Post on 18-Jan-2019
UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
URI - CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LETRAS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA
MÁSCARAS LÍQUIDAS, VIDAS FRAGMENTADAS:
MARGINALIZAÇÃO DO SUJEITO NO ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, DE JOSÉ
SARAMAGO, E HOTEL ATLÂNTICO, DE JOÃO GILBERTO NOLL
Mestrando: Girvâni José Sulzbacher Seitel
Orientadora: Profª. Drª. Ana Paula Teixeira Porto
Frederico Westphalen, agosto de 2013.
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MÁSCARAS LÍQUIDAS, VIDAS FRAGMENTADAS:
MARGINALIZAÇÃO DO SUJEITO NO ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, DE JOSÉ
SARAMAGO, E HOTEL ATLÂNTICO, DE JOÃO GILBERTO NOLL
POR
GIRVÂNI JOSÉ SULZBACHER SEITEL
Dissertação de Mestrado em Letras - Área de Concentração Literatura Comparada, apresentada ao programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, sob a orientação da Profª Drª Ana Paula Teixeira Porto.
Banca examinadora
________________________________
Profª Drª Ana Paula Teixeira Porto (orientadora)
_________________________________
Profª Drª Luana Teixeira Porto
________________________________
Profª Drª Rosani Umbach
Frederico Westphalen, agosto de 2013.
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Flávio,
Se um dia a gente se encontrar e eu confessar que vi um filme tantas vezes para desvendar os olhos teus E se a gente se falar contar as coisas que viveu o que esperamos do amanhã será que pode acontecer? Pois, paralelo ao personagem, eu quis saber mesmo é de ti
Queria que fosses feliz uma água calma a inundar a sua margem de carinho um peito aberto a quem chegar
(River Phoenix, Milton Nascimento)
À memória de Flávio, meu pai. Os frutos dessa “árvore do conhecimento” são teus
também!
À minha mãe, Hedi; aos meus irmãos e às minhas irmãs; aos meus sobrinhos e
sobrinha; aos meus cunhados e cunhadas.
DEDICO
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É PRECISO AGRADECER...
À minha orientadora, profª Drª Ana Paula Teixeira Porto, pelos ensinamentos e pelo acolhimento das minhas ideias, como também pela liberdade outorgada para que eu seguisse meu caminho. Às professoras, aos professores e às colegas de turma do Mestrado em Letras pelas efetivas e oportunas contribuições para meu “amadurecimento” intelectual. À CAPES pela bolsa concedida, possibilitando a conclusão deste trabalho. À minha esposa, Letícia, pela paciência e compreensão na longa travessia da dissertação. Ao meu pai, Flávio (in memorian). Grato pelo teimoso que sou e por semear e colher comigo os meus ideais. À minha mãe, Hedi, pela serenidade no olhar e pelas palavras que me são colo. Aos irmãos e irmãs, Jair, Maicon, Lourdes e Loreci, pelo apoio e compreensão no período de afastamento em que desenvolvi esse estudo. Aos amigos-irmãos, Iader e Daiane, pelas acolhidas em sua residência. Pelos diálogos frutíferos à mesa. Pela confiança, ternura e palavras encorajadoras. À amiga e professora Nelci Müller, encorajadora persona; farol intelectual. À amiga e professora Dinalva Agissé Sousa pelo zelo, confiança e “palavras de lã”. Ao amigo Gerson Pereira pelo incentivo e confiança.
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“Se eu voltar a ter olhos, olharei verdadeiramente os olhos dos outros, como se estivesse a ver-lhes a alma” (In: Ensaio sobre a cegueira). “Eu não guardo nada comigo” (In: Hotel Atlântico).
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RESUMO
O estudo investiga duas narrativas da literatura de língua portuguesa, produzidas no decorrer da segunda metade do século XX, que permitem, por meio de uma leitura comparatista, o encontro de imaginários e discursos sobre a representação do sujeito. Tendo como eixos a alteridade, a fragmentação e a marginalização, a dissertação tem por objetivo analisar como se dá a representação desses elementos em Ensaio sobre a cegueira (1995), do escritor português José Saramago, e Hotel Atlântico (1989), do escritor brasileiro João Gilberto Noll. A partir de uma abordagem bibliográfica e do método da Literatura Comparada, as reflexões levam em conta textos críticos de autores que leem as obras de Saramago e Noll, bem como de críticos das áreas da sociologia, da filosofia e da literatura brasileira e portuguesa contemporânea, como Antonio Candido, Stuart Hall, Zygmunt Bauman, Terry Eagleton, David Harvey, Marc Augé, Fredric Jameson, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Michel Maffesoli, Jean Baudrillard, Alain Touraine, Nelson Brissac Peixoto, Renato Cordeiro Gomes, André Bueno, Tânia Pellegrini, Ângela Maria Dias, Regina Dalcastagnè, Lucia Helena,Silviano Santiago, Maria Alzira Seixo, Carlos Reis, Jaime Ginzburg, Sergio Paulo Rouanet, entre outros. Ainda que inscritos em culturas distintas, os textos literários de Saramago e de Noll possibilitam uma aproximação com condicionamentos de ordem social, política, econômica e cultural num contexto mais amplo, que é a globalização e suas consequências. Salienta-se que as narrativas saramaguiana e nolliana, seja na representação crítica e fragmentária de condicionamentos sócio-históricos no texto e no enfoque temático quanto nas opções estéticas, desbravam a difícil tarefa de pensar a civilidade quando se tem um mal-estar coletivo que fragmenta o sujeito em sua constituição, a ponto de marginalizá-lo. Nesse contexto, a literatura possibilita discutir e refletir acerca de como experiências sociais podem ser exploradas esteticamente pelos escritores e como estratégias artísticas podem colaborar na representação de um determinado contexto social.
