· Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso,...

20
3ª Série Ensino Médio Língua Portuguesa e Literatura Seleção de Poemas de Fernando Pessoa Prof. Rômulo Torres 1.A Personalidade: uma breve biografia acerca de um Pessoa de muitas pessoas Em 13 de junho de 1888, nasce, na cidade de Lisboa, Portugal, Fernando Antônio Nogueira Pessoa. Filho de um funcionário público e crítico musical, Joaquim de Seabra Pessoa, e de Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Fernando Pessoa tem sua infância marcada por uma série de acontecimentos que o marcaram por toda sua existência; Em 1893, aos cinco anos de idade, perde seu pai, vítima da tuberculose. Além desse fato trágico, Pessoa ganha um irmão, Jorge. Com o falecimento do pai, a família se vê em condições financeiras desfavoráveis e é obrigada a mudar-se para a casa de Dionísia, a avó louca do poeta. Duas perdas irreparáveis: o pai e a casa; Em 1894, morre seu irmão Jorge. E é nessa sucessão de perdas que Pessoa “encontra” um amigo invisível: Chevalier du Pas, ou o Cavaleiro do Nada; Em 1895, dois anos após a morte do pai, sua mãe, Madalena, se casa com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal na cidade de Durban, uma colônia inglesa na África do Sul, e é para lá que a família se muda no ano seguinte; Em 1896, nascem mais dois irmãos (Henriqueta Madalaena, que vem a falecer três anos mais tarde, e João) e Fernando Pessoa inicia o curso primário na escola de freiras irlandesas de West Street em Colégio Cenecista Nossa Senhora dos Anjos – GENSA 65 anos

Transcript of  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso,...

Page 1:  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia.

3ª Série Ensino MédioLíngua Portuguesa e Literatura

Seleção de Poemas de Fernando PessoaProf. Rômulo Torres

1. A Personalidade: uma breve biografia acerca de um Pessoa de muitas pessoas

Em 13 de junho de 1888, nasce, na cidade de Lisboa, Portugal, Fernando Antônio

Nogueira Pessoa. Filho de um funcionário público e crítico musical, Joaquim de Seabra

Pessoa, e de Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Fernando Pessoa tem sua infância

marcada por uma série de acontecimentos que o marcaram por toda sua existência;

Em 1893, aos cinco anos de idade, perde seu pai, vítima da tuberculose. Além desse fato

trágico, Pessoa ganha um irmão, Jorge. Com o falecimento do pai, a família se vê em

condições financeiras desfavoráveis e é obrigada a mudar-se para a casa de Dionísia, a avó

louca do poeta. Duas perdas irreparáveis: o pai e a casa;

Em 1894, morre seu irmão Jorge. E é nessa sucessão de perdas que Pessoa “encontra”

um amigo invisível: Chevalier du Pas, ou o Cavaleiro do Nada;

Em 1895, dois anos após a morte do pai, sua mãe, Madalena, se casa com o

comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal na cidade de Durban, uma colônia

inglesa na África do Sul, e é para lá que a família se muda no ano seguinte;

Em 1896, nascem mais dois irmãos (Henriqueta Madalaena, que vem a falecer três anos

mais tarde, e João) e Fernando Pessoa inicia o curso primário na escola de freiras

irlandesas de West Street em Durban. Três anos depois, ingressa na Durban High School.

Considerado um aluno excepcional, é promovido ao quarto ano do liceu antes mesmo de

terminar o terceiro ano. Assim, faz em três anos o que deveria se fazer em cinco;

Em 1903, é admitido na Universidade do Cabo, mas cursa apenas um ano. É desse

período que data a criação de suas primeiras “personalidades literárias”, ou seja, vários

poetas fictícios que vão assinar as poesias que “eles mesmos escrevem”. Dentre os quais

se destacam dois adolescentes, como Pessoa: Alexander Search e Charles Robert Anon,

esse último com um temperamento completamente oposto ao de Fernando;

Em 1904, nasce mais uma irmã, Maria Clara. Além disso, Fernando Pessoa retorna a

Portugal, passando a viver com a tia-avó Maria. Pessoa também se inscreve na Faculdade

de Letras, mas quase não frequenta o curso;

Colégio Cenecista Nossa Senhora dos Anjos – GENSA 65 anos

Page 2:  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia.

