professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  ·...

40
A didática desenvolvimental e o currículo de formação profissional de professores: a articulação entre o conhecimento pedagógico-didático e o conhecimento disciplinar. José Carlos Libâneo Pontifícia Universidade Católica de Goiás Resumo O texto aborda contribuições da didática desenvolvimental para compreensão das relações entre o conhecimento pedagógico e o conhecimento disciplinar na formação de professores. Argumenta-se, desde a perspectiva da teoria histórico-cultural, em favor da necessária integração entre a didática e a epistemologia das disciplinas ensinadas de modo a estabelecer a intersecção entre a formação disciplinar e a formação pedagógica. Ao final, são propostas indicações de aprofundamento do conteúdo da didática pondo em relevo as relações necessárias entre o plano epistemológico da ciência ensinada, o plano pedagógico-didático e o plano das práticas socioculturais, inclusive para repensar os formatos curriculares da formação de professores. Palavras-chave: didática desenvolvimental; conhecimento pedagógico e conhecimento disciplinar; teoria histórico- cultural; currículo de formação de professores; Developmental didactic and curriculum of professional teacher education Abstract The text discusses contributions of developmental didactic for understanding the relationships between pedagogical knowledge and disciplinary knowledge in teacher education. It is argued from the perspective of cultural-historical theory in favor of the necessary integration between didactics and epistemology of the disciplines so as to establish the intersection of disciplinary formation and pedagogical formation. Finally, indications are proposed to deepen the content of didactic while emphasizing the necessary relationships between the epistemological plan of science taught, the pedagogical-didactic plan and the socio-cultural practices plan, including rethinking the curriculum of teacher education formats. 1

Transcript of professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  ·...

Page 1: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

A didática desenvolvimental e o currículo de formação profissional de professores: a articulação entre o conhecimento pedagógico-didático e o conhecimento disciplinar.

José Carlos LibâneoPontifícia Universidade Católica de Goiás

Resumo

O texto aborda contribuições da didática desenvolvimental para compreensão das relações entre o conhecimento pedagógico e o conhecimento disciplinar na formação de professores. Argumenta-se, desde a perspectiva da teoria histórico-cultural, em favor da necessária integração entre a didática e a epistemologia das disciplinas ensinadas de modo a estabelecer a intersecção entre a formação disciplinar e a formação pedagógica. Ao final, são propostas indicações de aprofundamento do conteúdo da didática pondo em relevo as relações necessárias entre o plano epistemológico da ciência ensinada, o plano pedagógico-didático e o plano das práticas socioculturais, inclusive para repensar os formatos curriculares da formação de professores.

Palavras-chave: didática desenvolvimental; conhecimento pedagógico e conhecimento disciplinar; teoria histórico-cultural; currículo de formação de professores;

Developmental didactic and curriculum of professional teacher education

Abstract

The text discusses contributions of developmental didactic for understanding the relationships between pedagogical knowledge and disciplinary knowledge in teacher education. It is argued from the perspective of cultural-historical theory in favor of the necessary integration between didactics and epistemology of the disciplines so as to establish the intersection of disciplinary formation and pedagogical formation. Finally, indications are proposed to deepen the content of didactic while emphasizing the necessary relationships between the epistemological plan of science taught, the pedagogical-didactic plan and the socio-cultural practices plan, including rethinking the curriculum of teacher education formats.

Keywords: developmental didactic, pedagogical knowledge and disciplinary knowledge; cultural-historical theory; teacher education curriculum;

1. Considerações iniciais

A didática está no centro da formação profissional de professores como

disciplina pedagógica e campo de investigação, cujo conhecimento, ao lado das

didáticas disciplinares, é requisito de exercício profissional. Ela fornece os marcos

teóricos e conceituais que fundamentam os saberes profissionais a serem mobilizados

para a ação docente de modo a articular na formação profissional a teoria e a prática.

Embora alvo de críticas e menosprezo por setores do campo acadêmico em meio aos

embates teóricos no campo das ciências humanas e da educação desde os anos 1980, a

didática constitui-se hoje como área de investigação consolidada, haja vista a expressivo

1

Page 2: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

número de publicações envolvendo questões teóricas e epistemológicas como a natureza

do processo de ensino-aprendizagem, a relação com a epistemologia das disciplinas, a

articulação entre a didática e a pesquisa cultural, aproximações interdisciplinares, os

saberes docentes, bem como questões do exercício docente como o ensino de

disciplinas, a diversidade sociocultural, a relação com as tecnologias digitais, a relação

teoria e prática na formação inicial e continuada (entre outros, OLIVEIRA, 1992, 1997,

2011; CANDAU 2009, 2011a, 2011b, 2011c; PIMENTA, 1997, 2010; LIBÂNEO,

2008, 2010a, 2010b, 2011a; VEIGA, 1999a, 1999b, 2010, 2011; BEHRENS, 2006;

ANDRÉ, 1995, 1997; MASETTO, 2003; ANASTASIOU E ALVES, 2006; FRANCO,

2010). Comprova, também, a solidez do campo investigativo a realização há mais de 30

anos dos encontros de didática e práticas de ensino, a par da iniludível presença da

disciplina praticamente em todos os cursos de licenciatura do país.

Os docentes e pesquisadores dessa disciplina não podem desconsiderar, no

entanto, a pertinência de algumas críticas que lhe são imputadas: a manutenção de uma

visão prescritiva e instrumental, a debilidade teórica do seu conteúdo, sua separação dos

conteúdos específicos, a insuficiência do seu ensino em capacitar efetivamente os

futuros professores para as tarefas de sala de aula. Além disso, recentes estudos

mostram que a considerável produção acadêmica não tem sido capaz de produzir

mudanças significativas nos cursos de formação inicial e nas ações de formação

continuada (GATTI E NUNES, 2009; LIBÂNEO, 2010). Outra questão crucial tem sido

a profusão de posições no meio acadêmico, nas associações científicas e no âmbito das

políticas educacionais oficiais acerca dos objetivos e formas de funcionamento da

escola pública levando, frequentemente, a profundos desacordos quando não de

dispersão, em relação aos objetivos da educação. Tal fato, ainda que expresse a

variedade de conexões da educação com problemas contemporâneos, reflete-se em

diferentes significados de “qualidade de ensino”, com evidente repercussão nos

objetivos e nos formatos curriculares da formação de professores e no processo de

ensino-aprendizagem, vindo a atingir diretamente o conteúdo da didática e seu papel na

formação de professores. Mencione-se, por exemplo, a forte influência de organismos

internacionais na política educacional brasileira levando à institucionalização do

currículo de resultados nas escolas públicas num contexto de políticas de proteção social

à pobreza em que as escolas se prestam mais a ações acolhimento social do que à

formação intelectual dos alunos e à adequação a ajustes econômicos globais (YOUNG,

2

Page 3: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

2011; NÓVOA, 2009; EVANGELISTA, 2013; LIBÂNEO, 2012, 2014). Nesse modelo

de currículo resta pouco lugar para a conteúdos significativos, métodos e procedimentos

de ensino de formação de conceitos e desenvolvimento mental, desenvolvimento global

da personalidade já que as práticas escolares acabam se reduzindo à preparação dos

alunos para responderem testes padronizados

É relevante, portanto, investigar o lugar da didática. Uma análise do seu papel na

formação de professores, especialmente no que se refere aos saberes docentes e às

formas de organização curricular dessa formação supõe uma tomada de posição sobre

objetivos e formas de organização da escola. A compreensão trazida neste texto é de

que a escola não é nem meramente lugar de provimento de conhecimentos instrumentais

e imediatistas nem somente de acolhimento da diversidade social e integração social dos

pobres. Na visão da teoria histórico-cultural criada por Vigotski, o papel da educação e

do ensino é o de prover aos alunos o ambiente social de apropriação da cultura e da

ciência acumuladas social e historicamente, como condição para seu desenvolvimento

cognitivo, afetivo e moral. Para isso, a escola cumpre sua função social promovendo e

ampliando o desenvolvimento das capacidades cognitivas dos alunos por meio dos

conteúdos, e a formação da sua personalidade, organizando a atividade de

aprendizagem. Desse modo, faz-se imprescindível a intervenção pedagógico-didática do

professor, operando a mediação didática das relações do aluno com os objetos de

conhecimento. E como formar os professores para essas tarefas? Se o papel das escolas

é contribuir para o desenvolvimento das capacidades intelectuais dos alunos por meio

dos conteúdos da ciência, da cultura, da arte, entre os saberes docentes do professor

destacam-se dois, intimamente articulados: o conhecimento do conteúdo e o

conhecimento pedagógico1. do conteúdo.

