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A G E O G R A F I A ISSO SERVE, EM PRIMEIRO LUGAR, PARA FAZER A GUERRA Y V E S L A C O S T E

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A G E O G R A F I AISSO SERVE, EM PRIMEIRO LUGAR, PARA FAZER A GUERRA

Y V E S L A C O S T E

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APRESENTAÇÃO- José William Vesentini -

Não se deve aceitar sem mais os termos usuais de um problema, escreveu em1935 um conhecido filósofo. A atitude crítica implica aqui em repropor, recriar ainterrogaçao, pois não há uma pergunta que resida em nós e uma resposta queesteja nas coisas: a solução está também em nós e o problema reside também nascoisas. Há algo da natureza da interrogação que se transfere para a resposta. YvesLacoste, neste livro, parece ter assimilado de forma notável esse ensinamento.Procurando interrogar a geografia, o saber geográfico e as práticas que oconstituem ou implementam, Lacoste deixa de lado algumas velhas e renitentesquestões e propõe outras.

A pergunta essencial, que perpassa todos os capítulos da obra e norteia seusconteúdos, é esta: para que serve a geografia? Ou, em outros termos, qual é a suafunção social? Possui ela alguma outra utilidade que não seja a de dar aulas degeografia? (e, afinal, por que existem essas aulas?) Os termos usuais dessaproblemática, como sabemos, costumam ser outros: o que é geografia? Ela é ounão uma ciência? Ao reelaborar essas questões, o Autor evita o ardil positivista do"objeto específico de estudos" a ser delimitado - complementar àquele dacientificidade como deus ex machina dos dramas da Razão -, enveredando por umterreno mais profícuo: o da práxís dos geógrafos, do papel político-estratégico dessesaber denominado geográfico.

A principal resposta que Lacoste fornece ao seu questionamento constitui opróprio título do livro: isto - a geografia - serve em primeiro lugar (embora nãoapenas) para fazer a guerra, ou seja, para fins politico-militares sobre (e com) oespaço geográfico, para produzir/reproduzir esse espaço com vistas (e a partir) daslutas de classes, especialmente como exercício do poder. Ser ou não ser de fatouma ciência pouco importa, em última análise, argumenta o Autor. O fundamental, aseu ver, é que, malgrado as aparências mistificadoras, os conhecimentosgeográficos sempre foram, e continuam sendo, um saber estratégico, uminstrumento de poder intimamente ligado a práticas estatais e militares. Ageopolítica, dessa forma, não é uma caricatura e nem uma pseudogeografia; elaseria na realidade o âmago da geografia, a sua verdade mais profunda e recôndita.

Duas são as formas de geografia que existem hoje, na interpretação deLacoste: aquela dos pesquisadores universitários e dos professores, das teses emonografías, das lições de sala de aula e dos livros didáticos - e também a"turística" dos meios de comunicação de massas e das enciclopédias (o Autor nãohomogeneiza todas essas variadas modalidades de "geografia", mas apenas ascoloca num mesmo lado dessa sua percepção binária); e aquela outra, afundamental, praticada pelos estados-maiores, pelas grandes empresas capitalistas,pelos aparelhos de Estado. Esta última é a mais antiga, tendo surgido desde oadvento dos primeiros mapas, que seriam provavelmente coevos da organizaçãosocietária com o poder político instituído enquanto Estado. E a "geografia dosprofessores" é mais recente, do século XIX, tendo sido engendrada especialmentepara servir como discurso ideológico de mistificação do espaço, de "cortina defumaça" para escamotear a importância estratégica de saber pensar o espaço enele se organizar. Ao se dirigir de forma particular a estes últimos, aospesquisadores universitários e professores de geografia, que são os interlocutores

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por excelência desta obra, Lacoste reitera insistentemente uma advertência: temosque assumir aquilo que sempre exorcizamos, isto é, nossa função de estrategistas,de saber-pensar o espaço para nele agir mais eficientemente. Superar o viésideológico da geografia, nesses termos, nada mais seria do que encetar uma“geopolítica dos dominados", um saber-pensar o espaço na perspectiva de umaresistência popular contra a dominação.

Incorporar e primaziar o político na abordagem geográfica: esta é, portanto, agrande proposição que este livro divulga e ilustra em filigrana praticamente a cadapágina. Mas não se trata de a política e sim de o político. Não o indivíduo que seocupa profissionalmente dessa atividade e sim o processo, o fenômeno ou o enigmado político enquanto experiência fundante do social-histórico e, dessa forma,também do espacial (ao menos na sociedade moderna). A política sugere lugaresteóricos ou fatos instituídos, com inteligibilidade pressuposta (temos o "espaço" dapolítica com referência ao da economia da ciência, etc.), ao passo que o políticopretende dar conta também do instituinte e do indeterminado, do poder comorelação social que vai muito além das idéias, símbolos ou práticas engendradas apartir (ou com vistas) do Estado e dos partidos políticos (sejam legais ouclandestinos). A razão-de-ser da geografia seria então a de melhor compreender omundo para transformá-lo, a de pensar o espaço para que nele se possa lutar deforma mais eficaz.

Mas de que mundo se trata? Qual é a expressão ontológica desse espaçotematizado pela geografia? Apesar das implacáveis e pertinentes críticas que faz àescola geográfica francesa, neste Ponto Lacoste se revela um herdeiro econtinuador dessa tradição: a geograficidade (neologismo criado por analogia comhistoricidade), para ele, se define essencialmente com referência à cartografia e, deforma especial, à noção de escala. Assim como o grande pensador de lenaproclamava que tudo que é real é racional e tudo que é racional é real, pode-sedizer que para Lacoste o "real", o espaço geográfico, é tão somente aquilo que podeser mapeado, colocado sobre a carta, delimitado portanto com precisão sobre oterreno e definido em termos de escala cartográfica. Temos aqui o aspecto nodalda metodologia lacosteana, o aproche a partir de onde esse geógrafo francêsprofere agudas críticas às referências espaciais de militantes políticos, historiadores,sociólogos e outros, mas que, paradoxalmente, permite revelar com clareza oslimites dessas mesmas críticas e das propostas de análise que elas implicitamenteencenam. Procurando construir uma rica estrutura conceitual que dê conta doespaço geográfico hodierno, sendo este visto por um prisma empírico-cartográfico,Lacoste exproba as ambigüidades de noções como "país", "região", "Norte-Sul","Centro-Periferia", "imperialismo" e outras, e propõe como ponto de partida para seredefinir tais problemas as idéias complementares de "espacialidade diferencial" ediferentes "ordens de grandeza", em termos de escala dos fenômenos espaciais.Nesse ato de identificação do geográfico ao cartografável, contudo, acaba-seestreitando o campo do político e denegando importantes aspectos das relações dedominação. O corpo, os conflitos de gerações, os problemas da mulher e dofeminismo, as classes sociais como autoconstituição pelas experiências de lutas:esses temas, e outros congêneres, estão a princípio interditados ao métier dogeógrafo, conforme fica explícito na parte do livro onde o Autor desanca aquelesque pretendem orientar uma geografia política em direção ao poder visto ao nível derelações não-cartografáveis. Não se estaria assim condenando o geógrafo asomente estudar as aparências? Apesar da palavra dialétíca, que Lacoste utilizaneste e noutros livros, não seria essa uma opção de reservar à geografia apenas

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certos aspectos da realidade tal como ela pode ser entendida pela lógicaidentidárla?

É fora de dúvida que este é um trabalho (ou um ensaio-panfleto, nadesignação que lhe deu François Châtelet, aceita depois por Lacoste e incorporadaà terceira edição francesa) polêmico, de denuncia e de chamamento àresponsabilidade política. Inúmeras idéias poderiam ainda ser questionadas: asimplificação do papel social da "geografia dos professores", a não-percepção dasrelações sujeito-objeto e da historicidade do saber e da prática na concepçãodemasiado ampla de geopolítica, a mitificação ou fetichismo das cartas elaboradaspelos poderes instituídos, etc. Mas nenhum questionamento de tal ou qual aspectoda obra poderá anular os seus méritos, que são muitos e significativos. Trata-seseguramente de uma das mais importantes análises críticas feitas nas últimasdécadas, no bojo da "crise da geografia", com idéias extremamente controversas,porém originais e instigantes. Em suma, um texto de leitura obrigatória para todosaqueles que se preocupam com a história dos conhecimentos geográficos, com oensino da geografia, com o espaço enquanto dimensão material dos entrelaçadosdispositivos de poder e de dominação.

A presente edição brasileira deste livro, nas atuais circunstâncias, é deverasoportuna. Devido a certas vicissitudes*, as idéias aqui expostas acabaram nãoconhecendo no Brasil a circulação e os debates que elas merecem. É certo quesurgiu, por volta de 1978, uma "edição pirata" da obra, feita a partir da tradução dePortugal; e também foram tiradas centenas ou milhares de cópias xerografadas delivros dessa edição, face ao interesse que o texto despertou. Mas isso tudo foiainda insuficiente. A expectativa de uma nova edição tem sido grande, nos últimosanos, por parte de professores, pesquisadores e estudantes de geografia. E issonão só devido ao esgotamento dessas edições, a portuguesa e a "pirata", mastambém por causa de alguns qüiproquós interpretativos suscitados por essatradução (ou, talvez, pelo próprio texto original de 1976, pois Lacoste reelaboroudeterminados pontos na segunda edição francesa de 1982, e principalmente naterceira e última até o momento, de 1985, admitindo, com autocrática que só oengrandece, que alguns deles não estavam formulados corretamente na primeiraedição).

Entre esses imbróglios que convém tentar desfazer, adquire especial relevo,pelo menos no contexto intelectual e político brasileiro, a leitura "marxista"dogmática das idéias aqui desenvolvidas. O próprio Lacoste não estácompletamente isento de culpa na medida em que, no texto de 1976, a par damarcada influência de Foucault (uma referência sem dúvida antípoda a qualquerforma de dogmatismo), existia igualmente um certo flerte com Althusser. Napresente edição brasileira, com nova tradução feita a partir da edição francesa de1985, pode-se avaliar com clareza que as reflexões do Autor no sentido deaprimorar este trabalho acabaram distanciando cada vez mais suas idéias doalthusserianismo, que afinal se constitui não somente numa certa leituraeconomicista de Marx, mas, e principalmente, numa prática políticacaracteristicamente stalinista*. Procurando enfatizar o político, as relações depoder, as estratégias que no seu entrechoque (re)instituem permanentemente osocial e o espacial, Lacoste adverte que é necessário recusar o primado doeconômico, recusando ipso facto os rígidos conceitos prefixados e a percepçãoteleológica do processo histórico. O Autor se serve de Marx - como também deFoucault, de Clausewitz e até de Lefort (cuja leitura pode ser deduzida em especial

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na questão do político)-, mas sem cair no dogmatismo, na exegese de textos (ouconceitos) sagrados.

Há cerca de dez anos atrás, quando este trabalho na sua versão primeiracirculou entre nós, geógrafos brasileiros, vivenciávamos então um confronto entretradicionalistas e adeptos de uma geografia nova ou crítica. As idéias lacosteanas,bem ou mal, por via direta ou, principalmente e infelizmente, indireta (através deobras que reelaboraram suas idéias, em geral por uma ótica economista edogmática, e acabaram preenchendo o vácuo deixado pelo esgotamento do livro esua não-reedição em português), desempenharam um importante papel de fomentoda renovação, de subsídios para a crítica da geografia tradicional e tentativas deconstrução de um saber geográfico comprometido com as lutas sociais por umasociedade mais justa e democrática. Já esta nova edição da obra vem encontrar ageografia brasileira noutra situação, num momento em que a polêmica geografiatradicional versus geografia crítica vai paulatinamente cedendo terreno às disputasno interior mesmo desta(s) última(s). À medida que se desenvolve e ganha espaços,a geografia nova ou crítica se revela cada vez mais como plural. Há aqueles queprocuram reduzir o discurso geográfico a uma "instância" do marxismo-leninismo (estalinismo): apenas se acrescenta, sem grande reflexões filosóficas, a palavra"espaço" aos conceitos já institucionalizados - formação econômico-social, modo deprodução, classes sociais definidas pela produção, imperialismo, ideologia comomistificação, etc. - e, abracadabra, já se tem a "ciência do espaço" no interior domaterialismo histórico entendido de forma mecanicista e até positivista. Mas hátambém aqueles que recusam a supervalorização de sistemas e conceitos, queprocuram apreender o real em seu movimento - com a ajuda de textos clássicos,inclusive de Marx, mas sem mitificá-los -, o que vale dizer que esse real não étomado como pretexto para se ilustrar a teoria "revolucionária" já pronta, mas simque sua natureza "viva" ou histórica determina uma recriação constante dasexpressões teóricas. É com estes últimos que esta obra que temos em mãos deveráse identificar mais. Porque ela é uma obra "aberta" no sentido de "ao pensar, dar apensar", no sentido de não apresentar ao leitor um sistema fechado e fruto de umapretensa "iluminação" (qualquer que seja a forma pela qual ela se consubstancie:pelos debates no "coletivo" do partido, pela representação da "comunidade" deinteressados, etc.), e sim de deixar às vistas os próprios rastros de seu caminho.

Cabe agora a nós, leitores, examinar este livro com espírito crítico, mas livrede preconceitos ou pré-julgamentos, com o espírito de se acercar da obra não comoalguém que contempla uma teoria acabada e determinada e sobre ela sentencia,mas sim como quem mergulha nos resultados (provisórios, mas importantes) e nopercurso (tortuoso, é certo) de um trabalho de reflexão que constitui um fruto detoda uma vida de pesquisa e docência em geografia, de debates e trocas deexperiências com colegas de múltiplas tendências, com alunos, com setorespopulares, com militantes, políticos da esquerda. Enfim, uma expressão teóricaoriginária de uma experiência de vida com a qual grande parte de nós poderá seidentificar, mutatis mutandis e que por esse motivo nos ensinará muito inclusivenaqueles pontos em que estivermos em desacordo.

São Paulo, abril de 1988

José William Vesentini

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A PROPÓSITO DA TERCEIRA EDIÇÃO

Quando este pequeno livro surgiu em 1976, houve um belo escândalo nacorporação dos geógrafos universitários, um escândalo tão grande que muitos delesse asfixiavam de indignação: foi o caso, por exemplo, daquele que dava as cartasno "Collège de France", e que, estando na época encarregado da crônica mensal degeografia do Le Monde, escrevia nas colunas desse jornal que ele se recusava atomar conhecimento desse "pequeno livro azul" (de fato sua capa era azul), por lheparecer terrível o que ali se podia ler, Se houve poucas resenhas nas diversasrevistas de geografia, as intenções implícitas nos corredores eram claras:venenosas e triunfantes entre aqueles que já não tinham simpatia por mim (desdeminha Geografia do subdesenvolvimento); incrédulas e constrangidas por parte demeus amigos. Por causa disso perdi muitos amigos, entre os quais um dos maisestimados e antigos, apesar de meus esforços para dissipar os mal-entendidos.

É que para esta corporação aparentemente serena, mas no fundo bastantecomplexada, tão pouco afeita à reflexão epistemológica, mas tão ansiosa de serreconhecida como ciência, esse pequeno livro dizia coisas de tal forma chocantes eprovocava um tal mal-estar que o significado de seu título foi, voluntariamente e/ouinvoluntariamente, deformado: em lugar de ler "a geografia, isso serve, em primeirolugar, para fazer a guerra" subentendido : isso serve, também, para outras coisas eisso está sobejamente claro no texto) quiseram provar, à exaustão, que Lacoste,geógrafo levado por não se sabe que tipo de delírio masoquista ou suicida, tinhaproclamado que a geografia servia somente para fazer a guerra. Era, para certosindivíduos um meio cômodo de tentar desqualificá-lo facilmente; outros reduziam oalcance do livro àquilo que os havia mais surpreendido e causado mal-estar, poisera difícil refutá-lo. Com a exceção de alguns, os marxistas geógrafos (aquelespara os quais o discurso marxista tem mais importância do que o raciocíniogeográfico) não foram os últimos a condenar ... em nome da ciência.

Se esse título escandalizou os geógrafos, ele encantou, em contrapartida,todos aqueles - e eles são numerosos - que, desde o curso secundário, conservamuma péssima lembrança da geografia e sobretudo os historiadores, porque elestiveram de "fazer geografia" contrariados e forçados, para obter a licença ou para sesubmeter a "agrégation"*; a lembrança dos cortes geológicos lhes dá um gosto devingança. Para todos estes, mormente se são "de esquerda" e compartilham suastradições antimilitaristas, se um geógrafo vem proclamar que a geografia ébasicamente uma questão de forças armadas, isto vem a ser a prova de que essadisciplina, que eles já consideravam como imbecil, fosse, no fundo, bem maléfica.Para eles era, portanto, um novo motivo, e excelente, de reduzir ainda mais aaudiência.

Contudo, não houve na seara dos historiadores maior número de resenhasque entre os geógrafos. De fato, aqueles que haviam se rejubilado de início com otítulo, descobriam sem dúvida, ao ler o livro, que o mecanismo da geografia é

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socialmente bem mais importante do que eles queriam pensar e que a crítica que sefazia do discurso tradicional dos geógrafos era, com efeito, o meio de mostrar autilidade fundamental de verdadeiros raciocínios geográficos, não somente para osmilitares, mas também para o conjunto dos cidadãos, sobretudo quando elesprecisam se defender.

Em revanche, esse livro interessou os jornalistas - mesmo que tenha sidosomente em razão do seu gosto pela novidade - e foi, em grande parte, graças aeles, que foi lido por um grande número de pessoas, não somente estudantes, mastambém sindicalistas, militantes; não somente na França, mas também nos paísesem que a vida política não repousa em bases democráticas. Foram impressos24.000 exemplares deste livro - e ele foi abundantemente fotocopiado.

A 2a edição (1982) apareceu com um volumoso posfácio. Realmente parecia-me útil republicar o texto inicial, mas também dizer sobre que pontos minha maneirade ver tinha se tornado diversa daquela de alguns anos atrás. É para mim umaregra deontológica, embora ela seja muito raramente aplicada no domínio dasciências sociais.

Para esta 3a edição que aparece na série "Fondations" eu preferi, finalmente,reintegrar ao texto inicial diferentes partes do prefácio de 1982 e novas proposições,lembrando contudo quais haviam sido meus pontos de vista anteriores. Eu acreditoser oportuno juntar no fim desta obra três textos recentes que me parecem úteis.Com efeito, muitas coisas se agitam agora entre os geógrafos.

Quando eu escrevi este livro, em 1976, começava a aparecer Hérodote, arevista que eu pude criar, graças ao apoio de François Maspero. A número 1, hojenão mais encontrada, foi, de fato, o primeiro escândalo que abalou a corporaçãodos geógrafos universitários, em primeiro lugar devido ao subtítulo que indica asorientações da revista: Estratégias - Geografias - Ideologias. Que escândaloconfrontar a geografia não à ciência e aos seus critérios, mas às estratégias eideologias! Também, escândalo para os historiadores que geógrafos se apoderemdo "pai da história", no Ocidente. Mas Heródoto é também o primeiro verdadeirogeógrafo e ele não escreveu uma história mas sim uma enquête sobre os paísescom os quais Atenas mantinha relações ou estava em conflito.

Esse primeiro número do Hérodote se iniciava com um manifesto editorialestardalhante redigido pelos jovens membros do secretariado da revista "AtençãoGeografia!" Volta-se a lê-lo com interesse.

Foi porque nesse primeiro número muito se disse, mas não o bastante, que mepareceu necessário escrever este livro o mais depressa possível. Mas desde entãoas idéias continuaram a progredir no seio do pequeno grupo que anima a revista,desde suas origens: Béatrice Giblin, Michel Foucher, Maurice Ronai, MichelKorinman.

Hérodote continua a existir em 1985: 35 números foram publicados, cada qualcentrado num tema preciso. Desde 1983 a revista aparece com o subtítulo Revistade Geografia e de Geopolítica, o que explicita suas orientações iniciais que nãomudaram na essência. Os geógrafos têm coisas a dizer em geopolítica.

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Enquanto cada um no meio das ciências sociais reclama de umainterdisciplinaridade que é uma forma de se esquivar dos problemasepistemológicos específicos dos diferentes saberes, Hérodote fala da geografia emostra o papel que podem ter os geógrafos. É também a única revista de geografiana qual regularmente escrevem cientistas políticos, sociólogos, orientalistas,historiadores, antropólogos, filósofos, urbanistas ... e ela não é somente lida porgeógrafos, mas também por todos aqueles que começam a se interessar peloraciocínio geográfico.

Hérodote se tornou, ao menos em volume de tiragem, a mais importanterevista francesa de geografia e me é agradável lembrar que ela foi (e ainda o é, emgrande parte) a expressão das reflexões concernentes à geografia de um pequenogrupo da universidade de "Vincennes" (hoje Paris - VIII) que nasceu dos fatos deMaio 68. Nos seus primeiros anos, Vincennes foi, sem dúvida, um local de tumultose de desordem, mas também (esquece-se bastante) um lugar de debatesestimulantes e de discussões inovadoras entre os professores de diversasdisciplinas, militantes de tendências mais ou menos antagônicas da esquerda e daextrema-esquerda, jovens que acabavam de sair do secundário, trabalhadores quenunca estiveram nos colégios, estudantes avançados que haviam obtido seusdiplomas em outras universidades e que tinham vindo a Vincennes para aliencontrar outra coisa! Entre estes últimos, os estudantes de história eram muitocríticos em relação à geografia, sobretudo por causa do discurso sistematicamenteapolítico que lhes havia sido transmitido até então, e foram, no entanto, alguns delesque se interessaram por essa disciplina, a ponto de consagrar a ela o essencial desuas reflexões, após eu ter lhes mostrado ser a geografia menos imbecil do queparecia.

Sem dúvida, a geografia se mostra burra, e é necessário dizê-lo. Mas só se vêuma parte e, tal como os grandes icebergs em que o essencial está imerso, épreciso tomar cuidado: ela serve para fazer a guerra, para organizar os homens,mas tenta mostrar quais foram os desígnios da natureza - de Deus? Estratégias,ideologias: são os dois eixos deste livro e da reflexão da Hérodote para procurarcompreender as funções desse saber enorme, e aparentemente tão insignificante,que é a geografia. Reflexão irreverente - mas não só isso: uma vez que se ousoudizer que o rei está nu, falta explicar por que ele é rei, apesar de tudo.

Na capa deste livro, o símbolo da revista, o ingênuo Heródoto, visto pelotalento impertinente de Wiaz. Ele empunha um instrumento anacrônico e um tantoquanto esdrúxulo: um revólver munido de um silenciador, a terra, e o olhar deHeródoto é inquietante, pois ele observa coisas que os outros não vêem.

UMA DISCIPLINA SIMPLÓRIA EENFADONHA ?

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Todo mundo acredita que a geografia não passa de uma disciplina escolar euniversitária, cuja função seria a de fornecer elementos de uma descrição domundo, numa certa concepção "desinteressada" da cultura dita geral ... Pois, qualpode ser de fato a utilidade dessas sobras heteróclitas das lições que foi necessárioaprender no colégio? As regiões da bacia parisiense, os maciços dos Pré-Alpes doNorte, a altitude do Monte Branco, a densidade de população da Bélgica e dosPaíses Baixos, os deltas da Ásia das Monções, o clima bretão, longitude-latitude efusos horários, os nomes das principais bacias carboníferas da URSS e os dosgrandes lagos americanos, a têxtil do Norte (Lille-Roubaix-Tourcoing), etc. E osavós a lembrar que outrora era preciso saber "seus" departamentos, com suascircunscrições eleitorais e subcircunscrições ...tudo isso serve para quê?

Uma disciplina maçante, mas antes de tudo simplória, pois, como qualquer umsabe, "em geografia nada há para entender, mas é preciso ter memória ..." Dequalquer forma, após alguns anos, os alunos não querem mais ouvir falar dessasaulas que enumeram, para cada região ou para cada país, o relevo - clima -vegetação - população agricultura - cidades - indústrias.

Nos colégios se tem de tal forma "as medidas cheias" da geografia que,sucessivamente, dois Ministros da Educação (e entre eles, um geógrafo!) chegarama propor a liquidação desta velha disciplina "livresca, hoje ultrapassada" (como setratasse de uma espécie de latim). Outrora, talvez, ela tenha servido para qualquercoisa, mas hoje a televisão, as revistas, os jornais não apresentam melhor todas asregiões na onda da atualidade, e o cinema não mostra bem mais as paisagens?

Na Universidade onde contudo se ignora as "dificuldades pedagógicas" dosprofessores de história e de geografia do secundário, os mestres mais avançadosconstatam que a geografia conhece "um certo mal estar”; um dos reitores dacorporação declara, não sem solenidade, que ela "entrou na era dos quebras1".Quanto aos jovens mandarins que se lançam na epistemologia, eles chegam aousar questionar se a geografia é mesmo uma ciência, se este acúmulo deelementos do conhecimento "emprestados" da geologia, da economia política ou dapedologia, se tudo isso pode pretender constituir uma verdadeira ciência, autônoma,de corpo inteiro ...

Mas que diabo, dirão todos aqueles que não são geógrafos, não há problemasmais urgentes a serem discutidos além dos mal-estares da geografia ou, em termosmais expeditos, "a geografia, não temos nada a ver com ela..." pois isso não servepara nada.

A despeito das aparências cuidadosamente mantidas, de que os problemas dageografia só dizem respeito aos geógrafos, eles interessam, em última análise, atodos os cidadãos. Pois, esse discurso pedagógico que é a geografia dosprofessores, que parece tanto mais maçante quanto mais as mass mediadesvendam seu espetáculo do mundo, dissimula, aos olhos de todos, o temívelinstrumento de poderio que é a geografia para aqueles que detêm o poder.

Pois, a geografia serve, em princípio, para fazer a guerra. Para toda ciência,para todo saber deve ser colocada a questão das premissas epistemológicas; oprocesso científico está ligado à uma história e deve ser encarado, de um lado, nassuas relações com as ideologias, de outro, como prática ou como poder. Colocarcomo ponto de partida que a geografia serve, primeiro, para fazer a guerra nãoimplica afirmar que ela só serve para conduzir operações militares; ela servetambém para organizar territórios, são somente como previsão das batalhas que épreciso mover contra este ou aquele adversário, mas também para melhor controlaros homens sobre os quais o aparelho de Estado exerce sua autoridade. A geografiaé, de início, um saber estratégico estreitamente ligado a um conjunto de práticaspolíticas e militares e são tais práticas que exigem o conjunto articulado de

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informações extremamente variadas, heteróclitas à primeira vista, das quais não sepode compreender a razão de ser e a importância, se não se enquadra no bemfundamentado das abordagens do Saber pelo Saber. São tais práticas estratégicasque fazem com que a geografia se torne necessária, ao Chefe Supremo, àquelesque são os donos dos aparelhos do Estado. Trata-se de fato de uma ciência?Pouco importa, em última análise: a questão não é essencial, desde que se tomeconsciência de que a articulação dos conhecimentos relativos ao espaço, que é ageografia, é um saber estratégico, um poder.

A geografia, enquanto descrição metodológica dos espaços, tanto sob osaspectos que se convencionou chamar "físicos", como sob suas característicaseconômicas, sociais, demográficas, políticas (para nos referirmos a um certo cortedo saber), deve absolutamente ser recolocada, como prática e como poder, noquadro das funções que exerce o aparelho de Estado, para o controle e aorganização dos homens que povoam seu território e para a guerra.

Muito mais que uma série de estatísticas ou que um conjunto de escritos, acarta é a forma de representação geográfica por excelência; é sobre a carta quedevem ser colocadas todas as informações necessárias para a elaboração detáticas e de estratégias. Tal formalização do espaço, que é a carta, não é nemgratuita, nem desinteressada: meio de dominação indispensável, de domínio doespaço, a carta foi, de início criada por oficiais e para os oficiais. A produção de umacarta, isto é, a conversão de um concreto mal conhecido em uma representaçãoabstrata, eficaz, confiável, é uma operação difícil, longa e onerosa, que só pode serrealizada pelo aparelho de Estado e para ele. A confecção de uma carta implicanum certo domínio político e matemático do espaço representado, e é uminstrumento de poder sobre esse espaço e sobre as pessoas que ali vivem.

Não é de se estranhar que ainda hoje um número bem grande de mapas esobretudo de cartas em escala grande, bastante detalhadas, aquelas que sãochamadas correntemente de "cartas do estadomaior', tenham surgido do segredomilitar em vários países. E particularmente o caso dos Estados comunistas.

Se a geografia serve, em princípio, para fazer a guerra e para exercer o poder,ela não serve só para isso: suas funções ideológicas e políticas, pareçam ou não,são consideráveis: é no contexto da expansão do pangermanismo (os imperialismosfrancês e inglês se desenvolveram mais cedo, em ambientes intelectuais diferentes)que Friedrich Ratzel (1844-1904) realizou a obra, que, ainda hoje, influenciaconsideravelmente a geografia humana; sua Antropogeografia está estreitamenteligada à sua Geografia política. Retomando inúmeros conceitos ratzelianos, talcomo o do Lebensraum (espaço vital) e os dos geógrafos americanos e britânicos(como Mackinder), o general geógrafo Karl Haushofer (1869-1946) dá, em seguida àPrimeira Guerra Mundial, um impulso decisivo à geopolítica. Sem dúvida,numerosos geógrafos considerarão que é a última incongruência estabelecer umaaproximação entre sua geografia "científica" e o empreendimento do general,estreitamente ligado aos dirigentes do Partido Nacional-socialista. A geopolíticahitleriana foi a expressão, a mais exacerbada, da função política e ideológica quepode ter a geografia. Pode-se mesmo perguntar se a doutrina do Führer não teriasido largamente inspirada pelos raciocínios de Haushofer, de tal forma foramestreitas as suas relações, particularmente a partir de 1923-1924, época em queAdolf Hitler redigiu Mein Kampf, na prisão de Munique.

De 1945 para cá, não é mais de bom tom fazer referências à geopolítica.Contudo, de uma forma mais direta, as estratégias das grandes potênciascontinuam o gênero de pesquisa que os institutos de geopolítica de Munique e deHeidelberg haviam empreendido. Particularmente nos Estados Unidos, essa tarefa éde pessoas que trabalharam sob orientações de homens como Henry Kissinger (ele

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fez seus primeiros estudos na qualidade de historiador; mas sua tese gira, já nessaaltura, sobre uma discussão geopolítica por excelência: o Congresso de Viena).Hoje, mais do que nunca, são argumentos de tipo geográfico que impregnam oessencial do discurso político, quer se refiram aos problemas "regionalistas", ousobre os que giram, a nível planetário, em torno de "centro" e "periferia", do "Norte"e do "Sul".

Mas a geografia não serve somente para sustentar, na onda de seusconceitos, qualquer tese política, indiscriminadamente. Na verdade, a funçãoideológica essencial do discurso da geografia escolar e universitária foi sobretudo ade mascarar por procedimentos que não são evidentes, a utilidade prática daanálise do espaço, sobretudo para a condução da guerra, como ainda para aorganização do Estado e prática do poder. E sobretudo quando ele parece "inútil"que o discurso geográfico exerce a função mistificadora mais eficaz, pois a crítica deseus objetivos "neutros" e "inocentes" parece supérflua. A sutileza foi a de terpassado um saber estratégico militar e político como se fosse um discursopedagógico ou científico perfeitamente inofensivo. Nós veremos que asconseqüências desta mistificação são graves. E o porquê de ser particularmenteimportante afirmar que a geografia serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra, istoé, desmascarar uma de suas funções estratégicas essenciais e desmontar ossubterfúgios que a fazem passar por simplória e inútil.

Dizer que a geografia serve antes de tudo à guerra e ao exercício do podernão significa lembrar as origens históricas do saber geográfico. A expressão antesde tudo deve ser entendida aqui, mas não no sentido de "para começar, outrora...”mas no sentido de, "em primeiro lugar, hoje...”. A rigor, os geógrafos universitáriosconsentem em evocar, da boca para fora, o papel de uma espécie de "geografiaprimitiva" (Alain Reynaud) na época em que o saber estabelecido pela geografia dorei estava destinado não aos jovens alunos ou a seus futuros professores, mas aoschefes de guerra e àqueles que dirigem o Estado. Mas os universitários de hojeconsideram, todos, quaisquer que sejam suas tendências ideológicas, que averdadeira geografia, a geografia científica (o Saber pelo Saber), a única digna dese falar, só aparece no século XIX, com os trabalhos de Alexandre von Humboldt(1769-1859) e com os de seus sucessores nessa famosa Universidade de Berlim,criada por seu irmão, homem de primeiro plano do Estado prussiano.

Na verdade, a geografia existe há muito mais tempo, não importa o que dizemos universitários: as "grandes descobertas" não seriam talvez geografia? E asdescrições dos geógrafos árabes da Idade Média, também não?

A geografia existe desde que existem os aparelhos de Estado, desde Heródoto(por exemplo, para o mundo "ocidental"), que em 446 antes da era cristã, não contauma História (ou histórias) mas procede a uma verdadeira "enquête" (é o título exatode sua obra) em função das finalidades do "imperialismo" ateniense.

De fato, foi somente no século XIX que apareceu o discurso geográfico escolare universitário, destinado, no que tinha de essencial (ao menos estatisticamente) ajovens alunos. Discurso hierarquizado em função dos graus da instituição escolar,com seu coroamento sábio, a geografia na sua feição de ciência é "desinteressada".Sem dúvida, foi somente no século XIX que apareceu a geografia dos professores,que foi apresentada como a geografia, a única da qual convém falar.

Desde essa época, a geografia dos oficiais, para se fazer discreta, não deixacontudo de existir com um pessoal especializado, cujo número não é desprezível,com seus meios que se tornaram consideráveis (os satélites), seus métodos, e elacontinua a ser como há séculos, um temível instrumento de poder. Esse conjunto derepresentações cartográficas e de conhecimentos bem variados, visto em suarelação com o espaço terrestre e nas diferentes formas de práticas do poder, forma

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um saber claramente percebido como estratégico por uma minoria dirigente, que autiliza como instrumento de poder. À geografia dos oficiais decidindo com o auxíliodas cartas a sua tática e a sua estratégia, à geografia dos dirigentes do aparelho deEstado, estruturando o seu espaço em províncias, departamentos, distritos, àgeografia dos exploradores (oficiais, freqüentemente) que prepararam a conquistacolonial e a "valorização" se anexou a geografia dos estados-maiores das grandesfirmas e dos grandes bancos que decidem sobre a localização de seusinvestimentos em plano regional, nacional e internacional, Essas diferentes análisesgeográficas, estreitamente ligadas a práticas militares, políticas, financeiras, formamaquilo que se pode chamar "a geografia dos estados-maiores", desde os das forçasarmadas até os dos grandes aparelhos capitalistas.

Mas essa geografia dos estados-maiores é quase completamente ignorada portodos aqueles que não a executam, pois suas informações permanecemconfidenciais ou secretas.

Hoje, mais do que nunca, a geografia serve, antes de tudo, para fazer aguerra. A maioria dos geógrafos universitários imagina que, após a confecção decartas relativamente precisas para todos os países, para todas as regiões, osmilitares não têm mais necessidade de recorrer a este saber que é a geografia, aosconhecimentos disparatados que ela reúne (relevo, clima, vegetação, rios,repartição da população, etc.). Nada é mais falso. Primeiro porque as "coisas" setransformam rapidamente: se a topografia só evolui muito lentamente, a implantaçãodas instalações industriais, o traçado das vias de circulação, as formas do habitat semodificam a um único ritmo bem mais rápido e é preciso levar em consideraçãoessas transformações para estabelecer as táticas e as estratégias.

De outro lado, a elaboração de novos métodos de guerra implica numa análisebem precisa das combinações geográficas, das relações entre os homens e as"condições naturais" que se trata justamente de destruir ou modificar para tornar talregião imprópria à vida, ou para encetar um genocídio.

A guerra do Vietnã forneceu numerosas provas de que a geografia serve parafazer a guerra de maneira a mais global, a mais total. Um dos exemplos maiscélebres e mais dramáticos foi a execução, em 1965, 1966, 1967 e sobretudo em1972 de um plano de destruição sistemática da rede de diques que protegem asplanícies densamente povoadas do Vietnã do Norte: elas são atravessadas por rioscaudalosos, com terríveis cheias que escoam não por vales mas, ao contrário, sobreelevações, terraços, que são formados por seus aluviões. Esses diques cujaimportância é, de fato, absolutamente vital, não poderiam ter sido objeto debombardeamentos maciços, diretos e evidentes, pois a opinião pública internacionalali teria visto a prova da perpetração de um genocídio. Seria preciso, portanto,atacar essa rede de diques, de forma precisa e discreta, em certos locais essenciaispara a proteção de alguns quinze milhões de homens que vivem nessas pequenasplanícies, cercadas por montanhas. Era necessário que esses diques serompessem nos lugares em que a inundação teria as mais desastrosasconseqüências2.

A escolha dos locais que era preciso bombardear resulta de um raciocíniogeográfico, comportando vários níveis de análise espacial. Em agosto de 1972, foipela elaboração de um conjunto de raciocínios e de análises que sãoespecificamente geográficas que eu pude demonstrar, sem ter sido contraditado, aestratégia e a tática que o Estado-maior americano executava contra os diques. Sefoi um procedimento geográfico que permitiu desmascarar o Pentágono, isso se deuexatamente porque sua estratégia e sua tática se alicerçavam essencialmente sobreuma análise geográfica. Coube a mim reconstituir, a partir de dados eminentemente

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geográficos, o raciocínio elaborado para o Pentágono por outros geógrafos ("civis"ou de uniforme, pouco importa).

O plano de bombardeamento dos diques do delta do rio Vermelho não deveser considerado como um cometimento excepcional, aproveitando condiçõesgeográficas muito particulares mas, bem ao contrário, como uma operação quedecorre de uma estratégia de conjunto: a "guerra geográfica", que foi executadamaciçamente na Indochina e sobretudo no Vietnã do Sul durante mais de dez anos;ela foi conduzida com uma combinação de meios poderosos e variados. Estaestratégia foi, freqüentemente cognominada "guerra ecológica" – sabe-se que aecologia é um termo em moda. Mas é de fato à geografia que se deve referir, poisnão se trata somente de destruir ou de transformar relações ecológicas; trata-se demodificar bem mais amplamente a situação em que vivem milhares de homens.

De fato, não se trata somente de destruir a vegetação para obter resultadospolíticos e militares, de transformar a disposição física dos solos, de provocarvoluntariamente novos processos de erosão, de desviar certas redes hidrográficaspara modificar a profundidade do lençol freático (para drenar os poços e osarrozais), de destruir os diques: trata-se de modificar radicalmente a repartiçãoespacial do povoamento praticando, por meios vários, uma política dereagrupamento nos "hameaux* estratégicos" e a urbanização forçada. Essas açõesdestrutivas não representam somente a conseqüência involuntária da enormidadedos meios de destruição executados hoje, sobre um terminado número de objetivos,pela guerra tecnológica e industrial.

Elas são ainda o resultado de uma estratégia deliberada e minuciosa, na qualos diferentes elementos são cientificamente coordenados, no tempo e no espaço.

A guerra da Indochina marca, na história da guerra e da geografia, uma novaetapa: pela primeira vez, métodos de destruição e de modificação do meiogeográfico conjuntamente nos seus aspectos "físicos" e "humanos" foramexecutados para suprimir as condições geográficas indispensáveis à vida de váriasdezenas de milhões de homens.

A guerra geográfica, com métodos diferentes segundo os locais, pode serexecutada em todos os países.

Afirmar que a geografia serve fundamentalmente para fazer a guerra nãosignifica somente que se trata de um saber indispensável àqueles que dirigem asoperações militares. Não se trata unicamente de deslocar tropas e seusarmamentos uma vez já desencadeada a guerra: trata-se também de prepará-la,tanto nas fronteiras como no interior, de escolher a localização das praças fortes ede construir várias linhas de defesa, de organizar as vias de circulação. "O territóriocom seu espaço e sua população não é unicamente a fonte de toda força militar,mas ele faz também parte integrante dos fatores que agem sobre a guerra, nem queseja só porque ele constitui o teatro das operações...”, escreveu Carl von Clausewitz(1780-1831), sobre o qual Lênin pode dizer que era "um dos escritores militaresmais profundos... um escritor cujas idéias fundamentais se tornaram hoje o bem detodo pensador”. O livro de Clausewitz, Da guerra, pode e deve ser lido como umverdadeiro livro de "geografia ativa".

Vauban (1633-1707) não foi somente um dos mais célebres construtores defortificações; foi também um dos melhores geógrafos de seu tempo, um daquelesque melhor conheceu o reino, particularmente no plano das estatísticas e dascartas; sua idéia de "dizimo real" traduz uma concepção global do Estado que eleprecisava reorganizar. Vauban aparece como um dos primeiros teóricos epraticantes, na França, daquilo que hoje se chama de "aménagement"* do território.Preparar-se para a guerra, seja para a luta contra outros aparelhos de Estado, comopara a luta interna contra aqueles que colocam em causa do poder, ou querem dele

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se apossar, é organizar o espaço de maneira a ali poder agir do modo mais eficazpossível.

Em nossos dias, a abundância de discursos que se referem ao"amenagement" do território em termos de harmonia, de melhores equilíbrio a seremencontrados. serve sobretudo para mascarar as medidas que permitem àsempresas capitalistas, sobretudo às mais poderosas aumentar seus benefícios. Épreciso perceber que o "amenagement " do território não tem como único objetivo ode maximizar o lucro mas também o de organizar estrategicamente o espaçoeconômico, social e político, de tal forma que o aparelho de Estado possa estar emcondições de abafar os movimentos populares. Se isto é bem pouco nítido nospaíses há muito industrializados, os planos de organização do espaço sãomanifestamente bastante influenciados pelas preocupações policiais e militares nosEstados em que a industrialização é um fenômeno recente e rápido.

É importante hoje, mais do que nunca, estar atento a esta função política emilitar da geografia que é sua desde o inicio. Nos dias atuai, ela se amplia eapresenta novas formas, por força não só do desenvolvimento dos meiostecnológicos de destruição e de informação, como também em função dosprogressos do conhecimento científico.

DA GEOGRAFIA DOS PROFESSORES AOSÉCRANS DA GEOGRAFIA-ESPETÁCULO

Desde o fim do século XIX pode-se considerar que existem duas geografias:- Uma, de origem antiga, a geografia dos Estados-maiores, é um conjunto de

representações cartográficas e de conhecimento variados de representaçõescartográficas e de conhecimento variados referentes ao espaço; esse sabersincrético é claramente percebido como eminentemente estratégico pelas minoriasdirigentes que o utilizam como instrumento de poder.

- A outras geografia, a dos professores, que apareceu há menos de um século,se tornou um discurso ideológico no qual uma das funções inconscientes, é a demascarar a importância estratégica dos raciocínios centrados no espaço. Nãosomente essa geografia dos professores é extirpada de práticas políticas e militarescomo de decisões econômicas (pois os professores nisso não tem participação),mas ela dissimula, aos olhos da maioria, a eficácia dos instrumentos de poder quesão as análises espaciais. Por causa disso a minoria no poder tem consciência desua importância, é a única a utilizá-las em função dos seus próprios interesses eeste monopólio do saber é bem mais eficaz porque a maioria não dá nenhumaatenção a uma disciplina que lhe parece tão perfeitamente “inútil.

Desde o fim do século XIX, primeiro na Alemanha e depois sobretudo naFrança, a geografia dos professores se desdobrou como discurso pedagógico detipo enciclopédico, como discurso científico, enumeração de elementos deconhecimento mais ou menos ligados entre si pelos diversos tipos de raciocínios,que têm todos um ponto comum: mascarar sua utilidade prática na conduta daguerra ou na organização do Estado.

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Entre, de um lado, as lições dos manuais escolares, o resumo ditado pelomestre, o curso de geografia na Universidade (que serve para formar futurosprofessores) e, de outro lado, as diversas produções científicas ou o amplo discursoque são as "grandes" teses de geografia, existem, evidentemente, diferenças: asprimeiras se situam ao nível da reprodução de elementos de conhecimentos maisou menos numerosos, enquanto que as segundas correspondem a uma produçãode idéias científicas e informações novas - seus autores não imaginando, na maioriadas vezes, o tipo de utilização que poderá ser feito. Eles vêem os seus trabalhos porexcelência como um saber pelo saber e nem se pense em perguntar numa tese degeografia para o que, para quem todos esses conhecimentos acumulados poderiamservir (aos que estão no poder). Mas essas teses e essas produções científicas sósão lidas por uma pequena minoria e seu papel social é bem menor que o doscursos, das lições e dos resumos.

Também não se pode julgar a função ideológica da geografia dos professoreslevando-se em consideração apenas suas produções mais brilhantes ou as maiselaboradas. Socialmente, apesar do seu caráter elementar caricatural ouinsignificante, as lições aprendidas no livro de geografia, os resumos ditados pelomestre, tais reproduções caricaturais e mutilantes têm uma influênciaconsideravelmente maior, porque ,tudo isso contribui para influenciarpermanentemente, desde sua juventude, milhões de indivíduos. Essa formasocialmente dominante da geografia escolar e universitária, na medida em que elaenuncia uma nomenclatura e que inculca elementos de conhecimento enumeradossem ligação entre si (o relevo - o clima - a vegetação - a população...) tem oresultado não só de mascarar a trama política de tudo aquilo que se refere aoespaço, mas também de impor, implicitamente, que não é preciso senão memória ...

De todas as disciplinas ensinadas na escola, no secundário, a geografia é aúnica a parecer um saber sem aplicação prática fora do sistema de ensino. Omesmo não acontece com a história, onde se percebe, no mínimo, as ligações coma argumentação da polêmica política. A exaltação do caráter exclusivamente escolare universitário da geografia, tendo como corolário o sentimento de sua inutilidade, éuma das mais hábeis e das mais graves mistificações que já tenha funcionado comeficácia, apesar de seu caráter muito recente, uma vez que a ocultação da geografiana qualidade de saber político e militar data apenas do fim do século XIX. Échocante constatar até que ponto se negligencia a geografia em meios que estão,no entanto, preocupados em repelir todas as mistificações e em denunciar todas asalienações. Os filósofos, que tanto escreveram para julgar a validade das ciências eque exploram hoje a arqueologia do saber, mantêm um silêncio total em relação àgeografia, embora esta disciplina, mais do que qualquer outra, merecesse teratraído suas críticas. Indiferença ou conivência inconsciente?

A geografia dos professores funciona, até certo ponto, como uma tela defumaça que permite dissimular, aos olhos de todos, a eficácia das estratégiaspolíticas, militares, mas também estratégias econômicas e sociais que uma outrageografia permite a alguns elaborar. A diferença fundamental entre essa geografiados estados-maiores e a dos professores não consiste na gama dos elementos doconhecimento que elas utilizam. A primeira recorre, hoje como outrora, aosresultados das pesquisas científicas feitas pelos universitários, quer se trate depesquisa "desinteressada" ou da dita geografia "aplicada". Os oficiais enumeram osmesmos tipos de rubricas que se balbuciam nas classes: relevo - clima - vegetação- rios - população ..., mas com a diferença fundamental de que eles sabem muitobem para que podem servir esses elementos do conhecimento, enquanto os alunose seus professores não fazem qualquer idéia.

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É preciso analisar os procedimentos que acarretam essa ocultação. Pois elanão é o resultado de um projeto consciente, voluntário, dos professores degeografia: deveras suas tendências ideológicas estão longe de serem idênticas. Seeles participam da mistificação, eles próprios são mistificados. Contudo, antes deprocurar esclarecer isso, é preciso assinalar que a geografia dos professores não éo único pára-vento ideológico permitindo dissimular que o saber referente ao espaçoé um temível instrumento de poder. Em vários países, a geografia está ausente dosprogramas de ensino primário e secundário: é o caso dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, e as massas aí também não estão mais conscientes da importânciaestratégica das análises espaciais. É que existe um outro pára-vento ideológico.Sem dúvida, as cartas, os manuais e os testes de geografia estão longe de ser asúnicas formas de representação do espaço; a geografia também se tornouespetáculo: a representação das paisagens é hoje uma inesgotável fonte deinspiração e não somente para os pintores e sim para um grande número depessoas. Ela invade os filmes, as revistas, os cartazes, quer se trate de procurasestéticas ou de publicidade. Nunca se comprou tantos cartões postais, nem "setiraram" tantas fotografias de paisagens como durante essas férias em que "se fez",com guias nas mãos, a Bretanha, a Espanha ou ... o Afeganistão1.

A ideologia do turismo faz da geografia uma das formas de consumo demassa: multidões cada vez mais numerosas são tomadas por uma verdadeiravertigem faminta de paisagens, fontes de emoções estéticas, mais ou menoscodificadas. A carta, representação formalizada do espaço que somente algunssabem interpretar e sabem utilizar como instrumento de poder, é largamenteeclipsada no espírito de todos pela fotografia da paisagem. Esta última, segundo os"pontos de vista" e de acordo com as distâncias focais das lentes das objetivas,escamoteia as superfícies, as distâncias da carta, para privilegiar silhuetastopográficas verticais que se recortam, em diorama, sobre fundo de céu. É todo umcondicionamento cultural, toda uma impregnação que incita tanto que nós achamosbelas paisagens às quais não se prestava nenhuma atenção antes.

Não somente é preciso ir ver tal ou tal paisagem, mas a fotografia, o cinemareproduzem infatigavelmente certos tipos de imagens-paisagens, que são, se asolharmos de mais perto, como mensagens, como discursos mudos, dificilmentedecodificáveis, como raciocínios que, por serem furtivamente induzidos pelo jogodas conotações, não são menos imperativos. A impregnação da cultura social pelasimagens-mensagens geográficas difusas, impostas pela mass media, éhistoricamente um fenômeno novo, que nos coloca em posição de passividade, decontemplação estética, e que repele ainda para mais longe a idéia de que algunspodem analisar o espaço segundo certos métodos a fim de estarem em condiçõesde aí desdobrar novas estratégias para enganar o adversário, e vencê-lo.

Assim, essa geografia-espetáculo e a geografia escolar que se processamcom métodos tão diferentes que pode até parecer paradoxal aproximá-las uma daoutra, colocando em paralelo os efeitos ideológicos dos westerns e o dos manuaisde geografia, levam, contudo, aos mesmos resultados:

1 - dissimular a idéia de que o saber geográfico pode ser um poder, que certasrepresentações do espaço podem ser meios de ação e instrumentos políticos:

2 - impor a idéia de que o que vem da geografia não deriva de um raciocínio,sobretudo nenhum raciocínio estratégico conduzido em função de um jogo político.A paisagem! Isso se contempla, isso se admira: a lição de geografia! Isso seaprende, mas não há nada para entender. Uma carta! Isso serve para quê? É umaimagem para agencia de turismo ou o traçado do itinerário das próximas férias.

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UM SABER ESTRATÉGICO EM MÃOS DEALGUNS

Em contrapartida, em numerosos Estados, a geografia é claramente percebidacomo um saber estratégico e os mapas, assim como a documentação estatística,que dá uma representação precisa do país, são reservados à minoria dirigente.

Os casos extremos dessa confiscação dos conhecimentos geográficos emproveito da minoria no poder são fornecidos pelos Estados comunistas, onde ascartas detalhadas em grande escala são estritamente reservadas aos responsáveisdo Partido e aos oficiais das forças armadas e da polícia. Na URSS os estudantesde geografia são privados delas e fazem seus trabalhos práticos sobre cartasimaginárias. Explicam-se tais precauções pela ameaça externa, mas estas são bemsupérfluas numa época em que os satélites permitem a outra superpotênciaestabelecer cartas, as mais detalhadas, do território adversário. Esse confisco dosconhecimentos geográficos é essencialmente devido a problemas de políticainterna. O mesmo se passa em muitos países do Terceiro Mundo, onde a venda decartas em grande escala, que era relativamente livre na época colonial, é interditadahoje, por causa das tensões sociais.

Na guerrilha, uma das forças dos camponeses é a de "conhecer” taticamentemuito bem o espaço no qual eles combatem mas, entregues a si próprios, suacapacidade se desmorona face a operações de nível estratégico, pois estas devemser conduzidas numa outra escala, sobre espaços bem mais amplos que só podemser representados cartograficamente. Uma etapa muito importante é transposta nodesenvolvimento da guerra dos "partisans"* quando se constitui um estado-maioronde se é capaz de ler cartas; estas são, freqüentemente, obtidas ao preço degrandes sacrifícios.

A necessidade de saber ler uma carta se coloca também nas manifestaçõesurbanas, a guerrilha urbana, a guerra de rua; em certos países (comunistas ou não),o público não pode conseguir um plano da cidade, mas somente os croquis doslocais freqüentados pelos turistas; essa medida permite à polícia montar umesquema, tanto mais eficaz quanto mais difícil for para outros conseguir representá-lo espacialmente.

Após várias experiências desastrosas, o aprendizado da leitura de cartasaparece como tarefa prioritária para os militantes, num grande número de países.No entanto, na maioria dos países de regime democrático, a difusão de cartas, emqualquer escala, é completamente livre, assim como a dos planos da cidade. Asautoridades perceberam que poderiam colocá-las em circulação, seminconveniente. Cartas, para quem não aprendeu a lê-Ias e utilizá-las, sem dúvida,não têm qualquer sentido, como não teria uma pagina escrita para quem nãoaprendeu a ler. Não que o aprendizado da leitura de uma carta seja uma tarefadifícil, mas é ainda preciso que se veja o interesse em práticas políticas e militares:a livre circulação das cartas nos países de regime liberal é o corolário do pequenonúmero daqueles que podem pretender investir contra os poderes estabelecidos,

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em lugar de outros tipos de ação diversos daqueles convencionados num sistemademocrático.

Contudo, a importância da análise geográfica não se coloca somente nodomínio da estratégia e tática sobre o terreno, embora isso seja essencial em certascircunstâncias.

A ausência quase total de interesse, em amplos meios, numa reflexão de tipogeográfico, permite aos estados-maiores das grandes firmas capitalistas desdobrarestratégias espaciais onde a eficácia permanece, e em boa parte, não tanto porcausa do segredo que os cerca, mas por causa da despreocupação dos militantes edos sindicalistas quanto aos fenômenos de localização; a análise dos marxistas, queé fundamentalmente de tipo histórico, negligencia quase totalmente a repartição noespaço dos fenômenos que ela apreende teoricamente.

