( Psicologia) - Yves Ltaille - Para Um Estudo Psicologico Das Virtudes Morais

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  • Para um estudo psicolgico das virtudes morais

    Yves de La TailleUniversidade de So Paulo

    Correspondncia:Yves de La TailleInstituto de PsicologiaAv. Prof. Melo Moraes, 1721So Paulo, SP 05508-900e-mail:[email protected]

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    ResumoBlock quote end

    O propsito deste artigo defender a importncia de estudos psicolgicos das virtudes morais (como generosidade, coragem, humildade, fidelidade etc.).Tal defesa realizada de vrias formas.Do ponto de vista filosfico, o tema das virtudes no somente clssico (Ver Aristteles, por exemplo) como tem sido rediscutido por autores contemporneosdescontentes com as limitaes da tica moderna, em geral baseada no conceito de direito.Do ponto de vista psicolgico, o autor defende a idia segundo a qual as virtudes morais no somente participam da gnese da moralidade, como representamtraos de carter essenciais coeso da personalidade moral.Tal perspectiva est, de certa forma, anunciada na obra de Piaget sobre o juzo moral, como em autores outros como Tugendhat. Ela est tambm presente nosestudos sobre a relao entre o sentimento de vergonha e a tica.Finalmente, aponta-se que, no que se refere educao moral, as virtudes podem representar um tema rico e sugestivo para a reflexo das crianas e adolescentes.

    Palavras-chave

    Moral - Virtudes - Desenvolvimento - Carter.

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    For a psychological study of moral virtues

    Abstract

    The purpose of this article is to advocate the importance of psychological studies of the moral virtues (such as generosity, courage, modesty, faithfulness,etc.). This argument is proposed by several ways.From the philosophical viewpoint, the theme of virtues is not only classical (see Aristotle, for example), but has been revisited by contemporary authorsdissatisfied with the limitations of modern ethics, largely based on the concept of rights.From the psychological point of view, the author defends the idea that moral virtues not only participate in the genesis of morality, but also representessential features of character to the cohesion of the moral personality.Such perspective is, to some extent, announced in Piaget's work about moral judgement, as well as by other authors such as Tugendhat. The same perspectiveis also presented in studies on the relationship between ethics and the feeling of shame.Finally, it is remarked that, in what concerns moral education, the virtues can

  • be a rich and suggestive topic for reflection by children and adolescents.

    Keywords

    Moral - Virtues - Development - Character.Block quote end

    Acreditamos que possvel defender a importncia de pesquisas sobre as virtudes morais de trs formas diferentes e complementares: 1) o interesse universaldo tema; 2) sua insero numa possvel definio do que seja moral ou tica; e 3) sua relevncia psicolgica na construo da moral por parte do ser humanoem geral e da criana em particular. Vamos desenvolver cada uma dessas razes, que nos levam a eleger as virtudes morais como objeto de investigao dapsicologia do desenvolvimento.

    Tema universal

    1) Existir uma cultura na qual caractersticas humanas como coragem, fidelidade, prudncia e outras no sejam identificadas, nomeadas e apreciadas? A respostacabe Antropologia, e a resposta desta certamente negativa. Nas diversas literaturas, filosofias e religies, encontram-se referncias a elas. Naturalmente,em diversas culturas ou em diversos momentos histricos tais caractersticas humanas podem receber um tratamento diferente. O que era visto como coragempelo cavaleiro feudal (arriscar-se em duelos, por exemplo), pode ser visto como temeridade e falta de humildade para um pai de famlia contemporneo; eo que visto como prudncia poltica para um social-democrata, pode ser interpretado como covardia para um revolucionrio comunista. Porm, o fato dehaver srias discordncias a respeito do que a verdadeira expresso da coragem, da prudncia ou da humildade, longe de depor contra a importncia humanado tema, pelo contrrio, a refora. Parece que cada cultura em geral e cada indivduo em particular sentem a necessidade de pensar e julgar tais caractersticashumanas que respondem pelo nome de virtudes. Portanto, no a presena ou a ausncia do pensar sobre virtudes que diferencia pessoas ou culturas, massim a qualidade desse pensar. Assim como a racionalidade e a moral, o tema das virtudes universal. Tanto verdade que, nas conversas do cotidiano, elasesto presentes, e isso ocorre no somente entre os adultos, mas tambm entre as crianas. Com efeito, nossas pesquisas anteriores atestaram o fato deas crianas pequenas, mesmo com o desconhecimento da palavra que as nomeia, terem opinies sobre se devemos ou no dar publicidade a nossos feitos (humildade),se devemos ou no ceder nossa fruta predileta a um irmo (generosidade), se o tamanho de um desafio medida para a coragem, etc. (La Taille e outros,1998).

    Em resumo, no nos parece exagerado dizer que encontramos nas virtudes um tema propriamente humano, um tema universal. S este fato, pensamos, justificariainmeras pesquisas.

    Podemos nos perguntar por que esse tema tem tanta relevncia para o homem. Vemos trs razes para o fato.

