ZAGNI, Rodrigo Medina. Rios de Tempo, Rios de Sangue

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Simpósio Internacional do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo, 2014

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  • Rios de tempo, rios de sangue! A contenda por Pern no romance de Toms Eloy Martnez

    Rivers of time,rivers of blood! The strife for Pern in the romance of Toms Eloy Martnez

    Rodrigo Medina Zagni

    Doutor em Integrao da Amrica Latina pela Universidade de So Paulo (PROLAM-USP)

    Docente do curso de Relaes Internacionais da Universidade Federal de So Paulo (UNIFESP)

    E-mail: rodrigo.medina.unifesp@gmail.com

    Resumo: Tendo como tema a disputa pela imagem do maior lder poltico argentino de todos os

    tempos, Juan Domingo Pern, quando de sua volta Argentina em 1973 aps 18 anos de exlio,

    este trabalho tenta identificar, no romance de Toms Eloy Mantnez, como foram representados

    tanto Pern quanto os grupos que entraram na contenda por sua imagem, orientados por quais

    interesses, com que dimenso de influncia e com quais perspectivas de ao concreta para

    ultimar sua vitria, no limite entre fico e Histria.

    Palavras-chave: Juan Domingo Pern; Peronismo; Argentina.

    Abstract: With the theme of the contest for the picture of the largest argentine political leader of

    all time, Juan Domingo Pern, whith his return to Argentina in 1973 after 18 years of exile, this

    paper tries to identify, in the novel by Toms Eloy Mantnez, how were represented as both

    Pern and the groups who entered in the contest for his image, guided by which interests, with

    what dimension of influence and concrete prospects actions to finalize his victory at the

    boundary between fiction and history.

    Keywords: Juan Domingo Pern; Peronism; Argentina.

    - Olhem para ela aponta o general. Vejam aqueles olhos. Ocupam quase

    toda a cabea. So olhos muito estranhos, cada um com quatro mil facetas.

    Captam a realidade em quatro mil pedaos diferentes. Minha av Dominga era

    muito impressionada com isso. Juan, ela costumava me dizer, o que a mosca

    v? Quatro mil verdades, ou uma verdade dividida em quatro mil pedaos?

    (MARTNEZ, 1988, p. 226)

  • A pergunta parece ingnua tomada dos lbios da personagem Dominga Dutey, uruguaia

    descendente de nobres franceses e av de Pern, mas revela-se complexa e transtornadora se

    transportada para o romance onde Toms Eloy Martnez parece ser a mosca que observa a

    verdade em quatro mil pedaos, ou que v quatro mil verdades.

    O romance histrico de Pern est estruturado a partir de verdades fragmentadas pelos

    mltiplos pontos de vista dos vrios grupos a partir dos quais so referidas e que compem,

    sutilmente articulados, os captulos da obra. O peronismo segundo Martnez multifacetado e

    tudo nele parece caber, podendo ser determinado a partir dos diversos grupos que o compem,

    produzindo interpretaes drasticamente distintas, exatamente o que parece ter procurado

    explorar na obra O romance de Pern, e a partir desta lgica que o analisaremos. O autor

    transporta o leitor a diferentes locais, diferentes pontos de vista e diferentes perodos: a nica

    forma possvel de entender o fenmeno do peronismo, tomando-o no como uma matria una,

    mas a partir da manifesta capacidade de abarcar em seu conjunto terico e ideolgico grupos de

    matizes to divergentes, de tonalidades suavemente distintas ou brutalmente eqidistantes, o que

    provocou em torno da imagem de Pern uma guerra fratricida pela hegemonia de determinado

    peronismo, acentuadamente em 1973, com a expectativa dos dias que antecederam a renncia

    de Hctor Cmpora e a volta do general, e que se materializou na tragdia assistida no aeroporto

    de Ezeiza onde a contenda por Pern culminou num massacres de civis.

    O leitor adentra ao romance de Martnez pelos olhos estranhos de quatro mil faces da

    mosca. Isso experimentado em todos os captulo do romance, cada qual uma face de uma

    verdade maior, ou uma verdade constitutiva de muitas outras. No fosse pelos sbrios conselhos

    de Louis W. Goodman (MARTNEZ, 1988, p. 375), que o convenceu a poupar os leitores

    reduzindo seu romance de quase 2 mil para 376 pginas, talvez Martnez tivesse de fato nos

    levado a experimentar algo em torno de 4 mil faces do peronismo.

    Toms Eloy Martnez, jornalista e escritor, teve uma longa histria pessoal com o

    peronismo: durante a ditadura viveu na Venezuela de onde assistiu o conturbado perodo que

    levou queda do regime peronista no dia 19 de setembro de 1955; como editor da revista

    Primeira Plana props, entre 1965 e 1967, uma histria crtica do movimento peronista que

    chegou ao leitor comum na forma de fascculos semanais. Logo em seguida, do final da dcada

    de 1960 ao incio dos anos 1970, esteve em Madri onde somou cerca de 220 horas de entrevistas

  • com Pern, na quinta onde o general despojado de sua patente amargava o exlio esperando pela

    morte. As entrevistas so mencionadas no prprio romance, onde o narrador aparece ento como

    uma espcie de eu transcedental do autor.