Dever-se-ia citar e analisar mais freqüentemente um dos mais célebresexemplos de estratégia espacial do capitalismo na região de Lyon, a propósito dotrabalho da seda, evocado, no entanto, em todos os manuais de geografia.

De fato, na primeira metade do século XIX os capitalistas de Lyon encetaramuma verdadeira estratégia geográfica para quebrar a força política dos operários: otrabalho da seda, até então concentrado em Lyon, foi esfacelado num grandenúmero de operações técnicas; eles foram disseminados por um grande raio, nocampo: somente cada um dos mercantes-fabricantes sabia onde se encontravamseus ateliers. Com isso, os trabalhadores, dispersados, não podiam maisempreender ação conjunta. Belo exemplo de estratégia geográfica do capitalismoque deveria ser motivo de meditação para cada militante. Longe de pertencer aopassado, esta estratégia é sistematicamente empreendida desde alguns decênios,com o desenvolvimento dos fenômenos de sublocação e com as políticas dedescentralização industrial e de "aménagement" do território. Boa parte do pessoalque trabalha de fato para esta ou aquela grande firma industrial não se encontramais nos estabelecimentos que dependem juridicamente dessa firma; ela seencontra dispersa numa série de empresas dependentes: onde se encontram elas?Em quais pequenas cidades? Em quais campos? Onde elas recrutam seusoperários? Não seria impossível juntar informações, mas por não se ter o hábito deprestar atenção a esses problemas, geralmente não se sabe nada, para a maiorconveniência dos estados-maiores das grandes firmas.

Nos meios "de esquerda” denuncia-se regularmente a derrota da política de"aménagement" do território, sem se procurar ver em que tais "derrotas" (em vistados objetivos oficialmente proclamados) permitem, de fato, frutuosos negócios paraas empresas que, numa verdadeira estratégia de movimento, desviam rapidamenteseus investimentos para se beneficiarem das numerosas vantagens que lhes sãoconcedidas na instalação de uma nova fábrica revendida ou liquidada um poucomais tarde ...

Essa estratégia bem flexível é transportada para espaços mais amplos pelosdirigentes das multinacionais: eles investem e desinvestem em diversas regiões denumerosos Estados para tirar o melhor proveito de todas as diferenças (salariais,fiscais, monetárias) que existem entre locais diversos. O sistema das multinacionaisé, sem dúvida, bem analisado, mas somente no plano teórico: uma análisegeográfica precisa dos múltiplos pontos controlados por essas organizaçõestentaculares não é impossível de ser feita e isso permitiria dirigir contra elas, açõesimbricadas, denunciar bem mais eficazmente suas condutas concretas (sempreaperfeiçoando a teoria)- o saber geográfico não deve permanecer como apanágiodos dirigentes de grandes bancos; ele pode ser voltado contra eles, na condição deprestar atenção às formas de localização dos fenômenos e cessar de evocá-losabstratamente.

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Numa outra escala, a dos problemas que se colocam na cidade, ésurpreendente constatar a que ponto os habitantes (e mesmo os mais preparadospoliticamente) se acham incapacitados de prever as conseqüências desastrosasque acarretarão tal plano de urbanismo, tal empresa de renovação, que no entantolhes concerne diretamente. As municipalidades, os promotores estão agora tãoconscientes desta incapacidade que eles não hesitam mais em praticar o "acordo" ede apresentar os planos dos futuros trabalhos, pois as objeções são raras e fáceisde iludir. Deveras, as representações espaciais só têm verdadeiro significado paraaqueles que as sabem ler, e esses são raros; dessa forma, as pessoas não irãoperceber até que ponto foram enganadas, se não após o término dos trabalhos,quando as modificações se tomarem irreversíveis, em boa parte.

Esses poucos exemplos, sumariamente evocados, são suficientes, semdúvida, para dar uma idéia da gravidade das conseqüências que resultam dessamiopia, dessa cegueira que, às vezes, mostram tantos militantes com respeito aoaspecto geográfico dos problemas políticos. Quanto mais esses responsáveispolíticos, esses sindicalistas desempenham, um papel importante junto às massasexplicando-lhes as origens históricas de uma situação, analisando as contradiçõesde uma formação social, tanto mais eles negligenciam o saber estratégico que é ageografia, da qual eles deixam o monopólio para uma minoria dirigente que, ela sim,sabe se servir, para manobrar eficazmente.

MIOPIA E SONAMBULISMO NO SEIO DEUMA ESPACIALIDADE TORNADADIFERENCIAL

É preciso, pois, procurar quais podem ser as causas desta miopia, desta faltade interesse em relação aos fenômenos geográficos e, sobretudo, compreender porque seu significado político escapa geralmente a toda gente, salvo aos estados-maiores militares ou financeiros que, estes sim, estão perfeitamente conscientes.

É preciso, de início, fazer referências ao conjunto das práticas sociais e àsdiversas representações de espaços que lhe são ligadas.

Para compreender como é possível colocar esse problema, hoje, é útil vercomo ele se transformou historicamente.

Outrora, na época em que a maioria dos homens vivia ainda para o essencial,no quadro da auto-subsistência aldeã, a quase totalidade de suas práticas seinscrevia, para cada um deles, no quadro de um único espaço, relativamentelimitado: o "terroir”* da aldeia e, na periferia, os territórios que relevam das aldeiasvizinhas. Além, começavam os espaços pouco conhecidos, desconhecidos, míticos.Para se expressarem e falar de suas práticas diversas, os homens se referiam,portanto, antigamente, à representação de um espaço único que eles conheciambem concretamente, por experiência pessoal.

Mas, desde há muito, os chefes de guerra, os príncipes, sentiram necessidadede representar outros espaços, consideravelmente mais vastos, os territórios queeles dominavam ou que queriam dominar; os mercadores, também, precisam

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conhecer as estradas, as distâncias, em regiões distantes onde elescomercializavam com outros homens.

Para esses espaços muito vastos ou dificilmente acessíveis, a experiênciapessoal, o olhar e a lembrança não eram mais suficientes. É então que o papel dogeógrafo-cartógrafo se toma essencial: ele representa, em diferentes escalas,territórios mais ou menos extensos; a partir das "grandes descobertas", poder-se-árepresentar a terra inteira num só mapa em escala bem e este será, durante muitotempo, o orgulho dos soberanos que o detêm. Durante séculos, só os membros dasclasses dirigentes puderam apreender, pelo pensamento, espaços bastante amplospata tê-los sob suas vistas e essas representações do espaço eram um instrumentoessencial da prática do poder sobre territórios e homens mais ou menos distantes.O imperador deve ter uma representação global e precisa do império, de suasestruturas espaciais internas (províncias) e dos Estados que o contornam - é umacarta em escala pequena que é necessária. Em contrapartida, para tratar problemasque se colocam nesta ou naquela província, precisam de uma carta em escalamaior, a fim de poder dar ordens a distância, com uma relativa precisão. Mas para amassa dos homens dominados, a representação do império é mítica e a única visãoclara e eficaz é a do território aldeão.

Hoje, as coisas mudaram muito e a massa da população se refere, mais oumenos conscientemente, através de práticas as mais diversas, a representações doespaço extremamente numerosas que permanecem, na maioria dos casos, bastanteimprecisas.

De fato, o desenvolvimento das trocas, da divisão do trabalho, o crescimentodas cidades, fazem com que para cada um o espaço (ou espaços) limitado do qualele pode ter o conhecimento concreto não corresponda mais que a uma pequenaparte somente de suas práticas sociais.

As pessoas, cada vez mais diferenciadas profissionalmente, sãoindividualmente integradas (sem que elas tomem claramente conhecimento disso)em múltiplas teias de relações sociais que funcionam sobre distâncias mais oumenos amplas (relações de patrão e empregados, vendedor e consumidores,administrador e administrados ...) Os organizadores e os responsáveis por cadauma dessas redes, isto é, aqueles que detêm os poderes administrativos efinanceiros, têm uma idéia precisa de sua extensão e de sua configuração; quandoum industrial ou um comerciante não conhece bem a extensão de seu mercado, elemanda fazer, para ser mais eficaz, um estudo onde será possível distinguir ainfluência que ele exerce (e a que ele pode ter) a nível local, regional, nacional,levando em consideração as posições de seus concorrentes.

Em contrapartida, na massa dos trabalhadores e dos consumidores, cada qualsó tem um conhecimento bem parcial e bastante impreciso das múltiplas redes dasquais ele depende e de sua configuração. De fato, no espaço, essas diferentesredes não se dispõem com contornos idênticos, elas "cobrem" territórios de portesbastante desiguais e seus limites se encavalam e se entrecruzam.

Antigamente, cada homem, cada mulher percorria a pé o seu próprio território(aquele no qual se inscreviam todas as atividades do grupo ao qual pertencia); eleencontrava seus pontos de referência, sem dificuldade, nesse espaço contínuo, noqual nenhum elemento lhe era desconhecido.

Hoje, é sobre distâncias bem mais consideráveis que, a cada dia, as pessoasse deslocam; seria melhor dizer que elas são deslocadas passivamente, seja portransportes comunitários, seja por meios individuais de circulação, mas sobre eixoscanalizados, assinalados por flechas, que atravessam espaços ignorados. Nessesdeslocamentos quotidianos de massa, cada qual vai, mais ou menos solitariamente,em direção ao seu destino particular, Só se conhecem bem dois lugares, dois

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bairros (aquele onde se dorme e aquele onde se trabalha); entre os dois existe, paraas pessoas, não exatamente todo um espaço (ele permanece desconhecido,sobretudo se é atravessado dentro de um túnel de metrô), mas, melhor dizendo, umtempo, o tempo de percurso, pontuado pela enumeração dos nomes de estações.

Há também, para aqueles que não são os mais desprovidos, as migrações defins de semana, a menor ou maior distância, em direção à "residência secundária", eos deslocamentos de férias, quando se vai passar algum tempo "em casa de papaie mamãe".

Para ilustrar cartograficamente a considerável transformação, de um séculopara cá, das práticas e representações espaciais num país como a França,imaginemos um exemplo teórico relativamente simples, o de um grupo de aldeões,embora ele não seja mais representativo, hoje, senão de uma minoria da populaçãofrancesa.

O esquema teórico acima simboliza aquilo que poderia ser outrora, numaépoca na qual relativa auto-subsistência existia ainda, as representações práticasespaciais de um grupo de aldeões. O esquema seria sensivelmente mais complexono caso de um habitat disperso.

Os aldeões que são ainda, em grande parte, agricultores, no fim do século XIXconheciam muito bem o "terroir” de sua comuna, os limites de sua paróquia onde seexerciam então a maioria de suas práticas espaciais (deslocamentos para ostrabalhos agrícolas e para a caça, por exemplo). Conheciam menos os "terroir” dascomunas vizinhas, mas eles tinham ali relações familiares.

Além de um círculo de uma dezena de quilômetros de raio, eles nãoconheciam mais grande coisa, salvo ao longo da estrada que leva à cidade, ondealguns deles iam para o mercado semanal. Da mesma forma a capital de cantão,onde se encontram o médico, o escrivão, os policiais.

Os aldeões escutam falar do departamento e da nação ou do Estado, masessas são, para eles, representações bastantes vagas, que têm, sobretudo a nação,um papel ideológico importante.

A maioria das práticas espaciais habituais do grupo aldeão (e mesmo de cadafamília) se inscreve num pequeno número de conjuntos espaciais de dimensõesrelativamente restritas e encaixadas umas nas outras.

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O esquema teórico acima simboliza as representações e práticas de um grupoaldeão, hoje. Graças ao automóvel, as ligações rodoviárias a distâncias mais oumenos grandes se multiplicaram e se intensificaram, e as práticas espaciais seestenderam e se diversificaram socialmente. No coração da aldeia, os agricultoresnão são mais tão majoritários como o foram em outros tempos. Além disso, mesmopara eles, os limites comunais representam o quadro de uma parte, apenas, de suaspráticas agrícolas: eles cultivam terras nas comunas vizinhas e dependemdiretamente de um certo número de grandes redes comerciais (coleta do leite, porexemplo) e de áreas de influência (crédito agrícola), das quais eles não conhecemnem a extensão, nem os contornos.

Mas a aldeia é também habitada por pessoas que vão, a cada dia, trabalhar nacidade vizinha, onde os ônibus de coleta escolar conduzem também os alunos,todas as manhãs. A escola comunal está fechada, assim como a Igreja paroquial,onde a missa não é mais celebrada, senão em alguns domingos do ano. A cidadevizinha, onde vão cada vez com maior freqüência, não é, contudo, a única relaçãourbana desses aldeões que vão, uma ou outra vez, em direção a centros citadinosmais importantes, para compras excepcionais ou para consultar, por exemplo, ummédico especialista.

A diversificação das práticas sociais no seio do grupo aldeão que não temmais sua coerência de outrora, a diversidade das práticas espaciais de um mesmocasal, de um mesmo indivíduo, podem se traduzir sobre a carta num grande númerode conjuntos espaciais, com contornos e dimensões bem diferentes uns dos outros.De fato, as diversas práticas sociais têm, cada qual, uma configuração espacialparticular. Chega-se assim à uma superposição de conjuntos espaciais que seinterceptam uns os outros.

As práticas e representações espaciais de um grupo citadino são bem maiscomplicadas.

É uma perfeita banalidade dizer, nos dias de hoje, que tudo aquilo que estálonge sobre a carta é bem perto com determinado meio de circulação. Aproporcionalidade do tempo e do espaço percorrido, durante séculos, ao ritmo dopedestre (ou a passo de cavalo, para os poderosos) começou a se romper noséculo XIX, em certos eixos, onde a estrada de ferro diminuiu dez vezes asdistâncias. Hoje, nós nos defrontamos com espaços completamente diferentes, casosejamos pedestres ou automobilistas (ou, com mais razão ainda, se somarmos oavião). Na vida cotidiana, cada qual se refere, mais ou menos confusamente, arepresentações do espaço de tamanhos extremamente não-semelhantes (desde um"cantinho" de algumas centenas de metros, até grandes porções do planeta) ou,

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antes, a pedaços de representação espacial superpostos, em que as configuraçõessão muito diferentes umas das outras. As práticas sociais se tomaram mais oumenos confusamente multiescalares. No passado vivia-se totalmente num mesmolugar, num espaço limitado, mas bem conhecido e contínuo. Hoje, nossos diferentes"papéis" se inscrevem cada um em migalhas de espaço, entre os quais nós olhamossobretudo nossos relógios, quando nos fazem passar, a cada dia, de um a outropapel. Se os sonâmbulos se deslocam sem saber por que num lugar que elesconhecem, nós não sabemos onde estamos nos diversos locais onde temos algo afazer. Vivemos, a partir do momento atual, numa espacialidade diferencial2 feita deuma multiplicidade de representações espaciais, de dimensões muito diversas, quecorrespondem a toda uma série de práticas e de idéias. mais ou menos dissociadas;pode-se distinguir esquematicamente:

- de um lado, as diversas representações do espaço que dizem respeito anossos diferentes deslocamentos; bem vagas para a maioria das pessoas,corresponderiam, se elas soubessem lê-las, ao plano do bairro e ao do metrô, àcarta de aglomeração onde se efetuam as migrações diuturnas, à carta na escala de1/200.000 dos deslocamentos de week-end, ou à carta em escala menor querepresenta os grandes eixos rodoviários;

- de outro lado, as configurações espaciais das diferentes redes das quaisdependemos objetivamente (mesmo sem o saber): redes de tipo administrativo(comuna, departamento), a "carta escolar" que determina a admissão dos alunosnesse ou naquele estabelecimento, o espaço de comercialização de umsupermercado, a zona de influência de tal cidade, a rede de filiais de tal grandeempresa, o grupo financeiro que o controla - esses diversos conjuntos espaciais nãocoincidem;

- enfim, desde algumas dezenas de anos para cá, o papel crescente das massmedia impõe, ao espírito de cada um, toda uma gama de termos geopolíticos quecorrespondem a representações espaciais (a Europa dos Nove), a Europa do Oeste,a Europa do Leste, os países subdesenvolvidos, os países do Sahel, a AméricaLatina, o confronto Leste-Oeste ou o "diálogo" Norte-Sul, etc.) e toda a série depaisagens turísticas.

Essas representações, freqüentemente bem imprecisas, mas que são mais oumenos familiares, proliferam, à medida em que os fenômenos relacionais de todasas espécies se multiplicam e se ampliam e que a "vida moderna" se propaga nasuperfície do globo.

O desenvolvimento desse processo de especialidade diferencial se traduz poressa proliferação das representações espaciais, pela multiplicação daspreocupações concernentes ao espaço (nem que seja por causa da multiplicaçãodos deslocamentos). Mas esse espaço do qual todo mundo fala, ao qual nosreferimos todo tempo, é cada vez mais difícil de apreender globalmente para seperceber suas relações com uma prática global.

É sem dúvida uma das razões prioritárias pelas quais os problemas políticossão tão raramente colocados em função de espaço por aqueles que não estão nopoder. De fato, os problemas políticos correspondem a toda uma gama de redes dedomínio que possuem configurações espaciais bem diversas e que se exercemsobre espaços mais ou menos consideráveis (desde o nível da aldeia e do cantão,até a dimensão planetária).

Num Estado, quanto mais o sistema político se tomou complexo, mais asformas de poder se diversificaram e mais se emaranham os limites dascircunscrições administrativas, eleitorais e os contornos mais ou menos vagos ediscretos, de formas múltiplas de organização, que têm um papel político; porexemplo, o papel de tal rede bancária em tal região, as "reservas e mercado", as

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zonas em que se exerce determinada influência hegemônica, de forma mais oumenos oculta, a extensão espacial de certa "clientela", etc.

O confronto das forças ao nível planetário se desenrola não somente atravésdas estruturas nacionais, mas até no emaranhado dos componentes políticos decertos lugares.

Para se reconhecer bem facilmente nesse emaranhado, em boa parteconstituído de informações confidenciais, para estar em condições de utilizá-los comeficiência, não é preciso ser um gênio; é preciso, sobretudo, fazer parte do grupo nopoder e ter a sustentação das classes dominantes.

Uma das funções das múltiplas estruturas do aparelho de Estado é a derecolher informações, em caráter permanente (é uma das primeiras tarefas dospoliciais), e os privilegiados são, também, pessoas bem informadas e muitodesejosas de que saibam disso "na alta esfera". Em contrapartida, as relações entreas estruturas de poder e as formas de organização do espaço permanecemmascaradas, em grande parte, para todos aqueles que não estão no poder. Para sever mais claro isso, melhor do que tentar furar o segredo que cerca certasinformações muito precisas, cujo interesse é acima de tudo bastante conjuntural, édispor de um método que permita organizar uma massa confusa de informaçõesparciais; elas são, em grande parte acessíveis, desde o momento em que nósatingimos as razões de prestar atenção nisso.

A GEOGRAFIA ESCOLAR QUE IGNORA TODAPRATICA TEVE, DE INICIO, A TAREFA DEMOSTRAR A PÁTRIA

A impregnação da cultura social por um amontoado de representaçõesespaciais heteróclitas faz com que o espaço se tome cada vez mais difícil de ser alireconhecido, mas também cada vez mais necessário, pois as práticas espaciais têmum peso sempre maior na sociedade e na vida de cada um. O desenvolvimento doprocesso de espacialidade diferencial acarretará, necessariamente, cedo ou tarde aevolução a nível coletivo de um saber pensar o espaço, isto é, a familiarização decada um com um instrumento conceitual que permite articular, em função dediversas práticas, as múltiplas representações espaciais que é convenientedistinguir, quaisquer que sejam sua configuração e sua escala, de maneira a disporde um instrumental de ação e de reflexão. Isso é que deveria ser a razão de existirda geografia. Durante séculos, o desenvolvimento dos conhecimentos geográficosesteve, em grande parte, estreitamente ligado unicamente às necessidades dasminorias dirigentes, cujos poderes se exerciam sobre espaços muito vastos para seter deles um conhecimento direto: a massa da população, por viver então da auto-subsistência aldeã ou no quadro de trocas, muitas limitadas parcialmente, não tinhanecessidade de conhecimento do espaço longínquo.

Hoje, o conjunto da população vive, cada vez mais, uma espacialidadediferencial, o que implica que, cedo ou tarde, necessariamente, ela esteja emcondições de se comportar de outra forma, além daquela de sonâmbulosteleguiados ou canalizados. Durante séculos o saber ler, escrever e contar foi oapanágio das classes dirigentes e, desse monopólio, elas obtinham um acréscimode poder. Mas as transformações econômicas, sociais, políticas, culturais na Europa

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do século XIX, como hoje nos países "subdesenvolvidos" fazem com que tenha setornado indispensável que o conjunto da população saiba ler. E torna-seindispensável que os homens saibam pensar o espaço.

Deveras, hoje os fenômenos relacionais adquiriram tal intensidade, os efetivosem deslocamento sobre certos eixos atingiram tal amplitude, que o estado de miopiacoletiva em relação aos fenômenos espaciais começa a colocar problemas graves,se bem que tal miopia não deixe de ter suas vantagens para aqueles que detêm umpoder. Entre as dificuldades de funcionamento que conhecem as sociedades ditas"de consumo", algumas, as mais espetaculares, estão estreitamente ligadas aosproblemas de especialidade diferencial: por exemplo, a paralisia total da circulação,durante horas, ou até dias, sobre centenas de quilômetros de estradas. Estasituação dramática, que se repete cada vez com maior freqüência por ocasião dasmigrações de verão, nos grandes week-ends, adquire, com evidência, as dimensõesdo absurdo, quando se sabe que há centenas de quilômetros de estradas livres, deum lado e de outro do eixo paralisado pela interminável fila de carros. Mas a maiorparte dos motoristas não ousa ir ali experimentar, ou às vezes nem imagina poderutilizá-las, mesmo se eles possuem todas as cartas necessárias para se orientarnessa rede. Elas não lhes são de nenhuma utilidade, pois, apesar do auxílio demúltiplas placas indicadores, eles não sabem ler essas cartas rodoviárias, que são,bem simples e bem cômodas. E são os policiais que vêm dizer ser preciso ensinaras pessoas a ler uma carta!

O exemplo dessa incapacidade coletiva no quadro de uma prática tão simples,cuja eficácia é contudo tão imediatamente evidente, dá uma idéia do desligamentointelectual no qual se encontrariam as pessoas se lhes fosse preciso construir umraciocínio um pouco mais complexo, um pouco menos ligado diretamente aoconcreto.

Ora, todas essas pessoas sabem ler, elas foram à escola e elas ali, como sediz, "fizeram a geografia", sobretudo se freqüentaram o ginásio e o colégio. A idéiaque se possa colocar o problema da geografia com relação aos engavetamentosrodoviários não pode deixar de parecer a todo mundo perfeitamente ridícula, etalvez, sobretudo, à maioria dos professores de geografia. Isso dá a medida daruptura que existe entre o discurso da geografia dos professores e uma práticaespacial qualquer, sobretudo se ela é totalmente usual. "A geografia, isso não servepara nada... ."

Na França, o ensino da geografia foi instituído no fim do século XIX, jáexatamente na época em que o processo de especialidade diferencial começava ase expandir para a maioria da população. A geografia está, então, a tal ponto ligadaà escola, na representação coletiva, que a carta da França ou o globo terrestrefiguram sempre em local destacado, entre as imagens que estão expostas numasala de aulas. Vai-se à escola para aprender a ler, a escrever e a contar. Por quenão para aprender a ler uma carta? Por que não para compreender a diferençaentre uma carta em grande escala e uma outra em pequena escala e se perceberque não há nisso apenas uma diferença de relação matemática com a realidade,mas que elas não mostram as mesmas coisas? Por que não aprender a esboçar oplano da aldeia ou do bairro? Por que não representam sobre o plano de sua cidadeos diferentes bairros que conhecem, aquele onde vivem, aquele onde os pais dascrianças vão trabalhar, etc.? Por que não aprender a se orientar, a passear nafloresta, na montanha, a escolher determinado itinerário para evitar uma rodovia queestá congestionada?

Pode-se pensar que se trata de receitas pedagógicas bem indulgentes; elasnão são executadas senão excepcionalmente, quer por causa da imposição dosprogramas, quer devido à propensão dos professores, não importa qual seja a

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tendência ideológica que tenham, de reproduzir a geografia dos seus mestres, que éuma outra. Pode-se pensar que essa orientação prática do ensino da geografia éperfeitamente ilusória e que ela não poderia ter interessado ninguém no fim doséculo XIX é, no entanto, a geografia que esteve mais próxima daquela dos oficiaise é esse tipo de formação que, em grande parte, explica o sucesso do escotismonas classes dirigentes. Este saber agir sobre o terreno (saber ler uma carta, saberseguir uma pista ... ), o escotismo, cujo interesse político e militar é explicitamenteassinalado, foi reservado aos jovens das classes dirigentes, sobretudo nos paísesanglo-saxões (o verbo to scout: ir em reconhecimento).

O discurso geográfico escolar que foi imposto a todos no fim do século XIX ecujo modelo continua a ser reproduzido hoje, quaisquer que pudessem ter sido,aliás, os progressos na produção de idéias científicas, se mutilou totalmente de todaprática e, sobretudo, foi interditada qualquer aplicação prática. De todas asdisciplinas ensinadas na escola, no secundário, a geografia, ainda hoje, é a única aaparecer, por excelência, como um saber sem a menor aplicação prática fora dosistema de ensino. Nenhuma esperança de que o mapa possa aparecer como umaferramenta, como um instrumento abstrato do qual é preciso conhecer o código parapoder compreender pessoalmente o espaço e nele se orientar ou admiti-lo emfunção de uma prática. Nem se pensar que a carta possa aparecer como uminstrumento de poder que cada qual pode utilizar se sabe interpretá-la. A carta devepermanecer como prerrogativa do oficial, e a autoridade que ele exerce emoperação sobre "seus homens" não se deve somente ao sistema hierárquico, masao fato de que ele só é quem sabe ler a carta e pode decidir os movimentos,enquanto aqueles que ele mantém sob suas ordens não o sabem.

Contudo o instrutor, o professor, sobretudo outrora, mandavam "fazer" cartas.Mas não cartas em grande escala nas quais cada um pudesse ver como elas dãoidéia de uma realidade espacial que se conhece bem, mas sim cartas empequeníssimas escalas, sem utilidade no quadro das práticas usuais de cada um;são, na realidade, imagens simbólicas que o aluno deve redesenhar: antigamenteera mesmo proibido decalcar, talvez, para se impressionar melhor.

A imagem que devia ser, inúmeras vezes, reproduzida por todos os alunos(hoje não é mais assim) era, primeiro, a da pátria. Outros mapas, representandooutros Estados, entidades políticas cujo esquematismo dos caracteres simbólicosvem tanto melhor ainda reforçar a idéia de que a nação onde se vive é um dadointangível (dado por quem?), apresentado como se tratasse não mais de umaconstrução histórica, mas de um conjunto espacial engendrado pela natureza. Ésintomático que o termo "país", que é particularmente ambíguo, tenha suplantado, eem todos os discursos, as noções mais políticas de Estado, nação ...

Provavelmente esse corte radical que o discurso geográfico escolar euniversitário estabelece em face de toda prática, essa ocultação de todas asanálises do espaço, na grande escala, que é o primeiro passo para apreendercartograficamente a "realidade", resulta, em boa parte, da preocupação,inconsciente, de não se renunciar a uma espécie de encantamento patriótico, denão arriscar o confronto da ideologia nacional com as contradições das realidades.

Hoje ainda, em todos os Estados, e sobretudo nos novos Estadosrecentemente saídos do domínio colonial, o ensino da geografia é,incontestavelmente, ligado à ilustração e à edificação do sentimento nacional. Queisso agrade ou não, os argumentos geográficos pesam muito forte, não somente nodiscurso político (ou politizado), mas também na expressão popular da idéia depátria, quer se trate de reflexos de uma ideologia nacionalista invocada peloscoronéis, uma pequena oligarquia, uma "burguesia nacional", uma burocracia degrande potência, ou se refira aos sentimentos do povo vietnamita. A idéia nacional

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tem algo mais que conotações geográficas; ela se formula em grande parte comoum fato geográfico: o território nacional, o solo sagrado da pátria, a carta do Estadocom suas fronteiras e sua capital, é um dos símbolos da nação. A instauração doensino da geografia na França no fim do século XIX não teve portanto comofinalidade (como na maioria dos países) difundir um instrumental conceitual queteria permitido apreender racionalmente e estrategicamente a especialidadediferencial de pensar melhor o espaço, mas sim de naturalizar "fisicamente" osfundamentos da ideologia nacional, ancorá-los sobre a crosta terrestre;paralelamente, o ensino da história teve por função a de relatar as desgraças e ossucessos da pátria.

A função do discurso geográfico tem uma tal importância que durante decêniosele impregnou o essencial das leituras de milhões de pequenos franceses: é ofamoso Tour de France de deux enfants (Volta da França por duas crianças), livrode leitura corrente da escola primária, que detém de longe, logo após o catecismo, orecorde de edições: oito milhões de exemplares, desde 1877.

A geografia dos professores, tal como ela se manifesta nos manuais antes dosanos vinte, oculta já, com certeza, os problemas políticos internos da nação, masela não dissimula jamais os sentimentos patrióticos que são, muito freqüentemente,do mais belo chauvinismo. Em livros do ensino primário, recenseava-se, então, onúmero de couraçados e o efetivo das forças armadas das grandes potências.

A COLOCAÇÃO DE UM PODEROSO CONCEITO-OBSTÁCULO: A REGIÃO-PERSONAGEM

Não faltará quem venha objetar que essa geografia de farda desapareceu hácinqüenta anos - o que é verdade - e que desde então as lições de geografia, aomenos nas classes mais avançadas do secundário não são mais essa enumeraçãorelevo - clima - vegetação população, mas um estudo das diferentes "regiões". Nãodeixarão sobretudo de afirmar que é inadmissível fazer o processo da geografia sólevando em consideração suas formas mais elementares ou caricaturais,metamorfoses que afetariam toda a "disciplina científica" quando ela é ensinada naescola ou no liceu. Claro, as melhores produções universitárias são apresentadascomo "modelos" aos estudantes que se tomarão professores. Mas, uma vez noensino, que poderão eles fazer, quaisquer que sejam sua consciência e suainteligência (profissional e política)?

E, aliás, seria verdade que aí existe, quanto às funções sociais, uma diferençaassim tão fundamental, como dizem os geógrafos universitários, entre a geografiadas "grandes teses", que fizeram o prestígio da "escola geográfica francesa", e essageografia dos liceus, cujos alunos hoje em dia não querem mais ouvir nela falar?

Uma e outra (com a diferença da geografia de farda que não dissimulava suaspreocupações de política externa) se caracterizam pela ocultação de todo problemapolítico. Elas são um saber pelo saber, procedem, ambas, da obra de Vidal de LaBlache (1845-1918), que é considerado unanimemente como o "pai" dessa "Escolageográfica francesa" que foi reputada no mundo inteiro, onde ela exerceu umagrande influência, tanto por sua orientação em direção à "geografia regional" como

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pela despolitização do discurso que ela impunha. Seu papel ideológico foiconsiderável.

Antes de falar logo adiante do papel de Vidal de La Blache, é preciso sublinharque na verdade a corporação dos geógrafos universitários só reteve um aspecto doseu pensamento, o Quadro da geografia da França, e que ela esqueceu,sistematicamente, o outro grande livro de Vidal, A França de leste (1 916) porque aliele dá uma enorme importância aos fenômenos políticos. Trata-se, com efeito, deum livro de geopolítica.

Nessas páginas bastante críticas a respeito do pensamento "vidaliano" só setrata do primeiro aspecto da obra de Vidal de La Blache, aquele que a corporaçãoprivilegiou: o outro Vidal, que ela ignora completamente, só será lembradoulteriormente, pois só recentemente ele foi redescoberto.

Com seu Quadro da geografia da França (1905), modelo tantas vezesretomado por tantas teses, cursos e manuais ou com os quinze tomos da Geografiauniversal (A. Colin) cuja concepção ele influenciou, Vidal de La Blache introduziu aidéia das descrições regionais aprofundadas, que são consideradas a forma, a maisfina, do pensamento geográfico. Ele mostra como as paisagens de uma "região" sãoo resultado da superposição ao longo da história, das influências humanas e dosdados naturais. Mas em suas descrições, Vidal dá maior destaque para aspermanências, a tudo aquilo que é herança duradoura dos fenômenos naturais oude evoluções históricas antigas. Em contrapartida, ele baniu, em suas descrições,tudo que decorre da evolução econômica e social recente, de fato, tudo o que tinhamenos de um século e traduzia os efeitos da "revolução industrial". Claro, Vidal deLa Blache combateu a tese "determinista", segundo a qual os "dados naturais" (ouum deles) exercem uma influência direta e determinante sobre os "fatos humanos" eele dá um papel capital à história para avaliar as diversas maneiras pelas quais oshomens estão em relação com os "fatos físicos".

Vidal de La Blache instala (com que estilo!) sua concepção do "homem-habitante" e essa expulsa para fora dos limites da reflexão geográfica o homem nassuas relações sociais, e com mais forte razão ainda, nas relações de produção.Além do mais, o "homem vidaliano" não habita as cidades, ele mora sobretudo nocampo, ele é sobretudo o habitante de paisagens que seus ancestrais longínquosmodelaram e organizaram.

Hoje, os geógrafos têm um consenso de que Vidal falou muito pouco dascidades, só o tendo feito para evocar sua fundação e as primeiras etapas do seucrescimento e que ele não prestou atenção a fenômenos tão espetaculares, talcomo o descobrimento da indústria. Mas a maioria dos geógrafos de hoje acreditaque nada impede de completar e de atualizar o Quadro da geografia da França queVidal traçou nos primeiros anos do século. E todos celebram o modelo de análiseque ele fez das diferentes regiões francesas: com que finura descreve ele a"personalidade", a "individualidade" da "Champagne", da "Lorena", da "Bretanha",do "Maciço Central", dos "Alpes", denominações que se nos tornaram tão familiaresque temos a impressão de que essa divisão da paisagem sempre existiu. Ela éreutilizada, reproduzida por todas as monografias, que tornaram mais precisas,complementaram as descrições do mestre e em todo o discurso escolar euniversitário. Após Vidal, que levantou o plano de uma volumosa GeografiaUniversal, a descrição geográfica de qualquer país, que seus discípulos irãorealizar, consistirá em apresentar as diferentes "regiões que o compõem" e adescrevê-las, umas após as outras. Esse método, que não provocou críticas,conheceu um sucesso considerável no mundo inteiro e fez o renome da escolageográfica francesa. A geografia regional é imposta como a "geografia porexcelência": não associaria a ela, estreitamente, a um só tempo, a "geografia física"

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e a "geografia humana"? Esse procedimento da geografia regional consiste emconstatar como evidência a existência, num país, de um certo número de regiões edescrevê-las, umas após as outras, ou a analisar somente uma delas no seu relevo,seu clima, sua vegetação, sua população, suas cidades, sua agricultura, suaindústria, etc., cada uma considerada como um conjunto contendo outras regiõesmenores. Esse procedimento impregna, hoje, todo o discurso sobre a sociedade,toda a reflexão econômica, social e política, quer ela proceda de uma ideologia "dedireita" ou "de esquerda". É um dos obstáculos capitais que impedem de colocar osproblemas da especialidade diferencial, pois admite-se, sem discussão, que sóexiste uma forma de dividir o espaço.

Será preciso muito tempo para aqueles geógrafos que desde alguns decêniosse preocupam com os problemas econômicos, sociais e políticos, em particular soba influência do marxismo, perceberem que esse procedimento vidaliano, tãoadmirado, reproduzido por um monte de gente que nunca ouviu sequer falar deVidal de La Blache, é, de fato, um subterfúgio particularmente eficaz, pois eleimpede de apreender eficazmente as características espaciais dos diferentesfenômenos econômicos, sociais e políticos. De fato, cada um deles tem umaconfiguração geográfica particular que não corresponde à da "região".

Completar, atualizar o discurso de Vidal de La Blache, acrescentando-lheparágrafos sobre a indústria, as cidades, os problemas agrícolas, não muda nada osaxiomas escondidos de seu procedimento (talvez involuntário) da maneira pela qualele dividiu a França em regiões. Se Vidal tivesse dito: "Vejam, seria cômodo, útil,levando-se em consideração esta ou aquela razão, distinguir, no bojo do territóriofrancês, tais ou tais subdivisões, subconjuntos, regiões ... a que eu dou este ouaquele nome...”, teria sido possível, sem dúvida, discutir essa divisão e seuscritérios; propor outras maneiras de dividir o território, isto é, outras formas depensar o espaço. Mas não, Vidal tomou o cuidado de evitar essa reflexãometodológica e iniciou o jogo afirmando em substância: eis tais e tais regiões que sechamam Lorena, Bretanha, Champagne, etc.; elas existem como "individualidades","personalidades", da mesma forma que a França existe. O papel do geógrafo seria ode talhar sua fisionomia e de mostrar que seus traços resultam de uma harmoniosainteração entre as condições naturais e heranças históricas muito antigas.

Ninguém se lembrou de dizer que as regiões que Vidal de La Blache gostavade personalizar não eram organismos ou mininações, mas um modo de ver ascoisas, o fruto do talento daquele que pintava esse "quadro geográfico da França"(que é o tema I da História da França, de Ernest Lavisse).

Quem teria tido a idéia (sacrilégio) de representar a França de uma outramaneira, de dar uma configuração diferente a cada um dos membros que formam ocorpo da pátria? A existência dessas regiões inventadas por Vidal de La Blache nãoera contestada, nem suas designações; de fato, as apelações que ele lhes deu sãoentidades políticas conhecidas há muito: Bretanha, Lorena, Champagne (emborasuas fronteiras tenham sido móveis) ou correspondem a realidades visíveis napaisagem (os Alpes ...).

Criticar Vidal de La Blache por não ter exposto seu método pode parecer oefeito de um purismo um tanto quanto anacrônico, e o mecanismo dessa polêmicapode parecer bem restrito. Se atentarmos bem ele é, contudo, muito maisimportante do que pode parecer.

De fato, sem a sombra de uma dúvida, e freqüentemente sem mesmo seexplicar, Vidal traça os limites das diferentes regiões, cuja existência ele impõe, sejacomo uma parte de um dos traçados dos limites de antigas províncias, seja por tallimite climático, seja a linha que o geólogo traça sobre a carta para separar osafloramentos de terrenos muito diferentes. Um tal retalhamento convém, talvez, à

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classificação dos elementos da "paisagem" que Vidal escolheu porque eles podemser considerados como as heranças de fenômenos históricos (os mais) antigos, oupor sua evidente dependência, seja das condições geológicas, seja das condiçõesclimáticas. De fato, a descrição que Vidal faz da França, deixando crer que eleapreende "tudo" aquilo que é "importante", é o resultado de uma estrita, masdiscreta, seleção dos fatos; ela deixa na penumbra o essencial dos fenômenoseconômicos, sociais e políticos decorrentes de um passado recente. De outro lado,e isso é o mais grave, essa descrição impõe uma única forma de dividir o espaço eesta não convém, de forma alguma, ao exame das características espaciais denumerosos fenômenos urbanos, industriais, políticos, por exemplo, aquelesjustamente que Vidal não quis levar em consideração. Para apreendê-loseficazmente, teria sido preciso uma outra divisão que levasse em conta as linhas deforça econômicas e os grandes pólos urbanos que estruturam o espaço de um paíscomo a França, desde a "revolução industrial". Mas o prestígio da divisão vidalianafez com que "suas" regiões, que ele delimitou, tenham sido consideradas as únicasconfigurações espaciais possíveis e a expressão, por excelência, de uma pretensa"síntese" de todos os fatores geográficos. Mas essa síntese ignorava muitos fatores,e dos mais importantes. Os discípulos do mestre escreveram uma série demonografias, cada uma consagrada a uma das regiões ou sub-regiões que ele haviadistinguido: estudou-se, por exemplo, o relevo da Champagne, a agricultura daChampagne, as indústrias, as cidades, etc.; sem se questionar se não teria sidomais esclarecedor abordar, por exemplo, os estabelecimentos industriais que seencontram nessa "região" e em outras, em função de um outro conjunto espacial,com considerações sobre suas relações financeiras. Há linhas que só têmsignificado geológico, ou que correspondem a demarcações políticas desde hámuito inexistentes, que determinam a divisão do espaço e a individualização dasdiferentes "regiões" que se tomam em seguida, de maneira essencialmentemonográfica.

Para a enorme maioria dos geógrafos, essa maneira tradicional de procedernão apresenta inconvenientes maiores. Em última instância, os contornos da regiãolhes importam pouco. O que vale para Vidal é analisar da maneira maisaprofundada possível o "conteúdo", as intenções que se processaram ao longo dahistória entre fatos físicos e fatos humanos num determinado espaço "dado" de umavez por todas.

Fruto do pensamento vidaliano, a "região geográfica", considerada arepresentação espacial, senão única, ao menos fundamental, entidade resultante,pode-se dizer, da síntese harmoniosa e das heranças históricas, se tornou umpoderoso conceito-obstáculo que impediu a consideração de outras representaçõesespaciais e o exame de suas relações.

Essa maneira de recortar a priori o espaço num certo número de “regiões", dasquais só se deve constatar a existência, essa forma de ocultar todas as demaisconfigurações espaciais, às vezes bastante usuais foram difundidas, com umenorme sucesso na opinião, através de manuais escolares e também pela literaturae pela mídia. Esse sucesso, bastando ver a importância dos argumentosgeográficos utilizados nos movimentos "regionalistas", é talvez uma espécie dereação inconsciente que vai ao encontro da superposição das representaçõesespaciais provocadas pelo desenvolvimento da especialidade diferencial: a região"vidaliana", imaginada como o fruto de uma sutil e lenta combinação das forças daNatureza e do Passado, apresentada como a expressão de uma permanência, deuma autenticidade é, sem dúvida, para a maioria das pessoas, um meio de “aí seencontrar” dentro da confusão de outras organizações espaciais, de maior ou menorenvergadura.

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Sempre acontece que o procedimento vidaliano, que nega, a nível do discurso,os problemas que colocam a especialidade diferencial, tem por efeito fazer derraparinúmeras análises, pois elas não são conduzidas levando em consideração arepresentação espacial que seria adequada.

A consagração pelos geógrafos da região-personalidade, organismo coletivoou mininação da região-personagem histórica, forneceu a garantia, a própria base,de todos os geografismos que proliferam no discurso político.

Por "geografismos" eu entendo as metáforas que transformam em forçaspolíticas, em atores ou heróis da história, porções do espaço terrestre ou, maisexatamente, os nomes dados (pelos geógrafos) a territórios mais ou menosextensos. Exemplos de geografismos: "a Lorena luta, a Córsega se revolta, aBretanha reivindica, o Norte produz isto ou aquilo, Paris exerce tal ou tal influência,Lyon fabrica, etc.". Evidentemente esses geografismos designam os homens quevivem nessas cidades e nessas regiões. Mas esses malabarismos de estilo não sãoassim tão inocentes como podem parecer à primeira vista, pois eles permitemescamotear as diferenças e as contradições entre os diversos grupos sociais que seencontram nesses lugares ou sobre esses territórios. E a razão pela qual essesgeografismos são tão utilizados nos discursos patrióticos, quer se trate do Estado-nação ou da região, que alguns consideram como mininações ou como nações empotencial.

Enquanto seria politicamente mais sadio e mais eficaz considerar a regiãocomo uma forma espacial de organização política (etmologicamente, região vem deregere, isto é, dominar, reger), os geógrafos acreditam na idéia de que a região éum dado quase eterno, produto da geologia e da história. Os geógrafos, de algummodo, acabaram por naturalizar a idéias de região: não falam eles das regiõescalcáreas, de regiões gramíticas, de regiões frias, de regiões florestais? Elesutilizam a noção de região, que é fundamentalmente política, para designar todas asespécies de conjuntos espaciais, quer sejam topográficos, geológicos, climáticos,botânicos, demográficos, econômicos ou culturais.

AS INTERSEÇÕES DE MÚLTIPLOSCONJUNTOS ESPACIAIS

A crítica rigorosa que acaba de ser feita da noção "vidaliana" de região nãoteve somente a finalidade de chamar a atenção contra essas múltiplas mistificaçõespolíticas que são os geografismos, mas também a de denunciar um modo de pensaro espaço que se choca com o verdadeiro raciocínio geográfico e exclui suaimportância estratégica. O discurso vidaliano, a propósito da região, sedesenvolveu, aliás, a partir do momento em que os geógrafos, tornando-seuniversitários, afastaram de suas reflexões qualquer referência à ação e aosfenômenos políticos.

Se de fato sim, como o proclamam os professores de geografia, e após eles, amídia, o espaço terrestre é constituído por grandes compartimentos, as regiões,cada uma delas possuindo o seu relevo próprio e seu próprio clima, sua geologia esua economia particulares, se cada um desses compartimentos pode e deve ser

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descrito monograficamente por si mesmo, sem referência fundamental com tudoaquilo que o circunda, então essa descrição geográfica dada, de uma vez por todas,nesses quadros intangíveis não pode servir para grande coisa, de tal forma ela écontrária às diversas configurações verdadeiras das realidades, em função dasquais é preciso agir.

Basta folhear um Atlas ou um Manual consagrado a um mesmo continente, aum mesmo Estado o a uma porção qualquer do espaço terrestre, para se perceberque as configurações espaciais dos fenômenos geológicos, climáticos,demográficos, econômicos, culturais não coincidem uns com os outros, na maioriados casos; ao contrário, elas formam uma série de interseções complexas.

Contrariando aquilo que proclama um certo número de clichês pedagógicos ejornalísticos, a extensão do Terceiro Mundo não coincide com a dos climas tropicais,o mundo muçulmano não corresponde à zona árida e semi-árida; a "região lionesa",por exemplo, uma das regiões mais evidentes para o geógrafo, se estende sobreparte de outras "regiões" que eles consideram também evidentes, o Maciço Central,os Alpes, a calha do Ródano. A Suíça oferece um dos exemplos de interseções dosmais complexos, uma vez que esse país está não somente "montado" sobre acadeia dos Alpes, mas também porque sua compartimentação em diferentes"cantões" não corresponde às configurações dos conjuntos religiosos (protestantes,católicos) que têm, no entanto, grande importância nesse país.

Uma das razões de ser fundamentais da geografia é a de tomar conhecimentoda complexidade das configurações do espaço terrestre. Os fenômenos que sepodem isolar pelo pensamento, segundo as diferentes categorias científicas(geologia, climatologia, demografia, economia, etc.), não se ordenam espacialmentesegundo grandes compartimentos, as regiões sobre as quais os professores degeografia proclamam a realidade, mas ao contrário se superpõem, efreqüentemente de maneira bastante complicada. É levando em consideração essasmúltiplas interseções entre as configurações precisas dos diferentes fenômenos,que se pode agir mais eficazmente, pois isso permite evitar, por exemplo, aquelasque constituem obstáculo à ação que se quer empreender. No coração de umamesma "região", lugares vizinhos e aparentemente idênticos podem, na realidade,oferecer condições bem diversas, e é o exame das configurações espaciais precisasde diferentes fenômenos que permite escolher a implantação (ou o itinerário) maisvantajosa.

O método que permite pensar eficazmente, estrategicamente, a complexidadedo espaço terrestre é fundamentado, em grande parte, sobre a observação dasinterseções dos múltiplos conjuntos espaciais que se podem formar e isolar peloraciocínio e pela observação precisa de suas configurações cartográficas.

O que é um conjunto espacial?A anexação do adjetivo espacial à palavra conjunto tem por objetivo destacar

que nesse procedimento de análise, que é fundamental no verdadeiro raciocíniogeográfico, a maior atenção deve ser dada, na carta, ao traçado dos limites dosdiversos conjuntos levados em consideração, à configuração particular de cada umdeles. Não se trata de interseções de conjuntos teóricos (o entrecruzamento dascélebres "batatas" do diagrama de Venn que serve de rudimento à teoria dosconjuntos) mas de conjuntos definidos, cada qual, não somente por elementos e porsuas relações, mas também pelo traçado preciso de seus contornos cartográficosparticulares.

Cada um desses conjuntos não fornece mais do que um conhecimentoextremamente parcial da realidade. De fato, esses conjuntos espaciais sãorepresentações abstratas, objetos de conhecimento e ferramentas de conhecimentoproduzidos pelas diversas disciplinas científicas. Essas, no seu esforço de

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investigação da realidade, se adequam a uma espécie de divisão, mais ou menosacadêmica, do trabalho, cada uma delas privilegiando uma "instância", isto é, ummodo de ver o mundo (a geologia, a climatologia, a biologia e, no que diz respeitoàs atividades humanas, a economia, a sociologia, a demografia, etc) a ponto detraçar da realidade uma representação que negligencia todas as outras. Mas adiversidade da realidade, na superfície do globo, não é somente a que descreve ogeólogo ou a que analisa o economista: é a combinação de todas essasrepresentações parciais que permite tomar conhecimento dela, da forma a menosimperfeita.

Cada disciplina, cada maneira de apreender a realidade, destaca ascaracterísticas espaciais da categoria de fenômenos que ela privilegia e traça oscontornos sobre a carta: conjuntos topográficos, climáticos, vegetais, conjuntosurbanos, conjuntos étnicos, religiosos, conjuntos políticos, circunscriçõesadministrativas, etc. Ora, é importante destacar - o que é uma evidência muitasvezes esquecida - que não existe, na maior parte das vezes, coincidência entre oscontornos das diferentes espécies de conjuntos espaciais que as diversasdisciplinas delimitam para uma mesma porção da superfície terrestre, o quedemonstra a superposição das diversas cartas temáticas (relevo, geologia, clima,povoamento, etc.). Para examinar essas múltiplas interseções com mais precisão,podem-se superpor decalques referentes, cada qual a uma carta especializada.

Sem dúvida, observando-se atentamente esse entrecruzamento dos contornosdos diversos conjuntos espaciais, podem-se constatar coincidências, inclusões, masessas são bem menos a regra que a exceção e, nesse prisma, são dignas deatenção: elas confirmam uma relação de causalidade entre dois fenômenos (e àsvezes mais), uma vez que, para uma certa porção do espaço terrestre, suaconfiguração espacial aparece como vizinha, ou idêntica. Mas tais coincidências sãoraras e o que há mais comumente é a interseção das configurações espaciais dasdiversas categorias de fenômenos que são analisados pelas diversas disciplinascientíficas: geologia, climatologia, demografia, economia, etc. e isto porque oraciocínio geográfico é socialmente necessário, seja ele conduzido por geógrafosuniversitários, seja por homens de ação, planificadores ou estrategistas. Arepresentação mais operacional e mais científica do espaço não é a de uma divisãosimples em "regiões", em compartimentos justapostos uns aos outros, mas a deuma superposição de vários quebra-cabeças bem diferencialmente recortados.

Contudo, essa representação do espaço, já bem complexa, não é suficientepara ser operacional. Não é suficiente, de fato, raciocinar, como fizemos até agora,sobre as interseções entre as diferentes espécies de conjuntos espaciais, no âmagode um mesmo território; é preciso também considerar suas dimensões, que podemse referir a ordens de grandeza muito diversas. Nós retomaremos a esse problema.

Os professores de geografia dedicaram tal interesse às coincidências deconjuntos espaciais estabelecidos por disciplinas diferentes, que acabaram vendonessa correspondência, senão a regra, ao menos o único tipo de configuraçãoespacial digno de interesse. Em vez de representar a diversidade e a complexidadedo espaço terrestre como o resultado das interseções entre os múltiplos conjuntosespaciais que convém distinguir, segundo as diversas preocupações científicas, osprofessores de geografia forjaram e inculcaram uma representação do espaçoterrestre baseada, muitas vezes, contra toda a evidência cartográfica, sobre acoincidência de contornos das diversas categorias de conjuntos.

Tal representação teve, contudo, um enorme sucesso, graças ao ensino e hojeela é considerada uma "realidade" geográfica evidente: é a "região" de que se exaltaa existência, estando assentado que cada região, tem seu próprio relevo, seu climaparticular, sua população e sua economia dotadas, uma e outra, de características

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específicas, bem diversas daquelas que têm as regiões vizinhas. Tal discurso, cujafunção ideológica é considerável, postula que a linha que é tida como senso comumpara delimitar tal "região" em relação àquelas que a contornam, seria umademarcação fundamental, destacando da mesma forma os conjuntos espaciaislevantados pela geologia, como os que decorrem da climatologia, da demografia, daeconomia, etc.

Um exemplo de região: a Borgonha e a interseção de alguns conjuntos espaciaisque se estendem além de seus limites histéricos ou administrativos atuais.

Basta examinar as cartas geológicas, climáticas, demográficas representandoum espaço mais amplo que o da "região", cuja existência é alardeada em limitesprecisos, para se perceber que tal maneira de ver as coisas não tem qualquerfundamento científico, uma vez que os contornos dos diversos conjuntos espaciaisnão coincidem.

Deveras, seguindo-se a Vidal de La Blache, os professores de geografia, paraafirmar a existência desta ou daquela "região", dotada cada qual, segundo osmesmos, de sua individualidade geológica, climática, demográfica, econômica,histórica, privilegiaram, sem o dizer, sem mesmo perceber, um ou dois conjuntosespaciais cujos contornos parecem coincidir, e que eram considerados, a priori, maisestáveis, mais importantes, mais "determinantes" ou mais dignos de interesse queoutros, cujas configurações particulares muito diferentes, eram escamoteadas.Foram, freqüentemente, os contornos de conjuntos geológicos ou de antigasprovíncias (postulando que suas fronteiras tivessem sido estáveis) que foram

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privilegiados para servir de quadro às regiões". Em contrapartida, os contornos dasregiões econômicas, as áreas de influência das grandes cidades foram, via de regra,negligenciadas, salvo exceção.

Essa maneira relativamente simples de ver as coisas, pois nega as interseçõesde múltiplos conjuntos, tem, sem. dúvida, vantagens pedagógicas, e não é de seadmirar que o ensino primário e secundário a tenham difundido. Mas o sucesso daidéia de "região" traz em si também poderosas razões ideológicas que estão ligadasao sentimento nacional: cada Estado, cada "país" é quase como se fosse a reuniãode um certo número de "regiões". Cada "região", descrita como uma entidade vivamuito antiga, senão eterna, aparece como um dos órgãos do corpo da pátria. A idéiade "região", a idéia de que só há uma forma de se conceber a repartição de umespaço e, em última análise, a idéia de que o espaço é compartimentado pelaNatureza, por Deus, de acordo com linhas simples e estáveis, traduz o poderioideológico da geografia dos professores. Mas essas representações tranqüilizantes,que são o fundamento de tantos discursos e rompantes líricos, não sãooperacionais. Desde que não se trate mais de discursos ou de manuais escolares,mas de ação, é preciso entender, para não fracassar, que as configurações doespaço são bem mais complexas que a repartição simples em grandes "regiões" dageografia dos professores.