Em 1907, com a morte da avó, Fernando Pessoa recebe uma pequena herança e decide

empreender, criando uma tipografia. Porém, o negócio não avança e logo fracassa;

Assim, em 1908, o poeta começa a trabalhar como “correspondente de línguas

estrangeiras”, ou seja, encarrega-se da correspondência comercial em inglês e francês em

escritórios de importações e exportações, além de tradutor, profissões que desempenhará

até o fim da vida;

Em 1912, Pessoa se torna grande amigo de outro jovem poeta português, Mario de Sá

Carneiro. É nesse momento que Pessoa estreia na literatura, escrevendo artigos publicados

na revista A Águia, organizada e editada pelo também poeta Teixeira de Pascoais. Seus

artigos causam polêmica, por mexer com ícones sagrados para a intelectualidade

portuguesa: é anunciada a chegada a Portugal de um poeta maior que Luiz de Camões, um

supra-Camões, sendo logo criticado;

Em 1913, produz mais algumas obras (poemas e uma peça de teatro) entre as quais um

artigo na revista A Águia, chamado de “Floresta do Alheamento”, que, mais tarde, fará parte

do Livro do desassossego, obra escrita durante toda a sua vida;

8 de março de 1914, o “Dia Triunfal”. Data em que Fernando Pessoa é dominado por

uma força maior e escreve “trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase”. O poema

se chama O guardador de rebanhos, seguido do aparecimento de alguém dentro de si a

quem chamou Alberto Caeiro, seu mestre. Após isso, já pegou de outro papel e escreveu,

também a fio, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua. Além de Caeiro, o poeta

também tratou de descobrir – “instintiva e subconscientemente” – uns discípulos. Assim,

nascia a obra e a vida dos poetas heterônimos de Fernando Pessoa: Ricardo Reis e Álvaro

de Campos;

1915: ano de criação da revista Orpheu, a qual revoluciona a criação literária portuguesa,

dando início ao Modernismo Português;

Em 1916, o amigo e poeta Mário de Sá-Carneiro comete suicídio em Paris. Isso abala

profundamente Pessoa. Assim, além da organização e da publicação de sua própria obra,

Fernando também assume a organização da obra de seu amigo;

Em 1925, morre a mãe de Fernando Pessoa. Desestabilizado psicologicamente, neste

momento, o poeta escreve a um amigo manifestando o desejo de ser internado;

Em 1927, está nascendo em Portugal outra geração literária. Neste ano, é publicada a

revista Presença, e com ela tem início o Presencismo, segundo momento do Modernismo

português. E Fernando Pessoa é reconhecido por essa nova geração de poetas como seu

mestre, mudando a forma como Portugal via o seu maior poeta do século.

Page 3:  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia.

Em 1934, Fernando Pessoa finaliza Portugal, poema épico português do século XX que,

mais tarde, viria a ser chamado de Mensagem. Fato curioso: esse poema é inscrito no

concurso literário do Secretariado Nacional de Propaganda, Prêmio Antero de Quental.

Entretanto, fica apenas em segundo lugar, pois seu livro tinha um número reduzido de

páginas e não atendia à orientação do Estado Novo, a ditadura de Salazar.

Em 1935, Fernando Pessoa escreve a famosa carta ao crítico Adolfo Casais Monteiro,

em que explica como nasceram os heterônimos e na qual se declara um ocultista, um

místico. Fernando Pessoa morre no dia 30 de novembro de 1935 de cirrose hepática,

deixando toda sua obra, cerca de 27 mil papéis, dentro de uma grande arca, comprada pelo

Estado português em 1979 e depositada na Biblioteca Nacional.

