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    REVISTA USP, So Paulo, n.41, p. 18-27, maro/maio 199918

    QMILTONV

    ARGAS

    A BAIXADA

    SANTISTA.SUAS BASES

    FSICAS

    uando, num dia desanuviado e claro, voa-se sobre a

    Baixada Santista, numa rota no raro utilizada pelos

    avies da Ponte Area, em sua volta do Rio para So

    Paulo, no se pode deixar de admirar o contraste entre a

    plancie da Baixada e a muralha, quase vertical, da Serra de

    Cubato, encimada pelo Planalto Paulistano.

    Tem-se ento a impresso de um soerguimento

    recente da face da serra, tal o contraste entre a topo-

    grafia jovem da Serra do Mar e a maturidade topogrfica

    do planalto. Os gelogos que confirmam essa impressodizem tratar-se da face dissecada de uma falha geolgica,

    ao longo da qual a borda oriental do continente teria

    ascendido antes, durante e pouco depois que se sedimen-

    taram as argilas e areias sobre as quais a cidade de So

    Paulo repousa. Entretanto, os primeiros estudos mais

    apurados, levados a efeito por Fernando Marques de

    Almeida (1) em 1953, levaram-no a interpretar o relevo

    da Serra de Cubato como resultante de um processo de

    eroso iniciado a partir de falhamentos anteriores, situa-

    1 F. F. Marques de Almeida,Consideraes sobre aGeomorfogenese da Serra deCubato, in Boletim Paulistade Geografia, no15, So Pau-lo, outubro de 1953.

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    REVISTA USP, So Paulo, n.41, p. 18-27, maro/maio 1999 19

    sdoEngen orasmosMILTON VARGAS

    professor emrito daEscola Politcnica daUniversidade de SoPaulo.

    do a vrios quilmetros a leste das escarpas atuais.

    De fato, at cerca dos anos 50, pouco se sabia sobre a

    geologia, tanto da Serra do Mar quanto das vrzeas e praias do

    litoral. Contudo, o pai da Geologia no Brasil, o americano

    Charles Frederick Hartt, j descreve a Baixada de Santos e a

    Serra de Cubato, em seu livro Geology and Physical Geography

    of Brazil(2), publicado em Boston em 1870. So descries

    que cobrem mais os aspectos geogrficos que os geolgicos da

    regio. Entretanto o primeiro a opinar que toda a costa sul

    do Brasil est atualmente se elevando. Da as plancies deformao geolgica recentssima, com seus depsitos e vrzeas

    e dunas de areia, em contraste com a formao arqueana da

    serra. Somente na Geologia do Brasil(3), de Avelino de Oli-

    veira e Othon Leonardos, publicado em 1943, foi que se

    trouxe aos estudiosos de geologia uma divulgao das informa-

    es mais detalhadas sobre as formaes geolgicas de nosso

    pas. So poucas porm as informaes sobre a geologia da

    Serra de Cubato. H somente meno s formaes geol-

    gicas do trecho da estrada de ferro Mayrink-Santos, ento

    2 F. Hartt ,Geology and PhysicalGeography of Brazil, Boston,

    Fields Osgood, 1870.3 A. de Oliveira e O. Leonardos,

    Geologia do Brasil, Rio de Ja-neiro, Servio de InformaoAgrcola, Ministrio da Agri-cultura, 1943.

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    rcem-construda no espigo fronteirio a

    essa serra. Elas so identificadas como

    gnaisses arqueanos; porm, cortadas na des-

    cida da serra por uma faixa de micaxistos

    da srie algonquiana de So Roque.

    As formaes litorneas so ali descri-

    tas como plancies holocnicas em plena

    fase de crescimento, por entre ilhas gran-

    tico-gnissicas. Assim mesmo pouco dito

    sobre as restingas, manguezais e baixadas

    da nossa costa sul sobre a Baixada de San-

    tos. Simplesmente l-se: As plancies de

    Santos e So Vicente, em So Paulo, so

    construdas de dunas ou de vasas. As areias

    acumuladas pelo vento elevam-se pouco

    acima do mar, enquanto as plancies lodo-

    sas, no obstante serem revestidas de vege-tao (mangues), so integralmente

    alagadas nas mars altas. Os grandes bana-

    nais de Santos so protegidos por diques

    artificiais. Leonardos afirma no acredi-

    tar que a costa sul do Brasil esteja cres-

    cendo por levantamento epirognico. So-

    mente muito mais tarde que essa questo

    veio a ser devidamente esclarecida, como

    ver-se- adiante.

