001_comparato

13
Rev. TST, Brasília, vol. 79, n o 3, jul/set 2013 17 A PROTEÇÃO DO TRABALHO ASSALARIADO NO BRASIL * Fábio Konder Comparato ** A empresa capitalista sempre se caracterizou, desde a sua origem histórica na Baixa Idade Média europeia, pela sua completa submissão ao poder decisório definitivo dos titulares do capital. No decorrer dos séculos, aliás, essa relação de poder sofreu uma notável inversão ontológica: enquanto os trabalhadores e consumidores, dentro e fora da empresa, transformavam-se de pessoas em simples coisas, mais propriamente em mercadorias, o capital de certa forma desmaterializava-se, tornando-se uma pessoa jurídica. Em passagem famosa de sua obra máxima (De l’Esprit des Lois, livro XI, capítulo IV), Montesquieu lembrou a experiência eterna de que todo homem possuidor de poder tende a dele abusá-lo; ele vai, disse o ilustre pensador, até onde encontra limites. Pois bem, os principais limites ao exercício do poder empresarial capitalista não se encontram na natureza. Eles foram criados pela ordem jurídica a partir da segunda metade do século XIX. Eis a origem e razão de ser do Direito do Trabalho. Sucede, porém, que a eficácia desses limites jurídicos varia de país a país, conforme a mentalidade coletiva e os costumes sociais consolidados na História. No Brasil, a instituição que mais fundamente forjou essa mentalidade e construiu tais costumes foi, sem dúvida, a escravidão, que durou legalmente quase quatro séculos. Comecemos, pois, por refletir sobre essa realidade histórica. A HERANÇA ESCRAVOCRATA NO BRASIL No Ocidente, o trabalho assalariado surgiu durante a Baixa Idade Média, com o nascimento da economia capitalista. Até então, o trabalho humano, segun- * Palestra de abertura do 14º Curso de Formação Inicial de Magistrados, realizado pela Enamat – Escola Nacional da Magistratura do Trabalho, em Brasília, em 19 de agosto de 2013. ** Professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; doutor honoris causa da Universidade de Coimbra.

description

artigo

Transcript of 001_comparato

  • Rev. TST, Braslia, vol. 79, no 3, jul/set 2013 17

    A PROTEO DO TRABALHO ASSALARIADO NO BRASIL*

    Fbio Konder Comparato**

    Aempresa capitalista sempre se caracterizou, desde a sua origem histrica na Baixa Idade Mdia europeia, pela sua completa submisso ao poder decisrio definitivo dos titulares do capital. No decorrer dos sculos, alis, essa relao de poder sofreu uma notvel inverso ontolgica: enquanto os trabalhadores e consumidores, dentro e fora da empresa, transformavam-se de pessoas em simples coisas, mais propriamente em mercadorias, o capital de certa forma desmaterializava-se, tornando-se uma pessoa jurdica.

    Em passagem famosa de sua obra mxima (De lEsprit des Lois, livro XI, captulo IV), Montesquieu lembrou a experincia eterna de que todo homem possuidor de poder tende a dele abus-lo; ele vai, disse o ilustre pensador, at onde encontra limites.

    Pois bem, os principais limites ao exerccio do poder empresarial capitalista no se encontram na natureza. Eles foram criados pela ordem jurdica a partir da segunda metade do sculo XIX. Eis a origem e razo de ser do Direito do Trabalho.

    Sucede, porm, que a eficcia desses limites jurdicos varia de pas a pas, conforme a mentalidade coletiva e os costumes sociais consolidados na Histria. No Brasil, a instituio que mais fundamente forjou essa mentalidade e construiu tais costumes foi, sem dvida, a escravido, que durou legalmente quase quatro sculos.

    Comecemos, pois, por refletir sobre essa realidade histrica.

    A HERANA ESCRAVOCRATA NO BRASIL

    No Ocidente, o trabalho assalariado surgiu durante a Baixa Idade Mdia, com o nascimento da economia capitalista. At ento, o trabalho humano, segun-

    * Palestra de abertura do 14 Curso de Formao Inicial de Magistrados, realizado pela Enamat Escola Nacional da Magistratura do Trabalho, em Braslia, em 19 de agosto de 2013.

    ** Professor emrito da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo; doutor honoris causa da Universidade de Coimbra.

