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BRUCE DICKINSON

BRUCE DICKINSON

música

A Ferro

e Ac‚o

Impresso originalmente em língua Inglesa por HarperCollinsPublishers Ltd. sob o título: What Does This Button Do? Bruce Dickinson, An Autobiography

Copyright © Bruce Dickinson 2017

Bruce Dickinson expressa o seu direito moral de ser identificado como autor desta obra

Copyright da edição portuguesa © 2018 Publicações A Ferro e AçoTodos os direitos reservados para a Língua Portuguesa

Design da capa por Claire Ward © HarperCollinsPublishers Ltd 2017Imagens da capa © John McMurtrie (frente); © Ross Halfin (contracapa e

lombada); © Paul Harries (autor); Shutterstock (badanas).

Adaptação da capa: Gabinete editorial Publicações A Ferro e Aço

Tradução: Machado dos Santos e Sofia PaulinoRevisão: Gabinete editorial Publicações A Ferro e Aço

Pré Impressão: Gabinete editorial Publicações A Ferro e AçoImpressão e acabamentos: Cafilesa, Lda

Editor: André Andraus

1.ª edição: Julho de 2018ISBN (edição de capa dura): 978-989-99149-8-8ISBN (edição de capa mole): 978-989-99149-7-1

Depósito Legal (edição de capa dura) n.º 443479/18Depósito Legal (edição de capa mole) n.º 443480/18

Publicações A Ferro e Aço é uma chancela do Grupo NarrativaIN Castro - Centro de Ideias e Negócios | Sala 14 e 17 R. Manuel Assunção Mestre, 22 - 7780-199 Castro Verde

Tlf. 286249033 / Tlm. 965988157facebook.com/Grupo Narrativa

facebook.com/Publicações A Ferro e Aço Músicawww.aferroeaco.pt

www.gruponarrativa.pt

Para Paddy, Austin, Griffin e Kia.

Se a eternidade falhar, vocês ainda aqui estarão.

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Bruce Dickinson expressa o seu direito moral de ser identificado como autor desta obra

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Para Paddy, Austin, Griffin e Kia.

Se a eternidade falhar, vocês ainda aqui estarão.

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Antes de entrarmos no assunto do colégio interno, com tudo o que isso acarreta, posso dar uma palavrinha acerca de religião? Algo que vivi, que experimentei e experimentaram comigo aos meus quatro anos, cedo demais. O resultado, porém, foi totalmente ines-perado e, se Deus escreve direito por linhas tortas, eis aqui a prova.

Não me lembro do meu baptizado, mas aparentemente consegui alguma forma de ingerir uma grande quantidade de água benta. Podia ter-me afogado na pia baptismal. Não estou certo de que engolir o líquido especial do senhor tenha feito surgir algum tipo de aura, mas pode ter influenciado o meu interesse precoce em asas de anjo.

A escola tinha o habitual festival das colheitas, de praxe, e algumas canções chatas de Natal, mas foi quando cheguei a Birkdale que fui exposto à religião evangélica, de bíblia na mão e a combater Satanás em todas as frentes.

Havia um conluio de professores zelosos que, por acaso, não eram os mesmos que organizavam as viagens escolares, incluindo uma ao Forte William, na Escócia. Consistiam em dez dias de acampamen-to a fazer robustas actividades semi-militares, escalando montanhas, a cruzar rios, pulando de uma árvore para outra (alguém se lem-brou da «The Lumberjack Song», dos Monthy Python?) e levando

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com uma lavagem cerebral religiosa. Imaginem o Bear Grylls (rea-lity show de sobrevivência) sem possibilidade de escapar.

Havia orações e sermões, e todas as noites, juntávamo-nos numa assembleia em que os miúdos de dez anos eram encorajados a le-vantarem-se e a identificarem os pecados, e eram agraciados pela sua efusividade com louvores arrebatadores, abraços e aplausos. Eu levantei-me e identifiquei uma mosca na parede, que era clara-mente uma serva de satã, porque me tinha estado a distrair das lengalengas que jorravam dos messias em part-time e professores a tempo integral.