O ESCAMOTEAMENTO DE UM PROBLEMACAPITAL: A DIFERENCIAÇÃO DOS NÍVEISDE ANALISE ESPACIAL

Seguindo-se a Vidal de La Blache, sob o efeito das tendências queconcorreram para a difusão de sua forma de pensar, não somente na França, mastambém no exterior, os geógrafos se lançaram na descrição cada vez mais refinadade cada "região" que eles foram levados (como? por quê?) a distinguir e a tomar emconsideração.

Sendo cada "região" considerada um dado de evidência (e não o resultado deuma escolha) nada mais há a fazer, parece, que observar essa porção do espaçodotada de certas peculiaridades que a tornam diferente dos territórios que a cercam.Nada mais há que ler o grande livro aberto da natureza. Mas em que página oabriremos? O geógrafo (e após ele, todos aqueles que ele influencia por seudiscurso) não se preocupa com ilusões do saber imediato e da primeira experiência.Ele não se questiona se acaso não seria sua maneira pessoal de ver as coisas, ainfluência de seus mestres numa certa etapa de sua evolução intelectual, certospressupostos dos quais ele não está consciente, que o levam a decidir sobre aindividualidade dessa "região", isto é, a privilegiar (por quê?) certas informações.

Nessas condições, se ele não questiona o bom fundamento dos limites da"região" que estuda, ele se preocupa ainda menos com o tamanho do espaço, queleva em consideração, de forma monográgráfica. Alguns geógrafos colocam suaatenção, de preferência, sobre as pequenas "regiões", descrevem a extensão de umcantão que reagrupa algumas aldeias, enquanto outros estudam territórios

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consideravelmente mais vastos, as "regiões tropicais", "as regiões polares", ou seja,uma grande parte da superfície do globo.

Para a maioria dos geógrafos, a dimensão do território levado em consideraçãoe os critérios dessa escolha, não parecem dever influenciar fundamentalmente suasobservações e seus raciocínios. Contudo, basta folhear um manual de geografia oua coleção de uma revista geográfica para se perceber que as ilustraçõescartográficas são de tipos extremamente diferentes, pois essas cartas têm escalasmuito desiguais: algumas são planisférios que representam todo o globo, outrasrepresentam um continente; outras, um Estado (extenso ou pequeno), outras uma"região" cuja extensão pode ser variável, outras uma aglomeração urbana, umbairro, uma aldeia e seu "terroir", uma exploração rural e suas construções, umaclareira na floresta, um pântano, uma casa, etc. Essas extensões de tamanho bemdesigual são representadas por cartas, cujas escalas são bem diversas: desde ascartas em pequeníssima escala que representam o conjunto do mundo até cartas eplanos em escala bem grande, que representam, de maneira detalhada, espaçosrelativamente pouco extensos1.

Entre todas essas cartas de escala tão desigual, não há somente diferençasquantitativas, de acordo com o tamanho do espaço representado, mas tambémdiferenças qualitativas, pois um fenômeno só pode ser representado numadeterminada escala; em outras escalas ele não é representável ou seu significado émodificado. É um problema essencial, mas difícil.

Ora, a escolha da escala de uma carta aparece habitualmente como umaquestão de bom senso ou de comodidade à qual não se dá importância e cadageógrafo universitário escolhe a escala que lhe convém, sem estar muito conscientedos motivos dessa escolha. Em contrapartida, as exigências da prática fazem comque os oficiais saibam bem que não são as mesmas cartas que servem para decidira estratégia de conjunto e as diversas operações táticas. A estratégia se elabora emescala bem menor que a tática.

É preciso perceber que a grande variedade das representações cartográficas,no que concerne as escalas utilizadas é de fato significativa das diferenças queexistem entre vários tipos de raciocínios geográficos, diferenças essas que sedevem, em grande parte, ao tamanho bastante desigual dos espaços que elasconsideram. Certos raciocínios não podem se formar se não forem examinados osdiferentes aspectos de um fenômeno sobre o conjunto do planeta (é por exemplo ocaso de certos fenômenos climáticos ou econômicos). Em contrapartida, outrosfenômenos tais como os processos de erosão, não podem ser convenientementeobservados senão em escala bem grande, sobre um vertente, no leito de umacorrenteza... Essas constatações são perfeitamente banais para os geógrafos quenão parecem senão reafirmar ainda uma vez, o ecletismo de seus pontos de vista:ora, dizem eles, é preciso olhar a terra no microscópio, ora do alto de um satélite.

A "REALIDADE" APARECE DIFERENTESEGUNDO A ESCALA DAS CARTAS, SEGUNDOOS NÍVEIS DE ANÁLISE

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Em minha concepção é aí que se situa, dissimulada atrás de práticastotalmente empíricas, que se apresentam freqüentemente como comodidadespedagógicas, um dos problemas epistemológicos primordiais da geografia. De fato,as combinações geográficas que podem ser observadas em grande escala não sãoaquelas que podem ser observadas em escala pequena. A técnica cartográficachamada de “generalização", que permite levantar uma carta em escala menor deuma "região" a partir de cartas em grande escala que a representam de modo maispreciso (mas cada uma para espaços menos amplos), deixa acreditar que aoperação consiste somente em abandonar um grande número de detalhes pararepresentar extensões mais amplas. Mas como certos fenômenos não podem serapreendidos se não considerarmos extensões grandes, enquanto outros, denatureza bem diversa, só podem ser captados por observações muito precisas sobresuperfícies bem reduzidas, resulta daí que a operação intelectual, que é a mudançade escala, transforma, e às vezes de forma radical, a problemática que se podeestabelecer e os raciocínios que se possa formar. A mudança da escala correspondea uma mudança do nível da conceituação.

A combinação de fatores geográficos, que aparece quando se considera umdeterminado espaço, não é a mesma que aquela que pode ser observada para umespaço menor que está "contido" no precedente. Assim, por exemplo, aquilo que sepode observar no fundo de um vale alpino e os problemas que podem ser colocadosa propósito desse espaço e das pessoas que aí vivem, diferem daquilo que se vêquando se está sobre um dos picos e essa visão das coisas se transforma quandose olham os Alpes de avião, a 10.000 metros de altitude.

Um mesmo geógrafo pode proceder a um estudo dos problemas de uma aldeiaafricana, à análise da situação de uma região onde tal aldeia se encontra, ao examedos problemas a nível do Estado onde ela se inscreve, e à apreensão do"subdesenvolvimento" ao nível do conjunto do "Terceiro Mundo"; esse geógrafo teráde fato discursos bem diferentes (nem que seja só pelo vocabulário) que nemsempre se remetem uns aos outros, parecendo mesmo ser excludentes em váriospontos. Tomemos um último exemplo, cujo significado será talvez menos percebido,pois as alusões serão mais facilmente relacionadas a experiências familiares, numconjunto do qual atingiremos a diversidade dos aspectos pela prática social: cadavez se fazem mais referências às "realidades urbanas" tomadas como um conjuntoglobal (onde os "fatores físicos" não devem ser esquecidos, não somente naquiloque se refere aos sítios, mas sobretudo, e cada vez mais, aos problemas de"poluição"). Contudo, esses aparecem de maneira bem diferente, segundo seobserva em grande escala, ao nível do grupo de imóveis (como foi ele escolhido?Onde se encontra?), do bairro (qual?), ou se considere somente o centro da cidade,o conjunto da cidade ou a aglomeração com os subúrbios mais ou menos extensos,ou ainda, se considerarmos em escala pequena esse conjunto urbano no quadro desua "região” (a qual pode ser considerada de maneira mais ou menos ampla) ou nasrelações que ele mantinha com outras cidades, mais ou menos distanciadas.

Posto em prática desde há uns quinze anos pelos geógrafos, esse estudo dasrelações interurbanas dessas "redes urbanas", que é preciso recolocar num quadronacional e internacional, modificou e enriqueceu consideravelmente a problemáticaque se aplicava aos bairros centrais e reciprocamente. Cada um desses diferentesníveis de análise que se pode distinguir, desde a maior até a menor escala, nãocorresponde somente à consideração de conjuntos espaciais mais ou menosamplos, mas também à definição das características estruturais que permitemdelimitar-se os contornos.

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UMA ETAPA PRIMORDIAL NO CAMINHO DAINVESTIGAÇÃO GEOGRÁFICA: A ESCOLHADOS DIFERENTES ESPAÇOS DECONCEITUAÇÃO

Ao plano do conhecimento não há nível de análise privilegiado, nenhum deles ésuficiente, pois o fato de se considerar tal espaço como campo de observação irápermitir apreender certos fenômenos e certas estruturas, mas vai acarretar adeformação ou a ocultação de outros fenômenos e de outras estruturas, das quaisnão se pode, a priori, prejulgar o papel e, portanto, não se pode negligenciar. É porisso indispensável que nos coloquemos em outros níveis de análise, levando emconsideração outros espaços. Em seguida é necessário, realizar a articulaçãodessas representações tão diferentes, pois elas são função daquilo que se poderiachamar espaço de conceituação diferente.

No plano, não mais do conhecimento, mas da ação (urbanística ou militar),existem níveis de análise que é preciso privilegiar, pois eles correspondem aespaços operacionais, em decorrência das estratégias e das táticas elaboradas.

Esse caminho de investigação geográfica é preciso ter cuidado para nãoconsiderá-lo já construído e assegurado. Como escolher os diferentes espaços deconceituação? Como se estar seguro de sua adequação ao conhecimento de taisfenômenos e de tal estrutura? Qual é o instrumental conceitual que convém a cadaum deles? Como operar a articulação desses diferentes níveis de análise? Por qualnível começar a investigação?

O que parece assegurado é que, para tudo aquilo que tem uma significânciaespacial, a natureza das observações que podem ser efetuadas, a problemática quepode ser estabelecida, os raciocínios que podem ser construídos são função dotamanho dos espaços considerados e dos critérios de sua seleção.

O problema das escalas é portanto primordial para o raciocínio geográfico.Contrariamente a certos geógrafos que declaram que "se pode estudar um mesmofenômeno em escalas diferentes", é preciso estar consciente que são fenômenosdiferentes porque eles são apreendidos em diferentes níveis de análise espacial.

A mesma questão se coloca, de forma comparável, para a história. Assim, porexemplo, a explicação da jornada de 14 de julho de 1789, considerada como eventosignificativo capital, será muito diferente segundo se procure saber o que se passouexatamente na véspera, na semana, no mês precedente ou se tomarmos pedaçosde tempo mais longos como quadro das observações e do raciocínio: um ano, dezanos antes, ou os três séculos que precederam o sepultamento do Antigo Regime: ahistória de "curta duração", a história chamada dos acontecimentos aparece,evidentemente, radicalmente diferente da história de "longa duração" que permiteclarear o desenvolvimento das contradições do "feudalismo", tanto ao nível das infraestruturas, como das superestruturas.

Da mesma forma que os diferentes tempos da história não devem serconfundidos, mas devem ser vistos nos seus entrelaçamentos1, os diferentesespaços de conceituação, aos quais precisa se referir o geógrafo, devem ser objetode um esforço de diferenciação e de articulação sistemáticos. É preciso fazer uma

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distinção radical entre espaço, tomado como objeto real que não se pode conhecersenão através de um certo número de pressupostos mais ou menos deformantes,por intermédio de um instrumental conceitual mais ou menos adequado, e o espaço,tomado como objeto de conhecimento, isto é, as diferentes representações doespaço real (a dos pintores, dos matemáticos, dos astrônomos, dos geógrafos ... )que evoluíram historicamente simultaneamente com a descoberta progressiva quenão será jamais terminada (pois a história não está acabada). Essas representaçõesdo espaço são ferramentas de conhecimento que devemos melhorar e construir, deforma a torná-las mais eficazes, para nos permitir compreender melhor o mundo esuas transformações.

Após essa longa reflexão sobre esse delicado problema das escalas, dosníveis de análise e dos espaços de conceituação, pode-se notar até que ponto asobservações e os raciocínios geográficos são função da medida do espaço levadoem consideração e critérios dessa escolha. Pode-se medir melhor as conseqüênciasda orientação durável que a obra de Vidal de La Blache parece ter dado às reflexõesdos geógrafos, não somente na França, mas também em numerosos outros países.

O mérito principal que se reconhece em Vidal de La Blache é o de termostrado, pela análise monográfica aprofundada das "realidades regionais", acomplexidade das interações que se estabeleceram no decurso da história, entre osfatos físicos e os fatos humanos. O quadro que Vidal dá às suas observações e àssuas reflexões é a "região", que ele apresenta como a "realidade geográfica" porexcelência.

Esse expediente que postula a possibilidade de reconhecimento imediato das"individualidades geográficas", essa ilusão ou esse estratagema da familiaridadecom o real que faz acreditar que a descrição reúne todos os elementos possíveis,enquanto que ela resulta, na verdade, de escolhas muito estritas, vão permitir aosgeógrafos evitar problemas epistemológicos fundamentais.

Vidal de La Blache colocando, graças ao seu prestígio e ao seu talento, a"monografia regional" no ápice da geografia universitária, fechou, de uma certaforma, a investigação geográfica nos limites dados de um único espaço depredileção.

Desde então, a observação e o raciocínio se acham, no que é essencial,bloqueados num único nível de análise, aquele que permite apreender "a região",espaço de conceituação única, escolhido para poder apreender as extensõesdelimitadas pelas antigas fronteiras provinciais e, sobretudo, as paisagens. Ora, adescrição das paisagens corresponde, de fato, a um certo nível de análise, o quepermite apreender as formas de relevo que são consideradas como a arquiteturaessencial dessas paisagens. Mas esse nível de análise não é o que permiteapreender convenientemente os problemas econômicos, sociais e políticos.

O fato de privilegiar certos níveis de análise que correspondem a certos tiposdo espaço de conceituação provoca, por razões que já evocamos antes, adeformação, ou a ocultação dos fatores que não podem ser convenientementeapreendidos senão em outros níveis de análise. Esses fatores se encontram,disfarçadamente, afastados do raciocínio, por efeito de uma verdadeira filtragem deinformações, que consiste em delimitar, a priori, o tipo de espaço que deve serpreferencialmente, considerado. Assim, sem que isso transpareça no discurso,portanto, sem que haja necessidade de justificá-lo, encontram-se afastadas asreferências a um grande número de fatores "físicos", econômicos, sociais e políticos.Para se perceber seu papel nas combinações geográficas, seria preciso se alçar aoutros níveis de análise e considerar espaços menos extensos, ou mais extensos,em função de outros critérios de abordagem. Mas a "personalidade da região"percebida na sua condição de dado, é um conceito dominante que constitui

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obstáculo. Ele permite seguir um discurso facilmente coerente, uma vez quecorresponde a um único nível de análise. Além do mais, a lembrança das"individualidades" regionais pode se enfeitar dos atrativos literários de múltiplasimagens antropológicas.

Tudo aquilo que contribuiu para mascarar o problema da escolha das escalasde observação e de representação e o problema de articulação dos diferentes níveisde análise teve graves conseqüências para a evolução da geografia universitária epara a reflexão teórica sobre os problemas espaciais. Ainda uma vez, tudo isso nãosó concerne aos geógrafos, mas ao conjunto dos cidadãos, pois, na medida em queo discurso dos professores de geografia impregnou largamente a opinião, ascarências desse discurso foram um grave handicap para uma tomada eficaz deconsciência dos problemas geográficos em amplos meios.

AS DIFERENTES ORDENS DE GRANDEZA EOS DEFERENTES NÍVEIS DA ANÁLISEESPACIAL

Quer se trate de cartas, de observações, raciocínios, é preciso constatar queessa distinção entre grande e pequena escala é ambígua e daí resulta um certonúmero de confusões e de dificuldades: para começar, uma carta de 1/200.000, porexemplo, será classificada entre as cartas de grande escala em relação a uma cartade 1/10.000.000, mas a carta 1/200.000 será considerada de pequena escala emrelação a de 1/20.000. Além disso, a escolha de escalas diferentes não determina,necessariamente, levar-se em consideração espaços de conceituação diferentes,que têm, grosso modo, 1.000km do norte ao sul, pode ser representado em escalabem pequena, de 1/10.000.000, por exemplo (o mapa, se for limitado à França, terá10cm de lado), ou em escala maior ao milionésimo, por exemplo (o mapa da Françaterá então um metro de lado). Mas se esses dois mapas só mostram, no essencial,o território francês, o espaço de conceituação permanecerá o mesmo, apesar dadiferença de escala. Em contrapartida, se a carta de 1/10.000.000 não se limita àFrança, mas representa um espaço bem mais vasto - uma grande parte da Europa -,o espaço de conceituação muda e pode-se colocar os problemas das relações daFrança com outros Estados. A mudança de escala é uma condição necessária, masnão suficiente, da pluralidade dos es paços de conceituação; ela é o resultado davontade de apreender os espaços de tamanhos diferentes, na realidade.

É preciso, pois, basear os diferentes níveis da análise do raciocínio geográfico,não sobre as diferenças de escala, que são as relações de redução segundo ásquais se efetuam as diversas representações cartográficas da realidade, mas sobrediferenças de tamanho que existem na realidade entre os conjuntos espaciais quevale a pena tomar em consideração. Isso permite detectar inúmeras ambigüidades(por exemplo, entre pequena e grande escala), mas também acentuar as diferençasque existem entre os conjuntos espaciais que relevam do mesmo conceito, o Estado,por exemplo. Diz-se com freqüência, que é preciso colocar os problemas a nívellocal, regional e no quadro do Estado. Mas de qual Estado se trata? Não se develevar somente em consideração as diferenças de regime político, mas também

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diferenças de dimensões espaciais (e há também diferenças de dimensõesdemográficas). Há Estados, tais como a URSS ou o Canadá, em que as dimensõesse medem em milhares de quilômetros, outros, como a França, cujas dimensões semedem em centenas de quilômetros; aqueles, enfim, como Israel ou o Kuwait, quese medem em dezenas de quilômetros. E as regiões, esses subconjuntos queconvém distinguir no quadro desses Estados de tamanhos tão dessemelhantes,possuem também ordens muito diferentes de grandeza, e os termos utilizados paradescrever seus diversos aspectos emergem de um grau de abstração tanto maisavançado quanto se possa pensar que elas se estendem sobre dezenas, centenasou milhares de quilômetros. Não é a mesma coisa descrever um subconjuntoregional da URSS e uma região francesa.

Não é suficiente, portanto, classificar os conjuntos espaciais em função dasdiversas disciplinas científicas que analisam, cada qual, uma porção da realidade(conjuntos geológicos, climatologia, botânica, demografia, sociologia, economia,etc.). É preciso também classificar essas diferentes categorias de conjuntosespaciais, não em função das escalas de representação, mas em função de suasdiferenças de tamanho, na realidade. Pode-se ordenar a descrição e o raciocíniogeográfico em diferentes níveis de análise espacial que correspondem a diferentesordens de grandeza dos objetos geográficos, isto é, os conjuntos espaciais que épreciso levar em consideração para perceber a diversidade de combinações defenômenos à superfície do globo. Entre esses conjuntos, os mais vastos fazem ocontorno da terra (40.000 km), os menores, que estão figurados numa carta emescala bem grande, têm alguns metros (casa, rochedo, bosque, poço, etc.). Pode-secombinar de chamar:

- Primeira ordem de grandeza, a dos conjuntos espaciais cuja maior dimensão semede em dezenas de milhares de quilômetros: continentes e oceanos, grandeszonas climáticas, mas também um conjunto geográfico como o Terceiro Mundo, ogrupo dos países do Pacto de Varsóvia ou da OTAN ...

É de se notar que esses enormes conjuntos não são tão numerosos e que elessão vistos num grau muito pronunciado de abstração.- Segunda ordem de grandeza, a dos conjuntos cuja maior dimensão se mede emmilhares de quilômetros: Estados como a URSS., o Canadá, a China, conjuntoscomo o mar mediterrâneo, uma grande cadeia de montanhas como os Andes...

- Terceira ordem de grandeza, a dos conjuntos em que a maior dimensão se medeem centenas de quilômetros: Estados como a França, o Reino Unido, as grandesregiões "naturais" como a bacia parisiense, cadeias de montanhas como os AIpes,os subconjuntos regionais dos Estados muito grandes ...- Quarta ordem de grandeza, a dos conjuntos em que as dimensões se medem emdezenas de quilômetros - conjuntos extremamente numerosos: pequenos maciçosmontanhosos, grandes florestas, aglomerações muito grandes, subconjuntosregionais de Estados que decorrem da terceira ordem de grandeza ...- Quinta ordem de grandeza, a dos conjuntos ainda mais numerosos, cujasdimensões se medem em quilômetros.- Sexta ordem de grandeza, a dos conjuntos cujas dimensões se medem emcentenas de metros.- Sétima ordem de grandeza, aquela de inumeráveis conjuntos, cujas dimensões semedem em metros.

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É, de início, em função dessas diferentes ordens de grandeza que se faz aescolha das escalas, mas também em função da comodidade de consulta ou depublicação do documento cartográfico e do grau de precisão desejado: se é excluída arepresentação dos conjuntos de quinta ordem em escalas menores do que 1/50.000,pode-se, em contrapartida, representar conjuntos de primeira ordem em escalas quevão do décimo-milionésimo ao ducentésimo-milionésimo, segundo se queira dispor deum grande ou de um pequeníssimo planisfério, mas é sempre o mesmo espaço deconceituação: o conjunto do mundo. É portanto em função das diferentes ordens degrandeza (e não mais em função das escalas, como eu fiz no texto de 1976) queconvém distinguir os diferentes níveis de análise, cada qual deles podendo serrepresentado pelo plano onde pode ser cartografada (na mesma escala) e analisadauma interseção de conjuntos espaciais que podem decorrer de categorias científicasas mais diversas, mas que são da mesma porção dimensional. Se esses conjuntos dedimensão planetária (primeira ordem) são muito pouco numerosos e se é fácilrecensear e representar a maior parte sobre o mesmo planisfério, sob a condição deque a escala de redução não seja muito pequena, em contrapartida, o número deconjuntos possíveis se torna cada vez maior à medida que seu tamanho diminui(quinta, sexta, sétima ordem de grandeza) e, no meio dessa massa quase incontável,a escolha se efetua em função da prática, em função do gênero do problema que secoloca, em função da ação que se quer praticar.

E é em função da prática que é preciso colocar o difícil problema da articulaçãodos diferentes níveis de análise. De fato, se é relativamente fácil de perceber paracada nível as interseções de conjuntos da mesma ordem de grandeza que éinteressante, útil, prudente levar em consideração, levando-se em conta o que se querfazer, é por outro lado bem mais difícil e arriscado articular uns aos outros essesdiferentes níveis de interseção, de passar das combinações de conjuntosrelativamente concretos da quinta e sexta ordem às de segunda ou terceira ordem,bem mais abstratas no quadro de um vasto Estado. É também muito difícil passar deum plano de operação visto a nível nacional à sua execução no terreno, isto é, aonível local; é uma das dificuldades dos grandes programas de desenvolvimentoagrícola: aquilo que é planificado ao nível do Estado ou da região deve ser realizadono quadro da pequena exploração do campo sobre tal vertente, do arrozalestabelecido em tal fundo de vale.

A articulação dos diferentes níveis de análise, portanto, interseções de conjuntosespaciais de muitas diversas categorias científicas é, na realidade, um raciocínio detipo estratégico; sua adequação e seus erros são sancionados pela vitória ou peladerrota em face das finalidades que nos propúnhamos atingir, ele corresponde àarticulação daquilo que se chama, em todos os exércitos, a estratégia e a tática (há,aliás diferentes níveis estratégicos e diferentes níveis táticos que correspondem àsdiferentes ordens de grandeza de conjuntos espaciais). Mas esse expedienteoperacional, ao qual devem ser afeitos os oficiais do estado-maior, não se limita aodomínio dos militares. Ele é eficaz, indispensável mesmo, em muitos outros domínios -na verdade, para todos os tipos de reflexões e empreendimentos, desde que precisemconsiderar o espaço, o que acontece com a maioria das ações humanas.

A maior parte dos cidadãos se submete passivamente, e não sem mal-estar, àsdistorções de uma especialidade cada vez mais "diferencial" (p.45), onde seentremisturam, de forma opaca, fluxos regionais, nacionais, multinacionais sobre asparticularidades de cada situação local. A distinção sistemática de diferentes níveis deanálise espacial é um instrumental conceitual relativamente simples, que pode ajudarcada qual a até ver mais claro, a melhor compreender o que se passa. Mas se trata de

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intervir numa situação local, para modificá-Ia, e sobretudo se os objetivos sãocomplexos, a articulação desses diferentes níveis de análise é um procedimento difícil,arriscado e seria perigoso fazer acreditar que qualquer um pode se improvisar comoestrategista e geógrafo. Trata-se, com efeito, de levar em consideração um grandenúmero de fatores geológicos, climáticos, pedológicos, demográficos, sociais,econômicos, políticos, culturais que são trunfos, obstáculos, handicaps e que semisturam de forma tanto mais complicada por terem, cada um, sua própriaconfiguração espacial. Para fazer compreender como é eficaz articular, em funçãodos fins fixados e dos meios, que se dispõe, essas interseções de conjuntos espaciaistão diferentes e dissemelhantes pelo tamanho, seria preciso dar exemplos precisos1

mostrando como estratégias foram concebidas ou improvisadas e executadas emsituações concretas e quais foram as conseqüências desses empreendimentos, suasvitórias ou suas falhas. É de se notar que essas últimas podem, freqüentemente, serimputadas a erros na análise das situações geográficas e sobretudo aodesconhecimento de uma das ordens de grandeza. O caminho da geografia ativa,aquele que associa raciocínio estratégico e raciocínio geográfico, não é fácil, masaparece como indispensável.

Pois a geografia não serve somente para fazer a guerra.Esse esquema ilustra essa maneira de pensar o espaço baseado

fundamentalmente sobre a combinação de dois métodos de análise espacial: de umlado, a distinção sistemática de diferentes níveis de análise, segundo as diferentesordens de grandeza, segundo as dimensões que têm os múltiplos conjuntos espaciais,na realidade; de outro lado, a cada um desses níveis, o exame sistemático dasinterseções entre os contornos dos diversos conjuntos espaciais da mesma ordem degrandeza.

Sobre esse desenho, foi sem dúvida, dada arbitrariamente aos conjuntosespaciais a forma de "batata", como fazem os matemáticos quando expõem osrudimentos da teoria dos conjuntos e suas interseções. Mas, evidentemente, osconjuntos espaciais têm, sobre as cartas, contornos infinitamente variados: há oslineares (um grande eixo de circulação), digitados (uma rede fluvial), em "arquipélago",etc.

No alto do esquema, o plano 1 corresponde ao nível de análise das interseçõesde conjuntos da primeira ordem de grandeza, aquelas cujas dimensões se medem emdezenas de milhares de quilômetros. Esse plano é o dos planisférios, representandotoda a superfície do globo, ao centro desse plano 1 o pequeno retângulo marcado 2corresponde à extensão do quadrilátero arbitrariamente levado em consideração, nosegundo nível da análise, aquele que permite o exame das interseções de conjuntosda 2a ordem de grandeza, aqueles cujas dimensões se medem em milhares dequilômetros. Ao centro desse plano 2, o pequeno retângulo marcado 3, corresponde àextensão do quadrilátero levado em consideração no terceiro nível de análise, o quepermite o exame das interseções dos conjuntos da 3a ordem de grandeza, aquelescujas dimensões se medem em centenas de quilômetros. E assim por diante ...

Sobre o plano 2 desse desenho, representou-se a título de exemplo por um traçocomprido e tênue, uma porção dos contornos de um conjunto A da primeira ordem degrandeza e que só pode ser visto completamente nesse primeiro nível de análise.Sobre o plano 3, representou-se uma porção dos contornos de um conjunto F, quenão pode ser visualizado completamente senão na 2a ordem de grandeza. E assim pordiante.

As características geográficas de um lugar preciso, ou a interação dosfenômenos que é preciso considerar para agir nesse lugar e sobre o desenho é o

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ponto X que se encontra no centro de cada um dos planos - não podem serestabelecidos senão com referência às interseções dos diferentes conjuntos dosdiversos níveis de análise. Estrategicamente, cada conjunto corresponde a um fatorfavorável ou a um fator desfavorável para a ação empreendida.

AS ESTRANHAS CARÊNCIASEPISTEMOLÓGICAS DA GEOGRAFIAUNIVERSITÁRIA

Faz somente uns vinte anos que começamos a nos preocupar com a falta quasetotal de toda reflexão teórica na corporação dos geógrafos universitários. Enquantoessa disciplina deveria ter incitado amplos debates epistemológicos, ao menos por suaposição na junção das ciências naturais e das ciências sociais e pelo número de"empréstimos" que ela fez a essas múltiplas ciências, os geógrafos propalaram um

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desprezo pelas "considerações abstratas" e freqüentemente se gabaram de um"espírito terra-a-terra". Até esses últimos anos, as raras declarações teóricasreservadas aos mestres que atingiram o pico da carreira colocaram a tônica sobre seudesejo de ver mantida a "unidade" da geografia: unidade afirmada no plano doprincípio entre uma geografia "física" e uma geografia "humana" que são, de fato,cada vez mais separadas na prática universitária.

Enquanto em outras disciplinas é, desde há muito, julgado indispensável definiruma problemática, os geógrafos continuaram a fazer como se eles só tivessem queler, sem problemas, "o grande livro aberto da natureza".

Em suma, a maior parte dos geógrafos teoriza o menos possível, e se contentaem afirmar, sem pejo, que "a geografia é a ciência da síntese", chegando a convir, àsvezes, que a "geografia não pode se definir, nem por seu objetivo, nem por seusmétodos, mas sobretudo por seu ponto de vista1”. Tais declarações traduzem, a um sótempo, um desconhecimento real das características não menos sintéticas dasdisciplinas às quais recorrem os geógrafos, seu isolamento (pois tais propósitos -deveriam ter provocado uma indignação) e sua pequena preocupação com problemasteóricos, mesmo os mais fundamentais, que deveriam abordar todas as ciências e hámuito tempo. Aliás, numerosos geógrafos não escondem suas prevenções comrespeito às “considerações abstratas" (especialmente às dos economistas, sociólogos)e acham uma glória a sua predileção pelo "concreto". Alguns deles não proclamaram"a geografia, ciência do concreto" sem ter dúvidas sobre os sorrisos que uma taldeclaração não deixará de provocar, ao menos quando ela é conhecida fora do meiodos geógrafos, o que não é, finalmente, bastante raro? Mas sumárias como possamser, essas declarações "epistemológicas" que procedem de mestres no final de suascarreiras, têm sido relativamente raras até esses últimos anos e os geógrafos, só dequando em quando, se perguntam o que pode ser a geografia. Um deles2, e não dosmenos ilustres, diante dos seus colegas reunidos em colóquio, caracterizou ageografia como "um espírito terra-a-terra".

Foi apenas de alguns anos para cá que um certo número de geógrafos começoua tomar consciência dos problemas que coloca a geografia. Disso resultou umaseqüência de reflexões sobre sua disciplina, mas todas camuflaram, até agora, opapel da geografia como instrumento do poder político e militar.

Essa recusa da reflexão epistemológica que caracterizou o geógrafo por muitotempo, sobretudo na França, é mais surpreendente ainda, porque os geógrafosutilizam as aquisições de numerosas disciplinas, muito diferentes por seus métodos epor seu instrumental conceitual. De fato, os geógrafos não falam, tudo junto, degeologia como de sociologia, de climatologia, como de economia, de demografia e dehidrologia, de etnologia e de botânica, etc.? Esse comportamento de tocar de leve emtudo não lhes criou, aliás, grandes problemas no momento: sem dúvida, acontecefreqüentemente que o economista de um lado, ou o geólogo de outro, se diverte coma falta de competência dos geógrafos (o geógrafo é, evidentemente, um geólogo bemfraco e um medíocre economista), mas o sincretismo geográfico não é nunca criticadoglobalmente como tal, em nome de princípios epistemológicos de base. Uma dasfinalidades fundamentais da geografia é o estudo das interações espaciais entre osfenômenos que são analisados por ciências tão diversas umas das outras. Issoimplica na preocupação constante das especificidades epistemológicas de cada umadelas. Ora, os geógrafos dão prova, exatamente, da atitude inversa. Eles não podem,portanto, no momento, senão justapor esses diversos elementos extraídos dediscursos diferentes.

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O pouco interesse que os geógrafos têm mostrado para questõesepistemológicas ou, mais modestamente, metodológicas, é tanto mais surpreendentepelo fato deles precisarem constantemente prolongar e transformar os trabalhos dosdiferentes especialistas. De fato, desses discursos tão diferentes, o geógrafo extraielementos, na medida em que ele pode relacioná-los a uma certa porção do espaçoterrestre que quer descrever, na qualidade de lugar de interação de diversosfenômenos. Ora, esses especialistas, dos quais o geógrafo procura utilizar ostrabalhos, não têm, necessariamente, referências espaciais idênticas e trabalham emescalas diferentes. Em função dos métodos de sua própria disciplina, ou por outrasexigências, cada um deles faz referência explicitamente, ou implicitamente (pois oquadro espacial não é essencial para eles), seja a um espaço mais amplo, seja bemmenor, seja a um certo número de lugares, que não correspondem à "região" queestuda o geógrafo. Esse último deve portanto "tirar partido" de documentosdessemelhantes, tanto pelos instrumentais conceituais que permitiram elaborá-loscomo por suas correspondências espaciais. Para descrever uma certa porção doespaço terrestre, o geógrafo se vê, portanto, conduzido a fazer uma gama deraciocínios que se aparentam, mais ou menos desastrosamente, ao mecanismo decada uma das disciplinas utilizadas.

Essa finalidade tão complexa e delicada, fundamental no mecanismo geográfico,deveria ter sido normalmente uma razão suficientemente poderosa para que osgeógrafos viessem a se preocupar com as características epistemológicas das outrasciências, das quais eles teriam de interpretar e completar os trabalhos. Na verdade,na maioria dos casos, nada disso aconteceu, e os geógrafos tentam sair do impasse,mais ou menos bem, pela força do seu faro, e com a experiência, de modo o maisempírico, tomando do discurso das outras disciplinas aquilo que lhes parece útil oudigno de interesse, sem contudo ter estabelecido claramente as razões dessasescolhas.

Igual indiferença com relação aos critérios das seleções operadas nasdescrições das paisagens que ocupam um grande lugar na literatura geográfica e paraas descrições de diversas situações geográficas: o geógrafo escolhe, por meio deenorme massa de sinais, aqueles que lhe parecem significativos, sem se interrogar, defato, sobre as razões dessas escolhas.

Da mesma maneira ele escolhe toda uma gama de espaços: seu tamanho vaidesde o de uma aldeia até o do planeta; de um momento a outro de sua descriçãoracional, ele escolhe fazer referências a outros espaços maiores ou menores; eleaborda primeiro tais fenômenos, depois outros, mas sem dizer por que ele deixa delado importantes aspectos da "realidade". Basta observar as diferenças que existementre as descrições de espaços idênticos que foram efetuados por geógrafosdiferentes, para medir a parte da subjetividade nesses procedimentos que elesconsideram objetivos. Claro, toda percepção, toda observação é uma seqüência deescolhas, mas o próprio do procedimento científico é o de procurar estabelecer,metodicamente, os critérios de seleção e as funções desses critérios. Também comseu jeito enciclopédico, o que não exclui, contudo, curiosas lacunas, a geografia podeaparecer como uma das formas típicas de um saber pré-científico, cuja sobrevivêncianão parece se explicar senão pelo lugar que ela ocupa nas instituições escolares ouuniversitárias.

Essas carências deveriam ter instigado os filósofos epistemológicos a tomar ageografia como alvo. Ora, apesar dos exemplos quase esquecidos (o de Kant, que foialiás professor de geografia durante um certo tempo), os filósofos dão prova de umaindiferença quase total em relação à geografia. Mas a indiferença depreciativa dos

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filósofos para com a geografia lhes assegurou, na realidade, uma espécie deimunidade que reforçou seu status de discurso pedagógico ou de saberinstitucionalizado pela universidade. Sem dúvida, na medida em que os filósofos seinteressaram pelas ciências para ali encontrar um objeto, um pretexto para filosofar,ou um trampolim para a verdade, é evidente que a geografia não apresenta qualquerinteresse a seus olhos. Interessam-se no Tempo, mas bem pouco no Espaço, emboraessas duas categorias estejam estreitamente ligadas. Os "arqueólogos do saber”, queexaminam no entanto com cuidado, diferentes províncias do pensamento pré-científico, não prestam qualquer atenção à geografia. É sem dúvida porque seuinteresse se dirige principalmente sobre os cortes epistemológicos que permitiram oaparecimento das ciências atuais e que a geografia não é, ainda, provavelmenteconhecida por qualquer ruptura fundamental.

Contudo, a indiferença dos filósofos com respeito à geografia aparece como dasmais surpreendentes quando se toma conhecimento do número e do tamanho dosproblemas epistemológicos que coloca, a despeito das aparências, o discurso dosgeógrafos. Assim, por exemplo (se bem que eles não tenham ainda procurado chegara um acordo sobre uma definição da geografia), proclamam eles, quaseunanimemente, que uma de suas razões capitais de ser é o estudo das interaçõesentre o que eles chamam os "fatos físicos" e os "fatos humanos": a geografia nãodecorre nem exclusivamente das "ciências naturais" nem tão-somente daquilo que seconvencionou chamar as “ciências sociais". Daí resulta que a existência dessageografia, mesmo sob a forma modesta e criticável de um saber institucionalizadocom pretensão científica, coloca em xeque esse corte fundamental entre natureza ecultura, corte este que determina, no ponto de partida, a organização do sistema dasciências.

E significativo constatar que os geógrafos poderiam muito bem se afirmar nocruzamento de três conjuntos do saber: o das ciências da matéria, o das ciências davida e o das ciências sociais. Mas eles se referem implicitamente a essa dicotomiafilosófica, que se quer radical, entre o domínio das coisas e o domínio dos homens,para pretender fundar o estatuto da geografia: uma coesão entre o conhecimento dosfatos físicos, isto é, a "natureza", e a dos fatos humanos. Quaisquer que sejam asformas pelas quais os geógrafos tenham caracterizado a geografia, "ciência daspaisagens" ou "ciência dos meios naturais para uma ecologia da espécie humana”,“ciência das formas da diferenciação espacial”, “ciência do espaço” ou a “geo-análise”,se encontra a preocupação de estudar as interaçÕes entre “fatos humanos” (quedecorrem especificamente das ciências humanas, sociais ou econômicas) e os “dadosnaturais” (que são do âmbito das ciências da matéria e das ciências da vida).

À vista dos diferentes sistemas das ciências, a geografia cria problemas, mas osfilósofos não fizeram caso, embora, sem dúvida, não lhes faltassem argumentos pararecusá-la.

Hoje essa relação de exclusão entre natureza e sociedade, que está nofundamento da organização do saber, começa a ser questionada pelos filósofos.Para fazê-lo, eles expõem argumentos novos que correspondem, em enormeproporção, àquilo que dizem, evidentemente de uma forma bem diversa, numerososgeógrafos desde há decênios. Ora, esses filósofos3, embora estejam lidando comtrabalhos de grande número de disciplinas científicas, bastante especializadas, nãofazem, contudo, a menor alusão àquilo com que a geografia poderia contribuir nessatese, mesmo que tenham lido as obras célebres de certos geógrafos.

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UMA PRÁTICA UNIVERSITÁRIA QUE É, CADAVEZ MAIS, A NEGAÇÃO DO PROJETO GLOBAL

Já não é sem interesse constatar que se faz silêncio sobre a geografia, emborao estatuto que lhe atribuem os geógrafos coloque em causa, implicitamente, naorganização geral dos conhecimentos. Mas esse silêncio aparece ainda como maissurpreendente, quando se atenta a isso que é a evidência: enquanto eles propalam,quase unanimemente, que a razão de ser da geografia é o estudo das interaçõesentre “fatos físicos" e "fatos humanos", em sua prática os geógrafos parecem sepreocupar muito pouco com essas interações: uns só se Preocupam com a "geografiafísica" (esta acaba por constituir o essencial da disciplina, em certos sistemas deensino, como o da URSS, Por exemplo), enquanto outros se ocupam essencialmentecom a “geografia humana". A prática da maioria dos geógrafos aparece, portanto,como a negação dos princípios que eles afirmam.

Essa institucionalização do corte entre "geografia física" e "geografia humana"(no nível da separação dos cursos, dos manuais, dos programas do liceu e da"faculdade", que leva em conta isso como critério de recrutamento dos pesquisadorese professores do ensino superior) podia ser um poderoso argumento que permitiriaaos filósofos e outros demonstrar o caráter tendencioso do projeto de uma geografiaunitária ou de coesão. Mas esses se abstiveram de toda crítica ou comentário; comose fosse preferível deixar de falar, de uma vez, da geografia.

Essa clivagem entre os "geógrafos físicos" e os "geógrafos humanos" seacentua na medida em que uns devem "seguir" os progressos das ciências físicas enaturais que se tomam cada vez mais precisas, enquanto outros procuram aplicar osnovos métodos das ciências sociais. A distância se toma tão pronunciada entre essesdois grupos de geógrafos que alguns reclamaram o abandono explícito do projeto dageografia unitária para poder tirar proveito dos progressos de uma divisão do trabalhocientífico.

É significativo que os geógrafos tenham, durante muito tempo, negligenciado,tanto no ensino como em sua pesquisa, o estudo dos solos e das formações vegetaisque são hoje, por excelência, sobre a maior parte dos continentes, o resultado dessasinterações entre fatos "físicos" e "humanos", interações que se continua a apresentar,no entanto, como a razão de ser da geografia. Do mesmo modo, o geógrafo dedicapouco interesse aos problemas de "meio ambiente", da "poluição", embora elestambém sejam o resultado dessas interações entre "meio natural" e atividadeshumanas. Em contrapartida, pela tradição de uma prática não menos significativa, osgeógrafos dedicam um interesse todo especial às estruturas geológicas que, noentanto, só intervêm muito indiretamente e bem acessoriamente nas famosas"interações" ...

Claro, existe a "geografia regional", esse terceiro pedaço resultante da divisãooficializada da geografia. Essa geografia regional, que é encarregada de manter "aunidade" da geografia, reúne, a propósito desta ou daquela parte do espaço terrestre,elementos diversos que são extraídos do discurso do geólogo, do climatólogo, dotécnico em hidráulica, do botânico, etc., como também do demógrafo, do etnólogo, doeconomista e do sociólogo. A diversidade desses empréstimos é habitualmente

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considerada a prova de um expediente que apreenderia efetivamente as interaçõesentre fenômenos estudados, especificamente, por diversos especialistas. Ora, épreciso constatar que na maior parte dos casos, na maioria dos cursos e dos manuaisde "geografia regional" essa análise das interações é, com efeito, uma enumeraçãonuma determinada ordem (1- relevo, 2- clima, 3- vegetação, 4- rios, 5- população,etc.) dos diferentes elementos de discursos emprestados às outras disciplinas, quesão justapostos uns aos outros. Essa justaposição, essa enumeração que é manifestanos manuais do secundário, nos cursos do ensino superior, nos artigos geográficosdas enciclopédias, se encontra, se bem que de forma menos evidente, às vezes, eapesar do talento de geógrafos de renome, nas grandes linhas que estruturam asteses de geografia regional, que fizeram a fama da escola geográfica francesa.

Como poderia ser de outra forma quando a "geografia geral", que fornece oessencial do instrumental conceitual utilizado nos estudos de “geografia regional",caracteriza-se desde há decênios por essa ruptura, cada vez mais acentuada, entre"geografia física" e "geografia humana"? Essa clivagem tem o efeito de tornar, senãoimpossível, ao menos difícil essa análise das interações entre os fatores de diversasnaturezas que pretendem efetuar os geógrafos.

Essa ruptura entre "geografia física" e "geografia humana", que se manifestaainda com maior fracionamento no discurso enciclopédico da "geografia regional",essa negação na prática do ensino e da pesquisa do projeto que pretendem perseguiros geógrafos, não só traduz as dificuldades reais de sua empreitada, mas também, esobretudo, sua desconfiança, ou até sua recusa, em relação à toda reflexãoepistemológica. Da mesma forma que pretendem apreender diretamente aquilo quechamam, de uma forma bem sintomática, de os "dados" geográficos, sem se importarcom os pressupostos de suas observações, confundindo assim o objeto real e oobjeto de conhecimento, os geógrafos também consideram que os diversoselementos que eles extraem do discurso dos diferentes especialistas são simples"dados". No entanto, o geólogo, o climatólogo, o botânico, o demógrafo, oeconomista, o sociólogo, dos quais a geografia utiliza uma parte dos trabalhos,colocaram cada um deles em utilização, um método e um instrumental conceitual quesão específicos de uma ciência particular, cujos objetivos não são os da geografia. Ogeógrafo, que não se preocupa muito com a construção dos conceitos e que empregaconstantemente noções extremamente vagas (região, país ... ); utiliza as produçõesdas outras disciplinas sem questionar as mesmas, da mesma forma que não colocaquestões a propósito da geografia.

AUSÊNCIA DE POLEMICA ENTREGEÓGRAFOS. AUSÊNCIA DE VIGILÂNCIA ARESPEITO DA GEOGRAFIA

Essa carência epistemológica que demonstram os geógrafos traduz, semdúvida, mas de forma bem inconsciente, o mal-estar epistemológico original da

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geografia dos professores, a transformação de um saber estratégico num discursoapolítico e "inútil". Isso resulta, em boa parte, da influência das idéias "vidalianas".

A transformação de um saber, que foi explicitamente político, num discurso quenega seu significado político, que aceita renunciar à eficiência e que se amputou dasciências sociais, pode parecer uma operação impossível de se realizar, ao menossem polêmicas muito violentas. Elas não se manifestam nunca.

No entanto, Vidal de La Blache não foi, embora o digam, o primeiro "grande"geógrafo da França. Houve antes Elisée Reclus (1830-1905), cuja obra conheceu umsucesso considerável, na França e no exterior, no meio de um vasto público, fora dossistemas escolares, desde os meios cultos da alta burguesia até os grupos deextrema-esquerda. Para o grande pensador anarquista, a geografia não somente nãopode ignorar os problemas políticos mas ela permite colocá-los melhor, ou revelar aimportância dos mesmos.

Contudo, o antigo "communard"*, proscrito da França, não pôde criar uma"escola", e seu nome foi cuidadosamente esquecido na Universidade, em particularpor aqueles que "pilharam", sem vergonha, os dezenove tomos de sua grandeGeografia universal, às vezes para se utilizar de numerosas passagens dessa obranaquela que estava colocada sob a patronagem de Vidal.

Este último foi, na França, o primeiro mestre da geografia dos professores; semrival, ele escolheu os seus discípulos, os quais, instalados em sua cátedra deprovíncia, fizeram o mesmo, apegando-se à fiel reprodução das orientaçõesfundamentais, cuidando sobretudo, mas sem mesmo o perceber, para que nenhumareflexão teórica pudesse comportar o risco de questioná-los.

Contudo, essa carência epistemológica dos geógrafos, não pode ser explicadasomente pelo mecanismo de reprodução das idéias dos mestres no sistemauniversitário, nem pelo caráter mais fortemente mistificador de sua posição teórica.

O sistema universitário não impediu as polêmicas em outras disciplinas. Emgeografia, conflitos de pessoas, sim, mas nada de problemas (ou quase nada ... ).Assim, quando após 1950 um geógrafo como Pierre George começou a estabelecerpontes com a sociologia e a economia, encetou o estudo dos fenômenos industriais eurbanos que estavam ocultos desde Vidal e, "pior ainda", poderíamos dizer, mostrou aimportância da distinção entre países capitalistas e países socialistas, essa orientaçãoque ia, no entanto, radicalmente contra a geografia vidaliana, suscitou muitas rusgasde corredor, mas nenhum debate teórico.

A indolência dos geógrafos com relação aos problemas teóricos, indolência quese estabeleceu desde alguns anos, entre certas pessoas, com alergia às vezes brutal,é acompanhada por sua preocupação em evitar toda e qualquer polêmica que possadesembocar num problema teórico.

Também é mais seguro se abster de qualquer debate. Cada pesquisador, alçadoao grau de doutor, não é senão aquele que conhece melhor "sua" região. Numaépoca em que só havia um número muito restrito de professores de geografia nasfaculdades, o sistema das cátedras deu durante um longo tempo o monopólio a cadamestre, no bojo de sua universidade, dessa ou daquela parte da geografia, o quelimitava as divergências de opinião: para um, a geografia física, para outro, ageografia humana, a um terceiro, a "regional".

Não se pode compreender a influência exercida pelo pensamento de Vidal de LaBlache se teimarmos em só considerar os efeitos negativos; deve-se tambémsublinhar seus aspectos positivos, pois são esses que tornaram possível, em grandeparte, seu papel preponderante até uma época recente.

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A escola geográfica francesa, da qual Vidal de La Blache foi o mestre pensante,teve de tirar a marca da geografia alemã, especialmente do pensamento de Ratzel. Ecom razão, pois esta última aparecia, evidentemente, como uma legitimação doexpansionismo do Reich. Contudo, embora a obra de Ratzel seja desconhecida naFrança, certas idéias que ele havia desenvolvido se encontram na geografia humanafrancesa.

Com O Quadro da geografia da França e com as grandes teses que ele inspirou,ou os quinze tomos de A geografia universal (A. Colin), cuja concepção eleinfluenciou, Vidal de La Blache introduziu a idéia das descrições regionaisaprofundadas, que são consideradas como a forma, a mais fina, do raciocíniogeográfico. O método vidaliano de descrição regional é, evidentemente, bem melhorque o de Reclus: se o geógrafo libertário dá tudo de si quando ele toma o Estadocomo espaço de conceituação, suas descrições das regiões francesas parecemsingularmente pobres. Vidal mostrou como as paisagens de uma região são oresultado das superposições, ao longo da história, das influências humanas e dosdados naturais. As paisagens que ele esmiuça e analisa são, essencialmente, umaherança histórica. Por causa disso, Vidal de La Blache combate com vigor a tese"determinista" segundo a qual os "dados naturais" (ou um dentre eles) exercem umainfluência direta e determinante sobre os "fatos humanos" e ele dá um papelimportante à história, para captar as relações entre os homens e os "fatos físicos".

A riqueza da contribuição de Vidal de La Blache foi, inúmeras vezes, acentuadatanto na França como no exterior: mas as dificuldades nas quais se encontra hojeentravada esta geografia que ele marcou profundamente fazem com que se devaresolver considerar essa contribuição como contraditória.

Ele marca a ruptura, de fato, entre a geografia e as ciências sociais, emboraanalise com mais finura os "fatos humanos" levados em consideração pelo raciocíniogeográfico. “A geografia é a ciência dos lugares e não a dos homens", pôde eleescrever. Não que ele se desinteressasse da "geografia humana": ela é, para ele, oessencial, mas ele é firme em separá-la nitidamente das ciências sociais, comomostra a polêmica (muito pouco conhecida) que o opôs a Durkheim. Para Vidal de LaBlache. a geografia humana é essencialmente o estudo das formas de "habitat", arepartição espacial da população. A concepção vidaliana da geografia, que apreendeo homem na sua condição de habitante de certos lugares, coloca, de fato, o estudodos "fatos humanos" na dependência da análise dos fatos físicos. Bem entendido,mais ou menos transformados pela evolução dos homens, mas "físicos" de qualquerforma, pois, apesar da abundância das referências à história, os quadros espaciais,os lugares são essencialmente concebidos como quadros físicos ("espaços naturais","meios geográficos", "regiões naturais" ou delimitados por dados naturais).

Também, até uma época relativamente recente, a problemática encetada pelosgeógrafos para o estudo das sociedades humanas não procedia, no essencial, dasciências sociais, mas sim das ciências naturais, aquelas às quais se recorre para oestudo do meio físico. Assim, o corte entre "geografia física" e "geografia humana"não era tão manifesto como hoje, e a unidade da geografia podia ser afirmada, claro,ao preço de um certo número de mistificações e de silêncios, pois o discursogeográfico se esforça em eliminar os "fatos humanos" que advêm, com bastanteevidência, das ciências econômicas e sociais. Durante muito tempo, os geógrafos sepreocuparam, quase que exclusivamente, com o "habitat" rural e com a agricultura(influência do clima). As cidades não eram lembradas senão por sua relação com seusítio topográfico original e sua situação, em face dos principais contrastes de relevo

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da região circundante ignorada, ao menos reduzida à enumeração de localizaçõesdos centros industriais, em função das jazidas de matérias-primas.

Claro, para explicar esses silêncios, pode-se dizer que os geógrafos dessetempo, e Vidal de La Blache em primeiro lugar, não haviam ainda tomado consciênciado papel das indústrias e das grandes aglomerações urbanas. No entanto, EliséeReclus, que publica, cerca de vinte anos antes, um conjunto de obras queconheceram um grande sucesso, dá um lugar de destaque às cidades, às indústrias ea esses problemas econômicos, sociais e políticos, que serão sutilmente camufladosem seguida. Mas o antigo "communard", pensador da anarquia, vivia no exílio,enquanto que Vidal de La Blache, professor da Sorbonne e membro da Academia deCiências Morais e Políticas, compartilha as idéias de Maurice Barrès1.

Outras disciplinas, a história e a economia, por exemplo, conheceram handicapsda mesma ordem e, contudo, elas não impediram o aparecimento e odesenvolvimento das polêmicas e das discussões teóricas dos quais são o teatro,desde há muito. Certos tipos de debates ali já estão fechados, enquanto eles só secolocam há bem pouco tempo em geografia. Ora, isso é um ponto muito importante,as polêmicas que se desenrolaram e que se desenrolam ainda, quanto à história ouàs ciências sociais, se situam ao nível político, em ligação com os problemas dasociedade inteira, e não somente no quadro universitário.