    TST 79-03.indb 17 24/10/2013 13:05:09

  • D O U T R I N A

    18 Rev. TST, Braslia, vol. 79, no 3, jul/set 2013

    do a origem semntica da palavra (tripalium: instrumento de tortura composto de trs paus), sempre foi uma situao degradante, ligada condio servil.

    A ideia de contratar trabalhadores livres mediante o pagamento de uma remunerao, em dinheiro ou em bens, comeou a ser difundida no seio da burguesia mercantil, isto , dos comerciantes que habitavam os burgos livres, fora do domnio feudal. Depois, tal prtica passou a ser imitada no campo, como forma de se corrigirem as deficincias da produo agrcola no sistema de servido de gleba. No quadro desse sistema, os camponeses eram adstritos a um trato de terra pertencente ao senhor feudal, devendo entregar a este, anu-almente, uma parcela do produto da lavoura.

    por isso que Hugo Grcio, no sculo XVI, referiu-se condio de trabalhador assalariado como servitus imperfecta ou servitus operis, em com-parao com a servitus glebae1. Com efeito, semelhana dos servos da gleba, os trabalhadores assalariados ficavam pessoalmente vinculados no pessoa do patro, mas ao estabelecimento onde serviam; sendo, portanto, alienados com este, quando de sua venda.

    At, porm, o advento da Revoluo Industrial, o trabalho assalariado envolveu um nmero insignificante de pessoas, em comparao com a servido da gleba e o trabalho escravo.

    Este ltimo passou a ser largamente utilizado pelo sistema de capitalismo mercantil, com a abertura do processo de colonizao em terras americanas, asiticas e africanas, a partir do sculo XVI. De qualquer forma, a escravido utilizada pelo sistema capitalista na era moderna foi bem diversa da que existiu no passado. Contrariamente s experincias escravocratas antigas, seu objetivo consistiu em fazer funcionar empresas de agronegcio e de minerao, voltadas para a exportao.

    De acordo com as estimativas dos historiadores, de 1492 a 1870, entre um mnimo de nove milhes e meio e um mximo de doze milhes e setecen-tos mil africanos foram transportados para o Novo Mundo, sendo que o Brasil recebeu cerca de 40% desse total.

    A persistncia do colossal trfico negreiro durante tanto tempo deveu-se ao fato de que os escravos africanos, desde meados do sculo XV, tornaram-se um aprecivel objeto de mercancia. Foram os portugueses os primeiros a descobrir que os cativos representavam uma disputada moeda de troca para a aquisio do ouro africano. Foram eles, tambm, que iniciaram o trfico

    1 GROTII, Hvgonis. De ivre belli ac pacis. Livro II, Cap. V, 30.

    TST 79-03.indb 18 24/10/2013 13:05:09

  • D O U T R I N A

    Rev. TST, Braslia, vol. 79, no 3, jul/set 2013 19

    transatlntico de seres humanos, logo seguidos pelos espanhis, holandeses, ingleses e franceses. O lucro obtido na aquisio de escravos para revenda era exorbitante, sendo certo que no Brasil o trfico negreiro esteve na origem de grandes fortunas2.

    Os quase quatro sculos de permanncia da escravido legal no Brasil produziram vrios efeitos negativos, que podem ser resumidos como segue:

    1. Desprezo geral das classes ricas pelo trabalho subordinado, em especial o trabalho fsico. Entre os trabalhadores manuais, esse desprezo consolidou-se no costume de jamais se procurar realizar um trabalho bem feito e acabado.

    2. Em contraste, prestgio das profisses liberais, consideradas ocupaes prprias e exclusivas das classes superiores, o que levou no Brasil considerao do doutorado acadmico como equivalente a um ttulo aristocrtico.

    3. Profundo preconceito racial. Os no brancos so, em princpio, por todos considerados como raas inferiores.

    4. Desprezo pelos pobres, tidos igualmente como seres inferiores. Incorporao desse sentimento de inferioridade na mentalidade coletiva dos prprios pobres, o que os levou a adotar, em relao aos patres e s autoridades polticas em geral, uma atitude de subservincia, so-mente rompida por espordicas exploses de protesto. Em contraste, a consagrao, como verdadeiros pais, dos patres e chefes polticos que protegem, ou fingem proteger, os trabalhadores e os pobres em geral.