Sem qualquer tipo de ironia, aos dez anos, fui acolhido no reba-nho, e informado que agora estava evangelizado. O propósito da minha vida seria converter pessoas à palavra de Cristo.

Bem, sendo um tipo de pessoa orientado para a missão, fui para a cidade destinado a converter algumas meninas das Terras Altas, entregando-lhes um folheto e convidando-as para o acampamento para uma divertida noite evangélica de hinos felizes acompanhados por palmas e por um péssimo guitarrista e camisolas Aran.

“Vai-te foder, imbecil,” foi a forte resposta.Em casa, em Sheffield, estava envolvido na União Cristã, onde

usava um pequeno crachá e era encorajado a ler The Screwtape Let-ters* e outros tratados menos inventivos, muitos deles cheios de assuntos como a masturbação e o casamento. Confuso, eu pensava, Mas o que é que uma coisa tem a ver com a outra?

Os meus pais ficaram um pouco perplexos, eles que mal chega-vam perto de uma igreja desde que eu quase engolira uma aos nove meses. Contudo, foram tolerantes, com base no facto de parecer inofensivo e me dar algo para me ocupar nas manhãs de Domingo.

Não muito depois disto, as hormonas começaram aos saltos, e eu comecei a olhar para as raparigas de uma outra forma. Eu já não

* The Screwtape Letters, é um romance de apologia cristã, escrito por C. S. Lewis, (autor conhecido em Portugal pela edição da saga Crónicas de Narnia). Publicado pela primeira vez em 1942, tinha um formato de cartas escritas pelo velho Diabo Screwtape para o seu sobrinho Wormwood (estrela ou anjo que aparece no Livro da Revelação/Apocalipse) (N. dos T.)

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queria apenas convertê-las; havia algo mais que podia fazer com elas. Mas eu ainda não lhes podia tocar com um dedo sequer.

O meu colega de escola, Tom, estava discutir a questão, de onde pôr exactamente os dedos. Por incrível que pareça, tinha sido o único momento em que alguém tinha falado connosco sobre sexo, a não ser pelas advertências de ser pecado, excepto para fazer bebés. Aprofundando a experiência sexual do meu amigo, ficámos a saber que ele tinha feito qualquer coisa que envolvia uma meia e o seu pijama.

“Depois o que é que acontece?” perguntei, a tentar perceber a cena.Então ele disse-me.“A sério?” Eram tudo novidades para mim. Bem, Deus detesta

cobardes, como diz a expressão, e a minha monástica existência tornou-se numa existência onanista. Quanto às aulas de Domingo, em que tinha de escolher entre bater punhetas e a União Cris-tã, o vencedor era óbvio. Foram a masturbação e as bibliotecas que salvaram a minha alma do proselitismo tacanho e da sufocante camisa-de-forças evangélica. Graças a Deus.

Mas acabei por não falar de Deus e das suas linhas tortas.O encarregado oficial da nossa saúde espiritual em Birkdale era

o reverendo B. S. Sharp, então pároco de Gleadless na esplendi-damente sombria igreja Victorian Millston Grit. Ao contrário dos evangélicos a meio tempo, “Batty”, como a sua alcunha sugere, não era apenas ligeiramente excêntrico e surdo que nem uma porta. Para um reverendo, era inofensivo.

Batty ensaiava o coro, e o colégio inteiro se arrastava para a igreja e começava a cantar enquanto ele atravessava a nave de um lado para o outro sacudindo os braços, aparentemente sem notar o des-compasso, a desafinação, e os sorrisos sarcásticos dos meninos (não havia meninas, claro). Ao passar por mim – eu estava de pé à ponta de um banco cantando, ou melhor, balbuciando – parou. Inclinou a cabeça como um papagaio e ficou a examinar-me. Suspeitei que estava a posicionar o seu ouvido bom.

