at das verdades matemticas. Ele s no pode duvidar de que duvida, ou seja, de que pensa. E se pensa, ele existe.
Portanto, esta verdade, conhecida como a certeza do Cogito (Cogito, ergo sum! Penso, logo existo!), to evidente e absolutamente verdadeira que mesmo a dvida, at aquela mais exagerada, serve como confirmao dela, de forma que o filsofo afirma, que se deixasse de pensar, ele deixaria de existir.
Assim, para Descartes, o que garante a existncia humana no so os sentidos, mas o pensamento puro. O homem existe enquanto substncia pensante ou res cogintans. O que garante tanto a existncia do homem quanto a existncia de todas as coisas a substncia pensante, o eu pensante.
[Nesse sentido] existem apenas duas substncias, claramente
separadas uma da outra e irredutveis uma outra: a res
cogitans (coisa pensante) que o homem, e a res extensa
(coisa extensa que so as coisas do mundo fora do pensamento.
A res cogitans a existncia espiritual do homem sem
nenhuma ruptura entre pensar e o ser, a alma humana
como realidade pensante que pensamento em ato, como
pensamento em ato que realidade pensante. A res extensa
o mundo material (compreendendo obviamente o corpo
humano), do qual, justamente, se pode predicar como
essencial apenas a propriedade da extenso.
REALE, Giovanni. Histria da Filosofia Antiga. 2. ed. 7v. So Paulo: Loyola, 2001. Volume III. p. 293.
Uma vez atingida a verdade do Cogito, s h uma nica instncia que garanta a verdade sobre o mundo: o prprio homem. No h necessidade de se encontrar provas ou justificativas, muito menos empricas, fora do homem que garantam a verdade. Toda pesquisa deve somente buscar o grau mximo de clareza e distino, dadas pelo pensamento puro. Se a verdade aparecer mente humana com clareza e distino, essa ideia verdadeira. justamente por isso que Descartes representa o maior expoente do racionalismo moderno: ele acredita que as verdades so alcanadas unicamente pela razo humana e nada mais. O prprio mtodo cartesiano tem como base a razo, o pensamento claro e distinto que, aplicado adequadamente ao mundo, s cincias, produziro verdades claras e distintas.
A existncia de DeusDescartes chegou ideia do Cogito, considerando-a
indubitvel e autoevidente. Porm surge, um outro problema: se o fundamento do conhecimento verdadeiro est na conscincia, o homem tem, enquanto ser pensante, uma multiplicidade de ideias em sua mente, e sobre essas ideias a Filosofia deve se debruar a fim de constatar a sua veracidade. E h ainda outro problema: ser que as ideias que o homem tem de um objeto do mundo correspondem verdadeiramente a esse objeto? Como possvel sair da ideia em si e alcanar o mundo externo de forma que ele corresponda exatamente ao que se pensou dele? As ideias so puras representaes mentais ou elas correspondem exatamente ao mundo externo, realidade objetiva fora do homem?
Para responder a essas perguntas, necessrio, em primeiro lugar, compreendermos como Descartes divide essas ideias. Ele as classifica em 3 grupos:
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1 Ideias inatas: so aquelas que nascem com
o homem, que so intrnsecas sua conscincia. So as
ideias de Deus, de corpo, de formas geomtricas como tringulos, crculos, dentre outras , que representam em si as essncias imutveis e verdadeiras.
2 Ideias adventcias: so ideias estranhas, que vm
de fora do homem, como as ideias dos objetos.
3 Ideias factcias: so as ideias inventadas pelo
homem.
Essas trs classes de ideias existem subjetivamente na mente humana. A questo para Descartes saber se elas so tambm objetivas, ou seja, se aquilo que existe na mente tambm existe no mundo e corresponde realidade das coisas. Para o filsofo, as ideias factcias so ilusrias e, portanto, arbitrrias, devendo ser ignoradas. As ideias inatas s existem na mente do homem, portanto, no se referem a nada do mundo externo, j nasceram com o homem e encontram fundamento no res cogitans, no sendo questionveis. O problema est, ento, com as ideias adventcias: ser que aquilo que o homem pensa sobre o mundo corresponde realidade das coisas, ou tais ideias no passam de uma iluso?
Para resolver esse problema, Descartes lanou mo da ideia de Deus. O filsofo considera certo que a ideia de Deus existe, mas questiona: teria sido ela criada pelo homem ou existe por conta prpria? A ideia de Deus objetiva ou subjetiva?
Descartes considera, nas Meditaes Metafsicas:
[que a ideia de Deus se constitui em] uma substncia infinita,
eterna, imutvel, independente e onisciente, a qual eu
prprio e todas as outras coisas que existem (se verdade
que h coisas existentes) fomos criados e produzidos.
DESCARTES, Ren. Meditaes primeiras. In: Meditaes. So Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 87.
Nesse sentido, o filsofo conclui, que a ideia de Deus era inata, porque os homens, sendo seres imperfeitos e limitados, no poderiam ser a causa de uma ideia de perfeio e eternidade, uma vez que tal ideia seria o efeito de uma causa, e a causa no traria a perfeio que a ideia exige. De forma mais simples: a ideia de Deus no poderia ter como causa de sua criao o homem, porque este imperfeito, e um ser imperfeito e limitado no poderia elaborar a ideia de perfeio e eternidade. Portanto, a ideia de Deus inata e s poderia ter como causa um ser que tambm fosse perfeito e eterno, nesse caso, somente Deus poderia criar essa ideia e coloc-la na mente do homem, e, assim, pelo raciocnio de Descartes, Deus existe. Nas palavras do filsofo:
[...] fica evidente que o autor dessa ideia que est em mim
no sou eu, imperfeito e finito, nem qualquer outro ser, da
mesma forma limitado. Tal ideia, que est em mim, mas no
de mim, s pode ter por causa adequada um ser infinito,
isto , Deus.
DESCARTES, Ren. Meditaes primeiras. In: Meditaes. So Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 91.
E quando considero que duvido, isto , que sou uma coisa
incompleta e dependente, a idia de um ser completo e
independente, ou seja, de Deus, apresenta-se a meu esprito
com igual distino e clareza; e do simples fato de que essa
idia se encontra em mim, ou que sou ou existo, eu que
possuo esta idia, concluo to evidentemente a existncia
de Deus e que a minha depende inteiramente dele em todos
os momentos da minha vida, que no penso que o esprito
humano possa conhecer algo com maior evidncia e certeza.
DESCARTES, Ren. Meditaes. Traduo. de Jac Guinsburg e Bento Prado Jnior. So Paulo: Nova Cultural, 1996.
p. 297-298.