Palavras-chave: Narrativas contemporâneas. Ensaio sobre a cegueira. Hotel Atlântico. Sujeito. Alteridade. Fragmentação. Marginalização.
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ABSTRACT
The study investigates the two narratives of the Portuguese Language literature, produced during the second part of the 20th century, which permit, due to a comparative reading, the meeting of imaginary as well as speeches about the representation of the subject. Having as axis the otherness, the fragmentation and the marginalization, the main goal of this dissertation is to analyze how it is the representation of these elements in Ensaio sobre a cegueira (1995), written by the Portuguese writer called José Saramago, and Hotel Atlântico (1989), written by the Brazilian writer João Gilberto Noll. From a bibliographic approach and from the Compared Literature method, the reflections take into account critical texts from authors who have read the books written by Saramago and Noll, as well as critical from the Sociology, Philosophy and Brazilian Portuguese literature areas, as Antonio Candido, Stuart Hall, Zygmunt Bauman, Terry Eagleton, David Harvey, Marc Augé, Fredric Jameson, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Michel Maffesoli, Jean Baudrillard, Alain Touraine, Nelson Brissac Peixoto, Renato Cordeiro Gomes, André Bueno, Tânia Pellegrini, Ângela Maria Dias, Regina Dalcastagnè, Lucia Helena,Silviano Santiago, Maria Alzira Seixo, Carlos Reis, Jaime Ginzburg, Sergio Paulo Rouanet, among others. Though they are in different cultures, the literary texts written by Saramago and Noll may give an approach with conditioning of a social, political, economical and cultural order in a very wide context, which are globalization and its consequences. It is important to emphasize that the saramaguiana and nolliana narratives, whether in critical or fragmentary representation of social – historical conditioning in the text and in the thematic focus as well as in the aesthetics options, grub the hard task of thinking about civility when there is a collective malaise which fragments the subject in his /her constitution, to the point of marginalizing it. In this context, literature gives the possibility of discussing and thinking in relation to how social experiences can be explored in an aesthetics way by writers and how the artistic strategies can collaborate in the representation of a determined social context.
Key-words: Contemporary narratives. Ensaio sobre a cegueira. Hotel Atlântico. Subject. Otherness. Fragmentation. Marginalization.
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SUMÁRIO
ALTERIDADES LITERÁRIAS, REPRESENTAÇÕES DO SUJEITO........................09 1. TUDO QUE É SÓLIDO, DERRETE.......................................................................19
1.1 Olhares à modernidade e à pós-modernidade......................................22 1.2 Identidades movediças na modernidade líquida...................................33 1.3 Sujeito e espaço urbano: da alteridade à marginalização.....................42
2. A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO EM TEMPOS LÍQUIDOS..................................49
2.1 Como andar na cidade movediça? fragmentação e marginalização do sujeito na narrativa pós-moderna....................................................................52 2.2 O dilema da alteridade: pensar, sentir, tocar o outro.................................58
3. OS SUJEITOS FRAGMENTADOS DE ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA E HOTEL ATLÂNTICO...............................................................................................................69
3.1 José Saramago e os romances da “fase pedra”........................................72 3.1.1 Ensaio sobre a cegueira: quero ver, mas não posso.............................81 3.2 João Gilberto Noll e as narrativas líquidas..............................................105 3.2.1 Hotel Atlântico: vejo, mas não quero ver..............................................115
COMO NARRAR O OUTRO? POR UMA CONCLUSÃO DE OLHOS ABERTOS.139 REFERÊNCIAS........................................................................................................151
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ALTERIDADES LITERÁRIAS, REPRESENTAÇÕES DO SUJEITO
Nu descendant un escalier nº. 2 (1912). Marcel Duchamp. Disponível em: http://www.revista. art.br/site-numero-08/trabalhos/01.htm. Acesso em: 23 ag. 2013.
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A literatura é um processo dialógico em que autor e leitor interagem a partir
do objeto-texto, possibilitando a interação de diversas e variadas vozes sociais. Ao
se referir ao contexto dialógico e polifônico sobre o qual o romance é tecido, Mikhail
Bakhtin (1988, p. 106) expressa que “todas as palavras e formas que povoam a
linguagem são vozes sociais e históricas”, sendo que até mesmo “o sujeito que fala
no romance é um homem essencialmente social, historicamente concreto”, cujo
“discurso é uma linguagem social” (BAKHTIN, 1988, p. 135).
Em Questões de literatura e de estética (1998, p. 106), o formalista russo
afirma que “o discurso romanesco reage de maneira muito sensível ao menor
deslocamento e flutuação da atmosfera social”. O discurso literário deve ser
entendido como um fenômeno social em todas as esferas da sua existência e em
todos os seus momentos (BAKHTIN, 1988, p. 71). No caso do romance, esse “deve
ser o reflexo completo e multilateral da época”, entende Bakhtin (1988, p. 201).