    O romance de Pern levou trs anos para ser escrito. Terminado em 1985 e editado em

    1988, desenhou uma biografia desautorizada de Pern, tratando-se de um romance histrico,

    claro representante de uma categoria literria que tentava recriar experincias histricas a partir

    de uma narrativa ficcional, tornando os limites entre Histria e fico quase indistintos para o

    leitor no-iniciado. Na qualidade portanto de fico o autor deixa de ter qualquer obrigao em

    apresentar fundamentos empricos para seus argumentos, tanto quanto rigor metodolgico, na

    prpria falta de uma definio de verdade em Histria ou mesmo na incapacidade desta em

    resgat-la em sua totalidade (seno em verdades potenciais ou possveis), passando a construir,

    no lugar: cenrios, contextos e tramas histricas verossmeis. A narrativa ficcional, longe de ser

    Histria e despretensiosa de s-la, alude a ela para a construo do que diramos espao

    negativo, ou fundo, se estivssemos tratando de uma pintura.

    O autor lana mo de todos os recursos que tem disposio para inserir o leitor na cena

    por meio de uma narrativa ativada com tcnicas de jornalismo que produzem, a partir do uso de

    uma ordem direta, constituda por pargrafos curtos, resumidos e que dialogam diretamente com

    o leitor, uma impresso de verdade. O autor utiliza uma escrita envolvente articulada a uma

    leitura gil que corrobora na insero do leitor, por meio da narrativa, numa penumbra onde os

    limites entre histria e fico normalmente se confundem. Na literatura, o efeito que o trompe

    oeil provoca na pintura.

    Retomar o tema depois de 69 anos da primeira manifestao peronista na Argentina, aps

    59 anos da queda do regime de Pern, 62 anos aps a morte de Evita, 4 anos aps a morte do

    prprio Toms Eloy Martinez e quando ainda o peronismo a fora poltica mais importante da

    Argentina, essencial para entendermos parte de um processo cujo nexo estrutural de sentido

    est conectado em uma extremidade fenmenos polticos semelhantes na Amrica Latina e no

    mundo, praticamente no mesmo perodo, o que denuncia anseios populares por mudanas na

    estrutura poltica e social de Estados carcomidos pelos particularismos de aristocracias e

    interesses de grupos poltica e economicamente em condio de poder; e na outra ao arqutipo de

    Juan Domingo Pern, uma das tantas esfinges da nossa contemporaneidade.

  • A dcada infame de 1930, marcada pela instabilidade decorrente de golpes internos,

    durou na Argentina at pelo menos 1943, havendo portanto 13 anos de sucesses presidenciais

    que determinaram uma total paralisia de instituies polticas e econmicas. Exatamente nesse

    perodo se formou um grupo, dentro das foras armadas nacionais, de oposio elite militar que

    conduzia o caos poltico daquela dcada. Tratava-se do GOU1, do qual fazia parte Juan Domingo

    Pern. O grupo originalmente formado por 19 oficiais se opunha ao comunismo e aos polticos

    tradicionais, preconizando o estabelecimento de uma nova doutrina poltica e militar que a partir

    de idias patriticas, em pouco tempo, foi conquistando outros tantos jovens oficiais. J no final

    da dcada infame os oficiais do GOU mantinham intrnsecas relaes com militares de pases

    fascistas e, em 1943, com a Segunda Guerra Mundial em pleno curso, o golpe dado na Argentina

    coincidiu com o esforo do Eixo em cooptar ideologicamente repblicas sul-americanas, no s a

    partir das colnias germnicas existentes nesses pases onde agentes infiltrados da Gestapo

    comearam a operar pelo menos desde 1935, mas por conta de uma j estabelecida tradio de

    formao militar germnica para oficiais argentinos.

    O grupo de Pern acusava os militares que conduziam a Argentina de aliadfilos,

    enquanto o GOU declarava-se pr-fascista. A origem desse posicionamento ideolgico por parte

    de grupos de dentro do exrcito remonta ao incio do sculo XX, com o fechamento das escolas

    militares na Argentina por conta de problemas de desobedincia e insubordinao organizadas.

    Os aspirantes a oficiais passaram a ser enviados aos EUA, Frana e Alemanha para cursarem

    suas respectivas academias militares, o que por si s conformava, quando do seu regresso,

    grupos divergentes entre os oficiais j formados, no s pelas diferenas tericas em sua

    formao, mas por clivagens ideolgicas igualmente dspares. A situao agravou-se em 1916

    com a reformulao total dos comandos militares, perodo em que jovens oficiais sem nenhuma

    formao receberam promoes imediatas para postos de comando e passaram, a partir de ento,

    a ascender naturalmente na carreira. Acentuou-se uma ciso ainda mais brutal no oficialato

    argentino, originando grupos de oficiais rivais dentro do prprio exrcito: aqueles que no

    haviam passado por cursos de formao, incumbidos dos quartis; e os oficiais com formao

    estrangeira, que comandavam tropas operacionais, inclusive na inteligncia do exrcito. De certa

    forma o golpe de 1943, perpetrado por um grupo de oficiais do exrcito que subjugou outro

    1 O Grupo de Oficiais Unidos, Grupo de Obra e Unificao ou Grupo Organizador e Unificador, nem mesmo

  • grupo de militares no poder, conformou uma ao prtica que acabou denunciando em ltima

    instncia o ponto mximo de tenso alcanado pelas clivagens ideolgicas dentro das foras

    armadas argentinas.

