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XXVI CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI SÃO LUÍS – MA
EFICÁCIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DO TRABALHO, SOCIAIS E
EMPRESARIAIS
LUCIANA ABOIM MACHADO GONÇALVES DA SILVA
RODRIGO GOLDSCHMIDT
VIVIANE COÊLHO DE SÉLLOS KNOERR
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E27
Eficácia de direitos fundamentais nas relações do trabalho, sociais e empresariais [Recurso eletrônico on-line] organização
CONPEDI
Coordenadores: Luciana Aboim Machado Gonçalves da Silva , Rodrigo Goldschmidt, Viviane Coêlho de Séllos Knoerr – Florianópolis: CONPEDI, 2017.
Inclui bibliografia
ISBN:978-85-5505-572-0Modo de acesso: www.conpedi.org.br em publicações
Tema: Direito, Democracia e Instituições do Sistema de Justiça
CDU: 34
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Florianópolis – Santa Catarina – Brasilwww.conpedi.org.br
Comunicação – Prof. Dr. Matheus Felipe de Castro – UNOESC
1.Direito – Estudo e ensino (Pós-graduação) – Encontros Nacionais. 2. Direitos sociais. 3. Contrato. 4. Educação. XXVI Congresso Nacional do CONPEDI (27. : 2017 : Maranhão, Brasil).
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
São Luís – Maranhão - Brasilwww.portais.ufma.br/PortalUfma/
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XXVI CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI SÃO LUÍS – MA
EFICÁCIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DO TRABALHO, SOCIAIS E EMPRESARIAIS
Apresentação
As relações sociais cotidianas, nomeadamente as de trabalho e empresa, vem desafiando
novos estudos sobre a eficácia dos direitos fundamentais.
Várias pesquisas, válidas e atuais, lançam luzes sobre os limites da atuação do Estado por
sobre o particular, fenômeno que se convencionou chamar de “eficácia vertical” dos direitos
fundamentais.
Atualmente, com a gradativa suplantação e instrumentalização do Estado pelo poder
econômico empresarial, a temática alçou novos contornos, na medida em que, de forma cada
vez mais frequente, constata-se que dito poder vem exorbitando os seus limites no âmbito das
relações individuais e coletivas de trabalho, afetando, com isso, a dignidade e a esfera de
personalidade do trabalhador.
Os artigos científicos que compõem esta obra coletiva constituem uma possível resposta a
essa problemática, procurando oferecer elementos teóricos para compreender as implicações
do uso abusivo do poder econômico, bem como elementos práticos para opor limites a este
poder nas relações privadas, com o mote de alcançar, na maior medida possível, um salutar
equilíbrio entre a empresa e o trabalho humano, a partir de um olhar conforme a
Constituição, a qual preconiza a valorização do trabalho, a livre iniciativa e a justiça social.
Nesse diapasão, preconizam a adoção de políticas públicas para promoção do trabalho
decente e da máxima efetividade dos direitos humanos dos trabalhadores, inclusive com
vistas ao disposto na Declaração da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre
Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho e seu seguimento, enaltecendo a
imprescindibilidade de abolir o trabalho infantil, erradicar o trabalho forçado, eliminar a
discriminação e valorizar a negociação coletiva ao lado da liberdade sindical.
Para tanto, os artigos em questão exploram vários marcos regulatórios internacionais,
constitucionais e infraconstitucionais, assim como abarcam vários marcos teóricos, v.g., a
eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a função social da empresa e a função social do
contrato. Porém, sem nunca descurar da necessária contextualização social, política,
econômica e ambiental.
Agora todo esse material científico, elaborado com esmero e dedicação, depurado pelo
debate científico no Grupo de Trabalho constituído para esse fim no âmbito do XXVI
Congresso Nacional do CONPEDI realizado em São Luis/MA, de 15 a 17 de novembro de
2017, está à disposição de você.
Boa leitura, boas práticas!
Prof. Dr. Rodrigo Goldschmidt - Unesc
Profa. Dra. Luciana Aboim Machado Gonçalves da Silva - UFS
Profa. Dra. Viviane Coêlho de Séllos Knoerr - UNICURITIBA
Nota Técnica: Os artigos que não constam nestes Anais foram selecionados para publicação
na Plataforma Index Law Journals, conforme previsto no artigo 7.3 do edital do evento.
Equipe Editorial Index Law Journal - publicacao@conpedi.org.br.
A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DAS AUTORIZAÇÕES JUDICIAIS PARA O TRABALHO INFANTIL ARTÍSTICO
THE (IN)CONSTITUTIONALITY OF JUDICIAL AUTHORIZATIONS OF ARTISTIC CHILD LABOR
Suzete Da Silva Reis
Resumo
Apesar da proibição do trabalho para aqueles com idade inferior aos dezesseis anos, é
recorrente a exploração do trabalho infantil pelos meios de comunicação brasileiros, o que
impõe questionar se as autorizações judiciais para o trabalho infantil artístico são
constitucionais, atendendo aos preceitos insculpidos nos instrumentos normativos que
garantem a proteção integral consagrada pela Constituição Federal. Pretende-se, com o
presente trabalho, analisar a constitucionalidade das autorizações judiciais para o trabalho
artístico de crianças e adolescentes. Para viabilizar a elaboração do presente trabalho, o
método empregado foi o hermenêutico e como técnica de pesquisa foi empregada a
bibliográfica.
Palavras-chave: Autorizações judiciais, Proteção integral, Trabalho artístico, Trabalho infantil
Abstract/Resumen/Résumé
Brazilian law prohibits those under sixteen years old of working, but child work is
recurrently exploited in the media. It makes one question whether judicial authorizations for
artistic child work are constitutional, attending the legal precepts that guarantee the Integral
Protection of Rights as established in the Federal Constitution. The aim of this research is to
analyse the Constitutionality of such judicial authorizations for the artistic child and teenager
labor, using the hermeneutic method and the bibliographic research technic.
Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Judicial authorization, Integral protection of rights, Artistic work, Child work
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Introdução
Pretende-se, com o presente trabalho, analisar a constitucionalidade das autorizações
judiciais para o trabalho infantil artístico. A discussão sobre a temática não é recente e a vedação
constitucional é expressa, porém a concessão de autorizações judiciais continua acontecendo
de forma sistemática no Brasil.
A Constituição Federal de 1988, ao consagrar o paradigma da proteção integral,
inaugurou uma nova fase para o Direito da Criança e do Adolescente, garantindo a prioridade
absoluta para a garantia dos direitos fundamentais. A condição de sujeito de direitos, conferida
às crianças e adolescentes, implicou na alteração legislativa, com a edição do Estatuto da
Criança e do Adolescente, bem como na criação de um sistema de garantias para assegurar a
proteção integral.
No entanto, o próprio Poder Judiciário, um dos órgãos que compõem o sistema de
garantia de direitos, tutela a exploração do trabalho infantil ao conceder autorizações judiciais
para o trabalho de crianças e de adolescentes com idade inferior à idade mínima para o trabalho
estabelecida pelo texto constitucional.
É flagrante a violação de direitos que ocorre sempre que uma autorização de trabalho é
concedida para uma criança ou adolescente abaixo da idade mínima. A tutela do Poder
Judiciário, ao conceder as referidas autorizações, contraria os preceitos constitucionais e
permite a violação de direitos trabalhistas e previdenciários.
Para uma melhor compreensão do tema, o primeiro aspecto a ser enfrentado diz respeito
a exploração do trabalho infantil e sua trajetória. Em segundo lugar, é preciso compreender o
conceito de trabalho infantil e sua amplitude, bem como analisar as suas causas e
consequências.
De modo geral, o trabalho infantil está associado às piores formas. No entanto, há outras
formas de exploração do trabalho que comprometem gravemente o desenvolvimento físico,
social, escolar e psicológico de crianças e de adolescentes. Dentre elas, está o trabalho infantil
artístico que, nem sempre é reconhecido como trabalho, confundindo-se, muitas vezes, com
atividade artística ou com atividade cultural. Entretanto, se for realizado por um artista adulto
é considerado trabalho.
O texto constitucional, ao vedar qualquer trabalho às crianças e adolescentes abaixo da
idade mínima, não faz qualquer ressalva ou exceção, salvo o trabalho na condição de aprendiz
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a partir dos quatorze anos. Depreende-se, com isso, que o trabalho infantil artístico também está
vedado, expressamente, pelo artigo 7º, inciso XXXIII da Constituição Federal.
Portanto, são essas inquietações que resultaram no problema de pesquisa: diante da
proteção integral assegurada às crianças e adolescentes, as autorizações judiciais para o trabalho
infantil artístico são constitucionais? Para responder ao problema, o método empregado foi o
hermenêutico e como técnica foi utilizada a pesquisa bibliográfica.
1 A exploração do trabalho infantil ao longo da história e o necessário reconhecimento
do trabalho infantil artístico: breves considerações
No Brasil, a exploração do trabalho infantil acompanha a formação econômica do país,
sendo percebido desde o início da colonização portuguesa e perdurando ao longo da história.
Kassouf e Santos (2010) referem que ao longo do tempo, o trabalho infantil sofreu modificações
qualitativas e quantitativas. Entretanto, em sua essência, permanece o mesmo.
Grunspun (2000, p. 45), vai além e afirma que o trabalho infantil existe “desde os
primórdios da humanidade, em períodos anteriores a própria existência do Direito do Trabalho.
As crianças sempre trabalharam junto as famílias e as tribos sem se distinguir dos adultos com
quem conviviam”.
Na história do Brasil, observa-se que o trabalho infantil sempre esteve presente: as naus
portuguesas que aqui chegavam estavam repletas de trabalhadores infantis. Bento-Sé (2000, p.
62), revela que meninos com idade entre nove e quinze anos eram obrigados pelos pais a
trocarem a infância pelo mar. Segundo o autor, cerca de 10% da frota de Cabral era formada
por crianças, que trabalhavam tal e qual um adulto.
Seguindo a mesma linha, Baffert (2006, p. 128), destaca que no Brasil, o “trabalho da
criança teve início com o próprio trabalho na Colônia, quando famílias inteiras de negros eram
compradas e mantidas em regime de escravidão. As crianças trabalhavam como seus pais, eram
punidas com eles e, nessa vida predeterminada, nasciam e morriam pertencendo a alguém”. Do
mesmo modo, seus filhos eram submetidos a essa situação degradante e atentatória à dignidade.
Ainda que oficialmente a escravidão foi sendo abolida ao longo do século XIX, Pétre-
Grenouilleau (2009), a mudança para o trabalho livre foi um processo difícil. Mesmo após a
abolição da escravidão a situação não sofreu grandes alterações e essas crianças passaram a
sofrer novas violações. Os pais libertos não tinham como sustentar os filhos e acabavam
levando os mesmos para trabalhar junto com eles na agricultura. Assim, “tornaram-se
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oficialmente livres, mas continuavam presos ao trabalho, que lhes roubava a infância
(BAFFERT, 2006, p. 128).
Com a intensificação da imigração, o trabalho infantil ganhou novos contornos, pois
tanto “no campo como nas indústrias, era comum que os filhos dos imigrantes completassem
os primeiros anos, ou décadas, cumprindo rotinas de trabalhador” (BAFFERT, 2006, 128). A
chegado dos imigrantes não provocou grandes alterações em relação à exploração do trabalho
infantil.