Assim, todos os elementos do romance, tanto em relação à “forma” quanto no que
se refere ao “conteúdo” da obra, são aspectos que acabam por ressoar o contexto
social.
Os postulados de Bakhtin servem de referência nesse estudo, pois para o
teórico russo o contexto narrativo não pode ser desassociado do discurso do “outro”.
O texto literário é uma construção dialógica, haja vista que há um cruzamento de
vozes na construção discursiva literária que sinaliza um diálogo entre a obra, a
história e a sociedade. No que abarca o romance contemporâneo1, constata-se em
sua tessitura um diálogo em que as “marcas” das experiências sociais do homem no
vórtice da sociedade globalizada não são mais que a representação de uma
realidade em que a memória e a história do sujeito não mais são valorizadas, e sim
narrativas que dão vazão a uma narrativa de um presente precário e instável e a um
futuro incerto e imprevisível.
Nesse contexto, o pensamento de Antonio Candido, em sua obra Literatura e
Sociedade (1967), faz-se necessária e oportuna. Em sua tese de cunho sociológico
a respeito da obra de arte, o crítico tece considerações sobre a crítica literária
sociológica e o modo como esta reflete na análise da obra. Candido (1967) defende
uma crítica literária que possa verificar como a realidade social se transforma em
1 O contemporâneo, nesse estudo, segue o pensamento de Karl Erik Schollhammer, que na obra Ficção brasileira contemporânea (2009), delibera sobre o termo. O contemporâneo, segundo o crítico, é uma narrativa alicerçada num “novo realismo”, com traços pós-modernistas.
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componente de uma estrutura literária, a ponto de ela poder ser estudada em si
mesma, e como só o conhecimento desta estrutura permite compreender a função
que a obra exerce sobre o homem em sociedade.
Candido reflete sobre a relação entre sociedade e vida artística e literária por
um viés histórico. Para o autor, tanto a estrutura da obra como o contexto
sociocultural interfere no momento em que o escritor produz seu texto literário, pois
a sua busca pela “unidade” somente pode-se entender fundindo texto e contexto
(CANDIDO, 1967, p. 5-6). Isso se explica, afirma Candido (1967, p. 5-6), porque “a
arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio” e porque pode
produzir “sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e
concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais"
(CANDIDO, 1967, p. 19).
Nesse sentido, toma-se emprestada a expressão “alteridades literárias” de
Cristina Maria da Silva, que em sua tese Rastros das socialidades: conversações
com João Gilberto Noll e Luiz Ruffato (2009, p. 241), pensa como as narrativas
desses escritores vêm marcadas pelo espaço onde se configuram, bem como são
marcadas pelas temporalidades que as tornam possíveis e que de alguma maneira
exprimem. Segundo Silva (2009), as “alteridades literárias”’ são os confrontos do
cotidiano e que auxiliam a pensar que nos rastros da literatura se esboça uma
“leitura” do homem e seu contexto social.
Consoante isso, muitas das narrativas produzidas nas quatro últimas décadas
no Brasil e em Portugal vêm percorridas pelas incertezas do cotidiano, propondo ao
leitor uma viagem sem destino certo, em que as incertezas se acentuam quando o
que se tenta realizar é uma cartografia do homem e do espaço que habita. Nessa
perspectiva, o estudo investiga duas narrativas da literatura de língua portuguesa,
produzidas no decorrer da segunda metade do século XX, que permitem, por meio
de uma leitura comparatista, o encontro de imaginários e discursos sobre a
representação do sujeito2 nos dois romances, escolhendo-se como eixos: alteridade,
fragmentação e marginalização.
Para tanto, toma-se como corpus de análise os romances Ensaio sobre a
cegueira, publicado pelo escritor português José Saramago em 1995, e Hotel
2 Consoante ao sujeito no cenário social, cultural, econômico e político da contemporaneidade, usa-se no estudo o pensamento de Alain Touraine, que em Crítica da modernidade (2002, p. 244), lembra que “a crise da modernidade marca a separação daquilo que estivera tanto tempo unido, o homem e o universo, as palavras e as coisas, o desejo e a técnica”.
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Atlântico, de 1989, publicado pelo escritor brasileiro João Gilberto Noll. As obras
procedem uma leitura do homem contemporâneo. E, assim, pelos meandros da
literatura, leem, também, a face da História recente contemporânea, uma vez que o
homem é um ser social, e o romance é um produto estético que dele emana.
Na literatura portuguesa, o conjunto da obra de José Saramago (1922-2010),
tem merecido uma constante atenção por parte dos críticos literários e do meio
acadêmico devido à confluência entre História e ficção que organiza a maior parte
de sua produção romanesca. O escritor português conheceu a fama e o
reconhecimento a partir de 1991, quando recebeu o prêmio da Associação
Portuguesa de Escritores (APE), com o romance O Evangelho Segundo Jesus
Cristo. Pelo conjunto de sua obra, recebeu, em 1995, o prêmio “Camões”; e, em
1998, foi agraciado com o prêmio “Nobel de Literatura”.
Para esse estudo, opta-se por textos que fazem uma leitura crítica da
narrativa saramaguiana publicada a partir de 1995. Isso porque o escritor mesmo
proferiu em palestra proferida em Turim, em 1998, que sua obra pode ser vista sob
dois momentos distintos: a fase “estátua” e a fase “pedra”. Por sua vez, nessa
dissertação interessa a fase “pedra”, que corresponde ao interno da estátua, que
segundo Saramago (1998, s/p), é “a tentativa de entrar na pedra é como quem diz
entrar no mais profundo de nós”.