    Com o estabelecimento do governo revolucionrio pelo GOU, Pern, aps um perodo

    como secretrio do Trabalho e Previdncia Social, foi nomeado vice-presidente da Repblica e

    Ministro da Guerra, alm de continuar acumulando a pasta da Secretaria do Trabalho. No caso

    argentino, com um governo militarizado num mundo em guerra, tratava-se de uma posio

    privilegiadamente controladora para o jovem oficial. Sua conduta e os cargos acumulados

    deram-lhe projeo e visibilidade e, em 1946, Pern se tornou o presidente de 14 milhes de

    argentinos, assumindo o mandato pela segunda vez em 4 de junho de 1952 e permanecendo no

    poder at 1955, quando foi derrubado por um golpe que o obrigou a renunciar. Nos 9 anos em

    que governou a Argentina confrontou-se com poderes j arraigados como a Igreja, chegando a

    autorizar a dissoluo de matrimnios e a determinar a abertura de prostbulos. Retornou ao

    poder somente 18 anos depois, em 1973, aps um perodo breve de exlio na Repblica

    Dominicana e uma longa estada em Madri.

    Aps ser destitudo do poder pensava-se que o exlio de Pern seria breve, mas depois da

    primeira dcada na Espanha ficava cada vez mais evidente que sua volta seria, no mnimo,

    improvvel. Mas a Argentina que perdia Pern ganhava o movimento peronista! Proscrito at

    pelo menos 1965, o movimento que adotou o codinome de justicialista ganhou diversos setores

    da sociedade argentina. A CGT e os principais sindicatos, que aps a queda de Pern passaram a

    sofrer intervenes diretas do Estado, permaneceram peronistas enquanto o justicialismo se

    reestruturava. Em Madri, durante todo esse tempo, imperava o silncio; no houve, em 18 anos,

    nenhum pronunciamento oficial de Pern, limitando-se o general, cuja patente fora-lhe negada

    por 8 governos consecutivos, ao exerccio reflexivo das correspondncias que trocava.

    Respondia as cartas de desde as mais proeminentes figuras do cenrio poltico, que lhe pediam

    conselhos e pareceres sobre os mais diversos problemas, at de cidados comuns, que se

    gabavam nas discusses polticas cotidianas de possurem uma carta pessoal do general, e via de

    regra os assuntos em discusso eram encerrados quando, com um ar de superioridade, algum

    sacava do bolso uma carta de Pern.

    os manuais de Histria da Amrica Latinas entram num consenso quanto ao seu significado.

  • Em 1971 a Argentina devolveu a Pern, por ordem do presidente Alejandro Lanussi, o

    que de mais valioso havia sido-lhe roubado, no o poder poltico ou a patente de general: o

    cadver de Evita aps 15 anos de paradeiro incerto, perodo em que esteve escondido, com outro

    nome, em um cemitrio de Milo. O corpo embalsamado da segundo mulher de Pern

    permaneceu desde ento no sto da quinta em Madri, fazendo-lhe companhia diria no silncio

    daquele claustro. Silncio que foi rompido com a vitria, nas urnas, de Hector Cmpora nas

    eleies presidenciais de 1973, cuja plataforma poltica propunha pedir a prpria renncia aps

    promover a volta de Pern Argentina reconduzindo-o, desta forma, aos braos do povo que o

    colocaria novamente no poder aos 77 anos de idade.

    No aeroporto de Ezeiza, dois milhes de pessoas que aguardavam a volta do general Juan

    Domingo Pern. Iniciamos a anlise exatamente no palco onde a extrema esquerda e a direita,

    ambas reivindicando para si o peronismo e a imagem do lder, se confrontaram aps uma

    covarde investida dos grupos conservadores ligados ao secretrio Jos Lpez Rega, brao direito

    do general. Seus asseclas teriam desfechado disparos contra a populao que tomava as

    imediaes do aeroporto e se aglomerava ao redor de um palco onde esperavam ver o general

    acenando-lhes aps seu regresso. O alvo: grupos da esquerda peronista. Os resultados: 13 mortos

    e 365 feridos, de acordo com veculo de imprensa, o que nunca pde ser confirmado uma vez

    que no houve investigao formal desses eventos. H relatos de espancamentos e de jovens

    arrastados aps serem agredidos a golpes de corrente, alm de cadveres encontrados enforcados

    nas rvores ao longo das estradas de acesso ao aeroporto, militantes ligados esquerda peronista.