    Isso explica por que o trabalho assalariado teve tantas dificuldades em ser reconhecido e protegido no Brasil. Na verdade, as primeiras leis sobre o trabalho assalariado surgiram na primeira metade do sculo XIX, em razo da vinda dos primeiros colonos europeus para trabalhar no campo: a Lei de 13 de setembro de 1830, que regulou os contratos de servios de brasileiros e estrangeiros, e a Lei n 108, de 11 de outubro de 1837, que deu providncias sobre os contratos de locao de servios de colonos.

    Foi somente a partir do incio do sculo XX, com o rpido aumento do nmero de trabalhadores europeus sobretudo italianos e espanhis, impor-tados para substituir a mo de obra escrava , que a condio dos assalariados comeou a ser levada a srio. Para tanto, muito contriburam as greves gerais

    2 Somente para os sculos XVI e XVII, cf. SALVADOR, Jos Gonalves. Os magnatas do trfico ne-greiro. So Paulo: Pioneira; EDUSP, 1981.

    TST 79-03.indb 19 24/10/2013 13:05:09

  • D O U T R I N A

    20 Rev. TST, Braslia, vol. 79, no 3, jul/set 2013

    operrias de 1907 e 1917, esta ltima iniciada em So Paulo e rapidamente propagada para o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul. Tal como sucedeu com as rebelies de escravos no passado, esses movimentos paredistas foram violentamente reprimidos.

    Para se ter uma ideia das condies de semiescravido em que se de-senvolvia poca o trabalho assalariado, basta considerar o fato de que entre as reivindicaes dos grevistas de 1917 constavam as seguintes: abolio do carter criminal das associaes sindicais; extino do trabalho de menores de 14 anos nas fbricas e oficinas; vedao do trabalho noturno para as mulheres e os trabalhadores menores de 18 anos; jornada de oito horas, quando ela era na generalidade de mais de 13 horas; e aumento em 50% do salrio por trabalho extraordinrio.

    Como sabido, tais pleitos s vieram a ser reconhecidos oficialmente a partir da Revoluo de 1930, mas a criao das associaes sindicais fez-se de cima para baixo, segundo o modelo fascista, o que at hoje mantm a organi-zao oligrquica dos sindicatos.

    Na verdade, a herana escravista persiste at hoje entre ns. Em outubro de 2011, a Organizao Internacional do Trabalho divulgou um relatrio em que consta haver cerca de 20 mil pessoas trabalhando no Brasil em condies anlogas s de escravos, sendo 81% delas negras. No mesmo relatrio, a OIT declara que quase 60% das pessoas encontradas nessa situao j haviam an-teriormente trabalhado como escravas.

    A atual incidncia da escravido no Brasil ocorre, sobretudo, de um lado, em domnios rurais ligados agroexportao, e, de outro lado, nas grandes me-trpoles, com a explorao de trabalhadores estrangeiros no setor de tecelagem.

    Alm disso, ainda como legado acerbo da escravido multissecular, podemos citar a persistncia do trabalho infantil, bem como, at h pouco, a deficiente proteo do trabalho domstico.

    Segundo dados do Censo de 2010, o nmero de crianas de 10 a 13 anos exploradas como trabalhadoras passou em todo o pas, entre 2000 e 2010, de 699 mil para 710 mil. Como se trata, a, de uma prtica ilegal e mesmo cri-minosa, no difcil imaginar que tais cifras oficiais estejam bem abaixo da realidade efetiva.

    Pode-se dizer, por outro lado, que at o sculo XX o trabalho domstico foi realizado no Brasil quase que s por escravos, segundo o modelo da anti-ga servido ancilar. Os poucos criados domsticos livres sempre foram tidos como semiescravos, bastando lembrar que a Constituio de 1824 (art. 92, III)

    TST 79-03.indb 20 24/10/2013 13:05:09

  • D O U T R I N A

    Rev. TST, Braslia, vol. 79, no 3, jul/set 2013 21

    negava o direito de voto aos criados de servir. O peso dessa tradio explica o fato de que os trabalhadores domsticos (mulheres em sua quase totalidade) s vieram a ter direitos oficialmente reconhecidos com a Constituio Federal de 1988, mas, ainda assim, em situao inferior dos demais trabalhadores, at o advento da Emenda Constitucional n 72, de 2 de abril de 2013.