“Cante mais alto, rapaz”, disse.

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Elevei um pouco a voz. Ele aproximou o rosto da minha boca. Percebi que lhe faltavam vários dentes e fiz um tremendo esforço para não me deixar rir.

“Cante mais alto, rapaz.”Bem, eu gosto de um bom desafio, então gritei a plenos pulmões,

e uma vez que comecei, já não parei. Deixei de lado a vergonha e aguentei até ao último verso do cântico. Confesso que me soube bem – não que eu o admitisse na altura.

Ele endireitou-se, balançou um pouco mais os braços e inclinou--se para mim.

“Tens um boa voz, rapaz,” disse ele. E seguiu pela nave e nunca mais o vi.

Como costumo dizer, nada na infância é desperdiçado, e se hou-ver Deus, ele ou ela faz muitas travessuras.

É uma pena que o maestro do coro de Oundle não partilhasse do entusiasmo de Batty pelos meus doces trinados. Ficou claro que cantar, no que dizia respeito ao coro da igreja, era muito indeseja-do, ainda que chamar à capela da escola de igreja, fosse injusto.

A capela de Oundle tinha pretensões de ser, no mínimo, uma catedral. Tinha um coro e os rumores de sempre, possivelmente verificáveis, acerca dos meninos do coro e o maestro do coro. O coro da escola vestia umas túnicas e tinha tempo livre roubado em louvor infrutífero ao inefável até que as suas vozes quebrassem.

Havia uma prova de canto obrigatória. Eu estava muito orgu-lhoso em poder afirmar que reprovei em grande estilo. Qualquer nota que fosse branca no teclado tornava-se preta cantada por mim. Deram-me uma notificação – um pedaço de papel – para entregar ao director do colégio. E nele estava escrito: “Dickinson – Sidney House, NÃO-CANTOR”.

Eu, aos 15 anos, com um anoraque horrível.

A cerveja é a chave.

A meio do tratamento do cancro. Já estou preocupado

com o bigode.

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No que tocava a torneios de eliminação, as lutas transformavam--se em três voltas de três minutos cada por forma a atingirmos o adversário quinze vezes. Ao longo dos anos, este formato sofreu poucas alterações, e o sistema básico permanece o mesmo.

Vencer uma competição poderia envolver cerca de quarenta lutas de três minutos, cada uma progressivamente mais difícil à medida que os adversários fossem cada vez mais eficientes a caminho do final. É um desporto muito exigente, física e mentalmente. É tam-bém um desporto quase incompreensível para as pessoas de fora.

Observar uma luta de espadas num filme é observar tudo o que se está a passar. Assistir a uma luta de esgrima é observar o que está escondido. Um ponto na esgrima é marcado num piscar de olhos, e se nós, como espectadores, conseguirmos ver esse ponto, é quase certo que o adversário também o irá ver.

A alta definição e as repetições em slow-motion ajudam a expli-car algo que se assemelha a uma luta de gatos com uma agulha de tricot, mas é bastante insatisfatório. Os pontos na esgrima não são sempre bonitos, como esperamos que sejam depois de ver as lutas de espadas nos filmes.

A minha satisfação era inteiramente pessoal, e baseada em dois pilares que eu julgava importarem. Um era o respeito pelos nossos pares, os outros esgrimistas que partilham um ethos desportivo co-mum, e o segundo era o respeito pela filosofia do desporto. O que eu gostava na esgrima é que esta não tinha fim. Tal como outras artes marciais, todos os adversários são diferentes, e ser experiente não é garantia de sucesso contra um principiante.

Na esgrima, o inimigo somos tanto nós como o adversário. É o que eu mais gosto neste desporto. Aprendi mais do que poderia imaginar quando comecei a praticar esgrima, e apenas num par de anos comecei a competir seriamente. Iria levar-me a questionar a minha própria identidade.

