05 A Teoria do Ato Ilícito.Abuso do Direito

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A ILICITUDE CIVIL TEORIA DO ATO ILÍCITO E DO ABUSO DO DIREITO Inicialmente, é relevante relembrar que o Código de 1916 estabeleceu uma confusão conceitual entre ato ilícito e responsabilidade civil. Lá no Código de 1916 havia essa confusão porque o código partiu da falsa premissa de que todo ato ilícito implicava em responsabilidade civil e toda responsabilidade civil provinha de ato ilícito. O Código de 1916, no art. 159, causou uma confusão conceitual e estabeleceu uma relação vinculatória falsa entre o ato ilícito e a responsabilidade civil. Já recentemente, a doutrina brasileira vinha repudiando essa posição equivocada do Código de 1916 e alguns autores, com isso, denunciavam o equívoco da opção do CC. Em 2002, isso mudou. O Código Civil de 2002 promoveu uma emancipação do conceito de ilícito civil. E por que fez isso? Por um motivo simples: porque no código de 2002 o ilícito civil foi desatrelado da responsabilidade civil. Promoveu-se um divórcio entre ato ilícito e responsabilidade civil. Com isso, ganharam os dois, na medida em que o ato ilícito ganhou autonomia conceitual e independência de seus efeitos e ganhou também a responsabilidade civil que se enriqueceu na medida em que nem toda responsabilidade civil é oriunda de ato ilícito. Nem toda provêm, necessariamente de um ato ilícito. É possível responsabilidade civil oriunda de outros atos, é possível responsabilidade civil oriunda de atos lícitos, como no caso de responsabilidade objetiva. É absolutamente possível responsabilidade civil decorrendo de conduta lícita. Assim, sintetizando esse início: o Código de 2002, modificando a opção do Código anterior, que é uma opção equivocada conceitualmente, afastou a relação implicacional entre ato ilícito e responsabilidade, civil. Outrora, em 1916, todo ato ilícito gerava responsabilidade. Toda responsabilidade provinha de ato ilícito. Agora, houve uma emancipação do conceito de ato ilícito e, por isso, nem todo ato ilícito gera responsabilidade civil, na medida em que o conceito de ilícito é um conceito autônomo e essa autonomia faz com que nem todo ato ilícito gere responsabilidade civil. E na mesma medida, faz com que nem toda responsabilidade civil decorra de uma ilicitude. Se nada disso lhe convenceu, eu vou para o argumento mais pobre de todos para que você entenda isso dentro de um sistema. É o argumento topológico, que é pobre, eu sei, mas, nesse caso, é eficiente. O ato ilícito está tratado nos arts. 186 e 187, portanto, na Teoria Geral do Direito Civil. Já a responsabilidade civil está no art. 927 do Livro do Direito das Obrigações. Se nada disso te convence, pelo menos topologicamente, você vai enxergar essa diferença conceitual, mostrando que, efetivamente, são coisas distintas. CONCEITO DE ATO ILÍCITO Diante disso, uma pergunta se impõe: o que significa ato ilícito? Qual é, portanto, o conceito de ilicitude? O que significa ato ilícito e qual é o seu conceito? Vamos começar a construir o conceito de ilicitude para poder verificar os seus efeitos. Ordinariamente, o conceito de ato lícito, a ideia de ilicitude ordinariamente é ideia de antijuridicidade. O ato ilícito é um ato antijurídico. É um ato cujos potenciais efeitos são contrários à norma jurídica. Quando eu aludo à norma jurídica, quero deixar claro que não é necessariamente à lei, mas à norma jurídica. Se é assim, pode ser assim que eu esteja aqui falando da violação da convenção do condomínio. E esse é ato ilícito, contrário à norma. Mas nem toda contrariedade à norma necessariamente é uma contrariedade à lei porque a norma é mais ampla do que a lei e aqui a gente já percebe que a ideia fundamental de ato ilícito é a ideia de um ato cujos potenciais efeitos são contrários à norma, mas não necessariamente à lei.

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A ILICITUDE CIVIL

TEORIA DO ATO ILÍCITO E DO ABUSO DO DIREITO

Inicialmente, é relevante relembrar que o Código de 1916 estabeleceu uma confusão conceitual entre ato ilícito e responsabilidade civil. Lá no Código de 1916 havia essa confusão porque o código

partiu da falsa premissa de que todo ato ilícito implicava em responsabilidade civil e toda

responsabilidade civil provinha de ato ilícito. O Código de 1916, no art. 159, causou uma confusão conceitual e estabeleceu uma relação vinculatória falsa entre o ato ilícito e a responsabilidade civil.

Já recentemente, a doutrina brasileira vinha repudiando essa posição equivocada do Código de 1916 e alguns autores, com isso, denunciavam o equívoco da opção do CC. Em 2002, isso mudou. O

Código Civil de 2002 promoveu uma emancipação do conceito de ilícito civil. E por que fez isso? Por um

motivo simples: porque no código de 2002 o ilícito civil foi desatrelado da responsabilidade civil.

Promoveu-se um divórcio entre ato ilícito e responsabilidade civil. Com isso, ganharam os dois, na medida em que o ato ilícito ganhou autonomia conceitual e independência de seus efeitos e ganhou

também a responsabilidade civil que se enriqueceu na medida em que nem toda responsabilidade civil é

oriunda de ato ilícito. Nem toda provêm, necessariamente de um ato ilícito. É possível responsabilidade civil oriunda de outros atos, é possível responsabilidade civil oriunda de atos lícitos, como no caso de

responsabilidade objetiva. É absolutamente possível responsabilidade civil decorrendo de conduta lícita.

Assim, sintetizando esse início: o Código de 2002, modificando a opção do Código anterior, que

é uma opção equivocada conceitualmente, afastou a relação implicacional entre ato ilícito e

responsabilidade, civil. Outrora, em 1916, todo ato ilícito gerava responsabilidade. Toda responsabilidade

provinha de ato ilícito. Agora, houve uma emancipação do conceito de ato ilícito e, por isso, nem todo ato ilícito gera responsabilidade civil, na medida em que o conceito de ilícito é um conceito autônomo e essa

autonomia faz com que nem todo ato ilícito gere responsabilidade civil. E na mesma medida, faz com que

nem toda responsabilidade civil decorra de uma ilicitude.

Se nada disso lhe convenceu, eu vou para o argumento mais pobre de todos para que você

entenda isso dentro de um sistema. É o argumento topológico, que é pobre, eu sei, mas, nesse caso, é

eficiente. O ato ilícito está tratado nos arts. 186 e 187, portanto, na Teoria Geral do Direito Civil. Já a responsabilidade civil está no art. 927 do Livro do Direito das Obrigações. Se nada disso te convence,

pelo menos topologicamente, você vai enxergar essa diferença conceitual, mostrando que, efetivamente,

são coisas distintas.

CONCEITO DE ATO ILÍCITO

Diante disso, uma pergunta se impõe: o que significa ato ilícito? Qual é, portanto, o conceito de

ilicitude? O que significa ato ilícito e qual é o seu conceito? Vamos começar a construir o conceito de

ilicitude para poder verificar os seus efeitos.

Ordinariamente, o conceito de ato lícito, a ideia de ilicitude ordinariamente é ideia de

antijuridicidade. O ato ilícito é um ato antijurídico. É um ato cujos potenciais efeitos são contrários à

norma jurídica.

Quando eu aludo à norma jurídica, quero deixar claro que não é necessariamente à lei, mas à

norma jurídica. Se é assim, pode ser assim que eu esteja aqui falando da violação da convenção do condomínio. E esse é ato ilícito, contrário à norma. Mas nem toda contrariedade à norma necessariamente

é uma contrariedade à lei porque a norma é mais ampla do que a lei e aqui a gente já percebe que a ideia

fundamental de ato ilícito é a ideia de um ato cujos potenciais efeitos são contrários à norma, mas não

necessariamente à lei.

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Falando em ato ilícito como aquele ato cujos efeitos potenciais são contrários à norma jurídica,

você já conclui: toda ilicitude é controlada pela norma. Essa é a conclusão mais óbvia. Toda ilicitude é

normativa. Eu só posso debater sobre o ato ilícito se estivermos pensando em algo contrário à norma porque o ato ilícito é o ato cujos potenciais efeitos são contrários à norma. Na medida em que o ato ilícito

é o ato cujos potenciais efeitos são contrários à norma, não precisa fazer muito esforço para detectar que

todo e qualquer efeito jurídico de um ato ilícito tem que estar previsto na norma que, afinal de contas, é a norma que vai valorar o ato como ilícito. O que é um ato ilícito? É aquele cujos potenciais efeitos são

contrários á norma jurídica (não à lei). Se é assim, já se percebe que o controle da ilicitude é normativo. É

a norma que qualifica, é a norma jurídica que vai adjetivar, estabelecer a ilicitude. Os efeitos jurídicos da ilicitude são efeitos previstos na norma. A própria norma que o valorou estabelece os seus efeitos.