    2) A primeira decorre da prpria definio geral da palavra virtude: qualidade prpria para que se produzam certos efeitos, caracterstica, propriedade(Dicionrios Lexis e Aurlio). De acordo com esta definio, a virtude da faca cortar e a do olho enxergar. Numa definio mais restrita, e mais freqente,a palavra virtude refere-se a qualidades das pessoas. Trata-se, portanto, de um juzo de valor feito sobre um indivduo. Ora, sendo que as representaesde si, que formam a identidade de cada pessoa, so sempre valorativas (ver Taylor,1998; Perron, 1991; Adler, 1992; La Taille, 2000), fcil compreenderpor que as virtudes so de suma importncia para os homens: pelo fato de elas possibilitarem a todo homem uma leitura valorativa de si prprio e dos outros,

  • elas fazem parte do quadro de referncias a partir do qual cada um se entende como ser humano.

    3) A segunda razo complementa a primeira: no somente as virtudes incidem sobre qualidades de cada pessoa, como elas apontam para qualidades apreciadas,admiradas at. E so almejadas tambm. Mais ainda: apontam para a excelncia, para um ideal. Como pensava Aristteles, a pessoa virtuosa no somenteaquela que age bem, mas sim aquela que quer o bem e, assim, uma "boa pessoa" (ver tambm Tugendhat, 1993). Escreveu o Estagirita:Block quote start

    No se poderia dizer de um homem que justo se ele no experimenta a alegria de aes justas, e nem que um homem generoso se no tem prazer na aesgenerosas, e assim por diante. Assim, devemos convir que as aes conforme a virtude so agradveis em si. (Aristteles, 1965, p. 36)Block quote end

    Logo, as virtudes no somente remetem a uma leitura valorativa da pessoa humana (assim como os vcios), como referem-se a qualidades desejadas.

    Mas desejveis de que ponto de vista: do prazer? da felicidade? da tica? Isso nos leva terceira razo pela qual as virtudes tm relevncia do ponto devista humano: sua referncia tica.

    4) Se pensamos em prazer no sentido fsico ou imediatista da palavra, claro que as virtudes pouco ou nada tm a ver com essa experincia humana. Mas sepensarmos num uso equilibrado e harmonioso dos prazeres, a sim as virtudes podem ser evocadas, notadamente a temperana. Mas o que legitimaria a buscade tal equilbrio e harmonia? Ora, a felicidade. Essa a posio de Aristteles e sua teoria nos leva justamente a levantar a dimenso tica. Como sesabe, para o filsofo grego, a tica define-se pela busca da felicidade (eudemonismo). Portanto, deste ponto de vista, as virtudes no somente tm relevnciahumana por referirem-se a valores desejveis, como adentram no universo moral: elas definem o carter de uma pessoa e, por carter, deve-se entender umaavaliao tica da personalidade. A esse respeito escreveu judiciosamente Sennett:Block quote start

    Os antigos anglofnicos, e na verdade os escritores que remontam Antigidade, no tinham dvidas sobre o significado de carter: o valor tico que atribumosaos nossos prprios desejos e s nossas relaes com os outros. Horcio descreve que o carter de algum depende de suas ligaes com o mundo. Neste sentido,carter um termo mais abrangente que seu rebento mais moderno personalidade, pois este se refere a desejos e sentimentos que podem apostemar por dentro,sem que ningum veja. (1999, p.10 - grifo nosso)Block quote end

    Aristteles tambm emprega o conceito de carter, no para julgar se algum inteligente ou apaixonado, mas sim se "generoso", "temperante" (1965, p.47).Dissemos que o conceito de carter corresponde a uma leitura tica da personalidade. Isso vlido no senso comum: quando se diz de algum que tem carter,trata-se de um elogio; o que tambm valido para a tica: quando se diz de uma pessoa que justa (e justia uma virtude), est se fazendo uma avaliaoa partir de umvalor tico.1

    Em resumo, as virtudes remetem-nos a dimenses universais, pois essencialmente humanas, a saber: qualidade atribuda pessoa, valor desejvel e admirvel,leitura tica da personalidade. Pensamos que isso j basta para avalizar um estudo psicolgico das virtudes.

  • Todavia, ainda falta escolher em que campo da Psicologia vamos realizar tais investigaes. Um campo que nos parece adequado o das Representaes Sociais.De fato, por que no eleger algumas virtudes e verificar que significaes e valores so a elas associadas por determinados grupos sociais? Outro campoda Psicologia que tambm parece colocar-se, notadamente em razo do que foi acima exposto, o da Psicologia Moral. Com efeito, se as virtudes permitemuma leitura tica da personalidade, seu estudo pode, em aparncia, perfeitamente integrar-se a este clssico campo da Psicologia. No entanto, as coisasno so to simples assim, no s porque nem todos os pesquisadores dessa rea so seguidores de Aristteles! Longe disso alis, pois so, em sua maioria,kantianos, fato que explica a quase inexistncia de pesquisas sobre virtudes outras que a justia. sobre essa difcil relao entre virtudes e ticaque vamos nos debruar agora.