Desse modo, o texto aborda as contribuições da didática desenvolvimental para uma

compreensão diferenciada das relações entre o conhecimento pedagógico e o

conhecimento disciplinar na formação de professores. A discussão tem origem na

problemática recorrente na investigação da organização curricular dos cursos de

formação de professores de separação entre a didática e a epistemologia, conteúdos e

metodologia das disciplinas específicas da Educação Básica, cuja consequência é a

dissociação entre a formação em conteúdos específicos e a formação pedagógica para a

1 Para não entrar no debate das diferenças conceituais entre pedagogia e didática, considera-se neste texto que a expressão “conhecimento pedagógico” necessariamente o conhecimento didático, conforme o entendimento de que a pedagogia é um campo disciplinar mais amplo ao qual se subordina a didática.

3

Page 4: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

docência. Argumenta-se, no texto, na perspectiva da teoria histórico-cultural e, em

particular, da teoria do ensino desenvolvimental, em favor da necessária integração

entre a didática e a epistemologia das disciplinas ensinadas de modo a estabelecer a

intersecção entre o conhecimento pedagógico e o conhecimento disciplinar. Ao final,

são indicadas perspectivas de aprofundamento do conteúdo da didática ao por em relevo

as relações indissolúveis entre o plano epistemológico (da ciência ensinada), o plano

pedagógico-didático (da aprendizagem) e o plano das práticas socioculturais, inclusive

para repensar a concepção e os formatos curriculares da formação de professores.

2. Breve menção à didática desenvolvimental

A didática desenvolvimental2 apoia-se na teoria do ensino desenvolvimental

formulada pelo pedagogo e psicólogo russo Vasili Davydov (1988). Os pressupostos

desta formulação estão na tradição da teoria histórico-cultural iniciada com Lev

Vygotsky, para quem a educação e o ensino são formas universais e necessárias do

desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral dos alunos. Desse modo, a educação, é um

processo de apropriação de signos culturais enquanto “instrumentos psicológicos” que

ajudam os indivíduos a organizar seu comportamento e suas ações, através do processo

de interiorização (VYGOTSKY, 1984). O fundamento da relação entre educação e

desenvolvimento está na lei geral da gênese das funções psíquicas da criança no

convívio com os adultos e com os colegas no processo de ensino-aprendizagem. Sendo

assim, segundo Vigotski, o aprendizado não é, em si mesmo, desenvolvimento mas, se

organizado corretamente, ativa processos de desenvolvimento mental da criança,

impossíveis de ocorrer fora do processo de ensino-aprendizagem. Para ele, boa

instrução (processo de ensino-aprendizagem)3 é a que se antecipa e mantém o foco na

próxima etapa do desenvolvimento, ao despertar e provocar “toda uma série de funções

que se encontram em estado de maturação na zona de desenvolvimento próximo”

(VYGOTSKY, 2007, p. 360), guiando o processo de desenvolvimento

2 Essa expressão tem origem na teoria do ensino desenvolvimental de Davydov. O termo “desenvolvimental” corresponde à tradução da expressão em inglês “developmental teaching” e em espanhol “enseñanza desarrollante”, por sua vez traduzida do russo. Pode-se entender, também, como didática para o desenvolvimento humano. 3 Segundo Prestes, a unidade entre ensino e aprendizagem está expressa na palavra russa obutchenie, cuja tradução literal é instrução (PRESTES, 2010, p. 188). Diferentemente do significado mais estreito de mera transmissão de conhecimento, com conotação pejorativa, a palavra se refere na língua russa ao processo simultâneo de instrução, ensino, estudo, aprendizagem, ou seja, ao processo ensino-aprendizagem. A instrução, assim, é a forma de organização do processo de apropriação, na qual estão implicados o ensino (o que o professor faz) e a aprendizagem (o que o aluno faz), ou seja, o ensinar por meio da atuação de outra pessoa no processo de aprendizagem.

4

Page 5: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

Davídov ampliou as ideias precursoras de Vygotsky afirmando que a educação e

o ensino atuam no desenvolvimento por meio do processo da apropriação do

conhecimento teórico-científico visando o desenvolvimento das capacidades e

habilidades correspondentes aos procedimentos lógicos e investigativos de constituição

de uma área de conhecimentos. Nesse processo, o desenvolvimento humano se efetiva

por meio da atividade de estudo, cujo conteúdo são os objetos científicos (os conteúdos)

a serem apropriados pelos alunos e reconstituídos sob forma de conceito teórico-

conceitual. A reconstituição e reestruturação do objeto de estudo constituem o processo

de internalização pelo qual os alunos modificam a estrutura de sua própria atividade

cognitiva influenciando, assim, no seu desenvolvimento. Sua proposta ressalta a

unidade entre a lógica investigativa do objeto, o método de pensamento para conhecê-

lo, a atividade de estudo concreta com este objeto e a interiorização pelo aluno desses

procedimentos lógicos e investigativos (ou seja, os conceitos). Em síntese, “a

apropriação é o resultado da atividade empreendida pelo indivíduo quando ele aprende a

dominar métodos socialmente desenvolvidos de lidar com o mundo dos objetos e a

transformar esse mundo, os quais gradualmente tornam-se o meio da atividade própria

do indivíduo (DAVYDOV e MARKOVA, 1983, p. 5).

Com bases nessas ideias pode-se conceber uma didática desenvolvimental cuja

especificidade epistemológica é o estudo da atividade de ensino-aprendizagem na

relação com saberes, em situações pedagógicas contextualizadas, visando ao

desenvolvimento do aluno. Considera-se fundamental nessa visão a unidade entre o

aprender e o ensinar, em que o professor atua na direção e acompanhamento da

atividade autônoma dos alunos de modo que estes se apropriem dos produtos da cultura,

da ciência, da arte, constituídos ao longo da experiência humana. Este processo é

designado mediação didática, isto é, mediação das relações do aluno com os objetos de

conhecimento (processo de ensino-aprendizagem), em contextos sociais e culturais

concretos, em que se articulam o ensino, a aprendizagem e o desenvolvimento dos

alunos. O processo de ensino é dirigido para a apropriação de conhecimentos e sua

aplicação, tendo em vista o desenvolvimento das capacidades intelectuais dos alunos e

de sua personalidade global. Desse modo, as práticas de ensino supõem a formação de

saberes profissionais a partir das lógicas próprias da atividade escolar e da atividade de

ensino, ou seja, a didática articula a lógica dos saberes a ensinar (dimensão

epistemológica) e a lógica dos modos de aprender (dimensão psico-pedagógica), e a

5

Page 6: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

lógica das práticas socioculturais. Isso significa estabelecer uma relação de dependência

dela em relação à epistemologia das disciplinas e, portanto, da relação conteúdos-

metodologias e, ao mesmo tempo, das relações do aluno com o conhecimento e das

práticas socioculturais e institucionais, formando as base da organização social do

ensino para o desenvolvimento humano.