Primeira conclusão: o ato ilícito é um fato jurídico. Fato jurídico é aquilo que pode produzir

efeitos. Então, o ato ilícito é um fato jurídico cujos potenciais efeitos são contrários a uma norma e cuja norma controla esses efeitos.

Chegamos num excelente momento, para que você confira agora, os efeitos decorrentes do ato ilícito.

EFEITOS DECORRENTES DE UM ATO ILÍCITO

O Código de 1916 partia da premissa de que todo efeito de uma ilicitude era um efeito indenizante. Para o Código de 1916 todo ato ilícito gerava indenização porque produzia responsabilidade

civil. O Código de 1916 confundia ilicitude com responsabilidade. Nessa tocada, o Código de 2002 diz

que a responsabilidade civil é um dos efeitos da ilicitude.

Além do efeito indenizante, o novo código também reconhece efeitos caducificantes, ou seja,

perda ou restrição de direitos. Ou seja, de um ato ilícito nós podemos ter responsabilidade civil (ilícito

indenizante), a perda ou restrição de direitos (ilícito caducificante) e a nulidade ou anulabilidade de um negócio (efeitos invalidades). De um ato ilícito podem decorrer diferentes efeitos que serão indicados pela

própria norma:

Obrigação de reparar o dano, efeito indenizante

Perda ou restrição de direitos, efeito caducificante.

Nulidade ou anulabilidade de um negócio jurídico, efeito invalidante.

Permitir exercício de direitos pela contraparte, efeito autorizante.

Além desses efeitos, o ato ilícito pode produzir infinitos efeitos previstos na norma. Basta que a

norma indique, que esses efeitos serão possíveis. Toda ilicitude é normativa e seus efeitos também. Exemplos:

Efeito indenizante – Acidente de veículo que vinha na contramão. É típico exemplo de ilícito

indenizante. Impõe a obrigação de reparar o dano. A grande maioria dos ilícitos, a maioria esmagadora dos atos ilícitos produz efeitos indenizantes.

Efeito caducificante – O CC permite aos pais, no exercício do poder familiar, aplicar a seus filhos castigos moderados. Imagine o pai que aplica um castigo ao filho. Eu estou falando do pai que tira

o filho da escola para castigá-lo. Ele praticou um castigo e, ao que se consta, um castigo imoderado.

Castigo imoderado é ato ilícito. E se é assim, esse pai não vai ser obrigado a reparar dano,m as poderá sofrer destituição ou restrição do poder familiar. Pode sofrer perda ou restrição de direitos. É a prática de

um ilícito caducificante e não indenizante. Outro exemplo: transporte de substancia entorpecente. Um dos

dois ajustou o transporte de substância entorpecente e o transportador entregou a substância e a outra

parte não quer pagar. Cabe execução desse contrato? Não porque o objeto do negócio é ilícito e o Código,

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no seu art. 166, diz que negócios cujo objeto sejam ilícitos são nulos. Nesse caso, a ilicitude não gera

indenização, mas gera invalidade do negócio. E nós estamos diante de um ilícito invalidante. É um

exemplo típico de ato ilícito que não gera responsabilidade civil. E mais um exemplo: prática de ato de

ingratidão contra o doador (art. 557, do CC, contrato de doação). Se o donatário faz isso, o doador pode ajuizar ação de revogação da doação. Perceba que, nesse ato, é um ilícito autorizante porque a prática do

ato ilícito permitirá ao doador exercer um direito seu, que é promover a ação de revogação da doação.

Nesse caso, ilícito autorizante. A prática de um ato de ingratidão pelo donatário contra o doador permite ao doador o ajuizamento de uma ação de revogação da doação. Ilícito não indenizante, mas autorizante. E

são inúmeros os efeitos da ilicitude. Esses efeitos se flexibilizam de acordo com a norma.

Vamos abrir um parêntesis para uma informação importante sobre o art. 557. Revogação da

doação é matéria muito importante que vai caindo bastante em concurso. Revogar é retratar, voltar atrás,

se arrepender. Revogação da doação é expressão lamentável porque o doador não está voltando atrás,

mesmo porque a doação é irrevogável. A revogação da doação nada mais é do que a perda de eficácia do contrato de doação por um ato superveniente praticado pelo donatário. Ou seja, as hipóteses de revogação

da doação tecnicamente não constituem revogação. O doador não está se retratando, mas ajuizando uma

ação para que o juiz suspenda a eficácia do ato. Pois bem, no Código Civil, duas são as causas de revogação da doação. Cabe revogação da doação por ingratidão do donatário (em toda e qualquer doação)

e por descumprimento de encargo (somente nas doações onerosas, com encargo, óbvio).

O Código Civil diz que o prazo para a propositura da ação de revogação da doação por ingratidão

do donatário é de 1 ano. Prazo decadencial. E qual é o prazo decadencial para a propositura da revogação

da doação por descumprimento de encargo? O código esqueceu. Esqueceu! Não tem previsão no código.

Ele simplesmente esqueceu de estabelecer um prazo de revogação da doação por descumprimento de encargo. Se restringiu a estabelecer um prazo para a revogação da doação por ingratidão, ação

personalíssima, que só pode ser proposta pelo doador, salvo na hipótese de homicídio que, evidentemente,

serão os seus herdeiros. Mas, descumprimento de encargo, qual é o prazo? Não tem. E como a doutrina resolve? Vem estabelecendo dois critérios para tentar indicar um prazo para essa ação:

Flávio Tartuce – Esse prazo seria de 10 anos, com base na cláusula geral de prescrição do art.

205, do Código Civil: toda ação condenatória sem prazo prescrito em lei vai seguir o prazo de 10 anos. Eu tenho uma objeção: esse prazo é uma cláusula geral de prescrição. E aqui é caso de decadência porque

não se trata de ação condenatória, mas constitutiva. E em se tratando de ação constitutiva, não é possível

utilizar uma cláusula geral de prescrição até porque os fundamentos da prescrição e da decadência são distintos. Afastado o cabimento do prazo de dez anos, qual seria o prazo? Fico com a opinião do professor

sinopse, Carlos Roberto Gonçalves:

Carlos Roberto Gonçalves – Este prazo para a ação de revogação da doação por descumprimento

de encargo também será de 1 ano. Por analogia da revogação da revogação por ingratidão. Eu voto com

ele. Me parece que esse prazo é de 1 ano e não de 10. Essa é uma posição mais razoável.

Se você estiver em prova objetiva, a resposta é: não tem prazo porque o Código não estabeleceu

prazo para a ação de revogação de doação por descumprimento de encargo.

Mas eu abri esse parêntesis para falar do art. 557, para saber o que significa ingratidão do

donatário. Quais são os atos que geram ingratidão do donatário? Quando é que o donatário é ingrato?

Art. 557. Podem ser revogadas por ingratidão as doações:

I - se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de

homicídio doloso contra ele; II - se cometeu contra ele ofensa física;

III - se o injuriou gravemente ou o caluniou;

IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava.

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O Código indica quatro hipóteses de ingratidão:Homicídio doloso, tentado ou consumado; ofensa

física, injúria grave e abandono material. São as quatro hipóteses previstas no Código de ingratidão o

donatário e sofrer ação revocatória. Esses quatro tipos formam um rol taxativo ou exemplificativo? Toda norma que estabelece sanção deve ser interpretada restritivamente. Então, você está louco para dizer que

esse rol é taxativo. Mas o Enunciado 33 da Jornada de Direito Civil estabelece, seguindo as pegadas da

doutrina brasileira, que este rol não é taxativo.

33 - Art. 557: o novo Código Civil estabeleceu um novo sistema para a

revogação da doação por ingratidão, pois o rol legal previsto no art. 557 deixou de ser taxativo, admitindo, excepcionalmente, outras hipóteses.

Ora, na medida em que se diz isso, são admitidos outros tipos. Então, vale tudo? Qualquer outro

tipo pode ser considerado pelo juiz? Calma, não é assim. A interpretação do art. 557 estará submetida ao Princípio da Tipicidade Finalística. Significa: o juiz pode considerar outros tipos, outras circunstancias,

outras condutas, que se adequem à finalidade daqueles tipos que estão previstos em lei. O juiz pode

considerar outros fatos que estejam adequados ao tipo, que se harmonizem com aquele tipo, que tenham a mesma finalidade. Daí o nome: tipicidade finalística.