    A Geografia de Avelino de Oliveira eLeonardos d uma especial ateno exis-

    tncia de sambaquis em todo o litoral sul

    do Brasil. So acumulaes de conchas,

    restos humanos, ossos de aves e peixes,

    usados como agulhas ou colares. Muitos

    desses sambaquis alcanam uma dezena

    de metros de altura e tm seus taludes n-

    gremes, evidentemente de origem huma-

    na. Muitos deles mostram em sua base con-

    chas fsseis de moluscos de espcies extin-

    tas; porm ainda assim holocnicos. Pelo

    que sei, uma datao feita num sambaqui

    encontrado no local onde hoje se acha a

    Usina Siderrgica de Piaagera indicou a

    idade de 10.000 anos, embora haja indica-

    es de serem mais recentes. Assim,

    Leonardos afirma que alguns deles esta-

    vam ainda em construo na poca do des-

    cobrimento. Alguns deles, por exemplo o

    da Cosipa, esto presentemente longe do

    mar, sugerindo o afastamento da costa,posterior a sua construo.

    Assim o povoamento da Baixada

    Santista seria anterior aos dos ndios

    tupiniquins, encontrados pelos descobrido-

    res portugueses. Porm, os homens dos

    sambaquis no mostram diferenas em

    comparao com os ndios atuais. De qual-

    quer maneira eles so de nvel cultural ex-

    tremamente mais baixo que o dos

    tupiniquins e no h memria, nas lendas

    indgenas, de uma raa anterior deles que

    tivesse sido dominada ou extinta.

    Os tupiniquins, centrados no planalto,

    como agricultores que eram, principalmen-

    te da mandioca plantada pelo sistema de

    coivaras, nas matas ciliares dos rios ,

    no eram nmades; mas, segundo os

    antropologistas, no inverno desciam a ser-

    ra para vir pescar nos rios e lagunas do

    esturio e, mesmo, no mar. Atestam essefato as trilhas, cujos vestgios existem, at

    hoje, na encosta da serra. Terminado o in-

    verno voltavam para o planalto. Portanto a

    Baixada Santista no era rea de povoa-

    mento estvel, embora pertencesse rea

    de subsistncia dos tupiniquins. Isto ex-

    plica por que os primeiros descobridores

    encontraram-se com os ndios do planalto

    e logo subiram a serra pelas prprias trilhas

    indgenas, que vieram a chamar-se cami-nhos do mar, procura das aldeias dos

    Campos de Piratininga, onde j vivia o re-

    negado Joo Ramalho e onde os jesutas

    estabeleceram sua primeira escola. Resta

    perguntar por que sendo esses ndios co-

    nhecedores do meio natural preferiam plan-

    tar suas roas de mandioca no planalto.

    Como resposta lgica pode-se intuir que as

    terras do planalto eram mais propcias s

    atividades agrcolas.

    A tradio indgena de considerar os

    campos do planalto como ncleo central de

    sua rea de subsistncia prolongou-se com

    os povoadores portugueses que preferiam

    os Campos de Piratininga, com a fundao

    de Santo Andr da Borda do Campo e So

    Paulo de Piratininga. Na plancie litornea,

    subsistiram as cidades de Santos, So

    Vicente e Itanham, como portos de de-

    sembarque, ligados ao planalto pela trilha

    dos tupiniquins e assegurando a ligaomartima com a metrpole. Contudo houve

    a tentativa de estabelecerem-se plantaes

    de cana-de-acar na Baixada, mas essas

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    fracassaram. Esse o caso do famoso En-