    Como resultado o avio que trazia Pern foi obrigado a pousar em uma base militar

    segura em Morn. O general enfim voltava ptria! Cmpora renunciou e as eleies foram

    enfim convocadas, levando Pern a uma esmagadora vitria; seu governo relmpago teve fim no

    ano seguinte, com a morte de um Pern j entregue velhice e o governo assumido por sua

    terceira esposa, Isabelita, sucessora de Evita, durou somente at 1976, ano em que a Argentina

    assistiu a um novo golpe militar que a destituiu do poder definitivamente e lhe imps a volta ao

    exlio em Madri, de onde nunca mais regressou seno para poucos meses de frias.

    Mas o que nos interessa de fato o dia mais curto de 1973: o 20 de junho, o dia do

    regresso de Pern Buenos Aires, o marco do fim de seu exlio, o dia do massacre em Ezeiza.

    No avio que trazia o general, Martinez situa, sentado impacientemente em sua poltrona, um

  • Pern que se defrontava com um peronismo que j no era mais seu: extremistas invadiam

    fbricas, molestavam sindicalistas e atentavam contra o exrcito evidenciando que o movimento

    havia se distanciado demais de sua figura fundacional: Pern. O homem imerso em pensamentos,

    que naturalmente relutava em arrancar as razes que havia fincado em Madri, seu lar durante

    quase duas dcadas, iria se deparar com os ultras que ao se infiltrarem no movimento peronista

    passariam a ameaar a estabilidade do novo governo de Pern pois ao descontentarem as foras

    armadas nacionais poderiam desencadear um novo golpe militar.

    Mostrava-se de forma cada vez mais evidente que o peronismo havia se tornado

    dificlimo de se operar, em termos prticos, isso por conta de sua natureza multifacetada. O

    movimento peronista havia abraado at ali interesses de distintas classes sociais, componentes

    de vrios grupos no raras vezes rivais, o que tornou impossvel no provocar cises dentro do

    movimento. Tir-los fora, qualquer grupo, desgastaria ainda mais a imagem de Pern, esta que

    deveria ser preservada a qualquer custo. As invases s fbricas e os distrbios assistidos na

    Argentina no incio da dcada de 1970 so atribudos a grupos guerrilheiros que reivindicavam

    para si o peronismo. No Romance de Pern (MARTNEZ, 1988, p. 50) o general atribui a

    Cmpora o dever inicial de t-los freado quando assumiu a presidncia da Argentina: no o fez, e

    a tarefa parecia agora impossvel para Pern, que deveria ento lhes apontar o caminho.

    Cmpora teria ainda conquistado o dio dos prprios peronistas que haviam feito-lhe

    candidato, no s pela demora em renunciar - com ares de que desejava permanecer no poder -,

    mas pelo nepotismo que praticou no pouco tempo em que governou, empregando em altos

    escales governamentais seus prprios filhos: o peronismo tinha-o como traidor e poderia de um

    dia para o outro tir-lo do poder.

    Definitivamente, tanto o Pern descrito por Martnez com o Pern de fato haviam se

    afastado dos projetos revolucionrios que visavam transformar a Argentina em uma ptria

    socialista: tratava-se de um conciliador antirrevolucionrio. As tenses resultantes do

    distanciamento de classes na sociedade argentina no confluiriam para a luta de classes, no para

    o general que voltava ao poder aos 77 anos de idade. - O raciocnio simples explicara-lhe

    Pern. Precisamos escolher entre o tempo e o sangue. Se quisermos rapidez, necessitaremos de

    rios de sangue. Quanto a mim, prefiro que caminhemos sobre rios de tempo" (MARTNEZ,

  • 1988, p. 50). Ironicamente era o tempo que o general, aos 77 anos de idade, no tinha para operar

    as mudanas necessrias na poltica, economia e sociedade argentina.

    No romance de Martnez o resultado pela contenda por Pern j estava dado, desde o

    incio, em favor dos setores conservadores do movimento. A esquerda revolucionria, os grupos

    guerrilheiros, os projetos socialistas, no estavam mais na ordem do dia daquele que em abril de

    1973 triunfaria nas eleies presidenciais argentinas. Sua plataforma de governo teria como um

    dos pontos principais promover uma reaproximao do peronismo com os setores militares, o

    que implicava em empreender apenas reformas lentas e gradativas, no traumticas que

    pudessem de alguma forma tratorar as relaes entre o lder poltico argentino e a nica

    instituio capaz de privar-lhe mais uma vez do poder.

    O Pern descrito por Martnez alegava no ter enganado os setores esquerdistas do

    movimento peronista, mas que estes comumente insistiriam em enganar-se com a sua imagem,

    que na emblemtica metfora disposta em um dilogo, posta na boca de Pern como metfora, o

    associou a um leo sem dentes, uma fera herbvora que no enganava a mais ningum a no

    ser aqueles que faziam questo de se enganar. Trata-se do discurso do Pern militar defensor das

    instituies, filho do Exrcito argentino, no do revolucionrio que inverteria a ordem social

    constituda. Por que ento uma contenda por Pern, se a supremacia dos grupos conservadores e

    reacionrios de dentro do peronismo j estava estabelecida para o general, na concepo

    romantizada de Martnez? A resposta que se os grupos de extrema esquerda de dentro do

    peronismo sassem s ruas exigindo as mudanas necessrias ao estabelecimento de uma maior

    justia social, nem que isso passasse pela via revolucionria, bastaria para ganhar o apoio das

    massas populares. Ganhariam assim o apoio de Pern, incapaz de contestar o movimento

    revolucionrio e opor-se com isso ao vagalho das massas. Seriam vertidos a rios de sangue! As

    favas com o tempo! Para onde soprar o vendaval, para onde ir o general.