Olhando para o art. 557, no conceito de ingratidão, traz quatro hipóteses. Eu pergunto: homicídio culposo pode ser considerado como ingratidão? Ele está adequado à mesma finalidade do homicídio

doloso? Não. Portanto, o juiz não pode. Mas ao invés de matar, faz auxílio, induzimento ou instigação ao

suicídio. Agora, o juiz pode considerá-lo ingrato? Sim porque esse ato se adequa à finalidade do tipo. O X

da questão, portanto, é saber se a conduta a ser considera da pelo juiz se adequa à finalidade do tipo. Se há adequação, há tipicidade finalística e é possível admitir outras situações previstas em lei. Essa é uma

importantíssima novidade. Caiu recentemente no MP/RJ. Por isso, eu abri esses parêntesis para lembrar

que o conceito de ingratidão do art. 557 é não taxativo, se adequando à tipicidade finalística.

Isso vale também para a indignidade (art. 1.814) e deserdação (arts. 1.962 e 1.963), no campo do

direito das sucessões.

Eu estou falando dos efeitos do ato ilícito que podem decorrer diferentes efeitos. Vou lembrar de

mais um exemplo de ilicitude, só para lhe provar que esse rol é exemplificativo e que do ato ilícito pode

gerar uma presunção contrária a quem o praticou. Ou seja, sempre que se fala em ilicitude vamos ter efeitos jurídicos que estão previstos na norma. Isso que eu vou tô falando é tão importante que caiu no

MP/SP (2005). Olha o que perguntou: “O ato ilícito produz efeitos”? Sim. “Por quê?” norma jurídica. Se

a ilicitude veio prevista na norma, é a própria norma que estabelece os seus efeitos. Só que nem todo efeito é responsabilidade civil. TJ/SC (2003). “O ilícito é fato jurídico?” Sim. “O ilícito é ato jurídico

volitivo?” não necessariamente. “O ilícito é ato jurídico inconsciente?” Não necessariamente. O certo é

que podemos perceber que há em nosso sistema inúmeros efeitos para o ato ilícito que pode produzir uma

infinidade de efeitos e todos esses efeitos que podem decorrer de um ato ilícito estarão decorrendo da norma.

ESPÉCIES DE ATO ILÍCITO

O Código trabalhou com dois ilícitos:

Ato ilícito subjetivo (art. 186)

Ato ilícito objetivo (art. 187)

Há, portanto, uma bifurcação no conceito de ilicitude. Ilicitude, para o Código é um conceito rico porque existem diferentes espécies, categorias de ilicitude.

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Ato ilícito SUBJETIVO

O primeiro conceito de ilicitude é um conceito de ilicitude subjetiva: art. 186. Esse conceito do art. 186 é um conceito culposo, lembrando que a culpa do direito civil é a culpa lato sensu que abrange a

um só tempo o dolo e a culpa estricto sensu. Já o lícito objetivo é um ilícito comportamental, funcional, e

não culposo. O ato ilícito subjetivo é culposo, baseado na culpa lato sensu (dolo, negligencia, imprudência, imperícia). Ato ilícito objetivo é comportamental, é funcional. Duas diferentes espécies,

duas diferentes categorias de ato ilícito.

Conceito de ato ilícito subjetivo – O art. 186 traz o conceito:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou

imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Você acaba de ver o que é o ato ilícito subjetivo. Um ato ilícito subjetivo é a violação de um direito alheio culposamente causando dano a outrem. É violar direito de outrem, culposamente, causando

dano, gerando um dano para este alguém. Violar direito de outrem, culposamente, causando-lhe um dano.

É a isto que se dá o nome de ato ilícito, que é um ato culposo pelo qual se viola direito de outrem, causando-lhe dano.

Observe que o art. 186 revela que todo ato ilícito tem 4 pressupostos. E os quatro pressupostos da

ilicitude são:

1º Pressuposto: Conduta comissiva ou omissiva

2º Pressuposto: Culpa 3º Pressuposto: Dano

4º Pressuposto: Nexo de causalidade

São os quatro pressupostos de um ato ilícito subjetivo. Isso porque o ato ilícito subjetivo se dá quando se causa dano a terceiro violando culposamente o direito dele.

“O dano é pressupostos da ilicitude.

Nem toda ilicitude gera responsabilidade civil.

“Portanto, nem todo dano é indenizável.”

O dano é pressuposto da ilicitude: está no Código. Dano causando a outrem pela violação de um

direito seu. Nem toda ilicitude gera responsabilidade civil, portanto, apesar do dano ser pressuposto da

ilicitude, nem todo dano é indenizável.

Você acabou de descobrir que o dano é pressuposto do ato ilícito, mas nem todo ato ilícito gera

responsabilidade civil, razão pela qual nem todo dano é indenizável. O que você acabou de descobrir é

que existem danos que não implicam em responsabilidade civil. Existem danos não indenizáveis. Somente será indenizável aquele dano injusto de ordem jurídica. Eu vou lhe dar um exemplo do STF e do

STJ, um exemplo partilhado pelos dois:

Todo ato ilícito tem dano, para ser ilícito pressupõe dano, mas nem todo dano é indenizável.

Exemplo de ato ilícito não indenizável:

Dano afetivo – Dano decorrente de abandono afetivo. O pai ou a mãe que abandonam o filho. O

art. 229, da Constituição diz expressamente que os pais devem aos filhos assistência moral e material.

Ora, se os pais devem isso aos seus filhos, significa que o pai, além de pagar alimentos, deve ser presente, participativo. Mas há muitos pais que, infelizmente, não acompanham a vida do seu filho, que nunca

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visita o filho. Até paga os alimentos, mas não vai lá visitar. Esse pai comete ato ilícito, já que a

Constituição diz que todo pai deve assistência moral ao filho. Ele causa dano de ordem psíquica. Esse

dano é indenizável? Alguns autores entendem que sim (Pablo Stolze, Giselda Hironaka), mas o STJ e o

STF adotaram a melhor em jurisprudência, de 2009: STJ REsp 514350/SP (Aldir Passarinho) e RE: RE 567164/MG (Ellen Gracie). Olha o que o Supremo disse em relação ao abandono afetivo: “existência de

punição específica.” E sabe qual é a punição específica? O pai que abandona o filho pode sofrer perda ou

suspensão do poder familiar. E se é assim, o Supremo entende que o abandono afetivo é um ilícito caducificante e não um ilícito indenizante. O que o Supremo está dizendo é que o abandono afetivo não

merece indenização, mas sim, pode gerar a perda ou suspensão do poder familiar. é um tipo de ilicitude

diferenciada, que não gera responsabilidade civil, indenização. A partir do próprio conceito de ato ilícito, que está no art. 186 o dano é pressuposto da ilicitude, mas nem todo dano gera indenização. Ato ilícito

subjetivo. Vamos ler de novo o art. 186:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou

imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que

exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Esse conceito é aberto ou fechado? O conceito de ilicitude subjetiva, culposa, comporta

variações? Ou o ato ilícito é somente isso? Em outras palavras, você está diante de norma-regra ou de

norma-princípio. Esse artigo 186 revela norma-regra. É conceito fechado. Pode conferir! Ele não deixa nenhum campo aberto. Ato ilícito é violar o direito de alguém culposamente, causando-lhe dano. Se

ocorre um dano decorrente da violação de direito do titular culposa, tem ato ilícito. Portanto, o conceito

de ilicitude subjetiva não é um conceito aberto, na medida em que já se tem o conceito de ilicitude

subjetiva previamente definido. É um conceito previamente conhecido. Eu já sei, de antemão, o que é um ilícito subjetivo. Esse conceito não precisa ser construído porque ele já é um conceito previsto em lei.

Ilícito subjetivo é: a violação culposa do direto de outrem causando um dano. Isso é ato ilícito.. não há

variações. E nenhum desses conceitos é aberto, não permitindo construção no caso concreto. Em outras palavras, no campo da ilicitude subjetiva, aplica-se uma regra ontológica:ser ou não ser. Ou é ou não é.

Há uma delimitação rigorosa. É ou não é ilícito.

Obs. Em 2012 o STJ entendeu em julgamento recente que o dano em decorrência do abandono

afetivo é sim indenizável.

Se eu celebrar um contrato de servidão predial (tirada de água) na fazenda. Ele pode ir na minha

fazenda retirar água. No nosso contrato de servidão predial de tirada de água, João pode retirar 10 mil

litro mensais por um contrato de servidão. Num determinado mês, ele vai à minha fazenda e tira 14 mil. Se fez isso, me causou um dano e violou direito meu. Cometeu ato ilícito. É ato ilícito subjetivo. Ou ele

sabia ou deveria saber que só podia tirar no limite de 10. tirou 14, praticou ato ilícito subjetivo.