Desde há muito, a história é polêmica: faz-se a crítica das fontes; não se está deacordo com esta ou aquela explicação; numerosos homens políticos publicam suasmemórias e, por vezes, se tomam historiadores. Existe, sobretudo, o fato de que ahistória se tornou a trama da polêmica política. Com o desenvolvimento do marxismo,a história, a economia política e as outras ciências sociais, foram profundamentetransformadas e, nesses domínios, polêmica política e debate científico foram aindamais estreitamente associados; as teorias dos historiadores e dos economistas, emdecorrência de seu alcance político, direto ou indireto, foram objeto de uma vigilânciaconstante e de um debate que se desenrolou, primeiro, fora da Universidade, depois,no próprio interior dos meios universitários. Os progressos da história e das ciênciassociais são, em larga escala, o fruto das lutas de classes.

Até uma época bem recente, nada semelhante para a geografia: não somentequalquer polêmica de fundo entre geógrafos, mas sobretudo nenhuma vigilância comrelação a seus propósitos por parte dos especialistas de outras disciplinas oudaqueles que colocam para si problemas políticos.

Essa falta de vigilância em relação à geografia é tanto mais chocante quanto seutiliza cada vez mais sua linguagem, não somente na mídia, mas também nasnumerosas disciplinas científicas. Todo o mundo fala de "país", de "regiões" semtomar o menor cuidado com o caráter tão etéreo dessas noções elásticas eescorregadias, e com as conseqüências desagradáveis que podem advir de suautilização, para o rigor do raciocínio. Se notarmos bem, é chocante constatar, comque ingenuidade, com que falta de espírito crítico, o historiador, o economista e osociólogo utilizam os argumentos geográficos nos seus próprios discursos: evocados,aliás, não sem alguma condescendência, os "dados geográficos" são aceitos sem amenor discussão, como se não tivessem senão de se inclinar diante dos "imperativosgeográficos". Ora, os "dados" geográficos não são fornecidos por Deus, mas por umtal geógrafo que, não contente de os ter apreendido a uma determinada escala, osescolheu e os classificou numa certa ordem; um outro geógrafo, estudando a mesmaregião ou abordando o mesmo problema numa outra escala, forneceria,provavelmente, "dados" bem diferentes. Quanto aos famosos "imperativos"geográficos, dos quais os economistas, por exemplo, são tão ávidos, os geógrafos

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sabem sem dúvida (especialmente desde Vidal de La Blache, o que foi uma dasaquisições mais positivas) que os homens neles se acomodam de modo bemdiferente, e que aí não há o mínimo "determinismo" estrito, mas bem ao contrário, um"possibilismo".

O pouco de precaução com que os especialistas das outras disciplinas,historiadores e economistas, em particular, utilizam o argumento geográfico, o quetem como efeito, aliás, o de fazer derrapar o seu próprio raciocínio, traduz a falta devigilância com relação ao discurso geográfico. De fato, não se percebem nem asincidências políticas, nem a função ideológica. O argumento geográfico aparece comoneutro" ou "objetivo", como se ele viesse das ciências naturais ou das ciências"exatas". Tudo parece se passar como se uma espécie de conspiração do silênciotivesse sido feita em volta da geografia, para que a possam utilizar sem ter que secolocar problema, os argumentos um tanto triviais fornecidos por essa disciplinatranqüila e pouco brilhante. Claro, as lembranças enfadonhas que se guardam daslições de geografia não são feitas de forma a incitar qualquer um a se debruçar cominteresse sobre os problemas dessa "ciência". Mas como acontece que, até agora,nenhum filósofo tenha querido acertar suas contas com essa velha disciplina quedeixou tantas lembranças amargas em tantos colegiais? O que se passa que nenhumhistoriador, constrangido não somente por ter tido de engolir a "geo" para passar porsua licença e seus concursos, mas também constrangido de ensiná-la no liceu, nãotenha questionado essa disciplina que lhe foi imposta? A conduta dos geógrafos nãoteria permanecido o que ainda é hoje se ela tivesse sido objeto de polêmicas e dedebates.

Durante séculos, até o fim do XIX, antes de aparecer o discurso geográficouniversitário, a geografia era unanimemente percebida como um saber explicitamentepolítico, um conjunto de conhecimentos variados indispensável aos dirigentes doaparelho de Estado, não somente para decidir sobre a organização espacial deste,mas também para preparar e conduzir as operações militares e coloniais, conduzir adiplomacia e justificar suas ambições territoriais. Contudo, a partir de Vidal de LaBlache, fundador da escola geográfica francesa, e a partir do Quadro da geografia daFrança (1905), imediatamente considerada como um modelo de descrição e deraciocínio geográficos, o discurso dos geógrafos universitários (é o que, desde então,se chama "geografia") vai excluir toda referência ao político e mesmo a tudo aquiloque faz pensar nisso - a ponto de terem sido "esquecidas", durante muitos decênios,as cidades e a indústria. Desde os anos cinqüenta, os geógrafos - ao menos aquelesque se limitam à geografia humana - se preocupam com fenômenos econômicos esociais, a ponto de alguns deles confundirem sua disciplina com a economia, com asociologia e desejarem ver a geografia se fundir no conjunto das ciências sociais.Mas, para a quase totalidade dos geógrafos universitários, os problemas geopolíticos- que até o final do século XIX eram uma das razões de ser fundamentais dageografia - permanecem um verdadeiro tabu. Nada de abordar os problemas daguerra e os da rivalidade entre os Estados: não é científico, dizem eles, não égeografia!

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CONCEPÇÕES MAIS OU MENOS AMPLAS DAGEOGRAFICIDADE. UM OUTRO VIDAL DE LABLACHE

O que é geográfico, o que não o é? Eis aí uma questão essencial, embora elaesteja implícita nas reflexões da maioria dos geógrafos. Bem mais, aqueles que estãoem posição de poder na corporação não hesitam em brandir o argumento "Isso não égeografia!" para recusar os propósitos que lhes desagradam (aliás, sem saber bempor quê) e sancionar aqueles que os sustentam. Mas quais são os critérios dageograficidade? Eu proponho este termo que, para muitos, parecerá bizarro, emparalelo ao de historicidade, do qual hoje se faz um uso corrente. Desde o século XIXe sobretudo há alguns decênios, os historiadores foram percebendo, pouco a pouco,que em interessante ou necessário levar em consideração categorias de fenômenoscada vez mais numerosas, que seus predecessores haviam negligenciado ouafastado, não as julgando dignas de serem vistas e de fazer parte da história. Indo dahistória dos soberanos, das batalhas e dos tratados até a dos costumes e daalimentação populares, passando pela das relações salariais e práticas matrimoniais,o campo da historicidade foi, progressiva e consideravelmente, alargado.

É uma evolução inversa à que conheceu a corporação dos geógrafos.Freqüentemente eles são tentados a pensar que tudo é geográfico, mas basta folhearos trabalhos que eles julgam exemplares para se perceber que têm uma concepçãomais ou menos restritiva da geograficidade, pois deixaram de lado, durante muitotempo, fenômenos consideráveis e querem ainda ignorar totalmente os problemasgeopolíticos de que, graças à mídia, o conjunto da opinião mede a gravidade.

Para compreender o que foi, de fato, a evolução do pensamento geográfico naFrança desde o início do século XIX, para estar em condições de discernir suascaracterísticas epistemológicas atuais, a concepção de geograficidade, à qual osgeógrafos se referem mais ou menos implicitamente, é preciso atingir o porquê, noquadro de sua corporação, de certos fenômenos espaciais serem consideradosdignos de interesse, enquanto outros, que se desenrolam da mesma forma noespaço, sobre o terreno e dos quais todo mundo fala, não são considerados dignos deuma análise científica; é, essencialmente, o caso dos fenômenos políticos e militares.Elisée Reclus lhes dedicava uma enorme atenção, o que, na época, nada tinha deextraordinário: no século XIX a idéia que se fazia da geografia implicava levar emconsideração esses problemas, numa proporção bem racional do espaço político, doshomens e dos recursos que ali se encontravam; Humboldt, considerado, com justiça,o primeiro grande geógrafo moderno por causa de sua grande obra O cosmos,publicou também (em francês) cinco volumes do Ensaio político sobre o reino daNova Granada (1811) e do Ensaio político sobre a ilha de Cuba (1811). No início doséculo XX, Ratzel impunha a Antropogeografia e a Geografia política: nessaAlemanha onde apareceu, pela primeira vez no mundo, a geografia universitária, estafoi então percebida como uma disciplina estreitamente ligada às questões políticas emilitares.

Na França, a geografia universitária (com raríssimas exceções apenas, que acorporação esqueceu cuidadosamente) vai rejeitar, desde seus primeiros passos,esses problemas, para se afirmar como ciência, como se evocá-los fosse correr orisco, de desacreditá-la como ciência. Claro, haviam feito deles objeto de inúmeros

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discursos propagandistas, mas os historiadores, apesar de sua crescentepreocupação de objetividade, não rejeitavam, da mesma forma, a narração e aexplicação dos fenômenos políticos. No entanto, era a época dos grandessentimentos patrióticos e mesmo chauvinistas, e é de se admirar que não tenhaminspirado a escola geográfica francesa antes de 1914, enquanto que eles semanifestam claramente nos textos da geografia escolar, sobretudo nos manuais doensino primário. Por que não houve geógrafos franceses para escrever um tratado degeografia política que tivesse se oposto radicalmente às teses expansionistas deRatzel? Nos Annales de géographie (1898), Vidal fez uma resenha, evidentementebastante crítica, da Politische géographie, mas foi quase tudo, ao menos se nosreferimos aos livros e artigos, retido pela corporação, que hoje, mais do que nunca,proscreve a análise dos problemas geopolíticos.

Quando escrevi este livro eu imputava essa permanência da exclusão dosfenômenos políticos do campo da geograficidade à influência considerável exercidapor Vidal de La Blache sobre a escola geográfica francesa: após sua morte, o "modelovidaliano" foi reproduzido pelo ensino de seus discípulos, que se tomaram os mestresda geografia universitária francesa até a Segunda Guerra Mundial. De 1976 para cá,fui levado a modificar profundamente esta explicação e eu não posso deixarrepublicar este trabalho sem chamar a atenção sobre o último livro de Vidal de LaBlache, A França de Leste (Lorena – Alsácia), publicado em 1916 e totalmentedesconhecido da quase totalidade dos geógrafos franceses de hoje. Porque esselivro, ao qual Vidal dava uma grande importância - e com razão! - é uma análise degeopolítica, pois assim ele vai radicalmente de encontro ao famoso "modelovidaliano", ao qual a corporação se conformou durante decênios; ela se apressou emesquecer A França de Leste, para só reter o Quadro da geografia da França.

Para se avaliar a profundidade do esquecimento no qual caiu esse livro, bastaconstatar que André Meynier, cuja veneração pelo mestre é muito grande, não fazuma só referência em sua História do pensamento geográfico na França, nem mesmona bibliografia. Meynier se admira até numa nota (p.29) que o pai da geografiafrancesa não haja feito qualquer alusão à anexação da Alsácia - Lorena em 1871, queé o problema central da última obra de Vidal.

Como a maioria dos geógrafos franceses, eu não o tinha lido - mea culpa -quando escrevi La géographie, ça sert, d'abord, à faire Ia guerre. Ora, é preciso notarque nenhuma das críticas feitas a este ensaio-panfleto faz alusão a A França de Lestepara defender o Vidal que eu ataquei. Foi pelo atalho da geopolítica, no quadro de umestudo mais aprofundado, que eu descobri, com estupefação, o verdadeiro conteúdodesse livro tão mal conhecido. Encontra-se, é certo, numa primeira parte, "Lacontrée"*, o estudo das descrições vidalianas, as paisagens da Alsácia, dos Vosges,da planície lorena, os retratos do camponês alsaciano, do povo da Lorena ... Mas todoo resto da obra é consagrado aos problemas que Vidal eludiu, sistematicamente, emsuas descrições do Quadro: não somente as cidades, mas também o papel dasdiferentes burguesias urbanas; não somente a indústria, mas as diferentes estratégiasde industrialização, a origem dos capitais e as áreas em que eles são investidos; nãosomente os fenômenos sociais, aí compreendidas as "relações entre classes” (comodiz Vidal), bem diferentes segundo as diversas partes do espaço considerado, mastambém os problemas políticos e militares. As diferenças de concepção dageograficidade são tão grandes entre o Quadro e A França de Leste que se é tentadoa pensar que elas são obra de dois geógrafos muito diferentes, opostos mesmo porsua maneira de raciocinar e de colocar os problemas. Doze anos separam os doislivros e se deve lembrar também que o Quadro1 é uma obra de geografia histórica e

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que, desde 1910, Vidal havia proposto um recorte regional baseado na área deinfluência das grandes cidades, portanto completamente diferente daquele que elehavia detalhado em 1905. No entanto, os textos tardios reagrupados nos Princípios degeografia humana (1921) testemunham uma geografia restrita e mostram que, no seudiscurso de geógrafo universitário, Vidal não demonstrava qualquer interesse pelascidades, pela indústria e, menos ainda, pelos problemas políticos e militares.

Como explicar a abertura da geograficidade que se manifesta no raciocínio de AFrança de Leste, a diversidade dos fenômenos econômicos, sociais e políticos queVidal considera nesta obra? É que não se trata de uma descrição geográfica do tipouniversitário, conforme a idéia que se fazia então da geografia na universidade, masde um raciocínio político, de uma demonstração geopolítica. Não se trata dedescrever e de explicar os fenômenos julgados dignos de serem tratados, levando-seem consideração tradições da corporação, de suas relações com outras disciplinas oudos cânones de cientificismo, mas de demonstrar que a Alsácia e a Lorena, anexadaspelo Império alemão em 1871, devem ser anexadas à França. Aliás, desde a primeirafrase, Vidal previne que "não há uma só linha desse livro que não se ressinta dascircunstâncias nas quais ele foi redigido". Essas circunstâncias, que Vidal não precisa,quais seriam elas? Em 1916, em plena guerra, não era necessário dizer aosfranceses as razões pelas quais essas províncias deviam retornar à França. Mas osdirigentes dos Estados Aliados, os americanos em particular, não ficaram assim tãoconvencidos, pois a maior parte das populações da Alsácia e da parte da Lorenaanexada em 1871 é de fala germânica: segundo o "princípio das nacionalidades", elasdeveriam, portanto, ficar para a Alemanha. O presidente Wilson, que foi professor dehistória e de ciência política, estima até que, em caso de vitória dos Aliados, seriapreciso, ali como alhures, proceder a um referendo, solução que o governo francêsrecusa. A tese francesa deve portanto ser sustentada por uma séria argumentação.Seria interessante saber se Vidal se pôs espontaneamente a trabalhar ou o fez apedido do governo. Não importa: Vidal não redige um relato circunstancial, mas umgrande livro, aquele que eu acredito ser sua verdadeira grande obra.

Vidal parte, portanto, do fato mais embaraçoso: a Alsácia e uma grande parte daLorena são de cultura germânica. Ele vai, em seguida, mostrar que a língua não é oúnico aspecto a ser levado em consideração no contexto nacional mas, também,todas as características econômicas, sociais, políticas de um grupo de homens e suasrelações profundas com este ou aquele centro político. Ele vai colocar em evidência aestreiteza das relações da Alsácia e da Lorena com a França (com a sua capital, emparticular), mostrando que em 1789 foi o movimento revolucionário vindo de Paris quedeterminou, nessas duas províncias periféricas, uma transformação das estruturaseconômicas e sociais proporcionalmente mais forte que em outras regiões francesas.É o porquê da segunda parte do livro se chamar "A Revolução e o Estado Social".Deixando de lado suas opiniões, antes de tudo conservadoras, Vidal explica o papelparticularmente importante dos alsacianos e dos lorenos na luta revolucionária (opapel do "exército do Reno"): "A Revolução selou a união da Alsácia e da Lorena àFrança." Mas ele percebe que sua demonstração não é suficiente: desde 1871, essesterritórios anexados ao Reich conheceram importantes transformações, em especialum poderoso movimento de industrialização do qual os alemães se orgulham. Aterceira parte de A França de Leste é portanto consagrada à "evolução industrial".Vidal mostra que essa começou bem antes de 1871 e que, depois, o domínio do Ruhra freou. Analisando o papel das burguesias de Mulhouse, de Strasburgo, de Nancy,de Metz, Vidal mostra que foi antes de 1871 que se operou aquilo que se chama hojede a "organização do espaço": “A idéia regional, escreve ele (p.163), é, sob sua forma

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moderna, uma concepção da indústria; ela se associa à de metrópole industrial."Como estamos longe das descrições ruralizantes do Quadro! Enfim, na última parteVidal analisa, num quadro espacial bem mais amplo, o da Europa, a rivalidade dosdois grandes aparelhos de Estado que disputam entre si a Alsácia e a Lorena.

Com A França de Leste, Vidal de La Blache realizou uma das análisesgeográficas mais completas e mais bem articuladas que conta a geografia francesa,mas os geógrafos franceses, a despeito de seu culto por Vidal, ignoram esse livro.

Eles quiseram ignorá-lo, mal havia sido publicado. Se é útil se interrogar sobreas causas do silêncio que foi feito em torno da obra de Reclus, não é menosnecessário se perguntar por que A França do Leste foi assim escamoteada. Após1918, a Alsácia e a Lorena estando anexadas à França, é provável que os geógrafosfranceses imaginassem que esse livro não era mais do que uma obra circunstancial,ultrapassada; os de esquerda, em seguida, pensaram que se tratava, além do mais,de um discurso dos "fardados". Os raros geógrafos que abriram esse livro deveriam,sem dúvida, ter considerado, por causa do modelo de geograficidade que eles tinhamentão, que "não era geografia", mas um livro de história ou de política.

É preciso perceber que o modelo vidaliano clássico, o do Quadro, essaconcepção da geograficidade que elimina os problemas econômicos, sociais esobretudo os problemas políticos, não foi Vidal de La Blache quem o formulou sobreum plano teórico, mas um historiador da envergadura de Lucien Febvre, cujo livro Aterra e a evolução humana, introdução geográfica à história (1922) exerceu umainfluência considerável sobre a corporação dos geógrafos. Foi, de fato, durante muitotempo, a principal reflexão epistemológica sobre a geografia e sua evolução, provacapital da carência epistemológica dos geógrafos universitários. Foi na realidadeLucien Febvre quem formulou as posições teóricas que se imputam depois a Vidal,em particular a do "possibilismo". "Vidal não é um construtor de teorias", escreveuLucien Febvre, que as agenciou em seu lugar.

HISTORIADORES QUE QUEREM "UMAGEOGRAFIA MODESTA"

Para compreender o papel de Lucien Febvre e a influência de seu livro naevolução das idéias dos geógrafos é preciso considerar as carências epistemológicasdestes e suas dificuldades em fazer face às críticas acerbas que os sociólogos MarcelMauss, Simiand e Durkheim formulam a seu respeito, nos primeiros anos do séculoXX. Os geógrafos parecem ter recebido os golpes sem respondê-los, e foi o brilhantehistoriador que já era Lucien Febvre que tomou sua defesa. De fato, ele se colocou nopapel de árbitro no processo de "imperialismo" que os sociólogos fazem aosgeógrafos para finalmente formular um julgamento em favor desses últimos, com acondição de que eles não ultrapassem certos limites. Mas esses limites, é LucienFebvre quem os estabeleceu, e ele vai até mesmo ao ponto de esboçar asorientações do trabalho dos geógrafos. O renome e a influência das idéias vidalianas,ao menos da forma como as formulou Lucien Febvre, devem muito ao seu livromagistral e ao apoio da famosa "Escola dos Anais" que ele fundou pouco depois

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(1928) com Marc Bloch, e que se tomou bastante poderosa. Ora, em A terra e aevolução humana, apesar da apologia e da exegese que faz das teses "vidalianas",Lucien Febvre não faz qualquer alusão sobre A França de Leste, silêncio bemestranho se pensarmos que no início dos anos vinte era professor em Strasburgo eque ele publicou em 1925 O Reno, em colaboração com Albert Demangeon. Tendo olivro de Febvre se tornado, por vários decênios, o breviário teórico dos geógrafosvidalianos, não se falou mais da última obra do mestre.

É preciso, portanto, levar em consideração que a "mensagem vidaliana" foiformulada por um historiador empreendedor e que Lucien Febvre, instituindo-seárbitro no processo que os sociólogos fazem aos geógrafos, argumenta no lugardesses últimos uma vez que eles permanecem mudos, no debate teórico. Mas seLucien Febvre dá seu julgamento em favor da jovem geografia universitária, e se ele aassegura da proteção da já então poderosa corporação dos historiadores, é com acondição de que se trate de uma "geografia humana modesta" (é o título de um doscapítulos do seu livro). Segundo ele, o que é uma geografia modesta? É umageografia que não toca nas questões políticas e militares, que evoca, o menospossível, problemas econômicos e sociais, que trata das condições geológicas eclimáticas dos solos e do "habitat" rural, mas muito pouco das cidades - em resumo,uma concepção das mais restritas da geograficidade, aquela do Quadro.

Por que essa redução da geograficidade em relação àquela que se manifesta naobra de Reclus (Lucien Febvre a conhece, mas só fala muito pouco, e se tanto!) e emA França de Leste de Vidal? Porque é a ocasião em que um certo número dehistoriadores - os mais empreendedores - têm uma concepção cada vez maisabrangente da historicidade. Os da Escola dos Anais, em especial, ampliam aspreocupações do historiador, mas também seu magistério, ao econômico, ao social,ao cultural, ao demográfico. Não é admissível, de forma alguma, uma geografia quearrisque acarretar uma ameaça qualquer à hegemonia que os historiadores exercemsobre o discurso que trata do político e daquilo que se refere aos Estados.

Lucien Febvre sabe muito bem que outrora, e até a metade do século XIX, antesdo desenvolvimento da geografia universitária, os geógrafos, conjuntamente com suafunção no seio do aparelho de Estado, tinham de se ocupar principalmente deproblemas políticos e militares. Certos geógrafos (pouco numerosos na França) aindase preocupavam com esses problemas, embora fossem universitários. É precisoportanto condenar essa preocupação, que é tida como ameaça ao monopólio que searrogam os historiadores. Eis aí a razão dos ataques a Jean Brunhes, cuja Geografiada história, geografia da paz e da guerra (1921) parece de uma insuportávelimpertinência a Lucien Febvre. Com muita habilidade, ele assimila toda reflexão,desse gênero, em geografia: as de Ratzel que tinha, evidentemente, um péssimonome na imprensa da França, como campeão do pangermanismo. Febvre seresguarda, não fazendo alusão às análises geopolíticas de Elisée Reclus, bemdiferentes daquelas dos "ratzelianos". Mas para melhor interditar aos geógrafos areflexão sobre os problemas políticos e do Estado, é preciso um aval promulgado porseu mestre. Acontece que, num artigo de 1913, Vidal escreveu incidentalmente, semqualquer idéia de teorizar, que "a geografia é a ciência dos lugares e não a doshomens", sem medir o alcance de uma tal proposição; ora, tratava-se de fato de umacrítica em relação a certos discursos geográficos que se contentam em reproduzir,sem preocupação espacial, as considerações dos sociólogos ou dos economistas. Oque quer que seja, a fórmula é infeliz, mas não passa de uma frase em contradiçãocom todo o discurso de Vidal. Lucien Febvre se apodera dessa frase, comenta-a,repete-a em várias ocasiões, monta-a em tese, caindo como uma luva no seu afã de

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espoliar a geografia para assegurar a primazia dos historiadores. E proclama, nalonga passagem intitulada "uma geografia modesta": "a geografia é a ciência doslugares e não dos homens. Eis, na verdade, a âncora de salvação". Ele conclui,martelando (fazendo alusão ao livro de Camille Vallaux, O solo e o estado,denunciado como "ratzeliano"): "O solo, não o Estado: eis aí o que deve reter aatenção do geógrafo". Obrigado, senhor Febvre, por esse preceito lapidar queimpossibilitou qualquer reflexão geopolítica aos geógrafos ... para reservara aoshistoriadores ávidos de geo-história!

Eis a razão pela qual Lucien Febvre não diz uma só palavra sobre A França deLeste, que ele conhece muito bem, sem dúvida. De um lado ele teria tido dificuldadeem desqualificar tais raciocínios geopolíticos, que não são, de modo algum,"deterministas" e que são completamente diferentes dos de Ratzel; de outro lado, eradifícil celebrar o pai fundador da geografia, "legalizar” (de modo truncado) sua“mensagem" e demolir seu último livro, sem perturbar os geógrafos e comprometer aoperação epistemológica em benefício dos historiadores. Melhor seria fazer alusão aA França de Leste, em se reservando o pretexto de dizer àqueles que poderiam seadmirar desse "esquecimento" que "não era geografia", segundo uma fórmula usualdos geógrafos.

Esses placidamente, aceitaram o livro de Febvre com reconhecimento, semjamais tomar consciência do subterfúgio, nem estranhar a escamoteação desse livrocapital de Vidal de La Blache: bastante influenciado por Lucien Febvre, André Meyniernão cita A França de Leste na sua História do pensamento geográfico na França.

Contudo, não se trata somente de colocar em causa a pessoa de Lucien Febvre- foi um grande historiador e um potente espírito nem mesmo A terra e a evoluçãohumana, que contém passagens bem interessantes e reflexões que os geógrafosnunca haviam feito até então. Se seu livro não tivesse existido, é provável que asorientações da escola geográfica francesa não tivessem sido muito diferentes. Defato, o peso dessa intervenção de um historiador na evolução da escola geográficafrancesa obriga a se perguntar por que não foram os geógrafos que conduziram adiscussão com os sociólogos. Durkheim havia lançado suas primeiras críticas vinteanos antes, sem que os geógrafos reagissem. Por que esse silêncio e essa timidez?Por que, após a publicação do livro de Febvre, os geógrafos não debateram, aomenos entre si, problemas teóricos que haviam camuflado até então e que passavama ser colocados, em parte, após a publicação? As coisas permaneceram aí, como seos geógrafos tivessem sido afetados por uma espécie de carência epistemológicacongênita. Eles deixaram um historiador decidir o que devia ser a geografia humana,qual setor do conhecimento lhes era atribuído e em que finalidade deveriam trabalhar.Até os anos sessenta, o livro de Febvre foi a bíblia teórica dos geógrafos franceses,que ali encontravam sua própria celebração, com a de Vidal, e a formulação deprincípios que o mestre nunca explicitou. Os geógrafos não perceberam (ou seperceberam, não reagiram) que Lucien Febvre havia deixado de lado no seupanegírico toda uma parte, na verdade essencial, da obra de Vidal de La Blache.Contudo, não se deve negligenciar o peso considerável da corporação doshistoriadores no bojo da instituição universitária e o papel dominante que ela tem noensino da história-geografia do ensino secundário e na organização de um concursocomo o da "agregation". Eles favoreceram as orientações geográficas que lhesconvinham, seja uma geografia física que não concorre, de forma alguma, com ahistória, seja uma geografia humana que não toca nos problemas políticos, negóciodos historiadores. Bem recentemente ainda, o grande historiador Femand Braudel,

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um dos campeões da geo-história, falava na televisão, sem escrúpulos, da "geografia,disciplina subjugada"! Talvez porque os geógrafos têm medo de se assumir.

OS GEÓGRAFOS UNIVERSITÁRIOS E OESPECTRO DA GEOPOLÍTICA

A partir do fim do século XIX, desde que existe na França uma corporação dosgeógrafos universitários, esta se caracteriza por sua preocupação em afastar osraciocínios geopolíticos que haviam sido, em larga medida, durante séculos, a razãode ser de uma geografia que não era ainda ensinada a estudantes, futurosprofessores, mas a homens de guerra e a grandes funcionários do Estado. De outrolado, foram essas preocupações políticas e militares que justificaram, ou tornarampossível, a confecção das cartas - enorme tarefa - sem as quais os geógrafosuniversitários não poderiam dizer grande coisa. Mas dessa geografia estreitamenteligada à ação e ao poder, os geógrafos universitários se abstiveram, quase todos, defalar e fizeram como se ela estivesse morta e enterrada, levando-se em consideraçãoque era preciso exorcizar suas eventuais reaparições. Poder-se-ia dizer que ageopolítica é o espectro que ronda a geografia humana há cerca de um século, e ohorror e o desgosto que ela provoca se manifestam ainda hoje1. Mas geralmente nãose pronuncia o nome, como vale mais a pena fazer com aqueles que voltam do além!

Corno explicar essa rejeição da geopolítica pelos geógrafos universitáriosfranceses? Num primeiro momento, talvez pelo fato de serem os geógrafos, próximosdo governo e do estado-maior, de um meio social bem diferente; é talvez um dosaspectos da rivalidade dos universitários e dos militares, que caracteriza a vidapolítica e cultural francesa, bem diferente do que acontecia na Alemanha, porexemplo. Mas isso não impediu Elisée Reclus, antimilitarista convicto, de se interessarpelas questões geopolíticas. Além disso, a notoriedade da obra de Ratzel, seguidapela escola de geopolítica alemã, racista e expansionista, forneceu um pretexto paraa rejeição, bem antes de Hitler, de todos os problemas geopolíticos, para osuniversitários franceses. Eles tinham, no entanto, outros tipos de raciocíniosgeopolíticos além daqueles de Elisée Reclus, mormente em O homem e a terra(1905), e os de Vidal de La Blache em A França de Leste. Mas os geógrafosuniversitários quiseram ignorar tudo isso. E por que os geógrafos francesescontinuam, ainda hoje, a ignorar a obra de Reclus?2

É difícil acreditar que seja em razão de suas idéias libertarias. Elas nãochocariam mais muita gente hoje, ao menos na França; os fatos, que Reclus foi umdos primeiros a denunciar, ali são agora considerados, quase unanimemente, comoabusos e injustiças. Isso não quer dizer que as idéias de Reclus sejam ultrapassadas:seu rigor moral condena os discursos e os comportamentos de inúmeros daquelesque hoje reivindicam a "anarquia' ou a "autonomia", como eles preferem dizer agora.Mas sobretudo Reclus, que não conheceu, evidentemente, as "vitórias do socialismo"na URSS e alhures, é particularmente consciente, com antecipação das contradiçõesque podemos constatar hoje num grande número de Estados, entre esse Socialismo e

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a Liberdade. As posições de Reclus, na qualidade de comunista libertário, estão, comtoda a evidência, na ordem do dia.

Sem dúvida, suas aspirações políticas são o sustentáculo de sua obra degeógrafo, mas esta última pode ser tomada como tal pelos universitários, para osquais a palavra anarquia amedronta; Reclus não fez aliás alusão a ela no O homem ea terra, como também não o fez na Geografia universal. Mas se é fácil fazerabstração das atividades militantes de Reclus, não é possível considerar suageografia escamoteando o lugar considerável que ele dedica aos fenômenos políticos.E eu acredito que o silêncio que continua a ser feito na corporação dos geógrafosuniversitários sobre a obra de Reclus resulta, principalmente, hoje, da recusa damesma em admitir a geograficidade dos fatos que advêm da política, mormenteaqueles que traduzem o papel dos diferentes aparelhos de Estado.

Desde os anos cinqüenta, as concepções da geograficidade se ampliaram, claro,e se os geógrafos universitários levam em consideração problemas urbanos eindustriais e evocam as estruturas econômicas e sociais, eles querem ainda ignoraros problemas políticos, mais ainda as questões militares, e a palavra geopolítica étambém para eles um verdadeiro espectro que evoca as empresas hitlerianas.

Rejeitando, sobretudo por instigação dos historiadores, as preocupaçõespolíticas que haviam sido claramente evidentes e, durante séculos, uma das razõesde ser da geografia antes que ela fosse ensinada nas universidades (sobretudo paraformar professores de liceu), os primeiros geógrafos universitários acreditaramassegurar a cientificidade de uma disciplina nova e seus sucessores estão, aindahoje, persuadidos de que fazer alusão a um problema geopolítico os desqualificariaenquanto cientistas. Quanto mais a "velha" geografia estava, próxima dos militares edos chefes de Estado, mais a geografia universitária devia se afirmar desinteressadapara ser considerada ciência.

É assim que no seu Esboço de geografia humana (1976), Max Derruan analisa"a tradição e as novas aproximações" que são, segundo ele, “a análise espacial, oaproche ecológico, o aspecto sociológico, o aproche econômico", que ele estudasucessivamente. Mas não se trata de um aproche político e a "intervenção do Estado"só é cogitada no plano econômico, no "aproche" do mesmo nome. A questão defronteira só se coloca a propósito dos problemas alfandegários. Vale a pena salientarque essa redução dos problemas políticos unicamente à instância do econômico étambém o apanágio dos geógrafos que se referenciam no marxismo; é a tal insígnia aque eles reduzem, imitando os economistas marxistas, os problemas do imperialismoaos da "troca desigual".

Em 1965, Pierre George, que contribuiu enormemente para a difusão dageograficidade, publica A geografia ativa para mostrar no que pode contribuir ageografia para a "administração dos bens e dos homens nessa segunda metade doséculo XX". Esse livro marca uma ruptura com relação à concepção de uma geografiadesinteressada, puramente descritiva e explicativa, que havia prevalecido nauniversidade, desde o início do século XX. Essa geografia ativa global deveria,logicamente, levar em consideração os problemas geopolíticos. Mas Pierre George osrejeita categoricamente, desde o início da obra3. "A pior caricatura da geografiaaplicada da primeira metade do século XX foi a geopolítica, justificando porencomenda, não importa qual reivindicação territorial, não importa qual pilhagem porpseudo-argumentos científicos" (eu é que grifo essas últimas palavras). A assimilaçãode toda preocupação geopolítica com a geopolítica hitleriana é aqui evidente.Contudo, pode-se objetar que as argumentações refutando esta última são tambémgeopolíticas, assim como os argumentos pelos quais este ou aquele povo do Terceiro

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Mundo reivindica sua independência e um território nacional. Essa frase pela qualPierre George proscreve as questões geopolíticas, rejeitando-as numa espécie deinferno científico e político, é particularmente significativa dessa crença da corporaçãodos geógrafos universitários de que a exclusão da geopolítica é a condição principalpara que a geografia seja reconhecida corno ciência.

Essa crença não foi nunca teorizada, mas ela foi mais ou menos ressentida – eela o é ainda - como aquilo que outras corporações mais experimentadas nosdiscursos filosóficos chamariam um corte epistemológico, para retomar a fórmula deBachelard, depois de Althusser. Corte entre, de um lado, uma antiga geografiachamada, freqüentemente, "pré-científica", que, estando principalmente a serviço dossoberanos e dos estados-maiores, preocupa-se com problemas políticos e militares e,de outro lado, a geografia científica universitária que aparece no fim do século XIX(não se falava então de "nova" geografia, mas os universitários a conheciam como tal)e que rejeita os problemas geopolíticos, para se consagrar a outras questões, de umaforma desinteressada, objetiva, como o faz, diz-se, uma verdadeira ciência.

Entre os fenômenos que advêm do político, sobretudo aqueles que estão ligadosao exercício dos poderes de Estado, é aquilo que eu proponho seja chamado ageografia fundamental (para marcar que ela é muito anterior à geografia universitáriae que suas funções são indispensáveis ao Estado), as relações são Primordiais.Também se pode compreender que o que impulsionou a corporação dos geógrafosuniversitários a passar sistematicamente em silêncio os fenômenos políticos acolocou, por força das mesmas circunstâncias, e desde sua formação, numa situaçãoepistemológica bem difícil: a corporação rompia com aquilo que havia sido,nitidamente, uma das razões de ser da geografia, se separava dos cartógrafos eoperava uma redução considerável do campo da geograficidade, sem encontrarargumentos sérios para justificar essa retração. Também é compreensível que elatenha sido muito pouco pressionada para se definir teoricamente, tanto mais que seusinterlocutores, os historiadores, estavam muito satisfeitos com essa evolução. Queseria hoje da História (do discurso histórico) se no decorrer do século XIX se tivesseproduzido um fenômeno comparável ao que ocorreu com a geografia universitária ese os historiadores se dispusessem a passar em silêncio os fenômenos políticos?Quais relações de causalidade deveriam eles evocar? Como justificariam eles suasorientações?

Os historiadores universitários decidiram, eles também, no século XIX, sedesprender do papel apologético ou hagiográfico que havia sido, durante muitotempo, o do "historiador do rei", para escrever uma história mais imparcial, mais crítica(as controvérsias políticas aí os ajudaram, de uma corda forma) mas eles nem porisso proscreveram tudo aquilo que decorre da política, o que havia sido, duranteséculos, a sua razão de ser. O desenvolvimento de uma história menos dependentedos interesses dos governos foi acompanhada por uma grande desenvoltura dahistoricidade: fenômenos que até então haviam sido julgados prosaicos para seremdignos de fazer parte da História foram, progressivamente, abordados peloshistoriadores.

Para os geógrafos universitários, o repúdio do político provocou umaconsiderável redução do campo da geograficidade, uma vez que o econômico e osocial foram "esquecidos" ao mesmo tempo, e isso por vários decênios. Também, namedida em que se poderia falar de corte epistemológico na evolução da geografia dofim do século XIX e começo do XX, deve-se constatar que ela foi particularmentenegativa, pois a redução do campo da geografia humana não é acompanhada de umaanálise mais aprofundada dos fenômenos aos quais os geógrafos limitaram, desde

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então, os seus interesses. Enquanto que na evolução das diversas disciplinascientíficas, o termo corte epistemológico serve para designar uma mudança qualitativaprogressista, que de maneira nova e mais eficaz, na evolução da permite ver ascoisas de maneira nova e eficaz, na evolução da geografia a mudança foi regressiva.A melhor prova do caráter negativo dessa transformação que proscreveu osproblemas geopolíticos é o grande valor das obras que a corporação não quis levarem consideração, sem poder dizer por quê, e que preferiu esquecer, bastantepiedosamente A França de Leste, de Vidal de La Blache, e sobretudo a de EliséeReclus4.

Os geógrafos (e mesmo os geógrafos universitários, em seu período degeograficidade restrita) levam em consideração fenômenos que se originaram emcategorias bem variadas, tanto "físicas” como "humanas" (cada uma delas sendo odomínio privilegiado de uma disciplina científica), com a condição de que eles sejamcartografáveis, isto é, que se possa ali reconhecer diferenças significativas nasuperfície do globo. E o sentido etmológico da palavra geografia e é precisoconsiderá-lo como fundamental, uma vez que é o único com o qual geógrafos dediversas tendências podem e devem estar de acordo. A geografia privilegia asconfigurações espaciais particulares de todas as espécies de fenômenos, ao menosdaquelas que derivam das diferentes ordens de grandeza, aos quais se referemimplicitamente os geógrafos.

Isso posto, não se pode encontrar qualquer justificativa teórica para a exclusão,do campo da geograficidade, da categoria de fenômenos políticos que sãocartografáveis (e de acréscimo, já cartografados, sobretudo se trata das fronteiras) ecuja importância social é, quer se queira, quer não, também indiscutível. Com asgrandes linhas do relevo, são elas que figuram sobre as primeiras cartas. Essaexclusão do político (eu disse claramente o político e não a política) teve como efeitodistanciar os geógrafos universitários de toda idéia de ação e privá-los dessageografia fundamental que é, no que possui de essencial, uma geografia ativa ao péda letra e que continuou a se desenvolver, aí compreendendo a cartografia, fora dasestruturas universitárias, nos organismos que dependem diretamente do aparelho deEstado.

Como explicar esse princípio da exclusão do político, princípio não-dito masquase estatutário, tanto ele é sistemático, sobre o qual se funda a geografiauniversitária francesa? Por que esse ódio da geopolítica? Ele não se manifestou só naFrança, mas também nas diferentes "escolas" de geografia (mais ou menosinfluenciadas pelos geógrafos franceses) que viram, também, um critério decientificidade. Na URSS, o ódio da geopolítica assimilada exclusivamente no início, aopangermanismo, depois ao hitlerismo, é, tal como se apresenta a causa capital daquase inexistência da geografia humana no sistema universitário. Mas é preciso levarem consideração a obsessão do segredo cartográfico que demonstram, por exemplo,os dirigentes soviéticos (e aqueles da maioria dos demais Estados comunistas), quereservam todas as cartas (salvo aquelas em escala muito reduzida) aos quadros dopartido, das forças armadas e da polícia, sob pretexto de impedir a comunicação aosimperialistas, os quais, desde ás fotografias dos satélites, possuem mais informaçõesdo que têm necessidade. As causas desse black-out sobre as cartas e o bloqueio dageografia humana e regional universitária na URSS devem, evidentemente, serprocuradas em razões da política interna.

É evidente que o mesmo não acontece na França, e o silêncio dos geógrafosuniversitários franceses quanto aos fenômenos políticos não pode ser explicado porrazões de Estado. Seus dirigentes fizeram apelo, aliás freqüentemente, a grandes

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geógrafos universitários e é de se admirar que uma corrente de reflexão geopolíticanão se tenha desenvolvido logo após A França de Leste, na escola geográficafrancesa, para responder à geografia alemã.

Em 1918, por exemplo, na Conferência da Paz, Georges Clemenceau se rodeoude uma plêiade de geógrafos, dirigida por Emmanuel de Martorine, para discutir otraçado das fronteiras na Europa central e nos Balcãs. Os trabalhos desses geógrafosforam publicados (Questões européias, 2 volumes. Impressora Nacional, Paris, 1913),mas a corporação preferiu ignorá-los.

Para explicar a orientação tomada pela geografia universitária, eu chamei aatenção, a propósito de A França de Leste, sobre o papel da corporação doshistoriadores, preocupada em reservar para si o discurso sobre a política, e muitopoderosa no seio das faculdades de letras, onde ela foi suserana, até certo ponto,daquela dos geógrafos. Não se deve, contudo, superestimar o peso dessasrivalidades corporativas e, se os geógrafos quisessem, de fato, tratar de questõesgeopolíticas, eles poderiam, sem dúvida, fazê-lo. Pode-se explicar sua recusa dessesproblemas pelo fato de formar futuros professores de "história e geografia", por ser odiscurso da geografia universitária, em larga escala, do tipo pedagógico? Mas, aindauma vez, os historiadores não abandonaram o político por causa disso, bem aocontrário!

Em resumo, no ponto em que eu me encontro nesta reflexão, não consigo obterexplicação racional para essa rejeição dos problemas geopolíticos pelos geógrafosuniversitários e eu venho a me questionar se uma tal atitude não decorreria, emgrande parte, do irracional ou do inconsciente: Bachelard não mostrou que é precisoconsiderar isso em certas orientações epistemológicas? Os geógrafos estão, nofundo, muito presos à idéia de uma geografia que seria uma espécie de sabedoria,uma geosofia, e de que eles seriam os oráculos de uma organização maisharmoniosa do espaço social, no interesse geral. Todo geógrafo se acredita um poucodemiurgo e é porque essa profissão (é bem mais do que uma profissão) lheproporciona tanto.

Eu lembrei acima os geógrafos e o espectro da geopolítica. Isso pode parecerum efeito de estilo um pouco excessivo mas, quanto mais eu penso, mais a imagemdo espectro me parece a mais apropriada, naquilo que ela exprime de mágoa ("não écientífico"), de temor (Hitler!), de irracional, a tal ponto que não se quer falar, nemmencioná-Ia.

Sem dúvida, a maior parte dos geógrafos parece somente ignorar as questõesgeopolíticas, mas é suficiente que eles tenham de julgar uma obra que trate doassunto em relação à sua disciplina, para que se manifestem sua recusa e suahostilidade, sem que eles possam justifica Ias por um raciocínio teórico. Eu mepergunto, mas de maneira ainda muito vaga, se não seria porque a consideraçãodesses problemas, que não são somente os de guerra, mas que fazem aparecersempre o papel dos dirigentes de Estado na organização do espaço é que obrigariaos geógrafos a renunciar ao papel de demiurgo que eles se atribuem, mais ou menosconscientemente; quaisquer que sejam suas tendências ideológicas. De tantoexaminar cartas em escala pequena, o que equivale a ver a terra de muito alto, detanto contar as etapas do levantamento das montanhas, de tanto analisar a belezadás paisagens e de explicar a desigual influência das cidades, estamos próximos denos sentir mestres daquilo que se explica.

Os geógrafos não falam de "organização do espaço", mesmo quando elestratam de geografia física, quando eles percebem a disposição das montanhas, otraçado dás grandes eixos da rede hidrográfica - e com mais razão ainda, quando

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eles explicam o contraste entre espaços abandonados e regiões densamentepovoadas? Mas quem organiza? É a Natureza? Deus? Ou melhor, não é o geógrafoque põe ordem na compacta superposição dos fenômenos e clareia o obscuro jogo deforças, que é ele o único a compreender, no final de sua pesquisa? Essa sensaçãode poder não se rompe quando é preciso analisar como o espaço é efetivamente (enão mais metaforicamente) conquistado, organizado ou reorganizado sobre asinjunções, mais ou menos lógicas, de certo chefe de Estado? A menos que, fatobastante excepcional, o geógrafo não tenha razões de se identificar com ele ou com acausa que pretende encamar, em contraposição, a identificação retrospectiva com oPríncipe é clássica entre os historiadores. São motivações políticas poderosas, ohorror da opressão ou o amor pela pátria que impulsionaram homens como Reclus eVidal a analisar aquilo que outros geógrafos recusam ver, sem saber muito por quê.Não seria por que o geógrafo tende a se sentir mestre do mundo que ele tem essarepugnância de considerar o papel daqueles que o organizam e o disputam?

Para que um geógrafo supere essa repulsa, mais ou menos instintiva, comrelação às questões geopolíticas e se decida a fazer dela o tema de uma obra capital,é necessário ter motivações poderosas, um pulsar que o transporte além do prazer5

que ele tem de brincar de ser Deus. Foi o caso de Elisée Reclus, mormente quandoele escreveu O homem e a terra, e de Vidal de La Blache, quando ele redigiu, àspressas, A França de Leste. Em contrapartida, se nós consideramos esses dois livros,que são, para cada um deles, a obra última e capital, constata-se que eles traduzem,tanto um como outro, uma concepção excepcionalmente ampla da geograficidade euma grande preocupação com as estruturas econômicas e sociais dos problemasgeopolíticos. Sem dúvida, Reclus era um comunista libertado e Vidal um conservadorpatriota, mas o que nos interessa aqui é sua concepção da geografia e a relação comsuas preocupações políticas. Um como o outro combatem um adversário e lutam poruma causa: Reclus denuncia a injustiça e a opressão sob todas as suas formas e emtodos os países; Vidal demonstra que a Alsácia e a Lorena devem voltar a serfrancesas. Posições que se podem considerar como bem diferentes mas, poderíamosdizer que o engajamento sentimental de um e o de outro eram tão poucosemelhantes, quando se sabe que Vidal escreveu A França de Leste em 1916,enquanto seu filho, também geógrafo, acabava de ser morto na frente de batalha? E acausa a lastimar que leva Reclus a inventar essa geografia militante, reunindo eorganizando sozinho, uma enorme documentação. É a causa a lastimar que obrigaVidal a passar além do tabu geopolítico e a quebrar os limites da geografia que eleconsiderava digna do discurso universitário, para mobilizar todos os argumentos.Enfim, última semelhança entre Reclus e esse Vidal: sua rejeição pela corporaçãodurante decênios.

Se a escamoteação do Vidal de A França de Leste já é surpreendente, oesquecimento quase total da obra de Reclus, até a metade dos anos setenta, o éainda mais, se considerarmos a crescente difusão das idéias de "esquerda" naUniversidade francesa, após a Segunda Guerra Mundial. Que as idéias do anarquistaReclus tenham podido amedrontar outrora os meios "bem-pensantes", ainda passa(isso não impediu, contudo, o sucesso de sua obra entre as pessoas cultas), mas quea corporação dos geógrafos, onde homens de esquerda desempenharam um papelnão-negligenciável a partir dos anos cinqüenta, tenha continuado a ignorar Reclus, éalgo completamente inacreditável! É, de fato, a partir dessa época que os geógrafos,mais ou menos influenciados pelo marxismo, começaram a expandir o campo dageograficidade e a levar em consideração os problemas econômicos e sociais. Comoaconteceu que Reclus não tenha sido redescoberto concomitantemente?

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Se Reclus tivesse sido um marxista ou se ele tivesse podido ser apresentado, aexemplo de outros pensadores, como um precursor longínquo do marxismo: éprovável que o tivessem então redescoberto: trechos escolhidos do O homem e aterra teriam sido publicados para chamar a atenção sobre esta grande obraprogressista, que dedica um a tão grande importância às lutas de classes e aoscombates pela liberdade. Mas Reclus foi não somente um contemporâneo de Marx,como também um de seus adversários; eles se confrontaram sucessivas vezes noscongressos socialistas. E, sobretudo, Reclus é um comunista libertário e as críticasque ele fez sobre determinados pontos do pensamento de Marx aparecem ainda maisfundamentadas hoje - notadamente as críticas em oposição aos partidos comunistasque tomaram o poder e que o exercem, com os meios que não se podem ignoraragora.

É cada vez mais necessário que os geógrafos se preocupem com os problemaspolíticos e militares e reencontrem, assim, aquilo que foi, durante séculos, uma dasrazões de ser fundamentais do seu saber. De fato, a falência das representaçõesideológicas do mundo, baseada na oposição dos valores, do socialismo aocapitalismo, faz com que o termo geopolítica esteja prestes a se tornar uma palavra-chave das análises políticas, e não somente na mídia. Mas os raciocínios que eleenvolve, de uma certeza pseudocientífica, parecem, para a maioria, de um simplismoconsternador se os confrontarmos com a complexidade das situações geográficas;eles têm também o inconveniente de pretender se impor como se fossem evidênciasplanetárias e, sobretudo, como fatalidades diante das quais nada se poderia fazer.Esses pretensos imperativos ou evidências geopolíticas são raciocínios perigosos,pois eles não só manipulam a opinião, mas também aqueles que a dirigem. É, pois,cada vez mais necessário mostrar a complexidade das situações, salientar que ésimplista, ineficaz e perigoso pretender que o mundo seja dividido em algumasenormes entidades maniqueístas, como fazem acreditar os discursos sobre asrelações Norte-Sul e os conflitos Leste-Oeste. Os geógrafos devem fazer a críticadessas alegorias espaciais de envergadura planetária e mostrar que, para ter umarepresentação mais eficaz do mundo, é preciso levar em consideração os diferentesníveis de análise e, para cada um deles, a complexidade das interseções entre osmúltiplos conjuntos espaciais. Eis aí a tarefa dos geógrafos!

MARX E O ESPAÇO "NEGLIGENCIADO"

A institucionalização da geografia dos professores na qualidade de discursopedagógico "inútil", sistematicamente despolitizado, não favoreceu o desenvolvimentoda vigilância com respeito aos geógrafos. E, no entanto, ela seria ainda maisnecessária. Como é que historiadores e todos aqueles que se confrontaram com oproblema do Estado não perceberam que a geografia, também, apreende o Estado epor uma de suas principais características essenciais, sua estrutura espacial, suaextensão, suas fronteiras? De fato, parece que esse silêncio cúmplice que continua aenvolver a geografia, o qual se utiliza de numerosos clichês e argumentos, coloca umproblema ainda bem mais profundo.

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A geografia é uma representação do mundo. Mas não se fala disso nos meiosque são, no entanto, ciosos de eliminar todas as mistificações e de denunciar todasas alienações. Os filósofos, que tanto escreveram para julgar a validade das ciências,e que exploram hoje a arqueologia do saber, conservam ainda, em relação àgeografia, um silêncio total, embora essa disciplina devesse, mais que qualquer outra,atrair suas críticas. Indiferença? Falta de debate para arbitrar entre os geógrafos?Não seria antes uma inconsciente conivência?

É, evidentemente, inútil destacar a importância das transformações que omarxismo provocou na história, na economia política e em outras ciências sociais.Ele trouxe não somente uma problemática e um instrumental conceitual, comotambém determinou, em larga medida, o desenvolvimento dessa polêmicaepistemológica e dessa vigilância quanto ao trabalho dos historiadores e economistas;essa polêmica e essa vigilância se manifestaram de início, fora da Universidade, riosmeios mais politizados e também, em seguida, no interior do mundo universitário.Ora, até os anos sessenta, os marxistas não haviam ainda se preocupado com ageografia, embora se trate de um saber cujo significado econômico, social e político éconsiderável. Evidentemente, se considera, como na URSS, que a geografia provém,no essencial, das ciências naturais, a fraqueza, senão a ausência dessas relaçõescom o marxismo, não colocaria problemas, a tal ponto. Mas quer ela seja discursomistificador, cuja função é considerável, ou saber estratégico, cujo papel não é menosconsiderável, a geografia tem por objeto as práticas sociais (políticas, militares,econômicas, ideológicas...) em relação ao espaço terrestre.

A fraqueza do papel da análise marxista em geografia, não é menossurpreendente. É preciso, de início, constatar o silêncio, o "branco" em relação aosproblemas espaciais, que caracteriza a obra de Marx. Evidentemente, tal tipo deconstatação não deixa de provocar uma legião de apoio, para o defender: muito rarossão aqueles que dizem ser a geografia coisa muito insignificante para que Marxpudesse ter se interessado por ela. Ele falou, vez por outra, dos problemas de espaçonas suas obras da juventude, até os Grundrisse, e sobretudo em seus escritos quetratam das questões militares (o que é uma prova a mais da função estratégica dageografia; a esse respeito, sempre a propósito das questões militares, as reflexõesgeográficas de Mao Tsé Tung são particularmente importantes). Ele esteve tambémparticularmente atento aos problemas de relações cidade-campo, mas negligenciandouma grande parte dos problemas geográficos. Ele fez freqüentemente referências àNatureza (e Engels ainda mais) mas aí também eliminando totalmente a dimensãoespacial. A pequena preocupação que Marx testemunha em relação aos problemasespaciais desaparece, com a formalização definitiva da crítica da economia política,tal como ela aparece no primeiro tomo de O capital. Quanto mais Marx organiza o seuraciocínio com referência constante ao tempo (e a história foi encontradareorganizada) mais ele se mostra indiferente aos problemas do espaço. Contudo, naqualidade de filósofo e fortemente influenciado por Hegel, ele não poderia ter deixadode estar consciente das relações estreitas, que existem entre o tempo e o espaço.

O que choca não é a falta de interesse de Marx para com os problemasgeográficos: é a disjunção entre seus textos teóricos mais elaborados, O capital emprimeiro lugar, e seus textos mais circunstanciais, militares ou político-estratégicos. Oque choca no próprio bojo dos textos mais elaborados não é tanto a falta de interessepara com os problemas geográficos do que a irrupção, numa problemáticaglobalmente a-espacial, de raciocínios geográficos grosseiramente deterministas.