Os romances da fase “pedra” têm como características uma linguagem
discursiva mais próxima da oralidade, em que a pontuação convencional de diálogos
é descartada para dar lugar a um discurso mais fluido, vindo a configurar num traço
estilístico do romancista. Além disso, as narrativas escritas a partir de 1995 trazem
também a discussão sobre os mal-estares que assolam a Humanidade,
representados através do recurso à alegoria, em que Saramago mantém seu viés
humanístico visível na fase “estátua”, porém visto sob um prisma atual.
Ensaio sobre a cegueira (1995), romance da “fase pedra”, já foi abordado sob
diversos aspectos, contudo continua sendo para os críticos e leitores uma fonte
inesgotável de perguntas e respostas. Na narrativa, o “olhar” é o centro dos debates,
e uma das principais articulações e discussões que esse texto possibilita é a
reflexão sobre o dilema da alteridade no mundo contemporâneo. Numa sociedade
em que impera o culto à imagem e o fetichismo, o romance possibilita discutir sobre
algumas questões, como: O que é ver? O que é viver sob o olhar do outro quando
não se tem o sentido da visão? Como “aprender” a olhar o outro quando se está
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impossibilitado pela cegueira? Interrogações como essas possibilitam “ler” o
romance em questão levando em conta tanto a possibilidade como a não-
possibilidade dos sujeitos manterem contatos e relacionamentos estáveis e
duradouros.
Essa narrativa relata a história de uma cidade acometida por uma epidemia
de cegueira tenebrosa e repentina. Um homem comum, num dia comum, está
parado no sinal de trânsito com seu carro à espera que este abra. Ao tentar dar
partida no veículo, percebe que está cego. Simultaneamente, os habitantes da
cidade, um após outro, vão perdendo a visão. Com o intuito de manter a ordem e
evitar contágios, o Estado, representado pela força militar, decide confinar os cegos
num manicômio abandonado. Com isso, desde o confinamento à exclusão dos
vitimizados pela cegueira, tem-se caracterizado o caos social e a marginalização dos
sujeitos, levando à reflexão sobre a condição humana no mundo pós-moderno.
Na literatura brasileira, João Gilberto Noll (1946 – Porto Alegre, RS) vem
chamando atenção da crítica e do público leitor na prosa ficcional depois de 1970 no
Brasil. Foi com a coletânea de contos O cego e a dançarina (1980), que o escritor
despontou no cenário cultural, conquistando prêmios como “Revelação do Ano” da
Associação Paulista dos Críticos de arte, “Ficção do Ano” do Instituto Nacional do
Livro e o “Prêmio Jabuti” da Câmara Brasileira do Livro. O escritor gaúcho é autor
dos romances A fúria do corpo (1981), Bandoleiros (1985), Rastros do verão (1986),
Hotel Atlântico (1989), O quieto animal da esquina (1991), Harmada (1993), A céu
aberto (1996), Canoas e marolas (1999), Berkeley em Bellagio (2002), Mínimos
Múltiplos Comuns (2003), Lorde (2004), os contos que integram o livro Máquina de
ser (2006) e Acenos e afagos (2008).
Nas narrativas de Noll, a individualidade e as relações de alteridade se dão
pelo esvaziamento e renúncia de relações “sólidas” para com o outro. Não diferente
ocorre em Hotel Atlântico (1989), em que a personagem protagonista narra suas
errâncias em sua busca de algo que ele mesmo não consegue nominar. No
romance, a construção das personagens se dá pelo anonimato, pela solidão, pela
ausência de contatos físicos duradouros. O andarilho, sem afeto e sem objetivos a
alcançar em sua transitoriedade, parte dos lugares em que chega, sem criar raízes
ou vínculos afetivos com ninguém. Essa personagem faz de suas flaneries vivências
destituídas de qualquer enriquecimento cultural, social e afetivo, elementos caros a
um tempo em que olhar o outro com solidariedade é quase que impossível.
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O andarilho, personagem protagonista da narrativa nolliana, caracteriza o
sujeito que cultiva as incertezas do momento presente e que, simplesmente, deixa a
vida acontecer. Por isso, nenhum lugar o prende, tão pouco consegue e quer manter
relacionamentos duradouros, por isso está sempre partindo. O fato de que essa
personagem vaga sem rumo e sem paradeiro abre perspectivas para que se “leia”
esse sujeito que está “fora”, à margem, vagueando nas fronteiras da pós-
modernidade, sem almejar conhecimento, bens materiais ou afetos verdadeiros e
recíprocos.
As experiências do narrador-protagonista são anuladas pela sua condição de
desterritorialização, o que impossibilita que ele consiga historiografar. Assim, tem-se
caracterizado a efemeridade, a precariedade e a instabilidade do sujeito que,
fragmentado, só tem o tempo presente – o instante, o agora – em detrimento da
história e da memória como rastro de sua existência. É na pluralidade de
desdobramentos no circuito pós-moderno que o narrador-protagonista de Hotel
Atlântico é estruturado. Personagem fragmentada em sua constituição, que assoma
como um sinônimo de inadequação do sujeito com a realidade contingente,
cambiante e em constante transformação.