2. A coletânea de poemas de Fernando Pessoa

Para o concurso vestibular, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS) selecionou 17 poemas para compor uma coletânea da obra desse poeta

português, considerado o maior poeta de língua portuguesa do século XX e, ao lado

de Luis de Camões, um dos maiores da literatura universal. Essa amostra faz um

pequeno recorte do que foi a obra dessa genial personalidade, criadora de outras

tantas, e passa por importantes momentos de sua vida e de suas fases da criação

literária.

A coletânea inclui 10 poemas reunidos e publicados pela Companhia Aguilar

Editora em um volume único intitulado Fernando Pessoa – Obra Poética, de 1965,

assim como 2 poemas que compõem a Chuva Oblíqua, poema-manifesto composto

de seis poemas em que o poeta apresenta o conceito do interseccionismo,

descrevendo a sua maneira de ver o real por meio de sua materialidade. Por fim,

aparecem nesta coletânea 5 poemas que fazem parte do livro Mensagem, obra-

prima de Fernando Pessoa, que narra a trajetória épica do povo português,

retomando, através de símbolos do misticismo e do ocultismo, o passado glorioso da

nação portuguesa e o comparando com a Portugal de hoje.

3. Análise dos poemas de Fernando Pessoa

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.Finge tão completamenteQue chega a fingir que é dor

Page 4:  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia.

A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,Na dor lida sentem bem,Não as duas que ele teve,Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de rodaGira, a entreter a razão,Esse comboio de cordaQue se chama coração.

Publicado em 1931, Autopsicografia figura como um dos poemas mais conhecidos do poeta. Segundo a Profa. Dra. Jane Tutikian1, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia. A que ele cria o torna um “fingidor”. E o leitor, ao ter contato com essa dor inventada, descobre a dor que não tem. Assim, o poema se revela uma forma de se alcançar o sentimento verdadeiro – ou: a verdade essencial.

Isto

Dizem que finjo ou mintoTudo que escrevo. Não.Eu simplesmente sintoCom a imaginação.Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,O que me falha ou finda,É como que um terraçoSobre outra coisa ainda.Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meioDo que não está ao pé,Livre do meu enleio,Sério do que não é.Sentir? Sinta quem lê!

Assim como em Autopsicografia, o poema Isto coloca novamente em foco o fazer poético e o papel do poeta diante desse exercício de criação. Ao serem considerados os versos “Eu simplesmente sinto/ Com a imaginação./ Não uso o coração.” demonstra que o poeta entende o fazer poético como uma construção ficcional, sem necessariamente se valer da emoção. Além disso, suas experiências, seus sonhos, constituem objetos sublimes que servem para sua construção ficcional, por isso está acima de outra “coisa”. É justamente essa sobreposição de suas experiências ao que sente com a imaginação que ele classifica como “linda” em seu fazer poético. E, por não se preocupar com a emoção em seu processo de criação, livra-se de sua indecisão (“enleio”), por ter consciência dessa imaginação. E termina por deixar o sentimento ao leitor.

Pobre velha música

1 Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pós-doutora pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Leciona Literatura Portuguesa e Luso-Africana na UFRGS. Organizou diversos volumes de poesia portuguesa e é autora de vários livros de ficção. Atualmente, ocupa o cargo de Vice-Reitora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Page 5:  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia.

Pobre velha música!Não sei por que agrado,Enche-se de lágrimasMeu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te,Não sei se te ouviNessa minha infânciaQue me lembra em ti.

Com que ânsia tão raivaQuero aquele outrora!E eu era feliz? Não sei:Fui-o outrora agora.

Esse poema apresenta aquilo que mais adiante será retomado em Chuva Oblíqua, podendo constituir um objeto de aproximação, ou seja, uma intertextualidade, quando a lembrança de um episódio da infância vem à tona após o eu-lírico ouvir uma velha música.