A tradição marxista herdará dessa dualidade: Plekhânov abusa do argumentogeográfico; Lênin, Trotsky, Mao Tsé Tung, em confronto com os problemas da guerra

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revolucionária e com as tarefas do governo, explorarão as penetrações teóricas deMarx no campo do pensamento estratégicos (eles completarão, aliás, sua bagagemconceitual pela leitura de Clausewitz). Enfim, a economia política marxista retomaráos esquemas a-espaciais de O capital, pronta, bem recentemente, a se precipitarsobre metáforas espaciais as mais escorregadias, como "centro" e "periferia".

Coloquemos à parte Rosa Luxemburgo e Gramsci, cujo conjunto dos textos (nãosomente político-estratégicos) fazem referência a uma problemática espacial: críticado livro II e questão nacional para Luxemburgo, herança da filosofia da históriaitaliana, relações entre Estado, território, dominação e hegemonia através da históriada unidade nacional italiana, para Gramsci. Também é preciso se interrogar sobre aresponsabilidade do stalinismo nessa esterilização do pensamento marxista.

O silêncio de Marx quanto à geografia é tanto mais difícil de ser explicado sepensarmos que, na época em que ele escreveu, os problemas espaciais já estavamem primeiro plano nas preocupações políticas dos militares prussianos e dosindustriais do Ruhr, que a geografia, na qualidade de representação racional domundo, já tinha alçado seu vôo na Universidade de Berlim, onde ela é um dos maisbelos florões, e que o sistema capitalista se organiza em escala internacional,dominando formações sociais extremamente diferentes, segundo os países.

Após ele, seis continuadores não deixarão de estudar o desenvolvimento docapitalismo, não somente no "centro", mas também na "periferia". Mas essasalegorias espaciais não existem sem perigo e arriscam favorecer a derrapagem doraciocínio.

O pouco interesse que Marx demonstra em relação aos problemas geográficostem, ainda hoje, graves conseqüências. Para os marxistas, o essencial daargumentação política, quer se trate de problemas regionais, nacionais ouinternacionais, se define em relação ao tempo, se expressa em termos históricos, masela só raramente faz referência ao espaço e, ainda assim, de uma forma muito alusivae negligente. É contudo o espaço que é o domínio estratégico por excelência, o lugar,o terreno onde se defrontam as forças em presença, e onde se travam as lutas atuais.

SINTOMAS DAS DIFICULDADES DOMARXISMO EM GEOGRAFIA

Contudo, o papel da análise marxista não deve ser somente apreciado emfunção do conteúdo da obra de Marx e do que foram os seus continuadores – ageografia não era, evidentemente, o seu propósito essencial - nem em função daargumentação dos militantes que eles inspiram; é preciso também examinar a práticaatual dos geógrafos "de esquerda”: eles estiveram, durante longo tempo, sob ainfluência verdadeiramente hegemônica da herança vidaliana; mas desde a SegundaGuerra Mundial há, na Universidade, um número crescente de geógrafos, ainda quebastante minoritário, a ser mais ou menos fortemente influenciado pelo pensamentomarxista: alguns deles desempenham um eminente papel científico. Contudo, emgeografia a influência marxista parece ainda nitidamente menos forte que em certasdisciplinas, tais como a filosofia, a história, a sociologia, a economia política, onde

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existem, há relativamente muito tempo, verdadeiras escolas marxistas, conhecidas,brilhantes, mesmo quando elas congregam um pequeno número de pessoas apenas.

Ora, hoje ainda somos obrigados a constatar que, se há marxistas entre osgeógrafos, não existe ainda verdadeiramente uma geografia marxista. Talvez elaesteja a ponto de aparecer? Mas entre as ciências sociais, a geografia é o setor emque a análise marxista tem a maior dificuldade de se desenvolver. Evidentemente,isso é diferente para especialistas de outras disciplinas que encontram, nas obras dosgrandes teóricos do marxismo, matéria para numerosas citações, para amploscomentários, para múltiplas reflexões polêmicas e exegeses, enquanto os geógrafosmarxistas não têm muitas citações ilustres nas quais eles possam se inspirar.

Contudo, durante cerca de dois decênios, os geógrafos "de esquerda" puderamse considerar como os únicos a ultrapassar e a contestar os limites da geografiavidaliana. Eles foram os primeiros a recusar o corte que ela estabeleceu do lado dasciências sociais e a abordar o estudo dos fenômenos urbanos e industriais; masnenhum deles fez então, explicitamente, referência às teses marxistas. Eles não sãoos únicos hoje a transpor a geografia vidaliana. De fato, desde alguns anos sedesenvolveu, não sem sucesso, entre os geógrafos universitários, uma correnteneoliberal modernista, fortemente inspirada pela sociologia anglo-saxônica e pelosmétodos quantitativistas executados pelos geógrafos americanos. Quanto mais ageografia vidaliana recusava o contato com as ciências sociais, mais os adeptosdessa "New Geography" se congratulavam e, fazendo isso, eles tiravam dosgeógrafos influenciados pelo marxismo, o sentimento tranqüilizante de serem osúnicos a poder invocar o papel dos fatores econômicos, sociais e políticos.

Um dos mais antigos sintomas das dificuldades dos "geógrafos marxistas" foi aorientação de alguns, e não dos menores, para o estudo quase exclusivo dosproblemas de geografia física, e mais particularmente de geomorfologia que,evidentemente, não podem derivar de uma problemática marxista. Esses geógrafosabandonaram, pouco a pouco, os estudos dos problemas humanos, que deveriam, noentanto, interessá-los, considerando-se suas idéias políticas. É assim que JeanDresch, cuja ação anticolonialista foi grande, que estabeleceu em 1945, com MichelLeiris, o relatório sobre o trabalho forçado na África Ocidental Francesa e queencetou, nos anos cinqüenta, toda uma série de pesquisas bastante importantes emgeografia humana (sobre a geografia dos capitais nos países coloniais), consagra emseguida, à geomorfologia, o essencial de sua atividade. Sem dúvida, para numerosospesquisadores nas ciências exatas, físicas e naturais, o marxismo determina suasopiniões e suas práticas políticas, mas não a sua problemática científica. Isso sepassa de outra forma para as ciências sociais, onde problemática política e práticacientífica estão estreitamente ligadas, Sintomático o deslize de geógrafos marxistasque abandonam a concepção unitária da geografia (a apreensão dos fenômenosfísicos em função da prática social) e se consagram, seja à análise exclusiva dasformas de relevo consideradas em si mesmas, seja à reprodução dos discursos doseconomistas e dos sociólogos, espacializando-os muito pouco, e ainda...

Uma outra dificuldade mais difundida da análise marxista em geografia semanifesta em numerosos trabalhos que decorrem, principalmente, da geografiahumana: eles se caracterizam pelo enorme lugar ocupado por uma reflexão histórica,orientada para a análise das relações de produção e lutas de classes. Esse discursode tipo marxista e que não é, necessariamente, original, é superposto com freqüência,pura e simplesmente, a um discurso de geografia completamente clássico: a análisemarxista dos problemas espaciais é camuflada por um discurso que decorre, de fato,da história ou da economia política. Esse desvio, num certo sentido, em direção à

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reprodução de discursos que são melhor construídos, e cujo significado político émais claro, coloca, se refletirmos bem, o problema da responsabilidade do geógrafo;sobretudo aqueles que, referindo-se ao marxismo, deveriam considerar o seu deverem participar das lutas sociais da forma mais eficaz. É de se notar que esse lugarimportante que ocupa o discurso histórico no bojo do discurso geográfico não é,evidentemente, específico dos geógrafos de influência marxista. Na medida em queos geógrafos perceberam que a situação que eles descrevem é o resultado de todauma série de evoluções que se combinam (a das formas de relevo, do povoamento, ade diversas atividades econômicas ... ), o procedimento histórico toma,inevitavelmente, um grande lugar na explicação geográfica.

Mas essas explicações históricas tendem a se tomar um fim em si mesmas, namedida em que os geógrafos, marxistas ou não, são privados de toda prática.

No fundo, reproduzindo em seguida a, ou no lugar de, um discurso de geografiado tipo vidaliano, um outro discurso de tipo história - ciências sociais, a maior partedos geógrafos de influência marxista não se preocupa em saber se aquilo que elesfazem é de fato "geografia"; sem dúvida pensam eles que sua explicação, emboraseja mais ou menos "geográfica", é uma oportunidade de fazer referência aomarxismo e que isso não é inútil, sobretudo num meio tão "despolitizado" como é o dageografia, onde se colocam, ainda hoje, bem menos problemas que em outrasdisciplinas (quer se trate de estudantes, ou de mestres).

Contudo, esse desvio dos geógrafos de influência marxista em direção àreprodução de um discurso história-ciências sociais, tem um duplo inconveniente: deum lado esse discurso histórico não coloca claramente em causa o discurso dageografia vidaliana; ele vem, antes, completá-lo, coroá-lo e, por essa via, ele lhepermite continuar a funcionar como meio de bloqueamento e de mistificação; de outrolado, esse discurso histórico permite continuar a camuflar os problemas teóricos que énecessário colocar em geografia. Isso contribui para entreter, em amplos meios, aidéia de uma geografia, discurso pedagógico "inútil" mas inofensivo.

PRINCÍPIOS DE UMA GEOGRAFIA MARXISTAOU FIM DA GEOGRAFIA?

Na verdade, o desenvolvimento de uma geografia que possa ser essencial eespecificamente marxista esbarra em dificuldades epistemoióqicas fundamentais.Com efeito, o raciocínio geográfico se baseia sobre a consideração de múltiplosconjuntos espaciais, procedentes de diversas categorias científicas (geologia,climatologia, demografia, economia, sociologia, etc.), enquanto que o raciocíniomarxista, que se fundamenta, também, sobre conjuntos, privilegia sistematicamenteaqueles que se podem formar em função das diferentes relações de produção entreos homens.

Ora, esses conjuntos, proletariado e capitalistas, burgueses e feudais, pequenoscamponeses ou camponeses sem terra e grandes proprietários fundiários, sãodificilmente cartografáveis. Sem dúvida, pode-se facilmente fazer a carta dasestruturas agrárias nesta ou naquela área, mas ela não explica completamente a

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situação na qual se encontram os camponeses. É preciso também levar emconsideração as condições climáticas, pedológicas, topográficas, que não derivam,fundamentalmente, da análise dos marxistas e que estes tendem a negligenciar, emprol do estudo das relações de produção. Essas últimas são, evidentemente,fundamentais mas, contrariamente à tendência dos marxistas que reduzem aoEconômico as características e as contradições das diversas sociedades, não sepodem reduzir os problemas políticos, e mormente os problemas de poder, àsmodalidades de apropriação dos meios de produção.

Os geógrafos marxistas contribuíram, sobretudo, na análise dos problemasurbanos; os fenômenos de segregação social, de apropriação dos terrenos, decontradição entre o interesse coletivo e os apetites privados inserem-se, com efeito,de modo particularmente claro e simples, na problemática marxista. Ela fez suasprovas nesse domínio.

Contudo, por mais importante que ela possa ser, a análise marxista dosfenômenos urbanos não pode se apossar, com exclusividade, da geografia marxista.Primeiro, essas pesquisas podem, com justiça, ser reivindicadas pelos urbanistas esociólogos. Não se trata, bem entendido, de fazer corporativismo universitário, masesse não é o meio de fazer avançar pela crítica os problemas dos geógrafos, o deimputar, a seu crédito, pesquisas que, na realidade, procedem de outras disciplinas,nas quais o estatuto epistemológico é bem mais avançado que o da geografia.

De outro lado, os geógrafos de influência marxista não são os únicos a estudaros problemas urbanos. Outros geógrafos, como outros sociólogos, outroseconomistas, que não se incluem absolutamente no marxismo e que não procuramsequer parecer "de esquerda", empreendem também essa análise das diversasformas da crise urbana, sem se referirem sistematicamente às contradições dosistema capitalista, sem apelar para sua destruição, falam, também eles, de"dominação", de segregação social, etc. Desses geógrafos, os marxistas dirão quesão "inconseqüentes"... O que quer que seja, é claro que a análise dos problemasurbanos procede, numa larga escala, de um instrumental conceitual marxista oumarxiano.

Também bom número de marxistas geógrafos, esses mesmos que estãoengajados em brilhantes análises dos fenômenos urbanos, pretendem que ésuficiente manobrar o aparelho conceitual do marxismo no estudo de tudo aquilo quederiva das cidades, para ter a base de uma geografia marxista. As aglomeraçõesurbanas não parecem dever reunir efetivos humanos cada vez mais numerosos emajoritários? As cidades não exercem um papel de polarização e de estruturaçãosobre os espaços rurais, onde as influências urbanas são cada vez mais fortes?Esses geógrafos consideram (quanto mais detêm enfim a base de uma geografiamarxista) que eles podem se referir a numerosos textos "de base", aqueles que Marxconsagrou aos problemas fundiários, às cidades, às relações da cidade e do campo,que estão na origem do sistema capitalista.

Essa posição dos geógrafos marxistas que julgam não haver mais questõesteóricas fundamentais para ali serem debatidas, desde que façamos referênciasmetodicamente ao marxismo, não deixa de colocar certos problemas.

De início, apesar do papel crescente das cidades na vida econômica e social ena organização do espaço, a geografia deve levar em consideração muitos outrosespaços além dos da cidade ou aqueles que validamente se podem considerar comoestruturados por uma rede de cidades. É preciso analisar a diversidade dos espaçosrurais, onde as condições naturais e os fatores culturais são muito importantes. Nessevasto domínio, os métodos de análise urbana não são operacionais. O estudo

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geográfico dos fenômenos urbanos, mesmo levado a diferentes níveis de análise, nãoparece, contudo, poder constituir mais do que uma parte somente da geografia,sobretudo se a considerarmos como saber estratégico ou análise científica, derive elaou não do marxismo. Não é somente transferindo, extrapolando a problemática quecontempla com eficácia as estruturas econômicas e sociais, que se avançará nosmétodos de análise do espaço, que colocam ainda graves problemas, difíceis decircunscrever convenientemente.

De outro lado, considerar que a análise marxista dos fatos urbanos constitui abase de uma geografia marxista, coloca um outro problema: deveras, os geógrafos,influenciados ou não pelo marxismo, chegaram tardiamente ao estudo urbano, e elesestão longe de serem os únicos a se ocupar disso. Os sociólogos e os urbanistas são,por outro lado, mais numerosos e até mesmo os economistas se intrometem naeconomia urbana. Os geógrafos parecem se diluir nesse conjunto de ciências sociais,sem mesmo poderem pretender ser os especialistas da análise espacial, pois osurbanistas levantam e desenhara cartas e planos, o que a maioria dos geógrafos nãosabe fazer, por falta de prática.

Os sociólogos fazem malabarismos com a "produção" dos múltiplos espaçossociais e mentais, os economistas fazem economia espacial, os historiadores fazem ageo-história, enquanto os ecologistas se apoderam das relações homem-natureza.

Para muitos geógrafos universitários, o apossar-se dos problemas espaciais porparte de disciplinas mais brilhantes, mais influentes, mais na moda, é a causaprincipal e a manifestação capital da crise da geografia. Contudo, essas disciplinas"rivais" que "tocam" no domínio dos geógrafos, tratam dos problemas que eles nãohaviam ainda abordado, até agora.

Essa diluição, na verdade essa desapropriação da geografia, certos geógrafos aaceitam na prática; senão explicitamente, e, sobretudo, para os estudos urbanos, elesescorregam para a sociologia, em nome da "interdisciplinariedade". Esta tem, é claro,as vantagens que são tão apregoadas, mas ela apresenta o inconveniente, sobretudopara disciplinas como a geografia, cujo estatuto epistemológico é vago, de constituirum excelente álibi para camuflar, ainda, problemas teóricos que lhe são específicos.

Bom número de geógrafos marxistas, de tendências que se diria mais ou menos"esquerdistas", afirmam que geografia, sociologia, economia, história, etc., nãopassam de etiquetas universitárias e desejam seu desaparecimento, para que serealize, enfim, uma síntese das ciências sociais, que só poderia ser, segundo eles,fortemente influenciada pelo marxismo, ou, ao, menos, colocada sob sua égide

Se eles julgam útil liquidar a geografia sobre o altar da interdisciplinariedade,deveriam perceber que a abertura sobre as ciências sociais não é mais o apanágiodos geógrafos marxistas e, sobretudo, que a análise das diferentes formas da criseurbana, das favelas, das formas de segregação, das desapropriações fundiárias, dapoluição, não é somente da alçada de geógrafos marxistas, preocupados emdenunciar as taras do sistema capitalista e de desmascarar o seu funcionamento.

O destino da geografia universitária seria, portanto, o de desaparecer pordiluição num conjunto de ciências sociais, das quais os geógrafos estiveram tão longae tão contrariadamente mantidos à parte? Marxistas ou não, eles vieram se juntar aossociólogos, aos economistas, aos urbanistas, etc., no grande coro dos discursossobre o espaço.

Essa crise da geografia não seria nada mais do que o anúncio de um"aggiornamento" que poria fim a um velho corte universitário e a uma disciplina que sóseria individualizada por força das condições culturais particulares de alguns paíseseuropeus, no fim do século XIX?

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Não restariam da crise da geografia senão as "medidas cheias" dos liceus? Paraque isso não aconteça, ministros ávidos de "reforma" e de "mudança" trataram desubstituir rapidamente o discurso das ciências sociais por esse da geografia, quealguns consideram como uma prova do arcaísmo do ensino secundário francês.

Contudo, a geografia não parece prestes a desaparecer na qualidade dedisciplina universitária e científica: ela se desenvolve com vigor, desde há pouco, empaíses nos quais ela não tinha tido importância até agora, como disciplina de ensino.Quanto mais o discurso dos geógrafos universitários tenha sido, durante muito tempo,amputado de qualquer prática, mais esse novo desabrochar da geografia estáestreitamente ligado às pesquisas "aplicadas" e a considerações mais ou menosexplicitamente estratégicas.

DO DESENVOLVIMENTO DA GEOGRAFIAAPLICADA À "NEW GEOGRAPHY"

Sobretudo na França e na Alemanha (e em outros países que sofreram ainfluência cultural francesa ou alemã), a geografia figura, desde o fim do século XIX,no programa dos liceus e ocupa um lugar notório nas universidades, onde a formaçãode professores do secundário continua a ser ainda sua principal função. Em outrospaíses, particularmente nos Estados Unidos, a geografia, por falta de mercados nosecundário, não tinha ainda existência universitária, até uma época recente. Emcontrapartida, "sociedades de geografia" são muito ativas ali; comumente presididas,como a "National Geographic Society", por PDGs das grandes firmas ou poralmirantes aposentados, elas difundem, desde há muito tempo, revistas muito bemilustradas. Nos Estados Unidos, a National Geographic Magazine imprime dezmilhões de exemplares. É a terceira revista americana.

Mas desde alguns decênios, a pesquisa em geografia se desenvolverapidamente nos Estados Unidos, com recursos bastante consideráveis, seja nosorganismos universitários, seja no quadro de outras estruturas. De fato, essageografia, que não está ligada ao funcionamento de uma máquina para fabricarprofessores, parece cada vez mais útil àqueles que estão à testa das grandes firmase do aparelho de Estado. Pois são eles que não somente propõem os contratos depesquisa, mas também providenciam os meios materiais e as facilidades de acesso ainformações confidenciais. Diferentemente da geografia universitária, onde aspesquisas, assim como o ensino, foram concebidas como um saber pelo saber,radicalmente amputado de toda prática, as pesquisas de geografia "aplicada” sãoconduzidas em função de objetivos explícitos, seja para propor uma solução técnica,mais ou menos parcial, seja para fornecer informações que permitirão visualizar umaação.

Nos Estados Unidos, as pesquisas de geografia "aplicada" se desenvolveramprimeiro no prolongamento dos estudos de mercado, realizados pelos economistas,que foram levados, por razões de eficácia, a apreender a dimensão espacial, fatorevidentemente essencial aos Estados Unidos. Muito cedo se impôs a idéia de que erapreciso analisar as zonas de influência das grandes cidades e a irradiação dos

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serviços implantados em cada uma delas. De outro lado, operações dedesenvolvimento regional, como a do célebre Tennessee Valley Authority, começadaantes da Segunda Guerra Mundial, demonstraram o interesse de uma análisegeográfica. Enfim, a extensão planetária dos interesses americanos, o fato de ter devisualizar intervenções rápidas nos locais mais diversos, fizeram com que a pesquisageográfica fosse considerada uma ferramenta indispensável. As fotografias aéreas, esobretudo aquelas tomadas por satélites, fornecem centenas de milhares dedocumentos que é preciso analisar, "tratar”: a operação "Skylab", que durou semanas,acumulou uma documentação extraordinariamente mais variada e sobre um grandenúmero de fenômenos "naturais" e "humanos" para toda a superfície do globo, do quese conseguiria empregando milhares de geógrafos durante anos!

São razões comparáveis a isso que provocaram, faz pouco, o desenvolvimentode uma pesquisa geográfica global na URSS: até então, só a geografia física tinha alidireito de cidadania; mas a geografia humana que permaneceu ignorada, senãosuspeita, até esses últimos tempos, começa, também, a se desenvolver.

Na França, as pesquisas de geografia aplicada são cada vez mais numerosas,de uma dezena de anos para cá. Mas elas não dispõem dos recursos da geografiaamericana, que estão nas mesmas medidas do imperialismo americano. Sobretudo aspesquisas de geografia "aplicada" na França, na medida em que são os geógrafosformados na Universidade que se encarregam delas, se inscrevem num contextointelectual bastante diverso. É verdade, existe desde há decênios uma pesquisauniversitária em geografia, cuja finalidade e o processamento são bem outra coisa.Mas o que quer que digam alguns hoje, seu interesse não se mede apenas pelo papelque ela ocupa no ritual universitário, para ter acesso aos diferentes níveis dahierarquia. Evidentemente, em razão da indolência epistemológica na qual osgeógrafos, por muito tempo, se banharam, a escolha dos temas que desenvolve essapesquisa não era mais função do seu alcance teórico. Mais ainda, fechada no seupapel acadêmico, a geografia universitária não podia, de forma alguma, orientar suaspesquisas sobre problemas de uma grande utilidade prática.Para que tivesse sido de outra forma, para que ela se pergunte como poder-se-ia agirem tal região, como se poderia modificar a situação para ali atingir tais objetivos, teriasido preciso que se lhe colocasse esse gênero de problema, que se lhe traçasse umprograma de pesquisa em função de objetivos que se, lhe tivessem sido definidos.Mas este se, quem é? Em última instância, são aqueles que detêm o poder, osestados-maiores do aparelho de Estado ou das grandes firmas. Não é o geógrafo quefaz os arranjos, que empreende tal operação. Ele nada mais é do que aquele quejunta os conhecimentos necessários para a elaboração dos planos de "aménagement"e estratégias de ação, que são decididas, em definitivo, pela política. Durantedecênios os geógrafos universitários não foram solicitados (seja porque eles tinhamsido mantidos afastados dessas pesquisas, seja porque o poder não tenha julgadobom contratá-los); também suas pesquisas não tinham por finalidade mais do que osaber pelo saber desinteressado. Na falta de ter de procurar como se poderiaconduzir determinada ação em determinada região (quais são os diversos "dados"favoráveis e desfavoráveis, nisso se compreendendo aqueles que não pareciam termais interesse "científico", mas que a estratégia deve apreender), os geógrafos foramreduzidos a se perguntar como se estabeleceram historicamente e se combinam umcerto número de fatores físicos e humanos, na verdade somente aqueles aos quais seconvencionou atribuir um interesse "científico" (em função do exemplo dos mestres).Daí as enormes lacunas que caracterizam as descrições de inspiração vidaliana.

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As pesquisas aplicadas não têm, evidentemente, o que fazer de um grandenúmero de temas que a corporação dos geógrafos universitários julga cientificamenteinteressantes, e elas recaem sobre questões julgadas bem prosaicas. Também, numprimeiro tempo, foram elas consideradas como mais ou menos subalternas pelosmestres da Universidade e a maioria deles se absteve, de início, a se engajarpessoalmente. Mas agora existe de fato uma verdadeira competição para "descolar”contratos junto a diversos organismos governamentais e internacionais. Os créditosque eles dispendem permitem a certos mestres se rodear de uma "equipe", cujonúmero atesta a influência do patrão. Contudo, esses contratos não são somenteprocurados por causa dos meios financeiros que eles envolvem fora da Universidade,ou do prestígio que eles conferem. Eles permitem a elaboração de meios importantese a possibilidade de reunir uma informação abundante, o que constitui a condiçãopara poder, enfim, abordar certos assuntos, cujo interesse científico é certo.

O interesse crescente que os mestres da geografia universitária dedicam aosproblemas de geografia aplicada levou-os a perceber as insuficiências de ....seusestudantes.

De fato, a formação que estes recebiam na ambiência da geografia vidaliana (esobretudo em função das futuras tarefas de ensino) não os tornava mais aptos aparticipar utilmente de pesquisas de geografia aplicada. Também organismos como aDATAR, cuja atividade é, no entanto, em grande parte, consagrada à análisegeográfica, em função das políticas de "aménagement" do território, empregavamainda muito pouco os geógrafos e mais os economistas. É porque os mestres dageografia universitária abandonaram as velhas prevenções com relação às ciênciassociais para incitar seus alunos a se colocar como concorrentes dós sociólogos eeconomistas, imitando seus métodos.

Também os limites que se impunham, a reprodução do modelo vidaliano, abarreira que ele se esforçou por estabelecer do lado das ciências sociais estão hoje,cada vez mais amplamente transpostas sem que para tanto os dirigentes dessacorrente "modernista” tenham empreendido uma crítica profunda da geografia dita"tradicional" e sobretudo sem que eles venham colocar um certo número deproblemas epistemológicos fundamentais.

É nos Estados Unidos principalmente e em outros países onde a geografiaescolar e universitária não se desenvolveu muito, que as necessidades da pesquisaem geografia aplicada conduziram, em boa proporção, a um conjunto de reflexões ede trabalhos teóricos que, cedo, foi batizado "New Geography". Este foi apresentadopor seus participantes como o resultado de uma ruptura epistemológica em face dodiscurso literário e subjetivo da geografia "tradicional", e como passagem da geografiaà categoria das ciências exatas. De fato, essa "New Geography", que é chamadatambém "geografia quantitativa" é baseada numa formulação muito avançada emtermos de modelo matemático. Quanto mais o discurso da geografia universitáriapodia privilegiar o exame de alguns fatores julgados cientificamente interessantes epodia evocar suas combinações em termos qualitativos, tanto mais os métodos dageografia aplicada obrigam a levar em consideração um bem grande número defatores: é preciso não somente dispor, para cada um deles, de um grande número dedados estatísticos, repartidos convenientemente no espaço e no tempo, mas tambémestabelecer um sistema de ponderação de seus papéis respectivos, para chegar àrepresentação estatística do resultado de suas interações nos diferentescompartimentos que se traçam sobre a carta do espaço visado. Os métodos deanálise fatorial não podem ser elaborados para tratar de um grande número de dadossenão com o auxílio de poderosos computadores.

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Essa geografia "moderna" vinda do outro lado do Atlântico, orgulhosa de suasformulações matemáticas e do recurso sistemático aos computadores, tem bastanteprestígio. No clã de seus adeptos, pensa-se que as reticências que ela provoca entreos herdeiros da escola geográfica francesa, cujo renome fenece, só são devidas àfraqueza de seu nível em matemática. A geografia "aplicada", a geografia"quantitativa", a "New Geography", na medida em que elas se propaguem (na Françaelas não atingem ainda mais do que uma pequena minoria de universitários), irão porelas mesmas resolver os problemas da geografia?

GEÓGRAFOS MAIS OU MENOSPROLETARIZADOS PARA PESQUISASPARCELARES CONFISCADAS POR AQUELESQUE AS PAGAM

Para os geógrafos, encerrados até agora em sua função ideológica professoral, apesquisa aplicada é a possibilidade de se sentir útil para qualquer coisa, sentimentomuito profundo entre muitos deles. Têm eles o sentimento de se religarem com atradição dos geógrafos e de restabelecer, ao mesmo tempo, relações com o poder eligações entre saber e ação? É certo que a geografia seja uma representação domundo que os incita a brincar um pouco de demiurgo?

O que seduzirá a maioria dos geógrafos na geografia "aplicada" é a ocasião denão serem mais professores e de ter outros interlocutores além dos estudantes; ageografia "quantitativa", ainda com mais prestígio, teria mais adeptos se não fosse adificuldade com a matemática.

A multiplicação das pesquisas em geografia "aplicada", pela experiência queperseguem, tirando os geógrafos da função ideológica em que estão encerrados,poderia permitir a resolução dos problemas da geografia, quer dizer, não somente osproblemas dos geógrafos no plano da produção de idéias, mas também os problemasdo saber geográfico, o saber-pensar o espaço no seio da sociedade? No estado atualdas coisas, seguramente não. Em primeiro lugar, se podemos falar de maneira geralda "geografia aplicada" como de um conjunto de pesquisas, não se deve esquecer deque se trata, concretamente, de uma multiplicidade de pesquisas que não sãocoordenadas ao nível daqueles que as efetuam; e não é, de forma alguma, porqueelas se referem, o que é inevitável, a problemas extremamente variados e a espaçosde dimensões extremamente desiguais (desde a monografia da aldeia ou aexploração agrícola, até o estudo focalizando milhões de quilômetros quadrados,como para os problemas do Sahel), nem porque elas sejam efetuadas por um grandenúmero de pesquisadores que intervêm, freqüentemente, em tarefas relativamentelimitadas.

Bem entendido, esses pesquisadores dispõem de meios materiais e facilidadesde informação que não teriam para uma pesquisa universitária, mas, pelos termos docontrato que cada qual assinou, eles não estão mais livres para conduzir a sua

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pesquisa a seu bel-prazer, nem, sobretudo, para divulgar os resultados. Essespertencem, por contrato, à administração, ao escritório de estudo, à empresa, àorganização internacional, que se reservam o direito de os manter secretos, ou dedifundi-los de forma mais ou menos confidencial. Muito fraca é a proporção detrabalhos de geografia aplicada que são objeto de publicação.

Assim, a maior parte dos geógrafos que participam de pesquisas desse gêneroignoram-se uns aos outros e, sobretudo, o que é ainda mais grave, eles não podemcomunicar os resultados de suas pesquisas, nem comparar seu método. Certospesquisadores não sabem mesmo, muito bem, que utilização será efetivamente feitade seu trabalho. A experiência que pode tirar cada geógrafo engajado nesse gênerode pesquisa se acha, portanto, limitada e perde seu efeito de treinamento.

A pesquisa "aplicada” se torna um mercado, onde uns e outros tentam secolocar e se fazer bem, vistos pelos financistas. Não se fala nunca entre colegassobre os contratos que se obtiveram, pois não se quer fazer alarde sobre aremuneração que se ganhou, nem indicar a outros os meios e manobras seguidas.Toma-se cuidado, sobretudo, de não dar a conhecer os resultados de uma pesquisa,a menos que tenha sido devidamente autorizado pelo organismo que é proprietário,pois se teme, senão um processo, na melhor das hipóteses que essa indiscriçãocomprometa, para sempre, a oportunidade de obter outros contratos ... Mesmoquando pesquisadores estão reagrupados num grande organismo de pesquisaaplicada, como o ORSTOM (Ofício da Pesquisa Científica e Técnica de Além-Mar), ébem sabido que eles são submetidos a um controle muito rígido e que seus trabalhossão objeto de uma difusão bastante restrita.

Diversamente à pesquisa universitária, onde os resultados são normalmentepublicados no nome daquele que os obteve - e essa personalização das idéiasproduzidas vale muito, como para todos os intelectuais -, a pesquisa em geografiaaplicada coloca o pesquisador num status bem diverso, o de todos os assalariadosque perdem qualquer direito sobre os frutos de seu trabalho, desde que tenham sidoremunerados. Trata-se, no fundo, de uma espécie de proletarização. Claro, isto não étão sensível para aqueles que ainda são universitários de alto gabarito, mas o termonão é, de forma alguma, exagerado para os estudantes mais ou menos avançados,que são freqüentemente utilizados como mão-de-obra pelo "patrão-professor" queassinou o contrato. O sistema hierárquico universitário, construído na base derelações de domínio e dependência no plano do saber, começa a se combinar comverdadeiras relações de exploração.

Pouco a pouco, as atividades de pesquisa, no seu conjunto, tendem a nãopoderem mais ser realizadas senão em condições que proíbem a difusão dos seusresultados: é unicamente fazendo a pesquisa por conta de determinada organizaçãoque se pode não somente dispor de certos meios materiais, como, sobretudo, dapossibilidade de ter acesso à informação.

É verdade que um certo número de trabalhos de geografia aplicada que sebeneficiaram de meios consideráveis foram objeto de publicação pelo organismo queos financiou, sob o nome daquele que dirigiu as pesquisas (e sem esquecer aquelesque delas participaram). Tanto melhor, mas no mesmo rol se encontram praticamentedesqualificados trabalhos universitários que são executados individualmente, sem oauxílio de um pessoal numeroso, sem computador e, sobretudo, sem possibilidade deacesso a uma documentação que os órgãos de Estado reservam, cada vez mais, àspesquisas que eles podem controlar diretamente.

O desenvolvimento das, pesquisas de geografia quantitativa vai no mesmosentido; ela implica em massa de dados estatísticos e meios de tratamento muito

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dispendiosos. Uns e outros dependem, de fato, do aparelho de Estado ou dasgrandes firmas. O que implica em que essa "New Geography" quantitativista perto daoutra, a geografia tradicional, que parece insignificante, é praticamente proibida apesquisadores que não foram agregados por aqueles que detêm o poder.

Sem dúvida, a execução dos métodos de análise quantitativa tornaindispensável um esforço de purificação teórica. A utilização sistemática doscomputadores e de um estoque de dados consideráveis, reunidos para múltiplasfinalidades, permite dispor, rapidamente, de informações bastante precisas quanto àsconfigurações espaciais de um enorme número de conjuntos e subconjuntos e quantoàs suas relações. Mas o progresso dos métodos de análise espacial e dodesenvolvimento da geografia "aplicada" acarretam, contraditoriamente, umatransformação do estatuto dos geógrafos e do papel de suas pesquisas. A posiçãouniversitária de intelectual independente, que liga seu nome aos resultados de umapesquisa que ele escolheu. que ele realizou na qualidade de obra científica pessoal(e, às vezes, de obras-primas), que ele pode fazer ser conhecida mais ou menosamplamente, tende a ceder lugar a uma condição de empregado, de técnico engajadosob contrato, freqüentemente a título temporário, para efetuar anonimamente umapesquisa mais ou menos parcelada, por conta de um organismo público ou privado,que fixa o objeto e o quadro espacial e que detém os resultados, a título depropriedade exclusiva.

Enquanto os resultados das pesquisas científicas e técnicas, por exemplo, emfísica, química, eletrônica, etc., aí compreendidas aquelas que são efetuadas noquadro das empresas privadas, são objeto de numerosas publicações (após, bementendido, o depósito de patentes), o que permite a cada pesquisador situar suapesquisa, bastante especializada, no quadro da disciplina que lhe concerne (essacirculação das idéias corresponde, aliás, aos interesses das empresas), a grandemaioria dos trabalhos de geografia aplicada permanecem confidenciais, justamentepor se tratar de análise espacial.

De fato, tanto mais os fenômenos econômicos e sociais fazem o objeto deabundantes publicações e estatísticas, desde o momento que se trate de análisessetoriais, abrangendo o conjunto das circunscrições do Estado, mais a análise dasituação global de tal região, tal local (e mais ainda, os projetos relativos a tal parte doterritório) permanece confidencial, sob pretexto de que cada uma delas só interessa aum número muito reduzido de pessoas. Na realidade, é sobretudo porque osresultados dessas pesquisas são informações eminentemente políticas; não é tantopara evitar sua difusão nos meios "científicos" que essas informações permanecemconfidenciais, mas antes para evitar que os grupos de populações que vivem em tallocal, em tal região que foi objeto dessas pesquisas, tenham conhecimento delas porvários canais. Para as "enquêtes" colocadas em situações das quais não sepercebem todas as características e todos os fatores, os resultados dessas pesquisasteriam uma importância considerável; eles lhes permitiriam ver melhor o que se passaconcretamente na sua localidade e serem informadas daquilo que correria o risco deali se passar.

E por essa razão que todos esses negócios de geografia "aplicada", degeografia "quantitativa" não dizem só respeito aos geógrafos (e àqueles que osempregam) mas a todos os cidadãos. Para o desenvolvimento de uma sociedadedemocrática, é grave que seja somente a minoria no poder que saiba como a situaçãose transforma concretamente nas múltiplas partes do território, e como se podeintervir nessas mudanças.

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Não é o essencial da geografia "aplicada" ou da geografia "quantitativa" quedeve ser colocado em causa; a orientação de uma, e os métodos da outra sãoindiscutivelmente positivos e, aliás, não é possível frear o seu desenvolvimento. Massão suas conseqüências políticas inevitáveis que devem ser denunciadas: o fatodelas serem orientadas em função das preocupações exclusivas do poder e que seusresultados sejam confiscados por aqueles que detêm as alavancas de comando dasorganizações burocráticas e financeiras dá, de um só golpe, um papel particularmenteimportante à pesquisa universitária (apesar de suas insuficiências), na medida em queseus resultados são não só publicados e discutidos entre "especialistas", mas podematingir, por diversos canais, meios bem mais amplos.

Mas não diríamos mais que é inevitável, desde que a geografia produza umsaber estratégico, que a minoria no poder usurpe esse saber? Tradicionalmente,antes do desenvolvimento da "geografia dos professores", os geógrafos nãodependiam diretamente dos "estados-maiores" e os resultados de seus trabalhos nãoprovinham do segredo mais estrito? Evidentemente! Mas tratava-se de técnicos pouconumerosos, militares sobretudo.

Hoje, é bem diferente: os "estados-maiores” militares, administrativos,financeiros possuem ainda seus próprios serviços de pesquisas, de documentaçãogeográfica, encarregados de tarefas as mais particulares. Mas existe agora umnúmero bem maior de geógrafos que antigamente tinha, e, sobretudo, a maioria delestem, na sociedade, o estatuto de universitários, de cientistas, e eles não dependemmais, portanto, direta e totalmente dos "estados-maiores”. Levando-se emconsideração o aumento do número de estudantes, o efetivo dos geógrafosensinando na Universidade aumentou rapidamente nos últimos anos - na França elespassaram de 23 em 1920, 71 em 1955, para 544 em 1972 e 1157 em 1984 (aícompreendidos os pesquisadores CNRS - Centro Nacional de Pesquisas Científicas) -e são eles que efetuam uma boa parte das pesquisas de geografia aplicada, quecomandam os diversos serviços da administração ou organismos privados. Essesgeógrafos, cercados por discípulos mais jovens, estudantes mais ou menosavançados, se encontram no bojo da Universidade; esta não é mais, como outrora,mera máquina de fabricar professores; o aumento do número de estudantes, o papelda mídia, a evolução política fizeram também da Universidade um dos principaislocais de discussão e de contestação. É portanto necessário que os geógrafos tomemconsciência dos problemas que coloca a evolução da pesquisa: por causa delespróprios, dessa tendência à "proletarização" e também, para todos os cidadãos, dasconseqüências da usurpação dos resultados em proveito de poucos.

É imprescindível que os geógrafos tenham relações com o poder e tais relaçõessão necessárias para que a geografia não seja tão-só um discurso ideológico e queela apareça como saber estratégico. Mas essas relações podem não sernecessariamente servis; elas podem ser contraditórias e, para certas pessoas,antagônicas.

PARA UMA GEOGRAFIA DAS CRISES

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Para certas pessoas, colocar-se o problema do saber e do poder os conduz aevocar a necessidade de uma mudança radical e absoluta de toda a sociedade e, emparticular, a supressão de uma das formas iniciais da organização social: a divisão dotrabalho. Isso dito, como não é para amanhã, eles não fazem mais nada.

Mas é preciso não esperar tanto as condições de uma mudança total e tentarfazer desde já aquilo que se pode. Isso é particularmente bastante importante apropósito da geografia, porque ela pode ser um saber estratégico e porque semultiplicam, rapidamente, em proveito do poder, as pesquisas geográficas cujocaráter estratégico é evidente.

É preciso se perguntar por que a geografia "aplicada" se desenvolve cada vezmais desde cerca de dois ou três decênios, aproximadamente. Não é somente oresultado de uma moda dos dirigentes ou o efeito do zelo dos geógrafos em contribuirpara o bem público,

Sem dúvida pode-se dizer que, desde que se fizeram traçados de estradas,ferrovias, ou que se criaram cidades, fez-se geografia "aplicada”, e são sobretudomilitares, engenheiros, homens de negócios que trabalharam um conjunto deinformações, de cartas e de raciocínios para dominar o espaço e ali agir. Essa fase,que corresponde à descoberta e à organização de espaços até então mal conhecidose mal controlados por aqueles que detinham o poder está quase terminada na maioriados países. Ela durou até o fim do século XIX nos "países novos", até a metade doséculo XX na URSS, mas ela bate em cheio atualmente nos países do TerceiroMundo.

Hoje, na maioria dos países, as pesquisas de "geografia aplicada" sedesenvolvem principalmente em espaços onde se manifestam, recentemente,dificuldades de ordem variada. Essa "manifestação das dificuldades" é umaexpressão ambígua que envolve relações complexas de causalidade: seja que ogoverno se ache levado a "considerar” fenômenos já antigos, em razão de seuagravamento brutal, em decorrência de uma tomada de consciência quase geral; sejaque os dirigentes se advirtam de que uma certa região "conhece" tal problema"específico", que é, na realidade, bem mais geral. Sempre acontece que as pesquisasde geografia aplicada são direta, ou indiretamente, função de "problemas", de"dificuldades", de "mal-estares", de "desequilíbrios", que se trata para o governo deresolver, de transpor. É de se notar que essas pesquisas não são, diretamente, umatarefa dos burocratas, dos políticos ou dos práticos, mas são da alçada dos"especialistas", geógrafos (transformados, às vezes, em planejadores espaciais) quetêm um estatuto de “cientistas". Esses são, numa grande proporção, externos aosorganismos políticos e administrativos, para quem esses estudos são realizados, eque terão, ao menos em princípio, de tomar decisões, em conseqüência.

Esse recurso a "cientistas" que não têm de tomar decisões políticas, ou decidirsobre prescrições técnicas, traduz entre aqueles que têm o poder (tudo de uma vez):

- a necessidade de ter uma idéia precisa da situação quando dificuldades novasaparecem, mas das quais se entrevêem mal as causas;

- a idéia de uma análise "científica” pode, sem dúvida, ajudar a encontrar umasolução e que um melhor "aménagement" do espaço pode ser um remédio;

- o cuidado de dissimular, sob razões de interesse geral expostas cientificamente(por exemplo, as desigualdades regionais), estratégias bastante lucrativas para certosinteresses particulares.

Há também a considerar que, na maioria dos países, os problemas e asdificuldades proliferam e se diversificam, de acordo com os lugares. Como as coisasevoluem depressa, é preciso fazer novas enquêtes.

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É preciso notar que essas pesquisas que se multiplicam são conduzidasseparadamente, em toda uma série de lugares e de regiões, sobre problemas bemdiversos, por geógrafos que se ignoram, para organismos diferentes que, estes sim,estão direta ou indiretamente em contato uns com os outros. De fato, essas pesquisasestão ligadas à multiplicação das tensões, das dificuldades disparatadas, dosdesequilíbrios variados. Elas se manifestam em regiões cada vez mais numerosas naface do globo, não uniformemente, mas de uma forma cada vez mais diferenciada. Amelhor maneira de se tomar conhecimento, globalmente, do aparecimento e dagravidade de todos esses sintomas negativos, na maioria dos países, é a de colocar ahipótese de uma crise que adquire formas diferentes segundo os lugares. Não se tratade reduzir essa crise global e de longa duração à crise econômica atual, cujasmanifestações começaram a aparecer no início dos anos setenta. Esta agrava aquela.Segundo os casos observados e as tendências ideológicas, evoca-se de início, comomanifestação capital dessa crise de conjunto:

- seja a destruição da biosfera, como conseqüência de um crescimento industrialque faz bola de neve desde há um século e que tomou uma amplitude espetacularapós a Segunda Guerra Mundial e até o início dos anos setenta;

- seja a degradação das potencialidades de culturas permanentes nas porçõesdo globo onde vive a maior parte da humanidade;

- seja o desencadeamento, de trinta anos para cá num grande número depaíses, de um crescimento demográfico prodigioso que irá fazer quadruplicar onúmero de homens, em menos de um século;

- seja a extensão e o inchaço de enormes aglomerações urbanas, onde seconcentram tanto os bens, como os serviços e as populações;

- seja a acentuação dramática das desigualdades entre os homens que vivemnas diferentes regiões do mundo, entre os quais as relações de domínio, dedependência, são cada vez mais estreitas;

- seja o confronto direto ou indireto das grandes potências que procuramexpandir os espaços sobre os quais se exerce a sua hegemonia, e que acumulam,sem trégua, um formidável potencial de destruição.

Mas todos esses problemas, todos esses perigos, novos ao menos pelaamplitude que acabam de tomar, aparecem como se estivessem cada vez maisligados uns aos outros. Eles se impõem como os sintomas capitais de uma criseglobal. Mas, por mais catastróficas que possam ser, em certos lugares, tais sintomasnegativos não estão menos ligados a transformações positivas e a um conjunto deprogressos: o recuo da mortalidade e das doenças, os progressos da alfabetização, odesenvolvimento científico e técnico, a conquista da independência nacional para umgrande número de povos dominados, o recuo dos métodos, os mais arcaicos, deopressão, os progressos do socialismo, mesmo se estabelecem, em nome doprogresso, formas de autoridade mais eficazes.

Essa crise global resulta do desenvolvimento de várias grandes contradições;não é, sem dúvida, o Apocalipse, mas uma crise dialética global, de dimensõesplanetárias, que começou a se esboçar com a revolução industrial na Europa e seampliou na medida dos desenvolvimentos do sistema capitalista; ela não deixou deafetar, por contragolpe, os países socialistas que, de acréscimo, conhecem suascontradições específicas.

Essa crise dialética se acelera, não somente no tempo, como também noespaço. Ela não se manifesta uniformemente na superfície do globo mas, bem aocontrário, ela aí toma formas cada vez mais diferenciadas, embora cada vez mais

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ligadas umas às outras. Esse processo de diferenciação está ainda muito malanalisado. Faz-se alusão a ele, constatando, de modo extremamente esquemático, oscontrastes que existem entre os países ditos "desenvolvidos" e os países ditos“subdesenvolvidos". Mas essa diferenciação, que está ligada aos efeitoscontraditórios de fenômenos relacionais cada vez mais rápidos e estreitamenteligados, se manifesta não somente em nível planetário, mas no bojo do TerceiroMundo, como no bojo do grupo dos países mais industrializados e também no quadrode cada Estado, como no quadro das diversas "regiões", que é útil distinguir paracada um deles. Essa diferenciação não se marca somente por indicadoreseconômicos, os quais, após os economistas, adquirimos o costume de referir. Ela semanifesta também no plano de cada um dos diferentes grandes tipos de contradiçõesque parece útil distinguir (por exemplo, as contradições demográficas, as contradiçõesecológicas, as contradições políticas ...). Sua propagação, suas interações, não seefetuam somente sobre formas de organizações econômicas e sociais já bastantediferenciadas, mas também num espaço onde a diversidade das condições naturais,ecológicas, é ainda mais complexa, em razão das transformações provocadas pelosmétodos de exploração que ali foram praticados. Para perceber os diferentesaspectos dessa superposição, cujos elementos conhecem ritmos de evolução mais oumenos rápidos, é preciso distinguir vários níveis de análise espacial, pois ascontradições não se manifestam da mesma forma, quando as abordamos a nível local(tal como as pessoas as suportam diretamente) e sobre muitos espaços mais amplos,onde elas devem ser apreendidas de maneira mais abstrata.

Para os geógrafos que se dão, ou se darão, à tarefa de contribuir para acompreensão desta crise global, percebendo a diversidade de seus aspectos, asmotivações não são estritamente "científicas". Essa preocupação com os problemascapitais de nosso tempo é, evidentemente, estreitamente ligada a preocupaçõespolíticas. Há também a preocupação de ser útil, em qualquer coisa, aos homens.Trata-se, de qualquer forma, de uma pesquisa científica militante, quer ela se inscrevano quadro universitário, quer no da geografia aplicada.

Hoje, mais do que nunca, o saber é uma forma de poder, e tudo que diz respeitoà análise espacial deve ser considerado perigoso, pois a geografia serve, primeiro,para fazer a guerra. Não somente no passado mas hoje, talvez mais do que nunca:assim, por exemplo, são as pesquisas da "New Geography", onde os geógrafos deextrema-esquerda tiveram um papel muito importante, o que tomou possível aelaboração das técnicas de cartografia automática e sua aplicação naquilo que sechamou, no Vietnã, de "guerra eletrônica": o computador estabelece, de modo quaseinstantâneo, as cartas de todos os movimentos que foram detectados porinstrumentos automáticos. Isso permite intervenções extremamente rápidas.

Em si mesma, a análise das formas de diferenciação espacial da crise constituium saber estratégico extremamente útil, portanto extremamente perigoso. Osdirigentes das grandes firmas e dos grandes aparelhos de Estado, capitalistas, apesarde sua repugnância ideológica com relação ao marxismo, são também "realistas".Eles se lembram, por exemplo, de que puderam interromper as crises clássicas desuperprodução, a partir do momento em que o Dr. Keynes se apoderou implicitamenteda análise de Marx, para propor uma estratégia "anticíclica", e eles perceberam que areforma agrária, reclamada desde há muito pelas forças de esquerda em numerosospaíses, poderia não ser assim tão má. De fato, os dirigentes dos aparelhos de Estadoe dos grandes grupos capitalistas têm cada vez mais necessidade de uma análisemarxista, nem que seja para, no mínimo, compreender o "terreno" e as intenções doadversário. Mas lhes é bem difícil, por razões evidentes de estratégia ideológica,

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incitar aqueles que trabalham para eles a assimilar o marxismo para poderem analisareficazmente as situações, e suas evoluções contraditórias. É porque, para aquilo quefoi convencionado chamar os estados-maiores, é necessário, senão apelar parapesquisadores marxistas, ao menos deixá-los produzir para utilizar seus trabalhos.

É, mais ou menos conscientemente, para tentar conjurar essa "utilização" desuas pesquisas que, desde há alguns anos, geógrafos, sociólogos e antropólogosmarxistas fazem debitar suas obras por proclamações anticapitalistas eantiimperialistas, as mais radicais, como se elas pudessem dissuadir os agentes dopoder de levar em consideração os resultados dessas pesquisas, que vêm após taispropósitos revolucionários. Mas essas proclamações nada mudam o fato de que aspesquisas em ciências sociais e em geografia fornecem às minorias dirigentesinformações tanto mais preciosas se procederem de uma análise marxista. Ainda quenão seja inútil, é depressa proclamado em substância: "Abaixo a geografiatecnocrática!" Contudo, é difícil não fazê-lo. De fato, não se trata tanto de umproblema moral que se colocaria somente ao nível do pesquisador nas suas relaçõescom o poder, como do controle, do reagrupamento pela minoria no poder, deconhecimentos que concernem a todos os cidadãos.

ESSES HOMENS E ESSAS MULHERES QUESÃO "OBJETOS" DE ESTUDO

Os geógrafos - ao menos aqueles que se interrogam por razões políticas, moraisou religiosas sobre o papel que desempenham em relação a outros homens - devemperceber que estão numa grave contradição.

De fato, o problema não está somente entre o pesquisador e o poder, mas entreo pesquisador, o poder e aqueles que vivem no espaço ao qual se refere a pesquisa,isto é, os homens e as mulheres que são, como se diz, "objetos" de estudo. Ageografia deve estar bem consciente de que, analisando espaços, ela fornece aopoder informações que permitem agir sobre os homens que vivem nesses espaços. Acontradição pode ser esquematizada da seguinte maneira: quanto mais uma pesquisaestiver em condições de apreender as realidades (e, em particular, mais ela percebeas diversas contradições, referindo-se mais ou menos explicitamente a uma análisemarxista), isto é, quanto mais o valor científico dessa análise for grande, mais o poderdisporá de informações preciosas que lhe permitirão agir de forma eficiente sobre ogrupo estudado: teoricamente, é para o bem desse último ou no interesse geral, masde fato, na maioria das vezes, não é nada disso.

O geógrafo deveria, portanto, se perguntar para que pode servir e em quecontexto político se inscreve a pesquisa que ele empreende ou que lhe pedem paraempreender, ele deveria mesmo recusar, ao menos recusar dar a conhecer osresultados, nos casos em que, manifestamente, os dados que ele fornece servempara espoliar ou arrasar uma população, em particular, aquela que ele estudou.

É preciso que o geógrafo perceba que ele é, de fato, não um espectadorimpotente, mas um agente, de informações, quer queira, quer não, a serviço do

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poder, e suas proclamações revolucionárias ou suas preocupações morais nãomudarão nada aí. É preciso que ele perceba que sua pesquisa pode ter gravesconseqüências, mesmo se ela apresenta um caráter parcial (pois seus resultadospodem ser combinados aos de outras pesquisas), mesmo se ela só aborda ascaracterísticas físicas de um espaço (foi de acordo com as conclusões degeomorfólogos quanto à erosão que, em numerosos países, centenas de milhares depessoas foram expulsas dos lugares onde viviam, para fazer reflorestamento,trabalhos de defesa e de restauração dos solos). O geógrafo deve se lembrarconstantemente que a geografia é um saber estratégico, e que um saber estratégico éperigoso.