Desse modo, Descartes elabora um argumento denominado
de prova ontolgica da existncia de Deus: a existncia de
Deus parte integrante de sua essncia. Assim, impossvel
ter a ideia de Deus sem que Ele exista, sendo o prprio
criador de sua ideia, perfeita e infinita, que a coloca na mente
do homem, ser imperfeito e finito. A ideia de Deus, segundo
Descartes, a marca que o arteso (Criador) deixa em sua
obra (homem). Nesse sentido, Descartes descarta a ideia
do gnio maligno, que era somente uma hiptese, visto
que filsofo no havia afirmado que Deus seria de fato um
ser maligno.
Para Descartes, Deus bom, perfeito, eterno e infinito.
Ele criou o homem e o fez capaz de conhecer o mundo.
No sendo mal, mas sumamente bom, Deus no permitiria
que o homem, ao encontrar uma verdade clara e distinta
sobre o mundo, estivesse errado, ou estivesse to
enganado que tomasse como verdade aquilo que no
passa de uma mentira. Dessa maneira, Ele que garante
que o homem, ao alcanar uma verdade pela intuio
intelectiva, encontre a verdade. Assim, o homem, quando
alcana alguma ideia adventcia, proveniente das coisas
para a conscincia, isto , alcana alguma ideia sobre
o mundo e ele mesmo enquanto res extensa, se esta
ideia aparece sua mente com clareza e distino, quem
garante que essa ideia verdadeira, correspondendo
de fato verdade daquilo a que se refere, o prprio Deus.
Epistemologia moderna
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12 Coleo Estudo
Pelo princpio da correspondncia, a ideia subjetiva do homem
sobre as coisas do mundo realmente corresponde a essas
coisas, e quem garante esse conhecimento verdadeiro
Deus. Mas ento, surge a questo: e se o homem racional
no encontra a verdade? Isto significa que ela no existe?
A essa questo Descartes responde:
[...] o bom senso (a razo) naturalmente igual em todos os
homens; e, destarte, que a diversidade de nossas opinies
no provm do fato de serem uns mais racionais do que
outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos
por vias diversas e no considerarmos as mesmas coisas.
Pois no suficiente ter o esprito bom, o principal
aplic-lo bem.
DESCARTES, Ren. Discurso do Mtodo. So Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 29.
Assim, o homem racional s no encontra a verdade sobre o mundo se ele no seguir os passos corretos do mtodo.
Com duas verdades claras e distintas, a do Cogito e a de Deus, Descartes encontrou os fundamentos firmes e incontestveis que sustentaro todo o edifcio do saber, o qual tem, em sua essncia, a ideia de que aquilo que o homem pensa, atravs do mtodo, sendo uma ideia clara e distinta, verdade, e quem garante essa verdade Deus.
As consequncias do pensamento cartesiano para o mundo ocidental
Sem dvida, Descartes foi um dos grandes pensadores da histria da Filosofia que mais contribuiu para a formao do pensamento ocidental. Sua preocupao com o mtodo, ao tentar responder pergunta O que possvel conhecer?, o levou aos mais ilustres altares do pensamento filosfico, tendo ficado conhecido, inclusive, como o fundador da Filosofia Moderna.
Descartes trouxe baila a questo do conhecimento e como este pode ser alcanado pelo homem, que, por ser racional, pode alcanar a verdade sobre o mundo se seguir os passos corretos para isso. A importncia da filosofia de Descartes tanta que muitos depois dele acreditaram que o objetivo nico e verdadeiro de toda a filosofia seria tratar somente da Epistemologia.
Porm, outra consequncia do pensamento cartesiano entrou para a histria e at hoje vista como uma questo permanente da Filosofia: o dualismo psicofsico ou dicotomia entre corpo e mente do homem.
Ren
Des
cart
es
Nessa imagem, buscam-se mostrar a ligao existente entre a percepo sensorial de uma imagem e a ao muscular. A imagem transferida dos olhos para a glndula pineal. A reao entre a imagem e a glndula determina a ao motora.
Ao chegar certeza do Cogito, Descartes afirmou
que a realidade do pensamento mais clara e anterior
realidade da existncia fsica ou material do homem.
Inclusive, disse que aquilo que garante a existncia
material do mundo e do prprio homem o pensamento,
por isso, primeiramente, o homem pensa e s depois
se conclui que ele existe. Nesse momento, ocorre
a diviso entre res cogitans (coisa pensante, substncia
pensante) e res extensa (coisa extensa ou coisa material),
sendo que a primeira garante a existncia da segunda.
Esse antagonismo entre pensamento e matria, corpo e alma,
foi tido durante pelo menos trs sculos como uma verdade
incontestvel em relao ao homem. De fato, o homem tem
em si uma dimenso de puro pensamento, a conscincia,
e outra dimenso material, o corpo. Essa separao
do homem trouxe muitas consequncias, por exemplo, para
a Medicina, que passou a compreender o homem como duas
coisas separadas. A partir dessa concepo, a funo do
mdico passou a ser curar o corpo, os males fsicos, sem
se importar se tais males esto ligados ou tm como causa
algum mal ou distrbio mental, psicolgico.
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Essa separao corpo-alma, porm, hoje combatida por
muitos pensadores, que tentam unificar o que Descartes
separou, buscando uma compreenso mais holstica
do homem, concebendo-o como uma unidade em que mente
e corpo se interligam e se complementam.
Ser que essas duas instncias ou substncias do homem
a res cogitans e a res extensa , completamente diferentes,
se comunicam de alguma forma? Buscando uma possvel
soluo para esse problema, Descartes escreveu duas
obras nas quais trata desse assunto: Tratado sobre o
homem e As paixes da alma. Nelas, o filsofo encontra o
ponto de comunicao entre corpo e mente, entre matria
e conscincia, denominado por ele de glndula pineal.
A respeito dessa ligao, Descartes afirma:
No basta que ela (a alma) seja inserida no corpo como
um piloto em seu navio, seno, talvez, para mover seus
membros, mas necessrio que ela seja conjugada e unida
mais estreitamente com ele, para, ademais, experimentar
sentimentos e apetites semelhantes aos nossos, compondo
assim um verdadeiro homem.
DESCARTES, R. Discurso do mtodo. So Paulo: Martin Claret, 2002. P.46.
E ainda:
preciso saber que, por mais que a alma esteja conjugada
com todo o corpo, entretanto h no corpo algumas partes
em que ela exerce suas funes de modo mais especfico
que em todas as outras [...] A parte do corpo em que a alma
exerce imediatamente suas funes no em absoluto o
corao e nem mesmo todo o crebro, mas somente a parte
interna dele, que certa glndula muito pequena, situada
em meio sua substncia e suspensa sobre o conduto pelo
qual os espritos das cavidades anteriores se comunicam
com os espritos das cavidades posteriores, de modo que os
seus mais leves movimentos podem mudar muito o curso
dos espritos [...]