    Virtudes e tica: axiologia

    5) O leitor ter reparado que colocamos no ttulo de nosso texto o adjetivo moral para qualificar as virtudes que vamos estudar. Nada mais fizemos do queseguir Aristteles, que faz uma distino entre virtudes intelectuais (como a inteligncia) e as morais (como a generosidade e a temperana). Vimos queo conceito de carter corresponde a tais virtudes morais. Mas algum poder dizer que o emprego do adjetivo moral abusivo. Por exemplo, uma pessoa podeser corajosa ( um trao de carter) e por essa razo aceitar arriscar-se em atos terroristas: neste caso, a coragem uma virtude moral? Pelo menos doponto de vista de quem condena sacrificar inocentes em nome de que causa for, tal coragem no ser moral, ser imoral. Outro exemplo, sempre com a mesmavirtude: todo mundo concordar que em geral preciso coragem para reagir a humilhaes praticadas por pessoas poderosas (imaginemos um aluno que reaja humilhaes de um professor), e certamente todo mundo(menos o agressor!2)admirar tal determinao e reconhecer no valente combatente uma pessoa de carter. No entanto, uma vez que defender-se de humilhaes seguir seu prpriointeresse, no sendo portanto uma atitude altrusta, poder-se- dizer que, embora admirvel, no se trata de uma ao moral. A coragem para defender outremde humilhaes, esta sim seria uma atitude moral. Em suma, a coragem em si nada teria de moral e, portanto, cham-la de virtude moral traduziria uma generalizaoindevida e perigosa. E, seguindo este raciocnio, a nica virtude que realmente mereceria o referido adjetivo seria a justia: como dizia o prprio Aristteles,ela sempre boa. Nela, forma e contedo fundem-se.

    Ora, esta tem sido a posio da Psicologia Moral: eleger a justia como objeto de seus estudos e, como o fez Turiel (1993), definir em torno dela (justiceand fairness) o domnio moral. O resto pertenceria ao domnio convencional (ritos religiosos, por exemplo) ou ao domnio pessoal (beber Coca-Cola ou Guaran).Em suma, no podemos propor um estudo das virtudes dentro do campo da Psicologia Moral sem nos debruar sobre o objeto de estudo dessa rea do conhecimento.Tal objeto deve ser abordado de duas formas: a axiolgica e a causal (ver Piaget, 1965). Comecemos pela dimenso axiolgica e voltemos, portanto, definiodo que moral (ou tica, ambos os conceitos sendo aqui empregados como sinnimos).

    6) Tugendhat, em suas Lies sobre tica, lembra que "o conceito de virtude foi por muito tempo deixado de lado pela ticas modernas" (1993, p. 243). Cremosque a ausncia das virtudes nas reflexes modernas da tica deve-se ao conceito de direito moral.

    Escreve o mesmo autor que "respeitar algum significa reconhec-lo como sujeito de direitos morais" (p.391). O prprio autor sublinha que tal definiobsica do respeito problemtica: mais elementos estariam presentes. Mas o fato que o

  • marco zero (ou mnimo denominador comum) do respeito aquelederivado do reconhecimento do outro como possuindo direitos. Por exemplo, como todo ser humano tem direito integridade fsica e psicolgica, moraltrat-lo respeitando seu corpo e sua mente (por mais que seja um facnora). Outro exemplo, como todo ser humano tem direito a ser julgado segundo a Lei,e que esta vale para todos, moral julg-lo sem privilgios ou sem severidade singular. Os Direitos Humanos representam certamente a forma mais elaboradados direitos morais inspirados na mxima kantiana: devemos sempre tratar o homem como um fim ( o seu direito) e nunca como meio (o que iria de encontroao imperativo categrico moral).

    Isto posto, verifica-se que dos direitos morais decorrem deveres morais (mas a recproca no verdadeira, como veremos mais abaixo). Trata-se de pura lgica:se reconhecido a algum um direito, os outros tm o dever de respeit-lo. Ora, entre as virtudes, apenas uma parece-nos corresponder ao binmio direito/deveres:a justia. Sendo imperativo que um direito de cada um ser tratado de forma justa, tambm imperativo que cada um aja de forma justa, ou que pelo menosprocure pautar suas aes no ideal de justia. Da resultar uma moral de regras (que podem ser inmeras e sempre por ser criadas): os deveres traduzem-seem regras de conduta que podem ser formuladas com razovel clareza. claro que pode haver conflitos entre os prprios direitos e deveres decorrentes.Lembremos o clssico dilema de Heinz, formulado por Kohlberg: deve, ou no, um homem pobre roubar um remdio de preo inacessvel para salvar sua mulherda morte? Entre outros elementos (como a legalidade, a vida privada, a harmonia social etc.), tal dilema apresenta um conflito entre o direito propriedadeprivada (a do farmacutico, inventor e dono do remdio) e o direito vida (a da mulher gravemente enferma). Mas seja qual for a soluo dada, pela prpriaformulao do dilema, sempre prevalecer um direito e o dever dele derivado.