    genho dos Erasmos, fundado logo aps a

    chegada dos portugueses e que durou ape-

    nas cerca de 50 anos. Resultando disso que,

    j em 1681, a sede do governo da capitania

    passou a ser em So Paulo. Na Baixada

    estabeleceu-se a caracterstica que persiste

    at hoje, de centros urbanos, como ilhas em

    territrio inaproveitado; ou simplesmente

    aproveitados para plantaes de bananei-

    ras. Contudo a ligao entre as duas reas

    complementares persiste nas sucessivas

    estradas atravs da muralha da serra. A Tri-

    lha dos Tupiniquins que partia de Piaa-

    gera e subia a serra ao longo do vale do

    Rio Mogi e, no planalto, procurava o Vale

    do Tamanduate, seguindo at Piratininga substituda pelo Caminho do Padre Jos

    partindo de Cubato, subindo a serra pelo

    Vale do Rio Perequ e, no planalto, cruzan-

    do os rios Pequeno e Grande, at atingir o

    Vale do Rio Meninos, afluente do Taman-

    duate. No h melhoria entre os dois cami-

    nhos, mas apenas maior segurana pois o

    primeiro se aproximava muito do territrio

    dos ndios tupinambs, inimigos acrrimos

    dos tupiniquins.Com o crescer das comunicaes entre

    Santos e So Paulo, no sculo XVIII, o

    antigo Caminho do Padre Jos foi sofrendo

    reparaes e modificaes sensveis inclu-

    sive a subida pelo Vale do Rio das Pedras,

    ao invs de pelo do Rio Perequ, dando

    lugar ao chamado Caminho do Mar at hoje

    existente. A viagem de Santos era feita por

    canoas at o porto de Cubato. De l subia-

    se a serra penosamente a cavalo, ou em redes

    carregadas por ndios, ou mesmo a p, at

    o alto da serra. Mas somente no governo de

    Bernardo Jos de Lorena (1788-97) que

    a subida da serra foi melhorada construin-

    do-se a Calada do Lorena, feita com

    lajes de pedra e com largura suficiente para

    que as tropas de burros pudessem cruzar-

    se sem parar. Essa calada, cujo traado

    foi aproximadamente seguido pela atual

    Estrada Velha de Santos, foi inaugurada,

    provavelmente, no incio do ano de 1792. interessante notar que, na construo

    dessa calada, cuidou-se especialmen-

    te da drenagem, para evitar os estragos

    das enxurradas e da construo de taludes

    por meio de muros de arrimo. No planalto

    tratou-se da melhoria e conservao do

    caminho e da construo de pontes de

    madeira (pinguelas) na travessia dos rios.

    Finalmente, de 1824 a 27, abriu-se uma

    estrada que ligava Santos a Cubato a

    qual, no obstante, foi de manuteno di-

    fcil e custosa at que se construsse o tre-

    cho da Baixada de Estrada Velha, j na

    dcada dos anos 20 deste sculo.

    Dessa forma, a histrica correlao en-

    tre os Campos de Piratininga e a Baixada

    Santista foi assegurada pelo Caminho do

    Mar. Com o advento da lavoura cafeeira e o

    conseqente transporte do caf em lombo

    de burro, para exportao em Santos, essecaminho foi progressivamente melhorado e

    finalmente substitudo, no final do sculo

    XIX, pela Estrada de Ferro Santos-Jundia.

    Apesar da importncia histrico-geo-

    lgica da Baixada Santista, que se procu-

    rou realar nos pargrafos anteriores, at

    recentemente seus aspectos geogrfico-geolgicos no tinham sido suficientemente

    estudados. A Figura 1 mostra um esboo

    de mapa da regio da Baixada Santista aqui

    estudada.

    Somente a partir de cerca de 1940

    quando a Cia. Docas de Santos resolveu

    consultar o IPT para o estudo dos solos de

    fundao de suas novas instalaes portu-

    rias; quando foram feitos os estudos para a

    construo do trecho da Baixada da Via

    Anchieta; quando se iniciaram estudos geo-

    tcnicos para os primeiros edifcios de apar-

    tamentos na praia do Gonzaga; e, a partir

    de 1950, foram feitos os estudos de solos

    para as fundaes da Cosipa em Piaagera

    foi que as bases fsicas da Baixada Santista

    comearam a ser conhecidas.

    Foi possvel ento traar um esboo de

    perfil geolgico do p da serra at a praia

    de Santos. Em Cubato o solo era constitu-

    do por cerca de 15 m de argila orgnicamole preta sobre uma camada de pedregu-

    lho repousando sobre o embasamento

    gnissico decomposto. Admitia-se ento

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    que a camada de argila orgnica mole,

    entremeada com camadas e lentes de areia,repousasse sobre o embasamento gnissico,

    que se aprofundava lentamente at chegar

    a cerca de 40 m no Rio Casqueiro. Dali por

    diante a superfcie do terreno era recoberta

    por uma camada de areia que, na praia, atin-

    gia a profundidade de cerca de 15 m e o

    embasamento gnissico ficaria a mais de

    80 m de profundidade. A Figura 2 mostra o

    primeiro esboo de um corte geolgico da

    Baixada Santista traado, aproximadamen-

    te, na dcada dos anos 50. Ver-se- adiante

    que tal perfil encobria um erro.

    Note-se, entretanto que, nesse perfil, no

    aparecem os morros que, ao longo da Bai-

    xada, surgem como ilhas rodeadas de

    vasas. So afloramentos aqui e ali, do

    embasamento gnissico. Esses morros so

    recobertos por solos de alterao da rocha

    in situ ou por coluvies formados por

    deslizamentos de solos e blocos de rocha.