    Filho Ilustre da Amrica, Heri Bolivariano, Senhor Benfeitor. Oua-o falar

    aqui contra as conspiraes do comunismo internacional, e ali adular Fidel

    Castro e Che Guevara. O general uma eterna contradio da natureza, um

    corpo de urso com um bico de ave de rapina, uma colheita de trigo no mar.

    (MARTNEZ, 1988, p. 274)

    Martinez entrelaa numa linguagem no linear a articulao simultnea dos grupos que

    decidiriam o destino da prpria Argentina, fundamentalmente aquele que primeiro ganhasse, pela

    fora do nmero ou pela habilidade no ardil, o apoio do general. Para os grupos fascistas de

  • dentro do prprio peronismo era preciso guardar Ezeiza dos militantes de esquerda; para os

    militantes de esquerda era preciso conquist-la.

    Determinar Pern como homem e como lder poltico uma tarefa que passa

    obrigatoriamente pela mais expressiva de suas faces constitutivas: a militar; tanto sua

    personalidade quanto a concepo militarizada de relaes polticas que predominou no governo

    de Pern dialogavam diretamente com o seu passado militar. Pern era o Exrcito e o romance

    de Martnez (1988, p. 173) determina o momento exato onde seu eu foi anulado para dar lugar

    encarnao da arma de guerra argentina:

    Quanto mais Juan Domingo se convertia no zero do zero, mais o Exrcito

    argentino se transformava no universo, na realidade, no envoltrio do eu. Era o

    futuro, o nico possvel; era seu corpo, tatuado pela obedincia, j

    incompreensvel sem o uniforme. Como necessitava suprimir o passado, o

    Exrcito ocupou todo o lugar disponvel.

    A gnese desse processo teve incio no dia 1o de dezembro de 1910, quando prestou exame para

    admisso ao Exrcito; e no dia 1o de maro de 1911, quando foi incorporado como cadete em

    San Martn, lugar onde tomou as primeiras lies para liderar homens. Foi promovido a

    subtenente no dia 18 de dezembro de 1913, em fins de 1915 a tenente, em 1926 a capito, em

    1931 a major, em 1938 j era tenente-coronel e em 1944 coronel. As patentes levaram-no a

    general, e de lder de tropas passou a conduzir toda uma nao.

    Para tratarmos de uma disputa por sua imagem, contenda em que a vitria garantiria ao

    grupo vencedor hegemonia dentro do prprio movimento e assim na poltica argentina, devemos

    primeiramente determinar exatamente que imagem estava em disputa.

    Tratava-se de uma imagem construda pelos bigrafos que tentavam interpretar os fatos

    disponveis como se pudessem chegar a uma verdadeira essncia de Pern, buscando-lhe um

    sentido, que quando pensou-se ter-se alcanado correspondia mais a uma estrutura pr-

    compreensiva de Pern e edificada tanto a partir de uma historicidade j prpria ao seu

    arqutipo, como viso de mundo do escritor.

    Seu bigrafo oficial era tambm seu secretrio, Jos Lpez Rega, mencionado a todo

    momento no romance com as anotaes de suas Memrias embaixo do brao, to raras a Pern

    que via ali, na construo artificial de suas linhas, a si mesmo, como um espelho distorcido de

    uma realidade ficcional como o prprio Romance de Pern assumidamente . Em 1973 as

  • Memrias eram revisadas por Pern, tendo algumas passagens sido transcritas no romance de

    Martnez, que ps o leitor em contato direto com o processo de construo de sua imagem por

    seu bigrafo oficial. As Memrias eram propostas como . . . a cruz que faltava igreja

    peronista (MARTNEZ, 1988, p. 51) com sua mesma funo contemplativa, reverencial e ritual

    mgico-religiosa, na qual o sacerdote era o prprio mrtir-vivo.

    A manipulao de suas Memrias tinha a finalidade de alinh-las sob uma perspectiva de

    carter exemplar-pedaggico, normatizador de condutas, princpios e valores tico-morais. Nesse

    processo hermenutico as massas deveriam se reconhecer no passado de Pern, para que nele

    encontrassem seu presente e a partir somente dele vislumbrassem o porvir, como o futuro da

    prpria Argentina. Mas no a Pern que abraariam na leitura de sua biografia, seno uma

    imagem distorcida construda pela modelao de seu passado. O bigrafo o pintor que desenha

    um retrato onde o corpo e os msculos so a massa uniformizada pelo reconhecimento comum,

    que teve lugar no passado de seu lder mximo e nico; Pern o crebro que o movimenta.