    Antes de refletirmos sobre demais virtudes, devemos verificar que as pesquisas em Psicologia Moral tm se limitado a esta definio de moral: so moraisas condutas que respeitam o direito alheio e o juzo que o considere. Mesmo sem remeter-se explicitamente a essa definio, Piaget (1932) considera a moralcomo um conjunto de regras, e as histrias s quais os sujeitos so submetidos tratam de roubo (direito propriedade), de mentira (direito verdade),de justia retributiva e distributiva (direito a ser tratado a partir do ideal de igualdade e eqidade). Em relao a Kohlberg (1981), basta lembrar queele mesmo coloca a justia como eixo de toda moral e que, segundo ele, esta no pode ser definida como um "saco de virtudes". E Turiel, como vimos acima,define o domnio moral como referente justia e com regras que so julgadas como universais pois correspondem a direitos de toda e qualquer pessoa. Avoz destoante na Psicologia (pelo menos a mais conhecida) a de Carol Gilligan (1982, 1988) que, ao lado da tica da justia, prope a existncia de outra,to importante quanto, segundo ela: a do cuidado (care). Ora, a referida tica do cuidado remete-nos a outra virtude: a da generosidade (para maior anlisedas relaes entre cuidado e generosidade, ver La Taille, 2000).

    7) Dificilmente algum no julgar como moralmente admirvel atos de generosidade. Todavia, por definio, o ato generoso merece esse nome porque no correspondea um direito da pessoa contemplada. Fosse um direito, no se trataria de generosidade, mas sim de justia. Por exemplo, se ajudamos um amigo em dificuldadesfinanceiras, no porque um direito de cada um receber a ajuda de outrem, mas sim porque achamos certofaz-lo.3A pessoa generosa pode ser movida por um sentimento de dever: para ela obrigatrio conduzir-se com generosidade. Mas tal dever no derivado de um direitoalheio, mas sim do valor moral da virtude em questo. Vale dizer que a generosidade traduz um respeito pelo prximo, mas este no , no caso, um sujeitode direitos. Mas, ento, a generosidade moral? Tomemos outra virtude: a gratido. O

  • reconhecimento espiritual de uma dvida sem dvida consideradocomo um bem pela maioria das pessoas, mas - assim como a generosidade, e mais claramente que esta - a ela no corresponde nenhum direito (alis, dizerque h um direito em receber a gratido de outrem chegaria a aniquilar o valor dessa virtude: ou ela espontnea, ou ela no ). A gratido , portanto,moral?

    Algum poder responder aqui que todo e qualquer ato altrusta moral. Assim, o respeito moral receberia um definio mais ampla, e no vinculada apenasa direitos. Respeitar moralmente uma pessoa seria traduzido por trazer-lhe algo, seja algo que um direito seu, seja algo que lhe falta, seja ainda algoque lhe d prazer ou traga felicidade. Mas tal ampliao apresenta dois tipos de problemas.

    O primeiro: ao identificar altrusmo e moral, os domnios pessoal e moral interpenetram-se. Aqui a teoria de Turiel que est em jogo. Tivemos a felizoportunidade de conversarrecentemente4com Larry Nucci, grande divulgador da Teoria dos Domnios, e de lhe perguntar em que domnio ele colocava a virtude generosidade. E ele nos respondeu que,por um lado, em razo de o ato generoso depender de uma deciso livre do sujeito (no sentido de que ningum obrigado por outrem ou pela sociedade - pelomenos de direito - a ser generoso), a virtude correspondente pertencia ao domnio pessoal; e que, por outro, em razo de este ato beneficiar algum, agenerosidade tambm pertencia ao domnio moral. Tal resposta, com a qual concordamos, traz duas decorrncias tericas importantes. Em primeiro lugar, tornacomplexa a definio do domnio pessoal. De fato, nele costumam ser colocadas condutas andinas, como escolher a marca de pasta de dentes, arrumar ou noo prprio quarto, ou escolher parceiros sentimentais. Ora, se cabem tambm nesse domnio, por dependerem de deciso totalmente individual, algumas condutasvirtuosas, ele ganha uma nobreza social sobre a qual vale a pena se debruar. E isso nos leva segunda decorrncia terica: se algumas condutas, emborapertencentes ao domnio pessoal, tambm pertencem ao domnio moral, no h razo para que a Psicologia deva se limitar a estudar apenas as condutas exclusivamentepertencentes ao domnio moral. Seria empobrec-lo. E, por conseguinte, estamos autorizados no s a estudar as virtudes altrustas (ou pr-sociais) comoa generosidade e a gratido, j citadas, como tambm a compaixo, a fidelidade, o amor, e outras mais. Em resumo, se, com Nucci, admitirmos que merecemo nome de moral no apenas as condutas determinadas por direitos alheios mas tambm todas aquelas que beneficiam outrem, o campo da Psicologia Moral amplia-see no h mais razo para eleger a virtude justia como a nica digna de estudo. Pode ser a mais importante, mas no a nica.