    Junto ao p da serra, em geral, ocorremcamadas superficiais de argila orgnica com

    consistncias das vasas revestidas de

    mangues e alagadas pelas mars altas,

    enquanto as areias mais prximas do mar

    so acumuladas pela gua ou pelo vento,como mencionam Avelino de Oliveira e

    Leonardos.

    Note-se que, no caso da Baixada Santis-

    ta, mais uma vez confirma-se o fato de que

    o desenvolvimento econmico que susci-

    ta a investigao cientfica e tecnolgica

    de uma determinada questo; porm, uma

    vez adquiridos tais conhecimentos, eles

    rebatem sobre o desenvolvimento econ-

    mico fazendo-o progredir. De fato, a cons-

    truo da Via Anchieta, da Refinaria de

    Petrleo de Cubato e da Usina Siderrgi-

    ca de Piaagera forneceu dados sobre os

    quais a investigao geogrfica e geolgi-

    ca pode ser feita. Porm, no menos ver-

    dade que, logo aps, esses estudos geol-

    gico-geogrficos muito contriburam para

    o grande desenvolvimento industrial da

    Baixada.

    Mas s em agosto de 1962 que foi

    iniciada uma ampla pesquisa, sob a orien-tao de professores do Departamento de

    Geografia da USP, para o estudo abrangen-

    te dos aspectos geogrficos da Baixada

    FIGURA1

    Regio da

    Baixada

    Santista (apud

    F. Massad)

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    Santista, incluindo sua base fsica, povoa-

    mento e populao, seguido de uma inves-

    tigao sobre Santos e as cidades balnerias

    vizinhas, alm de Cubato e suas inds-

    trias. Em 1965 os resultados dessa pesqui-

    sa foram publicados, pela Editora da USP,

    em quatro alentados volumes, nos quais

    pode-se encontrar as primeiras informaes

    abrangentes sobre os aspectos geogrficos

    da regio (4). O primeiro volume dessa obra,

    As Bases Fsicas, o que mais interessa

    para o trabalho aqui redigido. Inicia-se com

    um sumrio da geologia da serra e da Bai-

    xada, redigido por Jos Carlos Rodrigues,

    enfatizando as questes de Geologia da

    Engenharia, relacionada com as obras rea-

    lizadas na regio. Em seguida h uma ex-celente exposio da evoluo geomorfo-

    lgica, assinada por Aziz AbSber, onde

    ele afirma: Na realidade tudo leva a crer

    que, por volta do cretceo e no decorrer do

    paleogeno, processaram-se falhamentos

    importantespari passucom o soerguimento

    epirognico relativamente homogneo, do

    ncleo sul-oriental do Escudo Brasileiro.

    Desse movimento epirogentico resultou,

    na regio de Santos, uma srie de vales entreespores da serra. Com a elevao do nvel

    do mar que estava cerca de 50 m abaixo do

    nvel atual, e que se deu j no perodo

    Quaternrio, esses vales foram submersos,

    formando-se uma baa profunda e uma s-

    rie de ilhas. Essa ascenso do nvel do mar,

    que chamada pelos geomorfologistas de

    transgresso flandriana, a responsvel

    pela extrema irregularidade da costa sudeste

    do Brasil.

    Com os vales e baas submersos deu-se

    a sedimentao das argilas ou areias finas

    argilosas que hoje formam as vrzeas da

    Baixada Santista. So sedimentos de guas

    calmas, eventualmente em contato com

    gua salgada das mars. Entretanto, j nes-

    sa poca, percebeu-se que a camada de ar-

    gila, supostamente de consistncia unifor-

    memente mole, apresentava certa inexplic-

    vel anormalidade em camadas de consis-

    tncia maior, em discordncia com as mais

    moles. Tal anomalia s foi esclarecida com

    base em estudos geolgicos que sero men-cionados adiante.

    Da eroso dos solos de alterao de

    rocha, os quais recobriam as encostas dos

    espiges e paleo-ilhas, resultaram areias que

    vieram depositar-se, com transporte lqui-

    do ou areo, em cordes de areia, a 10 ou 25

    km de distncia do p da serra, em praias e

    terraos.