Considera-se na definição de didática, em primeiro lugar, que a mediação

didática supõe necessariamente os conteúdos e os métodos inerentes a esses conteúdos,

que são a referência para o processo de ensino-aprendizagem. Não há didática fora dos

conteúdos e dos métodos de investigação que lhes correspondem. Em segundo lugar,

que assegurar a relação do aluno significa ajudá-lo a transformar as relações que tem

com um saber, levando-o a mudanças qualitativas nas suas relações com esse saber.

Desse modo, não há didática fora da relação do aluno com o conteúdo, na qual suas

relações com o conteúdo são transformadas. Em terceiro lugar, a didática implica

necessariamente a prática, ou seja, uma atuação em situações didáticas contextualizadas

envolvendo da parte do professor interações verbais, habilidades, sensibilidade

situacional, e outras competências. Não há, pois, didática separada das práticas

socioculturais e institucionais em que os alunos estão envolvidos.

Os professores precisam, então, não só ter domínio dos resultados da ciência

como, também, ter domínio sobre os procedimentos lógicos e investigativos dessa

ciência, pois é daí que se originam as capacidades intelectuais a formar nos alunos na

atividade de aprendizagem. Nesse caso, o conhecimento pedagógico do conteúdo

consiste em ajudar o aluno a transformar os conteúdos em objetos do pensamento, ou

seja, em conceitos. É precisamente a problemática da relação entre o conhecimento

disciplinar (conhecimento do conteúdo) e o conhecimento pedagógico do conteúdo que

será abordada a seguir.

3. A articulação entre o conhecimento disciplinar e conhecimento pedagógico:

uma questão ainda nebulosa

A dissociação entre o conhecimento disciplinar e o conhecimento pedagógico

tem sido um dos problemas mais frequentes na organização dos currículos para a

formação inicial de professores. Na docência do ensino superior, incluindo as

licenciaturas, na maior parte dos casos, o professor se vê como alguém que transmite

conhecimentos com base na lógica da disciplina ensinada, ou seja, para ensinar uma

6

Page 7: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

disciplina basta dominar seu conteúdo. Desse modo, boa parte dos professores ignora o

fato de que o conhecimento profissional de quem se dedica ao magistério compõe-se, ao

menos, de dois requisitos, a do domínio do conteúdo de uma disciplina e a do domínio

de saberes e habilidades para ensinar esse conteúdo. Vendo o problema especificamente

no âmbito dos cursos de formação de professores para a educação básica, é sabido que o

currículo constitui-se de disciplinas de conteúdo e disciplinas pedagógicas. No entanto,

como regra geral, o conhecimento disciplinar e o conhecimento pedagógico são

tomados como domínios separados e, desse modo, dissociados, não articulados entre si.

Eles correm no currículo em paralelo, sem encontrar-se.

É relevante observar que quando é analisada, separadamente, a concepção de

formação e de organização curricular tanto do curso de pedagogia quanto das

licenciaturas específicas, a mencionada dissociação entre os conhecimentos disciplinar e

pedagógico aparece com características muito diferentes nos dois currículos. No

primeiro curso, em que se forma o professor polivalente, é frequente a predominância

do aspecto “metodológico” (sentido que assume o “pedagógico”) sobre o conteúdo; nas

segundas, em que se forma o professor especialista em um conteúdo, há uma visível

ênfase nos conteúdos, deslocando a formação pedagógica para os anos finais do curso,

quase sempre dissociada da formação disciplinar. Nos dois formatos curriculares

verifica-se a dissociação entre aspectos inseparáveis na formação de professores, o

conhecimento do conteúdo (conteúdo) e o conhecimento pedagógico do conteúdo

(forma). Na licenciatura em pedagogia há supervalorização do conhecimento

pedagógico, nas demais licenciaturas do conhecimento disciplinar.

Problemática semelhante pode ser encontrada na falta de articulação entre as

disciplinas “didática” e “didáticas específicas”, estas frequentemente denominadas de

metodologias de ensino de (Língua Portuguesa, Ciências, Matemática, etc.). As duas

disciplinas compõem os currículos de formação de professores, mas geralmente sem

nenhuma correspondência entre os conteúdos de uma e de outra. Enquanto os

professores das didáticas específicas tendem a considerar dispensável uma didática

“geral”, os de didática fazem reparos ao pouco interesse de seus colegas pelos saberes

pedagógicos como as teorias da educação, a psicologia da aprendizagem, as teorias do

ensino, e a própria didática. Os professores das didáticas específicas afirmam que os

pedagogos não têm nada a fazer, pois sem conhecer os conteúdos específicos das

matérias nada podem dizer sobre o ensino dessa matéria. Já os professores de didática

7

Page 8: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

dirão: não é possível alguém ensinar uma matéria desconhecendo as características

individuais e sociais do aluno, o contexto social e cultural em que vive, os critérios de

seleção e organização dos conteúdos, o papel do ensino na formação da personalidade,

as condições mais adequadas de aprendizagem, a elaboração do plano de ensino, etc.

Permanece, assim, mal resolvido o problema da ligação entre a didática geral e

as didáticas disciplinares, o que remete à mesma questão já apontada: a dissociação

entre o conhecimento disciplinar e o conhecimento pedagógico. Com efeito, a busca da

unidade e interdependência entre a didática e as didáticas disciplinares depende da

compreensão das relações entre conhecimento disciplinar e conhecimento pedagógico,

em que se realça na formação de professores a necessária ligação entre as dimensões

pedagógica e epistemológica no ensino.

4. A discussão sobre os saberes docentes

A questão central deste texto – a relação entre conhecimento disciplinar e o

conhecimento pedagógico na formação de professores – pode ser abordada dentro dos

estudos sobre saberes docentes no campo da pedagogia e das ciências da educação. Tais

estudos vêm mostrando que os processos de ensino-aprendizagem são complexos,

envolvendo um conjunto de conhecimentos e habilidades profissionais. Entre os mais

conhecidos, estão os trabalhos Tardif (2002), Gauthier (1998), os estudos de didatas

franceses (entre outros, Develay, 1993; Meirieu, 1998; Chevallard, 1991), Pimenta

(1997), Shulman (2005), e de pesquisadores da teoria histórico-cultural (Vigotski,1984;

Davídov, 1988) e seguidores.

Tardif escreve que a prática dos docentes compõe-se de diferentes saberes, entre

os quais se mantêm diferentes relações. São eles: saberes da formação profissional (as

ciências da educação e da ideologia pedagógica, ou seja, saberes pedagógicos); saberes

disciplinares (correspondentes aos diversos campos do conhecimento); saberes

curriculares (os programas curriculares expressos em objetivos, conteúdos, métodos,

ordenados pela instituição escolar); e os saberes experienciais (saberes específicos

desenvolvidos pelos professores na prática de sua profissão) (2002, p.36). Gauthier

formula sua visão de saberes necessários ao professor para responder a exigências

específicas de situações concretas de ensino, tendo em vista superar dois erros que, em

sua opinião, caracterizam a atividade docente: um ofício sem saberes e os saberes sem

ofício. Ele menciona dois obstáculos que interferiram na história da pedagogia: por um

8

Page 9: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

lado, o fato de que a própria atividade docente pode ser exercida sem por em evidência

os saberes que lhe são inerentes; por outro, o fato de que as ciências da educação podem

não levar em consideração as condições concretas de exercício do magistério (1998, p.

24). Acreditando que o magistério é um oficio feito de saberes, Gauthier os identifica

em cinco tipos: saberes disciplinares; saberes curriculares; saberes das ciências da

educação; saberes da tradição pedagógica; saberes da ação pedagógica (Ib., p.29).