    Martnez, mesmo tratando de Lpez com a desobrigao que comodamente a fico lhe

    d, empreendeu-lhe uma severa crtica. Na fico, o personagem Lpez, que na realidade foi o

    bigrafo oficial de Pern, no inventou apenas documentos cuja finalidade seria a de suprimir as

    lacunas de um passado naturalmente sombrio, que deixa espaos vagos pela prpria

    impossibilidade de a memria a tudo guardar sem trair seu portador, de ser seletiva e de

    reinventar seu detentor: Lpez inventou Pern, deslocou-o no tempo e inseriu-o em paisagens

    que nunca havia visitado, a ponto de o prprio general ser incapaz de reconhecer a si mesmo nas

    Memrias. A lgica que aparece no romance (MARTNEZ, 1988, p. 51) a de que o povo

    necessita de fbulas e sentimentos, no da argamassa cinzenta das doutrinas com as quais, muito

    a contragosto, precisou ser alimentado. Assim, o bigrafo um retratista capaz de dar mais

    brilho, de melhorar a imagem do retratado, criar ou omitir personagens e lugares no tempo e no

    espao. No h verdade alguma no retrato, seno a essncia de uma das muitas verdades

    possveis e que sempre referida, mas nunca revelada com a exatido que se espera mas que no

    existe. Os detalhes incmodos so soprados para fora das Memrias oficiais. Nesse sentido

    Lpez como Tucdides ao narrar a guerra do Peloponeso, preenchendo as lacunas deixadas

    pelos lapsos naturais da memria, construindo documentos, retocando a face do retratado, dando-

    lhe um ar sbrio, herico, grandiloqente. Lpez era o pintor retratista da corte de Pern:

  • Interpretei bem o que o senhor pediu, meu general? O senhor desejava realar

    os traos viris no retrato de seu pai e os femininos nos de sua me, no ? Nada

    de meio-termo. ( . . . ) Assim est bom aprovara Pern. Exatamente como eu

    queria. (MARTNEZ, 1988, p. 57 e 58)

    Determinar suas origens o passo inicial no sentido de estabelecer uma correspondncia

    entre o estadista e o Estado, entre o lder poltico e a nao, entre o heri e o povo. O primeiro

    sinal que identificaria Pern com o povo argentino seria sua origem sarda e escocesa, por parte

    de seus bisavs. A Argentina um cadinho de raas (MARTNEZ, 1988, p. 52) e nesse sentido

    Pern a Argentina e a Argentina Pern: isso deveria ficar claro nas pginas das Memrias.

    O processo de composio de sua imagem deveria passar obrigatoriamente pela

    construo de seus antepassados. A planta da construo aparece no Romance de Pern e

    possvel confront-la com as Memrias para verificar as correspondncias, no que isso nos

    permitisse riscar os limites entre fico e Histria. Na construo, Toms Liberato, nascido aos

    17 de agosto de 1839, teria sido o primognito dos sete filhos de Tomz Mrio Pern (o primeiro

    Pern a pisar o solo argentino) e Ana Hughes Mackenzie, os bisavs de Juan Domingo Pern.

    Segundo seu bigrafo oficial, em texto publicado pela revista Panorama, o av de Pern teria

    sido senador nacional, representante da provncia de Buenos Aires, presidente do Conselho

    Nacional de Higiene, herico major na Guerra do Paraguai, tendo desempenhado ainda misses

    na Frana e lutado bravamente na batalha de Pavon. Ocorre que sua participao na Guerra do

    Paraguai j havia sido contestada por historiadores, a partir de registros nos quais constava que

    Toms Liberato estaria, no mesmo perodo, ferido no Banco de Sangue improvisado de Buenos

    Aires, alm de ter sido, em 1868, deputado provincial e no senador (MARTNEZ, 1988, p. 54).

    A falcia denunciava que Pern desejava dar um brilho falso a seu av, mas por qu?

    Para dar um ar grandiloqente sua origem poltica e militar, constitu-la como um evento

    cumulativo a atos hericos e sagazes de seus antepassados, post-la na ordem dos estamentos, da

    hereditariedade, introjet-la no sangue. - preciso colocar as montanhas onde se quer, Juan.

    Onde voc as colocar, ali elas ficaro. Assim a Histria. ( . . . ) A Histria ficar com a verdade

    que eu estou contando (MARTNEZ, 1988, p. 55). E arremata Martinez (1988, p. 55), por meio

    do personagem Lpez Rega: Todos os homens tm o direito de decidir o futuro. Por que voc

    no ter o privilgio de escolher o passado? O trabalho de Lpez era consertar-lhe os deslizes,

    construir uma histria verdadeira, que de fato seria aquela . . . que devia ter acontecido, aquela

  • que, sem dvida, prevalecer (MARTNEZ, 1988, p. 60). A tentativa de construo de uma

    tradio militar para o av se fincava na ausncia desta para o pai. De origem urbana e

    comercial, depois camponesa, Mrio Toms Pern, nascido aos 9 de novembro de 1867 havia

    interrompido os estudos de medicina e, em 1890, mudou-se para Lobos a fim de ocupar as terras

    herdadas de seu progenitor, onde aos 8 de outubro de 1895 nasceu Juan Domingo Pern.