    Vejamos agora o segundo problema que traz uma definio de moral que contm exclusivamente condutas altrustas. Que a generosidade seja altrusta, no hdvidas: com ela, age-se exclusivamente por amor ao prximo, e o indivduo generoso em nada se beneficia materialmente de seu ato (pode experimentar prazerou felicidade em ser generoso, o que diferente de uma retribuio social). Mesma coisa pode-se dizer da gratido e do amor (colocado como virtude porComte-Sponville, 1995). No h interesse em ser grato, amoroso ou generoso. E se houver, significa que no houve nem amor nem gratido nem generosidade.Perguntemo-nos agora se a justia genuinamente altrusta. A resposta negativa pelo simples fato de o ato de justia beneficiar tanto quem justo comoquem objeto da justia. Por exemplo, se somos justos com um aluno, claro que o benefcio imediato dele. Porm, virtualmente, tambm nos beneficiamosporque de nosso interesse que a sociedade seja regida por regras justas. Dito de outra forma, na justia no a particularidade de outrem que est emjogo, no o desprendimento (como no caso da generosidade), mas sim a reciprocidade, vale dizer, o contrato. Assim, faz sentido algum ao mesmo tempo

  • sentir-se no dever de ser justo e no direito de exigir que o tratem justamente. No faz tanto sentido algum sentir-se no dever de ser generoso ou gratoou, ao mesmo tempo, exigir que o tratem generosamente e com gratido. Em uma palavra, o fato de a justia conferir direitos retira-lhe o carter puramentealtrusta. melhor dizer que a justia (e talvez a fidelidade) pertence a uma definio contratual de moral (como o fez Piaget).

    8) Se o que acabamos de analisar fizer sentido, temos uma primeira autorizao terica para incluir outras virtudes, alm da justia, no campo da PsicologiaMoral. E como problematizamos tanto a exclusividade da definio contratual da moral (o domnio moral, com regras e deveres decorrentes de direitos) quantoa exclusividade da definio altrusta (que corresponderia mais ao domnio pessoal), somos, num primeiro momento, levados a eleger o conceito de relaosocial como organizador do que podemos chamar de moral. Assim, todas as virtudes que, por altrusmo ou por contrato, dizem respeito ao outro so merecedorasde estudos psicolgicos. o caso, por exemplo, da justia, da generosidade, da gratido, da fidelidade, da tolerncia, da polidez. Todas elas so, segundoa expresso inglesa, other-regarding e, se algumas traduzem-se por regras, outras so traduzidas apenas por atitudes ( o complemento que quer fazer Tugendhat tica moderna).

    E as outras, como a humildade, a coragem, a prudncia, o humor e a temperana? Numa definio other-regarding da moral, elas no tm lugar, a no ser vinculadasa relaes sociais (por exemplo, ser corajoso para salvar uma pessoa). No seriam, portanto, virtudes morais em si, e deveriam ser deixadas de lado pelopsiclogo interessado pela moral humana.

    Todavia, seria precipitao chegar a essa concluso. Tomemos o exemplo do dilema de Heinz. Uma coisa ser colocado no papel de juiz e avaliar se Heinzagiu bem ao roubar o remdio para salvar sua mulher. Concordamos com Kohlberg: a virtude justia, nesse caso, domina a cena. Mas agora faamos a perguntaque muita gente j se fez: ser que um sujeito, classificado como ps-convencional na entrevista e que, por conseguinte, apoiaria a deciso de Heinz porconsider-la justa, agiria como Heinz?

    Tal pergunta costuma ser feita para suspeitar da possvel desvinculao entre juzo e ao, notadamente em relao chamada dupla moral. Mas nossa perguntaaqui diferente. Vamos imaginar algum plena e honestamente convencido de que o moralmente certo roubar o remdio e que, em situao semelhante, noo faz porque tem medo. Medo do qu? Por exemplo, medo da polcia (em certos pases, truculenta) ou medo de ficar preso. Nesse caso, deveras bem humano, preciso que nosso protagonista esteja no somente convencido do carter justo do roubo como tenha outra virtude, a coragem. claro que, nesse exemplo,o valor moral da coragem deve-se ao fato de esta virtude estar associada justia. Mas o que queremos frisar que, sem tal virtude, a justia no setornaria ato e, portanto, no existiria: o medroso, abandonando o plano de roubar o remdio e assim abandonando a mulher morte, agiria de forma no justa,e provavelmente sentiria culpa e vergonha. Em suma, parece-nos que a coragem apresenta-se s vezes como condio necessria da ao tica e, por conseguinte,tem relevncia moral. Seramos tentados a dizer que se no houvesse pessoas corajosas, a tica humana seria outra, ou, alis, no seria. Com efeito, noraras so as vezes em que o agir moral leva a riscos e provvel que se no tivesse existido pessoas como Martin Luter King, Gandhi, e outros chamadosheris da luta pela justia, a prpria justia seria um ideal tico enfraquecido. Mesma coisa pode ser dita da humildade. Sabe-se que existe correlaoentre a chamada "personalidade autoritria", em geral intolerante e injusta, e traos de narcisismo. Ora, a humildade justamente a virtude referentes tendncias vaidade, ao orgulho, honra etc. Se o termo narcisismo oriundo da clnica, pode-se dizer, do ponto de vista moral, que a ausncia davirtude humildade no somente pode acarretar sofrimentos para a prpria pessoa como

  • pode levar a aes imorais. Assim, pensamos que at mesmo virtudesauto-referenciadas (self-regarding) devem ser contempladas pela tica.

    9) Mas algum poder aqui insistir e dizer que tanto a coragem como a humildade podem se revestir de carter moral apenas se vinculadas justia ou generosidade.E o que queremos afirmar , em primeiro lugar, que, se elas aparecem s vezes como condio necessria ao agir tico, elas no podem, sem mais nem menos,ser desprezadas pela Filosofia e Psicologia Morais. E, em segundo lugar, queremos dizer que elas podem trazer dimenses morais prprias, nada desprezveis.Pensemos no exemplo a seguir.

