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    REVISTA USP, So Paulo, n.40, p. 26-31, dezembro/fevereiro 1998-9926

    Msica popular

    no sculo XXI:

    uma profeciaantecipada

    JOS RAMOS TINHORO

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    O sculo XXI, em matria de msica popular

    entendida como produo sonora destinada ao lazer ur-

    bano, normalmente transmitida por meios eletroe-

    letrnicos de divulgao , longe de constituir uma incg-

    nita, desponta no horizonte cultural deste final do segundo

    milnio como um futuro anunciado.

    Surgida no sculo XIX como resposta criativa a novas

    necessidades da vida social, conseqente do adensamento

    das populaes dos grandes centros (cada vez mais

    diversificadas em face da crescente diviso do trabalho, aps

    a Revoluo Industrial), a msica composta para consumo

    da gente das cidades ia ligar-se, desde logo, ao comrcio e

    indstria das diverses.

    O primeiro indicador da estreita vinculao estabe-

    lecida entre a produo de msica popular e as atividades

    manufatureiras e comerciais o aparecimento, em mea-

    dos do sculo XVIII, das oficinas de impresso de msica

    aberta e estampada em metal sob a direo de edito-

    res especializados, muitas vezes eles mesmos msicos,

    que revelavam sua vocao comercial na compra de direi-

    tos sobre obras alheias.

    Nada por coincidncia, esse negcio da msica sur-

    gia no mesmo momento em que, nos dois maiores cen-

    tros urbanos da Europa em Londres, nos ambientes

    fechados das tavernas, em Paris, nos tablados de barracas

    das Feiras de Saint Germain e Saint Laurent , comeavam

    a criar-se pelos fins do sculo XVIII os primeiros locais de

    sociabilidade urbana moderna. Era a novidade dos espa-

    os pblicos caracterizados pela democrtica composio

    do pblico, composto pela mistura de trabalhadores e

    gente das baixas e mdias camadas burguesas.

    Pois, como nesses locais de diverso coletiva, j pre-

    dominavam sobre as movimentadas atraes de circo e

    Jos Ramos Tinhoro

    crtico de msica eliteratura e autor de vrioslivros publicados no Brasile em Portugal sobre temasde cultura popular urbana.

    Atualmente trabalha naconcluso de dissertaosobre a imprensacarnavalesca no Brasil.

    art

    eecontem

    poraneidade

    Este texto foi publicado original-mente em O Livro da Profecia. OBrasil no Terceiro Milnio, volumeI, da Coleo Senado (Braslia,Senado Federal, 1997).

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    sketches teatrais os nmeros de canto e dan-

    a, desde 1794 um esperto ingls estende-

    ria imprensa editorial o interesse pela ex-

    plorao daquele tipo de negcio. E, as-

    sim, na esteira do sucesso das msicas dos

    glee clubs londrinos que mais tarde seri-

    am os halls na prpria Inglaterra, cafs-

    cantantes e cafs-concertos na Frana e

    saloons nos Estados Unidos , esse conhe-

    cedor do repertrio em voga nos harmonic

    meetings lana em livro a primeira colet-

    nea de letras de peas favoritas do The

    Crown and Anchor Tavern. E na folha-de-

    rosto do volumezinho de quase cem pgi-

    nas, sob o ttulo de The Words of the favorite

    pieces as performed at the Glee Club, held

    at The Crown and Anchor Tavern. Strand,

    compiled from their Library by J. Paul

    Hobler, apareciam citados por epgrafe

    estes dois versos esclarecedores da voca-

    o futura da indstria cultural na rea do

    lazer: [] we spent the social night,/ Still

    mixing profit with delight (l).

    O aparecimento da coletnea editada

    por esse J. Paul Hobler era o incio de um

    filo editorial que, embora podendo ser

    enquadrado na tradio dos cancioneirosde versos de romances impressos desde o

    sculo XVI em Portugal, vinha conferir a

    dignidade da letra impressa para as produ-

    es de modernos compositores popula-

    res, agora com seus nomes ligados con-

    dio de autores. Era o que ainda por aquele

    mesmo final dos Setecentos ia acontecer

    em Lisboa com o lanamento do primeiro

    volume da Viola de Lereno, em que se

    publicavam os versos das modinhas,

    lundus e cantigas de improviso do mulato

    brasileiro tocador de viola de cordas de

    arame Domingos Caldas Barbosa.