A leitura dessas narrativas possibilita entrever aspectos em comum,
possibilitando uma aproximação temática que revela similitudes quanto à
inconstância dos sujeitos nos espaço urbanos, elemento que caracteriza
relacionamentos instáveis e fugazes que expõem os mesmos à marginalização. A
leitura dos artigos, dissertações e teses feitas até o momento chamam atenção para
a inconstância, instabilidade e precariedade das personagens tanto de Ensaio sobre
a cegueira como de Hotel Atlântico.
No que tange aos problemas que instigam a lançar mão dos romances
supracitados, alguns pontos são obervados. Primeiro, em que aspectos Ensaio
sobre a cegueira e Hotel Atlântico dialogam entre si no que consiste em apontar
para a fragmentação das personagens em seus diferentes contextos culturais? Em
segundo, em que pontos das narrativas tem-se o entrecruzamentos dos discursos
ficcional e histórico, podendo, assim, elencar aproximações entre a criação estética
literária e a realidade social do Brasil e de Portugal? Em terceiro, quais fatores
intrínsecos aos romances possibilitam perceber aproximações que convergem para
o dilema da alteridade, da fragmentação e da marginalização das personagens?
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Nesse sentido, ao passo que o estudo busca entender a paulatina
fragmentação do sujeito no espaço urbano mediado pela globalização, também
opera na direção de se buscar entender o homem em suas vivências sociais e como
elas, em detrimento da experiência, ocasionam a desconstituição do “eu” e,
consequentemente, sua marginalização. Ainda, o estudo busca compreender o
romance como fenômeno e reflexo direto da instabilidade que se tornou a vida do
homem no contexto urbano da pós-modernidade.
Touraine (2002) destaca que a ideia de sujeito não pode ser separada da
ideia de relações sociais. No contexto da pós-modernidade, o sujeito tanto sofre
como transforma seu entorno social. Com isso, “a cultura pós-moderna rejeita antes
de tudo a profundidade, isto é, a distância entre os sinais e os sentidos”
(TOURAINE, 2002, p. 266), levando ao extremo a supressão do sujeito e a
substituição do objeto no lugar do mesmo. No entanto, cabe aqui uma ressalva. Não
é do âmbito dessa pesquisa discutir os possíveis aspectos que movem a
contemporaneidade rumo a uma classificação como pós-moderna. Por outro lado, é
possível afirmar que as mudanças nas sensibilidades culturais interferem de maneira
incisiva no fazer literário de Saramago e Noll.
Tendo como enfoque os romances de Saramago e Noll, o objetivo geral do
estudo é verificar como se dá a representação da alteridade, da fragmentação e da
marginalização do sujeito em Ensaio sobre a cegueira e Hotel Atlântico. Os objetivos
específicos buscam dar suporte ao objetivo geral para alcançar os propósitos dessa
dissertação.
O primeiro objetivo específico destaca os eventos que caracterizam as
mudanças sociais das sociedades portuguesa e brasileira a partir de 1970, para
compreender o diálogo que os romances selecionados estabelecem em seus
contextos e como esses condicionamentos interferem na construção das
personagens.
O segundo objetivo delineia aspectos formais e temáticos em que os
discursos da ficção e da história contemporânea aproximam-se na forma de um
discurso referencial entre os campos da criação artística e da realidade. Com base
nos romances objetos de análise, o terceiro objetivo específico busca nas narrativas
em questão os fatores que apontam para o processo pelo qual o sujeito é
fragmentado em sua constituição e fragmentado.
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No que tange ao quarto objetivo específico, o trabalho visa discutir o modo
como as personagens das narrativas de Saramago e Noll possibilitam ou não o
estabelecimento de contatos e vínculos sociais estáveis e duradouros. Por sua vez,
o quinto objetivo específico identifica nas narrativas a representação de sujeitos
postos à margem do sistema elitista e opressor.
No sexto objetivo específico busca-se discutir como a alteridade e a
marginalização do sujeito são construídas no espaço urbano, lugar privilegiado como
cenário de degradação social, econômica e cultural na pós-modernidade. O último
objetivo específico desse estudo compara dois romances de países distintos – Brasil
e Portugal – publicados depois de 1970, buscando, em Ensaio sobre a cegueira e
Hotel Atlântico, os diálogos que esses textos estabelecem com seus contextos de
produção no âmbito social, econômico, político e cultural.
Tendo por objeto de análise essas duas narrativas de língua portuguesa, é
possível apontar um caminho interpretativo de cunho comparatista, o qual pode ser
desenvolvido a partir das relações entre literatura, História e sociedade. Isso porque
é recorrente nas experiências das personagens das narrativas a desconstituição da
identidade – metaforizada na cegueira das personagens da narrativa saramaguiana
e nas errâncias do andarilho do romance nolliano –, o que acarreta a representação
de sujeitos fragmentados no contexto da alteridade, levando à marginalização do
sujeito.