Pimenta propõe três tipos de saberes articulados entre si: a) o saber da matéria, isto é, o

conhecimento que o professor possui sobre a disciplina que ensina; b) o saber

pedagógico, que diz respeito ao conhecimento que resulta da reflexão confrontada entre

o saber da matéria e os saberes da educação e da didática; c) o saber da experiência,

construído a partir das experiências vivenciadas pelo professor e pelo aluno, incluindo

as representações sobre escola e ensino (1997, p. 24).

Estes autores de alguma forma incluem em sua lista de saberes profissionais o

conhecimento do conteúdo e o conhecimento pedagógico. No entanto, nesses estudos

não são explicitadas formas de articulação entre esses dois tipos de conhecimento, os

quais permanecem separados entre si.

Os didatas franceses discutem questões sobre o ensino de conteúdos específicos,

i.e., as didáticas disciplinares, trazendo duas dimensões: a natureza do saber a ensinar e

a compreensão da relação com o saber dos alunos e do professor. Reconhece-se nesses

temas a inter-relação entre didática e epistemologia, tal como expressa Develay: “a

didática aborda as aprendizagens a partir da lógica dos saberes, ela está atenta

prioritariamente ao modo pelo qual o aluno se apropria dos saberes (...) a pedagogia

aborda as aprendizagens a partir da lógica da classe, ela está mais atenta à relação

professor-alunos e às condições práticas de colocar em ação escolhas didáticas”

(DEVELAY, 1993, p. 37). Esse autor mostra que o professor precisa dominar os

conteúdos que ensina mas, especialmente, precisa desenvolver uma competência

epistemológica para compreender a natureza do conhecimento, sua gênese e sua

estrutura.

Philippe Meirieu (1998) critica a visão tradicional do ensino em que, primeiro,

elege-se o conteúdo, em seguida o compreende e, no final, se fazem os exercícios. É

uma visão linear em que os conhecimentos formalizados são revelados a um sujeito

receptivo, mas com atividade mental mínima. Ele propõe uma concepção de ensino-

9

Page 10: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

aprendizagem em que os conhecimentos devem ser integrados no projeto do sujeito, que

formará suas próprias representações do objeto de conhecimento. Propõe, também, a

formulação de objetivos voltados para operações mentais a realizar (dedução, indução,

dialética, criatividade) e com previsão de situações adequadas para serem aplicadas.

Identificada a operação mental, trata-se de organizar o dispositivo didático em função

dela (Ib., p. 117). Importa, assim, que o professor traduza os “conteúdos de

aprendizagem” em “procedimentos de aprendizagem”, isto é, em uma sequência de

operações mentais. Com efeito, escreve Meirieu, nenhum conteúdo existe fora do ato

que permite pensá-lo, da mesma forma que nenhuma operação mental funciona no

vazio, isolada de um conteúdo (Ib., p. 119).

Chevallard põe a questão da relação entre o saber cientifico e o saber ensinado

introduzindo o conceito de transposição didática que leva uma reorganização do saber

visando sua compreensão pelo aluno. Ou seja, “o trabalho que transforma um objeto de

saber a ser ensinado em um objeto de ensino é denominado ‘transposição didática’

(CHEVALLARD, 1991), o que envolve a dimensão epistemológica do ensino”.

O modo como didatas franceses concebem a didática realça as articulações

necessárias entre didática e epistemologia das disciplinas, superando a separação entre o

conhecimento disciplinar e o conhecimento pedagógico, e trazendo elementos muito

ricos para a compreensão do que significa “conhecimento pedagógico do conteúdo”.

Para esses autores, o método didático supõe o método próprio das disciplinas ensinadas,

no sentido de que “o primeiro não deve ser acrescentado nem substituído pelo segundo,

mas buscar os objetos elementares e as formas de aplicação do segundo para tornar-se

acessível: ele é a imaginação do segundo” (CORNU e VERGNIOUX, 1992, p. 124).

Em Meirieu, sua didática indica clara conexão entre o conhecimento do conteúdo e o

conhecimento pedagógico do conteúdo, em que os alunos são envolvidos no conteúdo a

partir de suas próprias representações e significados mas, principalmente, articulando o

ensino dos conteúdos às operações mentais que possibilitam acessá-los.

Shulman aponta sete tipos de conhecimentos necessários aos professores:

conhecimento do conteúdo; conhecimento pedagógico geral, tendo em conta

especialmente aqueles princípios e estratégias gerais de manejo e organização da classe

que transcendem o âmbito da matéria; conhecimento do currículo, com um especial

domínio dos materiais e os programas que servem como “ferramentas para o ofício” do

10

Page 11: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

docente; conhecimento pedagógico do conteúdo: essa especial amalgama entre matéria

e pedagogia que constitui uma esfera exclusiva dos maestros, sua própria forma especial

de compreensão profissional; conhecimento dos alunos e de suas características;

conhecimento dos contextos educativos, que abarcam desde o funcionamento do grupo

ou da classe, a gestão e financiamento dos distritos escolares, até o caráter das

comunidades e culturas; e conhecimento dos objetivos, as finalidades e os valores

educativos (2005, p.11). Para esse autor, o professor "deve compreender as estruturas da

matéria ensinada, os princípios de organização conceitual" e, ao mesmo tempo, ter o

conhecimento pedagógico do conteúdo, que "representa a ligação entre a matéria e a

didática, para compreender como determinados temas e problemas podem ser

organizados, representados e adaptados aos diferentes interesses e habilidades dos

alunos” (2005). Especialmente relação ao conteúdo, ele escreve:

Professores e professoras têm uma responsabilidade especial em relação ao

conhecimento dos conteúdos da matéria, por ser a principal fonte da compreensão da

matéria para os alunos. [...] Frente à diversidade de seus alunos, o docente deve ter uma

compreensão flexível e polifacética, que lhe possibilita oferecer explicações alternativas

dos mesmos conceitos ou princípios. Os professores também comunicam,

conscientemente ou não, ideias acerca das formas de obter conhecimento em um campo,

além de uma série de atitudes e valores que influem significativamente na compreensão

de seus alunos. (2005, p.12).

Em relação ao conhecimento pedagógico do conteúdo, Shulman o caracteriza

como as interpretações que os professores fazem do conteúdo e as transformações do

objeto de conhecimento tendo em vista mobilizar o aprendizado dos alunos. Nessas

condições, o conhecimento pedagógico do conteúdo é o que distingue um excelente

professor de outro que apenas sabe a sua disciplina. Este é um professor que sabe como

transformar seu conhecimento da matéria em atividades e experiências que estimulam,

envolvem e melhoram a aprendizagem ativa e a compreensão dos alunos.

Entre essas categorias, o conhecimento pedagógico do conteúdo é de particular interesse

porque identifica os corpos distintivos do conhecimento para o ensino. Representa a

mistura entre a matéria e a didática, pela qual se chega a uma compreensão de como

certos temas e problemas são organizados e adaptáveis aos diversos interesses e

habilidades dos alunos e expostos para seu ensino. O conhecimento pedagógico do

conteúdo é a categoria que, com maior probabilidade, permite distinguir entre a

compreensão do especialista em uma área de conhecimento e a compreensão do

pedagogo (Id., p. 11).

11

Page 12: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

A abordagem de Shulman traz ricas contribuições para o conhecimento

profissional do professor. No entanto, ainda que ajude a compreender a imbricação entre

o conhecimento disciplinar e o conhecimento pedagógico, eles permanecem paralelos,

sem ligar mais diretamente o conhecimento pedagógico do conteúdo aos aspectos

epistemológicos das matérias.