Esse problema moral e sobretudo político deveria ser inseparável da práticacientífica. Ele não se coloca somente para aqueles que são mais, ou menos,influenciados pelo marxismo, mas para todos aqueles que se interrogam sobre suaprofissão e o papel que ela tem na sociedade. Cada geógrafo deve tomar consciênciade suas responsabilidades com respeito aos homens e mulheres que vivem noespaço que ele estuda e que são, direta ou indiretamente, "objeto" de sua pesquisa.Quanto mais o espaço apreendido for amplo, quanto mais o grupo1 que eles formamfor numeroso, mais ele é visto em escala pequena, de modo abstrato, por meio dedados estatísticos, e mais as responsabilidades do geógrafo parecem se diluir: houvee haverá tantas outras pesquisas sobre essa região ... ; é então sua consciência dosproblemas políticos, a nível geral, que pode levá-lo a não negligenciar asconseqüências políticas que podem ter seus trabalhos. Nós voltaremos a falar disso.

Em contrapartida, quando a pesquisa é conduzida em grande escala, quando elaaborda um espaço relativamente restrito, onde vive um grupo de homens e demulheres relativamente pouco numeroso, o geógrafo não deveria poder camuflar suasresponsabilidades. É contudo o que ele faz, o mais freqüentemente, uma vez querelações pessoais se estabeleceram entre ele e os personagens da enquête, pois elelhes deve uma grande parte dos resultados de sua pesquisa: todo geógrafo "noterreno’ (esse termo tem um valor muito forte para os geógrafos, assim como para osmilitares) sabe muito bem que ele não pode conduzir sua pesquisa sem a simpatiadas pessoas que vivem ali; e ele se esforça, aliás, por suscitar essa simpatia: nãosomente eles respondem às suas questões, eles lhe dão explicações, eles o guiamem direção aos locais que quer ver, mas também eles o acolhem, abrigam e repartemcom ele o que têm para comer, dando-lhe a melhor parte. Nessa fase do trabalho"sobre o terreno", o geógrafo se acha largamente dependente dos homens quehabitam esse espaço. Mas é na qualidade de "objeto" de estudo que ele vai trataresses homens, como esse espaço, sobretudo quando vai tomar consciência de todoesse concreto, de todas essas pessoas que ele conhece, em abstrações, emnúmeros, em cartas, em dados.

O geógrafo deve se tomar consciente de que esses dados, resultado de suapesquisa, permitirão à administração, aos dirigentes dos bancos, o caso esporádicodo exército.... em síntese, ao poder, melhor controlar esses homens e essas mulheresque foram o objeto de suas investigações, melhor dominá-los, espoliá-los e, em certoscasos, arrasá-los. Mas a tomada de consciência das responsabilidades é maisusualmente enganada pelo sentimento de satisfação - no fundo é uma sensação depoder - que dá a construção de um abstrato que apreende um espaço e as pessoasque ali vivem.

De fato, a simpatia, largamente compensada de volta, que lhes dedicou ogeógrafo quando estava entre eles, é um abuso de confiança. Mas não se trata deficar com sentimentos de dúvida ou de remorso, mas sim de ver como vencer essa

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contradição. Uma vez que a pesquisa do geógrafo leva à produção de um saberestratégico, uma vez que pode aí haver contradição (em maior ou menor lapso detempo) entre os interesses da população que foi objeto das pesquisas e os de umaminoria que está em condições de utilizar, em proveito próprio, os resultados dessaspesquisas, é preciso encontrar o meio para que essa população disponha, também,desse saber estratégico, a fim de que possa melhor se organizar e se defender.

Numa primeira abordagem esse projeto pode parecer perfeitamente utópico, ecertas pessoas não deixarão de caçoar. Como uma "população" poderia, em conjunto,se interessar por conhecimentos científicos, quando nem mesmo poderia assimilá-los? Se se quer transmitir a essas pessoas um saber que lhes concerneespecificamente, o que lhes ensinar que já não saibam melhor do que ninguém? Defato, é possível sustentar que esse projeto não é asi, tão utópico como possa parecere que ele pode, sem dúvida, se realizar em numerosos casos; não se trata de tentar"experiências", nem tratar de conseguir aplicar uma idéia por algumas receitas deanimação de grupo. O esboço desse projeto decorre da experiência adquirida poralguns num certo número de ações onde eles foram engajados, por razões diversas(pesquisa científica ou ação militante) sem idéia a príori.

Depararam-se por acaso (e não foi sem surpresa) como grupos de homens que,colocados em condições tão diferentes, como, por exemplo, as dos camponesesafricanos e dos operários franceses, tivessem podido, cada qual utilmente, elaborar,em ações políticas, antes de tudo, qualquer que seja sua formulação, um saberresultante de uma pesquisa que lhes dizia respeito diretamente, e da qual eleshaviam, de fato, participado estreitamente

Pois, não se trata de proceder primeiro como se faz habitualmente à "extração"de um saber a partir de um grupo "objeto", submetido à enquête, observado, sondado,questionado em função de uma problemática que ele ignora e, em seguida, de osinformar sobre os resultados obtidos por esses procedimentos clássicos da pesquisa,de comunicar a eles as informações que se podem "retirar" dos questionamentospelos quais passaram. É sintomático que a maioria das expressões comumenteutilizadas para falar das ações da pesquisa se aparentem ao vocabulário da extraçãomineira ou da enquête policial. No seu limite, e é apenas uma caricatura, não se tratade enviar ao chefe da aldeia, quando ele nem mesmo sabe ler, ou ao responsávelsindical, a separata do artigo, ou o livro que se redigiu, ao voltar para casa. Ainda queessa maneira de fazer - de acordo com o ritual das trocas entre universitários - seja jámelhor do que nada, apesar de sua ingenuidade (pensa-se que as pessoas lêemesses escritos redigidos segundo os cânones do estilo científico) e sua ineficácia. Já éconsiderar um pouco as pessoas com as quais se viveu, como homens e mulheresreais, e não "objetos de conhecimento".

Como os textos geográficos (e também os que procedem das ciências sociais)seriam diferentes se o pesquisador devesse, antes de começar a redação final, ler oque produziu e explicá-lo diante das pessoas que vivem no espaço que ele estudou eque são, de um modo ou de outro, concernentes à sua pesquisa! Mas, na maioriadas vezes, as pessoas que acolheram o geógrafo, que responderam às suasmúltiplas questões, que o guiaram no terreno, que o ajudaram de várias formas, nãosaberão jamais o que dali retirou; em contrapartida, ele comunicará diretamente (ounão) todos os dados que obteve àqueles que os utilizarão para melhor elaborar asforças de que dispõe sobre o território que ele estudou; sobre os homens e asmulheres que ali vivem e dos quais a pesquisa revelou, expôs as características, emparticular aquelas que revelam as maneiras pelas quais eles se organizamespacialmente. Não é somente metáfora dizer que, por esse fato, esse grupo que foi

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objeto de pesquisa está ainda mais exposto às formas de agir das forças econômicase políticas que estão poderosamente organizadas sobre espaços bem maisconsideráveis. Se bem que estejam às vezes longe, aqueles que dirigem essas forçasdispõem sobre esse grupo, para agir sobre ele, de informações, mais eficientes doque o grupo tem de si próprio. Pois esse conhecimento implícito maquinal as diversasmaneiras pelas quais o grupo utiliza seu território - é ainda estreitamente confundidocom práticas usuais comuns a todos os membros do grupo e circunscrito a um espaçomais ou menos limitado. A despeito de sua riqueza, enquanto ela não tenha sidotransformada, esse saber espontâneo não pode lhes servir para compreender eenfrentar situações novas que resultam de empreendimentos dirigidos do exteriorsobre espaços bem mais vastos, em função de objetivos ou de estratégias que sãoescondidos da maioria. Mas em boa parte é desse conhecimento, até então não-formulado, não dissociado da vida cotidiana, que o geógrafo vai extrair, por suaenquête, em função de uma certa problemática, dados que, uma vez formulados,formalizados, cartografados se tornarão instrumentos eficazes para ações que serãoempreendidas sobre esse grupo segundo estratégias e objetivos que ele ignora.Estando o geógrafo, consciente ou não, são essas estratégias e esses objetivos queorientam, em grande parte, a problemática que ele elabora e que o incita a seinteressar por isto e não por aquilo.

É PRECISO QUE AS PESSOAS SAIBAM OPORQUÊ DAS PESQUISAS DAS QUAIS SÃO OOBJETO

Para que os homens e as mulheres que vivem num espaço que vai ser objeto,tal como eles Próprios, de uma pesquisa geográfica, possam ter, também,conhecimento dos resultados que ela fornecerá, de nada serve proporcionar cursos,inoportunamente, para lhes ensinar o que eles são; é preciso que eles sejam postosao corrente das razões pelas quais essa pesquisa foi encetada, do que vai, talvez, sepassar no lugar onde moram, com a atenção voltada para o que se passa alhures,levando em consideração os projetos do poder. Uma das primeiras regras dessadeontologia do geógrafo sobre o terreno, que seria preciso impor para que ele cessede ser um espião e evitar que seja um canalha, mais ou menos inconsciente, seriaque ele explicasse por que está ali, por que se interessa por isso e por aquilo, pordeterminada forma de terreno, ou determinada maneira de irrigar a terra, etc., e aspessoas estarão, logo, extremamente interessadas pelo porquê dessas investigações,pois elas percebem, rapidamente, que isso lhes diz respeito, no mais alto grau. Épreciso pouco tempo para que a análise geográfica lhes apareça, de fato, no seupapel estratégico. Evidentemente essa maneira de agir coloca problemas, pois ogeógrafo vai aparecer como agente do poder. Mas o problema do poder não secoloca mais para ele no plano do caso de consciência após o término de suapesquisa (quem irá utilizar seus resultados?). O problema está colocado desde oprincípio e, em termos finalmente políticos, no bojo do grupo "objeto da pesquisa" que

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vai discuti-lo e se inteirar dos projetos do poder e das contradições que elesacarretam. O geógrafo, pelo fato de ter começado a expor suas finalidades, deverá seexplicar e definir suas posições em face às contradições que arrisca provocar aexecução dos projetos do poder.

Sem dúvida, ele está certo de que, uma vez revelados os fins de certaspesquisas ao grupo que deve ser o objeto delas, estas não poderão se efetivar e ogeógrafo deverá partir. Em certos casos, resultantes de mal-entendidos, seráevidentemente uma pena. Mas, na maioria das vezes, isso será tanto melhor e certosgolpes maldosos não poderão mais acontecer assim tão facilmente. Se refletirmosbem sobre isso, é perfeitamente justo que um grupo recuse ser estudado e que seoponha a que se analise a maneira pela qual utiliza o espaço onde vive.

Em contrapartida, os resultados de uma pesquisa da qual um grupo decidiuparticipar, com conhecimento de causa, são de uma extrema riqueza, tanto do pontode vista propriamente científico, como no plano cultural e político. Um certo númerode exemplos, tanto nas sociedades altamente industrializadas, como nas do TerceiroMundo, prova que tudo isso não é utopia. Por causa mesmo do carátereminentemente estratégico do raciocínio geográfico, desde que ele esteja ligado auma prática, grupos relativamente pouco numerosos (de algumas centenas a algunsmilhares de pessoas), conscientes de ocupar um espaço delimitado sobre o qual elestêm direitos, podem participar verdadeiramente de uma pesquisa sobre as formas deorganização espacial de suas atividades e sobre as mudanças positivas e negativasque são suscetíveis de ali serem operadas, desde que eles hajam compreendido queo saber que dali retiram vai lhes permitir se organizar e se defender melhor. Essesaber resulta, em larga escala, da transformação da explicação, sob o efeito dasquestões do geógrafo, deste conhecimento coletivo da situação local, que até entãonão havia sido formulada. Mas o saber integra também as informações fornecidaspelo geógrafo sobre o que se passa alhures e sobre os fenômenos que não podemmais ser apreendidos senão levando em consideração espaços bem mais extensos.

Bem entendido, esse saber não passa ao grupo no seu conjunto, como tambémnão é o grupo em sua totalidade que participa dessa pesquisa, mas uma parte dosseus membros, considerando-se suas estruturas e suas contradições, essas podemser muito variadas e o geógrafo deve levá-las em consideração, por causa mesmo daprópria diversidade dos grupos que ele pode ser levado a distinguir para uma análiseem grande escala. É preciso, evidentemente, que cada "grupo" tenha uma relativacoerência e consciência da sua maior ou menor autonomia social e espacial, no seiode formações sociais mais amplas e espaços mais extensos.

Os problemas que coloca a pesquisa geográfica quanto à utilização dos seusresultados são bem diferentes quando ela aborda espaços bem mais vastos (regiões,Estados) e sobre efetivos muito numerosos para que o geógrafo possa apreendê-losde outra forma além da forma abstrata e estatística. Mas para essas pesquisas emescala pequena, cujos resultados são, também, estrategicamente muito importantes,o problema da responsabilidade dos geógrafos não deveria deixar, da mesma forma,de ser colocado; mas em termos coletivos, em razão da multiplicidade das pesquisasque emanam de um grande número de pesquisadores. A transmissão, em prol doque se convencionou chamar as "massas", de um saber, cuja função política églobalmente muito importante, não pode deixar de ser um processo a longo prazo; elesó pode se efetuar sob a influência daqueles que têm uma ação política se eles sãolevados a fazer prova de vigilância com respeito aos problemas espaciais e sob ainfluência de geógrafos do ensino secundário, na medida em que eles tomaramconsciência da mistificação que reproduzem. O papel de uns e outros é fundamental.

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Trata-se de quebrar essa indiferença geral com respeito à geografia, consideradacomo discurso pedagógico maçante e inútil, de denunciar sua função ideológicamistificadora, de chamar à vigilância contra suas afirmações de evidência, dedemonstrar, por mil exemplos, a importância do raciocínio geográfico na qualidade desaber estratégico. Mas chegar a isso parece ser uma sedução, quando os alunos nosliceus não querem mais ouvir falar de geografia e os militantes, que também suportama geografia na escola, só encaram a análise marxista em termos históricos e nãoestão nada interessados na dimensão geográfica dos fenômenos políticos. Noentanto, nem tudo está perdido. Bem ao contrário.

CRISE DA GEOGRAFIA DOS PROFESSORES

A crise da geografia dos professores indica, talvez, que o écram de fumaçacomeça a se dissipar e que a importância estratégica dos problemas espaciais estáem vias de aparecer a um número maior de geógrafos. "A medida cheia", nos liceus ecolégios, com respeito à geografia decorre, evidentemente, do mal-estar geral doensino; mas porque a geografia é particularmente posta em causa? Trata-se de umfenômeno, acima de tudo, recente: no passado, essa disciplina suscitava uminteresse seguro, apesar das práticas pedagógicas que parecem hojesurpreendentes. Depois ela provocou um certo aborrecimento que se ampliou,embora os manuais de geografia sejam cada vez melhor ilustrados e tomem mesmo aforma de revistas. Desde alguns anos, a rejeição se manifesta por atitudes que nãotomam a vida divertida para os "profs. de geo". Alguns vêm acusar a televisão, ocinema, de concorrência desleal, de "demagogia pedagógica” e de ser a causa deseus infortúnios. Será por que a mídia mostra as imagens de todos os países, detodas as paisagens de tal forma sedutoras que os alunos, entediados, não querem"mais fazer geo" em classe? Mas é mesmo a geografia-espetáculo que é a causaprincipal das dificuldades dos professores de geografia no ensino secundário? Nunca,contudo, se compraram tantos "guias" e enciclopédias geográficas (sobretudo aquelasque aparecem sob forma de periódicos), embora essas obras de sucesso são sejammuito diferentes, na forma e no conteúdo, dos execrados manuais.

Bem mais do que a geografia-espetáculo, com o desenrolar de suas paisagens,é a atualidade que os jornais, o rádio, a televisão relatam, dia após dia, e a politizaçãocrescente dos jovens que são as causas principais dessa crise da geografia.

A atualidade é feita de uma sucessão de acontecimentos ocorridos nos quatrocantos do mundo e sua evocação obriga a recolocá-los nos países onde acabam dese produzir, mas também numa cadeia mais ou menos complexa de causalidades queé, de fato, um raciocínio geopolítico. Às vezes é até mesmo um acontecimento degeografia física que se torna fenômeno político: o tufão de Bengala, os tremores deterra do Peru, a seca no Sahel.

É justamente o interesse crescente - e não o desinteresse, para o que se passano conjunto do mundo, que determina - em grande parte, as dificuldades dosprofessores de geografia. Sem dúvida, no caso da geografia, a relação pedagógicaveio a ser transtornada, pois o mestre não tem mais, como outrora e como aindaacontece com outras disciplinas, o monopólio da informação. Antigamente o curso de

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geografia, mesmo com um discurso-catálogo que pareceria agora uma caricaturainventada por estudantes esquerdistas, suscitava interesse, porque ele era o único atrazer a informação; hoje, mestre e alunos recebem ao mesmo tempo,simultaneamente com as atualidades, uma massa de informações geográficas,caóticas. Geografia em pedaços, o ocasional, o espetacular, sem dúvida, masgeografia de qualquer forma. Por que em classe os alunos não querem mais ouvirfalar de geografia? Por causa da repetição, do "já dito"? Seguramente, não.

A atualidade dos mass media é um discurso político impregnado derepresentações e de causalidades que, no fundo, são geográficas e estas sãoargumentos políticos. Contudo a geografia dos professores continua, como nopassado, a expulsar a dimensão política. Ora, essa expulsão não é voluntária, elavale tanto para o "prof. reac."* como para aqueles que ensinam e que são, além disso,militantes de extrema-esquerda. Enquanto o discurso histórico é espontaneamentepolítico (de direita ... de esquerda ... ), na geografia, o mesmo professor elimina opolítico, e isso por razões que ele não percebe, pois elas são difíceis de atingir. Paraaí chegar, seria preciso que ele pudesse colocar os problemas políticos em funçãodas múltiplas configurações espaciais e nas diversas escalas da especialidadediferencial. Mas a formação que ele recebeu na Universidade, com os conceitos-obstáculos da geografia vidaliana o impede e a falta de referência a uma práticaqualquer, como ali incitam os programas de ensino, faz com que ele possa continuara ignorar esse bloqueio. Quando ele quer falar política, ele não consegue fazê-lo semromper com o discurso que ele mantém na qualidade de professor de geografia. Nãomelhor que o professor, os alunos e os estudantes não atinam por que o discursogeográfico escolar e universitário funciona como um procedimento de exclusão doMítico; assim, suas reações passam a ser mais confusas e mais hostis. É como sealguma coisa lhes tivesse sido roubada, mas eles não sabem o que é. Quanto maiseles se interessam pelos problemas políticos de nosso tempo, mais eles se sentemfrustrados, pouco à vontade. Quanto aos professores, eles são profundamenteinfelizes e procuram fazer o menos possível de "geo" e passam para as ciênciassociais ou para a ecologia, que têm o prestígio do discurso político.

Na "fac."*, entre os estudantes de história, ainda obrigados a fazer a "geo", osmilitantes manifestam sua hostilidade em termos políticos:"a geo, ciência reacionária!"Eles constatam que a maioria dos “mestres de geo" esquivam-se da política, mesmoos de "esquerda" (também chegam a duvidar da sinceridade de suas opiniões). Masnem uns nem outros compreendem verdadeiramente por quê, pois a análise daespecialidade diferencial não é coisa fácil. Apressam ou constatam a mistificação,mas não se vêem ainda seus procedimentos.

OS PRIMÓRDIOS DE UMA GRANDEPOLÊMICA EPISTEMOLÓGICA

Esse questionamento, esse mau humor com relação à geografia não sãosomente o apanágio dos estudantes que são constrangidos a aprender a geografia.Eles se manifestam também nas disciplinas universitárias onde se havia, até agora,

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mantido a geografia numa completa indiferença, freqüentemente colorida de desdém.De alguns anos para cá, a indiferença dá lugar, cada vez com maior freqüência, auma agressividade despreziva. Esse estado de espírito se encontra principalmentenas disciplinas que estenderam e aplicaram suas preocupações específicas naconsideração do espaço: entre os economistas, que se colocaram na economiaespacial e na análise das "regiões", entre os sociólogos que, no estudo do "espaçosocial" dilatam seus discursos a golpes de alegorias espaciais; entre os ecologistas,muito na moda desde há pouco, que se apoderaram das relações homem-natureza;entre os urbanistas que dissertam sobre espaços bem além das periferias, e entrecertos historiadores que querem estudar a história imediata (sem preocupação com o"recuo histórico") e que se lançam, também eles, com a geo-história, no discursosobre o espaço. Nunca se escreveu tanto a propósito do espaço. Ora, sãoparticularmente aqueles que "exploram" diversas partes do domínio que os geógrafosacreditavam ser reservado (sem ter dedicado grande interesse a esses camposdeixados, até agora, incultos) que se tomam os mais agressivos com respeito àgeografia. Numa primeira abordagem, esse azedume poderia ser o efeito das lutaspor influência (não seria mais do que para repartir os magros orçamentosuniversitários). Observando-se melhor, as coisas não são tão simples. Aagressividade de desprezo de numerosos especialistas das ciências sociais semanifesta desde que seus discursos são objeto de observações por parte degeógrafos, sobretudo se elas procedem dos geógrafos que encetaram uma análisecrítica de sua disciplina e de suas carências.

Porque, paradoxalmente, é freqüentemente com a geografia, a mais "tradicional"que se conciliam melhor tantos discursos brilhantes que sociólogos, economistas,ecologistas fazem a propósito do espaço, pois eles se referem, sem perceber, àsmaneiras de ver (ou de não ver) que lhes foram inculcadas noutros tempos, no ensinosecundário, e continuam a ser reimpostas pelas imagens da geografia-espetáculo,multiplicadas pela mídia. E é quando os geógrafos vêm colocar um certo número deproblemas ligados à análise do espaço que a geografia, até agora tolerada, começa aser recusada pelos especialistas de ,”ciências sociais", na qualidade de discursopedagógico imbecil, como se ela só devesse ser imbecil.

Mas esse sentimento de mal-estar com respeito à geografia, sobretudo quandoela começa a sair da anestesia, são também, não devemos nos enganar,economistas, sociólogos de valor, marxistas ou muito influenciados pelo marxismo,que o mantêm. Sem dúvida, seu mau humor traduz, num primeiro momento, odespeito de ter de perceber que eles estavam enganados, que os raciocíniosgeográficos são menos elementares do que eles pensavam. Ela reflete também umsentimento de inquietação; inquietação de ter de perceber que os termos vagos, equão inocentes na aparência, dos quais se dispõe para evocar a especialidade dosfenômenos naturais, políticos, econômicos e sociais são elásticos e escorregadios,que eles fazem derrapar raciocínios os mais cuidadosos com o rigor conceitual;inquietação de ter de constatar que, apesar de tudo, e não somente por causa dainfluência dos mass medias, é cada vez mais e mais às representações espaciais quese é obrigado a recorrer, mesmo se advinhamos que elas são mistificadoras, paralevar em consideração, hoje, práticas sociais das mais supérfluas, assim comofenômenos dos mais graves. É assim que nos referimos ao espaço para expressar o"subdesenvolvimento" (colocado em termos de países desenvolvidos - paísessubdesenvolvidos); o imperialismo é representado pela alegoria espacial do "centro" eda "periferia". A proliferação dos termos que fazem referência a espaços de todas asdimensões, à multiplicidade das imagens que os mostram com uma gama de

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conotações extremamente variadas, traduzem a falta de um conceito de espaçometodicamente construído e, ao mesmo tempo, sua necessidade. Tudo se passacomo se as reflexões que deveriam levar à produção desse conceito de espaçotivessem sido bloqueadas, por força da gravidade do mecanismo político e ideológico,por uma recusa coletiva e inconsciente de refletir sobre isso. Polêmicas quanto àapropriação do espaço, Deus sabe se as houve e as há ainda, entre os Estados comoentre os membros de diferentes classes, mas essas polêmicas não fizeram avançar areflexão sobre o espaço. Talvez porque os diferentes pretendentes se referem, apesardo seu antagonismo, a uma mesma concepção do espaço, o que deixacompletamente de lado o problema da especialidade diferencial. É hoje somente quese começa a tomar consciência, mais ou menos claramente, de que esses múltiplostermos e imagens, cômodos, indispensáveis ou carregados de valor estético, queproliferam desde alguns decênios, formam um conjunto mistificador. É essa tomadade consciência que provoca semelhante crise da geografia.

Se uma geografia (a dos professores), após ter sido, durante muito tempo,negligenciada, é hoje rejeitada pelos alunos (suas motivações sendo, evidentemente,muito confusas) e se ela começa a ser posta em causa por especialistas de outrasdisciplinas (sem que eles ali vejam, ainda, muito claro), é que somente ela não parecemais capaz de dar uma descrição do mundo que satisfaça as nossas preocupaçõesatuais, mas também porque se acaba de perceber, ainda muito confusamente, queela é uma espécie de tela que impede de apreender, convenientemente, problemasgraves em suas configurações espaciais e pressente-se agora que esta é umacaracterística primordial, por ser a mais estratégica.

Os mass media, quer reproduzem, incansavelmente, as imagens de umageografia-espetáculo, quer difundam informações que procedem de todos os pontosdo planeta, contribuem largamente para essa tomada de consciência. Essaimpregnação da cultura social por imagens espaciais e elementos de um sabergeográfico (o que é historicamente um fenômeno novo) resulta muito dos artifícios damoda e do espetáculo (aí compreendido na orquestração do tema natureza-poluição);mas ela traduz também a amplitude crescente da crise dialética global que se coloca,cada vez mais, em termos geográficos.

Para os geógrafos, essa crise da geografia, seu descrédito, parecem negativos;isso parece marcar o fim do seu papel; essa forma cega de denegrir é particularmentesensível e penosa para os que dentre eles ensinam a geografia nos colégios e liceus.E, no entanto, essa crise da geografia pode ter efeitos extremamente positivos e nãosomente para os geógrafos. De fato, ela anuncia a liquidação não da geografia, masde uma geografia, de uma forma particularmente mistificadora de discurso a propósitodo espaço, a ponto de aparecer como um saber perfeitamente inútil, onde nada há acompreender. Não é tanto porque esse discurso é sobretudo (mas não somente) odos professores que ele é mistificador (tanto para eles próprios como para os que oescutam), mas por motivos que os ultrapassam de muito, e que interessam àsociedade como um todo, onde a reflexão sobre o espaço foi bloqueada, durantemuito tempo. A crise da geografia dos professores indica que as coisas estão em viasde mudar, para eles e para todo mundo.

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SABER PENSAR O ESPAÇO PARA SABERNELE SE ORGANIZAR, PARA SABER ALICOMBATER

O desenvolvimento do processo de especialidade diferencial, ligado àstransformações econômicas, sociais, culturais e políticas, sobretudo depois do séculoXIX, se traduz pela proliferação de todas as espécies de representações espaciais,mais ou menos confusas, que têm ligações mais ou menos frágeis com diversaspráticas, ou que são imagens impostas pelos mass media. A superposição dessasrepresentações, no espírito das pessoas, faz com que lhes seja cada vez mais e maisdifícil de aí se encontrarem, enquanto isso é cada vez mais necessário, nem que sejasó por causa da multiplicação dos fenômenos relacionais. É preciso, pois, dispor deum método para ali ver mais claro e de um instrumental de idéias para colocar ordemnas confusões da especialidade diferencial,

Em primeiro lugar, para começar a sair do vazio e da confusão, podem-seconsiderar as múltiplas representações espaciais como tantos conjuntos (esubconjuntos) que possuem, cada qual, uma certa configuração espacial. Cada umdesses conjuntos espaciais é constituído por elementos que guardam entre si,relações mais ou menos complexas.

O processo de especialidade diferencial corresponde à necessidade de se referira conjuntos cada vez mais numerosos (mais ou menos mal construídos) para poderse orientar, ir trabalhar, se deslocar, se distrair, conceber uma estratégia, etc. Elesconstituem um instrumental indispensável para pensar e para se expressar.Enquanto antigamente cada homem, vivendo em auto-subsistência, podiaconscientizar outro (e se fazer conscientizar) da maioria de suas práticas, referindo-sea um pequeníssimo número de conjuntos espaciais (para o essencial, o território desua comunidade), hoje é preciso, para viver em sociedade, utilizar um grande númerode conjuntos espaciais, mais ou menos bem construídos. Trata-se de um verdadeiroinstrumental conceitual, que apresenta grandes diferenças de riqueza e de eficácia,segundo os meios sociais. É nas classes dirigentes que ele é o melhor aquinhoado, omais diversificado, e o melhor estruturado. Em contrapartida, é nas categorias sociaismais desfavorecidas que ele é o mais confuso e o menos diferenciado. Essasdiferenças correspondem a grandes desigualdades de eficácia social. Há aqueles quesabem conceber sua ação sobre vastos espaços e que têm os meios, e há os"azarados"*, que, no sentido próprio, não sabem mais onde eles estão.

Esses diferentes instrumentais conceituais que servem para pensar o espaço epara apreender com maior ou menor clarividência a espacialidade diferencial, pode-seimaginar representá-la, cartografando ou esboçando, sobre uma série de folhas depapel transparente superpostas umas sobre as outras, os diversos conjuntosespaciais dos quais uma pessoa ou um grupo de pessoas tem mais ou menos a idéia,seja porque elas aí se referem a essa ou aquela prática, seja porque elas osimaginam sob a influência da mídia. Cada conjunto espacial que se acha necessáriodistinguir é representado sobre a folha transparente por seus contornos mais oumenos vagos (e o caso esporádico, por sua estrutura espacial interna, quando ele écaracterizado por um fenômeno de polarização). A superposição de todas as folhas,de todas essas configurações espaciais (com desenho de acréscimo, muitas vezes,bem impreciso), dá em transparência uma imagem bastante sugestiva do instrumental

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conceitual extremamente confuso da maioria das pessoas, para todas as formas deespecialidade que não correspondem à sua experiência concreta no quadro deespaços limitados. Confundem-se caoticamente representações espaciais quecorrespondem a territórios cujos tamanhos são extremamente desiguais. Assim seexplica, em grande parte, essa miopia geral, esse comportamento de sonâmbuloscanalizados pelos postes indicadores, teleguiados pela empresa das diferentes redes,e por todos os sinais que codificam, não somente a maneira de se deslocar, mastambém as maneiras de abordar o espaço.

Mas é possível transformar, numa maior ou menor medida, essa superposiçãode representações confusas de espaços de tamanhos extremamente desiguais, numinstrumental conceitual claramente estruturado, que permite apreender eficientementea especialidade diferencial. São em primeiro lugar as exigências da prática (pelaslições tiradas dos erros de percurso, por exemplo) que impõem a clarificação e aestruturação de um certo número de conjuntos espaciais. Quanto mais uma práticarecai sobre distâncias consideráveis mais ela impõe àqueles a quem ela concernediretamente (ao menos para as funções de responsabilidade) a classificação dosconjuntos espaciais que é preciso considerar, em função de diferentes níveis deanálise e sua articulação uns com os outros: é o caso dos pilotos de avião, quedevem combinar práticas de grande escala (na decolagem e na aterrissagem), emescala média (para os procedimentos de aproximação) e em escala pequeníssima(para o vôo em altitude). Quanto mais a prática é global e atinge atividades muitodiversificadas, mais ela deve se referir a um conhecimento o mais claro possível e omais bem articulado possível, de um bem grande número de conjuntos espaciais; elescorrespondem, cada um, à configuração espacial das múltiplas atividades que épreciso considerar. A prática política (isto é, o exercício do poder) é, por excelência, aque exige, desde há muito, a referência a uma espacialidade diferencial bemestruturada, que exige a delimitação, a mais precisa possível, dos conjuntos espaciaisos mais variados. É por essas razões que, desde há séculos, as classes dirigentesfazem constituir cartas em diferentes escalas, para ter uma idéia precisa dacomplexidade dos territórios sobre os quais se exerce seu poder e aqueles sobre osquais poderia se projetar a articulação dos diferentes níveis de análise, efetuando-seempiricamente pela ação e a prática do poder.

Em contrapartida, para a maioria dos cidadãos, sendo que suas atividades seinscrevem em vários espaços dissociados (eles devem portanto se referir a umamultiplicidade de representações espaciais superpostas), um saber para os ajudar apensar o espaço se toma cada vez mais necessário, pois que eles não podem seguiar pela prática do poder.

Da mesma forma que foi preciso construir um saber teórico para compreenderas estruturas do sistema capitalista, a partir do momento em que as crises devidas aodesenvolvimento de suas contradições começaram a perturbar seu desenvolvimentoe, sobretudo, a partir do momento em que a classe operária teve necessidade de umaanálise teórica para conduzir uma ação revolucionária,

- da mesma forma que foi preciso, apesar da oposição de uma parte das classesdirigentes, que um saber ler-escrever-contar seja difundido em camadas sociais cadavez mais amplas, por causa das lutas políticas e das exigências da técnica e daprática social,

- da mesma forma, vai ser preciso, sem dúvida, que se construa um saberteórico permitindo articular os problemas de envergadura planetária aos da vida local,passando pelo nível do Estado.

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Será preciso que esse saber pensar o espaço como o saber ler cartas se difundalargamente, em razão das exigências da prática social, pois que os fenômenosrelacionais (a curta e a longa distância) ocupam um lugar cada vez maior.

Contudo, é bem evidente que, para avançar nesse domínio, não se pode utilizara "geografia dos professores", tal como ela é atualmente, amputada de toda prática ese recusando a qualquer reflexão epistemológica. É preciso uma outra geografia queseja uma teoria dos conjuntos espaciais e uma práxis da articulação dos diferentesníveis de análise.

Nesse domínio de reflexão, o conceito-obstáculo da "região" vidaliana exerceu,em cheio, seus efeitos de bloqueamento, e isso paralizou as pesquisas teóricas queteriam permitido perceber de maneira racional e eficaz as confusões da especialidadediferencial. Não somente aquela não foi vista (pode-se evitar tanto melhor de vê-Iaabstendo-se de toda referência a uma prática qualquer), mas ela foi negada pelainculcação de uma representação do mundo, feita de uma série de compartimentosbem estanques, "soit-disant” dados pela natureza e a história, por Deus, uma vez portodas e nitidamente separados uns dos outros: as regiões, cada uma designada porum nome próprio para melhor acreditar em sua "individualidade".

Se se quer ajudar as pessoas a sair do desânimo que elas sentem nasuperposição da especialidade diferencial, de seu desnudamento desde que se tratade se orientar ou de raciocinar sobre um problema espacial, mesmo elementar, é umaoutra representação do mundo que se deve construir e difundir. A representação deum espaço compartimentado, um pouco assim como uma série de caixas, forma dadas regiões colocadas sobre um mesmo plano, umas ao lado das outras, idéia que dáa geografia vidaliana, deve ser combatida. É preciso, para começar a fazercompreender a especialidade diferencial, imaginar o que daria a superposição de umgrande número de quebra-cabeças de tamanho desigual, recortados bemdiferentemente uns dos outros, em folhas transparentes. A cada quebra-cabeçacorresponde uma série de conjuntos espaciais cujo recorte é diferente daquele deoutras séries. As diferenças de tamanho entre os quebra-cabeças correspondem aosdiferentes níveis de análise.

É preciso fazer com que as pessoas compreendam que, quando elas estão numlugar, elas não estão num único compartimento, numa única "região". Esse local dizrespeito a um grande número de conjuntos espaciais muito diferentes uns dos outros,tanto do ponto de vista qualitativo como por sua configuração (assim se está aomesmo tempo numa determinada comuna de um determinado departamento, na áreade influência de Marselha, numa região de colinas, próxima do vale do Ródano, nazona de clima mediterrâneo, no espaço irrigado pelo canal do Baixo-Ródano-Languedoc, etc.). Essas considerações podem parecer bastante distanciadas dasnecessidades da prática. De forma alguma! Esse procedimento pedagógico dosquebra-cabeças superpostos pode parecer bem ingênuo, bem simplista, mas é aintrodução a um problema estratégico fundamental: se num dado lugar não se estánum só compartimento mas se ele diz respeito a um grande número de conjuntosespaciais, é preciso estar atento a cada um deles e saber que estamos inscritos emconfigurações espaciais muito diferentes, a respeito das quais é preciso fazer provade vigilância. Apreender a especialidade diferencial e procurar estruturá-la, é deversubstituir uma representação do mundo, feita de dados e de demarcações evidentes,por uma representação do mundo "construída" pela combinação de conjuntosespaciais que se montam intelectualmente e que são outras tantas ferramentasdiferenciadas para apreender, progressivamente, as múltiplas formas da "realidade".Não se trata mais de "ler simplesmente no grande livro aberto da natureza , mas é

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preciso manipular todo um instrumental conceitual (mais ou menos eficaz oudefeituoso) para que se revelem, pouco a pouco, realidades que não aparecem "aolho nu".

É preciso que as pessoas estejam melhor armadas, tanto para organizar seudeslocamento, como para expressar sua opinião em matéria de organização espacial.É preciso que elas sejam capazes de perceber e de analisar suficientemente rápidoas estratégias daqueles que estão no poder, tanto no plano nacional, como nointernacional.

É preciso, enfim, que elas estejam em condições de compreender as formas tãodiferentes segundo os lugares que apresenta a crise dialética global, no seudesenvolvimento histórico e sua diferenciação espacial, em nível planetário, nacionalou regional.

Evidentemente, mesmo com um aprendizado da geografia, transformada poressa preocupação da prática e da teoria, os cidadãos não acederão, por elespróprios, imediatamente às reflexões espaciais mais complexas, aquelas que dizemrespeito aos problemas políticos colocados na escala planetária, por força damultiplicidade dos conjuntos espaciais, que é preciso levar em consideração. Noentanto, esses problemas planetários desempenham um papel cada vez maior e maisrápido na evolução das situações nacionais, regionais e mesmo locais. Os cidadãosmais politizados, os militantes, devem fazer uma análise espacial da crise emdiferentes escalas, para ajudar na tomada de consciência coletiva dos problemas.

Para ajudar os cidadãos ali onde eles vivem a tomar consciência das causasfundamentais que determinam o agravamento das contradições que eles sofremdiretamente é preciso, primeiro, fazer a análise em termos concretos e precisosdessas contradições tais como elas se manifestam ao nível local, sobre os locais detrabalho e da vida cotidiana, sem esquecer as condições ecológicas, que são,freqüentemente, um fator de agravamento. Em seguida, é possível mostrar comprecisão que essas contradições locais, que podem ser completamente excepcionais,decorrem de uma situação "regional" de conjuntos espaciais mais vastos que secaracterizam por contradições, as quais convêm levar em consideração em termosmais abstratos e mais gerais. É então possível passar à análise nacional einternacional, onde as contradições devem ser expressas num nível cada vez maisavançado de abstração, continuando a ficar solidariamente articuladas à análise dascontradições ao nível regional e local, dos quais as pessoas têm, ao menos em parte,a experiência concreta.

O MUNDO É BEM MAIS COMPLICADO DO QUESE QUER ACREDITAR

Entre 1976, data na qual foi escrito este livro, e 1985, quando aparece estaterceira edição, houve importantes mudanças na França e no mundo, que obrigam ase compreender que as coisas são bem mais complicadas do que se quis,freqüentemente, acreditar.

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No capítulo "Por uma geografia da crise" eu evocava, em traços rápidos, em1976 um certo número de sintomas muito gerais dessa crise; ela podia então serprincipalmente atribuída ao desenvolvimento de contradições econômicas, sociais,demográficos, ecológicas, políticas, culturais, sob o efeito de um crescimentoeconômico que durava cerca de trinta anos. A crise iraniana, acelerada pelo enormeaumento dos lucros petrolíferos desde 1973, foi um dos exemplos, dos maisespetaculares, um dos últimos também. Hoje, o marasmo econômico se tomou quasegeral, e o sintoma mais evidente da crise (que não é mais de crescimento) é o enormeaumento do número de desempregados nos países industriais capitalistas (salvo noJapão e nos Estados Unidos, desde algum tempo). Mas quando se acreditava que osEstados comunistas estavam, mercê de suas estruturas, ao abrigo de taisvicissitudes, - parece que conhecem gravíssimas dificuldades econômicas e que elesnão estão ao abrigo do desemprego. É verdade que seus dirigentes teceram relaçõesestreitas com as multinacionais capitalistas, o que acarreta contradições que não seacreditava possíveis.

As questões geopolíticas aparecem mais importantes do que nunca, agora queos discursos marxistas economicistas se revelam incapazes de dar conta da situaçãomundial. Eles afirmavam que a supressão da propriedade privada dos meios deprodução é a transformação primordial das sociedades, mas eles ficam sem vozdiante das agitações das minorias privilegiadas dos Estados comunistas, como diantedo conflito entre a China, o Cambodge e o Vietnã, da mesma forma comopermaneceram, mudos quanto às causas profundas do antagonismo entre URSS e aChina, e sobre as razões da aliança, entre esta última e os Estados Unidos. Damesma forma que os discursos marxistas foram incapazes de explicar os massacresperpetrados no Cambodge pelos "Khmers vermelhos” sobre seus própriosconcidadãos, notadamente sobre aqueles que haviam combatido o imperialismoamericano. Os princípios ideológicos, mormente o famoso "internacionalismoproletário” aparecem bem menos importantes do que o desejo de hegenionia e avontade de controlar posições estratégicas.

Em 1976, estava-se ainda na fase de "coexistência pacífica" entre as duassuperpotências; isso não impedia a corrida aos armamentos, mas ela não tinha sidoafetada pela saída (1975) da guerra do Vietnã, onde o exército americano não tinhapodido vencer, nem conter, o avanço norte-vietnamita, sustentado então por todos osEstados do "campo capialista”. Depois, os conflitos armados se multiplicaram na Ásia,na África, na América Latina, e as tensões entre as duas superpotências seagudizaram consideravelmente. Na lndochina, a guerra recomeçou, aberta oudissimulada, mas, desta vez, entre chineses e vietnamitas. Se em 1976 podia-seevocar o Afeganistão como lugar de turismo na moda, esse país conheceu, depois dedezembro 1979, uma invasão de "turistas" soviéticos que assim avançaram sobre oGolfo Pérsico, perto do qual iraquianos e iranianos, sunitas contra xiitas, se atacamnuma sangrenta guerra de desgaste. Uma nova explosão se prepara no Próximo-Oriente, onde o Líbano se tomou o lugar de confronto de todas as subversões.

Na América Latina, a República de El Salvador é o "ponto quente", o maisespetacular, e não somente por causa dos riscos de intervenção americana em Cubae na Nicarágua. Mas não se podem esquecer as atrocidades perpretradasquotidianamente na Guatemala e as operações antiguerrilhas na Colômbia, nem queos soviéticos comercializaram hipocritamente com a junta dos torturadores argentinose que Pequim sustenta oficialmente Pinochet. Na África, a URSS coopera com Kadafinas suas empresas de expansão do integralismo islâmico no Tchad ou alhures, e elaajuda o governo progressista etíope a acabar de massacrar os progressistas da

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Eritréia. Há também o complexo conflito do Saara Ocidental e os da África Austral,onde os partidários do "apartheid' incitam etnias rivais desde há muito, a novosconflitos.

E a Europa? Durante vinte e cinco anos, em virtude da "coexistência pacífica",ela ficou afastada dos confrontos entre superpotências, que operavam sobretudo noTerceiro Mundo. Hoje, parece que ela voltou a ser um dos teatros mais importantesda nova guerra fria, corno o comprova o aumento do número de mísseis soviéticosdirigidos para a Europa Ocidental. Para dissuadir o exército americano de instalar umnúmero equivalente de foguetes dirigidos para o Leste, grandes manifestaçõespacifistas se realizaram em 1981, sobretudo na Alemanha do Oeste, mas houvetambém, grandes manifestações em dezembro de 1981 para protestar contra o golpede Estado militar na Polônia, que abafou o grande movimento dos sindicatosSolidariedade. Eles atestavam a falência econômica e política do regime comunista,apesar da ajuda financeira maciça dos bancos ocidentais. Mas não se trata somenteda Polônia: a situação econômica não é brilhante na Tchecoslováquia e ela écatastrófica na Romênia, onde a direção do partido comunista se tomou uma empresafamiliar.

Na URSS, aquilo que não diz respeito diretamente à polícia e ao exércitoaparece cada vez mais entravado por diferentes fatores de ineficácia, e o maiorEstado comunista deve fazer, cada vez mais e mais apelos aos capitais ocidentais, àtecnologia das multinacionais; as entregas de cereais americanos são um paliativopara o marasmo constrangedor da agricultura, enquanto se perpetua o sistema do"gulag'. Na China, que foi apresentada como uma outra via de desenvolvimentosocialista, reconhecem-se, após a morte de Mao, as calamidades provocadas por umdecênio de "Revolução Cultural" e o governo faz, também ele, apelo às firmascapitalistas e aos cereais americanos para tentar reparar e estrago deixado pelaslutas ideológicas. A agricultura foi descoletivizada. Todas essas constatações, todosesses conhecimentos, todas essas mudanças, a levar em consideração fenômenosantigos ocultados durante um longo tempo pelas tradições pressupostas laudatóriasda esquerda em prol do "sistema socialista" (tais como: este asseguraria uma gestãomais racional da economia e uma solução mais fácil das contradições), obrigam a secolocar problemas novos. Sua análise emana, bem entendido, do que se chamam deciências sociais, e ela interessa também aos geógrafos, que devem notadamentecontribuir para denunciar a função mistificadora da palavra "país", tão utilizada emtodos os discursos políticos para escamotear as contradições no bojo de cadaformação social.

Na França também muitas coisas mudaram após a redação deste livro: a crisechegou e, com ela, o enorme aumento do desemprego. A eleição de FrançoisMitterand para a presidência da República e a vitória eleitoral do partido socialistaforam, evidentemente, mudanças de grande importância e elas colocam,notadamente, problemas geopolíticos novos. Com efeito, estes não se colocamsomente entre os Estados, mas também nó quadro de cada um deles. As mudançasinstitucionais que devem dar uma nova abertura à política de "regionalização"colocam, mais do que nunca, o problema da região (cap. VI) e a idéia vital dageografia vidaliana: a das regiões concebidas como individualidades evidentes, oucomo personalidades indiscutíveis, arrisca conduzir, se não se tomar cuidado, aperigosos embaraços e permitir a certas pessoas colocar em causa a, unidadenacional. Aliás, não é por que a esquerda controla presentemente uma certa partedos poderes políticos que não há mais contradições entre os projetos elaborados ao

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nível, do Estado e, ao nível local, as condições de vida dos diferentes grupos decidadãos.

Tem-se um exemplo particularmente chocante com o problema da localizaçãodas centrais nucleares. Parece que elas são necessárias, em nível nacional, parafazer face às necessidade energéticas, dependendo-se menos das importações, sobcontrole das multinacionais. Mas em volta dos sítios escolhidos para a implantaçãodessas centrais, a inquietação é grande, e aqueles que se manifestam para reclamara parada desses canteiros que transtornam as condições locais, reclamam umamudança global da sociedade, o que não é possível, mesmo a meio-termo. Paraesclarecer tais debates e torná-los mais positivos, é necessário distinguir diferentesníveis de análise espacial. Os geógrafos devem ajudar o conjunto dos cidadãos asaber pensar melhor o espaço.

É PRECISO ULTRAPASSAR A CRISE DAGEOGRAFIA

A corporação dos geógrafos parece se engajar nesta via? Numa primeiraabordagem, isso não parece! Contudo, é incontestável que as coisas se mexem emgeografia, sob o efeito de diversas tendências, e a revista Hérodote contribui paraisso, em grande parte. Inúmeros geógrafos reconhecem que sua disciplina está emcrise e se inquietam com seu desmantelamento ou com seu desaparecimento. Oseconomistas, os sociólogos não se pretendem especialistas da análise do espaçosocial? Além do mais, a ecologia, nova disciplina da moda, lançou-se também noestudo das relações entre as atividades humanas e a natureza, domínio que osgeógrafos acreditavam ser o seu, por excelência. Enfim, para o grande público, apalavra geografia evoca, cada vez mais, maçantes obrigações escolares e inúmeroshistoriadores, muito influentes na mídia, conservam um ferrenho rancor dos cortesgeológicos, aos quais eles tiveram de se submeter, para obter a licenciatura ou para apreparação da "agrégation". Também os geógrafos se sentem ultrapassados,frustrados, despossuídos, denegridos. Certos deles se perguntam o que são, paraque eles servem e se percebe que não é suficiente "fazer a geografia", mas que épreciso, talvez, se colocar - enfim - as questões: "O que é a geografia? Para queserve ela? Para que pode ela servir?". As primeiras respostas foram tranqüilas eingênuas, mas se constatou que não eram suficientes e que elas faziam sorrir todosaqueles que "conversam espaço" com mais brio que os geógrafos. Alguns deles,imitando os anglo-saxões, se lançaram então na formulação matemática para provarque eles são verdadeiramente "científicos"; é, dizem eles, "a nova geografia", mas,para eles, os problemas de fundo não foram elucidados com isso, e o mal-estar dosgeógrafos não se atenua; pelo contrário, pois eles percebem bem que, sobre essa via,os matemáticos não têm qualquer necessidade deles. Ora, há uma solução para essacrise e, para o conjunto dos cidadãos, é necessário que o raciocínio geográfico, osaber-pensar o espaço se desenvolva e saia do impasse no qual se meteu acorporação universitária consentindo, sob pretexto de cientificidade, uma reduçãoconsiderável de sua razão de ser e de seu papel social. Trata-se, em larga escala, de

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retomar a obra de Elisée Reclus, que os geógrafos franceses esqueceram já há trêsquartos de séculos.

Sua obra - da qual os geógrafos franceses deveriam ter muito orgulho - dá aprova de que a consideração dos problemas políticos não conduz, necessariamente,ao esclarecimento, ao exclusivo proveito de um poder, que ela alarga de formadecisiva a representação do mundo dos geógrafos, que ela lhes permite ali ver maisclaro e de melhor compreender para que eles servem, mas também para que elespodem servir. Se ele dedicou um lugar importante aos problemas políticos, Reclusnão o quis fazer por isso - e não o fez - uma geopolítica, nem uma geografia política,nem mesmo a "geografia social", que ele evoca uma vez ou outra, mas uma geografiaglobal. Sua concepção da geograficidade integra não somente os fenômenoseconômicos, sociais, culturais, políticos e militares, mas também os diferentesfenômenos "físicos" e ecológicos, o conjunto tomado em função das transformaçõesdo mundo, as evoluções lentas e as mudanças rápidas.

Porque ele tem horror da injustiça e da opressão, porque ele deseja um mundomais justo e porque ele pensa que a geografia é um instrumento eficaz paracompreender o mundo, Reclus se esforça, na qualidade de geógrafo, em analisar asestruturas dos Estados, a rivalidade de seus exércitos, mas também as atitudes desuas polícias - por meio de um grande número de cartas. Mas Reclus mostra tambémque não existe ali senão o Estado e seus aparelhos e que não se pode passar emsilêncio as lutas que travam os povos dominados e as formas de opressão que ospobres exercem sobre aqueles que eles podem explorar, em particular, as mulheres eas crianças.

Na evolução da geografia, a obra de Reclus e, em especial, O Homem e aterra1* marca uma virada decisiva; antes dele, essa geografia que eu chamofundamental estava essencialmente ligada aos aparelhos de Estado, na qualidade deinstrumento de poder, mas também na qualidade de representação ideológicapropagandista. Não somente Reclus desenvolveu a eficácia desse instrumento,ampliando a concepção de geograficidade, levando em consideração fenômenosnegligenciados até então, insistindo, notadamente, sobre as contradições doprogresso mas, sobretudo, ele voltou esse instrumento contra os opressores e asclasses dominantes; fazendo isso, ele fez progredir o raciocínio geográfico, naqualidade de método de análise objetiva, científica, de uma larga margem darealidade. Foi há oitenta anos: seria tempo dos geógrafos o levarem em consideraçãohoje.

OS GEÓGRAFOS, A AÇÃO E O POLÍTICO*

Em agosto de 1984 teve lugar em Paris o XXV congresso da União GeográficaInternacional, organização que reúne a cada quatro anos, delegações vindas domundo inteiro. Para os geógrafos franceses é um acontecimento, pois que umcongresso da UGI não se realizava em Paris há cinqüenta e três anos!

Pode-se pensar que tais assembléias são bastante acadêmicas. Mas não é inútilque os representantes dos diferentes comitês nacionais de geografia se encontrem.De fato, segundo os países, as concepções que se têm da geografia são muito

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desiguais, da mesma forma que as condições culturais e políticas nas quais osgeógrafos exercem sua profissão. Assim os geógrafos soviéticos, por exemplo, sepreocupam principalmente com aquilo que se chama "a geografia física" e suageografia está próxima das ciências naturais. Em contraposição, os geógrafos norte-americanos se interessam sobretudo pelos fenômenos que sobressaem da "geografiahumana" e eles consideram que a geografia é uma ciência social.

Uma das características da escola geográfica francesa, que é, aliás, uma dasmais antigas, é de procurar levar em consideração tanto os fenômenos "físicos" como"humanos". Uma tal atitude, se sobre ela refletirmos, não deixa de colocar difíceisproblemas epistemológicos, por força das grandes diferenças de métodos e de pontosde vista que existem entre as ciências naturais e as ciências sociais. Também, desdecerca de vinte anos, os geógrafos. franceses se interrogam sobre a validade de suaconcepção da geografia e eles se questionam se esta é, de fato, uma ciência.

A originalidade da revista Hérodote, nesse debate, foi de mudar o primeiroaproche do problema: em lugar de continuar a se perguntar se a geografia é umaciência ou em quais condições a geografia poderia ser, de fato, uma ciência, Hérodotecolocou uma questão aparentemente inocente, mas na verdade primordial: para queserve a geografia? Isto é, quais são e quais podem ser as funções dos geógrafos nobojo da sociedade?

Essa questão chocou numerosos geógrafos, pois, da forma que foi colocada, háoito anos, ela ia bem mais longe que as discussões sobre geografia "aplicada" ou ageografia "ativa". Hérodote destacou, de fato, problemas epistemológicos e políticosfundamentais, bastante distanciados das preocupações científicas habituais emostrou que os problemas da geografia não concernem somente aos geógrafos e aosespecialistas das diversas disciplinas, mas também aos homens de Estado e a umgrande número de cidadãos, ao menos aqueles que colocam questões sobre o estadodo mundo e a organização de seus países, como sobre o que se passa na região emque eles vivem e nos locais onde eles trabalham e onde habitam.