Consequencia disso: reparação do dano causado, sem prejuízo da invalidade do contrato.eu ainda posso

pedir a anulação do contrato. Nesse caso, poderá haver vários efeitos decorrentes do ato ilícito.

Ato ilícito OBJETIVO

Ao lado do ato ilícito culposo, subjetivo, o Código de 2002 estabeleceu um novo modelo de

ilicitude. Agora, vamos ter o ato ilícito comportamental. Se ele é comportamental, é porque está

desatrelado da culpa. O ato ilícito objetivo, por isso, é comportamental. A culpa é elemento estranho porque o ato ilícito objetivo, comportamental, não está fundado no elemento anímico, subjetivo. Ele

decorre apenas e tão-somente do comportamento do titular de um direito. Portanto, o ato ilícito objetivo

ganha cor, se aperfeiçoa quando alguém exerce um direito excedendo os seus limites. Olha só!

Ato ilícito subjetivo se caracteriza quando alguém viola o direito de outrem e causa um dano.

Ato ilícito objetivo se caracteriza quando alguém exerce um direito excedendo os seus limites.

A diferença é de clareza solar. Vamos olhar par ao art. 186:

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Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou

imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que

exclusivamente moral, comete ato ilícito.

O ato ilícito subjetivo nasce ilícito e morre ilícito. Agora, vamos ao art. 187:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao

exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim

econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

O art. 187 está dizendo: o ilícito objetivo é caracterizado pelo exercício abusivo de um direito.

Observe que o ato ilícito objetivo não nasceu ilícito. Ele nasceu lícito e se tornou ilícito pelo seu exercício

anormal, irregular.

Para você não confundir, a doutrina brasileira apelidou o ato ilícito objetivo de abuso do direito. É

aquela ilicitude caracterizada pelo exercício da norma, irregular do direito. É lógico que você só vai pensar no ato ilícito objetivo quando você estiver dentro do campo da licitude. Isso porque o abuso do

direito nasceu quando alguém, ao exercer o direito, excede o seu limite. Esse excesso tem que ser

controlado (como eu vou saber se um exercício de direito é ou não abusivo) pela boa-fé objetiva, bons costumes, finalidade social e econômica. Esses são os mecanismos de controle do excesso do exercício de

um direito.

O que é o ato ilícito subjetivo? Violar direito e causar dano a outrem culposamente. Nasce e morre ilícito. O ato ilícito objetivo nasceu lícito e se tornou ilícito pelo seu exercício anormal. Por isso,

que a ilicitude objetiva está no plano do exercício do direito. E não no plano da violação do direito.

Você acabou de aprender que é possível praticar ilícito simplesmente exercendo um ato

rigorosamente lícito. Eu vou te dar dois exemplos:

1º Exemplo: Lead in Case – O primeiro caso sobre abuso julgado na história do direito. Orlando Gomes faz referencia a ele. O primeiro caso é o de um proprietário de terras na França, chamado Bayard.

A terra dele ficava vizinha ao campo de pouso dos dirigíveis. Um dia ele resolveu fincar uma lança de 35

metros de altura na sua propriedade. E isso causava danos aos dirigíveis que tinham de manobrar em outro lugar. A empresa de dirigíveis ajuizou uma ação contra Bayard que se defendeu alegando ausência

de ato ilícito, mas que estava apenas exercendo seu direito de propriedade. E o juiz lhe perguntou sobre a

finalidade da lança. Como ele disse que não era nenhuma, o juiz concluiu pela ilicitude do ato porque decorreu do exercício do direito de propriedade violando a finalidade social, a função social da

propriedade. Veja, portanto, que esse é o primeiro caso de todos.

2º Exemplo: Primeiro caso Brasileiro – No Brasil, quando primeiro se adotou a teoria do abuso do direito com essa percepção de um novo modelo de ilícito, foi no célebre julgamento pelo STF da Farra do

Boi em SC. O Supremo foi provocado em 1990 pra julgar. A farra do boi era um festejo promovido por

alguns municípios. Não há nenhum relato de vitória do boi. A multidão sempre ganhava. Grupos ambientais pediram a suspensão daquela brincadeira e o caso chegou ao Supremo. Os municípios se

defenderam dizendo que na Constituição, no art. 215, está garantido o direito às manifestações culturais.

Aquela festividade histórica em SC fazia parte da cultura daquele lugar e, evidentemente, toda manifestação cultural deve ser protegida, preservada. Era direito realizar aquela festividade? Era. Mas o

Supremo disse: havia um excesso no que se refere aos bons costumes porque não é um bom costume

maltratar os animais. E se é assim, aquele ato é abusivo. Abuso no direito de manifestação cultural. O

Supremo reconheceu, assim, a tese do abuso do direito, voltado exatamente para essa nova modalidade de ilicitude.

O que eu quero que você perceba é que o ato ilícito objetivo e o ato ilícito subjetivo estão fundados em pressupostos totalmente distintos. Enquanto o ilícito subjetivo é culposo, o ilícito objetivo é

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comportamental. Em outras palavras: você pode praticar um ato ilícito objetivo até sem querer. Sem

nenhuma intenção, sem dolo, sem culpa, sem vontade, sem nada. E você pode praticar o ilícito subjetivo.

Presta atenção: um dos efeitos possíveis para o ato ilícito é o indenizante. Ficou claro isso, não? Do ato

ilícito pode decorrer a responsabilidade civil. Se o ato ilícito é subjetivo, a responsabilidade civil eventualmente dele decorrente será subjetiva, salvo nos casos previstos em lei de responsabilidade

objetiva ou salvo por decisão judicial, quando o juiz transformar em objetiva a responsabilidade que seria

subjetiva.

Se o ato ilícito é subjetivo, a responsabilidade civil eventualmente dele decorrente também será

objetiva. Mas se é objetivo (abuso de direito), quando implicar em responsabilidade civil, implicará em responsabilidade objetiva porque a culpa não está presente em sua essência. Se o ato ilícito é subjetivo, a

responsabilidade civil será de ordinária e subjetiva, mas se é objetiva, a responsabilidade civil

eventualmente (eventualmente, porque nem todo abuso do direito, nem todo ato ilícito objetivo gera

responsabilidade civil) dele decorrente será objetiva. Nesse sentido, o Enunciado 37, da Jornada:

Enunciado 37 da Jornada – Art. 187: a responsabilidade civil

(EVENTUALMENTE) decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.

Abuso do direito, quando implicar em responsabilidade civil, implicará em responsabilidade civil objetiva. Vamos voltar aos arts. 186 e 187:

Ato ilícito SUBJETIVO: Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão

voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Contrato de servidão de tirada de água. Podia retirar 10 mil, retirou 14. violou meu direito e causou dano. Por quê? Porque, no campo da licitude, só poderia tirar até 10. mas o contrato dizia que o

prédio dominante poderia tirar até 10 mil litros de água para satisfazer as suas necessidades. Pode tirar até

10 mil litros. Agora vamos para o art. 187.

Ato ilícito OBJETIVO: Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de

um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos

pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

A necessidade da fazenda de João naquele mês era de 7 mil litros. E sabe quanto ele tirou? 10 mil.

Se ele tirou 10, ele está, sob o ponto de vista contratual, no campo da licitude. Mas, ao exercer o seu direito, ele exerceu, abusou. Agora, eu tenho o ato ilícito objetivo,que é o ato ilícito decorrente do

exercício de um direito. Ele não violou o direito. Ele exerceu excessivamente.

O conceito de ato ilícito objetivo, que é um conceito funcional (não é subjetivo), é aberto ou fechado? É norma-regra ou norma-princípio? Agora não dá para ter dúvida: é norma-princípio. Eu

somente tenho como saber se o exercício é ou não excessivo, no caso concreto, até porque a minha

conduta para com Juliana pode ser lícita e para com João, pode ser ilícita, a depender da boa-fé, dos bons costumes, da função social e econômica. Portanto, o abuso do direito é uma cláusula aberta a ser

construída no caso concreto com princípios. Por isso, quando eu disse que o ato ilícito objetivo é

funcional, eu vou corrigir. Me arrepender. O ato ilícito objetivo é multifuncional. A ilicitude aqui não tem uma só função, tem múltiplas funções: boa-fé, bons costumes, função econômica e social. Portanto, a

ilicitude objetiva não é nem funcional, é multifuncional porque traz a reboque diferentes funções. E essas

diferentes e múlt8plas funções só podemos descobrir em cada caso concreto.