Qualquer música

Qualquer música, ah, qualquer,Logo que me tire da almaEsta incerteza que querQualquer impossível calma!

Qualquer música — guitarra,Viola, harmónio, realejo...Um canto que se desgarra...Um sonho em que nada vejo...

Qualquer coisa que não vida!Jota, fado, a confusãoDa última dança vivida...Que eu não sinta o coração!

s. d.Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 220.

1ª publ. In Presença , nº 10. Coimbra: Mar. 1928.

A musicalidade se mostra como um fator desencadeador de muitas reminiscências e pode ser o objeto que desperta no poeta a imaginação do fazer poético. Novamente podemos apontar aqui mais um ponto de intertextualidade tanto com Pobre velha música quanto com Chuva Oblíqua.

Natal... Na província neva

Natal... Na província neva.Nos lares aconchegados,Um sentimento conservaOs sentimentos passados.

Page 6:  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia.

Coração oposto ao mundo,Como a família é verdade!Meu pensamento é profundo,Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graçaA paisagem que não sei,Vista de trás da vidraçaDo lar que nunca terei!

s. d.Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 115.

1ª publ. In Notícias Ilustrado, nº 29. Lisboa: 30-12-1928.

Neste poema temos uma leitura bem mais intimista, levantando relações com a própria biografia do poeta, uma vez que sua vida foi muito marcada pela perda do que era sua família. Pai, irmãs, avó, amigo, mãe, tudo o que poderia representar a ideia de família se foi perdendo. E, em um momento como o Natal, lembranças como essas podem causar grandes perturbações em alguém que talvez nunca mais possa estar inserido em uma família.

Ela canta, pobre ceifeira

Ela canta, pobre ceifeira,Julgando-se feliz talvez;Canta, e ceifa, e a sua voz, cheiaDe alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de aveNo ar limpo como um limiar,E há curvas no enredo suaveDo som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,Na sua voz há o campo e a lida,E canta como se tivesseMais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!O que em mim sente 'stá pensando.Derrama no meu coração a tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!Ter a tua alegre inconsciência,E a consciência disso! Ó céu !Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!Entrai por mim dentro! TornaiMinha alma a vossa sombra leve!Depois, levando-me, passai!

Page 7:  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia.

Novamente a musicalidade aparece como um dos objetos do fazer poético em Fernando Pessoa. A emoção da ceifeira o faz pensar em querer viver sem pensar, colocando-o novamente em uma condição angustiante. É importante perceber a estrutura do poema, pois há duas partes bastante claras: a primeira, quase que inteiramente descritiva; e a segunda, essencialmente reflexiva.

Não sei se é sonho, se realidade

Não sei se é sonho, se realidade,Se uma mistura de sonho e vida,Aquela terra de suavidadeQue na ilha extrema do sul se olvida.É a que ansiamos. Ali, aliA vida é jovem e o amor sorri

Talvez palmares inexistentes,Áleas longínquas sem poder ser,Sombra ou sossego deem aos crentesDe que essa terra se pode terFelizes, nós? Ali, talvez, talvez,Naquela terra, daquela vez,

Mas já sonhada se desvirtua,Só de pensá-la cansou pensar;Sob os palmares, à luz da lua,Sente-se o frio de haver luarAh, nesta terra também, tambémO mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,Nem com palmares de sonho ou não,Que cura a alma seu mal profundo,Que o bem nos entra no coração.É em nós que é tudo. É ali, ali,Que a vida é jovem e o amor sorri.

20-8-1933Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 158.

Em Não sei se é sonho, se realidade temos novamente o tema da desilusão presente no fazer poético de Fernando Pessoa. Muito pela confusão entre o que pode significar um sonho e o que pode ser a realidade. O fato é que a desilusão reside justamente em não se poder ter na realidade aquilo que se sonha.

Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.Cada momento mudei.Continuamente me estranho.Nunca me vi nem achei.De tanto ser, só tenho alma.Quem tem alma não tem calma.Quem vê é só o que vê,Quem sente não é quem é,

Page 8:  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia.