Levei quase uma temporada inteira de competição e treino até começar a pensar que algo não estava bem dentro do meu cérebro. Não sou normalmente uma pessoa que anda zangada. Posso, em

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alguma ocasião, ser um pouco volátil e torno-me bastante apaixo-nado sobre certas coisas, mas ira destrutiva, raramente. No entanto, quanto mais avançava na competição, mais parecia que havia uma panela de pressão dentro da minha cabeça que queria rebentar. Nunca tinha experimentado nada como aquilo.

Regressei às minhas pesquisas, como quando aprendi a cantar novamente, depois de descobrir uma voz diferente dentro do meu corpo. As pesquisas levaram-me a uma série de questionários de auto-ajuda, e a um livro de quebra-cabeças para o lado esquerdo e o lado direito do cérebro, pelo Professor Hans Eysenck.

Depois de responder a todos os quebra-cabeças, a minha con-clusão foi a de que utilizava ambos os lados do cérebro, de igual forma. Eu andava algures pelo meio. Isso explicava porque achava fácil conversar com diferentes tipos de pessoas, mas fornecia-me pouco conselho sobre se seria ou não esquerdino, ou pelo menos, ambidextro.

Esta última característica é genética. O meu pai e os meus primos são todos ambidextros. Sempre pratiquei esgrima com a mão di-reita. Escrevia com a mão direita, mas não era bom a jogar raquetes com a mão direita. Era esquerdino nos pés e usava o meu olho es-querdo para olhar pela mira de uma espingarda ou para olhar pelo telescópio. Também favorecia a minha orelha esquerda para ouvir ao telefone.

O domínio cruzado na coordenação mão-olho não é incomum – é excelente para jogadores de cricket ou batedores de basebol. Um destro com um olho esquerdo dominante vê a bola na sua visão periférica, uma fracção de segundo mais rápido.

Existe uma teoria que, em desportos de reacção rápida, o esquer-dino é mais rápido a descortinar uma solução, e portanto, capaz de esperar mais antes de tomar uma decisão, o que coloca mais pressão no adversário.

Estava agora a meio da casa dos vinte anos. Olhei para o meu bra-ço esquerdo. Havia um grau de desgaste no músculo causado por todo aquele headbanging. O meu lado direito era muito mais forte.

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A esgrima é um desporto de um lado apenas e mesmo as minhas pernas tornaram-se assimétricas, como resultado.

Fui ter com o meu treinador, Ziemek. Poderia eu, talvez, ser ca-nhoto – ou deveria eu ser canhoto?

Agarrei na espada com a minha mão esquerda. Ele pediu-me para dar passos para a frente e para trás, estender o meu braço e acertar--lhe, devagar, da forma mais suave e precisa que conseguisse.

“És, sem dúvida, muito melhor esquerdino,” disse Ziemek. De seguida, entregou-me um pedaço de papel e pediu-me para dese-nhar um polígono irregular com a minha mão direita e de olhos fechados, e assim fiz.

Colocou a caneta na minha mão esquerda e pediu-me para de-senhar a mesma imagem. Com os olhos firmemente fechados, re-produzi uma imagem quase idêntica e com exactamente o mesmo tamanho.

“Penso que devias trocar de lado,” disse ele.Comecei novamente, mas desta vez com a mão esquerda. Era

lento e a minha coordenação era dolorosa; a memória dos múscu-los estava toda ao contrário e tinha de ser reprogramada. O meu braço esquerdo cansava-se depressa e o meu pescoço doía – estava com um torcicolo nesse lado devido à lesão provocada pelo hea-dbanging. Vários músculos do meu antebraço tinham atrofiado por causa do problema no disco. Isto era como que uma reabilitação para o meu corpo, mas era como que uma revelação para o meu cérebro. A ira passou. A paixão e a vontade de vencer permanece-ram, mas a panela de pressão tinha desaparecido.