    Uma pessoa X bate (gratuitamente) em outra pessoa Y. Os conceitos de justia e bem-estar bastam para condenar X: como um direito de Y ser tratado de formarespeitosa, dever de X abster-se da violncia. Em uma palavra, X age mal porque viola um direito de Y. Imaginemos agora que X seja um adulto e Y, umacriana. Este fato nada muda do ponto de vista dos direitos de Y e dos deveres de X. No entanto, veremos em X, alm de uma conduta injusta, uma condutacovarde (o oposto da coragem). Ser tal covardia irrelevante do ponto de vista moral? No acreditamos, como no acreditamos que as pessoas, em geral, pensemapenas nos direitos de Y. Mas este ltimo diagnstico psicolgico, o que nos leva a encetar a outra forma de defender um estudo das virtudes morais:o lugar destas na explicao psicolgica do fenmeno da moralidade.

    Virtudes e tica: explicao psicolgica

    10) Mesmo que a tica restrinja a definio de moral a um conjunto de regras derivadas de direitos e deveres, isto ainda no autoriza o psiclogo da moralidadehumana a apenas debruar-se sobre a virtude justia. Os argumentos colocados nos dois pargrafos anteriores podem ser retomados aqui. Se verdade quevirtudes como coragem e humildade so, s vezes, condies necessrias ao agir com justia, ento o psiclogo no pode no ter o que dizer a respeito dascaractersticas de personalidade (carter) que as definem. Tal nos parece ser um excelente motivo para que a Psicologia Moral cesse de se limitar a estudarcomo crianas e adultos julgam direitos e deveres. Mais ainda, se tivermos razo em afirmar que um ato covarde de injustia traz dimenses outras que ainjustia por si s, e se tambm tivermos razo em afirmar que, para a maioria das pessoas, tais dimenses tm relevncia moral, cabe ao psiclogo, nosomente comprovar o fato, como melhor compreender que lugar ocupam virtudes como coragem e humildade no universo moral dos indivduos. Ora, quase nadasabemos sobre esse lugar, como sobre o lugar das outras virtudes, mesmo as altrustas como generosidade e gratido. Segundo Flanagan: "Ignoramos, do pontode vista psicolgico, o que uma virtude" (1996, p.15). Pensamos que est na hora de preencher esta lacuna.

    Uma outra maneira de defender a hiptese de que as virtudes devem compor o campo da Psicologia Moral pensarmos a partir da perspectiva gentica.

    11) Reflitamos sobre a seguinte citao, extrada do Le Jugement Moral de Piaget: " quando a criana habitua-se a agir do ponto de vista dos prximos,e preocupa-se mais em agrad-los do que a eles obedecer, que ela chega a julgar em funo das intenes" (1932. p.105). Esta frase traz um ponto clssicoda perspectiva piagetiana: a passagem de uma moral da obedincia (nome que tambm designa a heteronomia) para outra, superior, que leva em conta as intenesdos agentes, a moral autnoma, na qual o realismo moral superado. Mas a citao traz mais do que isso. Por um lado, refere-se a uma explicao causalpara dar conta da evoluo moral. Por outro, e os que nos interessa aqui, nela est afirmado que o que explica a passagem da heteronomia para a autonomiano tanto uma tomada de conscincia do outro como sujeito de direitos, mas antes a tendncia a consider-lo na sua singularidade: o que sugere o empregodo verbo agradar (faire plaisir). Em uma palavra, Piaget nos fala mais, nesta ci

  • tao, em generosidade do que em justia, embora, na sua prpria teoria,a autonomia representa a vitria do princpio de justia sobre a mera obedincia autoridade. Vale dizer que podemos levantar a hiptese de que, no caminhopara a construo do ideal de justia, a generosidade (e outras virtudes altrustas, que levam em conta o outro na sua especificidade) desempenha um papel.Na autonomia (sobretudo como definida por Kohlberg), a justia preceder, do ponto de vista lgico (implicaes), generosidade, mas esta talvez preceda justia, moralmente falando, do ponto de vista cronolgico.

    Vamos pensar outro exemplo. Tugendhat, em suas Lies sobre tica discorda de Piaget quando este baseia a moral heternoma sobre o respeito pela autoridade.Para ele, um dos pontos essenciais a serem pensados na relao filhos/pais no o fato de os segundos terem autoridade sobre os primeiros, mas sim a confianaque eles despertam. O moral sense, condio necessria ao pensar e agir morais segundo o filsofo, teria suas razes na confiana que as crianas desenvolvemem relao a seus progenitores e outras pessoas significativas. Nomeando o processo por meio das virtudes, teramos o lugar importante da fidelidade: porque os pais mostram-se fieis a seus filhos e s palavras que empenham em relao a eles que as crianas penetrariam no mundo da moral, no permanecendono puro medo das sanes. evidente que a fidelidade sofrer radicais mudanas de interpretao no decorrer do desenvolvimento moral, mas o fato que,segundo a perspectiva de Tugendhat, tal virtude encontrar-se-ia precocemente na gnese da moralidade humana.