Por isso, a escolha de Ensaio sobre a cegueira e Hotel Atlântico como objetos
desse estudo, já que ambas narrativas tratam do desencantamento do sujeito em
uma “modernidade líquida”3. São romances que narram a transitoriedade absurda de
vidas insuladas pela solidão e precariedade no contato com o outro (alteridade),
mostrando imagens distorcidas que são simulacros dos espaços urbanos que
organizam a cartografia pós-moderno da cidade. Além disso, esses textos literários
remetem o leitor a uma necessária reflexão a respeito do cotidiano das grandes
cidades, pois narram histórias que não conhecem outro final senão o da
fragmentação do eu. Destarte, são obras que se justificam tanto pela densidade
crítica e valor expressivo que têm na produção literária dos escritores quanto sua
3 As definições e explicações sobre o termo “pós-modernidade” seguem no capítulo 2, mais especificamente. No capítulo 1, a definição segue a definição de Zygmunt Bauman, que contrapõe a “modernidade líquida” (atualidade) à “modernidade” iniciada com a Revolução Industrial, no século XIX, até a década de 1970, data que é o divisor de águas entre modernidade e pós-modernidade para esse estudo.
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receptividade pelo público leitor e crítica. Além disso, ler e analisar duas obras, uma
portuguesa e outra brasileira, permite ver a conformidade de temáticas e aspectos
estruturais que vêm à baila com sua leitura.
Ainda que inscritas em culturas distintas, os textos de Saramago e de Noll
possibilitam uma aproximação com condicionamentos de ordem social, política,
econômica e cultural num contexto mais amplo, que é a globalização e suas
consequências. As narrativas desbravam a difícil tarefa de pensar a civilização
quando se tem um mal-estar coletivo. Possibilitam, assim, discutir e refletir acerca de
como experiências sociais podem ser exploradas esteticamente pelos escritores e
como estratégias artísticas podem colaborar na representação de um determinado
contexto social.
A abordagem, leitura e análise dos romances Ensaio sobre a cegueira e Hotel
Atlântico são feitas, principalmente, baseados nos textos de alguns teóricos que
trazem subsídios para que os objetivos do estudo sejam alcançados e que são
destacados na estruturação dos capítulos da dissertação. Nesse ínterim, o estudo
está estruturado da seguinte forma.
O primeiro capítulo apresenta três seções. Na primeira seção faz-se uma
leitura do círculo de ideias circunscritas à modernidade, em que a retomada do
pensamento de alguns autores mostra-se imprescindível para uma compreensão
mais aprofundada dessa época que implicou transformações radicais no espaço
físico das cidades como também no tipo humano. Para cumprir esse propósito, usa-
se no primeiro tópico as ideias de Charles Baudelaire (1985, 2010), Walter Benjamin
(1989, 1994), Marshall Berman (1986), Anthony Giddens (1991) e Bauman (1999,
2001, 2008a, 2009).
A segunda seção trata das identidades fragmentadas no âmbito da
modernidade líquida, em que são usados textos de Giddens (2002), Stuart Hall
(2005) e Bauman (1998b, 2001, 2005) para esclarecer a questão. A terceira seção
encerra o primeiro capítulo e trata da alteridade e da marginalização do sujeito no
contexto da cidade. Usa-se, para tanto, as ideias de Augé (1994), Adorno (1994),
Bauman (2004, 2006b), Boaventura de Sousa Santos (1995), Ester Limonad (2000),
Gomes (1994, 2000), K. Lynch (1999), Canclini (1999), Hall (2005) e Nelson Brissac
Peixoto (1987).
O segundo capítulo da dissertação está estruturado em duas seções. A
primeira seção pondera discussões sobre a narrativa e a representação da cidade
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como “lugar” da fragmentação e marginalização do sujeito. São utilizadas as
referências de Gomes (1999), Fredric Jameson (2004), André Bueno (2002), Roland
Barthes (1985), Rejane C. Rocha (2011), Tânia Pellegrini (1996, 2002) e Ângela
Maria Dias (2005). Para discorrer sobre o dilema da alteridade no espaço urbano e
como a narrativa produzida no Brasil e em Portugal depois de 1970 trata dessa
questão, a segunda seção lança mão das ideias de Regina Dalcastagnè (2003,
2007, 2008), Lucia Helena (2008), Silviano Santiago (2002), Seixo (1986), Ernesto
Sabato (2003), Theodor Adorno (1983, 1994), Barthes (2002), Nelson Brissac
Peixoto (1987), Jaime Ginzburg (2004), Michel Maffesoli (1984), Maurice Merleau-
Ponty (1994), Augé (1994) e Bauman (1998a, 1998b, 2001, 2004, 2008).
O terceiro capítulo da dissertação está estruturado em três seções. A primeira
seção disserta acerca do diálogo da literatura com a sociedade, com destaque ao
espaço urbano e à liquidez dos seus sujeitos. A segunda e a terceira seções fazem
uma leitura analítico-interpretativa dos romances Ensaio sobre a Cegueira e Hotel
Atlântico. Nessas seções, levam-se em consideração os eixos temáticos alteridade,
fragmentação e marginalização, que balizam a leitura das narrativas, em que esses
eixos são relacionados com o pensamento dos muitos sociólogos, filósofos e críticos
da cultura contemporânea elencados no decorrer da dissertação em Letras.
19
1. TUDO QUE É SÓLIDO, DERRETE
Homens derretendo. Disponível em: www.papodepsicologo.com/2010/ 10/lacos-fragilizados.html. Acesso em: 16 mai. 2013.
20
A pós-modernidade, época que recebe muitas denominações, como
sociedade pós-industrial, sociedade das mídias, sociedade da informação,
sociedade high-tech e similares, promove uma mudança radical na estrutura da
sociedade global, fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero,
sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que eram a base sólida para o sujeito no
curso de sua vida social.