DESCARTES, Ren. As Paixes da Alma. Traduo de J. Guinsburg e Bento Prado Jr.
So Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 238.
Constata-se, portanto, que, embora de uma forma
um pouco precria, Descartes une novamente corpo
e alma, apesar de, em sua filosofia, ter ficado mais evidente
a separao entre essas duas substncias.
EMPIRISMO MODERNO
Francis BaconFrancis Bacon nasceu em 22 de janeiro de 1561 em York
House, Strand, Inglaterra. Devido ao fato de seu pai ter sido
tabelio da rainha Elizabeth, Bacon foi introduzido desde
cedo na Corte inglesa. Entrou na universidade de Cambridge
aos 12 anos e, em 1575, obteve o ttulo de advogado
e jurisconsultor no Grays Inn, em Londres. Aos 23 anos
de idade, entrou para a carreira poltica, sendo eleito para
a Cmara dos Comuns onde permaneceu durante 20 anos.
Ocupou cargos importantes na poltica da Inglaterra,
principalmente quando Jaime I subiu ao trono, tornando-se
advogado-geral, procurador-geral da Coroa e lorde tabelio.
Recebeu o ttulo de lorde e, depois, de visconde.
Francis Bacon
Em 1620, publicou sua mais importante obra, o Novum
Organum, que deveria, em sua opinio, substituir o Organum
aristotlico. No ano seguinte, foi acusado de corrupo por
ter aceitado presentes de uma das partes envolvida em
um processo que ele deveria julgar, e, assim, sua brilhante
carreira sofreu um duro ataque do qual nunca se recuperou.
Foi condenado por crime de corrupo, permanecendo na
priso por poucos dias, tendo pagado uma multa e ido perdoado
pelo rei. Francis Bacon faleceu em 1526.
Epistemologia moderna
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14 Coleo Estudo
Bacon ficou conhecido, juntamente com Descartes, como
um dos fundadores do pensamento moderno. Porm,
seguiu decididamente o caminho inverso do racionalismo
ao defender o mtodo experimental para se alcanar um
conhecimento verdadeiro sobre o mundo. Entrou para
a Histria como um dos grandes crticos da Escolstica
medieval, uma vez que esta se ocupava de um conhecimento
contemplativo sem se preocupar com o aspecto prtico
e instrumental da Cincia. Tambm foi um crtico de
Aristteles, considerando a lgica aristotlica, principalmente
os argumentos dedutivos, estril para o conhecimento do
mundo. Bacon chega inclusive a afirmar que a filosofia
grega se fundamentava mais em discursos do que em
conhecimentos que levariam a algum progresso da Cincia
ou do conhecimento do mundo. O Novum Organum trabalha
essa problemtica ao ser concebido como um instrumento
eficaz para o conhecimento e dominao da natureza.
Saber poderBacon, ao discutir a forma de se conhecer a natureza
eficazmente, faz uma distino entre os conceitos de antecipaes da natureza e de interpretaes da natureza.
As antecipaes da natureza so conhecimentos obtidos por meio de axiomas construdos a partir de poucos dados reais, sendo a razo a guia dessas verdades. Para Bacon, este um conhecimento temerrio e prematuro da razo que o homem costumeiramente tem, no passando de ideias obtidas do senso comum e de forma assistemtica, j que foram formadas a partir de uma primeira noo pouco precisa sobre os fenmenos da natureza e foram aceitas pelos homens sem antes verific-las. Essas verdades sobre a natureza so precipitadas, obtidas por meio de poucos e insuficientes exemplos.
Por outro lado, temos as interpretaes da natureza, que tm como objetivo interrogar a realidade, subjulgando-a at que se alcance o conhecimento verdadeiro. Para o filsofo, so essas interpretaes que levam ao verdadeiro conhecimento do mundo j que se comprometem com a realidade e se constroem a partir de muitos exemplos e experimentaes. Para que se alcance a verdade sobre o Universo, necessrio, portanto, que sejam feitas experincias sucessivas por meio do mtodo indutivo, que consiste em partir de um estudo srio e pormenorizado dos casos particulares para se alcanar uma ideia geral que seja fundada em muitos e fartos exemplos. O mtodo indutivo, apesar de primeira vista parecer difcil, pois no traz imediatamente as respostas, considerado por Bacon como o mais adequado e o nico capaz de garantir um conhecimento de fato sobre o mundo natural, sendo, na linguagem do filsofo, o verdadeiro mtodo do conhecimento. Bacon prope, assim, a formulao do conhecimento atravs de uma cincia aplicada, a qual d
ao homem o conhecimento das leis que regem a natureza, permitindo a ele interagir e controlar a natureza de acordo com seus interesses e em seu prprio benefcio.
Partindo dessa distino entre antecipao e interpretao da natureza, podemos dividir a filosofia de Bacon em dois momentos:
1 momento Retirar da mente todo conhecimento que no seja verdadeiro, ou seja todo conceito ou pr-conceito criados a partir das antecipaes da natureza. Essas falsas noes que devem ser eliminadas so chamadas por Bacon de dolos.
2 momento Expor as regras do nico mtodo correto que pode levar o homem ao conhecimento do mundo de forma verdadeira.
A teoria dos dolosQuais so as falsas noes que tomam conta do
intelecto humano e o impedem de alcanar os verdadeiros conhecimentos sobre o mundo?
Para Bacon, o primeiro passo para se chegar verdade deve ser reconhecer essas falsas noes, tornar-se consciente delas, para mais tarde, atravs do mtodo correto de investigao cientfica, se livrar delas.
Os dolos e as falsas noes que invadiram o intelecto
humano, nele lanando razes profundas, no s sitiam
a mente humana, a ponto de tornar-lhe difcil o acesso
verdade, mas tambm (mesmo quando dado e concedido
tal acesso) continuam a nos incomodar durante o processo
de instaurao das cincias, quando os homens, avisados
disso, no se dispe em condio de combat-los medida
do possvel.
REALE, Giovanni. Histria da Filosofia Antiga. 2. ed. 7v. So Paulo: Loyola, 2001. Volume III. p. 269.
So quatro os dolos que atrapalham o conhecimento verdadeiro.
1 dolo da tribo
[os dolos da tribo] esto fundados na prpria natureza
humana, na prpria tribo ou espcie humana.
BACON. Novum Organum. Livro I, LXXII.