Durante esses últimos anos, as posições de Hérodote foram atacadas tanto da"direita" como da "esquerda"; isso não impediu, aliás, que ela se tornasse uma dasmais importantes revistas francesas de geografia, pelo volume de sua tiragem. Nósnão retomaremos aqui polêmicas que estão, aliás, na maior parte, ultrapassadas, pornumerosos mal-entendidos se dissiparam; aqueles que pensavam que Heródote nãopassava de uma revista "crítica", visando sobretudo a dar má consciência aosgeógrafos, vão, progressivamente, percebendo os verdadeiros objetivos da mesma:lembrar e demonstrar que a geografia é, para todas as sociedades, um saberfundamental.

Mas não se trata de falar da geografia como se tratasse de uma entidade oumesmo de uma espécie de divindade dotada de sabedoria e de poderes, à maneiradesses historiadores, aí compreendidos os campeões do "materialismo histórico", queinvocam a História, suas "leis" e seus "julgamentos". Em nossa concepção trata-sesobretudo dos geógrafos, pois não é suficiente se interrogar sobre as característicasda geografia em face de diversas ciências. O que importa é se preocupar hoje com opapel que podem ter os geógrafos, nesse fim do século XX, em que o rápidoagravamento de enormes problemas exige ações de grande envergadura sejamconduzidas com mais eficiência e que os políticos tenham mais consciência daextrema diversidade das situações geográficas. Daí o título desse número daHérodote, "Os geógrafos, a ação e o político". Cada um desses três termos exigeexplicações e necessita reflexões e, é lógico, começar pelo primeiro.

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OS GEÓGRAFOS ...

Não é o cuidado com uma nuance de estilo que nos incita a fazer a distinçãoentre a geografia e os geógrafos, mas porque é preciso perceber que se geografia éuma palavra muito forte (não se trata do mundo?), é também uma palavra muitoambígua. Se refletirmos bem sobre isso, parece que seu significado é triplo e queseus três sentidos, dificilmente dissociados são, cada qual, muito complexos. De fato,geografia designa tudo ao mesmo tempo:

- de um lado, realidades extremamente diversas, cada uma se estendendo, maisou menos amplamente, na superfície do globo; elas dizem respeito a categoriascientíficas muito diferentes, mas têm a característica comum de serem cartografáveis,quer dizer, de serem suficientemente diferenciadas espacialmente e de não seremmuito pequenas: a dimensão mínima sendo, grosso modo, da ordem do metro;

- de outro lado, representações mais ou menos parciais dessas realidades; ascartas são as representações geográficas por excelência, mas não é possívelconsiderar que elas são o reflexo, o espelho ou a fotografia da realidade1. As cartasprocedem de um certo número de escolhas no seio da realidade e mais ainda, asdescrições que os geógrafos fazem desta ou daquela porção do espaço terrestre;

- enfim a palavra geografia designa, sem nomeá-los, os geógrafos sobretudo nasconsiderações de caráter mais ou menos epistemológicos tais como a "geografiaestuda ... a geografia analisa ... a geografia deve levar em consideração". Masporque eles falam tão raramente de si mesmos, esses geógrafos? Por que deixamacreditar que eles se limitam a constatar as realidades "geográficas"? Por que osgeógrafos se dissimulam atrás da geografia? E, primeiramente, que são essesgeógrafos? Uma corporação particular no seio da comunidade científica? Osprofessores de geografia? Aqueles que fazem geografia? (fórmula estranha)? Aquelespara os quais a geografia é uma profissão? Mas o que é essa profissão de geógrafo?

Durante séculos os geógrafos foram aqueles que construíram as representaçõesdo mundo, aqueles que estabeleceram cartas. Desde o fim do século XIX, não é maiso caso; a divisão do trabalho científico autonomiza o papel dos cartógrafos esobretudo, desde alguns decênios, os progressos da fotografia aérea, maisrecentemente ainda, os da teledeteção acoplados aos dos computadores permitemlevantar muito rapidamente as cartas dos mais diversos fenômenos e mesmo de suaevolução em tempo real; esses mesmos computadores tratam de igual forma osresultados dos recenseamentos e enquêtes, os quais são processados para osaparelhos de Estado e suas administrações. Seria no momento em que asrepresentações geográficas atingem um extraordinário grau de precisão e de rapidezpelo desenvolvimento dos procedimentos de cartografia automática que deveriamdesaparecer os geógrafos? Estamos caminhando para uma geografia sem geógrafo?

DIVISÃO DO TRABALHO CIENTÍFICO E RAZÃO O DE SER DOS GEÓGRAFOS

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Numerosos são os especialistas das mais diversas ciências que se perguntam:para que servem os geógrafos que parecem somente enumerar, compilar rudimentos,de uma só vez, de geologia e de demografia, de climatologia e de sociologia? Nacomunidade científica chega-se a pensar que os geógrafos estão condenados, pelosdesenvolvimentos da técnica e pelo progresso da divisão do trabalho de pesquisa.Estima-se que a soma dos resultados obtidos pelas diversas ciências, levando cadauma em consideração um setor preciso da realidade e que, elas também estabelecemcartas (as do geólogo, do pedólogo, do climatólogo, do demógrafo, etc.), substituiria,com vantagem, o discurso dos geógrafos.

O papel dos geógrafos universitários se reduziria portanto a contribuir para aformação dos professores do ensino secundário, ao menos nos países em que, comoé o caso na França, ensina-se a geografia (fórmula um tanto ambígua, ela também)nos colégios e nos liceus? Na França, aliás, a opinião considera a geografiaessencialmente como uma disciplina escolar, cuja utilidade não é muito evidente. Osgeógrafos recusam essa redução de seu papel e se queixam, freqüentemente, queele não é reconhecido no seu real valor, pela comunidade científica. Mas esta, que sótem uma idéia muito sumária da geografia (feita de lembranças mais ou menosenfadonhas do ensino secundário), estima, no fundo, que eles não fazem nada maisdo que constatar e comentar evidências. Essa apreciação pejorativa do papel dosgeógrafos não é a conseqüência de sua própria discrição e do uso alegórico que elespróprios fazem da palavra geografia, confundindo sob o mesmo termo o mundo, suasrepresentações, aqueles que as constróem e aqueles que as comentam? O discursoganha em amplitude, mas ele escamoteia o papel dos geógrafos.

Uma vez que eles não constróem mais cartas, pois elas proliferam, produzidascomo o são, daqui por diante, pelos computadores, uma vez que inúmeras disciplinasrecorrem também às cartas, é preciso colocar a questão: qual é, qual pode ser averdadeira função do geógrafo hoje?

O papel dos geógrafos não se limitava outrora a estabelecer cartas, ele não selimita hoje ao seu comentário e, sobretudo, eles não se referem a uma só carta, massempre a várias. É desta maneira que eles constróem raciocínios geográficos, nãosomente comparando umas com as outras as representações cartográficas próprias adiversas categorias de fenômenos, mas também combinando cartas estabelecidas emdiferentes escalas, desde aquelas que mostram o conjunto do globo até aquelas queconfiguram uma porção reduzida de território. Esses raciocínios, que podem se referira problemáticas e a preocupações muito diversas, são mais ou menos complexos enão se reduzem à adição dos conhecimentos produzidos pelas diversas ciências ouatividades que utilizam; eles trazem um suplemento de conhecimento que é,freqüentemente, bastante importante e algumas vezes decisivo para a compreensãode situações particularmente complicadas.

Os verdadeiros raciocínios geográficos são bem mais difíceis do que se pensahabitualmente na comunidade científica e eles exigem, para serem desenvolvidos,verdadeiros especialistas da análise espacial. Está aí o que devem ser hoje osgeógrafos e sua função social e científica, saber pensar o espaço terrestre, é, nós overemos, sem dúvida, ainda mais necessária hoje do que outrora. O papel dogeógrafo é o de tomar conhecimento da superposição espacial de diferentescategorias de fenômenos e de movimentos de pesos diversos, sobre territórios dedesigual amplitude, de forma que os empreendimentos humanos possam ali serconduzidos ou organizados mais eficientemente.

Contudo, hoje, bom número de geógrafos não está consciente dessa funçãosocial, que é, no entanto, sua razão de ser. Com efeito, no bojo de cada uma das

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diversas "escolas geográficas" ou de cada uma das corporações que formam osgeógrafos nos diferentes países, houve também, desde alguns decênios, umaacentuação da divisão do trabalho científico. Isto se tornou possível pelo aumento donúmero de geógrafos e se tomou necessário pelos progressos das diversas ciênciascom as quais eles estão em contato. Os geomorfálogos, por exemplo, têm que fazergrandes esforços para seguir os progressos da geologia e da pedologia, e osgeógrafos humanos tem dificuldade de se manter a par de todos os desenvolvimentosdas ciências sociais. Também, uns e outros estão hoje menos conscientes do queeles tem em comum, e as declarações dos geógrafos franceses quanto à "unidade dageografia", conjuntamente "física" e "humana" aparecem, a muitos deles, como umaespécie de ideal cada vez menos realizável. Contudo, essa idéia diretriz podeconservar todo o seu sentido e sua eficácia para o conjunto da corporação, com acondição de que esta esteja consciente de sua razão de existir, no seio dacomunidade científica e no seio da sociedade. Mas atualmente não é geralmente ocaso, e por causa disso, a maior parte dos geógrafos que desenvolve, cada qual,pesquisas cada vez mais precisas e especializadas, não se sente individualmentemuito à vontade na sua relação com outras disciplinas, porque eles não estão muitopersuadidos das especificidades da profissão de geógrafo. É preciso dar de novo aogeógrafo, o orgulho de sua tarefa. É também o interesse da nação da qual eles fazemparte.

AS TRANSFORMAÇÕES DE UMA ANTIQUÍSSIMA PROFISSÃO CIENTÍFICA

Os geógrafos devem refletir sobre sua profissão, sobre seu papel individual ecoletivo no seio da sociedade. Para tanto, não é suficiente examinar as dificuldadesepistemológicas do presente: é preciso compreender como e por que elas foram,pouco a pouco, aparecendo na geografia, enquanto todas as demais disciplinasconhecem um progresso brilhante.

Os geógrafos de hoje que refletem sobre esses problemas (eles são, naverdade, bem pouco numerosos) se contentam, geralmente, em retraçar a evoluçãodo que eles chamam a "geografia científica", a única que apresenta interesse aosseus olhos: eles recenseiam, portanto, os progressos que ela registrou desde ametade ou o fim do século XIX, isto é, a época a partir da qual o ensino de geografiacomeçou a ser dispensado nas universidades de um certo número de países. Masessa láurea não explica em nada ás dificuldades atuais que conhecem os geógrafos.Não lhes serve de nada se queixar da concorrência das outras disciplinas, aícompreendidas aquelas como a história ou a ecologia cujos, progressos não são maisdevidos a uma especialização crescente, bem ao contrário. Para compreender aespécie de impasse no qual se sentem os geógrafos, é preciso atingir o momento emque eles começaram a esquecer sua verdadeira razão de ser, aquele em que elescomeçaram a se desviar do papel que havia sido seu durante séculos.

De fato, a profissão de geógrafo é bem anterior ao aparecimento da geografiaentre ás disciplinas universitárias. Ela existe há séculos, e mesmo há mais de doismilênios no caso da China ou da Grécia. Vale a pena destacar que ela era jácompletamente científica desde a Antigüidade, levando-se em consideração métodose técnicas das diferentes épocas. A profissão de geógrafo foi uma das mais científicasque existiu: estabelecer uma carta, antes da fotografia aérea e da teledetecção, erauma operação que exigia um extraordinário cuidado de precisão, milhares de medidas

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e cálculos, e isso durante anos. Era necessário, com efeito, que a carta fosse o maisprecisa possível, com as técnicas do momento, para evitar aos navegantes de seperderem nos oceanos ou de cair sobre recifes, para reduzir os riscos de se perderemno deserto. Foi somente após o fim do século XIX - se tanto - que se fez a distinçãoentre o geógrafo e o cartógrafo, mas não se pode esquecer sua íntima relaçãodurante séculos e esta é reforçada hoje pelo emprego de métodos de teledetecção.

A profissão de geógrafo é, portanto, muito antiga, e durante séculos ela foiconsiderada como da mais alta importância, tanto para os soberanos, como para oshomens de negócios, dos mais empreendedores, pois as cartas, como as demaisinformações fornecidas pelos geógrafos, eram já tão indispensáveis ao governo dosEstados ou ao comércio de longo curso quanto o comando dos navios. Os geógrafostinham, então, grandes responsabilidades: cada grande soberano tem “seu" geógrafoe seu gabinete de cartas e estas são consideradas instrumento indispensável depoder,

É no meio do século XIX que aparece uma outra "geografia", cujas funções nãosão essencialmente estratégicas, mas sobretudo ideológicas. De fato, em certosEstados europeus, primeiro na Prússia, depois na França, os meios dirigentes foramlevados a pensar que era preciso ensinar certos conhecimentos geográficos, nãosomente aos homens de ação - o que tinha sido o caso até então - mas também alargas categorias sociais e sobretudo aos jovens. A geografia se torna, então,disciplina de ensino destinada, primeiro aos jovens da burguesia, que iam ao liceu,depois a todos os alunos das escolas primárias, e esse ensino tinha por finalidadefazer com que conhecessem melhor sua pátria e os países que a cercavam.Apareceram, então, cada vez mais numerosos, os professores de geografia do ensinosecundário (na França eles são também professores de história). Para formá-los, eranecessário haver professores de geografia nas universidades. Para responder àsnecessidades crescentes dos liceus, o número de geógrafos universitários se tornabem maior que o de geógrafos que existia até então, e que eram, não só professores,mas especialistas relativamente raros, cujas responsabilidades eram grandes. Tantoassim que a expressão "os geógrafos" veio a designar essencialmente os geógrafosuniversitários.

GEÓGRAFOS CUJAS RESPONSABILIDADES SÃO BASTANTE DIFERENTES

É também nessa época, no fim do século XIX ou começo do século XX, que seopera a separação entre a profissão de geógrafo e a do cartógrafo e a primeira setransforma profundamente: os interlocutores do geógrafo, que tinham sido, até então,homens de ação e de poder, são substituídos por jovens estudantes, futurosprofessores. Essa época marca portanto uma transformação considerável naevolução daquilo que se chama a "geografia".

Sem dúvida, todos os países nos quais se desenvolvia um sistema escolar euniversitário não conheceram a introdução da geografia nos programas do ensinosecundário e essa multiplicação dos professores de geografia nos liceus. É,notadamente, o caso dos países anglo-saxões. Contudo, geógrafos apareceram emsuas universidades, à imitação do que se passava na Alemanha ou na França, ondeeles eram bem mais numerosos.

De acréscimo, a influência dos geógrafos universitários alemães e franceses foicientificamente considerável. De fato, seu papel não se limitava à formação de futuros

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professores do secundário e eles se lançaram a numerosas pesquisas, emborafossem essas, muitas vezes, para suas teses de doutorado. Estas fizeram progrediros conhecimentos geográficos. Mas esses trabalhos de tipo acadêmico não estavammais ligados às preocupações dos meios dirigentes, a suas empresas longínquas oua seus projetos geopolíticos e, sobretudo na França, os geógrafos universitários foramlevados a pensar que eram somente pesquisas desinteressadas que surgiamverdadeiramente da ciência, essa estando então, freqüentemente, concebida comoum fim em si, a "ciência pura". É então que os geógrafos começam a perderconsciência de sua função social e daquilo que havia sido, durante séculos, a suaverdadeira razão de ser: pensar o espaço para que ali se possa agir maiseficientemente. Os progressos da divisão do trabalho científico, no seio da corporaçãodos geógrafos universitários, a separação progressiva dos geógrafos "físicos" e dosgeógrafos "humanos", acentuaram ainda a tendência a conduzir pesquisas"desinteressadas" monografias derivando da "geografia regional" e de uma idéiamenos parcelar da geografia foram realizadas, sem pensar, por nada do mundo, queelas pudessem e devessem ser úteis a quem quer que fosse.

De fato, a verdadeira ciência nunca foi globalmente um empreendimentodesinteressado e basta constatar que os progressos teóricos da geologia, porexemplo, uma das ciências com as quais os geógrafos tinham então mais relações,foram estreitamente ligados às preocupações da prospeção e exploração mineiras.Na verdade, essa geografia nova, "científica", que no começo do século XX osgeógrafos universitários quiseram fundar e desenvolver, sem contudo se colocar aquestão de sua utilidade no bojo da sociedade, decorre principalmente de umaconcepção acadêmica da disciplina.

Contudo, a tentativa de seus predecessores foi, no decorrer dos séculos, tãocientífica como a sua, embora ela estivesse ligada a preocupações utilitárias oupolíticas: não haviam eles conseguido construir, antes do fim do século XIX,representações cartográficas do mundo cada vez mais precisas? Elas não sãodesqualificadas pelos procedimentos mais modernos, que hoje as refinam ecompletam. - Mas não devemos pensar somente nas cartas. A obra colossal de EliséeReclus2 obra que não é do tipo acadêmico (ela procedia, com efeito, de um extensoprojeto libertário) e que ainda hoje é admiravelmente moderna, é significativa do graude avanço dos raciocínios geográficos antes do desenvolvimento da geografiauniversitária. A contribuição desta desde o início do século XX é, evidentemente, bemimportante, mas ela não deve fazer esquecer o valor científico dos geógrafos deantanho, aqueles que estavam bem conscientes de servir a qualquer coisa, e o papelque eles tiveram na evolução das idéias políticas e a organização territorial do Estado,como nas transformações do mundo.

Não se trata somente de render homenagem a esses geógrafos que não eramuniversitários, mas de lembrar aos geógrafos de hoje, à comunidade científica e àopinião, a antigüidade e a importância da profissão de geógrafo no seio da sociedade.Não é porque as cartas se tornaram um objeto relativamente banal, ao menos emcertos países (menos numerosos que se possa crer), que as funções dos geógrafosdeveriam ser menos úteis que outrora. Ao contrário, pode-se apostar que elasparecerão dentro em pouco tão indispensáveis como no passado.

POR QUE CHAMAR DE "HERÓDOTO" A UMA REVISTA DE GEOGRAFIA?

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É para chamar a atenção dos geógrafos de hoje sobre os problemas e asdificuldades de sua profissão, sobre sua antigüidade e sua evolução bastanteparadoxal sobre suas responsabilidades coletivas e individuais, que nossa revista levao nome de um grande geógrafo, Heródoto. É um dos mais antigos que se conhecemna Europa, pois ele vivia na Grécia no século V antes de nossa era.

A escolha desse título pode, sem dúvida, surpreender, pois Heródoto éhabitualmente considerado um historiador. Mas ele foi da mesma forma (e talvez maisainda) um geógrafo e, como tal, suas responsabilidades foram grandes ao lado dosdirigentes de Atenas: ele conduziu uma vasta enquête3 para informá-los,precisamente, sobre os países do Mediterrâneo e meio-oriente, sobre o Egito e,sobretudo, sobre a Pérsia que era, para os gregos, uma potência temida. Heródotonão estabeleceu, sem dúvida, cartas (na época era sobretudo tarefa dos geógrafos-matemáticos ou astrônomos), e no entanto ele se refere a elas constantemente e temem grande conta os itinerários, distâncias e emboscadas que ali se encontram. Mas,sobretudo, ele fez uma descrição precisa dos diferentes países (ele visitou muitos),interessando-se tanto por suas configurações "físicas" - os rios, as montanhas, osdesertos - quanto por suas características "humanas", as formas de organizaçãosocial e os costumes dos diferentes povos, como as estruturas políticas e militaresdos diferentes Estados.

Para melhor compreender a evolução das dinastias e os problemas dessesEstados, Heródoto fez também obra de historiador e isso não é para nos desagradar,bem ao contrário. Uma das características da escola geográfica francesa é, comefeito, a importância que ela dedica aos raciocínios históricos. Não é somente porquenos liceus e colégios franceses as duas disciplinas são ensinadas por um mesmoprofessor (é uma originalidade cultural francesa), mas sobretudo por uma razão bemmais importante. Para Kant, como para muitos outros pensadores, o tempo e oespaço não são as duas "categorias fundamentais"? Essas não podem,evidentemente, ser dissociadas no raciocínio filosófico e, menos ainda, na ação.

A AÇÃO...

Toda ação, desde que é movimento, ou comando fora do quadro espacialfamiliar implica raciocínio quanto ao espaço terrestre. Se há elementares que podemser elaborados por qualquer um, existem, em contrapartida, raciocínios muitocomplicados que exigem, para serem eficientes, verdadeiros profissionais doraciocínio geográfico.

Deslocar-se num território que não é balizado (sem indicação de itinerário e quenão se conhece, ou que se conhece mal, exige se orientar e se informar para prever,antecipadamente, as distâncias, as dificuldades e os obstáculos. Se dispomos dessetão precioso meio de ação que é uma carta relativamente detalhada e se sabemos lê-la, o raciocínio geográfico é relativamente fácil. Em contrapartida, háempreendimentos que exigem, sob pena de derrota grave, raciocínios geográficosextremamente complexos, mesmo se dispomos de cartas.

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OPERAÇÕES QUE EXIGEM RACIOCÍNIOS GEOGRÁFICOS MUITO COMPLEXOS

São operações que, de um lado, concernem a efetivos de população mais oumenos consideráveis, desigualmente repartidas sobre um território e que, de outrolado, elaboram em lugares variados ou sobre extensões mais ou menos vastas, meiosde produção complexos, cujo bom funcionamento depende de uma combinação decondições numerosas entre essas, as condições geográficas desempenham um papeltanto maior quanto mais elas são complexas, mutáveis para uma parte (nem que sejaem razão das variações climáticas e das transformações políticas), difíceis de atingire, mais ainda, de modificar.

As operações de implantação de novos estabelecimentos industriais, nos paísesem que as redes de circulação são insuficientes, necessitam de raciocíniosgeográficos já complexos e de diferentes tipos, do nível internacional, até o local.Mas são, sem qualquer dúvida, as operações de desenvolvimento agrícola,conduzidas nos países do Terceiro Mundo, para fazer face ao rápido crescimentodemográfico que exigem, para evitar os muito freqüentes fiascos, o estabelecimentode raciocínios geográficos os mais difíceis. Com efeito, a experiência prova que,nesse gênero de operação, é necessário levar em consideração não somente osdados climáticos, suas variações sazonais e plurianuais, como a freqüência dos"acidentes” meteorológicos, mas também as configurações da rede hidrográfica e osdados topográficos, as vertentes e a cobertura dos terrenos que se trata de preservardos ravinamentos, como as características dos solos, sobretudo quando se trata deirrigar, não somente a repartição do povoamento e o traçado das rodovias e doscaminhos, mas também as estruturas agrárias e a organização dos sistemas deculturas tradicionais, sem esquecer os fenômenos migratórios, as rivalidades étnicaslocais e os dados da geografia médica. Cada um desses múltiplos fatores geográficosnecessita, é claro, de um especialista para a análise aprofundada, mas é somente umraciocínio particularmente complexo que permite compreender como eles secombinam diferentemente, uns com os outros, no quadro do território onde éconduzida a operação, e pode-se afirmar que o sucesso desta depende, em grandeescala, da eficácia desse raciocínio geográfico.

Ora, é ainda bem excepcional que os geógrafos participem verdadeiramente daconcepção e elaboração dos programas de desenvolvimento agrícola. De fato, sãodiferentes tipos de técnicos e sobretudo os economistas planificadores que têm adireção desse gênero de operações, e eles têm, na maioria dos casos, uma noçãomais do que simplista da "geografia",. Para os que decidem, como para o conjunto daopinião, o significado desta palavra se reduz à constatação de alguns grandescontrastes do relevo e do clima.

DO ESPAÇO "BANAL" À ANÁLISE INTERDISCIPLINAR E SISTÊMICA

Os economistas que se tornaram os organizadores e os planificadores do"desenvolvimento" projetam, de acréscimo, sobre o espaço, quer se trate do terrenoou de territórios mais ou menos extensos, a condescendência com a qual elesconsideram, freqüentemente, os geógrafos. Essa condescendência que se origina daslembranças mais ou menos maçantes das lições de geografia1... no ensino

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secundário, não é somente apanágio dos economistas, mas são eles que aexpressam mais, a forma teórica aí compreendida. O espaço que eles chamamgeográfico é aquele que eles designam, seguindo certos mestres seus, o espaçobanal2 ou o espaço vulgar para opô-lo ao espaço “econômico" que seria, a seusolhos, o único digno de atenção e de raciocínios científicos. O emprego freqüentedesse adjetivo banal para designar o espaço concreto vai junto com toda uma sériede conotações mais ou menos explícitas que fazem com que esse espaço sejajulgado, tudo junto, "comum ... ordinário ... uniforme ... evidente" ... e finalmente semimportância pelos teóricos da economia e do "desenvolvimento".

Esta suficiência atinge, por vezes, a imbecilidade imperdoável, de tal forma asrealidades negligenciadas, em certas operações de desenvolvimento, eram evidentese importantes. Ela teve de pagar por um certo número de derrotas catastróficas, aliás,tanto em regime "capitalista" como em regime "socialista", mas não foram osplanificadores que se sacrificaram. Não se deve, evidentemente, minimizar o papel depoderosos fatores negativos de ordem financeira ou política, mas, em vários casos, ascausas planetárias do "subdesenvolvimento" tiveram ombros largos, e pode-se dizerque este ou aquele fiasco poderia ser evitado se tivessem negligenciado menos aanálise da diversidade das situações geográficas e a complexidade dos fenômenoshumanos sobre o terreno. Mas seria necessário que aqueles que tomam as decisõesem tais operações pensem que os geógrafos poderiam ser úteis, como também sedanecessário que os geógrafos mostrem, de seu lado, como eles poderiam sereficientes.

Durante os vinte ou trinta últimos anos, certas regiões do Terceiro Mundoconheceram a falência, as seqüelas de várias operações de desenvolvimentoagrícola, consecutivas. A sucessão de tais derrotas, quando as condições gerais nãoeram impeditivas, começa a ser considerada corno a prova de que as realidades sãobem mais complicadas e que, no bojo de um mesmo Estado, as situações são bemmais diversas do que pretendiam teóricos formados num grau muito avançado deabstração. Percebe-se que as realidades que se quer modificar não derivam só daanálise dos economistas e que elas são a superposição e a interação de múltiplascategorias de fenômenos.

Ainda louvar-se-ão, daqui para a frente, as virtudes do aproche pluridisciplinar(inter - ou transdisciplinar). Mas este não é cômodo e não é suficiente justapor asrelações estabelecidas por diferentes especialistas para perceber, de forma eficaz, acomplexidade de uma situação e a superposição de fenômenos que eles abordamseparadamente. Nesses empreendimentos que se querem pluridisciplinares, osgeógrafos têm, na verdade, um papel propriamente crucial a desempenhar e é precisodestacar que sua utilidade, na ocorrência, procede justamente (e paradoxalmente)daquilo que lhes vale ser freqüentemente denegrido pelos especialistas das outrasdisciplinas. O estatuto epistemológico da geografia lhes parece mais do que vago,sobretudo na sua concepção francesa, dilatado como é do campo das ciênciasnaturais ou das ciências sociais, mas ele implica que os geógrafos, mais que todos osoutros, sejam iniciados nos métodos e nas linguagens de bem diversas disciplinas, eisso é um trunfo precioso numa experiência pluridisciplinar.

Desde alguns anos fala-se muito nas vantagens da análise sistêmica para atingiras interações de fatores diversos que se superpõem na porção da realidade sobre aqual se quer agir. Mas para começar a desvendar esse magma confuso, é precisoprimeiro determinar a extensão espacial particular de cada um desses fatores e desuas variantes e, em seguida, examinar as interseções dos múltiplos conjuntosespaciais que foram delimitados assim. Analisar uma situação é, primeiro, levantar ou

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examinar cartas dos diferentes fenômenos que ali interferem. É o trabalho dosgeógrafos e a representação complexa que eles constróem da realidade(representação evidentemente parcial, como toda representação) uma das bases daanálise Sistêmica.

UM SABER CIENTÍFICO INCONTESTÁVEL SE É, NO SEU CONJUNTO,ORIENTADO PARA UM FIM

O desenvolvimento recente de reflexões ligadas ao interesse crescente que acomunidade científica dedica à análise dos sistemas, no quadro das experiênciasinterdisciplinares, permite colocar em termos novos o problema do estatutoepistemológico da geografia. A lista, à primeira vista, bastante heteróclita das diversascategorias de fenômenos que os geógrafos afirmam levar em consideração e, maisainda, a quantidade de conhecimentos que eles emprestam de várias ciências,levaram certos teóricos a considerar a geografia como uma espécie de sobrevivência,sem razão de existir hoje de discursos pré-científicos do passado. Evidentemente, oprogresso das ciências resulta, em grande escala, de uma divisão cada vez maisavançada do trabalho científico. Mas desde há alguns anos, ao lado das ciênciasstricto sensu, cada uma especializada na análise de um setor cada vez mais precisoda realidade, as reflexões epistemológicas novas legitimam o desenvolvimento desaberes científicos cuja característica e função são de combinar, de articularelementos de conhecimento que são produzidos por diferentes espécies de ciências.

Assim, a medicina ou a agronomia, por exemplo, são consideradas hoje comosaberes, na medida em que uma e outra combinam conhecimentos produzidos porciências cada vez mais numerosas, não somente a química e a biologia, mas ainda,por exemplo, a psiquiatria e a sociologia para uma, a pedologia e a economia para aoutra.

O fato de que os geógrafos consideram elementos de conhecimento elaboradospor múltiplas ciências não deve mais ser tomado, hoje, como a prova das carênciasou do estatuto epistemológico ultrapassado da geografia. Essa pode ser consideradaum saber científico, mas com a condição formal de que todos esses elementos deconhecimento, mais ou menos disparatados, não sejam mais enumerados,justapostos num discurso do tipo enciclopédico mas, ao contrário, articulados emfunção de um fim.

De fato, a legitimidade epistemológica de um saber se baseia, não mais numquadro acadêmico, seja ele científico, mas sobre práticas sociais providas deresultados tangíveis. São, aliás, as lições da vitória ou da derrota dos raciocíniosconstruídos em função do fim que se quer atingir, ou do resultado que se quer obter,que permitem os progressos dos métodos de um saber e que justificam o recurso aconhecimentos estabelecidos por ciências ainda mais numerosas.

Todo mundo sabe para que serve a medicina ou a agronomia. Mas para queserve a geografia? Essa questão que Hérodote colocou como início do mecanismoda discussão, pode parecer bem trivial a certas pessoas e muito distanciada dosraciocínios da epistemologia. Na verdade, ela é, para os geógrafos, a questãoepistemológica fundamental, pois segundo a resposta que lhe à dada, é o estatuto dageografia, na qualidade de saber científico que se acha fundamentado ou, aocontrário, recusado.

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Há trinta anos, certos geógrafos universitários aproximaram esta questão, masde forma parcial, desviada e de certa forma marginal, quando eles começaram a"fazer geografia aplicada". Não era a questão do estatuto da geografia, no seuconjunto, que estava colocada desse modo. Era somente (e era já muito) a tomada deconsciência de que certos métodos empregados pelos geógrafos podiam ser eficazespara a solução deste ou daquele problema técnico que engenheiros ou organizadorestinham que resolver. Mas esses métodos não são próprios aos geógrafos: eles sãotambém, e sobretudo, elaborados por especialistas dessa ou daquela disciplina eestes podiam recusar a competência daqueles. Nessas relações de tipo "binário"(entre geógrafos e pesquisadores de uma outra ciência), como as chama Jean Tricart,um dos grandes promotores da "geografia aplicada", não é o conjunto do raciocíniogeográfico que é elaborado, mas uma parte somente, e freqüentemente são,sobretudo, os métodos que os geógrafos, mais ou menos emprestam de uma outraciência. Por causa disso, a razão de ser da geografia não estava verdadeiramentedemonstrada.

Quando preconizou, em 1965, o desenvolvimento de uma geografia ativa3 PierreGeorge destacou que é na qualidade de aproche global, ao mesmo tempo "físico" e"humano" que essa deveria ser concebida e não como a aplicação desta ou daquelatécnica do "savoir faire" dos geógrafos. Mas os métodos desse aproche "global" (aomenos em função daquilo que consideram os geógrafos) não estavam claramentedefinidos e menos ainda os de análise espacial que são, no entanto, o domínioespecífico dos geógrafos. Enfim, essa "geografia ativa”, tanto quanto a geografia"aplicada", era ainda concebida como uma espécie de prolongamento de umageografia universitária, sobretudo preocupada com a ciência "pura" e cujasmotivações permanecem essencialmente acadêmicas.

Para que a geografia seja reconhecida pela comunidade científica como umsaber no sentido definido acima, e como um saber tão necessário como a medicinaou a agronomia4 é preciso que os geógrafos, quaisquer que possam ser as pesquisasde cada um deles e que façam ou não geografia "aplicada", estejam conscientes deque sua razão coletiva de ser na sociedade é de saber pensar o espaço para que alise possa agir mais eficazmente. É somente isso que dá um sentido à sua profissão eque justifica, epistemologicamente, o número de empréstimos que eles fazem dasoutras ciências.

Bem entendido, nos resultados obtidos por aquelas, os geógrafos levam emconta, sobretudo, os que são cartografáveis ou cartografados, quer dizer,suficientemente diferenciados espacialmente. De fato, fazem-se cartas também emoutras disciplinas (cartas do geólogo ou do pedólogo, carta do climatólogo, cartas dodemógrafo ou do etnólogo, etc.). A razão de ser dos geógrafos é de saber pensar oespaço em ,sua complexidade, como superposição e interações muito diversas e que,de acréscimo, tem dimensões bastante desiguais, desde aquelas de envergaduraplanetária até aquelas de certos elementos pontuais, significativas numa situaçãolocal.

É porque a realidade é complicada que os raciocínios que podem construir osgeógrafos são necessários, e, hoje, sem dúvida, mais ainda do que antigamente.Eles respondem a necessidades fundamentais, que são as do movimento, da ação,fora do quadro espacial familiar e essas necessidades se manifestam tanto maisfreqüentemente quanto mais se multiplicam as relações e as intervenções a grandedistância.

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SABER PENSARA COMPLEXIDADE DO ESPAÇO TERRESTRE

Para ter uma idéia mais precisa do papel que podem ter os geógrafos e o lugarque eles devem dedicar à ação, ao movimento em seus raciocínios, não é inútilesboçar algumas regras do saber-pensar o espaço.

Para ser eficiente, o geógrafo deve partir do princípio de que cada fenômeno quese isola pelo pensamento tem sua configuração espacial particular que corresponde,sobre a carta, a um certo conjunto espacial. Imenso é, portanto, o número5 dosconjuntos espaciais que superpõem na superfície do globo. Sua classificação seopera, de um lado, em função das categorias científicas (conjuntos topográficos,hidrográficos, geológicos, climáticos, botânicos, demográficos, econômicos, etc.) e, deoutro lado, em função de seu tamanho, distinguindo-se diferentes ordens degrandeza. De fato, as dimensões dos conjuntos espaciais que consideram osgeógrafos podem se medir em dezenas de milhares de quilômetros (primeira ordem),em milhares de quilômetros (segunda ordem), em centenas de quilômetros ( terceiraordem), em dezenas de quilômetros (quarta ordem), em quilômetros (quinta ordem),em dezenas de metros (sexta ordem), em metros (sétima ordem) ...

Nas discussões epistemológicas relativas à geografia, dá-se ênfase, sobretudo,à diversidade dos conjuntos espaciais em função das categorias científicas, mas nãose presta atenção geralmente às suas diferenças de ordem e de grandeza. É, noentanto, uma das características principais do raciocínio geográfico, uma das razõesde sua eficácia, mas também uma de suas dificuldades maiores, pois o problema nãose reduz à escolha das escalas das cartas (pequeníssima escala para representar osconjuntos de primeira ordem de grandeza, grande escala para representar os daquinta ordem ... ).

De fato, a observação geográfica é levada a níveis de análise muito diferentes,desde o nível mundial, que corresponde ao exame de conjuntos e de movimentos dedimensão planetária, até o nível que convém ao inventário das características de umlugar de pequenas dimensões (algumas centenas de metros, um "terroir", umaclareira, por exemplo). Há, grosso modo, tantos níveis de análise quantas são asordens de grandeza na gama dimensional dos conjuntos espaciais levados emconsideração pelos geógrafos. Mas os conjuntos das primeiras ordens são formadosem um grau de abstração bem mais avançado que os conjuntos de bem menoresdimensões. Ainda as representações que correspondem a esses diferentes níveis deanálise não se referem somente a territórios de desigual amplitude: são, de certaforma, qualitativamente diferentes e são, por isso, complementares.

No entanto, apega-se bem freqüentemente a um único desses níveis de análise,aquele que parece "ir por si mesmo", mas o raciocínio geográfico é então incompletoe priva-se das informações que forneceria o exame das representações em menor eem maior escala. Em contrapartida, trata-se de conduzir (ou de compreender)operações de pode sobretudo se elas são complexas e se implicam num certo risco, éentão indispensável, sob perigo de fracasso, conduzir a análise em vários níveis. Osucesso de uma estratégia, concebida em função das relações de forças sobre umespaço relativamente amplo, depende da maneira pela qual ela é elaborada sobre oterreno, por táticas que devem levar em consideração, configurações espaciais dedimensões bem menores.

São também as exigências do movimento e da ação que, bem freqüentemente,obrigam a examinar com atenção, em cada nível de análise, a extensão espacialprecisa das diferentes espécies de fenômenos que é necessário levar em

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consideração, como outros tantos trunfos, obstáculos ou handicaps. A reflexãoacadêmica se preocupou sobretudo com as coincidências que ela podia descobrirentre os conjuntos espaciais da mesma ordem de grandeza, mas derivando dediversas categorias científicas. Contudo, essa coincidências são pouco numerosasem comparação com as múltiplas interseções que formam, superpostas sobre umamesma carta, conjuntos topográficos, geológicos, climáticos, demográficos,econômicos, culturais, etc. Não é apenas particularmente interessante, do ponto devista científico, levar em consideração as não-coincidências entre as configuraçõesespaciais de fenômenos que poder-se-ia acreditar estarem estreitamente ligados unsaos outros, mas sobretudo é particularmente útil descobrir essas interseções naelaboração das estratégias e na escolha das táticas. Todo raciocínio geográfico (cf. oesquema, página 93) deveria repousar sobre:

- de um lado, a distinção sistemática dos diferentes níveis de análise, segundoas diferentes ordens de grandeza dos conjuntos espaciais;

- de outro lado, em cada um desses níveis, o exame sistemático das interseçõese coincidências entre os contornos de múltiplos conjuntos espaciais da mesma ordemde grandeza.

Pensar o espaço terrestre na sua complexidade não é, portanto simples , eaqueles que falam do espaço "banal" julgarão que tudo isso é muitíssimo complicado.Mas o grande epistemólogo que foi Gaston Bachelard mostrou no O racionalismoaplicado (1949) que "a explicação científica não consiste em passar do concretoconfuso ao teórico simples, mas em passar do confuso ao complexo inteligível".

COMO ARTICULAR OS DIFERENTES NÍVEIS DE ANÁLISE ?

É eficiente representar-se o espaço terrestre como se ele fosse uma "massafolhada”, distinguindo pelo pensamento diferentes planos ou níveis de interseções deconjuntos espaciais. Mas se os distinguimos metodicamente segundo as ordens degrandeza, é para melhor os articular uns com os outros. É para melhor compreenderuma situação local, para ali eficazmente, que é necessário levar em consideraçãointerseções de conjuntos sobre extensões bem mais amplas e é para elaborar, commais chances de sucesso, estratégias concebidas no plano internacional e no quadrode um Estado que se precisa analisar situações locais e o terreno (os terrenos) ondeelas serão, em última análise, aplicadas6 .

Mas o esquema deste modelo coloca em evidência que esses diferentes níveisde análise são separados uns dos outros por uma série de hiatos e estes constituema maior dificuldade conceitual do raciocínio estratégico. Como articular essesdiferentes níveis de análise?

Esse problema não é específico à geografia; ele se coloca tanto em históriacomo em economia, por exemplo: como combinar a "longa duração' e a "curtaduração"? Como articular a macro e a microeconomia? De fato, na maioria dasciências e dos saberes se está prestes a tomar consciência da importância desseproblema dos hiatos entre os diferentes níveis hierárquicos que se é levado adistinguir. O problema está colocado, mas a solução teórica não parece ainda ter sidoencontrada.

É finalmente com referência à prática, tendo-se em mente as lições de sucessoe as derrotas, que se tenta resolver o tão difícil problema do hiato entre os diferentes

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níveis de análise. Como assinala L. von Bertalanffy na sua Teoria geral dos sistemas,as análises sistemáticas e sua organização segundo uma certa ordem hierárquica,não devem ser concebidas no absoluto. Elas só têm sentido em função dos objetivosque se propõe atingir, levando-se em conta os entraves e os meios dos quais sedispõe. "Melhor compreender para melhor agir?”, escreve o promotor da análisesistêmica que lembra, com razão, que os progressos desse método datam, sobretudo,das Preocupações estratégicas da Segunda Guerra Mundial.

O procedimento dos geógrafos deve portanto ser operacional. Raciocíniogeográfico e raciocínio estratégico se juntam, na medida em que, um e outro, de umlado se referem constantemente às cartas e, de outro, se esforçam por combinardiversas categorias de fatores e por articular vários níveis de análise espacial. Semdúvida, no momento, bem poucos geógrafos raciocinam em termos de objetivos aatingir, mas seu número pode crescer num futuro relativamente próximo. Contudo,entre esses dois tipos de raciocínios há uma diferença capital, que não se podeesquecer. É que o geógrafo não é aquele que decide sobre uma estratégia, pois elenão é o chefe de Estado ou o chefe de guerra.

Mesmo no passado, quando o papel do geógrafo do rei era reconhecido comomuito importante, se a responsabilidade era grande, seus poderes eram muitolimitados e ele não era informado de todos os dados (políticos e militares) necessáriospara a escolha e para a execução das estratégias. Hoje, a autoridade dos geógrafos éainda mais restrita, pois se duvida, bem freqüentemente, de sua utilidade. Mas nósacabamos de ver que seu saber-pensar o espaço, sua verdadeira razão de ser, éparticularmente necessário às ações de grande porte e aos empreendimentos que sereferem a territórios e a efetivos de população relativamente importantes. Ora, essasações e esses empreendimentos derivam, de fato, daqueles que dirigem o Estado eesses, pelo exercício hierárquico do poder sobre subdivisões territoriais mais oumenos vastas, raciocinam da mesma forma que os geógrafos eficientes, emdiferentes níveis de análise.

Na verdade, a geografia é um saber político (polis, a cidade, termo geográficopor excelência!), mas não é o geógrafo que exerce o poder. Sua visão do mundo e dopaís em que vive é, por vezes, próxima daquela do príncipe, mas ele não é o príncipe;na melhor das hipóteses, ele pode ser um dos seus conselheiros. Não é possívelcompreender para que servem e, sobretudo, para que podem servir os geógrafos,sem colocar os problemas do político.

...O POLÍTICO

Por político, neste texto, não se deve entender o homem político, quer seja elehomem de Estado ou político, nem a política, quer seja ela discurso ou exercício dopoder, mas uma certa categoria de fenômenos sociais. Esta se refere a umarepresentação da sociedade que, por nela ver mais claro, classifica as múltiplasrelações sociais, superpostas umas sobre as outras, em função de diferentespreocupações teóricas. Antes de distinguir categorias de fenômenos, o que podedeixar entender que elas são nitidamente separadas uma das outras, ospesquisadores, dos mais prevenidos, e notadamente Robert Fossaert1 preferem olhar

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todas as sociedades em função de três procedimentos de investigação, em função detrês "instâncias" principais, a do econômico, a do político2 e a do ideológico

RECUSAR O PRIMADO DO ECONÔMICO

Embora essas três instâncias sejam necessárias, a do econômico é que setornou a representação preponderante da sociedade e o discurso economicista, refira-se ele ou não aos preceitos do "materialismo histórico", tende a exercer umainfluência hegemônica sobre o conjunto das ciências sociais e sobre o modo depensar os problemas de nosso tempo. Considerando tudo aquilo que provém dopolítico e da ideologia como subproduto do econômico, veio-se a reduzir oimperialismo aos mecanismos da "troca desigual" e a considerar que a transformaçãoradical das relações de produção, a supressão da propriedade privada dos meios deprodução podiam resolver os problemas políticos e ideológicos de uma sociedade.Estamos longe disso e percebe-se hoje que essas teses que louvaram apreponderância do econômico serviram, notadamente, para minimizar a organizaçãodos gulags, fenômeno capital que, este sim, provém do político.

Ao mesmo tempo, os economistas tomaram-se os gerenciadores das mudançasda sociedade e os organizadores de seu desenvolvimento. Eles são, a partir de agora,muito numerosos nos aparelhos de Estado e muitos deles se tornaram ministros, oumesmo chefes de Estado. Deve-se, de um lado, aos economistas o grandecrescimento, sem quebra, da economia mundial (sobretudo a dos países"desenvolvidos") entre o fim da Segunda Guerra Mundial até o início dos anossetenta, longo período de expansão, como jamais foi visto na história do capitalismo.Durante cerca de trinta anos eles souberam gerir as contradições desse sistema e,por intermédio das administrações estatais e instituições financeiras internacionais,eles conseguiram sobrepujar tal fator de recessão ou de bloqueio pelo relançamento,no momento oportuno, de determinado setor de investimento ou de especulação.

Mas a crise econômica mundial que causa estragos, desde há mais de dezanos, reduz a soberba do "economicismo" e percebe-se hoje que esse enormecrescimento foi, em grande medida, uma espécie de fuga para a frente e que osplanos de desenvolvimento concebidos pelos economistas, sejam eles "burgueses" ou"marxistas", não chegaram a resolver os problemas do Terceiro Mundo. Nos próximosvinte anos, a maioria desses países deverá suportar uma nova duplicação de suapopulação (esta já dobrou desde os anos cinqüenta) e a triplicação ou mesmoquadruplicação de suas grandes aglomerações urbanas. Para fazer face a taisurgências, a prova já está dada de que a planificação econômica não é suficiente. Épreciso tentar resolver, o mais depressa possível, um certo número de problemasfundamentais, que são geográficos. Os geógrafos devem cessar de ficar a reboquedos economistas.

Nós já dissemos que um rápido desenvolvimento agrícola exige que seja levadaem conta a superposição espacial de fatores positivos e negativos, naturais ouhumanos, que os economistas, com sua concepção do espaço "banal" ou "vulgar",negligenciaram, voluntariamente. Geógrafos eficientes são indispensáveis para umaverdadeira organização do desenvolvimento agrícola que deve, com os meios locaispara o essencial, visar aumentar o volume das produções, cuidando da salvaguardados recursos não-renováveis, a água e os solos, que já estão gravementedegradados. Nesse imenso empreendimento que deve levar em conta a extrema

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variedade das situações locais e regionais, a concepção francesa da geografia, tudojunto, "física" e "humana", aparece como uma das mais eficientes.

Quanto ao enorme crescimento urbano que irá se produzir daqui até o fim desteséculo em numerosos países do Terceiro Mundo (uma cidade como a do Méxicoatingirá então os trinta milhões de habitantes!), não são receitas arquitetônicas ouurbanísticas que podem permitir fazer face a isso. É preciso uma estratégia eficienteda organização do conjunto do território e, para tanto, é preciso geógrafos também. Enão são somente esses dois gigantescos problemas do Terceiro Mundo quenecessitam de sua intervenção. Nos países "desenvolvidos", inúmeros problemas,como por exemplo aquele que se chama regionalização ou redimensionamentoindustrial, pedem o concurso de especialistas do saber-pensar o espaço.

Esse saber se toma tanto mais necessário quanto mais se multiplicam e seaceleram as relações, as intervenções, as interações a grande distância. O raciocínioa nível mundial se toma, sem dúvida, cada vez mais indispensável, mas para sereficiente, ele deve ser combinado com a observação a outros níveis de análiseespacial. Os fenômenos de "planetarização" não fazem desaparecer, o que quer quepossam dizer alguns, aquilo que se passa a nível local, regional e nacional.

Todos esses problemas que é preciso resolver fazem com que o papel dosgeógrafos possa se tornar mais importante do que nunca. Há quarenta anos, pouconumerosos eram aqueles que previam a influência considerável que iriam exercer oseconomistas; tal influência esteve na medida dos problemas econômicos que foipreciso resolver. Eis que chega agora o tempo dos geógrafos.

A GEOGRAFIA, DE NOVO UM SABER POLÍTICO

Mas para isso é preciso formar geógrafos eficientes que tenham o gosto e osenso da ação. É preciso também que eles estejam conscientes do procedimento, daimportância dos fenômenos que advêm do político.

Ora, os geógrafos universitários, e em especial os franceses, se recusaram,durante muito tempo, e se recusam ainda, na maioria das vezes, a levar emconsideração os problemas políticos, sob o pretexto implícito de que estes últimosnão seriam "geográficos". Esse argumento, que geralmente deriva de regras não-ditas, mas não menos poderosas, da corporação, não é séria, na medida em que umbom número dos fenômenos políticos essenciais são, eminentemente, espaciais ecartografáveis, tais como o Estado, suas fronteiras, suas subdivisões territoriais e suaestrutura urbana. Esses "dados" não mais foram julgados dignos de raciocíniocientífico porque eles eram, digamos, "evidentes"; os da geografia eleitoral não oeram contudo, mas os geógrafos universitários não privaram os sociólogos dessedomínio de pesquisas.

Essa exclusão da política do campo daquilo que se pode chamar degeograficidade (disso que os geógrafos3 consideram como "geográfico") é tanto maisnotável porque, durante séculos, a geografia tinha sido considerada um sabereminentemente político. Na França é quando se começa a ensinar a geografia nasuniversidades que os primeiros mestres dessa disciplina decidiram de algum modoque, para fundar uma ciência nova (pois tal era seu projeto, esquecendo que seuspredecessores já tinham um procedimento bastante científico), era-lhes necessárioestabelecer leis objetivas e excluir de suas preocupações, problemas que constituíammatéria de controvérsia, de propaganda e de conflitos. No entanto, seus colegas

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historiadores, esforçando-se em construir um saber objetivo, nem por issoproscreveram o político do campo da historicidade. A vontade dos geógrafos dereduzir a geografia a um saber apolítico sobrevem de causas complexas4, maspoderosas, pois elas levaram a corporação a "esquecer”, a passar em silêncio, nãosomente a grande obra de Elisée Reclus, mas também a obra capital, na verdade, do"pai da geografia francesa", Vidal de La Blache5.

A exclusão do político pelos geógrafos universitários teve graves conseqüênciaspara a evolução desse saber. Essa regra, tanto mais por não ser explicitamente dita,bloqueou a reflexão epistemológica sobre a geografia, no momento em que esta seencontrava assim, dissimuladamente atrofiada. Foi então que os geógrafoscomeçaram a perder a consciência de sua razão de ser, que seu discurso se tomoucada vez mais acadêmico e que seu papel se tomou mais e mais incerto aos olhosdos especialistas das outras disciplinas, como aos dos dirigentes políticos.

Essa exclusão da política não tem qualquer justificativa epistemológica séria e épreciso reagir e mostrar qual pode ser o papel dos geógrafos.

Como é em função de operações de envergadura que seu saberpensar oespaço parece ser mais necessário, e como essas operações colocam problemaspolíticos e dependem daqueles que dirigem o Estado, é preciso demonstrar a estes,como a todos aqueles que se preocupam com o destino de seu país, que osraciocínios dos geógrafos permitem compreender melhor os fenômenos políticos etambém serem mais eficientes. Trata-se de trazer de volta os geógrafos sobre oterreno da política e que eles ali façam a sua prova. Tal é o projeto da Hérodote.

"HÉRODOTE", REVISTA DE GEOGRAFIA E DE GEOPOLÍTICA

Seguramente, o termo geopolítica foi proscrito há decênios, sob pretexto de queele esteve estreitamente ligado à argumentação do expansionismo hitleriano. Mas,pelo mesmo motivo se baniu a biologia, da qual os teóricos nazistas das "raçassuperiores" fizeram o uso que se sabe?

Na verdade, os raciocínios geopolíticos, isto é, tudo aquilo que mostra acomplexidade das relações entre aquilo que sobrevem da política e as configuraçõesgeográficas, não são mais de "direita" do que de "esquerda", não mais "imperialistas"que liberadores. Eles servem àqueles que os utilizam e são, evidentemente, matériapara refutação e controvérsia. Tal argumentação que lesa os interesses de tal grupoou de tal povo será refutada por um outro raciocínio que é, também, geopolitico. Ela oé também tanto da história como da economia, cujas teses servem, em primeiro lugaràqueles que as afirmam, mas isso não impede seus saberes de serem respeitados ede se encaminhar, nas polêmicas, para um conhecimento menos participante darealidade.

Os dirigentes dos povos que lutaram, ou lutam ainda, para a independência oupara a autonomia, também eles fazem geopolítica, mas seus argumentos não são,evidentemente, os mesmos que os das potências que os dominam. Na França, a obrado grande geógrafo libertário Elisée Reclus é, numa grande proporção, umageopolítica: ele analisa, notadamente, as razões geográficas que fazem os povosoprimidos lutarem entre si e, por vezes, mais ferozmente ainda do que contra asforças que os oprimem. Reclus considerava o raciocínio geográfico (ele aí incluía,evidentemente, o que sobrevem do político) um meio de resistência à opressão e eledesejava fazê-lo conhecer ao maior número de cidadãos. É porque esse teórico do

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movimento libertário foi, da mesma forma, um extraordinário geógrafo.Contrariamente ao que pensam certas pessoas6, o raciocínio do tipo geopolítico nãopostula o primado do Estado: ele é utilizável por aqueles que o combatem. Mas nãoadianta nada, sobretudo para um geógrafo, fazer como se o Estado não existisse, eorientar uma geografia política em direção a uma geometria do poder, este sendovisto, em princípio, ao nível das relações de pessoa a pessoa (o homem, a mulher, ospais e as crianças), pois estas não são cartografáveis.

Inversamente, contrariando o que é dito o mais das vezes, as reflexõesgeopolíticas não se situam somente a nível planetário ou em função de vastíssimosconjuntos territoriais ou oceânicos, mas também no quadro de cada Estado, aícompreendidos aqueles cuja unidade cultural é grande. Da mesma forma, o raciocíniogeopolítico não se aplica somente aos conflitos violentos e ele esclarece, de maneiranova e bem útil, os problemas de regionalização e a geografia das tendênciaspolíticas e isso, às vezes, no quadro dos conjuntos territoriais relativamente poucoextensos.