4. A teoria do ensino para o desenvolvimento e sua contribuição para a

integração entre o conhecimento disciplinar e o conhecimento pedagógico

na formação de professores

O pesquisador russo Vasili Davídov, por meio da teoria do ensino para o

desenvolvimento dentro da teoria histórico cultural da atividade, traz importante

contribuição para o papel da aprendizagem de conceitos na formação escolar e de como

o conhecimento pedagógico está visceralmente ligado ao conhecimento disciplinar. Ele

define como função preponderante da escola a de assegurar os meios para os alunos se

apropriarem dos conhecimentos e, assim, formarem um modo de pensar teórico-

conceitual. Esse modo de pensar, que consiste de operações mentais, se forma por meio

de conceitos adequados em relação ao objeto de estudo. Por sua vez, os conceitos,

enquanto modos de operação mental, são formados com base nos processos lógicos e

investigativos da ciência ensinada. Esse processo de apropriação dos conhecimentos na

forma de conceitos, em que são formados modos de pensar e agir, produz mudanças no

desenvolvimento psíquico dos alunos propiciando novas capacidades intelectuais para

apropriação de conhecimentos de nível mais complexo. Para isso, é requerida uma

atividade psicológica interna que permite integrar conteúdos e motivos dos alunos.

Desse modo, o conhecimento pedagógico do professor (pelo qual o aluno será levado a

aprender do melhor modo possível o conteúdo) depende do conteúdo e das

particularidades investigativas da ciência ensinada, ou seja, depende das características

do conhecimento disciplinar, além de se levar em conta as características individuais e

socioculturais dos alunos. Em outras palavras, o conhecimento disciplinar e o

conhecimento pedagógico estão mutuamente relacionados, sendo este último vinculado

diretamente aos conteúdos e procedimentos lógicos e investigativos da ciência que está

sendo estudada. A questão é: como articular essas dois tipos de conhecimento

profissional? Principalmente, como aliar o conhecimento do conteúdo ao conhecimento

pedagógico do conteúdo, ou seja, como transformar os objetos de conhecimento de

modo a mobilizar a atividade de aprendizagem dos estudantes?

12

Page 13: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

Conforme já mencionado, para Davydov a referência básica do processo de

ensino e aprendizagem são os objetos científicos (os conteúdos) que precisam ser

apropriados pelos alunos mediante a descoberta de um princípio interno de constituição

do objeto de estudo e, daí, reconstruído sob forma de conceito teórico-conceitual no

decorrer da atividade conjunta entre professor e alunos. A reconstrução e reestruturação

do objeto de estudo constituem o processo de interiorização, a partir do qual se

reestrutura o próprio modo de pensar dos alunos promovendo, com isso, seu

desenvolvimento mental. Escreve Davídov:

[...] A base do ensino desenvolvimental é seu conteúdo, do qual são derivados os

métodos (ou procedimentos) de organização do ensino. Esta proposição exemplifica o

ponto de vista de Vygotskii e Elkonin. “Para nós, escreveu Elkonin, tem importância

fundamental sua idéia (de Vygotskii – VD) de que o ensino realiza seu papel principal

no desenvolvimento mental, antes de tudo, por meio do conteúdo do conhecimento a ser

assimilado”. Concretizando esta proposição, deve-se observar que a natureza

desenvolvimental da atividade de aprendizagem no período escolar está vinculada ao

fato de que o conteúdo da atividade acadêmica é o conhecimento teórico (Davídov,

1988, p.19).

O "conhecimento teórico" na tradição histórico-cultural, baseada no

materialismo histórico e dialético, não tem o sentido de conhecimento especulativo

desconectado da realidade. Trata-se de um conhecimento que reúne e reflete o conjunto

de procedimentos lógicos do pensamento pelos quais o sujeito realiza uma reflexão

sobre as características e propriedades de um objeto e que constituem, ao mesmo tempo,

as operações mentais (próprias do sujeito pensante) que permitem a reconstrução mental

deste objeto. Pensar teoricamente é, então, desenvolver processos mentais pelos quais se

chega aos conceitos, estes convertidos em instrumentos mentais para se fazer

generalizações conceituais e aplicá-los a problemas específicos. Tal como escreve

Chaiklin:

O conceito significa um conjunto de procedimentos para deduzir relações particulares

de uma relação abstrata. (...) A estratégia educacional básica para dar aos alunos a

possibilidade para reproduzir pensamento teórico é criar tarefas instrucionais cujas

soluções requeiram a formação de abstrações substantivas e generalizações sobre as

ideias centrais do assunto. Esta aproximação é fundamentada na ideia de Vygotsky de

interiorização, ou seja, aprende-se o conteúdo da matéria aprendendo os procedimentos

pelos quais se trabalha na matéria de estudo (CHAIKLIN, 1999: 191).

13

Page 14: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

Na teoria do ensino para o desenvolvimento, conteúdos são vistos, portanto,

como conceitos científicos e métodos de transformação de objetos formados social e

historicamente a serem apropriados pelos estudantes de modo a fazer parte de suas

próprias estruturas mentais. Desse modo, o termo “conteúdos” deve ser entendido como

o conjunto de conhecimentos científicos de uma disciplina, constituídos social e

historicamente, enquanto produtos da experiência social e histórica humana,

considerados importantes para promover o desenvolvimento mental dos alunos. Tal

como mencionado anteriormente, para Davídov “o ensino realiza seu papel principal no

desenvolvimento mental, antes de tudo, por meio do conteúdo do conhecimento a ser

assimilado” (1988, p.172), uma vez que os conteúdos são meios para a formação dos

processos mentais. No entanto, entenda-se aqui que a atividade de ensino tem seu foco

no conhecimento, mas especialmente, no processo mental do conhecimento, ou seja, na

formação e desenvolvimento das capacidades e habilidades intelectuais. Desse modo, os

conhecimentos a serem assimilados na forma de conteúdos escolares não são

considerados como já “prontos” mas reconstituídos a partir das condições históricas e

epistemológicas que os originaram e os tornaram essenciais. Por meio de ações mentais

que os alunos formam ao estudar um conteúdo, a partir do conceito teórico geral deste

conteúdo, vão desenvolvendo competências e habilidades para aprender por si mesmos,

isto é, para formar o conceito, podendo deduzir mentalmente, por esse conceito, todo o

processo de desenvolvimento de um sistema de conceitos. Desse modo, ao aprender um

conteúdo científico, importa mais o domínio do processo de sua origem e

desenvolvimento na trajetória de sua constituição como objeto de conhecimento do que

o domínio apenas de seu conteúdo formal, isto é, do seu resultado. Por outras palavras,

nos processos de ensino-aprendizagem os estudantes, ao incorporarem o conhecimento

e as habilidades relacionadas com a constituição desse conhecimento incorporam,

também, as capacidades construídas historicamente para desenvolver a consciência e o

pensamento teóricos.

Para Davídov, a aquisição de conceitos científicos e o desenvolvimento das

capacidades cognitivas e operativas, compreendidos em sua relação mútua, são dois

elementos indissociáveis da aprendizagem escolar. O que está em questão é como o

ensino pode impulsionar o desenvolvimento das competências cognitivas mediante a

formação de conceitos e o desenvolvimento do pensamento teórico, e por quais meios

os alunos podem melhorar e potencializar sua aprendizagem. Trata-se de saber o que e

14

Page 15: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

como fazer para estimular as capacidades investigadoras dos alunos ajudando-os a

desenvolver competências e habilidades mentais. Em razão disso, uma didática a

serviço de uma pedagogia voltada para a formação de sujeitos pensantes e críticos

deverá salientar em suas investigações as estratégias cognitivas gerais de cada ciência

pelas quais os alunos aprendem a internalizar conceitos, competências e habilidades do

pensar, modos de ação, que vão se convertendo em meios de sua própria atividade, a

fim de analisar e resolver problemas em situações concretas da vida prática. Davídov

explicita seu entendimento dessas questões:

O saber contemporâneo pressupõe que o homem domine o processo de origem e

desenvolvimento das coisas mediante o pensamento teórico, estudado e descrito pela

lógica dialética. O pensamento teórico tem seus tipos específicos de generalização e

abstração, seus procedimentos de formação dos conceitos e das operações com eles.