De acordo com Grunspun (2000, p. 52), o trabalho de crianças filhas de imigrantes era
recorrente:
[...] maioria das crianças pobres e os filhos de imigrantes não tinham certidões de
nascimento para provar sua idade, e novamente dependemos da denúncia da imprensa
de que todos podiam observar na saída das fábricas o número de crianças entre 8, 10
e 12 anos que trabalhavam. Com o crescimento fabril em São Paulo, se construíram,
junto as fábricas, vilas de operários para as famílias que tinham cotas de produção e
os filhos completavam essas cotas. Quanto mais filhos, mais fácil era conseguir a casa
para a moradia nas vilas operárias
Posteriormente, a Revolução Industrial, particularmente com o surgimento do motor,
elevou a produção industrial, o que provocou uma luta pela sobrevivência por parte das
empresas. Uma das formas encontradas para garantir a continuidade e o aumento de produção
foi a contratação de mulheres e crianças que, tendo menos força física, poderiam ganhar menos
do que os homens (CESARIO JUNIOR, 1953). Contudo, trabalhavam um número maior de
horas e produziam tanto quanto os homens, porém a um custo menor.
A contemporaneidade, portanto, não assegurou o desaparecimento da escravidão, mas
sim, sob pressão das transformações políticas, econômicas e culturais foi mudando de forma
(PÉTRE-GRENOUILLEAU, 2009), adaptando-se as necessidades do mercado e do capital.
Em breve e sucinto retrospecto histórico, constata-se que o trabalho infantil sofreu
alterações quanto ao modo de exploração, porém, em essência, permaneceu inalterado. No
Brasil, a exploração do trabalho infantil perdurou ao longo dos dois últimos séculos, não mais
se restringindo às áreas rurais. Também nas áreas urbanas constatou-se uma elevação no
número de crianças em situação de trabalho, especialmente dentre as camadas mais pobres da
população. Aos poucos, estado e sociedade passaram a se preocupar com a situação e a elaborar
estratégias para a erradicação do trabalho infantil.
Passados mais de dois séculos, o Brasil ainda possui 2,7 milhões de crianças com idade
entre 5 e 17 em situação de trabalho, conforme Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio
(Pnad). Esse número corresponde a 5% da população dessa faixa etária. Outro dado alarmante
é que cerca de 79 mil brasileiros com idade inferior aos dez anos já estão trabalhando. Grande
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parte dessas crianças trabalha com as famílias na agricultura, para terceiros, como empregados
domésticos, nas ruas ou outras atividades consideradas perigosas ou listadas dentre as piores
formas de trabalho infantil.
Entretanto, parte delas está trabalhando nos meios de comunicação, participando de
novelas, seriados, campanhas publicitárias, levadas pelas famílias e autorizadas pelo Poder
Judiciário. Muitas delas são obrigadas a negligenciar os estudos, pois as longas e extenuantes
jornadas de trabalho impedem a frequência à escola. Entre estudar e decorar falas, a opção é
pela segunda.
O convívio familiar e social também acaba sendo comprometido. A exposição midiática
transforma os atores mirins em pequenas celebridades, e os poucos horários de folga são
utilizados para participação de programas televisivos, shows, eventos, dentre outros.
Entretanto, mesmo preenchendo os requisitos estabelecidos pela Consolidação das Leis
do Trabalho para configuração do vínculo empregatício, essas crianças e adolescentes não
possuem nenhuma garantia ou proteção legal, a começar pelo não recebimento da remuneração.
No caso das crianças e adolescentes, como não têm idade para o trabalho, são os pais que se
responsabilizam pelos contratos de trabalho e pelo recebimento da remuneração. Tal prática,
salvo melhor juízo, configura-se como uma das formas de trabalho escravo contemporâneo.
É o exercício de uma atividade econômica que caracteriza o trabalho infantil:
Referimo-nos a crianças em atividade econômica quando as crianças se encontrem
ocupadas em atividade econômica de qualquer natureza, pelo menos durante uma hora
no período de referência. O termo atividade econômica inclui toda a produção
comercial, bem como determinados tipos de produção não comercial (principalmente
a produção de bens e serviços para uso próprio). Inclui todas as formas de trabalho
em economias formais e informais, dentro ou fora do contexto familiar, o trabalho
remunerado ou com fins lucrativos (em dinheiro ou em espécie, a tempo parcial ou
inteiro) ou o trabalho doméstico realizado fora do próprio lar da criança, para uma
entidade empregadora (com ou sem remuneração) (OIT, 2013, p. 28).
Diferentemente do que ocorre com as demais formas de trabalho infantil, o trabalho
infantil artístico não é, em regra, uma decorrência da condição econômica da sua família,
estando relacionado diretamente às concepções que percorrem o imaginário social acerca do
que seja trabalho ou do que seja trabalho infantil.
A aceitação social e a naturalização dessa forma de trabalho são decorrências “da
condição social das crianças por pertencerem de forma dominante às classes sociais médias-altas
e altas e o facto de estas atividades serem socialmente valorizadas” (MADEIRA; MARTINS,
NETO-MENDES, 2012, p. 16), isso porque o trabalho infantil artístico alcança as crianças
economicamente mais favorecidas.
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O glamour e a visibilidade, associadas às constantes campanhas dos meios de
comunicação são fatores decisivos para a continuidade dessa prática:
Ocorre a incidência dessa atividade principalmente em programas de televisão e na
publicidade. Nessa seara, é regra o incentivo e interesse dos pais que representa, seja
pelas possibilidades econômicas que propicia. Por isso não tem sido rara a
participação ou omissão dos pais em situações de trabalho artístico que caracterizam
abuso e desrespeito (MEDEIROS NETO; MARQUES, 2013, p. 14).
Diferentemente do que ocorre com a participação em atividades artísticas, é
inquestionável a presença dos requisitos dos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis
Trabalhistas, portanto, restando configurada uma relação de trabalho. A manifestação artística
ou cultural, a participação em peças teatrais da escola, as apresentações em eventos
comemorativos, que ocorrem de forma pontual e esporádica, podem ser consideradas como
atividades artísticas e essas, por sua vez, não necessitam de autorização judicial para que sejam
desenvolvidas.
O trabalho nos meios de comunicação, ao contrário, configura-se como trabalho infantil
e não pode ser confundido com atividade artística:
Além da manifestação artística, esta atividade também se caracteriza como trabalho.