    Vamos a um ltimo exemplo, agora retirado das pesquisas que j realizamos sobre as virtudes morais segundo as crianas (La Taille e outros, 1998). Verificamosque as crianas menores interpretam a boa-educao (polidez) como recobrindo praticamente todo o campo da moralidade, embora reconheam que o castigo nose coloca para a ausncia de polidez. Ou seja, para elas, ser bem-educado no apenas empregar certas formas de polidez, mas tambm obedecer, ser justo,ser generoso, no ferir etc. Tal generalizao, longe de ser apenas fruto de uma limitao cognitiva (no ter compreendido corretamente o referido conceito),tambm aponta, cremos, para uma caracterstica do incio da gnese da moralidade na infncia. De fato, a polidez pode ser pensada em dois domnios (comodefinidos por Turiel). O primeiro o convencional: trata-se de pequenos atos verbais que costumam ser empregados para suavizar as relaes entre as pessoas,e seu efeito no pressupe a sinceridade de quem as usa (quem fala desculpa no precisa estar ressentido para que o efeito de polidez sejasentido5).Note-se tambm que as formas de polidez podem mudar de cultura para cultura, uma mais formais que outras. O segundo domnio o moral: o emprego da polideztraduz uma deferncia em relao a outrem, um respeito. De fato, no ser polido pode, s vezes, ferir outrem, ser prova de desrespeito, de inteno dehumilhao. Isto posto, nossos dados mostram que, num primeiro momento, as crianas parecem fundir os dois domnios. Por um lado, reconhecem que o mal-educadodeve ser antes ensinado do que punido: a no-polidez no , portanto, estritamente moral. Por outro, seus exemplos cobrem praticamente todos os atos imorais:a polidez , portanto, tambm considerada como moral, fato que confirmado com um outro dado. Quando perguntadas se podem prever quem cometeu um delito(dano material intencional), sabendo apenas que um dos dois suspeitos costuma ser mal-educado (apresentado como no empregando as pequenas frases de praxe),respondem que sim: o autor do delito deve ser, com grande certeza, a criana no-polida. Em resumo, somos levados a crer que a polidez ocupa uma lugarrelevante no despertar da gnese da moralidade infantil. Como queria Comte-Sponville (1995), ela a porta de entrada para as demais virtudes, a menosimportante de todas, mas a primeira a ser descoberta.

    Os trs exemplos que demos nos serviram para defender a seguinte tese: embora algumas virtudes possam ser descartadas do sistema axiolgico (definio do

  • objeto, que pode, como em Kohlberg, privilegiar uma, a justia), elas podem desempenhar uma papel na construo da moralidade. Referindo-se a um sistemaaxiomtico, o direito, Piaget escreveu queBlock quote start

    , sem dvida, o dever do axiomtico cortar o cordo umbilical para dissociar a construo formal de suas amarras com o real, mas cabe ao socilogo lembrarque este cordo existiu e que seu papel foi fundamental alimentao do direito embrionrio. (1965, p.66)Block quote end

    Talvez as virtudes sejam fundamentais para a alimentao da gnese da moral na criana.

    12) A ltima forma de defendermos, do ponto de vista psicolgico, a importncia de estudos sobre as virtudes para compreender o desenvolvimento moral, decorreda abordagem que construmos e consignamos em nosso texto Vergonha, a ferida moral (La Taille, 2000). Vamos citar aqui as teses centrais deste trabalho:List of 8 items abordamos a moral na sua relao com o Eu, entendido como conjunto de representaes de si (identidade); adotamos o critrio da integrao dos valores morais ao Eu como explicao da fora motivacional para o pensar e agir morais; adotamos o critrio da presena de sentimentos morais para aquilatar o lugar da moral na personalidade, entendida como sistema; a tomada de conscincia de si representativa contempornea da conscincia da prpria perceptibilidade e as representaes de si decorrentes de tal tomadade conscincia so sempre valorativas; a busca de representaes de si positivas a uma das motivaes bsicas das condutas humanas; tais representaes de si esto, na sua gnese e manuteno, vinculadas aos juzos alheios, rm tal vnculo no implica sua total dependncia a essesjuzos: h um constante embate entre as imagens que a pessoa tem de si e os juzos positivos e negativos de outrem, o julgar-se interage com o ser julgado; sentimento de vergonha aparece como fundamental para a presente perspectiva terica uma vez que, com a exceo da "vergonha de exposio": 1) implicanum auto-juzo negativo doloroso (dor decorrente da incessante busca de representaes de si de valor positivo); 2) diz respeito ao "ser", portanto srepresentaes de si; e, 3) embora ocorra em decorrncia de alguma "falha", real ou antecipada, moral ou no, sua presena pode ser vista como sinal devalor por parte de quem o experimenta; tal fato sobretudo notado no mbito da vergonha decorrente de uma falha moral (La Taille, 2000, p. 70).list end

    A representaes de si, como exposto acima, so sempre valorativas. Ora, podem ento acontecer vrios cenrios.