    SUGESTES DE APERFEIOAMENTO DO DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO

    Nesse particular, proponho-me a discutir trs itens: a) o aperfeioamento das polticas pblicas relativas aos direitos econmicos, sociais e culturais; b) o aperfeioamento do nosso ordenamento jurdico trabalhista em relao ao direito internacional; e, finalmente, c) sugestes de aprimoramento do direito do trabalho brasileiro, no plano puramente interno.

    A A necessria coordenao das polticas pblicas relativas aos direitos econmicos e sociais

    No levantamento efetuado pela Organizao Mundial do Trabalho em 2010 sobre as polticas sociais em 184 pases, verificou-se que os trabalhadores brasileiros encontravam-se menos protegidos do que na mdia do conjunto dos pases, no apenas ricos, mas tambm emergentes. Entre outros fatos, constatou-se, por exemplo, que o Brasil figura entre os pases que menos protegem os trabalhadores contra o desemprego, ou seja, a declarao constitucional de que a ordem econmica e social tem por princpio a busca do pleno emprego (art. 170, VIII) tem vigncia meramente retrica.

    Essa situao de atraso, no meu entender, causada, antes de tudo, pela falta de coordenao da poltica trabalhista com o conjunto das demais polticas pblicas, relativas aos direitos econmicos, sociais e culturais.

    Com efeito, nunca demais assinalar que a proteo do trabalhador depende, primordialmente, da existncia de uma poltica pblica, isto , de um programa de ao estatal, elaborado com base em um planejamento a mdio e longo prazo, sendo incontestvel que, no quadro desse planejamento, a poltica trabalhista deve estar coordenada a todas as demais polticas pblicas, relativas aos direitos econmicos, sociais e culturais.

    Tomemos como exemplo o direito ao trabalho, constante da Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948 (art. XXIII), e do art. 6 do Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais de 1966, ratificado

    TST 79-03.indb 21 24/10/2013 13:05:09

  • D O U T R I N A

    22 Rev. TST, Braslia, vol. 79, no 3, jul/set 2013

    pelo Brasil. Ele diz respeito no apenas busca do pleno emprego no campo do trabalho assalariado, mas tambm realizao das condies socioeconmicas indispensveis para que cada pessoa possa dedicar-se a um trabalho autnomo de sua preferncia. evidente que esse objetivo somente ser alcanado por meio de uma poltica pblica abrangente e duradoura. Algo de semelhante sucede em matria de adequada proteo contra acidentes do trabalho, ou molstias profissionais. Por outro lado, como implementar uma poltica de formao pro-fissional de trabalhadores sem um sistema desenvolvido de educao pblica?

    No por outra razo, alis, que os direitos fundamentais do trabalhador vm declarados na Constituio de 1988 no Captulo II do Ttulo II, consagra-do aos direitos sociais, juntamente com o direito educao, alimentao, moradia, ao lazer, segurana, previdncia social, maternidade, infncia e assistncia social. Da mesma forma no plano internacional, o conjunto dos direitos econmicos, sociais e culturais objeto do j citado Pacto Internacional de 1966, aprovado pela Assembleia Geral das Naes Unidas.

    de elementar evidncia, com efeito, que a adequada proteo da pessoa humana no mercado de trabalho depende no s do reconhecimento de direitos propriamente trabalhistas, mas tambm do direito proteo da sade, do direito educao, cultura e ao lazer; do direito a uma justa previdncia social, alm do reconhecimento de outros direitos sociais no previstos explicitamente na Constituio, como a existncia de um adequado sistema de transporte pblico urbano.

    Ora, entre ns, ainda como herana maldita da escravido, os direitos socioeconmicos fundamentais dos estratos pobres da populao sempre foram concedidos pelas autoridades pblicas caso a caso, em geral na sequncia de movimentos de protesto, quando no foram outorgados por alguns governantes de ndole populista como meros favores polticos.