Enquanto tal, a experiência nos bastidores se apresenta como um lugar que depende
de alguns requisitos para que se garanta o que está previsto no ECA: trabalho que se
justifica por seu caráter de aprendizagem, no caso dos menores de 14 anos. Para além
do respeito a horários especiais; garantia de tempo de brincar, de se expressar
artisticamente e da aprendizagem de uma atividade que se adéque ao mercado de
trabalho; é preciso haver a exigência formal aos adultos envolvidos com a criança,
dessa premissa de aprendizagem e desenvolvimento que justifique a presença dela
naquele contexto (LACOMBE, 2004, p. 125).
A atividade artística está relacionada ao desenvolvimento de habilidades artísticas e,
normalmente, desenvolve-se nas escolas, teatros, oficinas. O caráter econômico não está
presente nessas atividades, pois não há o intuito de obtenção de lucro, mas sim a formação e o
desenvolvimento artístico.
Dentre os atores mirins, não é o que se observa. Lacombe (2004) afirma que é
justamente o contrário, pois as crianças não se preocupam em desenvolver uma atividade
artística, mas sim tornar-se um artista famoso. Essas crianças não frequentam teatro, não leem
e não tem esses hábitos difundidos nos seus ambientes familiares. O sonho, muitas vezes dos
pais, é tornar-se reconhecido e famoso.
A cultura de valorização da mídia, com a exposição nos mais diversos meios de
comunicação é vista de forma positiva, pois propicia a valorização daqueles que auferem a fama
e o sucesso. Assim, é natural que se entenda que o trabalho de crianças e adolescentes em
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atividades artísticas podem trazer somente benefícios, propiciando aos atores mirins e a sua
família a ascensão social (GODOY, 2009).
Notadamente, ainda que alcancem o sucesso e a fama, os prejuízos são imensos. O
trabalho infantil, seja em qual das suas formas ocorra, é uma grave violação de direitos, pois
“nega o direito fundamental à infância, em afronta ao direito da criança a ser criança, na
qualidade de sujeito de direito em peculiar condição de desenvolvimento, a merecer absoluta
prioridade e primazia” (PIOVESAN; LUCA, 2010, p. 362).
Furlan (2009) destaca que o desempenho de qualquer tipo de trabalho de crianças ou
adolescentes impede a execução de atividades correspondentes à faixa etária, incluindo o
brincar e o lazer.
Ainda em atenção à proteção integral, Piovesan e Luca (2010, p. 365) defendem que
“em caso algum será permitido que a criança dedique-se, ou a ela se imponha, qualquer
ocupação ou emprego que possa prejudicar sua saúde, sua educação, ou impedir seu
desenvolvimento físico, mental ou moral”. Ora, o trabalho artístico exige horas e horas de
dedicação, incluindo as gravações, a preparação e os demais compromissos, como a
participação em programas, eventos e outros.
Os prejuízos decorrentes do trabalho infantil, seja ele artístico ou não, afetam
sobremaneira a vida futura, comprometendo o desenvolvimento físico, social, educacional e
psicológico. Além da violação aos direitos básicos, como educação, lazer e esporte, o trabalho
infantil causa problemas na saúde, como a fadiga excessiva, distúrbios no sono, irritabilidade,
alergias e alguns problemas respiratórios, além de prejuízos ao crescimento
(http://fundacaotelefonica.org.br/promenino/trabalhoinfantil/impactos-e-consequencias/).
Todavia, os prejuízos ultrapassam a saúde física e afetam o desenvolvimento
psicológico, acelerando o processo de amadurecimento. Ao assumir responsabilidades de um
adulto, cumprindo uma jornada de trabalho e sendo responsável pelo provimento, ou por parte
dele, do sustento da família, a infância não é vivenciada. As responsabilidades da vida adulta
são incompatíveis com a infância, que é perdida.
O mesmo ocorre no âmbito educacional: em jornadas de 36 horas por semana, a evasão
escolar pode alcançar 40% e a queda no rendimento escolar pode variar de 10% a 15%. Entre
os alunos da 8ª série do Ensino Fundamental, que trabalham em jornada de quatro horas diárias,
a queda no desempenho em Português e Matemática é de 4% comparados aos que não trabalho.
Portanto, mesmo que continuem na escola, a redução no desempenho pode servir de
desestímulo, comprometendo o ingresso no mercado futuramente, quando atingir a idade para
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o trabalho. ((http://fundacaotelefonica.org.br/promenino/trabalhoinfantil/impactos-e-
consequencias/).
Outro aspecto significativo diz respeito aos impactos econômicos do trabalho infantil,
porque as crianças, nas mesmas condições que um adulto, ganham muito menos. Ademais, por
estarem na informalidade custam muito menos para seus empregadores. E, futuramente, em
decorrência dos prejuízos educacionais decorrentes do trabalho infantil, o ingresso no mercado
de trabalho também se dará de forma precária, perpetuando-se o mesmo ciclo vicioso.
Neste sentido, importa destacar o que diz Machado (2011, p. 118):
[...] entendendo que o trabalho prematuro, na infância, impede o pleno
desenvolvimento dos jovens, dificultando a inclusão destes no mercado de trabalho,
no qual importará sobremaneira a formação técnica e cultural do trabalhador. De tal
forma, afastado da formação escolar básica para trabalhar desde cedo, fica o jovem
impedido de dar continuidade à formação intelectual que poderia permitir-lhe o acesso
a empregos mais bem remunerados.
Os prejuízos, portanto, são a curto, médio e longo prazo, porque o trabalho infantil
resulta na “precarização das relações de trabalho, a compressão dos salários para um patamar
inferior dos que seriam pagos aos adultos, a redução de oportunidades de emprego, ocupação e
inserção profissional aos adultos” (CUSTÓDIO, 2009, p. 60). Com isso, há o reforço do ciclo
geracional de pobreza.
Para Oliva (2010, p. 144), “conciliar a inocência e a despreocupação próprias da tenra
idade com a árdua responsabilidade do trabalho, ainda que no desempenho de atividade
artística, não é tarefa simples”. Se para os adultos o mundo do trabalho por vezes traz prejuízos,
muito mais para uma criança ou adolescente.