Atento ao que sou e vejo,Torno-me eles e não eu.Cada meu sonho ou desejoÉ do que nasce e não meu.Sou minha própria paisagem,Assisto à minha passagem,Diverso, móbil e só,Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendoComo páginas, meu serO que segue não prevendo,O que passou a esquecer.Noto à margem do que liO que julguei que senti.Releio e digo: «Fui eu?»Deus sabe, porque o escreveu.

24-8-1930

Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993). - 48.

Em Não sei quantas almas tenho vemos um pouco da angústia do poeta. Fernando Pessoa confessa ter se multiplicado em função das necessidades de sua vida, e o fez com tal intensidade viver tantas outras vidas que abdicou dele próprio. Fernando Pessoa já não consegue viver a própria vida sem ser por meio de outra pessoa, uma das tantas que inventou.

Viajar! Perder países!

Viajar! Perder países!Ser outro constantemente,Por a alma não ter raízesDe viver de ver somente!

Não pertencer nem a mim!Ir em frente, ir a seguirA ausência de ter um fim,E da ânsia de o conseguir!

Viajar assim é viagem.Mas faço-o sem ter de meuMais que o sonho da passagem.O resto é só terra e céu.

20-9-1933

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 182.

A desilusão pode ser levantada como a grande temática em Viajar! Perder países!. A desilusão de nunca assumir apenas um único lugar, de estar sempre em movimento e pertencendo a muitos lugares e ao mesmo tempo sem pertencer a nenhum. Uma

Page 9:  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia.

relativização que coloca em foco os dilemas pessoanos, entre aquilo que é real e o que é ideal.

Liberdade

Ai que prazerNão cumprir um dever,Ter um livro para lerE não fazer!Ler é maçada,Estudar é nada.Sol doiraSem literaturaO rio corre, bem ou mal,Sem edição original.E a brisa, essa,De tão naturalmente matinal,Como o tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.Estudar é uma coisa em que está indistintaA distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,Esperar por D.Sebastião,Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...Mas o melhor do mundo são as crianças,Flores, música, o luar, e o sol, que pecaSó quando, em vez de criar, seca.

Mais que istoÉ Jesus Cristo,Que não sabia nada de finançasNem consta que tivesse biblioteca...

Em Liberdade o poeta demonstra todo o seu desprendimento em relação à ideia de dever, aproximando-se muito de um de seus heterônimos, o seu mestre, Alberto Caeiro. Entretanto, há ainda a possibilidade de se fazer outras leituras, como a do viés estoico, propondo um olhar irônico sobre a necessidade de se cumprir com o dever. Dessa forma, o poeta estaria enaltecendo que só seria possível atingir a liberdade em consequência do cumprimento do dever.

Chuva Oblíqua

Concebida no chamado “Dia Triunfal”, 8 de março de 1914, como o define o próprio Fernando Pessoa em sua carta ao crítico Casais Monteiro, esta obra composta de VI poemas é um dos registros, junto de Hora Absurda, em que fica mais evidente o conceito do interseccionismo criado e aplicado pelo poeta.

O conceito gira em torno da apresentação ao longo de seus poemas de dois planos imagéticos: um diretamente relacionado à realidade em sua forma material e outro muito mais voltado para aspectos oníricos, relativo ao mundo dos sonhos e da

Page 10:  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia.

imaginação. Esses planos ora se cruzam, criando pontos de intersecção dentro de sua poesia.

Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carrossel... (Chuva Oblíqua – V)V

Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carroussel...Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim...Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,E as luzes todas da feira fazem ruído dos muros do quintal...Ranchos de raparigas de bilha à cabeçaQue passam lá fora, cheias de estar sob o sol,Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,Gente toda misturada com as luzes das barracas com a noite e com o luar,E os dois grupos encontram-se e penetram-seAté formarem só um que é os dois...A feira e as luzes da feira e a gente que anda na feira,

E a noite que pega na feira e a levanta ao ar,Andam por cima das copas das árvores cheias de sol,Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça,

E toda esta paisagem de Primavera é a lua sobre a feira,E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol...