    Se quisermos, portanto, avanar no rumo de uma digna proteo dos trabalhadores neste pas, deveramos iniciar pela reforma profunda de nossa estrutura estatal, instituindo rgos de previso e planejamento autnomos, em relao aos Poderes clssicos do Estado, notadamente em matria de direitos econmicos, sociais e culturais. Tais rgos seriam compostos no apenas por agentes pblicos, mas tambm por representantes de empresrios e trabalha-dores, e sua principal funo consistiria na elaborao de planos de mdio e longo prazo, a serem aprovados pelo Congresso Nacional, sendo sua execuo controlada pelo governo federal.

    TST 79-03.indb 22 24/10/2013 13:05:09

  • D O U T R I N A

    Rev. TST, Braslia, vol. 79, no 3, jul/set 2013 23

    B O aperfeioamento do direito do trabalho brasileiro em relao ao direito internacional

    No plano da adequao do nosso direito do trabalho s normas interna-cionais, pem-se duas questes relevantes. A primeira delas concerne posio, no quadro do nosso ordenamento jurdico, das convenes internacionais do trabalho ratificadas pelo Congresso Nacional. A segunda diz respeito aplicao imediata de convenes dessa natureza pelo Poder Judicirio, sem a exigncia de lei regulamentar.

    Tradicionalmente, nossas Constituies dispem que a especificao dos direitos e garantias fundamentais no exclui outros direitos e garantias, decorrentes do regime e dos princpios por elas adotados. A Constituio de 1988, em disposio inovadora, acrescentou aos direitos e garantias por ela especificados, os que forem objeto de tratados internacionais em que o Estado brasileiro seja parte (art. 5, 2), ou seja, em boa lgica, os tratados interna-cionais sobre direitos humanos que vinculam o Brasil, incluindo, portanto, as convenes internacionais sobre direitos trabalhistas, equiparam-se s normas constitucionais.

    Assim dispem, alis, vrias outras Constituies promulgadas na segun-da metade do sculo XX, como, por exemplo, a alem de 1949, a portuguesa de 1976, a guatemalteca de 1985, a nicaraguense de 1987 e a chilena de 1989.

    Em dezembro de 2004, contudo, a Emenda Constitucional n 45 introdu-ziu mais um pargrafo ao art. 5 (o atual 3), para especificar que os tratados e convenes internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por trs quintos dos votos dos respectivos membros, sero equivalentes s emendas constitucionais.

    A contradio entre essas duas disposies constitucionais flagrante. Pelo disposto no 2 do art. 5, os tratados internacionais sobre direitos hu-manos, aceitos pelo Brasil, adquirem de pleno direito um nvel constitucional. Conforme determinado pela Emenda Constitucional n 45, todavia, somente adquirem esse nvel os tratados ratificados pelo Congresso Nacional, segundo o procedimento prprio de adoo das emendas constitucionais.

    Acontece que a norma do 2 do art. 5 permanece em vigor, pois ela no foi revogada pela Emenda Constitucional n 45. Em consequncia, a nica interpretao admissvel para o disposto no atual 3 que a regra procedi-mental a contida passou a aplicar-se, to somente, a partir da promulgao da citada Emenda, no afetando a interpretao dos tratados internacionais de direitos humanos anteriormente ratificados pelo Congresso Nacional. Ora, a

    TST 79-03.indb 23 24/10/2013 13:05:09

  • D O U T R I N A

    24 Rev. TST, Braslia, vol. 79, no 3, jul/set 2013

    ltima conveno da OIT adotada pelo Brasil foi a de n 185, em 2003, sobre os documentos de identidade da gente do mar, ou seja, no campo do direito do trabalho ainda no houve aplicao do disposto no novo art. 5, 3, da Constituio.

    De qualquer forma, a partir da promulgao da Emenda Constitucional n 45, os tratados internacionais de direitos humanos no referendados pela forma por ela prescrita passariam a valer como normas ordinrias e no como disposies constitucionais. O que significaria poderem eles ser suprimidos ou enfraquecidos pela edio de uma lei posterior.

    Ora, essa concluso hermenutica no pode a todas as luzes ser admitida, pois ela viria ferir frontalmente o princpio fundamental da irrevocabilidade dos direitos humanos. O fundamento, em ltima instncia, para a vigncia de tais direitos a convico, longa e largamente estabelecida na comunidade das naes, de que a dignidade da condio humana exige o respeito a certos bens ou valores ticos em qualquer circunstncia, ainda que no positivados no ordenamento estatal, ou em documentos normativos internacionais.