    H ainda um terceiro tipo de solo, cons-

    titudo por pedregulho e blocos de rocha,em mistura com solo areno-argiloso. Tais

    camadas encontram-se sempre em contato

    com a rocha gnissica-xistosa muitas ve-

    zes completamente alterada, sob os sedi-

    mentos argilosos ou, ento, como aluvies

    ou coluvies ao longo dos rios ao p da

    FIGURA2

    Esquema de

    corte geolgico

    (como

    visualizado

    nos anos 50)

    4 Idem, A Baixada Santista. As-pectos Geogrficos, So Pau-lo, Editora da Universidade deSo Paulo, 1965.

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    serra. Assim formou-se a configurao atual

    da Baixada, com suas vrzeas e mangues,

    geralmente localizados entre as encostas

    da serra e contornando morros remanes-

    centes das antigas ilhas da transgresso

    martima, e a faixa litornea, constituda

    por praias e terraos de areia pura.

    No captulo terceiro do livro em exame,

    Jos Pereira de Queiroz Neto e Alfredo

    Kupper estudam Os Solos da Baixada.

    Note-se, entretanto, que, agora, a palavra

    solo no tem mais o significado amplo

    geotcnico, abrangendo todas as camadas

    e depsitos no consolidados da crosta ter-

    restre. Solos, nesse captulo, referem-se s

    camadas superficiais suportes das plantas

    e que so estudados sob o ponto de vista dapedologia.

    Nas reas das praias e terraos areno-

    sos, prximas ou ao longo das praias lito-

    rneas, desenvolveram-se solos podzlicos,

    arenosos, com pouca matria orgnica,

    cidos e de baixa fertilidade. So reas no

    utilizveis sob o ponto de vista agrcola,

    porm agora densamente aproveitados

    como reas urbanas ou terrenos loteados

    de praias balneares.Por outro lado, os solos desenvolvidos

    nas reas entre as praias e o p da serra,

    sobre os sedimentos argilosos ou argilo-

    arenosos, so utilizveis agricolamente,

    com exceo das zonas de mangues, as

    quais, para serem utilizadas, necessitam de

    obras de saneamento. De fato, nessas reas

    existiam grandes bananais, como por exem-

    plo o que ocupava toda a rea atualmente

    ocupada pela Usina Siderrgica da Cosipa,

    em Piaagera. So solos orgnicos, cons-

    titudos por argilas e siltes orgnicos, s

    vezes turfosas e saturadas dgua, com

    camadas de areia fina semelhante das

    praias; ou camadas de argila plstica, satu-

    radas de consistncia rija, alto teor de car-

    bono e acidez elevada, os quais dificultam

    o seu aproveitamento agrcola. Entretanto,

    essas reas esto tambm sendo invalidadas

    por indstrias e suas vilas operrias, elevan-

    do-se o seu preo e assim impedindo outrosusos, seja agrcola ou de preservao.

    Dessa forma a Baixada Santista, man-

    tendo o seu carter histrico de porta e porto

    exportador e importador das terras paulistas

    do planalto, perdeu o carter que configu-

    rava seu aspecto de zona de plantaes

    tropicais. Pois foi nelas que, logo aps a

    descoberta, instalou-se o primeiro engenho

    de acar brasileiro, com suas plantaes

    de cana, as quais desapareceram totalmen-

    te, e, ainda recentemente, era sede de gran-

    des bananais, em plena extino.

    Com o desenvolvimento industrial de

    So Paulo, a partir do incio do sculo,

    Santos tornou-se a cidade balneria e de

    veraneio das famlias ricas ou remediadas

    paulistanas, o que evoluiu para o das resi-

    dncias secundrias em apartamentos ao

    longo das praias de Santos e Guaruj. Fi-

    nalmente toda a orla das praias da Baixadatornou-se acolhedora dos fins de semana

    do povo paulista. Enquanto isso, foram-se

    desenvolvendo as zonas industriais em tor-

    no de Cubato e Piaagera, com sua usina

    hidreltrica, sua refinaria de petrleo e plo

    petroqumico, sua usina siderrgica, sua in-

    dstria de fertilizantes; aglutinando em

    torno de si uma quantidade de indstrias

    anexas e vilas operrias, que tornaram a

    regio uma das mais poludas do mundo.Por outro lado, as docas de Santos expan-

    diram-se, com suas instalaes porturias,

    s quais vieram agregar-se uma srie de

    indstrias dependentes de exportao e

    importao. Dessa forma desenvolveu-se,

    a partir de zona porturia, subindo o estu-

    rio e expandindo-se para Vicente de Car-

    valho, do outro lado do canal, uma outra

    pujante zona industrial.