Se o ilícito objetivo é uma categoria aberta e em construção, ele admite subcategorias. Se está em

aberto e em construção, nós vamos descobrir dentro do conceito de ilicitude objetiva uma série de

subcategorias. Uma série impressionante.

Page 9: 05 A Teoria do Ato Ilícito.Abuso do Direito

EXCLUDENTES DE ILICITUDE CIVIL – Art. 188

Claro que estou falando de excludente de qualquer tipo ilicitude. Seja a subjetiva, seja a

funcional. Qualquer ilicitude é excluída nas hipóteses do art. 188, cuja redação é de clareza solar:

Art. 188. Não constituem atos ilícitos:

I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um

direito reconhecido; II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a

fim de remover perigo iminente.

Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente

quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.

São causas excludentes da ilicitude civil:

a) Exercício regular de um direito (até porque o exercício irregular é abuso)

b) Legitima defesa própria - O direito civil só admite legítima defesa própria. Não admite legítima defesa putativa e de terceiro. Resp 513891/RJ. Aqui, o STJ confirmou que legítima

terceira putativa e de terceiro não são excludentes de ilicitude civil.

c) Estado de necessidade.

Duas observações:

Você acabou de descobrir que não exclui a ilicitude civil o estrito cumprimento do dever legal (não estamos falando da ilicitude penal). Não exclui porque não está no art. 188. A lei não elegeu o estrito

cumprimento do dever legal como causa excludente. Primeiro por isso. Segundo, porque o art. 932 prevê

a responsabilidade civil pelo fato de terceiro (no inciso III, o empregador responde pelo dano causado

pelo seu empregado), então, o estrito cumprimento de um dever legal mantém a ilicitude e a responsabilidade eventualmente decorrente. Outro exemplo, o art. 63, do CPC, fala da nomeação à autoria

na ação indenizatória para quem determinou a prática do ilícito. Aquele que foi demandado em nome

próprio, nomeia à autoria, a quem o mandou praticar aquele ato. Em suma, o estrito cumprimento do dever legal não exclui a ilicitude civil.

Eu quero confirmar tudo o que eu disse hoje. A primeira informação do dia: nem todo ato ilícito gera responsabilidade e que nem toda responsabilidade é proveniente de ato ilícito. Atenção agora: siga o

meu raciocínio: o ato praticado em estado de necessidade é um ato lícito, mas pode gerar

responsabilidade civil, na forma dos arts. 929 e 930. E por quê? Se o bem jurídico sacrificado pertencia

ao causador do perigo, não há ilícito e nem responsabilidade civil. Todavia, se o bem jurídico sacrificado pertencia a um terceiro, não haverá ilicitude porque o ato é lícito, mas haverá obrigação de indenizar com

direito regressivo contra o causador do dano.

Agora vejam o exemplo: automóvel na mão regular de direção. Para não colidir com Juliana que

vinha na contramão em alta velocidade, eu desvio e derrubo um muro. Se este muro que derrubei

pertencia a ela, o ato foi lícito e não há responsabilidade civil. Mas se este muro pertencia a um terceiro, apesar de o ato ser lícito, haverá obrigação de indenizar com direito regressivo. Os arts. 929 e 930 são a

prova definitiva de que pode haver responsabilidade mesmo sem ilicitude. É a prova cabal e irrefutável de

que pode haver responsabilidade civil decorrente de conduta rigorosamente lícita.

Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do

art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à

indenização do prejuízo que sofreram.

Page 10: 05 A Teoria do Ato Ilícito.Abuso do Direito

Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa

de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver

a importância que tiver ressarcido ao lesado.

Parágrafo único. A mesma ação competirá contra aquele em defesa de

quem se causou o dano (art. 188, inciso I).

SUB-MODALIDADES DO ABUSO DO DIREITO

Nós vamos falar agora sobre as sub-modalidades do abuso direito, te lembrando que se o abuso

do direito é um conceito aberto e em construção, é um conceito ainda plástico, obviamente, os sub-tipos

que eu vou apresentar agora não são enclausurantes. Evidentemente que o abuso do direito não se apresenta somente nestes tipos. É certo que são apenas algumas hipóteses de abuso.

Venire contra factum proprium

Tem nome muito esquisito e em bom Português significa proibição de comportamento

contraditório ou se você preferir, também chamado de Teoria dos Atos Próprios.

“O venire contra factum proprium é uma modalidade de abuso de direito caracterizada pela

prática de um comportamento, ou seja, pelo exercício de um direito afrontando uma expectativa criada de que aquele direito não seria exercido. Em outras palavras, ocorre o venire contra factum proprium sempre

que alguém exerce o direito depois de ter criado a expectativa de que não iria fazê-lo.”

É claro que se nós estivéssemos diante do conceito clássico de ato ilícito, que era um conceito

puramente subjetivo, jamais se poderia falar em ilicitude por venire porque no venire o titular está

exercendo um direito seu, mas está exercendo um direito seu depois de criar a expectativa de que aquele

direito não seria exercido.

Se você esquecer do venire, lembra de um trecho da música de Vanessa da Mata, porque o venire

nada mais é do que a criação de expectativas desleais. São expectativas desleais de que um direito não seria exercido. Vejam que coisa inovadora! Dizer que alguém, ao exercer um direito seu, acabou de

cometer ilícito porque criou a expectativa de que aquele direito não seria exercido.

O venire é admitido tanto no campo das relações privadas, quanto no campo das relações de

direito público.

Proibição de alegação da própria torpeza – E é importantíssimo que você não confunda venire contra factum proprium com proibição de alegação da própria torpeza. Venire é proibição de

comportamento contraditório e isso não é proibição de alegação da própria torpeza. Onde está a

diferença? Ela vem na seguinte medida: o venire decorre da boa-fé objetiva. A proibição de alegação da própria torpeza está fundada na boa-fé subjetiva. Perceba a diferença, que é valorativa: proibição de

comportamento contraditório é boa-fé objetiva, proibição de alegação da própria torpeza é boa-fé

subjetiva.

Reserva mental – Também não se confunde o venire contra factum proprium com a reserva

mental porque a reserva mental está no campo do descumprimento contratual, do inadimplemento

contratual. O venire, em verdade, não se confunde com a reserva mental porque a reserva mental é uma das espécies de descumprimento contratual.

Page 11: 05 A Teoria do Ato Ilícito.Abuso do Direito

E assim, você vai percebendo que o venire está atrelado na boa-fé objetiva, no comportamento de

alguém que criou uma expectativa de que não iria exercer determinado direito e o faz,

surpreendentemente.

Venire no STF e no STJ:

Admitindo venire no Supremo: RE 86787/RS, MS em Ag. Reg. 25742 (de 2009). Admitindo venire no STJ: REsp 857769/PE e Resp 95539/SP, REsp 524811/CE (aplicação do

venire no âmbito do direito público, relativizando a supremacia do interesse público sobre o privado,

dizendo que o Estado não pode despertar expectativas desleais).

Vou dar exemplos do venire na jurisprudência:

A primeira de todas as hipóteses do venire julgada no direito brasileiro (RE 86787/RS): na década de 70, uma mulher próspera, empresária famosa, se apaixona por um homem muito, muito mais novo do

que ela. Dez, vinte anos mais novo. Aquele casal conta com toda a resistência da família dela. Eles vão

até o Uruguai e se casam no Uruguai porque lá, o regime de bens oficial é o de separação de bens. O que é dela não comunica com ele. Voltam para o Brasil e comunicam que se casaram. Só que eles não dizem a

ninguém, mas tempos depois, eles requerem a homologação daquele casamento no Brasil e, em sendo

assim, o regime sai do uruguaio e vem para o regime brasileiro que, na década de 70 era o regime universal. Só que isto eles não revelam a ninguém e todos sabem que estão casados pelo regime da

separação. Ela faz uma doação a ele e ele monta uma empresa para dar apoio logístico às empresas dela,

do gênero alimentício. Em pouco tempo ele faliu e vieram todos os credores para executá-lo. Acabou o

patrimônio dele. Os credores tentaram, então, executá-la. E ele defende dizendo que o patrimônio dela não poderia ser executado porque nós somos casados no regime de separação e comprovam o casamento

no Uruguai. Com isso, a justiça termina blindando o patrimônio dela por conta das alegações dele de que,

de fato, eram casados sob o regime de separação. Sem ocupação, ele resolve procurar um outro trabalho e aí resolve ser ator de filme pornográfico. Um trabalho duro! Ela já não gosta mais da ocupação que ele

arrumou e pede a separação. Ele contesta a ação dizendo assim: “quer separar, a gente separa, só que tem

que dividir todo o patrimônio, porque somos casados no regime de comunhão universal” E aparece com a

homologação do casamento no Brasil. O Supremo, nesse caso, aplicou o venire contra factum proprium, dizendo assim: de fato, você teria direito à meação, mas você criou em todos e nela a expectativa de que

na sua cabeça vocês eram casados pelo regime da separação. Ato ilícito objetivo caducificante. Ele perdeu

o direito de exercer o seu direito à meação.