Assim que pude, fui a um campo de squash por iniciativa pró-pria e peguei na raquete com a mão esquerda. Inesperadamente, a bola foi exactamente para onde eu queria que fosse. Joguei com a bola, em oposição a ficar zangado com ela. A diferença na minha cabeça era assombrosa, como se eu tivesse descoberto todo um universo de uma beleza e movimento inesperados e, acima de tudo, timing. O timing, tal como no espaço entre as coisas, era-me desconhecido.

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Regressei ao treino, mas agora como esquerdino. Todos os meus colegas esgrimistas pensaram que eu tinha enlouquecido. Era ver-dade. Eu tinha perdido uma parte da mente; agora usava a outra parte.

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Estava finalmente sozinho. Para ser honesto, isso era bastante anti--climático. Teria ficado muito mais emocional se tivesse voado so-zinho seis ou sete horas em Kissimmee, onde cortam a parte de trás da t-shirt que estamos a usar e colocam-na na parede quando vamos sozinhos.

As condições eram ideais – nem vento, uma estrada enorme – por isso desliguei em frente à torre e completei as tarefas. Voar sozinho significava que podia, após mais um par de viagens para diferentes aeroportos com o meu instrutor, voar sozinho a atraves-sar o país em voos próprios. De facto, era uma exigência, incluindo um voo a solo de 240 milhas náuticas num dia com aterragens em três aeroportos diferentes.

Aproximava-me do meu exame de voo. O examinador estava com a agenda preenchida e eu sentia-me confiante. Passei no exa-me escrito. Tinha apenas de completar mais sete horas a atravessar o país num voo a solo. Sábado à tarde, o céu estava limpo de nuvens, foi uma gloriosa viagem de ida e volta até Palm Springs, com um calor escaldante a nível do chão, mas um pouco fresco a 9500 pés. Faltava apenas mais uma viagem, por isso planeei voar até Las Vegas e voltar no Domingo logo cedo, deixando muito tempo para re-gressar antes do pôr-do-sol.

A primeira vez que sentimos realmente medo num avião é um evento memorável, e nunca me esqueci daquele Domingo. Tive outras situações desde então, quando podia ter ficado tão assustado como naquele dia, ou talvez devesse ter estado, mas esta experiên-cia única actuou como uma espécie de vacina para a alma. Tem medo e fica assustado, mas o pânico é que te vai matar, não o medo.

O limpo céu azul, o vento calmo e a estrada 03 para Santa Mo-nica acenavam-me. Fui a primeira pessoa a ligar o motor nesse Domingo de manhã.

O tempo em Las Vegas era benigno, e decidi voar pelas monta-nhas que ascendiam até 8000 pés antes de virar para Norte pelo Cajon Pass até ao alto deserto, em alguns 3000 pés acima do nível do mar.

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A descolagem foi suave, o céu estava deserto e depressa apanhei um código de radar de um controlador bastante prestável que me avisava de qualquer outro tráfego. O Tio Sam cuidava de mim.

Subi até aos 7500 pés e comecei a sentir frio à medida que me deslocava em paralelo aos cumes encimados de neve, em direc-ção ao aeroporto de Ontário e dirigindo-me para San Bernardino. Mesmo antes de virar para Norte em direcção àquele golpe pro-fundo que era o Cajon Pass, senti a cauda do avião abanar de um lado a outro, depois um par de solavancos por debaixo da barriga, o que fez com que o nariz empinasse para cima. Nivelei as asas uti-lizando a coluna de controlo e estabilizei a cauda exercendo mais pressão com os meus pés nos pedais.

“Há alguma informação sobre turbulência?” perguntei ao Tio Sam.

“Não.”A voz soava aborrecida. Não havia muita coisa a acontecer às

8.30 de uma manhã de Domingo. Os solavancos continuaram. Isto estava a tornar-se entediante. Olhei rapidamente para o meu mapa. Iria descer 2000 pés até aos 5500 pés e escapar aos solavancos que perturbavam o que estava a ser um dia perfeito.