    No af de demonstrar a grandeza dos antepassados de Pern, o personagem Lpez de

    Martnez (1988, p. 81 n.d.r.) ultrapassou todos os limites, inclusive os da coerncia e da lucidez,

    recorrendo ao esoterismo para buscar a heroicidade requerida nas vidas passadas de Pern:

    Em 1971, Jos Lpez Rega revelou que o nascimento de 1895 correspondia, na

    verdade, Quinta vida de Juan Domingo Pern. Nas anteriores, ele havia sido

    Per-O, uma rainha egpcia cujo nome significa A Casa Grande e que

    governou as aldeias do Alto Nilo, 3 500 anos antes de Cristo; Rompe, o peixe

    cujo bico uma espada eltrica e que vive nas fossas marinhas situadas a leste

    da ilha Desengano; Norpe, um dogue que mordeu Marco Polo em Catay e

    pagou pela afronta sendo envenenado com p de vidro; e o sacerdote jesuta

    Dominique de Saints-Pres, que foi mestre de Descartes no colgio de La

    Flche, e morreu fulminado por um raio na propriedade de Perron, onde era

    hspede de seu discpulo. Em 1980, Pern admitiu que havia assinado alguns de

    seus artigos com o pseudnimo de Descartes: O filsofo usou meu nome

    (Perron) e quero retribuir-lhe a gentileza, justificou.

    Caso as informaes estejam confusas apesar da riqueza de detalhes, recapitulemos: rainha do

    Egito em 3500 a.C.; peixe espada; um cachorro que mordeu Marco Plo; mestre de Descartes.

    De fato o trabalho de construo de um passado glorioso pelo bigrafo deve ser mais fcil

    quando se pode recorrer a outras encarnaes do mesmo personagem. Resta metodologia

    cientfica normatizar citaes para o caso de a recorrncia a fontes de alm-tmulo vir a se tornar

    corrente no meio historiogrfico. Com isso o foco de Lopez ampliado de um passado recente

    que cria e recria, para um passado ainda mais longnquo de eras de existncia. No importa,

    nenhum deles aconteceu mesmo!

    O Pern oficial j est sendo esvaziado. Devemos procurar o outro (MARTNEZ,

    1988, p. 39). Desta forma a imprensa entra tambm na contenda pela imagem de Pern,

    auxiliando no processo artificial de sua construo e mitificao. Esse processo foi revigorado

    por um anseio geral da populao argentina em revisitar a imagem do general e reafirmar sua

    devoo ao mito que encarnava. O que a imprensa fez foi devolv-lo como um bem de consumo

    de massa por meio de publicaes exclusivas, suplementos de jornais e revistas e tiragens extras

  • lanadas nas vsperas do regresso de Pern. o caso das revistas: Panorama, que publicou

    dados biogrficos escritos por Lpez; e Horizonte.

    Cerca de 3 mil militantes das Foras Armadas Revolucionrias (FAR) e montoneros

    tomaram o aeroporto para a Operao 20 de julho, com faixas, palavras de ordem e um

    verdadeiro plano de guerra para posicion-las defronte ao palco para onde iria o general aps sua

    aterrissagem. O objetivo era tomar os 300 metros logo frente do palco, protegido por um

    cordo de policiais, ganhar a simpatia do lder poltico no primeiro momento possvel e faz-lo

    ento, por presso das massas, converter a Argentina em uma ptria socialista.

    A estratgia inclua ainda ganhar Pern com palavras de ordem, cuidadosamente

    preparadas e ensaiadas, como uma saraivada de idias que deveriam ser disparadas frontalmente

    na direo do general. As rimas incluam (MARTNEZ, 1988, p. 72, 73, 351, 352): Vamos a

    Ezeiza, vamos compaero / a recebir a un viejo montonero; Vamos a hacer la patria peronista /

    pero la haremos montonera y socialista; Haremos una ptria peronista / pero que sea

    montonera y socialista; e ento o refro revolucionrio: Ayer fu la resistncia / hoy

    Montoneros y FAR / con Pern yendo a la guerra / a la guerra popular. Esses grupos tinham,

    alm do sindicalismo burocratizado, outros inimigos comuns, como o isabelismo, que deveria ser

    combatido em alto e bom som com a exaltao da figura de Evita: Pern, Evita / la ptria

    socialista! Evita hay una sola / no rompam ms las bolas; Pern, coraje (...) / Si Evita viviera /

    sera montonera! Si Evita viviera! (MARTNEZ, 1988, p. 223).

    Os trezentos metros a frente do palanque eram vitais. Para montoneros e FARs . . . o

    caminho revolucionrio passava por Pern (MARTNEZ, 1988, p. 67), e Pern deveria ser

    conquistado ali mesmo, em Ezeiza. Martnez (1988, p. 77) os descreve como se tivessem parado

    no tempo, como se pensassem que o Pern de 1973 seria o mesmo de 1955, como se o prprio

    peronismo ainda fosse o mesmo de outrora, e se pergunta atravs do personagem El Cabezn,

    diante dos 3 mil companheiros que marchavam para a conquista da regio defronte ao palanque:

    . . . em que pas vamos coloc-los [?].