Tribo, para Bacon, significa a espcie humana, a raa
humana. Assim, o homem coloca na natureza exterior
aquilo que de sua natureza prpria. Tais dolos acontecem
quando o homem mistura o intelecto humano natureza
das coisas, dando a elas caractersticas que so prprias
dos homens ou que lhes agradam. O homem d ao Universo
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e natureza relaes e ordens que no existem, mas que
ele acredita existirem porque lhe convm, enxergandoas
coisas de acordo com as limitaes que so prprias
da espcie humana. A natureza no o que achamos que
ela seja, ela tem uma objetividade que se constitui em
suas verdades. A dificuldade de se encontrar a verdade
no se refere s limitaes individuais, mas s limitaes
da espcie humana.
2 dolos da caverna
Cada um [...] tem uma caverna ou uma cova que intercepta
e corrompe a luz da natureza; seja devido natureza singular
de cada um, seja devido educao ou conversao com
os outros, seja pela leitura dos livros ou pela autoridade
daqueles que se respeitam e admiram.
BACON. Novum Organum. Livro I, LXXII.
Ao contrrio do dolo da tribo, que diz respeito ao conjunto
dos homens, o dolo da caverna diz respeito s falsas noes
ou ideias provenientes dos homens em particular. Desse
modo, Bacon afirma que o esprito humano tal como se
acha disposto em cada um coisa vria, sujeita a mltiplas
perturbaes, e at certo ponto sujeita ao acaso5.
Desse modo, esses dolos referem-se s concepes e aos
pr-conceitos particulares.
3 dolo do foro (ou do mercado)
A relao entre os homens ocorre por meio da fala, mas
os nomes so impostos s coisas segundo a compreenso
do vulgo.
Bacon. Novum Organum. Livro I, LXXII.
Esses dolos dizem respeito linguagem, e por isso Bacon
os considera os piores e mais graves ao entendimento
humano. Para o filsofo, as palavras so imprecisas
e se referem a coisas cuja natureza os homens no dominam.
Dessa forma, eles utilizam termos e palavras sem saber
exatamente o que significam, causando grande confuso.
4 dolo do teatro
[Os dolos do teatro] penetram no esprito humano por meio
das diversas doutrinas filosficas e por causa das pssimas
regras de demonstrao.
BACON. Novum Organum. Livro I, XCV.
5BACON. Novum Organum. Livro I, LXXII.
Segundo Bacon, esses so os dolos derivados das diversas
doutrinas filosficas e cientficas que no so verdadeiras,
no passando de representaes fantasiosas que poderiam
ser representadas em um teatro, pois so ilusrias.
Dessa forma, Bacon nos mostra quais so os preconceitos
dos quais os homens devem se ver livres. Assim, passamos
segunda parte de sua filosofia, que busca mostrar qual
deve ser o melhor caminho ao conhecimento verdadeiro.
O mtodo indutivoQuando o homem consegue purificar sua mente dos
dolos, ele deve buscar obter o conhecimento do mundo
de forma experimental, por meio da induo. Segundo
Bacon, o homem deve se colocar como uma criana
diante da natureza para compreend-la tal como ela ,
sem ideias pr-concebidas. O novo mtodo indutivo deve
se preocupar com a regularidade dos fenmenos naturais,
suas diferenas e seu funcionamento, de modo que, pela
observao da experincia, se alcance uma lei geral.
Essas observaes podem prescindir de instrumentos
que so as extenses dos sentidos humanos, de modo
que se superem as suas limitaes.
Bacon representou o esprito da Cincia moderna
ao defender o progresso da Cincia e sua aplicao na vida
humana. Ele buscou uma cincia prtica, ativa e atuante,
que rompesse, atravs da crtica, com as antigas concepes
ou dolos, sendo capaz de representar a busca pelo domnio
e seria pela transformao da natureza a qual deve servir
ao homem em suas necessidades.
O EMPIRISMO INGLS
O sculo XVI foi marcado pela eminncia do racionalismo,
corrente filosfica que encontrou seu auge com a filosofia
de Ren Descartes. O racionalismo representou, por seu
modo de tentar compreender o mundo, a valorizao
da razo em contraposio fora da autoridade medieval
e antiga, representada pela Escolstica, que encontrou
no Renascimento a sua crtica mais importante. O racionalismo
moderno encontrou na Matemtica de Coprnico e de Galileu
(para citar alguns dos grandes expoentes desse pensamento),
o caminho que levaria verdade sobre o homem e o
mundo, tendo, por consequncia, a valorizao do mtodo
dedutivo-matemtico como caminho para o conhecimento
das essncias, das ideias e dos princpios que conduziriam
o pensamento humano ao seu pleno desenvolvimento.
Epistemologia moderna
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Porm, o movimento que surgiu no sculo posterior tomou novos caminhos: no bastava conhecer o mundo, era necessrio domin-lo e transform-lo de acordo com as necessidades humanas. Tal ideia encontrou seu pice na Revoluo Industrial, nascida na Inglaterra, que teve como base terica o pensamento do filsofo ingls Francis Bacon. O que interessava aos pensadores dos sculos XVII e XVIII era o conhecimento instrumental que conduziria descoberta de leis naturais atravs das quais se poderia dominar a natureza.
Nesse contexto, o empirismo moderno se fortaleceu na busca do progresso da humanidade por meio do desenvolvimento das Cincias. As discusses metafsicas cederam lugar s discusses prticas de como a natureza se comporta e como o homem pode interferir nela. Porm, para que isso fosse possvel, era necessrio responder pergunta acerca do limite do conhecimento humano, sobre aquilo que o homem pode conhecer, sobre como as ideias so construdas na mente humana e sobre o papel dos sentidos para o conhecimento seguro e verdadeiro da natureza.
Apesar de Bacon tambm fazer parte dessa tradio empirista, os maiores representantes do chamado empirismo ingls nos sculos XVII e XVIII foram os pensadores John Locke e David Hume.
John LockeJohn Locke, um dos mais importantes pensadores
da Epistemologia moderna, considerado o pai do empirismo. Apesar de ter se dedicado tambm a reflexes polticas, a importncia de sua filosofia deu-se principalmente em relao teoria do conhecimento.
Sir G
odfr
ey K
nel
ler
John Locke foi um dos mais importantes pensadores do empirismo ingls. Destacou-se tanto no campo da Epistemologia quanto no da poltica.
Sua obra mais importante foi Ensaios sobre o entendimento humano, publicada em 1690. Locke debruou-se sobre essa obra durante 20 anos e nela que ele trata daquilo que mais caro sua filosofia: os limites, as capacidades e as funes do intelecto humano. Segundo Locke, sua funo com essa obra trabalhar como um ajudante de jardinagem, preparando o terreno e removendo o entulho que atrapalha o caminho do conhecimento6.