No entanto, ainda que se tenha ciência da gravidade e dos danos irreparáveis decorrentes
do trabalho infantil, ainda há um número significativo de crianças e de adolescentes nessa
situação. No caso do trabalho artístico, basta ligar a televisão ou folhear uma revista. Assim, é
imperioso refletir sobre a (in) constitucionalidade das autorizações judiciais para o trabalho, na
medida em que permitem a exploração sistemática do trabalho infantil.
2 As autorizações judiciais para o trabalho artístico e a Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 5326
A reflexão que se pretende fazer diz respeito às autorizações judiciais para o trabalho de
crianças e de adolescentes nos meios de comunicação, considerando que a Constituição Federal
veda expressamente qualquer trabalho aqueles que estão abaixo da idade mínima para o
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trabalho. Desse modo, não há amparo nem fundamento para a concessão das referidas
autorizações, tornando-as inconstitucionais.
O assunto é complexo e requer uma análise mais aprofundada.
A Constituição Federal, no art. 7º, inciso XXXIII veda a realização de qualquer trabalho
para aqueles que tem idade inferior aos dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir
dos quatorze anos de idade. A Convenção n. 138 da Organização Internacional do Trabalho,
ratificada pelo Brasil em 28 de junho de 2001 e com vigência nacional a partir de 28 de junho
de 2002, em seu artigo 8º, item 1, diz que autoridade competente poderá conceder exceções à
proibição de admissão ao emprego ou trabalho, quando a finalidade for a participação em
representações artísticas.
E é com base nesse último dispositivo que as autorizações para o trabalho nos meios de
comunicação tem sido concedidas.
Decorre dessa interpretação, equivocada, uma discussão sobre a competência para a
concessão das referidas autorizações: se é da Justiça da Infância e Juventude ou se é da Justiça
do Trabalho. A primeira é competente para tratar dos assuntos relacionados às crianças e
adolescentes; a segunda é competente para dirimir os conflitos oriundos das relações de
trabalho. Pois bem: o trabalho infantil nos meios de comunicação diz respeito às duas justiças?
Essa discussão tem sido objeto, inclusive, de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, como
será aprofundado posteriormente.
A partir da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente de
1990, que consagraram a proteção integral, ocorreram alterações muito significativas na
atuação do Poder Judiciário. A começar pelo papel desempenhado pelo Juiz, não mais na
condição de detentor de todo o poder sobre as crianças e adolescentes, mas sim de responsável
por garantir as determinações do Estatuto da Criança e do Adolescente. A partir dessa nova
concepção, dentre as funções do Juiz da Infância está o dever de fiscalização das instituições
de atendimento, juntamente com o Ministério Público e o Conselho Tutelar. Destaca-se também
a função administrativa, com a expedição de portarias, com vistas a evitar a violação de direitos
das crianças e dos adolescentes (BORDALLO, 2014, p. 517).
Até mesmo os requisitos exigidos do profissional que atuará como magistrado da infância
e juventude são diversos dos exigidos durante a vigência dos códigos menoristas, quando
bastava o conhecimento técnico. Com a teoria da proteção integral, se exige um que o juiz seja
um profissional com a devida sensibilidade para “lidar com as graves situações
comportamentais e crises familiares e para tratar com as crianças e adolescentes, sempre
pautando sua atuação e suas decisões em benefício destes” (BORDALLO, 2014, p. 517).
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O art. 148 do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe sobre a competência da Justiça
da Infância e da Juventude:
Art. 148. A Justiça da Infância e da Juventude é competente para:
I - conhecer de representações promovidas pelo Ministério Público, para apuração de
ato infracional atribuído a adolescente, aplicando as medidas cabíveis; II - conceder a remissão, como forma de suspensão ou extinção do processo; III - conhecer de pedidos de adoção e seus incidentes; IV - conhecer de ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos
afetos à criança e ao adolescente, observado o disposto no art. 209; V - conhecer de ações decorrentes de irregularidades em entidades de atendimento,
aplicando as medidas cabíveis; VI - aplicar penalidades administrativas nos casos de infrações contra norma de
proteção à criança ou adolescente; VII - conhecer de casos encaminhados pelo Conselho Tutelar, aplicando as medidas
cabíveis (BRASIL, 1990).
Verifica-se que, dentre as competências elencadas no art. 148 não está a emissão de
autorização judicial para o trabalho. A Lei n. 6.697, de 10 de outubro de 1979, que instituiu o
Código de Menores, e que foi posteriormente revogada pela Lei n. 8.069, de 1990, tratava da
permanência e participação em espetáculos teatrais, cinematográficos, circenses, radiofônicos
e de televisão em seus artigos 50 a 54. Especificamente o art. 51 estabelecia que “nenhum menor
de dezoito anos, sem prévia autorização da autoridade judiciária, poderá participar de
espetáculo público e seus ensaios” (BRASIL, 1979), demonstrando que a confusão e a
imprecisão conceitual quanto às categorias trabalho e atividade já existia à época.
Nesse sentido, Colucci (2010, p. 131) referindo-se à norma legal, destaca que “ao
magistrado não é permitido inová-la, ainda que sob o fundamento – por sinal contestável – de
que a lei não está em sintonia com as necessidades sociais e econômicas da criança ou do
adolescente”. Na verdade, a questão das necessidades sociais ou econômicas da criança ou do
adolescente está em segundo plano, pois os interesses que prevalecem são os interesses daqueles
que exploram diretamente o trabalho infantil. Quem se beneficia, efetivamente, do trabalho
infantil é aquele que utiliza a mão de obra infantil, não a criança ou o adolescente que trabalha.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, que revogou o Código de Menores, ao ampliar o espectro de
proteção à crianças e adolescentes em relação ao Código de 1979, não poderia conferir proteção menos
ampla do que já estava assegurado. Nesse sentido, é incabível fazer uma interpretação ampliada do art.