Exemplificando no STF (REsp 95539/SP) – O STJ dirimiu uma situação igualmente interessante.

Um casal em SP resolve vender um terreno que possuía numa cidade do interior. O marido vai até a cidade e acertou toda a compra e venda com aquela pessoa. Celebrou a promessa e assinou o contrato

sozinho. O comprador depositou o dinheiro na conta-conjunta do casal e a mulher concordou em entregar

a posse para o comprador. O dinheiro foi depositado, sob o compromisso de escrever a escritura

futuramente. Nesse ínterim, o comprador começa a construir no imóvel e a prefeitura embarga a obra: ação de nunciação de obra nova por violação das leis municipais. Ao embargar, sem saber quem era o

dono da obra, a prefeitura então, ajuíza ação contra aqueles em cujo nome o imóvel está registrado: o

casal vendedor. O casal, então, citado na referida ação, contesta dizendo que já venderam e mostraram o contrato, provando até que receberam o dinheiro. Ressaltaram que, pelo sim, pelo não, se fossem

condenados a ressarcir o município, queriam o direito de regresso e, com isso, eles denunciaram à lide e

depois disso, o que ela faz? Alega, com base nos arts. 1647 e 1649, do CC, que a compra e venda de pessoa casada sem o consentimento do cônjuge é anulável. Ela ajuíza uma ação de anulação de compra e

venda. É direito dela fazê-lo? Sim, só que ela está exercendo esse direito depois de ter criado a

expectativa de que tinha anuído com aquele contrato. O STJ disse que ela praticou venire contra factum

proprium, que ela está exercendo direito depois de ter criado a expectativa de que não iria fazê-lo.

Fique atento ao seguinte:

Page 12: 05 A Teoria do Ato Ilícito.Abuso do Direito

“Vem se debatendo na doutrina e na jurisprudência a ocorrência ou não do

venire em uma determinada hipótese que é a oferta voluntária, pelo devedor executado,

de bem de família à penhora com alegação posterior de impenhorabilidade.”

Durante o processo de execução, o executado oferece voluntariamente à penhora o seu bem de

família. E, no curso do processo de execução, ele alega que aquele bem é impenhorável. Primeiro oferece,

depois diz que é bem de família. Ficou claro?

Fredie Didier entende que é caso típico de venire e que ele está renunciando à impenhorabilidade,

portanto, que há supressão de direito, que há renúncia à impenhorabilidade. Essa não é a posição do STJ.

“O STJ vem entendendo que é possível ao executado invocar a

impenhorabilidade mesmo depois de ter ofertado voluntariamente o bem,

entendendo que moradia é direito fundamental, motivo pelo qual afastar-se-ia

a alegação de ilicitude.”

Supressio ou Verwirkung e Surrectio ou Erwirkung

É um sub-tipo do venire contra factum proprium. É uma modalidade do venire. No venire você

observou: o titular cria a expectativa de que determinado direito seu não será exercido e, supreendentemente, aquele direito é exercido.

“Na supressio ocorrerá a supressão da possibilidade de exercício de um

direito pelo titular por ter ele criado em alguém a legítima expectativa de poder

exercer aquele direito em lugar do titular.”

Você acabou de descobrir que supressio e surrectio formam o verso e o reverso da mesma moeda.

Na supressio suprime-se a possibilidade de o titular exercer aquele direito porque ele criou em alguém a

expectativa de que esse alguém o exerceria em seu lugar (surrectio). Na mesma medida em que ocorre

surrectio para o titular, ocorre surrectio para o terceiro. Na mesma tocada em que ocorre supressio para o titular, ocorre surrectio para o terceiro. Daí a conclusão:

No venire o titular cria uma expectativa de que não vai exercer determinado direito (nem ele nem ninguém), ele cria a expectativa de que aquele direito não será exercido.

Na supressio ele cria a expectativa de que alguém exercerá aquele direito em seu lugar (aquele direito não será exercido por ele, mas será por outrem). Supressio para o titular e surrectio para o terceiro.

O STJ vai admitindo a supressio e a surrectio com facilidade: REsp 356821/RJ e REsp

214680/SP. Nestes julgados, o STJ vai, tranquilamente, admitindo, acolhendo a alegação de supressio e surrectio.

Fredie Didier sustenta a aplicação de supressio e surrectio no campo processual. E dá como exemplo a preclusão lógica. Mas atenção. Nestes julgados que estão acima, aplica-se a supressio no

campo do condomínio edilício. A Lei 4591/64 proíbe usucapião de área comum em condomínio edilício.

Pois bem, apesar de a lei proibir, não é raro encontrar condomínios que permitem o uso de área comum a um ou outro condômino (que acaba exercendo seu direito em área comum). Pois bem, se o condomínio

permite que o condômino use por dez, vinte, trinta anos uma área comum, esse condômino pode alegar

usucapião? Não, porque a usucapião de área comum é proibida por lei. Mas ele pode alegar supressio

porque o condomínio criou nele a expectativa de que ele exerceria aquele direito em lugar do titular.

Page 13: 05 A Teoria do Ato Ilícito.Abuso do Direito

Essa questão, inclusive, discutidas nesses dois acórdãos, inspiraram o MP/MG (2003):

"Marli Durand, condômina do Edifício Dijon, propõe em face de Adelino Moreira e Nelson Gonçalves ação cominatória. Alega que esses condôminos ocupam

parte do corredor de circulação do Edifício, infringindo a lei e a convenção, por se

tratar de área de uso comum. Contestando o pedido, Adelino Moreira sustenta a ocorrência de usucapião, exibindo ata da assembléia geral que autorizou, por maioria

dos presentes, a ocupação da área por ambos os réus, há exatamente vinte anos e um

mês. Nelson Gonçalves, na sua defesa, argüi que a ação da Autora está prescrita e, mesmo que não estivesse, o fato narrado constitui hipótese de exercício inadmissível do

direito, invocando a seu favor o instituto da suppressio. Na impugnação, a Autora disse

que, além de ser impossível usucapião de coisa comum, a ação não estava prescrita e a

espécie não configura Verwirkung." Levando em consideração que a autora é uma menor de dez anos que se tornou condômina por falecimento de seu pai, responda:

2.1 Quais os elementos caracterizadores da suppressio ou Verwirkung? SÃO OS ELEMENTOS DO ABUSO DO DIREITO COMO SUB-TIPO DO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM: CRIAÇÃO

DE EXPECTATIVA E UM COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO À EXPECTATIVA. NESSE

CASO, A EXPECTATIVA É CRIADA EM ALGUÉM, DE QUE ESSE ALGUÉM EXERCERÁ O DIREITO NO LUGAR DO TITULAR.

2.2 Há princípio positivado no direito brasileiro que permita o seu acolhimento? Explicite e fundamente a

sua existência ou inexistência. SIM. ART. 187, DO CÓDIGO CIVIL. ABUSO DO DIREITO,

FUNDADO, POR SUA VEZ, NA BOA-FÉ OBJETIVA.

2.3 O caso pode ser resolvido à luz daquele instituto? Por quê? SIM, PORQUE O ABUSO DO DIREITO

NÃO GERA APENAS COMO EFEITO A INDENIZAÇÃO. GERA TAMBÉM CADUCIDADE DE

DIREITOS.

2.4 Deve ser acolhida a argüição de usucapião ou a da prescrição da ação? Por quê? NÃO PORQUE

NÃO HÁ USUCAPIÃO DE CONDÔMINO EM FACE DE CONDOMÍNIO EDILICIO E TAMBÉM

NÃO CORRE A PRESCRIÇÃO PORQUE NÃO CORRE A PRESCRIÇAÕ EM FACE DE INCAPAZ.

O Código Civil também nos dá um exemplo de supressio. É o art. 330:

Art. 330. O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato.

Eu celebrei um contrato com Juliana, que mora em Itacaré. Eu sou o credor, moro em Salvador. O contrato diz que o devedor deve cumprir as obrigações no domicílio do credor. Juliana tem que sair de

Itacaré todo mês para cumprir a obrigação. Todavia, nesse contrato de 36 meses eu digo: não precisa vir

porque eu vou a Itacaré todos os meses descansar. Então, quando eu for, eu recebo o pagamento. Já se vão

30 meses e durante esse tempo todo, embora o contrato diga que o lugar do cumprimento é o do domicílio do credor, eu sempre me desloquei ao domicílio do devedor para receber o pagamento. No 30º mês, eu

digo a ela que vou exercer o meu direito que está no contrato: exigir o pagamento em Salvador. E ela diz:

agora não porque seu comportamento reiterado gerou uma renúncia: supressio. Supressio para o credor e surrectio para o devedor. É o art. 330, do Código Civil.