Na França e em outros países, o termo geopolítica começa a ser utilizado cadavez mais freqüentemente na mídia; ele começa mesmo a ser uma fórmula em moda.Com efeito, desde que o mundo aparece como muito mais complicado do queafirmavam grandes discursos maniqueístas (Leste/Oeste, Norte/Sul, centro eperiferia), uma notável parte da opinião começa a pressentir que é importanteconsiderar as configurações espaciais no exame das relações de forças, e que certosproblemas, particularmente efervescentes, são bem complicados. É o que explica aatenção que tal opinião dedica, desde algum tempo, a tudo que faz referência àgeopolítica. Mas esse interesse, muito freqüentemente, não é totalmente satisfeitoporque, na mídia, a etiqueta “geopolítica" cobre muitas banalidades ou slogansdeformantes. A essa procura é preciso responder de modo mais satisfatório. É precisodesmascarar as especulações geopolíticas.

Para aí se ver mais claro e para melhor explicar, para colocar em evidênciaestratégias ocultas, é preciso recorrer à carta, examinar e mostrar não somente umacarta, mas cartas que, estabelecidas em escalas diferentes, permitam atingir asuperposição dos problemas e das relações de forças, em função de territórios deextensão maior, ou menor. Nesse domínio, o saber-pensar o espaço dos geógrafosaparece com toda a sua eficácia. De pronto, começa-se a compreender que ageografia não é a disciplina simplista e maçante da qual se conserva, após o colégio eo liceu, uma lembrança mais ou menos vaga. Começa-se a perceber no que ageografia é um saber fundamental.

Não se trata, evidentemente, de reduzir a geografia ao raciocínio geopolítico,mas este foi durante tanto tempo excluído das preocupações dos geógrafos, e tãopoucos se preocupam ainda hoje com ele, que é preciso destacar sua importância eseu interesse. Hérodote não se especializa no estudo das questões políticas. Suaambição é bem mais ampla, pois se trata de restabelecer a geografia, ao mesmotempo "física" e "humana", no estatuto que durante séculos foi o seu, o de um saberpolítico.

É respondendo à questão Para que serve, para que pode servir a geografia?,que se pode mostrar qual é e qual pode ser o papel dos geógrafos no seio da nação.

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ENSINAR A GEOGRAFIA*"Não há geografia sem drama"

É uma grande honra para um geógrafo ter de falar da geografia neste grandecolóquio consagrado à história e, ainda mais, por ocasião da sessão inaugural. Mas étambém uma tarefa bastante temerária, pois - para mim - não se trata tanto de fazer opanegírico da geografia como de analisar, para melhor defendê-la, quais são ascausas profundas daquilo que se pode chamar seu descrédito.

Não que eu seja um geógrafo envergonhado, bem ao contrário. E é essa umadas razões pelas quais estou particularmente consciente da distância entre a idéiaque se faz habitualmente da geografia e aquilo que ela deveria ser.

Não é significativo que este colóquio seja essencialmente consagrado à história,quando essas duas disciplinas estão tradicionalmente associadas à escola, ao colégioe ao liceu? Mas eu compreendo as razões desta escolha. De fato, num país como aFrança, dá-se bem maior importância à história que à geografia, a "imagem de marca"desta última não sendo particularmente boa, e isso contrasta com os progressosatuais que faz a geografia no domínio da pesquisa.

Mas, primeiro, por que essas duas disciplinas são assim Associadas no sistemaescolar francês? É uma de suas originalidades (alguns dirão: é um dos seus defeitos)e não é a mesma coisa em outros países, a Inglaterra e a Bélgica, por exemplo, paranão citar senão os casos mais próximos.

Poder-se-ia acreditar que é somente por razões de comodidade administrativaque foi decidido, no século XIX que, no secundário, um só e mesmo professorensinaria essas duas "matérias", como se dizia antigamente. Na verdade, essaassociação da história e da geografia foi decidida por razões que eu acredito bemmais profundas e sobretudo para articular as duas categorias kantianas fundamentais,o espaço e o tempo. Com efeito, a geografia está no espaço, deveria estar no espaço,da mesma forma como a história está no tempo.

Mas na realidade, na escola, nos colégios, no liceu, como na universidade, ondeé formada uma parte dos professores destas duas disciplinas, esta articulação dahistória e da geografia não existe mais e, se elas são ensinadas no primário e nosecundário pelos mesmos mestres, é de modo totalmente desigual e separado. Osprofessores de história e geografia têm principalmente uma formação histórica e elepossuem, sobretudo, como conjunto de opinião, uma sensibilidade histórica. Eles sesentem nitidamente mais gratificados pelo ensino da história e inúmeros delesreconhecem que têm menos satisfação, muito mais dificuldades para ensinargeografia. Eu diria francamente que, na maioria das vezes, esta não interessa maisaos alunos do que aos seus pais, da forma como é conhecida atualmente.

Se desde há alguns anos nos preocupamos - aqui compreendendo "altosmeios", com as carências do ensino da história e este colóquio é uma das principaisprovas dessa preocupação -, quem se inquieta com o marasmo bem maior ainda, emais antigo, da geografia? Muito pouca gente e, é preciso dizer, não muitosgeógrafos.

É porque René Girault, organizador deste colóquio, tomou conhecimento doembaraço de numerosos professores com respeito à geografia, que ele achou quedeveria levar em consideração os problemas desta disciplina nos objetivos da missãoda qual o encarregou o ministro. Inicialmente este colóquio só concernia à história.

Ensinar a geografia no primário e no secundário, não é coisa cômoda. Temostodos, ou quase todos, a lembrança das lições de geografia particularmente tediosas,

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tal por exemplo, "a desigualdade dos dias e das noites" ou "longitude-latitude,meridianos e paralelos" (aliás, não é exatamente geografia, mas sobretudoastronomia), que são os deveres aborrecidos pelos quais se inaugura, ritualmente, oprograma de geografia geral. Além disto, os historiadores não conservam uma boalembrança das provas de geografia que eles tiveram de se submeter para a licença oua "agrégation", e os cortes geológicos estão na origem de sólidos rancores.

Ensinar a geografia, dizia eu, não é coisa cômoda e no entanto essa disciplinanão parece árdua: ela descreve paisagens, enumera nomes de lugares, e algumascifras; na aparência, ela seria antes simplista e a tal ponto que, desde há decênios,pensa-se que se pode encarregar dela professores que não tiveram formação nessedomínio.

Poderia eu dizer que as dificuldades da geografia no ensino secundário sedevem ao fato de que ela é sobretudo ensinada por homens e mulheres que têmprincipalmente o gosto pela história? Não, ou ao menos eu diria que isso não é oessencial. "Agregés" de geografia não reconhecem que têm, freqüentemente, menosdificuldade em ensinar a história que a disciplina para a qual eles são, contudo,formados. Isso não quer dizer que os historiadores não tenham dificuldadespedagógicas a transpor no ensino da história, mas essas me parecem bem menoresque para o ensino da geografia.

De fato, o discurso histórico é levado por uma espécie de tensão dramática(salvo, talvez, quando ele trata da evolução de certos fenômenos econômicos esociais sobre tempos longos ou muito longos). Em contraposição, a descriçãogeográfica de um país, de uma região, é geralmente desprovida de toda tensãodramática e consiste, o mais das vezes, numa enumeração de rubricas distintas:relevo, clima, vegetação, povoamento, agricultura, indústria, etc.

"Fazer história”, ao menos na escola, no colégio e no liceu é, primeiro, issodeveria ser em primeiro lugar (não somente, mas em primeiro lugar), contar umahistória, explicar uma sucessão de fatos mais ou menos dramáticos, cujasconseqüências foram importantes para este ou aquele povo e, primeiro, para o nosso.Sem dúvida dedicaríamos hoje, menos interesse às ações dos "grandes homens",mas a carga dramática da narração histórica permanece forte quando ela evoca seusheróis, que são os povos, sobretudo quando eles lutam para a independência ou paramais liberdade. É claro que se pode falar de tudo isso de forma maçante e monótonamas, freqüentemente, o professor é "levado" pela história que ele conta, pois ela éapaixonante e basta que ele tenha talento e que saiba conduzir o "suspense" paramanter a respiração presa em seus jovens auditores e isso é, para ele, bastantegratificante.

Em contrapartida, quando se trata de geografia, a tarefa do mesmo mestre ébem mais ingrata, pois seus propósitos são, então, desprovidos de tensão dramática:a propósito de tal país ou de tal parte do programa, é preciso que ele enumerediferentes categorias de conhecimento "que se deve saber” (mas para fazer o quê?) eos raciocínios que ele esboça, para ligá-los uns aos outros, permanecem bastanteformais. O discurso geográfico evoca, na maioria das vezes, permanências oufenômenos que evoluem sobre tempos relativamente longos ou muito longos; sóraramente se trata de mecanismos ou acontecimentos. Nas descrições ouexplicações geográficas não há qualquer "suspense" para manter o interesse dosalunos e é preciso muito talento e competência para que um tal discurso não acarreteaborrecimento.

Para ir ao encontro das enumerações de rubricas e das nomenclaturas, o estudodo "meio local", aquele onde se encontra a escola, foi preconizado como

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"procedimento de estímulo", notadamente no ensino primário. Mas ali também seafirma que ensinar a geografia não é coisa fácil, e talvez mais ainda por essesmétodos ativos. O estudo do meio local, para ser frutífero, exige a reunião decondições que são, a bem dizer, bastante excepcionais: tempo, entusiasmo, mestressolidamente formados que sejam capazes de operar múltiplas comparações e deserem pesquisadores perspicazes e bons observadores do terreno. Sem isso, e ébem freqüente o caso, não se trata senão de propósitos descozidos, enumerandoalguns aspectos de um quadro bem familiar aos alunos para que eles tenhaminteresse nisso.

Os cursos e os manuais de geografia não são mais hoje o que foram outrorapara um grande número de futuros cidadãos, isto é, o inventário da diversidade domundo e a descrição do seu próprio país. De fato, a mídia difunde quotidianamenteuma massa de informações e de imagens e isso de modo espetacular e a propósitode acontecimentos ou de circunstâncias mais ou menos dramáticas. Em comparação,o professor de geografia foi reduzido a enumerar banalidades bastante estáticas.

É quando devem tratar da França e, talvez mais ainda, da região em que vivemseus alunos, que os professores encontram mais dificuldades, em razão do pequenointeresse dos jovens com relação a essa parte dos programas. Isso deveria serconsiderado com um dos sintomas, dos mais graves, do mal-estar do ensino dageografia. De fato, não é primeiro para falar da pátria aos futuros cidadãos, para lhesfazer conhecer seu país, que um ensino de geografia, assim como também o dehistória, foi considerado necessário e obrigatório no fim do século XIX, notadamenteapós o traumatismo da derrota de 1870? Esse cuidado foi tal que, durante mais dequarenta anos, o livro de leitura corrente de todos os pequenos franceses foi ofamoso Volta da França por duas crianças, que é, na verdade, um livro de história esobretudo um livro de geografia política. De fato hoje, num país como a França, sefala menos da pátria que antigamente e isto é, sem dúvida, um erro, mas há diversasrazões para tal.

Em contrapartida, fala-se muito mais do que no passado das "regiões", esobretudo da "região", onde se vive e se fala de forma nova. Quando certas pessoasreivindicam o direito de "viver e trabalhar na região", é o "recanto"* que eles evocam,o subconjunto regional. Ora, basta folhear manuais de geografia, os das classes deterceira e de primeira** e comparar os manuais de trinta anos atrás e os de hoje, paraconstatar a enorme redução, nos últimos dez anos, do lugar dedicado ao estudo dageografia regional da França.

Essa região é vista, sobretudo daqui para a frente, de maneira "temática", emfunção dos diferentes setores econômicos e sociais, o que não quer dizer que istointeresse tanto aos alunos, mas os professores preferem se referir ao discursoeconomicista dominante do que descrever os Alpes ou o Maciço central.

Inquietam-se, indignam-se porque os jovens franceses não ouvirão mais falar naescola, no colégio e no liceu, de Joana D'Arc, de Henrique IV, de Robespierre ou daguerra de 14. Por outro lado, não parece que nos preocupamos que eles não ouçampraticamente mais falar, no ensino primário e secundário, da Lorena e da Alsácia, daBretanha ou da Córsega, como se alguns catálogos de agência de turismo ou slogansautonomistas suprissem a falta. É significativo que o "relatório Girault" não tenhasuscitado na imprensa senão comentários a respeito da história, uma vez que dizrespeito, da mesma forma, ao ensino da geografia.

Enquanto os mal-estares da história contrastam com os seus sucessos na mídiae têm um prestígio científico indiscutível, a geografia é, para a maioria das pessoas, enotadamente para os intelectuais, sinônimo de disciplina chata, inútil, e na

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comunidade científica ela é objeto de polida indiferença ou de uma indagação de suarazão de existir. Enquanto nos Estados Unidos uma revista de geografia, a NationalGeographic Magazine, que existe há cerca de um século, conta hoje 10 milhões deassinantes (é, por esse motivo, a terceira revista americana), na França as revistas degeografia, e não as menores, têm tiragem de alguns mil exemplares, que só são lidospelos geógrafos universitários, nem mesmo pelos professores do secundário. Aocontrário, na França uma revista como L’Histoire tem uma tiragem de 50.000exemplares.

Se nos indignamos através da imprensa pelas "falências" da história escolar e seinjuria até quanto a suas orientações, é porque o alcance político e a função cívicadessa disciplina são evidentes. Em contrapartida se somos, na França, de tal formaindiferentes ao marasmo da geografia, é porque a utilidade, o alcance político (políticoe não politiqueiro) e sobretudo o interesse estratégico desse saber são, desde hádecênios, sistematicamente esquecidos e, em primeiro lugar, pelos própriosgeógrafos universitários e professores para cuja formação estes últimos contribuíram.

Para fazer compreender quais são os problemas fundamentais que coloca oensino da geografia e a importância das lutas, parece-me indispensável lembrar isso:a geografia já existia bem antes que aparecesse, no século XIX, sua forma escolar euniversitária. Desde há séculos, desde que existem os mapas, ela é um saberindispensável aos príncipes, aos chefes de guerra, aos grandes comissários doEstado, mas também aos navegadores e aos homens de negócios, ao menos paraaqueles cujo espírito de empreendimento se exerce além do quadro espacial que lhesé familiar. Essa geografia que eu chamo fundamental está hoje mais ativa e maisprecisa do que nunca (nem que seja por causa das observações fornecidas pelossatélites), mas ela é discreta, às vezes secreta, e destinada, como o é, aos estados-maiores militares ou financeiros, ela permanece ignorada do grande público, comoacontece também com os professores de geografia. Mas estes deveriam explicar,localizar os grandes mecanismos e as principais relações de força.

Ora, desde o fim do século XIX a aceitação da palavra geografia se reduziuconsideravelmente, sem aliás nenhuma justificativa teórica, e hoje habitualmente nãose designa mais esse saber eminentemente estratégico que é a geografiafundamental, mas um discurso bem diverso, desprovido de conflitos, a geografia dosprofessores, e é dela que cada um conserva uma lembrança mais ou menos vaga; elaé destinada, não mais aos príncipes, aos chefes de guerra ou aos mestres dasgrandes empresas, mas aos alunos. De fato, desde o fim do século XIX e por razõesque foram primeiro patrióticas, considerou-se que era preciso ensinar rudimentos degeografia e de história aos futuros cidadãos. A função dessa geografia escolar não é,evidentemente, mais estratégica, mas ideológica e até o período entre as duasguerras o seu significado político ficou evidente: ela falava primeiro da pátria e a cartada França, que outrora reinava em permanência nas salas de aula era, para osalunos, a representação, a mais evidente, de seu país.

Mas, no início do século XX, tornando-se saber universitário, principalmentedestinado à formação de futuros professores de história e de geografia do ensinosecundário, a geografia sofreu uma mutilação capital: a exclusão do político do campodaquilo que se pode chamar de geograficidade (isto é, daquilo que é consideradocomo "geográfico"). De fato, os primeiros geógrafos que foram admitidos para ensinarna Sorbonne e que se tomaram os mestres pensantes dessa nova disciplinauniversitária, foram levados a crer que, para construir uma "ciência", uma verdadeiraciência, eles deviam expurgar seus discursos de toda alusão aos fenômenos tocando,de perto ou de longe, o político. Abandonando, por exemplo, a análise das formas de

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organização territorial dos Estados e a dos problemas de fronteiras, os geógrafosuniversitários renunciavam assim àquilo que havia sido até então uma das razões deser fundamentais da geografia. Seria muito longo evocar aqui as razões complexasque conduziram os geógrafos franceses a fazer como se os fenômenos políticos nadativessem a ver com a geografia e a "esquecer', sistematicamente, obras dos maioresdeles, não somente a de Elisée Reclus, o geógrafo libertário, mas também o alcancedo livro de geopolítica sobre A França de Leste, de Vidal de La Blache, mesmo queeste último seja celebrado como o "pai da escola geográfica francesa”

Sem dúvida, tanto para os historiadores, como para os geógrafos, era precisoromper com as arengas "fardadas", ou propagandistas, mas logo que os primeiros sedesligaram, pouco a pouco, das preocupações políticas, os geógrafos, semargumentar de forma alguma, chegaram a se impor essa idéia, no entanto absurda,de que os problemas dos Estados não eram "geográficos" e que tal tipo de questõesnão é de sua competência. Que seria da história, hoje, se os historiadoresuniversitários, no início deste século, tivessem sido levados a decidir, em nome daciência e da objetividade, que os fenômenos políticos deviam ser excluídos da históriacientífica? É, no entanto, o que fizeram, de sua parte, os geógrafos universitários eeles inculcaram essa concepção atrofiada da geografia nos professores que formarame eles próprios difundiram tal idéia, no conjunto da opinião. Não é de se admirar queesta opinião não se preocupe mais com esse saber, do qual foi retirado o 'essencialde sua razão de ser, e cujo alcance político e a função cívica foram, sistematicamentecamuflados pelos mesmos que têm a função de a fazer conhecer.

Compreende-se melhor assim que, diferente do discurso histórico, o discursogeográfico seja tão desprovido de tensão dramática: é o que o toma tão maçante etão difícil de ser ensinado. Eliminando, sem mesmo o perceber, os problemaspolíticos, quer dizer, as rivalidades entre. os grupos sociais e os conflitos entre osEstados, os geógrafos se privam de poder mostrar, demonstrar, a importância dosfenômenos que eles descrevem e enumeram. Eles não podem fazer com quecompreendam que se trata de mecanismos consideráveis para forças que seconfrontam, trunfos ou handicaps nas estratégias que eles elaboram. Ousar-se-iadizer que o controle do espaço, sua organização, não é um mecanismo deimportância?

Aos futuros professores de história e geografia foi inculcada uma concepção degeografia que se proclama "científica” e que não é, na realidade, mais do que umaconcepção acadêmica, uma vez que ela reduz um saber cuja razão de ser é a ação, aum discurso "desinteressado", sem conflitos. Essa redução, sob pretexto de"cientificidade" do campo da geografia se opera sorrateiramente, à força de não-ditos,sem a menor justificativa teórica, e não há qualquer razão epistemológica para que secontinue a interiorizá-la hoje. É preciso, ao contrário, que os professores de história ede geografia, como também os geógrafos universitários, retomem consciência dasverdadeiras dimensões da geografia, as da geografia fundamental, e compreendamque a razão de ser desse saber-pensar o espaço é a de melhor compreender omundo para aí poder agir com mais eficácia. "Não há geografia sem drama!",exclamou um dia o grande geógrafo Jean Dresch, que foi presidente da UniãoGeográfica Internacional - fórmula epistemológica lapidar, cujo valor científico é tãogrande quanto o alcance pedagógico.

"Não há geografia sem drama”, como não há história sem drama. Não se trata,evidentemente, para o historiador, de se deliciar na exposição das tragédiassangrentas (elas são, infelizmente, numerosas), como também não é o caso dogeógrafo só se interessar pelas catástrofes naturais. O drama, etimologicamente, é

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primeiro a ação, é em seguida o "relato de uma sucessão de ações, de forma ainteressar, a comover espectadores no teatro"; e por que não os alunos numa sala?Não se trata somente de ajudar os professores a transpor certas dificuldadespedagógicas; trata-se de um objetivo cívico que concerne, na verdade, à naçãointeira. É preciso que os cidadãos, e sobretudo aqueles que estão mais preocupadoscom os problemas de nosso tempo, se interessem tanto pela história como pelageografia.

De fato, nunca conhecimentos geográficos e uma iniciação ao raciocíniogeográfico verdadeiro foram tão necessários à formação dos cidadãos. Isso resulta,ao mesmo tempo, do papel considerável da mídia e do desenvolvimento deprocedimentos democráticos na sociedade francesa da segunda metade do séculoXX.

A mídia transmite informações procedentes de todos os países do mundo(ciclones, tremores de terra, mas também guerras civis e conflitos de todas asordens). Se não se quer que essa onda de notícias provoque a indiferença da opinião,é preciso que esta possa integrá-las a uma representação do globo suficientementeprecisa e diferenciada. O mundo é ininteligível para quem não tem um mínimo deconhecimentos geográficos.

Além do mais, nunca num país como a França, os cidadãos se sentiram tãoenvolvidos por questões que são, na realidade, problemas geográficos, os do meio,do urbanismo, da regionalização ... Enquanto que, há trinta anos, as decisõesrelativas à implantação de grandes equipamentos industriais, ao traçado dos grandeeixos de circulação ou aos planos de urbanismo, por exemplo, não decorriam senãodas discussões de um pequeno número de técnicos e de homens políticos, hoje umnúmero crescente de cidadãos quer participar dos debates relativos à organização doespaço, quer se trate do plano de ocupação dos solos de sua comuna ou do"aménagement" do território na região em que eles vivem. Ainda é preciso que essescidadãos tenham recebido a formação que lhes permita compreender do que se trata,de ler uma carta ou um plano e de recolocar os problemas locais em função daquelesda região e do conjunto do país, na ausência do que os procedimentos de consultademocrática são esvaziados de sua razão de ser, quando mais eles não sirvam deálibi a diferentes grupos de pressão.

Mas para que os cidadãos se interessem pela geografia e compreendam autilidade dessa maneira de ver o mundo, é preciso reintroduzir a tensão dramática, areferência às ações e aos mecanismos, nos discursos dos geógrafos. O problema daformação dos professores tem portanto uma importância capital e se trata menos deaumentar o estoque de conhecimentos de cada um, que de os entranhar nosdiferentes tipos de raciocínios geográficos e de os conduzir a tomar consciência dasverdadeiras razões de ser da geografia.

É preciso dizer que se deve desejar que essa disciplina seja ensinada porespecialistas que tenham recebido uma formação essencialmente geográfica? Noensino primário é evidentemente impossível e, no secundário, sendo as coisas taiscomo são, é, na grande maioria das vezes, a homens e mulheres que têm sobretudoo gosto pela história que se dá a incumbência do ensino da geografia e, já dissemos,eles consideram isso, freqüentemente, uma tarefa ingrata, essencialmente por causada ausência de significado político e da ausência de tensão dramática nas descriçõesgeográficas tradicionais. Ora, é justamente esse alcance político e essa cargadramática que se trata de introduzir de novo no raciocínio geográfico, e eu penso quequalquer um que tenha o gosto pela história pode facilmente atingir o interesse doverdadeiro raciocínio geográfico, aquele da geografia fundamental, com seus

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mecanismos e relações de forças que devem levar em consideração, sob pena defracasso, tanto as configurações do terreno, como a localização dos grupos étnicos ouculturais. Este saber estratégico foi tão freqüentemente elaborado na história, que umhistoriador não pode ficar indiferente a isso.

A geografia deve ser para o espaço o que a história é para o tempo; uma e outraleva em consideração uma certa gama de dimensões espaço-temporais, nem asmuito grandes (as da astronomia, por exemplo), nem as muito pequenas, masaquelas que estão mais ligadas às ações dos homens e sobretudo às práticas dopoder. Não se trata de preconizar a fusão desses dois saberes científicos numaespécie de "geo-história" (que é um gênero particularmente difícil, mesmo parahistoriadores de altíssimo gabarito), mas de mostrar quais são as semelhanças e asdiferenças de seus procedimentos epistemológicos: se o raciocínio histórico ébaseado, em grande parte, sobre a distinção de diferentes tempos, a longa duração ea curta duração, para retomar a fórmula de Fernand Braudel, o raciocínio geográficodeve distinguir e articular, também, diferentes níveis de análise espacial quecorrespondem a levar em consideração conjuntos espaciais de grande ou de pequenadimensão. A distinção sistemática de diferentes níveis de análise espaço-temporaisnão é somente indispensável, hoje, na pesquisa de alto nível; ela o é, talvez maisainda, na prática pedagógica: salta-se, bem freqüentemente, e sem precaução,considerações planetárias (o Terceiro Mundo), a exemplo de tal aldeia ou deevoluções seculares (a "revolução industrial") na narração de determinadoacontecimento capital que não durou, no entanto, mais do que algumas horas.

A articulação metódica dos diferentes níveis de análise, quer se trate do tempoou do espaço, é uma das grandes dificuldades do raciocínio do geógrafo ou dohistoriador, mas é somente dessa maneira que ele se toma um saber-pensar o tempoou um saber-pensar o espaço, isto é, o instrumental conceitual que permite apreendermais racionalmente e mais eficazmente, senão a totalidade do "real", ao menos umabem ampla margem da realidade.

Durante séculos esse saber-pensar o tempo e esse saber-pensar o espaçoforam o apanágio de uma minoria dirigente, da mesma forma como o foram ossaberes ler-escrever e contar, que foram, eles também, instrumentos de poder, antesde serem democratizados. O saber histórico é hoje bem mais amplamente difundidoque outrora, e ele foi um importante fator de desenvolvimento para as forçasdemocráticas. É preciso fazer com que aqueles que ensinam a geografia hoje tomemconsciência de que o saber-pensar o espaço pode ser uma ferramenta para cadacidadão, não somente um meio de compreender melhor o mundo e seus conflitos,mas também a situação local na qual se encontra cada um de nós.

É um acaso se na totalidade dos Estados de regime totalitário, mapas precisos(em grande escala) são estritamente reservados aos dirigentes do Partido e aosquadros da polícia e do exército? É por acaso se os únicos Estados nos quais quemquer que seja possa, livremente, obter tais cartas sejam os Estados de regimedemocrático? Ainda é preciso que os cidadãos saibam "ler” essas cartas e quecompreendam como usá-las.

É a tarefa dos professores de história e de geografia.

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PARA PROGRESSOS DA REFLEXÃOGEOPOLÍTICA NA FRANÇA

Após ter sido proscrita durante decênios, sob o pretexto de que havia sidoestreitamente ligada à argumentação do expansionismo hitieriano, a palavrageopolítica, desde algum tempo, começa a ser utilizada cada vez maisfreqüentemente. Ela não passa desapercebida, ela choca, ela intriga, ela aparececomo uma forma nova de ver o mundo; em certos meios, ela começa mesmo a seruma fórmula em moda, e certas pessoas já a empregam para dar brilho a propósitosbem vulgares.

Na realidade toda moda tem suas razões e esta não é fútil: é de fato necessáriohoje dispor de um termo que expresse a importância e a complexidade das relaçõesentre aquilo que sobrevem do político, notadamente as diferentes espécies deconflitos e as configurações espaciais. Nos meios intelectuais franceses, essasrelações são particularmente desconhecidas, ou reduzidas a banalidades evidentes.

Sem dúvida, desde o período que se segue à Segunda Guerra Mundial, não sesentiu falta, na França como alhures, de fazer alusão ao espaço para designarsimbolicamente os protagonistas principais das grandes rivalidades planetárias, oLeste e o Oeste, o centro e a periferia, mais recentemente, o Norte e o Sul. Efeitos deestilo que se crê inocentes imputam a imensos conjuntos continentais, a África, aAmérica Latina, ou a entidades muito vagas e mais vastas ainda, o Terceiro Mundo(mais de uma centena de "países"), um projeto político, uma estratégia, como setratasse de um único ator ("a África luta", a “América Latina reivindica"... "o TerceiroMundo exige"), sem levar em consideração rivalidades, que se exacerbam entre osEstados assim reagrupados verbalmente, ou mesmo guerras que os opõem uns aosoutros.

É-se obrigado a tomar conhecimento hoje de que essas grandes metáforasgeográficas são bem mais simplistas e que essas maneiras de falar são armadilhas enão somente para aqueles que as escutam. Descobre-se agora que o imperialismo(qual deles?) e o confronto dos "blocos" econômico-ideológicos de envergaduraplanetária não explicam tudo, que povos oprimidos se batem com ferocidade unscontra os outros e que, nos diferentes "pontos quentes" que se podem recensear nasuperfície do globo, a situação é muito complicada por causa da confusão de velhosantagonismos locais, rivalidades "regionais" e do papel mais ou menos contraditóriodas grandes potências.

É preciso destacar que, contrariamente àquilo que se pensa, na maioria dasvezes, as reflexões geopolíticas não se situam somente no nível planetário ou emfunção de vastíssimos conjuntos territoriais ou oceânicos, mas também no quadro decada Estado, aí compreendendo aqueles cuja unidade cultural é grande (geografiadas tendências políticas, problemas da regionalização) e com mais forte razão ainda,naqueles em que se encontram diversas nacionalidades ou etnias mais ou menosrivais. O caso do Próximo Oriente, e particularmente o do Líbano, mostra a que ponto,em espaços de relativamente pequenas dimensões, as situações geopolíticas podemser complicadas. Para melhor compreender, é preciso examinar em diferentes níveisde análise espacial, a superposição, ou antes as interseções de diversas categoriasde fenômenos, não somente a repartição geográfica do relevo, as potencialidadesagrícolas (as águas e os solos), as zonas de Influência urbana e os grande eixos decirculação, sem esquecer a memória que têm os povos, ou ao menos seus dirigentes,

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de seus "direitos históricos" sobre esta ou aquela porção dos territórios que elesdisputam entre si. Difícil é portanto a tarefa daqueles que têm de tomar conhecimentodas relações de forças locais, regionais, internacionais, em situações tão complexas.

Para ver mais claro nisso, e para melhor explicar, é preciso - seria preciso -recorrer ao mapa, examinar e mostrar, não somente uma carta, mas cartas que,estabelecidas em diferentes escalas, permitem atingir os problemas, em função deespaços de maior, ou menor extensão. Ora, numa nação como a França, a maiorparte dos cidadãos que se preocupa com os negócios do mundo e os de seu própriopaís, têm tão pouco o hábito de examinar uma carta que esta - quando eles vêemuma - não lhes diz absolutamente nada, mesmo quando ela representa um espaçoque lhes é relativamente familiar. Qualquer que seja o seu nível cultural, eles aconsideram quer como uma decoração que evoca a viagem e as férias, quer comoum objeto escolar associado a lembranças mais ou menos tediosas. Mas essescidadãos, que freqüentemente aparentam ter um espírito crítico com respeito a esteou aquele raciocínio político, se comportam de maneira bastante crédula desde quelhes é apresentada uma argumentação pretensamente fundamentada sobre a carta,de modo, digamos, indiscutível. A carta então, embora ela seja apenas entrevista, fazfunção de argumento científico de autoridade, da mesma maneira como são impostasa uma opinião, muito cândida nesse domínio, pseudo "leis geopolíticas" que reduzemartificialmente problemas complexos, ao jogo simplista de um ou dois fatoreselementares. Essas "leis", freqüentemente fundadas sobre analogias sumárias, são,na verdade, na maior parte das vezes, tiradas do museu dos raciocínios"deterministas" da geografia de há mais de um século atrás.

Contrariamente às afirmações de certos grandes teóricos (Mackinder, porexemplo), uma situação geopolítica não é determinada, no essencial, por tal dado degeografia física (relevo e/ou clima), mas ela resulta da combinação de fatores bemmais numerosos, demográficos, econômicos, culturais, políticos, cada qual delesdevendo ser visto na sua configuração espacial particular.

A França se caracteriza por um enorme atraso da reflexão geopolítica, tanto anível das pesquisas como ao da difusão das idéias. Num período em que inúmerosproblemas se agravam e se complicam, tanto no plano interno como a nívelinternacional, esse atraso tem conseqüências desastrosas, nem que seja só namedida em que ele facilita a manipulação de uma larga parte da opinião porcampanhas que se fundam em sentimentos excelentes, sem levar em consideração acomplexidade das situações reais, nem os perigos para o futuro, de certas soluçõesfáceis.

Essa carência da reflexão geopolítica não é recente e ela afeta todas astendências ideológicas; ela se atém a um conjunto de causas relativamente antigas.Primeiro, o peso de certos discursos ideológicos muito difundidos "na esquerda" quese baseiam, sob pretexto de cientificidade, sobre representações muito economicistasda sociedade, como se suas contradições não dependessem fundamentalmentesenão das relações de produção; a supressão da propriedade privada dos meios deprodução devia acertar todos os problemas políticos. Pode-se perceber hoje que nãoé nada disso, bem ao contrário.

Na França, se a influência de dogmas redutores do pensamento de Marx era,para os meios intelectuais "de esquerda”, o único freio ao desenvolvimento de umareflexão geopolítica, em contrapartida, esta deveria ter sido cultivada em meios poucosuspeitos de ternuras com relação ao marxismo. Ora, não foi nada assim e, naFrança, as análises geopolíticas da direita são tão pobres como as de esquerda.

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A causa principal do fraco desenvolvimento da reflexão geopolítica é averdadeira mutilação que sofreu o raciocínio geográfico a partir do momento em queele se tomou universitário. Enquanto que, durante séculos, a geografia foi um saberpolítico, por todas as evidências, indispensável aos príncipes, aos chefes de guerra,aos grandes comissários do Estado, como aos poderosos homens de negócios,enquanto no século XIX a essa função eminentemente estratégica se acrescentavauma função ainda política, a de fazer conhecer sua pátria aos futuros cidadãos quesão os jovens, em contrapartida, a partir do momento em que geógrafos ensinaram naSorbonne - bem no início do século XX -, estes, por razões complexas e sobretudosob pretexto de cientificidade, julgaram ser bom expurgar seus discursos de qualquerreferência ao político.

Eles esqueceram assim aquilo que havia sido uma das razões de serfundamentais da geografia. Os geógrafos universitários e os professores de liceu queeles formaram, chegaram a considerar que os problemas dos Estados (aícompreendidos os de fronteira) não eram "geográficos" e não diziam respeito,portanto, à sua disciplina. Sem dúvida para historiadores, como para geógrafos, erapreciso romper com as arengas chauvinistas e "fardamentos" aos quais se deu livrecurso durante a "guerra de 14". Mas enquanto os primeiros se desprendiam, pouco apouco, das preocupações propagandistas, sem por isso cessar de estudar osfenômenos políticos, os geógrafos universitários, ao contrário, proscreveram suaanálise. Que idéia se faria hoje da história se os historiadores, sob pretexto de seguirum procedimento científico, tivessem assim eliminado o político?

O grande atraso da reflexão geopolítica na França se apega sobretudo ao fatode que os professores de geografia propagaram na opinião essa concepção muitomutilada de sua disciplina (a tal ponto que se pergunta qual é sua utilidade) e que,durante decênios, os geógrafos, na qualidade de pesquisadores, recearam aplicarseus métodos à análise dos conflitos, às suas configurações espaciais, aos seusmecanismos e aos terrenos sobre os quais eles se desenrolam.

Não mais que o raciocínio histórico, o raciocínio geopolítico não é por essência,"de direita" ou "de esquerda”. É um instrumento conceitual que permite apreendertoda uma margem da realidade. Evidentemente, como o raciocínio histórico, ele éutilizado por homens que não são espíritos puros; eles têm, cada um, sua preferênciaideológica e sustentam, mais ou menos conscientemente, certas causas. Mas ascontradições que se podem constatar entre seus discursos mostram que não são osfundamentos epistemológicos da referência ao tempo ou ao espaço que se devemincriminar, mas as teses políticas que eles pretendem demonstrar. Sem dúvida, osnazistas deram grande destaque à geopolítica, por causa de uma certa argumentaçãogeopolítica, más eles utilizaram, da mesma forma, argumentos históricos oubiológicos para fundamentar suas pretensões. Não se desqualificou a história ou abiologia por causa disso, mas proscreveu-se a geopolítica.

Os dirigentes dos povos que lutaram, ou lutam ainda para sua independência ousua autonomia também, fazem geopolítica, mas seus argumentos não são,evidentemente, os mesmos que aqueles das grandes potências que os dominam. NaFrança, um dos precursores de uma geopolítica de resistência à opressão foi ogrande geógrafo libertário Elisée Reclus, mas sua grande obra foi, sistematicamente,"esquecida" pelos geógrafos.

É preciso terminar com essa proscrição do raciocínio geopolítico, proscrição queestá, no fundo, no débil direito do "édito imperial" stalinista a propósito da "ciênciaburguesa" e da "ciência proletária".

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Desde que o mundo aparece mais complicado do que afirmavam os grandesdiscursos maniqueístas, uma notável parte da opinião começa a pressentir que éimportante levar em consideração as configurações espaciais no exame das relaçõesde forças e é isso que explica a atenção que a geografia dedica, desde algum tempo,a tudo aquilo que faz referência à geopolítica. Esse interesse, bem freqüentemente,não é mais satisfeito, pois a etiqueta "geopolítica" cobre muitas banalidades. A essaprocura, a essa carência, é necessário responder de modo mais rigoroso e é a tarefados geógrafos.

Para assegurar o desenvolvimento da reflexão geopolítica na França, não sepode mais contar, ao menos por enquanto, com o conjunto da corporação geográficauniversitária, pois esta, cheia de pesos instituídos em critérios "científicos", está aindalonge de se interessar pelas reflexões políticas. Em contrapartida, um certo númerode geógrafos, que fazem ainda figura de franco-atiradores, se consagra desde algunsanos a essa tarefa e eles demonstram a eficiência dos métodos de sua disciplina naanálise dos problemas políticos e militares.

Mas para construir um raciocínio geópolítico não é indispensável ser geógrafo deprofissão, e numerosos homens de ação elaboram um procedimento mais ou menosgeográfico desde que raciocinem em termos de estratégia, sobre espaços maisamplos do que aqueles do quadro quotidiano. Mas é excepcional que os resultadosde suas análises sejam publicados, e é pena, pois elas são de um grande interesse.

Na verdade, não será possível preencher o enorme atraso da reflexãogeopolítica na França se os jornalistas não se interessarem por ela de forma maismetódica que presentemente. São eles que fazem as análises mais difundidas. Oimperativo de sua profissão – tomar conhecimento o mais rápido possível dosacontecimentos da atualidade - faz com que sua tarefa seja bastante difícil. Mas elesestão na fonte de informações preciosas. Eles poderiam ser ainda mais eficientes seestivessem mais familiarizados com os raciocínios geográficos.

Para assegurar o progresso da reflexão geopolítica, é preciso, portanto, que seestabeleçam relações regulares entre homens de mídia, homens de ação, militares epesquisadores científicos de diversas disciplinas, historiadores cujo papel é essencial,políticos, etnólogos, juristas, sociólogos, economistas, demógrafos e, bem entendido,geógrafos, de modo a comunicarem mutuamente suas experiências e seus métodos.É o que se esforça por fazer Hérodote, revista de geografia e geopolítica.

ApresentaçãoN.T.: Em 1976, a Iniciativas Editoriais, de Lisboa, adquiriu os direitos autorais para língua portuguesadesta obra e a publicou com o título A geografia serve, antes de mais, para fazer a guerra. A tiragemde 3000 exemplares, de fevereio de 1977, se esgotou rapidamente (alguns foram comercializados noBrasil): no entanto, a editora nunca chegou a reimprimir o livro porque entrou em falência. Assim,durante cerca de 10 anos, os direitos autorais para o idioma português ficaram amarrados a massafalida dessa empresa.

ApresentaçãoN.T.: O excelente livro do historiador inglês (um renovador na tradição marxista) E.P. Thompson - Amiséria da teoria (Zahar, 1981, 232 pgs.) constitui uma minusciosa demonstração dos equívocosteóricos de Althusser e discípulos, bem como do stalinismo aí presente.

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A propósito da terceira ediçãoN.T.: "Agrégation" é, na França um concurso que dá um título de ordem profissional, o "agrégé", tiluloeste que não encontra correspondência no Brasil. O título de "agrégé" é altamente conceituado no paíse há necessidade de diploma universitário, licenciatura na disciplina concernente e estágio comprovadoem liceu. Após a obtenção do título, o "agrégé" se obriga a ensinar durante cinco anos em liceu.

Uma disciplina simplória e enfadonha1 - André Meynier, História do pensamento geográfico na França, PVF, 1969.

Uma disciplina simplória e enfadonha2 - Ver Hérodote nº1, 1976: "Enquéte sobre o bombardeamento de diques do rio Vermelho (Vietnã,verão 1972)", ou Unidade e diversidade do terceiro mundo 1984, p. 300-348.

Uma disciplina simplória e enfadonha* N.T. "hameaux" - uma pequena concentração de casas, distanciadas da paróquia aldeã, localizadasem área de habitar disperso, na "campagne" francesa. Pela sua gênese não tem correspondência como nosso bairro rural.

Uma disciplina simplória e enfadonha* N.T.: "aménagement" - "aménagement" do território, como aparece no texto, é arranjar de novo (re-arranjo) uma área (na cidade, no campo, em termos de localização industrial, de circulação, etc.), complanejamento prévio feito por cientistas e técnicos.

Da geografia dos professores aos écrans da geografoa-espetáculo1 - Em 1976, quando este livro foi escrito, esse país era um local de turismo em moda. De 1979 paracá, ele viu chegar outros "turistas ...

Um saber estratégico em mãos de algunsN.T.: "partisans" - guerrilheiros em guerras de emboscadas, soldados de tropas irregulares.

Miopia e sonambulismo no seio de uma especialidade tornada diferencialN.T. "terroir" - pequeno pedaço de terra, de exploração agrícola; seria mais o pedaço de terra onde ocamponês vive, onde viveram os seus ancestrais (torrão natal?) e ao qual está umbilicalrnente ligado,por razões sentimentais e de sobrevivência.

Miopia e sonambulismo no seio de uma especialidade tornada diferencial1 - Lembramos, mesmo aos geógrafos, que fazem freqüentemente o contra-senso, que quanto mais aescala de uma carta é designada "pequena", mais a superfície do território representado éconsiderável; quanto mais a carta é "em grande escala", mais ela representa, de maneira detalhada,um espaço restrito.

Miopia e sonambulismo no seio de uma especialidade tornada diferencial2 - Esta expressão foi empregada por Alain Reynaud na A geografia entre o mito e a ciência, trabalhosdo Instituto de Geografia de Reims, 1974. Ela é aqui empregada num sentido sensivelmente diferente.

O escamoteamento de um problema capital: a diferenciação dos níveis de análise espacial1 - A escala de uma carta indica a relação de redução que existe entre uma distancia real e suarepresentação sobre o papel. Tanto mais o denominador da fração é grande, menor é a escala. Assimuma carta de 1/1000.000 está numa escala muito menor que uma de 1/10.000, mas a primeirarEpresenta extensões bem mais vastas que a segunda.Deve-se notar que á expressão corrente "fazer qualquer coisa em grande escala", "uma operação emgrande escala", que implica poderosos meios e uma ação se exercendo so bre grandes extensões ousobre um grande número de pessoas, tem um significado inverso ao da expressão cartográfica. Umacarta em grande escala representa uma extensão relativamente pequena. Essa confusão, cujasorigens não são claras, é muito comum e numerosos geógrafos a fazem também.

Uma etapa primordial no caminho da investigação geográfica: a escolha dos diferentes espaçosde

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1 – Cf. os "diferentes tempos" que Louis Althusser propõe diferenciar em Ler o capital, Maspero 1965,t.2, p.471: "Há, para cada modo de produção, um tempo e uma história próprios, escondidos de formaespecífica, do desenvolvimento das forças produtivas; um tempo e uma história próprias das relaçõesde produção [...]; um tempo e uma história própria da superestrutura política ...; um tempo e umahistória próprias [...] das formações científicas [... ]. A especificidade de cada um desses termpos, decada uma dessas histórias [é fundamentado] sobre um certo tipo de articulação no todo, portanto sobreum certo tipo de dependência em relação ao todo [...]. A especificidade desses tempos e dessashistórias é portanto diferencial, uma vez que ela é baseada nas relações diferenciais existentes no todoentre os diferentes níveis".

As diferentes ordens de grandeza e os diferentes níveis da análise espacial1 - Eu apresentei um certo número no meu livro unidade e diversidade do terceiro mundo. Dasrepresentações planetárias às estratégias sobre o terreno, La Découverte, 1984.

As estranhas carências espistemológicas da geografia universitária1 - O artigo "Geografia", Encyclopaedia universalis.

As estranhas carências espistemológicas da geografia universitária2 - J. Labasse, A organização do espaço, Hermann.

As estranhas carências espistemológicas da geografia universitária3 - Por exemplo, Serge Moscovici, Ensaio sobre a história humana da natureza, 1968; A sociedadecontra a natureza, 1972.

Ausência de polêmica entre geógrafos. Ausência de vigilância a respeito da geografia* N. T.: "communard" - "partisan" da Comuna de Paris (1871).

Ausência de polêmica entre geógrafos. Ausência de vigilância a respeito da geografia1 - Cf. P. Claval e J.P. Nardy, Para o cinqüentenário da morte de Vidal de La Blache, Anais daUniversidade de Besançon, 1968.

Concepções mais ou menos amplas da geograficidade. Um outro Vidal de la Blanche* N.T..: Contrée - expressão literária que significa região. É mais usada na França no sentidosentimental.

Concepções mais ou menos amplas da geograficidade. Um outro Vidal de la Blanche1 - É o tomo I de A história da França, desde as origens até a revolução, de Ernest Lavisse. A exclusãodas transformações econômicas e sociais que a França conheceu no século XIX pode, portanto, sejustificar. Ainda teria sido preciso que a corporação dos geógrafos tomasse consciência que se tratavade uma obra de geografia histórica. Tomaram-na como um modelo de descrição geográfica da Françados inícios do século XX.

Os geógrafos universitários e o espectro da geopolítica1 - Conforme o início de um prefácio muito recente de Roger Brunet para o livro de Claude Raffestin,Para unia geografia do poder, 1970: "Sente-se, por um grande número de índices, que a velha evergonhosa Geopolitk sai dos bastidores. O próprio termo não é mais um tabu; ele reaparece aqui e ali.Restaurada, disfarçada, ornamentada, a avó desdentada é empurrada para a frente, capengando aobraço de uma jovenzinha mal-arrumada e usada antes da idade, que se diz chamar sociologia, ouqualquer coisa no gênero. Miasmas de obscurantismo..."

Os geógrafos universitários e o espectro da geopolítica2 - Ver o número especial de Hérodote (número 22. julho - setembro, 1981) consagrada a EliséeReclus. Um geógrafo libertário.

Os geógrafos universitários e o espectro da geopolítica3 - Há quinze anos, Pierre George me fez a honra de pedir para que eu participaue de A geqgrafia ativae as notas retrospectivas que formula com relação a esse livro são também as críticas que pudeescrever naquele tempo. Quanto mais essa idéia de geografia alva me parece ainda mais fundamentalhoje que na época em que apareceu a obra, tanto mais agora ela me parece se caracterizar por um

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esquecimento bastante fundamental: o papel do Estado e as estruturas políticas através das quais seexerce sua autoridade. Assim, por exemplo, não há qualquer referência ao Estado, nem no prefácio,nem na primeira parte. "Problemas, doutrina e método", redigidos por Pierre George, como menosainda na parte "Perspectivas da geografia, ativa em países subdesenvolvidos", que é de minha autoria.É contudo o Estado que organiza o espaço e decide das políticas de desenvolvimento.

Os geógrafos universitários e o espectro da geopolítica4 - "Esquecida também e, pelas mesmas razÕes, uma grande parte da obra de Jean Brunhes(especialmente sua Geografia da História, geografia da paz e da guerra, 1921)

Os geógrafos universitários e o espectro da geopolítica5 - Humboldt, aliás, evoca esse "prazer" na introdução de sua grande obra O cosmos.

Esses homens e essas mulheres que são “objetos” de estudo1 - Esse termo, usado com tanta freqüência, tem, evidentemente, um significado muito variável eambíguo.

Crise da geografia dos professoresN.T.: prof, reac. - abreviação de professor reacionário, no texto.

Crise da geografia dos professoresN.T.: fac. - abreviação de faculdade, no texto.

Saber pensar o espaço para saber nele se organizar, para saber ali combaterN.T.: A tradução que encontramos mais apropriada para uma gíria muito corrente na França - paumé -,que pode também significar aqueles que estão perdidos, sem rumo.

É preciso ultrapassar a crise da geografia1 - Elisée Reclus, L'Homme et la Terre, textos escolhidos apresentados por Béatrice Giblin, LaDécouverte/Maspero, Paris, 1982.

É preciso ultrapassar a crise da geografia 89* N.T.: No Brasil, foi lançada uma obra de textos escolhidos de Elisée Reclus, sob a coordenação doprofessor Manuel Correia de Andrade: Elisée Reclus. coleção Grandes Cientistas Sociais, EditoraÁtica, São Paulo, 1985, 200 páginas.

Os geógrafos, a ação e o político* Editorial do número 33-34 da Hérodote, abril-setembro 1984.

Os geógrafos1 - Cada qual sabe bem que uma carta não é o território, mas sua representação, construída a umacerta escala de redução. Acima de tudo, a carta não é, evidentemente, a representação da totalidadedo real, de tudo aquilo que se poderia recensear, inventariar sobre uma porção de território. Aquilo quefigura sobre uma carta é o resuftado de uma série de escolhas, mais ou menos conscientes, de umlado, em função das possibilidades gráficas, estas senDo, em grande parte, determinadas pela escala;de outro lado, em função de certas preocupações particulares que fazem com que se representesomente certas categorias de fenómenos (donde cartas geológicas, cartas climáticas, cartasdemográficas, etc.). Toda carta é, enfim, um documento datado: não somente porque o mundo muda eos fenômenos se transformam a um ritmo mais ou menos rápido, progressiva ou bruscamente, mastambém porque uma carta resulta de técnicas e de preocupações de uma certa época.

Os geógrafos2 - Os dezenove volumes de sua Nova Geografia Universal, que ele escreveu, só e proscrito, de 1872a 1895, representam mais de 17.0000 páginas e mais de 4.000 cartas. É preciso acrescentar aí os doistomos de A terra, descrição dos fenômenos da vida do globo (1869) e os seis grossos volumes do OHomem e a Terra (1905), mais de 4.000 páginas, que são o coroamento de sua obra. "Trechosescolhidos" dessa última obra foram publicados, com uma importante introdução, feita por BéatriceGiblin, nas edições "La Decouverte", dois volumes, 180 e 120 páginas, 1982.

Os geógrafos

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3 - É de se notar que Heródoto emprega, muito frequentemente, para definir seu trabalho, a palavrahistoréo, que significa para ele, como para Polibio, Sófocies, Platão e Aristóteles, por exemplo (cf.Dicionário Bailly), porcurar saber, examinar, observar, explorar, conduzir enquêtes.

A ação...1 - É de se notar que na França a geografia, no ensino secundário, é ensinada, em mais de trêsquartos dos casos, por professores que não foram formados nessa disciplina e que receberam,sobretudo, uma formação histórica.

A ação...2 - Segundo a expressão do famoso economista do desenvolvimento, François Perroux, em seu Aeconomia do XXº século, PUF, 1961, notadamente p. 123-132.

A ação...3 - Pierre George, A geografta ativa, PUF, 1965, com a colaboração de R. Gugiieimo, B. Kayser e Y.Lacoste.

A ação...4 - Estamos longe presentemente, mas essa ambição não é irrealizável.

A ação...5 - Mesmo admitindo que os geógrafos só levam em consideração os conjuntos espaciais cujarepresentação cartográfica implica numa redução de suas dimensões, sendo definida pela escala (deredução) da carta, não é inútil lembrar que numerosas ciências, inversamente, só apreendem osfenômenos, aumentando-os; é, por exemplo, o caso da biologia.

A ação...6 - Para exemplos concretos, ver os estudos de casos "Estratégias no Vale do Volta branco Estratégiasno delta do rio vermelho Estratégias em volta da Sierra maestra em Yves Lacoste, unidade ediversidade do terceiro mundo. Das representações planetárias às estratégias sobre o terreno, ediçõesLa Découverte, 1984, 568 páginas.

O político...1 - Sua obra, em curso de publicação, A sociedade (ed. Le Seuil), seis tomos atualmente já publicados,oferece o instrumental conceitual mais diferenciado e mais preciso para a análise dos diferentes tiposde sociedade, não somente em função da instância econômica mas também da instância do político edo ideológico.

O político...2 - Para Fossaert, a "instância política tende a representar o conjunto das práticas e das estruturasociais relativas à organização da vida social. O conceito central, a partir do qual e em torno do qual elase organiza, é o do Estado [... ]. O Estado não é, contudo, o único poder organizado na sociedade [... ];esta se beneficia de outros poderes. O sistema dos poderes não-estatais constitui a sociedade civil".

O político...3 - Existem, presentemente, concepções diferentes e mais ou menos restritas da geograficidade pois,por exemplo, os geógrafos soviéticos não levam em consideração a maior parte dos fenômenos"humanos" e os geógrafos norte-americanos negligenciam uma grande parte dos fenômenos "físicos".

O político...4 - Ver Y. Lacoste, "Geograficidade e geopolilica. Elisée Reclus", no número 22 de Hérodote, julho -setembro, 1981.

O político...5 - Trata-se de A França de Leste, que é um livro de geografia e geopolilica que Vidal de La Blacheredigiu durante a Primeira Guerra Mundial, quando colocou em plano internacional a questão deanexação à França das duas regiões, de língua alemã na maior parte, que a Prússia havia anexado em1871.

O político...

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6 - Notadamente, Claude Raffesfin, em Por uma geografia do poder, Litec, 1980.

Ensinar a Geografia*NT.: Texto da intervenção no Colóquio nacional sobre a história e o seu ensino, ministério daEducação Nacional, 19-2-21, janeiro-1984, Montpellier.

Ensinar a GeografiaNT.: Do francês "petit pays"

Ensinar a GeografiaNo ensino secundário francês, a classe de "première" é a mais avançada e a de "sixième", a inicial.Nas duas referidas no texto é que se dá ênfase ao estudo da geografia regional da França.