    Num deles, o indivduo associa sobretudo s representaes que tem de si valores que no so morais, como a beleza fsica, a posse do dinheiro, o statussocial etc. Quando tais valores constituem as representaes de si, falamos em auto-estima. E falamos em auto-respeito justamente quando tais valores somorais. um possvel segundo cenrio: o indivduo se v como essencialmente tico. Dito de outra forma, neste cenrio ser "eu" e ser moral equivalente(da a vergonha retrospectiva quando se comete algo que fere a tica e a vergonha prospectiva quando se antecipa a possibilidade da transgresso - verHarkot-de-La-Taille, 1999). Se definirmos moral como apenas atinente virtude justia, o auto-respeito ser apenas efetivado quando a pessoa realizaraes justas ou se abster de atos injustos (no sentido em que ferem direitos humanos alheios). Porm, se aceitarmos considerar as virtudes generosidade,gratido, compaixo e outras como morais, o auto-respeito poder receber uma definio amp

  • liada.

    Dois novos cenrios devem ento ser pensados. Num, a pessoa coloca no ncleo das representaes de si virtudes altrustas. Retomando a tese de Gilligan,algumas pessoas podero se ver como essencialmente generosas e, assim, cumprir a pauta de uma tica do cuidado; e outras podero se ver como principalmentejustas e agirem segundo a tica da justia. Noutro cenrio, as coisas se complicam do ponto de vista tico. Imaginemos algum cujas representaes de siincluem, em lugar privilegiado, a virtude coragem, mas que tal virtude esteja associada no justia social, mas sim violncia. Como previsto no quadroterico colocado acima, tal pessoa sentir vergonha se no conseguir concretizar a boa imagem que se associa coragem e, sendo ela vista como fora, virilidadee agresso, a presena dessa virtude dentro das representaes de si ter o efeito de afastar o indivduo da moral. Raciocnio semelhante pode ser feitocom a virtude fidelidade: se tal virtude for entendida como revestindo um valor absoluto, a pessoa poder at cometer atos injustos para se manter fiela contratos passados com certas pessoas do grupo. E poderamos multiplicar os exemplos.

    O que deve ser ressaltado a partir deste ltimo cenrio hipottico que as virtudes (ou pelo menos algumas), dependendo da interpretao tica que a elasse d e do lugar que, enquanto valor, ocupam nas representaes de si, podem se transformar em fatores complicadores do pensar e agir morais. Ora, talpossibilidade deve ser levada em conta, notadamente na educao. Ser que algumas crianas (e tambm adultos), embora saibam que o que fazem fere a tica,ainda assim o fazem por que, aos prprios olhos e aos olhos do grupo, uma prova de coragem ou fidelidade? Na gnese da moralidade, as virtudes podemser fortes aliadas (como visto em 10 e 11), mas tambm podem ser fortes adversrias. Eis uma razo a mais para nos debruarmos sobre elas.

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    Recebido em 16.04.01Aprovado em 07.06.01

    Yves de La Taille livre-docente junto ao Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da USP. Autor devrias obras, dentre elas Limites: trs dimenses educacionais (tica).

    1. O fato de a Cincia Psicolgica empregar a palavra personalidade para definir um campo de pesquisa compreensvel: ela precisa tender neutralidade.Assim, dizer de uma pessoa que ela obsessiva ou paranica remeter-se a traos psicolgicos razoavelmente precisos que no dizem respeito ao certo ouao errado. Curiosamente, tais conceitos psicolgicos tm adentrado a linguagem do dia-a-dia (essencialmente entre as pessoas razoavelmente cultas), fatoque permite a certas pessoas serem mais tolerantes em relao a si prprias e aos outros. Mas note-se aqui que tais conceitos da personalidade costumamtomar o lugar dos vcios. Assim, ao invs de acusar algum de covardia, compreender-se- sua inconstncia e fragilidade egicas. Em compensao, traoscomo coragem e generosidade continuam sendo assim chamados e admirados. Talvez pelo fato de as teorias de personalidade terem nascido da clnica, os problemas(em geral caractersticas pouco admirveis e facilmente associadas a fraquezas de carter, portanto desprezveis), os chamados vcios tm sido nomeadosde forma mais neutra, o mesmo no acontecendo com as virtudes. Alm do mais, faz sentido algum procurar uma terapia por achar-se muito medroso ou egosta(mas preocupar-se com o fato, j demonstra a virtual presena das virtudes associadas) do que por preocupar-se com sua coragem e generosidade. Para finalizar,note-se tambm que alguns estudos de personalidade tm como motivo uma leitura valorativa das condutas humanas, como por exemplo, o estudo de Adorno sobrea Personalidade Autoritria (1950).

    2. E mesmo este pode, secretamente, admirar seu inesperado rival.

    3.s vezes, mesmo neste caso, diz-se que justo ajudar um amigo, mas aqui a palavra justo significa certo e no remete, portanto, ao ideal de justia. Emfrancs, diz-se que uma idia justa quando corresponde realidade, prova da sinonmia possvel entre justo e certo ou correto.

    4.Foi durante o III Congresso Brasileiro de Psicologia do Desenvolvimento, que aconteceu na cidade de Niteri (RJ), no ms de julho de 2000.

  • 5. Quem fala desculpa (des-culpa) no precisa estar sentindo culpa.

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