A palavra mais importante do artigo é “reiteradamente” por um motivo simples: porque não é qualquer renúncia, não é qualquer concessão, não é qualquer tolerância que gera a supressio. A tolerância

que gera a supressio é uma tolerância reiterada. É aquilo que desperta confiança. Por isso que nem toda

tolerância pode implicar em venire e em supressio. É somente aquela conduta reiterada e só.

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Tu quoque ou Estoppel

O tu quoque é abreviação da expressão latina, “tu quoque, Brutus?” Até tu, Brutus? Surpresa, quando Julio César descobriu que seu filho Brutus participava da conspiração contra ele. Dá ideia de

surpresa.

“Tu quoque ou Estoppel nada mais é do que o venire contra factum proprium

aplicado no âmbito das obrigações contratuais.”

Tu quoque ou Estoppel, portanto, é a proibição de comportamento contraditório entre os

contratantes. É uma limitação de comportamento entre contratantes. É a limitação do exercício de direitos

contratuais. Se o contratante exerce o direito seu, violando a expectativa que ele criou, está praticando tu

quoque e, portanto, ato ilícito.

Exemplo: é o contratante que, embora não tenha cumprido suas obrigações, exige que o outro o

faça. Você está louco para dizer que isso é o exemplo típico de exceptio non adimpleti contractus. Exceção do contrato não cumprido. Pensou nisso e acertou. Só que você deve lembrar que a exceção do

contrato não cumprido é exclusiva dos contratos onerosos e bilaterais. Se o contrato não é bilateral, não é

oneroso, não se admite a exceptio non adimpleti contractus. A exceptio non adimpleti contractus pode ser afastada pela cláusula solve et repete. A cláusula solve et repete é uma cláusula expressa que serve para

afastar a exceptio non adimpleti contractus. Se a exceptio non adimpleti contractus é tácita, significa que

a solve et repete só pode ser expressa. E a solve et repete é a cláusula que permite ao contratante exigir o

cumprimento das obrigações do outro sem ter cumprido as suas.

Agora você acompanha comigo. Atenção! O tu quoque é mais largo, é mais amplo, do que a

exceptio non adimpleti contractus porque o tu quoque chega onde a exceptio não conseguiu chegar. O tu quoque vai estar presente sempre, porque diz respeito a abuso do direito, mesmo que o contrato não

admita a exceptio non adimpleti contractus. E quais são os contratos que não admitem a exceptio non

adimpleti contractus? Os contratos unilaterais gratuitos ou os contratos que têm cláusula solve et repete.

Esses não admitem a exceptio, mas o tu quoque está ali porque o tu quoque é o abuso do direito no que tange às obrigações contratuais.

O STJ ainda não julgou nada sobre isso, mas vai julgar agora e é um caso muitíssimo interessante aqui da Bahia. É um contrato celebrado entre duas grandes empresas. Através desse contrato, elas

estipularam convenção de arbitragem caso ocorresse algum conflito. Estipularam a decisão de um árbitro

e não do juiz. A empresa interessada, alegando que a outra descumpriu suas obrigações foi lá e o árbitro dirimiu o conflito. Dirimindo o conflito por sentença arbitral a empresa vencida no laudo arbitral vai a

juízo. Se você fosse o advogado da empresa vencedora iria alegar o quê? Extinção do processo sem

resolução do mérito por inadequação da vida processual, uma vez que aquilo era caso de arbitragem. Sabe

o que foi que a empresa vencedora do laudo arbitral e ré na ação disse? Contestou dizendo: não procedem as alegações do autor e não alegou a existência de arbitragem. Contestou dizendo que não era verdade

nada daquilo e foi mais longe: ofereceu reconvenção. E disse: “não fui eu quem descumpriu as

obrigações. Foi ela e estou reconvindo. Agora estou formulando um pedido contra ela, apesar de ter sido vencedora no laudo arbitral.” O processo andou e nas alegações finais sabe o que o réu alegou?

Arbitragem! Tu quoque nele! E por quê? Porque ele está se comportando de forma arbitrária. Era direito

dele ter alegado arbitragem, mas na medida em que ele contesta e oferece reconvenção sem alegar arbitragem e permite a instalação da instrução do processo, agora é abuso lembrar da cláusula de

arbitragem. O STJ não julgou esse caso ainda, mas vai julgar e, seguramente, vai aplicar o tu quoque.

Abuso do direito no que tange ao campo das relações obrigacionais.

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Duty to mitigate the loss

É o dever de mitigar as próprias perdas. Agora, atenção: o duty to mitigate the loss é abuso do direito do credor.

“Ocorre o dever de mitigar as próprias perdas quando o credor exerce

um direito seu, gerando prejuízo para si mesmo ou se omite de uma conduta

que lhe geraria uma vantagem ou eliminaria uma desvantagem.”

É abuso do direito do credor quando ele pratica um ato que lhe prejudica ou se omite de uma

conduta que lhe geraria uma vantagem ou que eliminaria uma desvantagem.

O conceito moderno de obrigação é um conceito de dever de cooperação. O conceito moderno de relação jurídica obrigacional é um conceito de dever de cooperação, isto é, não é apenas o devedor quem

aspira o cumprimento da obrigação. O credor deve adotar providencias para facilitar o cumprimento da

obrigação e toda vez que o credor atrapalha, de algum modo complica o cumprimento da obrigação, ele está prejudicando diretamente a si e, indiretamente ao devedor, porque está agravando a situação do

devedor. Abuso do direito. Portanto, o duty to mitigate the loss, o dever de mitigar as perdas, é o abuso

praticado pelo credor agravando a sua situação e, indiretamente, a situação do devedor.

Expressamente acolhendo o duty to mitigate the loss como manifestação do abuso do direito e

violação da boa-fé objetiva, o Enunciado 169, da Jornada de Direito Civil:

Enunciado 169 da Jornada de Direito Civil – Art. 422: O

princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento

do próprio prejuízo.

Vamos agora para os exemplos de aplicação do duty to mitigate the loss.

Recálculo das Astreintes (multa diária) – Meu nome foi inserido indevidamente no SPC. Aí eu vou à Justiça e o juiz manda tirar, sob pena de multa diária de 1000 reais. Mas o réu não cumpre a

obrigação. Passa uma semana, dois meses. Ele não cumpriu e eu comuniquei o juiz que ele não tinha

cumprido. Eu fico esperando e já se passaram dois anos e dois anos depois a dívida já está na casa de 1 milhão de reais e eu nunca comuniquei ao juiz. Sabe o que eu vou fazer agora? Vou executar a multa e ao

fazer isso, estou abusando do meu dinheiro que não tinha natureza indenizatória, mas tinha natureza

inibitória. Se tinha natureza inibitória era para evitar o descumprimento e se o réu descumpriu, qual era o meu dever ético? Comunicar ao juiz quanto tinha 15 dias, um mês, uma semana, sei lá! Se eu esperei dois

anos e agora executei estou fazendo de forma abusiva. O juiz deve, nessa hipótese, recalcular as

Astreintes. Ele faz o quê? Diminui o valor da multa e, com isso refaz o título executivo. Ele vai diminui o

valor da multa para que a execução não seja abusiva. Para que essa execução não viole a natureza inibitória do título. Ele vai, portanto, diminuir o valor da multa, promovendo um recálculo do título para

impedir uma execução abusiva. Com esse exemplo, o STJ julgou o AgRg 1075142/RJ (Luiz Felipe

Salomão – Junho/2009) – para você ver a importância do duty to mitigate the loss,

Súmula 309, do STJ – Na mesma linha de compreensão, no mesmo passo, a Súmula 309, do STJ

é outro exemplo. Ela diz que o credor de alimentos tem direito de executar a dívida sob pena de prisão. É o único caso de prisão civil do sistema. A dívida de alimentos prescreve em dois anos. Se o devedor deixa

de pagar dois anos e o credor, em nenhum momento o executa, considerando que a natureza dos

alimentos é a subsistência, o que ele está querendo fazer é chantagem. Ele está querendo juntar um ano,

dois anos, para executar tudo de uma vez só. E aí ou ele não paga ou ele é preso. A Súmula 309 estabelece que o direito do credor alimentício de pedir a execução sob pena de prisão civil, é somente em

relação às parcelas relativas aos últimos 3 meses, bem como as vincendas dentro do processo. O direito

do credor alimentício de promover a execução sob pena de prisão é somente em relação às parcelas dos últimos 3 meses e das vincendas dentro do processo porque o STJ entende que executar sob pena de

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prisão mais do que os últimos 3 meses é abuso porque o credor tinha o dever de minorar o seu próprio

prejuízo.