De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneiraE, misturado, o pó das duas realidades caiSobre as minhas mãos cheias de desenhos de portosCom grandes naus que se vão e não pensam em voltar...Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos...As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,Sozinha e contente como o dia de hoje...

8-3-1914

«Chuva Oblíqua». Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 29.

Neste poema fica evidente o jogo de sequências imagéticas construídas pelo poeta no momento em que assim descreve: “E os dois grupos encontram-se e penetram-se/ Até formarem só um que é os dois.../ A feira e as luzes da feira e a gente que anda na feira,/ E a noite que pega na feira e a levanta ao ar,/ Andam por cima das copas das árvores cheias de sol,/ Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,/ Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça,/ E toda esta paisagem de Primavera é a lua sobre a feira,/ E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol...”.

O primeiro plano imagético formado pela descrição dentro de uma linha temporal aplicável à realidade, ou seja, a feira, suas luzes bem como a gente que por ela anda. O segundo, constituído pela noite na feira. E essas duas possibilidades imagéticas se cruzam até se desfazerem por completo como “grandes naus que se vão e não pensam em voltar...”.

O maestro sacode a batuta (Chuva Oblíqua – VI)VI

Page 11:  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia.

O maestro sacode a batuta,A lânguida e triste a música rompe...

Lembra-me a minha infância, aquele diaEm que eu brincava ao pé dum muro de quintalAtirando-lhe com, uma bola que tinha dum ladoO deslizar dum cão verde, e do outro ladoUm cavalo azul a correr com um jockey amarelo...

Prossegue a música, e eis na minha infânciaDe repente entre mim e o maestro, muro branco,Vai e vem a bola, ora um cão verde,Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infânciaEstá em todos os lugares e a bola vem a tocar música,Uma música triste e vaga que passeia no meu quintalVestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontra à minha infância e elaAtravessa o teatro todo que está aos meus pésA brincar com um jockey amarelo e um cão verdeE um cavalo azul que aparece por cima do muroDo meu quintal... E a música atira com bolasÀ minha infância... E o muro do quintal é feito de gestosDe batuta e rotações confusas de cães verdesE cavalos azuis e jockeys amarelos...

Todo o teatro é um muro branco de músicaPor onde um cão verde corre atrás de minha saudadeDa minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copaCom orquestras a tocar música,Para onde há filas de bolas na loja onde a compreiE o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo

8-3-1914

Chuva Oblíqua. Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 30.1ª publ. In Orpheu, nº 2. Lisboa: Abr.-Jun. 1915.

Tal qual no poema anterior, tem-se nesse texto a intersecção de dois planos imagéticos, apresentados ao leitor nos versos: “O maestro sacode a batuta,/ A

Page 12:  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia.

lânguida e triste a música rompe.../ Lembra-me a minha infância, aquele dia/ Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal” (...).

Seguindo por: “De repente entre mim e o maestro, muro branco,/ Vai e vem a bola, ora um cão verde,/ Ora um cavalo azul com um jockey amarelo.../ Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância/ Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,/ Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal/ Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...”.

O primeiro plano apresentado pela imagem do maestro tocando sua música e o segundo pelas brincadeiras da infância. Alternando-se, interseccionando-se de modo a criar o efeito de sobreposição desses planos, destacando por vezes os elementos da fantasia até que se desfaçam como num sonho ao término da música.

Mensagem

Ainda segundo o que nos diz a Profa. Jane Tutikian, “Mensagem, de Fernando Pessoa, é a grande épica portuguesa do século XX”, mas apresenta uma características bastante peculiares, atribuindo-lhe uma beleza e uma grandiosidade sem iguais.

Vale lembrar que Mensagem foi o único livro de poemas, em língua portuguesa, que Fernando Pessoa publicou em vida.