    Tambm o clima da Baixada foi exten-

    samente estudado por Elina de Oliveira

    Santos, concluindo ser esse um clima lito-

    rneo quente e mido, porm, sujeito a

    alternncias dirias da brisa martima com

    o vento quente vindo do interior. O regime

    de ventos, entre os quais predominam o

    vento sul frio e o vento este vindo do Atln-

    tico, porm com a incidncia espordica do

    incmodo vento noroeste, determina enor-

    memente as condies climticas. Contu-

    do, o vero quente, com temperaturasmximas prximas de 40oC, extremamen-

    te chuvoso, enquanto o inverno mais frio

    e muito menos chuvoso, porm no com-

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    pletamente seco, pois a precipitao mni-

    ma mensal de ordem de 60 mm, enquanto

    a mdia anual da ordem de 2.500 mm.

    Como j foi dito, contrastando com o

    carter orgnico e recente dos sedimentos

    da Baixada, os solos que recobrem as ro-

    chas gnissicas e micaxistos das encostas

    da Serra do Mar e dos morros litorneos

    tm sua camada superficial constituda por

    solos residuais ou coluviais laterticos, su-

    portes da mata atlntica, sobre espesso man-

    to de solos de alterao in situdas rochas

    locais, mantendo ainda a estrutura da ro-

    cha-madre. Essas coberturas so muito ins-tveis, mostrando, em vrios locais, evi-

    dncia de que esto em movimento de ras-

    tejo serra abaixo. Escorregamentos catas-

    trficos de terra do-se nos anos de maior

    intensidade de chuvas, nos meses de no-

    vembro a maro, quando a precipitao

    chuvosa supera cerca de 100 mm por dia.

    Foi o que aconteceu em 1928, no Monte

    Serrat em Santos (ver fotografia da p. 759

    da Geologia do Brasilde Oliveira e Leo-nardos), quando, aps chuvas violentas de

    maro, cerca de dois milhes de metros

    cbicos de terra deslizaram do alto do

    morro, justamente sobre um hospital, ma-

    tando um grande nmero de pessoas.

    Os detritos de tais escorregamentos vm

    acumular-se no sop da serra, formando os

    talus, que apesar de terem taludes suaves

    instabilizam-se durante as chuvas ou quan-

    do tm seus ps cortados por escavaes

    para fins de engenharia. Um exemplo bem

    estudado de um escorregamento de talus

    foi o que se deu detrs da Casa de Fora de

    Cubato, ocorrido na estao chuvosa de

    1947. Tal escorregamento tornou-se conhe-

    cido internacionalmente por ter sido estu-

    dado pelo prprio criador da Mecnica dos

    Solos, o prof. Karl Terzaghi (5).

    Nas primeiras noites de maro de 1953,

    durante chuvas intensas e ininterruptas, 60

    deslizamentos simultneos assolaram osmorros de Santos, infligindo perdas de vida

    e destruio de habitaes da populao

    mais pobres. Esses escorregamentos foram

    estudados em detalhes pelo Instituto de

    Pesquisa Tecnolgica de So Paulo (6).

    Um terceiro tipo de escorregamento, na

    Serra do Mar, so as avalanches que ocor-

    rem durante chuvas intensivas, as quais li-

    teralmente dissolvem as coberturas super-

    ficiais dos taludes, como aconteceu nas

    catastrficas ocorrncias da Serra de

    Caraguatatuba em 1967 e na das Araras, no

    estado do Rio, quase em seguida. So

    escorregamentos mltiplos e simultneos

    devidos s chuvas de enorme intensidade

    concentradas em reas restritas, com pero-

    dos de recorrncia de 700 a 2.000 anos, as

    quais produzem verdadeiras demolies

    hidrulicas. Os detritos liquefeitos desses

    escorregamentos vm depositar-se na Bai-xada, a vrios quilmetros de distncia dos

    taludes, deixando a escarpa descoberta,

    como se fosse por cicatrizes, em toda a rea

    da intensa precipitao atmosfrica.

    Um outro aspecto relacionado com as

    propriedades geotcnicas dos solos da Bai-

    xada Santista o dos recalques e desapru-

    mos dos edifcios altos de apartamentos,

    construdos ao longo da praia, a partir de

    aproximadamente os anos 40. Antes disso,os edifcios de Santos, geralmente funda-

    dos sobre a camada superficial de areia,

    no ofereciam problemas de fundaes

    pois, sendo de poucos andares, suas cargas

    no atingiam as camadas de argila mole,

    existente a cerca de 10 a 15 m de profundi-

    dade, abaixo da camada superficial de areia.

    Quando esses prdios passaram a ter mais

    de 10 andares, suas cargas comearam a

    comprimir camada subjacente de argila,

    fazendo aparecer o fenmeno de adensa-

    mento; isto , expulso da gua intersticial

    da argila, resultando em recalques que se

    procediam lentamente, ao correr do tempo.