    Havia o movimento formado por marxistas da Quarta Internacional, o ERP 22 de

    agosto. Havia os esquadres da Juventude Sindical que circulavam em meio multido, com

    revlveres em punho, formando verdadeiros cordes humanos. Ezeiza estava repleta tambm das

    hostes reacionrias, seguidores do secretrio Jos Lpez Rega.

  • Os agentes da burocracia sindical vestiam braadeiras verdes, armados com mangueiras

    recheadas de chumbo; outros fascistas protegiam o palanque e tinham como misso manter

    montoneros, FARs e qualquer outro grupo de esquerda distante fora; atiradores de elite

    estavam a postos com alvos claros; batalhes de policiais guarneciam as rotas de acesso ao

    aeroporto, as mesmas onde depois foram encontrados militantes de esquerda enforcados nas

    rvores que margeavam as vias de acesso; e os postos sanitrios cujas ambulncias investiram

    com agentes armados em seu interior contra a massa montonera e as FARs que ganharam

    heroicamente a frente do palanque onde se esperava ver Pern.

    Se o lema dos montoneros era Pern o muerte, os fascistas negaram-lhe o primeiro e se

    preparavam para dar-lhes o segundo. Os lacaios de Rega armavam-se no palco onde deveria j

    estar discursando Pern; atiradores de elite se posicionavam sobre os postes dos telgrafos, j

    fechando a mira de seus fuzis leves em seus respectivos alvos; os trogloditas com braadeiras

    verdes sacavam seus cacetetes... Um estampido seco ento foi ouvido em meio s palavras de

    ordem montoneras e deu-se em seguida o incio ao massacre.

    Histria ou fico? Trata-se da fico que tomou emprestada a histria para desenvolver

    sua trama reinventando a prpria histria. Entender as tenses existentes entre o conjunto de

    foras que conformavam a cena poltica argentina no perodo da volta do peronismo ao poder em

    1973, mesmo que no universo fantasioso de um romance-histrico, ajuda-nos a melhor entender

    o prprio fenmeno do peronismo, que projetou a imagem de Pern agigantando-a como uma

    esfinge, fitando-nos de forma inquisidora e impondo-nos a pergunta: como o menino de Lobos,

    que se tornou general, galvanizou coraes e mentes de toda uma nao, abarcando grupos e

    interesses to conflitantes.

    Tudo parecia caber no peronismo, menos o aptico e relutante Pern de 1973 descrito por

    Martnez e no reconhecido por seu prprio povo: a imagem criada j era diferente demais do

    prprio Pern. o que aparece nas palavras do campons annimo (1988, p. 77): - Esse homem

    no pode ser Pern. Na construo da imagem do lder e heri poltico edificada pelo autor,

    Pern no queria voltar Argentina e com aflio aguardava o dia de seu embarque Ezeiza. A

    Argentina no era mais o seu mundo, era o passado assim como sua prpria imagem... O Pern

    cauteloso, deslocado em relao ao peronismo atualizado, determinou seu sepultamento antes

    mesmo da morte que o arrebataria de fato na madrugada de 3 de julho de 1974. Em Buenos Aires

  • no havia um bravo estadista disposto a romper com as velhas engrenagens decadentes de poder,

    havia um mort-vivant. Nas palavras do personagem Romero (MARTNEZ, 1988, p. 106): -

    um ancio de quase setenta e oito anos; basta empurr-lo, com delicadeza.

    No s no romance como na vida, na farsa como no drama, Juan Domingo Pern tornou-

    se uma entidade abstrata e estranha ao prprio peronismo. Visivelmente o Pern de 77 anos

    aparece no romance, ao voltar a Buenos Aires, desejando pertencer mais a si mesmo do que aos

    outros, mas essa possibilidade no lhe parecia mais possvel. Durante toda a sua vida sua

    imagem havia sido construda a partir dos anseios e desejos de diferentes classes; cada vez mais

    o peronismo se afastava de Pern; talvez o prprio Pern no participasse mais da contenda por

    si mesmo, ou no quisesse estar no centro dela.

    No Romance de Pern (p. 276) e no que convencionamos como vida real o general

    no era um simples homem. Eram vinte anos de Argentina . . . Entender sua biografia, mesmo

    que a partir de um romance-histrico, permite-nos entender uma parte significativamente

    constitutiva da prpria Argentina. Permite-nos olhar nos olhos da esfinge e tentar responder-lhe o

    enigma, sabendo de antemo que seremos por ela devorados.

    Bibliografia:

    ARFUCH, Leonor. O espao biogrfico: dilemas da subjetividade contempornea. Rio de

    Janeiro: EdUER, 2010.

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    DOSSE, Franois. La apuesta biogrfica: escribir una vida. Miana. Valencia: PUV, 2007.

    LITTLE, Walter. La Organizacin Obrera y el Estado Peronista, 1943-1955. Desarrollo

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    MARTNEZ, Toms Eloy. O romance de Pern. So Paulo: Editora Best Seller, 1988.

    __________. Las memorias del General. Buenos Aires: Planeta, 1996.

    __________. Las vidas del General. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2004.

    NEIBURG, Frederico. Os intelectuais e a inveno do peronismo. So Paulo: Edusp, 1997.