Justamente, a formação de tais conceitos abre aos escolares o caminho para dominar os

fundamentos da cultura teórica atual. O ensino escolar deve ser orientado para a

comunicação desses conhecimentos, os quais podem ser assimilados no processo de

generalização e abstração teóricas que conduzem aos conceitos teóricos. A escola, a

nosso juízo, deve ensinar as crianças a pensar teoricamente (DAVIDOV, 1988, p.6).

Para que isto ocorra, faz-se necessária uma estrutura da atividade de estudo

incluindo tarefas de aprendizagem e as correspondentes ações de aprendizagem e ações

de acompanhamento e avaliação, com vistas a proporcionar ao aluno a formação, para

si, do conceito teórico-científico do objeto.

Essas considerações mostram a relevância da integração entre o conhecimento

disciplinar e o conhecimento pedagógico, pois os procedimentos pedagógicos de

formação dos processos mentais são derivados dos processos investigativos pelos quais

se chega à constituição de um conteúdo. Ou seja, o conhecimento pedagógico (no qual

se incluem os métodos de ensino) é inseparável dos métodos investigativos da ciência

ensinada. Com efeito, as bases do conhecimento pedagógico estão já presentes no

conhecimento disciplinar, de modo que o conhecimento pedagógico do conteúdo está

diretamente relacionado ao conhecimento do conteúdo. Por outras palavras, o

conhecimento pedagógico pressupõe as condições epistemológicas e históricas de

constituição do conteúdo, de modo que a epistemologia da ciência ensinada se torna

fundamento para todo trabalho pedagógico com os conteúdos. Isto significa que não é

suficiente a um professor somente a competência acadêmica em relação ao conteúdo de

sua matéria. Ele precisa saber analisar os aspectos históricos, sociológicos e

15

Page 16: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

epistemológicos do conteúdo, captar o perfil epistemológico da ciência que ensina, sua

estrutura conceitual, seus procedimentos investigativos e seus resultados, numa

perspectiva crítica. Desse modo, os professores precisam não só ter domínio dos

resultados da ciência como, também, ter domínio sobre os procedimentos lógicos e

investigativos dessa ciência, pois é daí que se originam as capacidades intelectuais a

formar nos alunos na atividade de aprendizagem. Nesse caso, o conhecimento

pedagógico do conteúdo consiste em ajudar o aluno a transformar os conteúdos em

objetos do pensamento, ou seja, em conceitos.

Derivações metodológicas para o processo de ensino-aprendizagem

Conforme comentamos, os conteúdos (conceitos, teorias, habilidades,

procedimentos e valores) não valem por si mesmos, mas como uma base para a

formação de capacidades cognitivas gerais e específicas, tais como análise, síntese,

verificação, comparação, avaliação, explicação, resolução de problemas, formulação de

hipóteses, classificação, entre outras. Compreende-se, assim, que conteúdos e processos

investigativos da ciência ensinada são inseparáveis, cabendo à atividade de ensino-

aprendizagem ajudar o aluno a reconstituir mentalmente aqueles processos, como base

para a formação de suas operações mentais (conceitos). Assim, na teoria do ensino para

o desenvolvimento, a abordagem pedagógico-didática de um conteúdo pressupõe a

abordagem epistemológica desse conteúdo. Desse modo, o primeiro princípio

metodológico relacionado com o conhecimento pedagógico do conteúdo é que a

formação de conceitos científicos resulta da apropriação dos modos de pensar,

investigar e atuar da ciência ensinada, com o que os conceitos convertem-se em

ferramentas mentais internalizadas para lidar com o mundo objetivo, com os outros e

consigo mesmos.

As formulações de Davídov nos leva a afirmar que o modo de lidar

pedagogicamente com uma disciplina depende do modo de lidar epistemologicamente

com essa disciplina. Considerando que os métodos de ensino são derivados dos

conteúdos, pode-se afirmar, por um lado, que os conteúdos e procedimentos lógico-

investigativos de uma ciência são estruturantes do conhecimento pedagógico necessário

para ensinar essa ciência; por outro, que os conhecimentos disciplinares requerem

conhecimentos pedagógicos. Conforme mencionado, na teoria do ensino para o

desenvolvimento o conhecimento pedagógico do conteúdo pressupõe trabalhar os

conteúdos de forma a propiciar aos alunos situações-problema nas quais possam

16

Page 17: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

reproduzir os procedimentos investigativos da ciência e, desse modo, formar neles

habilidades intelectuais análogos àqueles procedimentos. Essa teoria provê, portanto, o

fundamento para justificar a relação indissolúvel entre o plano epistemológico (da

ciência ensinada) e o plano pedagógico-didático, quer dizer, entre o conhecimento

disciplinar e o conhecimento pedagógico.

O planejamento do ensino

Os conhecimentos e as ações mentais que lhes correspondem, em cada matéria

de ensino, com vistas à formação do pensamento teórico-científico dos estudantes (isto

é, aprender a pensar e atuar com conceitos como ferramentas do pensamento), devem

ser organizados em função da atividade de estudo. Três tarefas essenciais deve levar a

cabo o professor ao formular um plano de ensino tendo em vista a integração entre

conhecimento disciplinar e conhecimento pedagógico: a análise de conteúdo, a análise

dos motivos dos estudantes e a articulação dos conteúdos com as práticas socioculturais

nas quais os estudantes estão envolvidos.

A análise do conteúdo tem a finalidade de identificar um princípio geral, uma

relação geral básica que caracteriza o conceito (conceito nuclear) do tópico a ser

ensinado. Tendo como referência esse conceito nuclear, busca-se a gênese de seu

desenvolvimento, isto é, os métodos e procedimentos de investigação que levaram à

constituição da ciência, com vistas a identificar as ações mentais4, ou seja, habilidades

cognitivas gerais e específicas presentes no conteúdo, as quais devem ser formadas

pelos estudantes ao longo do estudo da matéria. Ou seja, a busca das relações básicas

que identificam um tema de estudo coincide com a atividade científica na apreensão dos

objetos de investigação e na sua constituição como objetos de conhecimento.

A segunda tarefa consiste na análise dos motivos dos alunos. A teoria de ensino

para o desenvolvimento destaca o papel dos motivos (sociais/individuais) em todos os

âmbitos da atividade humana5. Na atividade de estudo este papel tem especial 4 As ações mentais correspondem às habilidades gerais de caráter intelectual presentes nos processos investigativos de cada ciência. São, entre outras: observação, descrição, modelação, transformação do problema, comparação, classificação, explicação, argumentação, formulação e resolução de problemas.

5 Conforme Leontiev (1978, p. 82) atividade humana é um processo psicológico que satisfaz uma necessidade do indivíduo em seu intercâmbio com a realidade, impulsionada por motivos, os quais direcionam a atividade para um objeto. Desse modo, os motivos determinam a orientação concreta de uma atividade para um objeto, ou seja, o objeto se converte em motivo da atividade. Não há atividade sem motivos.

17

Page 18: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

relevância, pois a aprendizagem de conteúdos atinge melhor o desenvolvimento da

personalidade quando existe uma relação entre o conteúdo e os motivos do estudante

para aprender. O conhecimento das características individuais e socioculturais dos

alunos favorece a análise e seleção dos conteúdos a ensinar e a escolha de tarefas de

aprendizagem com suficientemente atrativo para canalizar os motivos dos estudantes

para o conteúdo.