De início, Fernando Pessoa deixa claro o que é necessário de parte do leitor para que se compreenda Mensagem, apontando cinco qualidades: simpatia, intuição, inteligência, compreensão e a graça (divina compreensão). Além disso, é muito importante ressaltar o caráter místico dessa obra. Mensagem é considerado a interpretação esotérica2 da história portuguesa. Com uma estrutura complexa e forte carga simbólica.

Nessa obra, Fernando Pessoa retoma a história de Portugal a partir de seus três grandes mitos: 1. o Sebastianismo, o retorno do Salvador, em alusão à imagem do Rei português Dom Sebastião, morto em batalha contra os mouros, na África, em Alcácer Quibir, em 1578, e cujo corpo nunca foi resgatado. Assim, Portugal volta-se para o messianismo, acreditando que Dom Sebastião voltará para tirá-lo da decadência; 2. a audácia do povo português e o ímpeto que os fez se lançarem ao mar, dando início aos descobrimentos marítimos; e 3. o mito do fundador que veio de longe, baseando-se na figura de Ulisses tido como fundador mítico de Lisboa. No entanto, é principalmente sobre o primeiro que a obra se debruça.

Sobre sua estrutura, podemos dizer que é constituído por 44 poemas curtos, compondo imagens de seres reais, seres lendários e do país. Essas imagens carregam o sonho da grandeza portuguesa acima do deseja de grandeza pessoal.

O livro é dividido em três partes: 1. “Brasão”, que trata dos heróis fundadores da nação, mostrando todo o

passado glorioso português. A imagem construída por esses heróis remonta a imagem do brasão real português do século XV.

2. ”Mar Português”, a qual trata do período áureo das navegações e seus heróis, além de repassar as principais etapas da expansão marítima portuguesa, colocando-o num papel de destaque no mundo durante os séculos XV e XVI.

3. “O Encoberto” é a parte mais fantástica do poema. Ela é a dedicada ao rei D. Sebastião e ao mito do Quinto Império. Mais uma vez considerando o que nos apresenta a Profa. Jane Tutikian, essa constitui a parte mais genial da obra, uma vez que, de maneira inesperada, Fernando Pessoa rompe de vez com o modelo épico, deixando para trás o passado (trocadilho óbvio!), para falar sobre a decadência do presente português.

Outra inovação que nos traz o poeta é o fato de haver um contraste entre o que há na poesia épica clássica, caracterizada pela uniformidade, e o que há em

2 Doutrina secreta que une Maçonaria, Rosa-Cruz e religiões de caráter iniciático, secreto.

Page 13:  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia.

Mensagem. Apesar de ser tripartido, há uma pluralidade de vozes que cantam Portugal, por meio de poemas de formatos variados tanto em numero de versos quanto nas combinações das rimas.

Outro importante contraste se apresenta na relação com o mar. Como no presente não é mais plausível se lançar ao mar em busca de grandes descobrimentos, Fernando Pessoa opta por manter o mar apenas em referência ao passado. Assim, no presente, a viagem precisa ser outra, de outra ordem: a espiritual.

Mensagem canta um passado eterno, glorioso, de Portugal e um presente decadente.

O infante (Segunda parte – Mar português – I)

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.Deus quis que a terra fosse toda uma,Que o mar unisse, já não separasse.Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,Clareou, correndo, até ao fim do mundo,E viu-se a terra inteira, de repente,Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.Do mar e nós em ti nos deu sinal.Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.Senhor, falta cumprir-se Portugal!

Neste poema, o homem aparece novamente como agente da vontade divina. Era missão do Infante o aumento do império, e o mar foi desvendado. Entretanto, o Império Português, perdeu o controle das rotas oceânicas e a hegemonia no Índico, desfez-se. Ainda assim, para o poeta, Portugal está destinado à grandeza futura, o império espiritual, e isso ainda não se cumpriu.

Padrão (Segunda parte – Mar português – III)

O esforço é grande e o homem é pequeno.Eu, Diogo Cão, navegador, deixeiEste padrão ao pé do areal morenoE para diante naveguei.