    A partir da segunda metade do sculo

    XIX, com o aparecimento do piano como

    instrumento obrigatrio dos sales, o re-

    pertrio do teatro musicado logo

    universalizado sob a forma de contribui-

    o parisiense nsia de diverso das ca-

    madas mdias das grandes cidades con-

    tribuiu para ativar o negcio das editorasde msicas. E, j agora, tambm para o

    comrcio de instrumentos musicais, pos-

    tos cada vez mais ao alcance das maiorias,

    inclusive no Brasil, onde o surgimento dos

    grupos de choro aliado tradio das ban-

    das de coreto espalhadas por todo o pas

    contribuam para ampliar o pblico das

    produes sonoras nas casas e nas ruas.

    a existncia desse mercado potencial

    que, excitado desde o fim do sculo XIX

    pela possibilidade da gravao de sons em

    cilindros pelo norte-americano Thomas

    Alva Edison, explicaria logo depois a ex-

    ploso comercial dos discos de gramofone,

    que vinham ampliar ainda mais o campo da

    difuso da msica popular, agora definiti-

    vamente posta ao alcance das maiorias

    mediante a compra de um pequeno apare-

    lho, que qualquer um fazia funcionar acio-

    nando uma manivela.A partir do lanamento, ao despontar

    do sculo XX, dos discos de msica brasi-

    leira gravados no Rio de Janeiro pelo

    introdutor da novidade das mquinas fa-

    lantes, o tcheco Frederico Figner, basta-

    vam os dizeres impressos nos selos para se

    comprovar que a nova indstria surgia sob

    o signo anunciador de algo novo na produ-

    o em srie de criaes musicais: a proprie-

    dade industrial multinacional dos fabrican-tes, garantida por patentes obtidas em vri-

    as partes do mundo, e expressa no prprio

    nome da empresa International Talking

    Machine.

    Transformadas, pois, a composio e a

    interpretao de msica popular em novas

    modalidades de produo industrial-comer-

    cial, o que em sua origem ainda pretendia

    representar a criao de artistas, poetas e

    msicos passou a constituir um artigo a mais

    destinado ao mercado. Os primeiros sinto-

    mas dessa mudana definitiva dar-se-iam

    no campo das relaes de trabalho, com o

    fim do amadorismo artstico atravs de

    profissionalizao dos cantores (solistas ou

    de coros), da ampliao do quadro de servi-

    os da msica (arregimentao de instru-

    mentistas em orquestras, bandas e grupos

    ou conjuntos), e ainda do surgimento de

    novas especialidades, como as de maestro-

    arranjador, diretor artstico e tcnicos deestdios de gravao.

    A partir desse momento, estava institu-

    da a vinculao necessria entre a criao

    1 A informao sobre esse volu-me inaugural dos folhetos decordel conhecidos no Brasil hmais de um sculo, depois porliras e jornais de modinhas,es t no livro dos inglesesHaymond Mander e JoeMirchenson,British Music Hall,2a ed., London, GB-GentryBooks, 1974, pp. 9-10.

    Na outra

    pgina, O

    Mestre de

    Msica, de J.

    Stern

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    artstica de msica, destinada ao lazer das

    novas camadas contemporneas do avano

    da urbanizao no mundo, e a tecnolgica

    das modernas indstrias dirigidas ao lazer, e

    que a esta altura envolviam no mais apenas

    o som com os discos ganhando novo im-

    pulso com o advento do rdio na dcada de

    1920 , mas as imagens do cinema falado

    e cantado, desde 1927, e da televiso a partir

    do fim da Segunda Guerra Mundial.

    Essa nova realidade ia ser responsvel

    por modificaes na essncia mesma do

    trabalho criativo da msica popular que,

    depois de assistir transformao da habi-

    lidade no exerccio de qualquer instrumen-

    to musical em servio profissional, veria o

    prprio produto das criaes de poetas ecompositores transformar-se de objeto de

    qualidade afervel pelas leis da esttica em

    artigo sujeito s leis do mercado.

    Essa mudana decisiva para a compre-

    enso da evoluo das criaes musicais

    englobadas sob a denominao genrica de

    msica popular seria sintetizada por este

    autor em seu livroHistria Social da M-

    sica Popular Brasileira, de 1990, em que

    j observava, referindo-se s conseqnci-as do avano tecnolgico na rea da inds-

    tria cultural:

    Como, porm, a msica assim produzida

    para reproduo mecnica (gramofones de

    cilindros ou discos, logo, programaes

    para pianos nos rolos de pianola) acelerou

    grandemente a pesquisa tecnolgica, a par-

    te material da produo musical tendeu a

    crescer (o cinema mudo ganhou som tico,

    o rdio fez ouvir a msica dos discos a dis-

    tncia, a televiso juntou o som imagem,

    e a gravao em fitas inclusive de

    videoteipe aumentou-lhe as possibilida-

    des com o advento do transistor), enquanto

    a parte artstica estacionou em seus elemen-

    tos iniciais: o autor da msica e seus intr-

    pretes (2).