Sérgio Paulo Rouanet, em As razões do Iluminismo (1987), disserta acerca
das nuanças que permeiam os debates a respeito da pós-modernidade. Para o
crítico, a pós-modernidade se manifesta, inicialmente, no plano do vivido, através de
“um novo cotidiano, qualitativamente diferente do que se caracterizava a
modernidade” (ROUANET, 1987, p. 233). Esse cotidiano se caracteriza pelo apogeu
da informação em detrimento da máquina, a fábrica foi trocada pelo shopping center
e, o que mais se acentua nessas mudanças, é que os contatos de pessoa a pessoa
foram substituídos pela relação mediática.
O mundo social, enfatiza Rouanet (1987, p. 233), se “desmaterializa, passa a
ser signo, simulacro, hiper-realidade”, consequentemente, o sujeito pós-moderno
mostra-se fragmentado em sua constituição. Ele é “esquizoide, é permeável a tudo,
tudo é demasiadamente próximo, é promíscuo com tudo o que toca, deixa-se
penetrar por todos os poros e orifícios” (ROUANET, 1987, p. 234).
Sintomaticamente, a fragmentação do sujeito se dá numa época permeada por
simulacros, pluralidades, antagonismos, fetiches e mal-estares de toda ordem.
A condição fragmentária do ser humano não escapa às contingências de uma
existência que Zygmunt Bauman, em Vida Líquida (2009, p. 19), vê como uma “vida
líquida que significa constante autoexame, autocrítica e autocensura e alimenta a
insatisfação do eu consigo mesmo”. Na sociedade atual, o sujeito padece de ideias
geniais que possam suprir suas carências afetivas, e substitui sua falta de projeto de
vida pelo consumo de objetos e imagens. Por isso o advento da sociedade líquido-
moderna, na visão de Bauman (2009, p. 19), veio a significar “a morte das principais
utopias sociais e, de modo mais geral, da ideia de ‘boa sociedade’”.
Numa época sem respostas, o que o sujeito faz com as perguntas? É sempre,
a posteriori que se faz possível um balanço dos acontecimentos que marcaram um
povo, uma nação, uma cultura. Atualmente, difícil compreender e captar o mundo
contemporâneo em sua totalidade, pois a história, seja coletiva ou individual,
apresenta-se fragmentado em tempos aclamados como pós-utópicos. Nesse
21
contexto, o termo “pós” é assunto pertinente no meio acadêmico, ora suscitando
dúvidas quanto à sua especificidade, ora ascendendo chama pelos mais entusiastas
que falam em sua defesa.
No rol dos debates, uma questão se torna pertinente: Mas e depois do “pós”,
o que vem? Nesse sentido, a observação de Jean Baudrillard (1990) é oportuna
numa época em que as utopias e a fé numa sociedade mais justa e igualitária
caíram por terra. Em A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos
(1990), o filósofo liga a modernidade à orgia, expressando que:
[a] orgia é o momento explosivo da modernidade, o da liberação em todos os domínios. Liberação política, liberação sexual, liberação das forças produtivas, liberação da mulher, da criança, das pulsações inconscientes, liberação da arte. Assunção de todos os modelos de representação e de todos os modelos de anti-representação. Total orgia de real, de racional de sexual, de crítica e anticrítica, de crescimento e de anti-crescimento. Percorremos todos os caminhos da produção e da superprodução virtual de objetos, de signos, de mensagens, de ideologias, de prazeres. O que fazer após orgia? (BAUDRILLARD, 1990, p. 9).
O filósofo lança mão dessa pergunta para caracterizar o atual estado das
coisas, e sinaliza que tudo o que é liberado está fadado à substituição, como
também vive sob o signo da indeterminação crescente e do princípio da incerteza
(BAUDRILLARD, 1990, p. 10). Esses elementos vão ao encontro de uma cultura
voltada ao simulacro, consequência direta da tendência que a sociedade tem de
deixar os mecanismos da vida humana nas “mãos invisíveis” do mercado que, sob a
gerência de mentes hábeis e oportunistas, fazem crer que vive-se num tempo em
que a liberdade e as possibilidades conferem a todos direitos e prazeres iguais.
Bauman, em Modernidade e Holocausto (1998a, p. 32), revela o surgimento
de um novo tipo de incerteza, que não está “limitada à própria sorte e aos dons de
uma pessoa, mas a respeito da futura configuração do mundo, a maneira correta de
viver nele”, bem como “os critérios pelos quais julgar os acertos e erros da maneira
de viver”. Nesse contexto, a condição humana deve ser pensada à luz de uma
época em que um mal-estar paira silenciosamente entre os sujeitos, onde não há
mais, recuperando a expressão popular, aquela “luz no final do túnel” que possa
servir de guia ao sujeito em sua trajetória social.
As transformações atingiram sua voltagem máxima, havendo a perda da
experiência e da tradição em detrimento da descoberta do novo e da busca
incansável pelo progresso. Com isso, os laços humanos mostram-se frágeis, e o
22
sujeito precisa de uma constituição heroica para, dia após dia, firmar sua identidade
ou “construir” uma nova, para não se tornar obsoleto, e ser esquecido pela
sociedade alienada e fetichista.