    Um dos primeiros efeitos desastrosos dis-

    so foi o de um edifcio de 14 andares em

    que o recalque de um lado atingiu 85 cm,

    enquanto do outro ficou em 60 cm, com

    conseqente inclinao do prdio. Assim,

    tais recalques foram aparecendo em outros

    prdios, tornando-se visveis e preocupan-do os moradores. Alm disso observou-se

    que a construo de um prdio vizinho mais

    alto fazia inclinar o prdio menor. Houve

    5 K. Terzaghi, From Theory to

    Practice in Soil Mechanics, N.York, John Willey, 1960.

    6 M. Vargas e E. Pichler, Residu-al Soil and Rock Slides in San-tos (Brazil), Londres, Proc. 4o

    ICSMFE, 1957.

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    um caso constatado de um prdio que se

    inclinou para o vizinho da direita, quando

    esse foi construdo, e, depois, voltou ao

    prumo quando foi construdo outro prdio

    esquerda. Com o abuso da altura dos pr-

    dios apareceram casos em que se comeou

    a temer o perigo de colapso do edifcio. Um

    desses casos foi o de um edifcio de 18 an-

    dares, muito esbelto, desaprumado pela

    construo de um prdio vizinho, cuja so-

    luo e estabilizao foi um feito notvel

    da engenharia de fundaes paulista.

    A partir dessa poca o conhecimento

    geolgico, geogrfico e geotcnico da Bai-xada Santista tornou-se intenso, como re-

    sultado das investigaes cientficas e

    tecnolgicas quase todas relacionadas com

    obras de engenharia e de industrializao.

    Alm das obras de grandes instalaes in-

    dustriais que se realizaram desde ento, na

    Baixada, o projeto e a construo da Via

    dos Imigrantes, tanto no trecho da serra,

    como no da Baixada, vieram no s bene-

    ficiar-se desses conhecimentos, mas tam-bm ampli-los.

    No que se refere geologia e mecni-

    ca dos solos e das rochas tais amplos co-

    nhecimentos foram sumarizados nas con-

    tribuies apresentadas no simpsio So-

    los do Litoral de So Paulo, realizado em

    Santos em 1994. Os anais desse simpsio,

    publicados pela ABMS, vieram a se cons-

    tituir como uma sntese do estado dos co-

    nhecimentos geolgicos e geotcnicos so-

    bre a Baixada de Santos e da Serra de

    Cubato, alm de sobre o restante do litoral

    de So Paulo.

    Yociter Hasui, Jos Augusto Mioto e

    Norberto Morales (7) apresentaram, a esse

    simpsio, uma notvel atualizao dos co-

    nhecimentos sobre a Geologia do Pr-

    Cambriano no qual as antigas idias sobre

    a geologia e a geomorfologia da Serra de

    Cubato so retificadas, alm de expostos

    novos conhecimentos adquiridos sobre aquesto. interessante mencionar aqui o

    relato dos episdios da evoluo tectnica

    da Serra do Mar. Os dois primeiros deram-

    se em tempos pr-cambrianos e so res-

    ponsveis pela formao de dobras, juntas

    e falhas na rocha arqueana e de intruses de

    rochas granticas. O terceiro episdio o

    que corresponde aos movimentos de blo-

    cos, alamentos e abatimentos. A Bacia de

    Santos como a da Guanabara correspondem

    s zonas abatidas, enquanto a Serra de

    Cubato corresponde face dissecada de

    um soerguimento ao longo de uma falha

    correndo paralela costa, ao largo de San-

    tos. So processos ocorridos quando os

    continentes da frica e da Amrica do Sul

    separaram-se no final do Mesozico e in-

    cio do Cenozico. H ainda um quarto epi-

    sdio correspondente reativao de fa-

    lhas que se deram durante o Tercirio.Quanto geologia do Quaternrio, no

    litoral sul do Brasil, Kenitiro Suguiu e Louis

    Martin (8) apresentaram, ao simpsio de

    Santos, um interessantssimo trabalho,

    mostrando que os sedimentos das plancies

    litorneas foram depositados em dois even-

    tos: no Pleistoceno e no Holoceno, em

    ambientes marinhos rasos. Nesses eventos

    os nveis do mar estavam em posies di-

    ferentes. Admitindo que o nvel atual sejaO, no incio do Pleistoceno seria 20 a 25 m,