    Ante tal realidade como mostraria

    ainda , a conseqncia lgica foi a mu-dana da prpria essncia do objeto da cri-

    ao artstica transformado em artigo so-

    noro dirigido ao mercado consumidor:

    Essa subordinao do artstico ao comer-

    cial ia explicar, afinal, no apenas a cres-

    cente transformao da msica popular

    fabricada para a venda (depois de obtida a

    massificao, basta produzir o que o povo

    gosta), mas a progressiva dominao do

    mercado brasileiro pela msica importada

    dos grandes centros europeus e da Amrica

    do Norte, sedes tambm das gravadoras

    internacionais e da moderna indstria de

    aparelhos eletroeletrnicos e de instrumen-

    tos de alta tecnologia (3).

    A estava, pois, anunciado o caminho que

    a criao e a produo de tal artigo industri-

    al-cultural de massa chamado de msica po-

    pular deveriam continuar a percorrer comnovas conseqncias prticas ainda desco-

    nhecidas entrado o sculo XXI.

    Dentro do princpio de que a mudana

    qualitativa na ordem das relaes entre cria-

    dores artsticos e indstria ocorreu de modo

    a transformar os primeiros em dependen-

    tes da segunda, no chega a constituir exer-

    ccio de futurologia prever que a tendn-

    cia, no novo sculo, ser a da participao

    cada vez menor da criao artstica indivi-dual e da participao viva de instrumen-

    tistas na produo de msica popular.

    Graas aos avanos na tecnologia dos

    sons digitalizados, a tendncia dos est-

    dios das grandes gravadoras transforma-

    rem-se em laboratrios de engenharia mu-

    sical, com os msicos intrpretes sendo

    substitudos pelo som computadorizado de

    sintetizadores polifnicos e politimbrais,

    samplers e sequencers da famlia dos MIDI

    (Musical Instruments Digital Interface).

    Tal engenharia criativa de sons

    computadorizados, alis, permitir ultra-

    passar as prprias possibilidades dos sons

    normalmente produzidos pelos instrumen-

    tos acsticos, mediante alterao de suas

    tessituras, atravs da ampliao, por exem-

    plo, de sua extenso, com a conseqente

    ampliao de seu mbito. Possibilidades

    tcnicas desse tipo, sobre implicar neces-

    sariamente dispensa de msicos e maes-tros-arranjadores nos estdios, permitiro

    ainda programar, atravs de novas combi-

    naes rtmicas, o lanamento de estilos

    2 Jos Ramos Tinhoro, HistriaSocial da Msica Popular Bra-sileira, Lisboa, Editorial Cami-nho, 1990, p. 196.

    3 Idem, ibidem.

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    emprego cada vez mais raro de msicos

    instrumentistas e, no campo cultural, a

    dessacralizao da criao artstica, com a

    transformao dos compositores em cola-

    boradores de tcnicos de programao de

    msica, a ser criada segundo as tendncias

    exigidas pelo mercado.

    Fora desse quadro geral dominante no

    cenrio da produo das msicas de massa

    (tornado inevitvel pelo crescente proces-

    so de concentrao, inerente ao modo de

    produo capitalista no estgio da alta

    tecnologia), restaro apenas, no sculo XXI,

    os ltimos vestgios da msica tradicional

    do mundo rural (cada vez mais contamina-

    do pelos modelos da mdia, como j acon-

    tece com a msica sertaneja) e, certamen-te, uma multiplicidade de nichos urbanos

    de produo local, conformados em sobre-

    viver fora do sistema.

    musicais caracterizados por um tipo de

    acompanhamento sonoro fora do alcance

    da participao humana.

    E como essas novidades se daro simul-

    taneamente com maiores avanos da

    tecnologia na rea da reproduo, de sons

    e imagens, a unificao dos sistemas de CD

    udio e vdeo CD dever originar a criao

    de um multiaparelho nico udio-vdeo-

    laser capaz de ao lado de um sem-nmero

    de outras funes ligadas aos recursos de

    telefonia e satlites permitir no apenas

    assistir transmisso de musicais progra-

    mados em laboratrio, mas admitir inter-

    relao entre emissor e receptor em nvel

    de realidade virtual.

    As conseqncias naturais de tais con-quistas tecnolgicas na rea do lazer das

    massas, com participao da chamada

    msica popular, sero, no campo prtico, o