148 e atribuir uma competência (inexistente) à Justiça da Infância e da Juventude para autorizar para o
trabalho, porque se está diante de uma afronta literal aos preceitos constitucionais
O parágrafo único do art. 148 acresce ainda que compete à Justiça da Infância e da
Juventude, sempre que os direitos reconhecidos pelo Estatuto forem ameaçados ou violados por
ação ou omissão da sociedade e do Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis
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e em razão da sua conduta, aplicar as medidas necessárias para garantir a efetividade desses
direitos (BRASIL, 1990).
Ocorre que, em se tratando de alvará ou autorização judicial para o trabalho àqueles com
idade inferior aos dezesseis anos de idade, em face da vedação constitucional expressa de
realização de qualquer trabalho abaixo do limite etário permitido, não é possível aceitar que tal
decisão decorra de um ato discricionário.
A ratificação da Convenção n. 138 da Organização Internacional do Trabalho não
autoriza, por si só, a aplicação do disposto no seu art. 8º, item 1. Isso porque, mesmo com a
ratificação da normativa internacional, o ordenamento jurídico brasileiro não incorporou as
normas de caráter flexível, caso do art. 8º da Convenção. A Comissão Tripartite que foi
instituída pelo Ministério do Trabalho e Emprego para analisar a ratificação da Convenção n.
138 deliberou, de forma unânime, que o Brasil não faria uso da exceção que possibilita a
permissão para o trabalho infantil artístico, mantendo-se como idade mínima aquela
estabelecida pela Constituição Federal.
Assim, o permissivo constante do artigo 8º, item 1, da Convenção n. 138 não pode ser
utilizado como subsídio para a autorização para o trabalho, pois, em se tratando de direitos
fundamentais, não pode uma norma internacional, se sobrepor ao ordenamento jurídico
nacional, restringindo direitos fundamentais já assegurados, sob pena de violar o princípio da
progressividade dos direitos humanos.
Sousa (2010, p. 107) bem resume a questão:
Quanto às normas constitucionais referidas, vê-se que o citado art. 7º, XXXIII da
CF/88, integra o rol dos ‘Direitos e Garantias Fundamentais’, compondo
especificamente aquele pertinente aos ‘Direitos Sociais’ e encerrando disposição
incontroversamente preceptiva, de vez que ali se veem definidos de modo claro e
preciso os limites etários mínimos estipulados para admissão ao trabalho, atribuindo
ao seu beneficiário, assim, possibilidade de insurreição contra ofensas ao direito ali
prestigiado. É, pois, o preceito ali talhado, um direito fundamental do trabalhador
precoce.
Ao ser ratificada, as Convenções internacionais ingressam no ordenamento jurídico com
o status de lei ordinária, não podendo se sobrepor à Constituição Federal. E mesmo os tratados
internacionais que versem sobre direitos humanos e que possuem o mesmo patamar hierárquico
constitucional, justamente por tratarem de direitos humanos e fundamentais, não podem
restringir direitos, mas tão somente ampliá-los.
Drosghic (2013, http://npa.newtonpaiva.br), compartilha do mesmo entendimento
afirmando que,
qualquer ordenamento que contrarie a Constituição Federal em relação à idade
mínima para o ingresso no mercado de trabalho não deve ser observado, devendo este
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ser considerado inconstitucional pelo fato da nossa Constituição Federal ser
hierarquicamente superior a todas as outras normas. Sendo assim, nenhuma norma
infraconstitucional pode prevê fato contrária ao que determina a Carta Magna.
A interpretação do art. 8º da Convenção n. 138, portanto, não pode ser ampliativa, mas
sim restritiva. Nesse caso, deve prevalecer o que dispõe o art. 7º, inciso XXXIII da Constituição
Federal que veda qualquer trabalho abaixo dos dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz a
partir dos quatorze anos.
Superada essa discussão, Ramidoff (2005, p. 29) ressalta a normatização deontológica
protetiva do Estatuto da Criança e do Adolescente e das demais normas protetivas:
Já há algum tempo tenho afirmado que o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei
Federal 8.069, de 13.07.1990 – é o novo código deontológico protetivo de crianças e
adolescentes, no Brasil. Código, porque consolida normativamente as estratégias e o
instrumental operacional mínimo à implementação dos direitos e garantias
fundamentais pertinentes a esta nova totalidade subjetiva, então, constituída por
crianças e adolescentes. Deontológico, precisamente, porque estabelece o
regulamento indispensável e necessário para a constituição de diversas formas de
relação em que possam se encontrar estas novas subjetividades, isto é, busca
transformar culturalmente tanto a opinião pública, quanto o senso comum jurídico,
através de novos valores assumidos e convencionados, agora, em fórmulas de
tratativas e inéditas pautas, até então apenas presentes nos compromissos pactuados
internacionalmente. E, protetivo, haja vista que se orientam todas estas proposições
legislativas através do novel primado constitucional estabelecido pela Doutrina da
Proteção Integral, enquanto vertente da diretriz internacional dos Direitos Humanos,
especificamente, voltados para a criança e o adolescente.
A assunção de um conjunto de valores e princípios voltados ao atendimento dos direitos
humanos e fundamentais de crianças e adolescentes feita pelo texto constitucional e pelas
demais normas infraconstitucionais, implica o compromisso de adotar medidas que assegurem
esses direitos e garantam a observâncias desses valores. Desse modo, a proteção constitucional
é superior a qualquer outra normativa, nacional ou internacional.
Além disso, a redação do art. 8º da Convenção n. 138 é bastante clara quando refere que
a autoridade competente poderá conceder exceções à proibição de ser admitido ao emprego ou
de trabalhar, quando a finalidade for a participação em representações artísticas. O emprego do
termo “poderá” enseja a compreensão de que, cada país, a partir da sua legislação nacional,
estabelecerá o limite etário mínimo para admissão ao emprego ou trabalho. A autoridade a que
se refere o Estatuto da Criança e do Adolescente é o Juiz da Infância e da Juventude ou o Juiz
que exerce essa função conforme disposição da lei de organização judiciária local.