    enquanto o nvel mdio, no Holoceno, se-

    ria 4 m. No Pleistoceno, h cerca de 120.000

    anos, depositaram-se sobre a rocha altera-

    da ou seus detritos uma camada de argila e

    sobre ela areias marinhas. Desde ento o

    nvel do mar veio abaixando, provavelmen-

    te como resultado da ltima idade glacial,

    e foram-se formando cordes de areia

    medida que o nvel abaixava. Em seguida,

    vrios canais e baas foram sendo erodidos,

    at que o nvel do mar atingiu cerca de 100

    m abaixo do atual. Ento, j no Holoceno,

    h cerca de 15.000 anos, de novo o nvel,

    com o final da glaciao nos plos, voltou

    a subir, atingindo, h cerca de 5.000 anos,

    cerca de 4 m acima do nvel atual. Durante

    esse perodo os canais e baas erodidos an-

    teriormente foram sendo preenchidos com

    a atual argila mole da Baixada, que os au-

    tores chamam de sedimentos fluvio-lacunares, em contraposio s argilas

    anteriores, parcialmente erodidas, que eles

    chamam de transicionais. De 5.000 anos

    7 Y. Hasui, J. A. Mioto e N.Morales, Geologia do Pr-Cambriano, in Solos do Litoralde So Paulo, So Paulo, ABMS Ncleo Regional de So Pau-

    lo, agosto de 1985.8 K. Suguiu e L. Martin, Geolo-

    gia do Quaternrio, in Solosdo Litoral de So Paulo, SoPaulo, ABMS Ncleo Regio-nal de So Paulo, 1994.

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    para c o nvel do mar vem baixando.

    Com base nesses estudos, Faial Massad

    (9) veio explicar o fenmeno da existncia

    na Baixada de Santos de argilas rijas, em

    discordncia com as argilas moles mais

    superficiais. As rijas corresponderiam s

    chamadas de transicionais pelos gelo-

    gos, enquanto as moles so as fluvio-lacuna-

    res. Dessa forma, a idia do corte geolgi-

    co, concebido na poca dos anos 50, men-

    cionada anteriormente, teve de ser modifi-

    cada, no sentido de que, naquele corte, as

    camadas inferiores de argila, a cerca de 30

    m de profundidade, a partir do Rio Casquei-

    ro, na direo de Santos, devem ser enten-

    didas como rijas, em discordncia com os

    sedimentos superficiais mais recentes, cujaconsistncia mais branda.

    De tudo o que foi dito sobre as bases

    fsicas da Baixada Santista, em correlao

    com o seu estudo geolgico-geotcnico,

    visando melhorar seus meios de comuni-

    cao e transform-la numa regio inten-

    samente industrializada, creio ser possvel

    chamar a ateno sobre como se deu a evo-

    luo do seu desenvolvimento social e eco-

    nmico. De incio apareceram dois proble-mas relacionados com a necessidade de

    exportao e de transporte do caf produzi-

    do no planalto at o porto martimo. Para

    tanto, a engenharia ferroviria e porturia

    foi chamada e veio a recorrer, cada vez mais

    intensamente, pesquisa tecnolgica, a

    qual, por sua vez, medida que os proble-

    mas tornaram-se mais graves, veio a ne-

    cessitar do apoio de conhecimentos cient-

    ficos. O transporte e exportao de caf pau-

    latinamente foi suscitando o aparecimento

    de armazns de estocagem e de indstrias

    correlatas, as quais desenvolvem-se num

    grande parque industrial e no conseqente

    urbano de Santos e das cidades vizinhas.

    Mas para isso foi necessrio resolver pro-

    blemas tcnicos que exigiam estudos tec-

    nolgicos e, esses, investigaes cientfi-

    cas. Realizou-se, dessa forma, na Baixada

    Santista, uma interao entre a tecnologia

    e a cincia, fertilizando-se mutuamente,ambas suscitadas pela necessidade de re-

    solver problemas industriais e econmicos.

    Contudo, deve-se lembrar que todo esse

    desenvolvimento tcnico-cientfico e in-

    dustrial, talvez por falta de uma maior aten-

    o aos problemas ambientais, resultou em

    intensa poluio, principalmente na regio

    de Cubato, atingindo a prpria vegetao

    da serra e tornando essa regio uma das

    mais criticadas, sob o ponto de vistaambiental, do estado de So Paulo. de se

    convir, porm, que a soluo de tal proble-

    ma ambiental caber a maiores estudos ci-

    entficos e melhores solues tecnolgicas.

    9 F. Massad, Progressos Recen-tes dos Estudos sobre as Argi-las Quaternrias da BaixadaSantista, So Paulo, ABMS eABEF, agosto de 1985.