Formulado o conceito nuclear e os conceitos derivados, e junto com isso, a

apreensão dos motivos dos alunos em relação à sua vida escolar, são preparadas tarefas

de aprendizagem com base em situações problemas que requerem do estudante uma

atividade mental para assimilar as formas de pensar e atuar próprias da matéria, e cujo

resultado é a formação de capacidades e habilidades cognitivas gerais e específicas a

respeito da matéria. Presume-se que, colocado numa atividade de aprendizagem, o

estudante vai, gradualmente, se apropriando desse processo, internalizando métodos e

estratégias cognitivas gerais da ciência ensinada. Ou seja, o domínio dos conceitos da

ciência ensinada por meio da atividade de estudo converte-se em meio da atividade do

aluno, pelo qual o aluno pode regular a sua conduta. Escreve Chaiklin:

O objetivo da atividade de aprendizagem é ajudar os estudantes a dominar as relações,

abstrações, generalizações e sínteses que caracterizam os temas de uma materia. Este

domínio é refletido na sua capacidade de fazer reflexão substantiva, análise e

planejamento. A estratégia educacional básica para dar aos alunos a possibilidade de

reproduzir pensamento teórico é a criação de tarefas instrucionais cujas soluções

requerem a formação de abstrações substantivas e generalizações sobre as idéias

principais do tema. Esta abordagem é baseada na ideia de Vygotsky de internalização,

ou seja, aprende-se o conteúdo da matéria aprendendo os procedimentos pelos quais

eles estão trabalhando em questões específicas da m.atjeria "(CHAIKLIN, 1999, p.

191).

A terceira tarefa refere-se à incorporação ao plano de ensino das práticas

socioculturais vivenciadas pelos alunos. Seguindo a tradição de Vigotsky (1984, 2000),

a interação entre os indivíduos em práticas socioculturais e institucionais desempenha

papel fundamental na formação de instrumentos psicológicos, em que o ser humano

interioriza formas culturalmente estabelecidas de funcionamento psicológico. Ou seja,

as práticas socioculturais e institucionais que as crianças e jovens compartilham na

família, na comunidade, e em outros âmbitos da vida cotidiana são, também,

18

Page 19: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

determinantes na apropriação de conhecimentos, formação de capacidades intelectuais,

construção da identidade pessoal e formação da personalidade. Elas aparecem na escola

tanto como contexto de aprendizagem quanto como conteúdo, de modo que o

desenvolvimento do pensamento de um estudante que se produz no processo de

apropriação dos conteúdos científicos, deve articular-se com as formas de conhecimento

cotidiano das quais participa na comunidade familiar, escolar ou local (HEDEGAARD e

CHAIKLIN, 2004, 2005).

Nesse entendimento, no plano de ensino deve prever formas de articulação entre os

conteúdos da matéria e as práticas socioculturais vivenciadas pelos alunos em seu

cotidiano e em sua comunidade. É nessas práticas que se manifestam a diversidade

social e cultural, as redes de conhecimento, os diferentes valores, as experiências e

vivências. Trata-se de promover interfaces pedagógico-didáticas entre o conhecimento

teórico-científico e as formas de conhecimento local e cotidiano. Hedegaard e Chaiklin

dernominam esse procedimento didático de “abordagem do duplo movimento”, ou seja,

são situações de ensino organizadas de modo a ligar o conhecimento teórico-conceitual

ao conhecimento pessoal vivido pelos alunos em suas práticas cotidianas na família e na

comunidade e, com isso, mobilizando os motivos dos alunos para as diferentes matérias.

(2005, p. 81). Desse modo, o conhecimento do conteúdo como conhecimento teórico

geral por parte dos alunos, possibilita a eles aplicar os conceitos que foram

internalizados nas suas situações concretas de vida. Segundo os autores:

Nesta forma de ensino, o conhecimento teórico-conceitual e o conhecimento local

podem tornar-se integrados, de modo que o conhecimento teórico-conceitual possa

enriquecer os conhecimentos pessoais da criança, usando-o na compreensão da prática

local cotidiana. Na perspectiva radical-local, o professor parte da compreensão da

criança e as orienta para tarefas e problemas ligados ao conteúdo que, assim, torna-se

significativo para a criança e motivador para a compreensão tanto dos princípios

teóricos da matéria quando dos problemas da prática local e cotidiana”(Ib.).

Em síntese, o conhecimento pedagógico envolve três dimensões, a

epistemológica, a psicopedagógica e a sócio-histórica-cultural. A dimensão

epistemológica refere-se à lógica científica das disciplinas, porque o ensino de um saber

implica levar em conta a forma de constituição desse saber, uma vez que a apropriação

de saberes supõe seguir o percurso dos procedimentos investigativos de sua

constituição. Daí que aprender conteúdos implica compreender o percurso investigativo

da ciência. Fica claro com esse princípio que ter conhecimento pedagógico do conteúdo

19

Page 20: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

não é somente ter uma “metodologia” para ensinar os conteúdos. Muito mais que isso,

significa compreender essa metodologia como uma relação orgânica com os

procedimentos investigativos da ciência que se ensina, onde estão as ações mentais a

formar, a fonte de problemas, exemplos, explicações e tarefas. A dimensão

psicopedagógica refere-se ao fato de que o ensino deve estar dirigido à aprendizagem,

de modo que importa conhecer as características individuais e sociais dos alunos, sua

relação prévia com a matéria, seus motivos e modos de aprender. A dimensão sócio-

histórica-cultural implica integrar ao conteúdo as práticas sociais e culturais

vivenciadas pelos alunos em sua vida cotidiana, por meio das quais podem ser

evidenciadas as suas concepções em relação aos temas da matéria e os obstáculos

epistemológicos e culturais para sua aprendizagem, permitindo superá-los.

5. Derivações para a formação de professores

A escola proposta aqui como lugar de formação cultural e científica,

considerando a diversidade social e cultural, deve estar centrada na atividade de

aprendizagem dos estudantes por meio do ensino, e é nesta condição que se transforma

em instância de democratização e promoção da inclusão social. A intervenção

pedagógica pelo ensino, atuando como mediação das relações do aluno com os objetos

de conhecimento, é imprescindível para o desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral

dos estudantes. Em razão disso, os currículos de cursos de formação de professores

precisam ser organizados de modo a vincular o conhecimento pedagógico ao

conhecimento disciplinar. Na perspectiva teórica sugerida aqui, não deveria existir

diferenças na metodologia de ensino entre professores que ensinam no bacharelado e os

que ensinam nas licenciaturas. Em qualquer caso, requer-se competência de articular a

epistemologia da disciplina científica com a didática dessa disciplina. Por essa razão, os

dirigentes das instituições universitárias, especialmente os que lidam com as políticas de

graduação, precisam ocupar-se, no desenvolvimento profissional dos professores, da

didática enquanto ciência profissional do professor, por onde serão propiciadas as

condições aos professores de unir, em sua prática docente, o conhecimento do conteúdo

e o conhecimento pedagógico do conteúdo. É evidente que, para isso, o professor

necessita ter uma concepção epistemológica da ciência que ensina, dos métodos lógicos

e investigativos dessa ciência e das condições históricas e sociais do contexto de

produção e aplicação dos conteúdos dessa ciência. Também é evidente que o professor

deve associar os métodos de ensino aos próprios métodos de investigação da ciência

20

Page 21: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

ensinada e aos métodos da cognição vinculados à psicologia da aprendizagem e

desenvolvimento.

Ganham importância nesse raciocínio a intersecção entre a didática e as didáticas

específicas pois o objeto de estudo de ambas é o processo de ensino-aprendizagem.