Desse modo, Locke se prope a refletir sobre como o homem pode alcanar o conhecimento, buscando entender, primeiramente, como as ideias so construdas na mente humana.
de grande utilidade para o marinheiro saber a extenso
de sua linha, embora no possa com ela sondar toda a
profundidade do oceano. conveniente que saiba que ela
suficientemente longa para alcanar o fundo dos lugares
necessrios para orientar sua viagem, e preveni-lo de
esbarrar contra escolhos que podem destru-lo. No nos diz
respeito conhecer todas as coisas, mas apenas aquelas que
se referem nossa conduta.
LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. So Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 32.
A filosofia de Locke possui trs interesses:
1 Epistemolgico: Locke procura saber a origem
das ideias e como elas so construdas pelo homem.
Esse o aspecto Locke mais importante de toda a sua
reflexo filosfica.
2 Poltico: Locke busca compreender a formao do
Estado e legitimar a propriedade privada.
3 Religioso: Locke busca estabelecer os traos
essenciais da revelao de Deus aos homens.
Neste mdulo, iremos tratar exclusivamente da Epistemologia de Jonh Locke.
Crtica ao inatismoAo contrrio de pensadores anteriores, Locke inovou
ao afirmar que no possvel conhecer todas as coisas, mas somente aquelas que esto de acordo com as possibilidades humanas de conhecer.
Nesse caminho crtico, Locke contraria a posio filosfica de Descartes ao afirmar que no existem ideias inatas, como a ideia de Deus, que, segundo a filosofia cartesiana, est presente por natureza na mente humana. Ao contrrio, Locke defende que a mente humana uma tbula rasa, uma folha de papel completamente em branco em que no h, absolutamente, nenhuma ideia escrita a priori, ou seja,
6LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. So Paulo: Nova Cultural, 1999. Epstola ao leitor. p. 27.
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no h a presena de nenhuma ideia previamente inscrita na mente dos homens.
Aqui se faz necessrio definir de modo mais pormenorizado o que Locke entende por ideia. Enquanto na tradio platnica ideia era um ser em si mesmo, uma entidade metafsica, uma substncia que existia por conta prpria, com Descartes e Locke, essa concepo de ideia se esvai. Para esses dois filsofos, ideia um contedo do pensamento humano, ou seja, um pensamento sobre alguma coisa, no tendo realidade em si mesma e s existindo enquanto construo mental.
A diferena entre a posio filosfica de Descartes e a de Locke que, enquanto o primeiro acredita que, algumas dessas ideias so inatas e outras so adventcias e factcias, Porm, para o segundo, as ideias que existem na mente no podem, de forma alguma, serem inatas. Dessa maneira, Locke defende que:
A) no existem ideias, princpios ou quaisquer contedos
inatos na mente humana;
B) nenhum intelecto humano capaz, de forma alguma,
de criar ou destruir ideias que existam nele;
C) a nica fonte das ideias a experincia, ou seja. todas
as ideias so originadas nas experincias humanas.
O principal argumento que Locke refuta aquele acerca da presena de ideias inatas, elaborando, assim, a sua crtica ao inatismo, segundo a qual, se existissem ideias inatas, todos os homens deveriam alcan-las, o que no acontece, por exemplo, com a ideia de Deus ou com os princpios de identidade e de no contradio7. Se existissem ideias morais inatas por exemplo a ideia de que matar uma criana errado por si mesmo e, logo, essa lei deveria estar inscrita na mente e no corao de todos os homens , todos deveriam seguir tais ideias, o que, na prtica, no acontece, pois algumas culturas aceitam valores e fatos que para outras seriam absurdos ou antinaturais, agindo, portanto, de modo diferente. Assim, para Locke, sustentar que as ideias inatas existam, mas que no foram encontradas por alguns, seria absurdo e insustentvel.
7 Identidade: Na lgica, o princpio da identidade, uma das trs leis bsicas do raciocnio para Aristteles, se expressa pela frmula A = A,ou seja, todo objeto igual a si mesmo. IN: JAPIASS, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionrio bsico de filosofia. Rio de janeiro: Zahar, 1996.
Contradio: [...] A ontologia tradicional tem por premissa fundamental o princpio da no-contradio aplicado ao ser mesmo. O pensamento da contradio insustentvel, porque desqualifica todo pensamento, que se torna uma opinio sem valor de verdade. IN: JAPIASS, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionrio bsico de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
Bart
olom
Est
eban
Murillo
Sagrada famlia (1650). Segundo Locke, tudo o que conhecemos sobre o mundo chega nossa mente atravs dos sentidos. Nessa imagem, a criana, observando o cachorro, chegar ideia de o que um cachorro.
Locke afirma que no h motivos para crer que a alma pense antes que os sentidos lhe tenham fornecido ideias nas quais pensar.
As idias, especialmente as pertencentes aos princpios, no
nascem com as crianas. Se consideramos cuidadosamente
as crianas recm-nascidas, teremos bem poucos motivos
para crer que elas trazem consigo a este mundo muitas
idias. Excetuando, talvez, algumas plidas idias de fome,
sede e calor, e certas dores, que sentiram talvez no ventre,
no h a menor manifestao de idias estabelecidas
nelas, especialmente das idias que respondem aos termos
que formam proposies universais que so consideradas
princpios inatos. Pode-se perceber como, por graus,
posteriormente, as idias chegam s suas mentes, e no
adquirem mais, nem outras, do que as fornecidas pela
experincia e a observao das coisas que aparecem em seu
caminho, o que deve ser suficiente para convencer-nos
de que no h caracteres originais impressos na mente.
LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. So Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 51.
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Ou seja, so os sentidos, as experincias, que oferecem mente a matria prima das ideias. Defendendo a ideia da tbula rasa, Locke afirma:
Suponhamos, pois, que a mente , como papel branco,
desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer idias;
como ela ser suprida? De onde provm este vasto estoque,
que ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou nela
como uma variedade infinita? De onde apreende todos
os materiais da razo e do conhecimento? A eu respondo,
numa palavra, da experincia. Todo o nosso conhecimento
est nela fundado e dela deriva fundamentalmente
o prprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos
sensveis externos como nas operaes internas de nossas
mentes, que so por ns mesmos percebidos e refletidos,
nossa observao supre nossos entendimentos com
todos os materiais do pensamento. Dessas duas fontes
de conhecimento jorram todas as nossas idias, ou as que
possivelmente teremos.
LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento Humano. Traduo de Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 2. ed. So Paulo:
Abril Cultura, 1978. p. 159.
clara a diferena entre a concepo de conhecimento para Locke e para Descartes. Este prioriza o papel do sujeito para o conhecimento, uma vez que aquilo que garante a verdade a ideia clara e distinta que o sujeito conhecedor alcana, sem interferncia do objeto, sobre a coisa que est sendo pensada.