Ainda que a redação do art. 149, inciso II, alínea “a” do Estatuto faça referência à
possibilidade de autorização para participação de crianças e adolescentes em espetáculos
públicos e seus ensaios, os princípios constitucionais, assim como os princípios estatutários,
devem prevalecer e orientar toda e qualquer ação do Juiz da Infância e da Juventude.
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É preciso, também, estabelecer um comparativo entre a redação do art. 8º da Convenção
n. 138 da Organização Internacional do Trabalho e a redação do art. 149, inciso II, alínea “a”
do Estatuto da Criança e do Adolescente: a primeira fala em participação em representação
artística enquanto a segunda trata da participação em espetáculos públicos e seus ensaios. Nessa
perspectiva, a participação em seriados e novelas, ou até mesmo em inserções publicitárias,
produzidas por empresas dos grupos econômicos ligados aos meios de comunicação, não
comporta o caráter artístico, conforme se depreende da leitura do art. 8º, item 1, da Convenção
n. 138, mas sim configura-se como trabalho.
Diante de tanta controvérsia, surge o debate acerca da competência para emissão (ou não)
das autorizações para o trabalho artístico de crianças e adolescentes. De um lado, defensores da
competência da Justiça da Infância e Juventude, com o argumento de que toda e qualquer
matéria envolvendo crianças e adolescentes está sob a sua competência; de outro lado,
defensores da competência da Justiça do Trabalho, por se tratar de trabalho.
Os Estados de São e Mato Grosso, visando conferir maior proteção às crianças e
adolescentes em situação de trabalho artístico, editaram, respectivamente as Recomendações
Conjuntas n. 01/2014-SP e n. 01/2014-MT, atribuindo à Justiça do Trabalho a competência para
processar e julgar as causas que tenham como fulcro a autorização de trabalho para crianças e
adolescentes. Somado a isso, foram editados o Ato GP 19/2013, que instituiu o Juízo Auxiliar
da Infância e da Juventude no âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, em São
Paulo e o Provimento GP/CR 07/2014 que instituiu os parâmetros para instrução de processo
judicial para concessão de autorização do trabalho infantil, ambos no âmbito do Tribunal
Regional do Trabalho da 2ª Região, em São Paulo.
De acordo com o Provimento GP/CR n. 07/2014, o pedido de autorização de trabalho de
criança ou adolescente deverá preencher os requisitos da legislação em vigor e estar
acompanhado de autorização por escrito e devidamente assinada pelos pais ou responsáveis,
com firma reconhecida, com relação ao trabalho da criança ou do adolescente, acompanhada
de cópia dos documentos pessoais ou cópias autênticas, além de termo de compromisso, com
firma reconhecida, dos pais ou do representante legal que deverá acompanhar pessoal e
constantemente a atividade de trabalho da criança ou do adolescente.
Nesse aspecto é importante salientar que, via de regra, a solicitação de autorização para
o trabalho é feita diretamente pelo empregador ou agenciador, ou ainda pelas agências de
publicidade.
Também deverá ser apresentada a documentação completa da criança ou do adolescente,
incluindo o comprovante de matrícula, frequência e rendimento escolar.
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Em relação ao empregador, deverão ser apresentadas cópia do contrato social e eventuais
alterações; cópia do alvará de funcionamento municipal e autorização dos bombeiros, relativos
ao local em que se realizará o trabalho, quando aplicável; a identificação da conta-poupança,
em nome da criança ou do adolescente, para destinação da remuneração, ou medida equivalente,
a critério do juízo; cópia do plano de assistência médica, odontológica e psicológica, bem como
da apólice de seguro em nome da criança ou do adolescente, se houver; e, talvez uma das mais
importantes exigências, a minuta do contrato de trabalho a ser pactuado com a criança ou o
adolescente, especificando o horário de trabalho, intervalos, duração do contrato, grau de
exposição da criança ou do adolescente, incluindo detalhamento do vestuário, forma de
remuneração, especificando valores a serem efetivamente destinados à criança ou ao
adolescente, e local/locais de realização das atividades laborativas.
Se a criança ou adolescente está em situação de trabalho, a exigência de apresentação da
minuta do contrato de trabalho, com todas as especificações necessárias, é plenamente viável.
Desse modo, antes de autorizar o trabalho, as condições através das quais o mesmo se
perfectibilizará deverão ser conhecidas. Com isso, evita-se que crianças sejam autorizadas a
trabalhar em jornadas extremamente longas, que impliquem no afastamento escolar, ou de
participar de programas nos quais as cenas de violência sejam centrais. Na história dos meios
de comunicação brasileiros, não foram poucos os seriados, novelas e campanhas publicitárias
que utilizaram crianças em cenas de violência extrema ou outras que traziam dramas familiares
e pessoais complexos e de difícil compreensão para os atores mirins.
Outra importante determinação está no § 3º do art. 1º do Provimento GP/CR n. 07/2014.
O mesmo estabelece que qualquer que seja o tema artístico a ser realizado: tais como
participação em filmagens, peças de teatro, propagandas, dublagens ou outros, o trabalho
desenvolvido pela criança ou pelo adolescente deve ter preservado sua finalidade recreativa
e/ou educativa, sem implicar contexto degradante ou que de alguma maneira o prejudique em
sua integridade. Para tanto, poderá ser exigida a apresentação do roteiro do trabalho artístico.
O Provimento avança, ainda, quando determina que todos os pedidos de autorização de
trabalho serão remetidos ao Ministério Público do Trabalho para manifestação e que, quando
da concessão do alvará, o mesmo terá que ser certo e específico.
Por fim, o art. 6º do Provimento determina que o Juízo Auxiliar da Infância e Juventude,
sempre que entender conveniente, poderá determinar o comparecimento de Oficiais de Justiça,
psicólogos, assistentes sociais ou afins, nos locais onde autorizada a participação da criança ou
do adolescente em peças teatrais ou outras exibições artísticas, de forma a aferir o cumprimento
dos limites fixados pelo alvará.