Pensei em dizer ao controlador – não que ele estivesse a con-trolar-me – e detectei um tom de incerteza na minha voz quando anunciei, “Estou a descer até aos 5500 pés para escapar a esta tur-bulência.”

“Ok.”Agora ele soava mesmo a aborrecido. Dei início a uma descida

gradual e os solavancos cessaram. À medida que me aproximava da altitude escolhida, abri o obturador do ar e iniciei uma curva gentil para a esquerda sobre o Cajon Pass. Por baixo de mim estendiam--se as colinas matizadas de cinzento e as artérias inter-estaduais da Califórnia, vias-férreas e estradas, escalando a inclinação íngreme do nível do mar até ao planalto, 3000 pés mais abaixo.

Nesse momento, acordou um gigante adormecido. Invisível, mas tangível, apoderou-se da traseira da minha aeronave e torceu-a

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como uma toalha molhada, esmagando a minha cabeça de um e outro lado do cockpit. De seguida, um punho invisível gigante apli-cou um golpe violento na parte de cima da minha asa e pressionou para baixo, forçando-me a afundar no meu assento enquanto me apercebia que o altímetro estava a desbobinar rapidamente e que eu estava a cair.

Levantei o nariz e apliquei força total. Olhei para o indicador de velocidade vertical: marcava uma descida de cerca de 1000 pés por minuto, enquanto a cauda fazia movimentos ascendentes, des-cendentes, e para os lados. As asas firmaram-se enquanto eu lutava com a coluna de controlo para manter o nível. O nariz do avião continuava alto e ouvi o aviso sonoro do sistema de aviso de perda de velocidade a indicar que se o nariz se erguesse mais um pouco eu poderia perder a pouca sustentação que tinha para lutar contra o monstro que poderia esmagar aquela pequena peça de lata que era o meu sistema de suporte de vida.

Efectuei um cálculo momentâneo enquanto olhei em frente para o terreno que se erguia: estava a 3000 pés; comecei nos 5500 pés e estava a descer a 1000 pés por minuto ou mais – a grande ve-locidade. As minhas mãos estavam escorregadias e sentia o suor a escorrer-me dos sovacos e a derramar-se no meu peito. Podia ver as manchetes nos jornais: “O tolo que pensava que podia voar”. A este ritmo, tinha talvez dois minutos até ao impacto.

Forcei-me a agarrar o meu pânico, e espremi-o com muita, muita força. Sentia o medo na garganta por um lado, e por outro, pensava em aterrar o avião em algum lugar susceptível de sobrevivência, por isso perscrutar o terreno. Toda aquela área estava infestada de linhas de alta tensão. Óptimo. Electrocução ou decapitação – am-bos a evitar. E de seguida… o gigante maléfico soltou-me das suas garras, para ser substituído por anjos travessos.

Os meus ouvidos estalaram e engoli saliva para os limpar, en-quanto a minha pequena máquina era carregada em direcção aos céus por asas invisíveis. O altímetro acusava novamente subida de altitude e o indicador de velocidade vertical marcava cerca de 1000

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pés por minuto a subir. Puxei o obturador do ar para ponto mor-to – não fez efeito. Estava a ser atirado para o ar como uma pena e vagueava para o outro lado de uma passagem em V. Todo aquele ciclo tinha-me feito perder 500 pés, e à medida que me aproxi-mava novamente do cume, a montanha-russa começou mais uma vez. Voltei a descer a toda a velocidade; voltei para cima, em ponto morto, sempre a perder cerca de 500 pés, com o solo a receber-me mais de perto a cada iteração.

Finalmente, ziguezagueei pela passagem até ao alto deserto com cerca de 1500 pés para gastar. Tinha ainda mais duas horas e meia de voo até chegar ao aeroporto do Norte de Las Vegas. De alguma forma, eu consegui.

Aterrei em Las Vegas e comprei uma omelete com batatas fritas. Estava tão abalado que até pensei em desistir. Estava enjoado até às entranhas, mas felizmente, não sou dos que decoram uma casa-de--banho com boa comida.