Por outro lado, de acordo com a tese empirista de Locke, o conhecimento alcanado sobre algo fruto das experincias realizadas, as quais do ao homem os contedos essenciais a partir dos quais as ideias sero formadas. Para Locke, a mente humana como cera quente, que, aos poucos, vai adquirindo a forma do objeto que est sendo experimentado.
Segundo Locke, a mente humana como se fosse uma cera quente que recebe a figura do braso. O que permanece na mente so as idias, cpias das experincias realizadas.
A constituio das ideiasLocke acredita que todas as ideias nascem da experincia,
necessrio distinguir as experincias, no existindo ideias inatas no homem. Assim, em sua Filosofia, ele distingui as experincias em dois tipos:
A) Experincias externas dos objetos que nos cercam.
Essas experincias geram a ideia simples ligada s
sensaes, como as ideias de cor, odor, sabor, textura,
som e cheiro. E, pelo conjunto de sensaes, geram
as ideias de solidez, extenso, movimento, repouso,
nmero e configurao.
Exemplo: Ao se observar uma piscina, percebe-se
que sua gua est transparente, fria e com odor
de cloro. Tambm possvel perceber que ela grande,
profunda, que a gua est em movimento e que foi
construda em formato retangular.
necessrio deixar claro que as ideias simples, que
nascem dos sentidos particulares, so subjetivas, j que
podem variar de uma pessoa para outra. Duas pessoas
podem, por exemplo, ter sensaes diferentes sobre
a gua da piscina, sendo que para uma a gua pode
estar extremamente fria e, para a outra, nem tanto.
Porm, as ideias simples relacionadas s qualidades
fsicas do objeto em questo, como comprimento,
profundidade, extenso, no variam, uma vez que
no dependem de impresses subjetivas, mas dizem
respeito s suas caractersticas objetivas.
B) Experincia realizada pela reflexo.
Reflexo a capacidade da mente de perceber seus
processos internos; logo, esse tipo de experincia
refere-se mente pensando em si prpria ao produzir
as ideias. A mente humana no possui ideias inatas,
mas pode trabalhar com as percepes originadas
da sensibilidade do homem.
Exemplos: prazer, dor, fora, distino, comparao, etc.
Qualidades primrias e secundrias
Os objetos do mundo externo que geram as ideias simples
podem ser conhecidos de acordo com suas qualidades
primrias e secundrias. No exemplo da piscina, percebe-se
que o objetivo possui caractersticas objetivas, invariveis
e independentes do observador, as quais esto ligadas solidez,
extenso, movimento, repouso, nmero e configurao.
Tais caractersticas invariveis so as qualidades primrias
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do objeto. As caractersticas variveis, que podem ser
diferentes de acordo com o observador e que so,
portanto, subjetivas, como a cor, o odor, a sabor , so as
qualidades secundrias do ser. Tanto as qualidades primrias
quanto as secundrias originam-se do objeto, no existindo
por conta prpria ou na mente humana, sem que o homem
tenha contato com o objeto, para que elas sejam formadas.
Qualidades primrias: so objetivas e produzem
no homem a cpia exata daquilo que o objeto em si
mesmo. So qualidades dos prprios seres sem precisar
do auxlio do homem para que existam.
Qualidades secundrias: so subjetivas e, portanto,
no se assemelham exatamente quilo que o objeto
traz em si. So qualidades nascidas do encontro entre
o homem e o objeto.
Ideias simples e ideias complexasComo vimos anteriormente, as ideias simples so formadas
pela capacidade do homem de receber as informaes dos objetos, podendo ser constitudas por qualidades primrias ou secundrias do ser. Porm, uma vez que o homem adquire essas ideias simples, elas juntam-se na mente humana das formas mais variadas possveis. Assim, as ideias complexas so produzidas pelo homem a partir das ideias simples. Em suma, a ideias complexa a reunio de vrias ideias simples.
Desse modo, as ideias simples so adquiridas de forma passiva, e as complexas de forma ativa, j que o homem pode orden-las e comp-las de vrias maneiras, formando novas ideias a partir dessas separaes, composies, distines, etc. So exemplos de ideias complexas: o espao, a durao, as aes morais, as coisas corpreas e as coisas espirituais, a causalidade, a identidade, as ideias morais, dentre outras.
David HumeNascido em Edimburgo, na Esccia, David Hume ficou
conhecido como um empirista radical, devido seu ao ceticismo em relao s ideias que no tem fundamento nas experincias.
Membro de uma famlia pertencente pequena nobreza de proprietrios de terra, desde cedo mostrou-se portador de uma inteligncia mpar. Seus pais queriam que ele estudasse Direito e se tornasse advogado, porm, Hume negou-se a dedicar-se a outra atividade que no fosse a Filosofia.
Aos 18 anos de idade, teve a intuio de uma nova cincia da natureza. Dedicou-se arduamente aos estudos dessa nova concepo filosfica, a ponto de ultrapassar os limites do corpo, caindo em depresso, doena da qual se livrou somente aps longo tratamento.
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Ram
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Hume ficou conhecido como um empirista radical, por excluir qualquer forma de conhecimento de coisas que no podem ser experimentadas.
Sua nova cincia da natureza levou-o a um novo cenrio de pensamento que culminou com sua obra magistral, Tratado sobre o entendimento humano, publicada em Londres em 1739. Em sua 2 edio, em 1748, a obra sofreu algumas alteraes e recebeu um novo nome: Investigao sobre o entendimento humano. Alm dessas obras, Hume publicou, dentre outras menos importantes, a Histria da Inglaterra, um compndio de 8 volumes ao qual se dedicou durante dez anos.
Hume tentou seguir uma carreira acadmica, sem sucesso j que no foi aceito como professor em universidades como a de Edimburgo e Glasgow devido a algumas de suas ideias, interpretadas como atesmo. Porm, gozou de relativo prestgio em outros campos, ocupando importantes cargos no governo.
Apesar de seus contemporneos no terem reconhecido o valor do seu Tratado sobre o entendimento humano, nele que se encontram as principais ideias de Hume sobre sua nova concepo de Filosofia.
A cincia do homemO objetivo da filosofia de Hume era compreender os
caminhos e os limites do conhecimento humano. Com Bacon, surgiu um novo mtodo que permitiu ao homem conhecer o mundo e agora, era necessrio utilizar esse mtodo experimental para conhecer o homem e elaborar uma cincia do homem. Assim, o objetivo da filosofia de Hume era compreender a origem das ideias e como elas surgiam na mente humana. Dessa forma, o filsofo buscou explicar o alcance e a fora do intelecto humano e tambm a origem ou natureza das ideias e como se elas comportam dentro da mente humana.