A alma é divina e a obra é imperfeita.Este padrão sinala ao vento e aos céusQue, da obra ousada, é minha a parte feita:O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceanoEnsinam estas Quinas, que aqui vês,Que o mar com fim será grego ou romano:O mar sem fim é português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na almaE faz a febre em mim de navegarSó encontrará de Deus na eterna calmaO porto sempre por achar.

Page 14:  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia.

Diogo Cão, navegador, chegou a Angola, onde fundou o Padrão de São Jorge. Observa-se, na terceira estrofe, que o poeta coloca o feito português acima dos feitos gregos e romanos.

Mar português (Segunda parte – Mar português – X)

Ó mar salgado, quanto do teu salSão lágrimas de Portugal!Por te cruzarmos, quantas mães choraram,Quantos filhos em vão rezaram!Quantas noivas ficaram por casarPara que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a penaSe a alma não é pequena.Quem quer passar além do BojadorTem que passar além da dor.Deus ao mar o perigo e o abismo deu,Mas nele é que espelhou o céu.

Neste poema, tem-se o mar como representação do perigo, mas, ao mesmo tempo, representa o reflexo do céu, é a representação da vitória e da recompensa.Noite (Terceira parte – O Encoberto – III – Os Tempos – Primeiro)

A nau de um deles tinha-se perdidoNo mar indefinido.O segundo pediu licença ao ReiDe, na fé e na leiDa descoberta, ir em procuraDo irmão no mar sem fim e a névoa escura.

Tempo foi. Nem primeiro nem segundoVolveu do fim profundoDo mar ignoto à pátria por quem deraO enigma que fizera.Então o terceiro a El-Rei rogouLicença de os buscar, e El-Rei negou.

Como a um cativo, o ouvem a passarOs servos do solar.E, quando o veem, veem a figuraDa febre e da amargura,Com fixos olhos rasos de ânsiaFitando a proibida azul distância.

Senhor, os dois irmãos do nosso Nome— O Poder e o Renome —

Ambos se foram pelo mar da idadeÀ tua eternidade;E com eles de nós se foiO que faz a alma poder ser de herói.

Queremos ir buscá-los, desta vil

Page 15:  · Web view, neste texto Fernando Pessoa explica o que entende pela criação de um poema. Isso, ao sugerir que existem duas dores, a que ele sente e a que ele cria ao fazer poesia.

Nossa prisão servil:É a busca de quem somos, na distânciaDe nós; e, em febre de ânsia,A Deus as mãos alçamos.

Mas Deus não dá licença que partamos.

Esse poema se refere ao episódio de exploração da América: Gaspar Corte-Real explorou as costas do Canadá, em 1500, mas não regressou. O seu irmão Miguel foi procura-lo e sua nau se perdeu. Vasco Corte-Real pediu, então, autorização ao rei D. Manuel para sair à procura de seus irmãos, mas teve seu pedido negado. Observa-se, entretanto, o caráter fortemente alegórico do poema; mais do que aos irmãos, ele se refere ao próprio povo português.

Nevoeiro (Terceira parte – O Encoberto – III – Os Tempos – Quinto)

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,Define com perfil e serEste fulgor baço da terraQue é Portugal a entristecer —Brilho sem luz e sem arder,Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.Ninguém conhece que alma tem,Nem o que é mal nem o que é bem.(Que ânsia distante perto chora?)Tudo é incerto e derradeiro.Tudo é disperso, nada é inteiro.Ó Portugal, hoje és nevoeiro...É a Hora!

Valete, Frates.

Nota-se, no poema, o desencanto com o Portugal do presente, uma imagem de decadência Portugal é o nevoeiro que marcará o regresso de D. Sebastião, é, portanto, a “Hora”, a hora em que o rei salvador voltará e transformará o passado glorioso em futuro glorioso, dando, finalmente, a Portugal o Quinto Império espiritual.