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E os primeiros resultados surgiram já em 2015 quando dois atores mirins foram proibidos
de trabalhar em uma peça teatral e dois apresentadores mirins foram retirados de um programa
de auditório diário1. Porém, tal proteção gerou insatisfações que resultaram na Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) n. 5326, ajuizada no Supremo Tribunal Federal pela Associação
Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) e que questiona a competência da
Justiça do Trabalho para analisar os pedidos de trabalho de crianças e adolescentes em
representações artísticas.
Ainda que a questão central esteja relacionada com o teor da ação Direta de
Inconstitucionalidade 5.326, o primeiro questionamento que deve ser feito, é a respeito da
legitimidade da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão para interpor referida
ação, eis que se trata de uma associação civil. Tanto a doutrina quanto o próprio Supremo
Tribunal Federal têm pacificado o entendimento de que somente as entidades de âmbito
nacional referidas pelo artigo 103, VIII, da Constituição Federal, assim consideradas aquelas
que, de fato, possuam cunho nacional, com representação irrestrita e que tenham membros
espalhados em um terço dos Estados da Federação, pelo menos. Portanto, não é qualquer
associação civil que tem legitimidade ativa ou possui vocação estatutária para representar
supostos interesses nacionais. No caso do trabalho infantil artístico não se trata de interesse
nacional, mas sim do receio de não mais conseguir explorar a mão de obra infantil.
A discussão está em andamento, todavia resta claro que as atividades artísticas
configuram-se como legítimas relações de emprego. Nesse sentido, a questão das autorizações
vai além do caráter protetivo, construindo em sua essência uma relação de trabalho e que não,
por essa razão, não está na esfera de competência nem da Justiça da Infância e da Juventude,
nem da Justiça do Trabalho, eis que nenhuma delas tem competência para excetuar qualquer
proteção estabelecida pelo texto constitucional e violar, com isso, os direitos humanos e
fundamentais de crianças e adolescentes.
Conclusão
1 No primeiro caso, foi vedada a participação de dois atores com idade de 10 e 13 anos de participarem da Peça
Teatral “Memórias de um gigolô”, porque o Juiz do Trabalho entendeu que a peça era inapropriada aos atores
mirins e que haveriam riscos de danos psíquicos, em razão do peso e da vulgaridade de alguns trechos do roteiro.
Além disso, o horário de exibição era incompatível com o estabelecido no art. 7º, XXXIII da Constituição
Federal. No segundo caso, foram dois apresentadores do programa “Bom dia & Cia” do SBT que deixaram o
programa, em razão da inadequação de horário.
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O inciso XXXIII do artigo 7º da Constituição Federal determina, expressamente, a
proibição de qualquer trabalho aos menores de dezesseis anos, exceto na condição de aprendiz
a partir dos quatorze anos. Porém, diariamente, crianças e adolescentes trabalham nos meios de
comunicação, assistidas por toda a nação e com o aval dos pais e do Poder Judiciário. Isso nada
mais é do que a aceitação da violação dos direitos humanos e fundamentais.
A discussão sobre a (in) constitucionalidade das autorizações judiciais para o trabalho
de crianças e adolescentes nos meios de comunicação, que permite a exploração do trabalho
infantil artístico em completa desconformidade com o ordenamento jurídico brasileiro e com
os princípios e preceitos constitucionais, não é recente. Contudo, pouco se tem avançado no
sentido de erradicar, de vez, toda e qualquer forma de exploração do trabalho infantil.
A valorização do trabalho, que é um dos fundamentos da República brasileira, não é
compatível com a exploração do trabalho infantil, porque afronta os demais fundamentos e
princípios constitucionais. A exploração do trabalho infantil viola os direitos fundamentais,
alvo da tutela constitucional e da legislação infraconstitucional voltada à proteção da criança e
do adolescente e, portanto, deve ser erradicada.
Apesar de muitas ações terem sido implementadas ao longo das últimas décadas e de se
constatar uma redução significativa do trabalho infantil, algumas formas persistem e continuam
firmemente arraigadas. É o caso do trabalho infantil nos meios de comunicação, que é
socialmente aceito e que revela a necessidade de construção de um referencial teórico e de um
consenso acerca da gravidade das consequências dessa forma de trabalho infantil, que traz
prejuízos para a vida presente e futura das crianças e adolescentes.
Nessa perspectiva, as autorizações judiciais para o trabalho contrariam a proteção
integral, consagrada no ordenamento jurídico brasileiro e que determinada que família,
sociedade e Estado assegurem, com prioridade absoluta, os direitos infanto-juvenis. Desse
modo, qualquer forma de trabalho que não se enquadre nos limites etários, constitucionais e
infraconstitucionais, é uma violação dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes.
Fundamentadas numa interpretação equivocada do artigo 8º da Convenção n. 138 da
Organização Internacional do Trabalho, as autorizações judiciais tutelam a exploração do
trabalho infantil. A Convenção trata de atividades artísticas, que não se confundem com o
trabalho artístico e nas quais não há o predomínio do caráter econômico, mas sim a formação e
o desenvolvimento artístico.
Porém, ainda que superada a questão interpretativa do artigo 8º, o fato é que a
Constituição Federal traz uma vedação expressa. Portanto, ainda que a Convenção n. 138 tenha
sido ratificada e ingressado no ordenamento jurídico nacional, por se tratar de normas de
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direitos fundamentais, o dispositivo constitucional é hierarquicamente superior. E é por essa
razão que não há fundamento para as autorizações judiciais para o trabalho, o que as torna
inconstitucionais.
É imprescindível ter claro que, contemporaneamente, a exploração do trabalho infantil
difere do que ocorria no século XVIII, porém é tão gravosa quanto à época. Inúmeras são as
formas de exploração do trabalho de crianças e de adolescentes, porém as consequências são
sempre graves e irreversíveis. Nessa perspectiva, todos os esforços devem ser conjugados para
que, de fato, toda e qualquer forma de exploração do trabalho infantil seja combatida, inclusive
o trabalho infantil nos meios de comunicação.
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