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Seguindo a posio empirista de Locke e Bacon, Hume toma como ponto de partida de sua filosofia a confiana nos sentidos como nicas fontes do conhecimento. Assim, para ele, as ideias tm uma nica origem, que se d nas experincias.
Impresses e ideiasUma vez que as ideias originam-se das experincias
realizados pelo homem no mundo sensvel, essas experincias so a matria-prima de todo e qualquer conhecimento ou ideias.
Desse modo, todos os contedos mentais so originados das impresses sensveis, que so as percepes imediatas que o homem tem ao experimentar algo. As ideias, por sua vez, so os resqucios das impresses, as lembranas das impresses realizadas no mundo, chamadas por Hume de percepes8. As impresses so mais vivas e tm mais fora do que as ideias, j que estas referem-se lembranas,vestgios mentais daquilo que foi experimentado.
A diferena entre impresses e ideias consiste no grau
diverso de fora e vivacidade com que as percepes
atingem nossa mente e penetram no pensamento ou na
conscincia. As percepes que se apresentam com maior
fora e violncia podem ser chamadas de impresses e,
sob essa denominao, eu compreendo todas as sensaes,
paixes e emoes, quando fazem a sua primeira apario
em nossa alma. Por ideias, ao contrrio, entendo as imagens
enlanguescidas das impresses.
[...]
Podemos, por conseguinte, dividir todas as percepes do
esprito em duas classes ou espcies, que se distinguem por
seus diferentes graus de fora e vivacidade.
HUME, David. Investigao acerca do entendimento humano. So Paulo: Nova Cultural, 1989. p. 69.
Dessa diferenciao entre impresses e ideias, nasce a distino entre sentir e pensar. O que diferencia uma coisa da outra o seu grau de intensidade: o sentir mais forte, e o pensar mais fraco. Desse modo, a ideia depende da impresso. Primeiro se experimenta e como resultado dessa experincia, nasce a ideia. Nas palavras de Hume:
8Percepo, para Hume, acompanhando o empirismo de Berkeley, refere-se a tudo aquilo que se apresenta mente humana. Nesse caso, so tanto as impresses (simples ou complexas) quanto as ideias (simples ou complexas).
Todas as ideias simples provm, mediata ou imediatamente,
de suas correspondentes impresses.
HUME, David. In: REALE, Giovanni. Histria da Filosofia Antiga. 2. ed. 7v.
So Paulo: Loyola, 2001. Volume IV. p. 135.
Impresses simples e complexas e ideias simples e complexas
Hume faz outra diferenciao importante para a compreenso de sua filosofia, que a distino entre impresses simples e complexos e ideias simples e complexas.
Impresses simples: so as impresses das
caractersticas sensitivas particulares do objeto
experimentado. Por exemplo: transparente, frio, rgido,
etc. Cada uma delas refere-se a um dos sentidos
humanos. O vermelho percebido pela viso, j frio
e a rigidez so percebidos pelo tato.
Impresses complexas: so as impresses do objeto
como um todo. Exemplo: gelo, fogo, mesa, etc.
Ideias simples: so as cpias enfraquecidas
das impresses simples.
Ideias complexas: so as cpias enfraquecidas
das impresses complexas.
Segundo Hume, a mente humana possui a faculdade da memria, que capaz de guardar as ideias, as quais so lembranas das impresses. Porm, a mente possui outra faculdade, a imaginao, que responsvel pelos inmeros modos de compor, combinar, separar e distinguir as ideias. A imaginao combina as ideias das mais variadas formas, e essas combinaes podem ser tanto frutos da simples fantasia como de outras formas, chamadas por Hume de princpio da associao de ideias.
As associaes de ideiasPara Hume, as ideias contidas na mente humana
associam-se a partir de trs princpios mentais, chamadas pelo filsofo de propriedades. So elas:
1 Contiguidade (no espao e no tempo):
associaes de ideias que esto ligadas a outras no
tempo ou no espao.
Exemplos: um lugar aconchegante que faz o homem
se lembrar de sua cama; a chegada do ms de dezembro,
que faz o homem se lembrar do Natal e das festas
de fim de ano; uma msica, que faz o homem lembrar de pessoa ou de um lugar, etc.
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2 Semelhana: associaes de ideias que
se assemelham.
Exemplos: uma foto que traz mente a lembrana
da pessoa retratada; A escola atual, que faz o homem
lembrar das escolas em que estudou quando era criana
pela semelhana da arquitetura da construo; quando
o homem entra em uma loja e recorda-se de outro
estabelecimento que tinha uma decorao parecida
com aquela, etc.
3 Causa e efeito: associaes de ideias que so
estabelecidas por causa e efeito.
Exemplo: o fogo que me faz lembrar do calor; a fumaa
que faz lembrar do fogo; o acidente que faz lembrar
da morte ou da dor.
Embora nosso pensamento parea possuir esta liberdade
ilimitada, verificaremos, atravs de um exame mais
minucioso, que ele est realmente confinado dentro de limites
muito reduzidos e que todo poder criador do esprito no
ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar
ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos
sentidos e pela experincia.
HUME, David. Investigao acerca do entendimento humano. Traduo de Anoar Aiex. So Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 36.
Desse modo, Hume acredita que as ideias so associadas de distintas maneiras na mente humana. Porm, as ideias verdadeiras so aquelas que tm um correspondente material, ou seja, que nasceram de uma impresso, como a ideia de ma, de casa, de livro, etc. Essas ideias so verdadeiras porque nascem de impresses sensveis das coisas. No entanto, possvel a existncia de ideias que partam exclusivamente da imaginao humana, e qual associou ideias simples ou complexas formando novos conceitos que no so reais e no passam de fantasia. Como exemplo, podemos pensar nas ideias de sereia e do minotauro, que so associaes de ideias fantasiosas, j que no foram originadas da experincia, mas so somente atividade da imaginao, que une a ideia complexa de peixe com a ideia complexa de mulher e forma a ideia de sereia, da mesma forma, une a ideia de homem com a ideia de touro e forma a ideia de minotauro. Nesse mesmo raciocnio, podemos incluir as ideias de montanha de ouro, anjos, demnios, monstros e, inclusive, a ideia de Deus.
Para verificar se uma ideia verdadeira ou falsa, necessrio analis-la, buscando as impresses que a originaram. Caso no sejam encontradas essas impresses, o homem saber que tal ideia falsa e fruto de sua imaginao, uma vez que todo conhecimento ou ideia verdadeira deve ter sua origem nas sensaes ou nas experincias.