STJ Súmula nº 309 - DJ 19.04.2006 - O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações

anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do

processo.

Direito à purgação da mora na locação dos imóveis urbanos – A Lei de Locações (Lei

8.245/91) diz expressamente que nas ações de despejo por falta de pagamento, o locatário tem direito à purgação da mora. Tem direito de afastar o despejo pagando a dívida no curso do procedimento. Ele só

não pode exercer o direito à purgação da mora duas vezes no prazo de 12 meses. Sabe o que o locador

faz, para impedir que o locatário tenha o direito de purgar a mora? Ao invés de promover a ação de

despejo com dois, três meses de inadimplemento, ele deixa juntar um ano, um ano e meio, dois. Se o cara não pagou, agora é que não paga de jeito nenhum. O juiz deve limitar o número de meses para a purgação

da mora. Ou seja, o réu está devendo 14, 16 meses, o juiz diz: “se ele pagar 4, a mora está purgada e

afasta-se o despejo.” E o resto? Cobrança autônoma. O credor tem o dever de minorar suas próprias perdas, tem o dever de minorar o prejuízo violado.

Código de Defesa do Consumidor – Mais um exemplo do duty to mitigate the loss é o superendividamento. É o comportamento do credor nas operações financeiras. Sabe o que acontece? Você

está devendo no cheque especial e vai até o gerente negociar. Ele dobra o limite do seu cheque especial, te

dá um empréstimo e um cartão de crédito sem limite. Em outras palavras: agora você vai se enrolar todo.

Superendividamento. É o credor, nas operações financeiras, colaborando para o inadimplemento do devedor, sabendo que sua capacidade contributiva não vai a tanto. Nesses casos, deve o juiz limitar o

cálculo dos juros. Nas hipóteses de superendividamento é dever do juiz limitar o cálculo dos juros.

Substantial Performance

Anote os sinônimos: adimplemento substancial, inadimplemento mínimo ou inadimplemento

irrisório.

Todos vão lembrar que nos termos dos arts. 389 e 395, do Código Civil, é direito da parte

requerer a rescisão contratual com todos os seus efeitos quando ocorrer o descumprimento das obrigações pela outra parte. Toda vez que o contratante descumpre as suas obrigações, toda vez que ocorre o

inadimplemento contratual, surge para a outra parte o direito à rescisão com todos os seus efeitos. Para

quem não lembra quais são os efeitos da rescisão de um contrato:

Perdas e danos (multa) – normalmente já são previamente limitadas por cláusula penal.

Juros e correção monetária

Honorários e custas

Estes são os efeitos da rescisão contratual. Extingue-se o contrato com todos esses efeitos.

Imagine o contrato de financiamento de automóvel em 24 parcelas. Dessas parcelas, o devedor pagou 21 ou 22. Deixou de pagar as restantes. Ficou desempregado, por exemplo. Não pagou 3 de 24 parcelas. Se

não pagou, descumpriu. Se é assim, rescisão contratual nos seus efeitos. O banco tem direito de ajuizar

rescisão de contrato pedindo a devolução do carro. “Com prazer. Devolvo o carro e você me devolve o meu dinheiro.” E o banco, muito honesto, vai dizer: “devolvo, sim, mas antes vou fazer alguns

abatimentos na forma da lei.” Art. 389. Eu vou reter a multa, cláusula pena, vou reter juros e correção,

honorários e custas e taxa de ocupação (que é uma espécie de aluguel, afinal de contas, o devedor estava utilizando o carro). Na hora que você somar isso tudo, significa que o cara devolve o carro e continua

devendo. Tudo isso porque ele deixou de pagar duas ou três parcelas. É direito do contratante requerer a

rescisão do contrato nesse caso? Sim, mas esse direito está sendo exercido abusivamente.

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“Substantial performance é o abuso do direito de o credor ao requerer a

rescisão do contrato quando o descumprimento de obrigações pelo devedor foi mínimo,

irrisório.”

E qual é a solução para esse caso? Reconhecer a ilicitude desse requerimento de rescisão. Eu

disse que o banco vai ficar sem receber? Não. Ele só não vai poder requerer a rescisão. Ele vai ter que promover uma ação de cobrança comum. Mas rescisão não dá para requerer porque, nesse caso,

consubstanciou-se o substantial performance, o abuso do direito do credor de requerer a rescisão.

Dois julgados exatamente desse caso: REsp 272739/MG e 293722/SP. Nesses dois julgados, o

STJ reconheceu o abuso do direito do credor no requerimento da rescisão. Ele não perde o direito ao

crédito. Ele perde o direito de rescindir o contrato. São coisas bem diferentes.

Quem quiser pesquisar mais sobre o performance, vá ao site do STJ e ao TJ/RS. Você verá uma

grande quantidade de acórdãos tratando do substantial performance. Todavia, muito embora os acórdãos

que você encontrará sejam todos tratando do substantial performance numa ótica quantitativa, eu queria que você deixasse claro no seu caderno. Anote agora: é possível falar de substantial performance também

pela ótica qualitativa. Em outras palavras: no exemplo que eu dei (de 24 foram cumpridas 22), estou

falando da ótica quantitativa.

Mas é possível falar no subtantial performance qualitativo. Eu me lembro dos financiamentos de

imóveis que têm um plano diferente. O devedor começa pagando uma parcela muito alta e, na metade do

contrato, a parcela já é quase irrisória porque ele começa quitando a dívida para, lá no final, pagar os juros. Imagine que esse contrato é de dez anos. Imagine que no 5º ano ele já pagou a dívida inteira e que

dali pra frente ele só vai pagar juros. Nesse momento houve o inadimplemento. Eu posso dizer que o

inadimplemento foi mínimo? Se eu olhar para o critério quantitativo, não. Mas se eu olhar para o critério qualitativo, sim, porque a dívida já foi paga e agora ele só está pagando juros. Eu quero dizer, portanto,

que o substantial performance não atende somente a um critério quantitativo, mas também a um critério

qualitativo.

Violação Positiva de Contrato ou Adimplemento Fraco ou Ruim

E o que é isso? A violação positiva de contrato é um novo modelo de inadimplemento contratual. Historicamente, se falou que o inadimplemento contratual era apenas e tão-somente o descumprimento de

obrigações contratuais. Portanto, todo inadimplemento sempre foi negativo: descumprimento das

obrigações de um contrato. Com o novo Código Civil, além de cumprir as obrigações contratuais, os contratantes devem também cumprir a boa-fé objetiva e os seus deveres anexos. Com isso, pode ser que o

contratante cumpra todas as obrigações contratuais, sem exceção, mas descumpra os deveres anexos

oriundos boa-fé objetiva. Que deveres são esses? Dever de informação, de segurança, de lealdade. São

deveres éticos. Nesse caso, não houve um descumprimento negativo. Houve um descumprimento positivo. Houve uma violação positiva de um contrato. E por que houve uma violação positiva de

contrato? Porque cumpriu todos os deveres contratuais, mas descumpriu os deveres anexos. Haverá,

portanto, aqui, um novo modelo de inadimplemento, o inadimplemento positivo. Alguns exemplos são maravilhosos:

TV de Plasma – Em 2006 todo mundo comprou para ver a Copa. Quem vendeu, vendeu a TV em perfeito estado e não contou que no sinal de TV analógico a imagem do plasma deformava. O vendedor

entregou a TV em perfeito estado, no prazo, mas descumpriu o dever de informação.

Lada – Foi outro exemplo, julgado pelo STJ. Lada era um carro russo horroroso. E a Lada vendia aquele carro e de repente parou de vender e parou de vender peças de reposição. Aí você tinha um carro

do ano. Se quebrou uma lanterna, tinha que mandar buscar na Rússia. Violação positiva de contrato. O

STJ obrigou a Lada a manter por cinco anos peças de reposição no mercado.

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Outdoors – TJ/SP julgou: Uma empresa queria fazer uma propaganda em placas de outdoor de

um produto muito caro, voltado para o público A. 20 placas foram espalhadas pela cidade. E a empresa,

mesmo sabendo que o produto era dirigido à classe A, espalhou as placas pelos subúrbios e favelas.

Cumpriu o contrato porque colocou as 20 placas, mas violou positivamente o contrato.

O STJ vem admitindo a violação positiva de contrato: REsp 330261/SC. Nesse julgado, o STJ

admitiu violação positiva de contrato.