    Reconhecendo essa grande verdade, a Conveno de Viena sobre o Di-reito dos Tratados de 1969 assim estatuiu em seu Artigo 53:

    nulo um tratado que, no momento de sua concluso, conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente Conveno, uma norma imperativa de Direito Internacional geral uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogao permitida e que s pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.

    Pretender que um jus cogens dessa natureza no exista no direito interno atribuir soberania estatal uma dimenso aberrante do princpio do Estado de Direito, pois, segundo este, nenhum rgo estatal, nem mesmo o prprio povo, titular da soberania democrtica, pode se colocar acima do direito. Hoje, a conscincia jurdica universal reconhece que os direitos humanos no so criados, mas simplesmente reconhecidos e declarados pelos Estados, no plano interno ou internacional. Em tais condies, os direitos humanos se impem, pela sua prpria natureza, no s aos Poderes Pblicos constitudos em cada Estado, mas tambm a todos os Estados no plano internacional, e at mesmo ao prprio Poder Constituinte, Organizao das Naes Unidas e s organi-zaes regionais de Estados.

    TST 79-03.indb 24 24/10/2013 13:05:10

  • D O U T R I N A

    Rev. TST, Braslia, vol. 79, no 3, jul/set 2013 25

    Dessa sua natureza de jus cogens universal deriva o princpio da irre-vogabilidade dos direitos fundamentais, declarados tanto no direito positivo interno como em tratados internacionais.

    Entendo, por conseguinte, que nenhuma espcie de direito humano, objeto de tratado internacional ratificado pelo Congresso Nacional anterior-mente promulgao da Emenda Constitucional n 45, pode ser suprimida ou substancialmente enfraquecida por norma posterior, interna ou internacional.

    Com base nesse mesmo princpio, tive ocasio de me manifestar no sen-tido da ilegitimidade de uma denncia de tratado internacional sobre direitos humanos3. Lembro, a propsito, que o Brasil j denunciou duas convenes aprovadas no mbito da Organizao Internacional do Trabalho, as quais havia ratificado: a Conveno n 110, de 1958, sobre o Emprego dos Trabalhadores em Fazendas; e a Conveno n 158, de 1962, sobre o Trmino da Relao de Trabalho por Iniciativa dos Empregados.

    A segunda questo referente adequao do nosso direito laboral s normas internacionais concerne forma de aplicao no Brasil das convenes internacionais do trabalho.

    A esse respeito, dispe a Constituio Federal no 1 do seu art. 5 que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tm aplicao imediata; vale dizer, sua eficcia concreta independe da edio de normas regu-lamentares. Em tais condies, os rgos da Justia do Trabalho so plenamente legitimados a aplicar diretamente as convenes internacionais definidoras de direitos e garantias trabalhistas, ainda que tal aplicao no seja requerida pelas partes em um processo, ou pelo Ministrio Pblico do Trabalho.

    C Aperfeioamentos desejveis do direito do trabalho brasileiro no plano interno

    Como ltimo tpico desta exposio, passo a discutir outras questes referentes ao aperfeioamento interno do nosso direito do trabalho e da atuao da magistratura do trabalho.

    Novo regime repressivo aos crimes contra trabalhadores

    Em primeiro lugar, a ocorrncia de crimes contra a pessoa do trabalhador enquanto tal.

    3 Cf. COMPARATO, Fbio Konder. A afirmao histrica dos direitos humanos. 8. ed. So Paulo: Saraiva, 2013. p. 80.

    TST 79-03.indb 25 24/10/2013 13:05:10

  • D O U T R I N A

    26 Rev. TST, Braslia, vol. 79, no 3, jul/set 2013

    Como j lembrei, a escravido ainda no foi de todo eliminada em nosso pas. Desnecessrio assinalar que se trata de prtica a ser reprimida sem con-cesses. Ora, isso implica a cominao de penas adequadas a todos os autores de tais delitos, vinculada ao eficiente funcionamento do aparelho judicirio.