Nessa mesma perspectiva, Hume afirma que as ideias de Deus e de eu no podem ser definidas. Para o filsofo, a ideia que os homens tm de Deus resulta de vrias ideias simples nascidas das impresses obtidas pelos sentidos humanos. Dessa forma, o homem reuniu na ideia de ser superior as ideias originadas de suas experincias particulares de bondade, justia, compaixo experimentadas nas relaes interpessoais. Portanto, para Hume, a ideia de Deus no passa de uma iluso, assim como a ideia de eu enquanto substncia ou essncia. Segundo o filsofo, essa ideia tambm no passa de inveno da mente humana, j que varivel e subjetiva, uma vez que resultando do conjunto de experincias realizadas ao longo da vida do indivduo.
Quando pensamos numa montanha de ouro, apenas unimos
duas idias compatveis, ouro e montanha, que outrora
conhecramos. Podemos conceber um cavalo virtuoso, pois o
sentimento que temos de ns mesmos nos permite conceber
a virtude e podemos uni-la figura e forma de um cavalo,
que um animal bem conhecido.
HUME, David. Investigaes acerca do entendimento humano. Seo II. So Paulo: Abril Cultural, 1989.
Coleo Os Pensadores.
Segundo Hume, a investigao humana, ou seja, os
instrumentos com os quais o homem pesquisa e busca
conhecer a realidade, divide-se em dois campos de
investigao: as relaes entre ideias e os dados de fato.
A) Relaes de ideias: so todas as investigaes que
se baseiam, em contedos abstratos e ideias. Trata-se
da utilizao da lgebra, da geometria e da aritmtica
como instrumentos para estabelecer uma anlise
conceitual com base somente nas ideias, uma vez
que os nmeros no so reais em si, mas abstraes.
Quando o homem alcana a ideia de que 5 + 10
a quinta parte de 75, esse raciocnio trata somente
de relaes de ideias sem que haja qualquer experincia
envolvida nesta concluso. Assim, os resultados dessas
investigaes so certos e evidentes.
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22 Coleo Estudo
B) Dados de fato: no apresentam a mesma certeza
das relaes de ideias, no trazendo em si uma
lgica, j que so resultados da associao de fatos
e experincias baseados em relaes de causa e efeito.
Todos os raciocnios que dizem respeito realidade dos fatos
parecem fundados na relao de causa e efeito. s graas a
essa relao que podemos ultrapassar a evidncia de nossa
memria e dos sentidos.
HUME, David. In: REALE, Giovanni. Histria da Filosofia Antiga. 2. ed. 7v.
So Paulo: Loyola, 2001. Volume IV. p. 138.
Hume critica os dados de fato enquanto fonte
de conhecimento, j que, para ele, essas relaes de causa
e efeito que caracterizam os dados de fato tm sempre
um carter particular, porque nascem de experincias
particulares dos seres. Os homens realizam generalizaes
sobre as experincias particulares, criando ideias gerais
que dizem respeito a inmeros objetos reais e particulares
que tenham alguma semelhana entre si. Por exemplo,
criamos a ideia geral de homem a partir de experincias
particulares de vrios homens que observamos ao longo
da vida. Dessa maneira, esse conceito universal resultado
somente da fora do hbito que nos leva a criar essas ideias
generalizantes.
Hbitos e costumesHume utiliza um exemplo que se tornou clssico para
se referir sua crtica sobre as relaes de causa e efeito: se observarmos o movimento de uma bola de bilhar em uma mesa, tudo o que se pode ver o impacto de uma bola na outra, e desta em outra e assim sucessivamente. A experincia nos mostra apenas as bolas que se chocam e no a existncia de algo que faz com que esse acontecimento se torne inevitvel, aquilo que os homens chamam de causalidade, ou seja, a relao de causa-efeito
Para Hume, causa e efeito so duas ideias separadas
e distintas. Segundo ele, a relao de causa e efeito
que os homens, principalmente os cientistas, insistem
em encontrar entre os fenmenos no passa de um costume
de ver dois acontecimentos sempre unidos, por exemplo,
o ferimento e a dor, mas isso no significa que um seja
a causa e o outro o efeito. Se assim o fosse, seria possvel
identificar o efeito de alguma causa mesmo antes que esta
acontecesse, ou seja, seria possvel saber a priori qual
o efeito de determinado fenmeno antes que ele ocorresse.
E mais, se existisse causa e efeito, sempre e que ocorresse
uma causa, inevitavelmente seu efeito seria verificado,
o que no acontece.
Pense nesse exemplo: acredita-se que a fumaa o efeito
do fogo; porm, so possveis situaes em que haja fogo
mas no fumaa, como quando se acende a trempe de
um fogo qualquer. Um outro exemplo dado por Hume :
ser que Ado, ao ver a gua (causa) pela primeira vez,
sabia que ela teria o poder (efeito da gua) de molhar
ou afogar algum?
Desse modo, o filsofo afirma que so as experincias
que nos levam s concluses que temos acerca dos fatos.
Por exemplo, chegamos concluso de que o remdio
sempre curar a dor de cabea, pois, at hoje, sempre que
tomado, tal efeito foi comprovado. Mas ser que sempre
ser assim? Ser que este efeito sempre ocorrer? Se existir
a relao de causa e efeito, toda vez que o remdio for
tomado, a dor de cabea ser curada. Mas, se em alguma
ocasio isso no ocorrer, significa ento que no existem
relaes de causa e efeito.
Se um objeto nos fosse apresentado e fssemos solicitados
a nos pronunciar, sem consulta observao passada, sobre
o efeito que dele resultar, de que maneira, eu pergunto,
deveria a mente proceder nessa operao? Ela deve
inventar ou imaginar algum resultado para atribuir ao objeto
como seu efeito, e obvio que essa inveno ter de ser
inteiramente arbitrria. O mais atento exame e escrutnio
no permite mente encontrar o efeito na suposta causa,
pois o efeito totalmente diferente da causa e no pode,
conseqentemente, revelar-se nela.
HUME, David. Investigaes sobre o entendimento humano e sobre os princpios da moral. Traduo de Jos Oscar de
Almeida Marques. So Paulo: UNESP, 2004. p. 57-58.
Hbito e crenaHume defende, ento, que o costume e o hbito que
levam o homem a acreditar nas relaes de causa e efeito, e no algo real e verificvel na realidade. Esse costume leva o homem crena de que tais fenmenos sempre ocorrero. Essa crena nos d a iluso de que estamos diante de um fenmeno determinado por causa e efeito, iluso esta que nos leva convico de que, uma vez ocorrida a causa, o efeito inevitavelmente a suceder.
Ao fim de sua reflexo, Hume afirma que aquilo que possibilita a relao de causa e efeito no so proposies ou princpios racionais, mas somente um sentimento afetivo-irracional, que a crena.
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