Ambas visam compreender a mediação didática dos conteúdos com foco na

aprendizagem, na promoção e ampliação do desenvolvimento das capacidades

intelectuais dos alunos e da sua personalidade. A questão-chave da didática está em que

a ela cabe a organização pedagógico-didática dos conteúdos em associação com sua

análise epistemológica, ou seja, a análise do objeto da ciência ensinada, seus métodos de

investigação e os resultados da investigação, junto com a análise psicopedagógica das

condições de ensino-aprendizagem. Desse modo, a didática enquanto ciência

profissional do professor está referida a, pelo menos, quatro questões: a) a análise e

seleção dos conteúdos que contribuem para a formação das capacidades cognitivas dos

estudantes (conhecimento do conhecimento disciplinar); b) a identificação de operações

mentais (capacidades intelectuais) mais relevantes para o desenvolvimento cognitivo,

afetivo e moral dos alunos; c) as formas de organizar o conhecimento para trabalhar

com os estudantes nas aulas e os meios pelos quais este conhecimento pode ser melhor e

mais adequadamente internalizado (conhecimento pedagógico do conteúdo); d) a

organização das situações pedagógico-didáticas: como o professor organiza e administra

a aula: o planejamento e a organização de situações e tarefas de aprendizagem, as

interações com e entre os estudantes.

A didática (básica), portanto, inclui elementos da teoria do conhecimento e dos

processos de desenvolvimento e aprendizagem, implicações socioculturais do ensino-

aprendizagem e, especialmente, as peculiaridades epistemológicas das disciplinas e de

seus métodos de investigação. Essa didática, enquanto teoria do ensino e aprendizagem,

generaliza princípios e procedimentos obtidos a partir das ciências da educação –

psicologia, sociologia, antropologia, entre outras - e das pesquisas resultantes das

próprias disciplinas específicas, pondo-os a serviço do processo de ensino e

aprendizagem das disciplinas. Tal didática oferece às disciplinas específicas o que é

básico, essencial e comum ao ensino, mas em íntima conexão com a lógica científica

das disciplinas. Por sua vez, as didáticas específicas (ou disciplinares), a partir dos

saberes pedagógico-didáticos sobre ensino e aprendizagem e da estrutura conceitual e

procedimentos investigativos da ciência ensinada, trabalham aspectos epistemológicos

21

Page 22: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

do processo geral do conhecimento, peculiaridades epistemológicas de cada disciplina,

processos e procedimentos investigativos da disciplina, processos externos e internos do

desenvolvimento humano e da aprendizagem. Ou seja, as didáticas específicas têm

como objeto de estudo as peculiaridades dos processos de ensino-aprendizagem de cada

uma das disciplinas, visando sua organização pedagógico-didática, em correspondência

com os níveis de ensino a atender e as características individuais e socioculturais dos

alunos.

Considerações finais

Buscou-se argumentar neste texto sobre a inseparabilidade entre o conhecimento

pedagógico e o conhecimento disciplinar, implicando o vínculo entre a didática e as

didáticas disciplinares com a epistemologia da ciência ensinada. Tais relações resultam

em duas exigências para o exercício profissional dos professores: o conhecimento do

conteúdo e de conhecimento pedagógico-didático do conteúdo. Conforme mencionado,

as instituições formadoras no Brasil não têm conseguido superar nos currículos a

dissociação entre os dois tipos de conhecimento profissional do professor. A lógica da

argumentação trazida aqui sobre essa dissociação leva à conclusão de que um sistema

de formação de professores precisa buscar uma unidade no processo formativo que

assegure relações teóricas e práticas mais sólidas entre a didática e a epistemologia das

ciências, de modo a romper com a separação entre conhecimentos disciplinares e

conhecimentos pedagógico-didáticos.

As análises explicitadas neste texto sobre a necessária integração entre o

conhecimento disciplinar e o conhecimento pedagógico-didático indicam, também, que

os currículos de formação profissional, em todos os níveis do ensino, precisam

assegurar que os futuros professores estejam preparados para analisar uma disciplina

científica em seus aspectos históricos e epistemológicos; que tenham domínio da área

pedagógica, no que se refere aos temas ligados ao processo ensino-aprendizagem, ao

currículo, às relações professor-aluno e dos alunos entre si, aos métodos e

procedimentos didáticos, incluindo o uso da tecnologia educacional; que assumam seu

papel de educadores na formação da personalidade dos alunos e que incorporem na

prática docente a dimensão política enquanto cidadãos e formadores de cidadãos e

profissionais.

Referências

22

Page 23: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

CHAIKLIN, Seth. Developmental teaching in Upper-Secundary School. In:

HEDEGAARD, Mariane; LOMPSCHER, Joachim (ed.). Learning Activity and

Development. Arthus (Dinamarca): Aarthus Universite Press, 1999. pp. 7-332.

CHEVALLARD, Yves. La transposición didáctica: del saber sabio al saber

enseñado. Buenos Aires: Aique, 1991. pp. 7-138.

CORNU, Laurence e VERGNIOUX, Alain. La didactique em questions. Paris:

Hachette/Centre National de Documentation Pédagogique, 1992.

DAVÍDOV, Vasili. La enseñanza escolar y el desarrollo psíquico: investigación

psicológica teórica e experimental. Moscú: Editorial Progreso, 1988. pp. 3-277

DAVÍDOV, Vasili Tipos de generalización na enseñanza. Habana: Editorial Pueblo e

Educación, 1978. pp. 5-488.

DEVELAY, Michel. Pour une épistémologie des savoirs scolaires. In: Pédagogie

Colégiale, v. 7, n. 1, Oct. 1993.

GATTI, Bernadete A., BARRETTO, Elba S. de S., ANDRÉ, Marli E. D. de A.

Políticas docentes no Brasil: um estado da arte. Brasília: MEC/UNESCO, 2011. pp.

7-297

GAUTHIER, Clermont et al. Por uma teoria da pedagogia: pesquisas

contemporâneas sobre o saber docente. Ijuí Editora Unijuí, 1998.

HEDEGAARD, Mariane e CHAIKLIN, Seth. Radical-local teaching and learning: a

cultural-historical approach. Aarhus (Dinamarca): Aarhus University Press, 2005. pp.

7-227.

LIBÂNEO, José C. Didática e epistemologia: para além do debate entre a didática e as

didáticas específicas. In: VEIGA, Ilma P.A. e D´Ávila, Cristina (orgs.). Profissão

docente: novos sentidos, novas perspectivas. Campinas (SP): Papirus, 2008.

LIBÂNEO, José Carlos. O dualismo perverso da escola pública brasileira: escola do

conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social para os pobres. Educação e

Pesquisa, Mar 2012, vol.38, no.1, p.13-28.

MEIRIEU, Philippe. Aprender... sim, mas como? ArtMed: Porto Alegre, 1998. pp. 11-

193.

23

Page 24: professor.pucgoias.edu.brprofessor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/5146...  · Web viewIsso significa estabelecer uma relação de dependência dela em relação

NÓVOA, Antônio. Professores: imagens do futuro presente. Lisboa: Educa, 2009.

pp. 7-95

PIMENTA, Selma G. A pesquisa em didática: 1996-1999. In: CANDAU, Vera Maria

(org.). Didática, currículo e saberes escolares. X Endipe. Rio de Janeiro: DP & A,

2000.

PIMENTA, Selma G. A didática como mediação na construção da identidade do

professor: uma experiência de ensino e pesquisa na licenciatura. In: ANDRÉ, Marli

D.A. de e OLIVEIRA, Maria Rita N.S. (org.). Alternativas do ensino da didática.

Campinas (SP): Papirus, 1997. pp. 7-143

SHULMAN, Lee S. (2005). Conocimiento y enseñanza: fundamentos de la nueva

reforma. In: Profesorado. Revista de currículum y formación del profesorado. V. 9,

n.2. Acesso em: http://www.ugr.es/~recfpro/rev92ART1.pdf

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes,

2002. pp. 9-325.

VIGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984. pp.

1-168

VIGOSTSKY, Lev. S. A construção do pensamento e da linguagem. Trad. Paulo

Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2000. pp. 1-496.

YOUNG, Michel F. D. O futuro da educação em uma sociedade do conhecimento: o

argumento radical em defesa de um currículo centrado em disciplinas. In: Revista

Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 48, pp. 609-623, set.-dez., 2011.

24