    Entendo, assim, que, no concernente no s ao crime definido no art. 149 do Cdigo Penal (reduo condio anloga de escravo), mas tambm aos delitos capitulados nos arts. 197 e 198 do mesmo Cdigo (atentado contra a liberdade de trabalho e atentado contra a liberdade de contrato de trabalho), o legislador deveria ampliar o rol dos autores, a exemplo do disposto na Lei n 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que estabeleceu sanes penais e adminis-trativas para condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Nessa Lei, com efeito, a autoria dos crimes foi estendida ao diretor, administrador, membro de conselho e de rgo tcnico, auditor, gerente, preposto ou mandatrio de pessoa jurdica que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prtica, quando podia agir para evit-la (art. 1). Alm disso, quebran-do inveterado dogma do direito penal, a citada Lei reconheceu igualmente a responsabilidade criminal das pessoas jurdicas, nos casos em que a infrao seja cometida por deciso de seu representante legal ou contratual, ou de seu rgo colegiado, no interesse ou benefcio da sua entidade.

    Acontece que a ampliao da responsabilidade criminal, por si s, no ser uma medida bastante para reprimir adequadamente os delitos contra tra-balhadores. indispensvel, ainda, tornar mais eficiente o sistema judicirio.

    Nesse sentido, parece-me recomendvel transferir para a Justia do Tra-balho e o Ministrio Pblico do Trabalho a competncia relativa aos processos referentes aos crimes acima indicados, bem como todos os outros delitos contra a organizao do trabalho, capitulados no Ttulo IV da Parte Especial do Cdigo Penal. Tais instituies, pela sua prpria natureza, so muito mais aptas a atuar nesse campo, do que o Ministrio Pblico e a Justia dos Estados.

    O carter antirrepublicano da greve nos servios pblicos

    Se a prestao de servios pblicos constitui um dever do Estado e se exerce diretamente em benefcio do povo, a transposio nessa rea do direito de greve, conforme previsto no art. 37, inciso VII, da Constituio Federal, representa uma evidente distoro do princpio republicano, segundo o qual o bem comum do povo que os romanos denominavam justamente res publica sobreleva qualquer espcie de interesse particular, mesmo do prprio Estado.

    Tradicionalmente, a greve uma garantia fundamental dos trabalhadores, para proteo de seus direitos contra o empregador. Ora, na relao de empre-

    TST 79-03.indb 26 24/10/2013 13:05:10

  • D O U T R I N A

    Rev. TST, Braslia, vol. 79, no 3, jul/set 2013 27

    go relativa a servio pblico, empregador no o povo, mas, sim, o Estado, ou a empresa concessionria da prestao do servio. No obstante, o povo o principal prejudicado pela paralisao do servio pblico, em manifesta violao do princpio republicano, segundo o qual o bem comum de todos sobreleva quaisquer interesses particulares: de indivduos, grupos, classes ou corporaes profissionais.

    J em si mesma, alis, a prestao de servio pblico mediante concesso administrativa a empresas particulares revela-se dificilmente compatvel com o princpio republicano, uma vez que em regime capitalista a busca do lucro empresarial prevalece, logicamente, sobre a realizao do bem comum do povo.

    imperioso, por conseguinte, substituir a greve por outras formas de garantia dos direitos dos trabalhadores. Por exemplo, a correo inflacionria de vencimentos ou salrios de pleno direito, em perodos fixados por lei, alm da obrigatria arbitragem em curto prazo dos conflitos de trabalho no servio pblico, por meio de comisses compostas de representantes das partes em conflito, sem prejuzo da deciso judicial em definitivo.

    Participao nos lucros e na gesto da empresa empregadora

    Em seu art. 7, inciso XI, a Constituio Federal declara como direito dos trabalhadores participao nos lucros, ou resultados, desvinculada da re-munerao, e, excepcionalmente, participao na gesto da empresa, conforme definido em lei.

    Ainda a, a nossa Carta Constitucional seguiu a velha tradio de decla-raes normativas meramente retricas ou ornamentais, sem nenhuma vigncia efetiva. A regulamentao do dispositivo constitucional s veio a ocorrer com a Lei n 10.101, promulgada em 19 de dezembro de 2000 12 anos aps a entrada em vigor da Constituio! e, ainda assim, to s no tocante parti-cipao nos lucros.

    Pelo disposto na citada Lei, a participao dos empregados nos lucros ou resultados da empresa empregadora ser objeto de negociao. Ora, sabendo-se, como assinalei desde o incio desta exposio, que na empresa capitalista todo poder pertence aos donos do capital, e que nenhum titular de poder, em qualquer setor social, dele abre mo voluntariamente, bvio que submeter negociao o direito constitucional dos trabalhadores participao nos lucros empresariais significa como a realidade bem o demonstrou a negao pura e simples desse direito.

    No h a menor dvida de que nos deparamos, a, com um autntico descumprimento de preceito fundamental, passvel de correo mediante o

    TST 79-03.indb 27 24/10/2013 13:05:10

  • D O U T R I N A

    28 Rev. TST, Braslia, vol. 79, no 3, jul/set 2013

    instrumento judicirio previsto no art. 102, 1, da Constituio Federal. Com efeito, todos os incisos do art. 7 do texto constitucional dizem respeito a direitos fundamentais dos trabalhadores, isto , direitos humanos reconheci-dos e declarados constitucionalmente. Nessa condio, tais direitos devem ser integralmente respeitados por todos, a comear pelos Poderes Pblicos.

    Poder-se-ia, a rigor, excluir da obrigatoriedade dessa participao laboral nos lucros apenas as pequenas empresas, tais como definidas pelo IBGE, ou seja, tratando-se de indstrias, as que possuem menos de 100 empregados, ou, no caso das empresas comerciais ou de servios, aquelas com menos de 50.

    O ideal, portanto, nesse particular, seria a reforma do dispositivo cons-tante do art. 7, XI, da Constituio Federal, a fim de que suas condies de aplicao fossem explicitamente declaradas, ficando claro, em qualquer hip-tese, que esse direito fundamental dos trabalhadores no pode ser objeto de negociao, como dispe esdruxulamente a Lei n 10.101.

    J quanto participao dos trabalhadores na gesto das empresas determinada como medida excepcional no mesmo dispositivo da Constituio , a ausncia de regulamentao por lei aps quase um quarto de sculo da entrada em vigor da Constituio representa, indiscutivelmente, uma grave omisso do Poder Legislativo, passvel de julgamento por meio de ao direta de inconstitucionalidade, prevista no art. 103, 2, do texto constitucional.

    De qualquer forma, poder-se-ia aproveitar a necessria reforma da nor-ma constante do art. 7, inciso XI, do texto constitucional, de modo a impor a participao dos trabalhadores na gesto de todas as empresas mdias e gran-des, segundo o modelo da Mitbestimmung vigente na Repblica Federal da Alemanha desde 1976, e cujos benficos resultados para a economia daquele pas j foram amplamente demonstrados.

    CONCLUSO

    Com esta ltima considerao, pe-se na verdade toda a prospectiva histrica do direito do trabalho.

    Ele nasceu e desenvolveu-se, como assinalado, em estreita vinculao com o sistema capitalista, sob a forma de uma limitao ao poder empresarial, que sempre tendeu ao absolutismo. Acontece que o capitalismo no apenas um sistema econmico, mas uma vera e prpria civilizao, isto , uma forma de

    TST 79-03.indb 28 24/10/2013 13:05:10

  • D O U T R I N A

    Rev. TST, Braslia, vol. 79, no 3, jul/set 2013 29

    organizao global da vida em sociedade4. Essa civilizao, a primeira e nica de mbito mundial em toda a Histria, j comea a dar sinais inequvocos de decadncia, e tende a ser superada a longo prazo por uma civilizao humanista, na qual, entre outras caractersticas, o trabalho, em qualquer de suas dimen-ses, ser efetivamente respeitado como inequvoca manifestao da dignidade humana. Em tais condies, a organizao empresarial do futuro j no ser dominada pelo capital, mas assumir feies comunitrias, passando a empre-sa privada a pertencer em comum a todos os seus colaboradores, e a empresa pblica a ser diretamente controlada pelos representantes do povo soberano.

    em vista desse porvir que devemos todos atuar, de modo consciente e coordenado.

    Chegamos assim concluso paradoxal de que o futuro do direito do trabalho aponta, indiscutivelmente, para o seu desaparecimento.

    4 Tratei especificamente do assunto em: A civilizao capitalista: para entender o mundo em que vivemos. So Paulo: Saraiva, 2013.

    TST 79-03.indb 29 24/10/2013 13:05:10