Na modernidade, a figura do sujeito foi neutralizada no interior de um discurso
de verdade que o tomou como personagem anônimo da História, mero enunciador
de um saber construído fora do seu corpo e de sua subjetividade. Em nome da
verdade, o sujeito moderno não foi considerado; logo, o mesmo adentrou às portas
do século XXI e pagou um preço relativamente caro para poder “consumir” as
novidades e outras promessas que vieram inclusas ao “pacote” da modernidade.
Com o “derretimento” das bases sólidas, instalou-se um conflito existencial e
um enfrentamento entre sujeito e sociedade, causando a oscilação entre o “ser” e o
“ter”: o primeiro, apreciado numa esfera de espaço e tempo; o segundo, esmaecido
pelas forças das esferas (social, cultural, política, econômica), que se revelam
superiores e tendem à fragmentação do “eu”. Com isso, tudo é, à primeira vista, um
déjà vu sonoro, um campo de debates genuinamente complexo, polissêmico e
polifônico que gira no vórtice da globalização.
Se as bases sólidas da modernidade derreteram, como caracterizar o atual
momento social, político, econômico e cultural da sociedade? Assim, antes de lançar
um olhar sobre questões relevantes à fragmentação do sujeito pós-moderno, faz-se
necessário realizar um balanço da modernidade, evento iniciado no século XVII.
Mister lembrar que embrenhar-se pelos caminhos tortuosos da modernidade é uma
tarefa árdua devido à profusão de conceitos, ideias, fatos históricos, manifestações
artísticas e literárias alusivos ao período.
No círculo de ideias circunscritas à modernidade, a retomada do pensamento
de alguns autores é imprescindível para uma compreensão mais aprofundada dessa
época que implicou transformações radicais no espaço físico das cidades como
também no tipo humano. Para cumprir esse propósito, usa-se no primeiro tópico as
ideias de Charles Baudelaire (1985, 2010), Walter Benjamin (1989, 1994), Marshall
Berman (1986), Anthony Giddens (1991) e Bauman (1999, 2001, 2008a, 2009).
1.1 Olhares à modernidade e à pós-modernidade
Foi à luz do dilema que discute tradição versus modernidade que Charles
Baudelaire, em O pintor da vida moderna (2010), edição póstuma, discute questões
23
relevantes de sua época. Às portas da modernidade, a arte desse período era
baseada na cultura renascentista. Baudelaire (2010, p. 14) refere-se à pintura para
enfatizar que “[o] passado é interessante não só pela beleza que lhe souberam
extrair os artistas para os quais ele era o presente, mas também como passado, por
seu valor histórico”, e conclui que:
[o] mesmo se passa com o presente. O prazer que extraímos da representação do presente deve-se não apenas à beleza de que pode estar revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente (BAUDELAIRE, 2010, p. 14).
Valorizando tanto o passado como o presente, Baudelaire não apenas
discorreu sobre a questão como apontou exemplos da arte moderna. O poeta cita a
obra do aquarelista Constantin Guys (1805-1892) como ícone da época. Nas
palavras finais do ensaio, Baudelaire assinala o que para ele é a modernidade:
[...] o Sr. Guys tem um mérito profundo. [...] Ele cumpriu, deliberadamente, uma função que outros artistas desprezaram e que cabia sobretudo a um homem do mundo cumprir; ele buscou por toda parte a beleza passageira, fugaz, da vida presente. O caráter daquilo que o leitor nos permitiu chamar a modernidade (BAUDELAIRE, 2010, p. 87).
A modernidade é, pois, a beleza passageira e fugaz da vida presente. O
poeta francês foi o primeiro a viver esse tempo e soube como ninguém interpretá-lo,
tanto que lê-lo é ir na direção desses sinais e da própria condição histórica, tão
intrinsecamente relacionada com a modernidade.
Ao lançar mão da arte de Guys, o poeta francês depreende que há uma
oportunidade histórica que fortalece a necessidade de não só mais olhar para a vida
moderna, mas também de pintá-la. Para ele, o pintor da vida moderna é,
[...] um ser urbano, ‘grande amante da multidão e do incógnito’, que ‘mergulha na multidão como num imenso reservatório de eletricidade’, como ‘um espelho tão imenso quanto esta multidão; como um caleidoscópio dotado de consciência que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e a graça cambiante de todos os elementos da vida, [...] sempre instável e fugidia (BAUDELAIRE, 2010, p. 30).
A modernidade em sua fase sólida tem na obra do escritor francês um caráter
substantivo. Significa uma nova era que imprime um novo modo de viver, cabendo
ao pintor da vida moderna, ao artista, ao intelectual a função de percorrer a cidade
24
com o intuito de expressá-la por meio da arte, como fez Guys. Baudelaire permitiu,
ainda, produzir uma obra poética que expressa claramente o que é a modernidade.
Não há como ler As flores do mal (1985) sem perceber a crítica baudelairiana
à sociedade de seu tempo, em que o processo acelerado de modernização incute no
sujeito novos jeitos de pensar e agir dentro de uma Paris que rapidamente é
transformada pelo engenho humano4. Há na obra uma galeria de versos que
abordam o clássico motivo da fugacidade humana: diante do desassossego
efêmero, do progresso5 acelerado, das mudanças intermináveis que transformam
fisicamente a cidade e, até mesmo, o jeito de ser dos corações urbanos, que se
tornam instáveis.
Para Baudelaire, a modernidade é a reconstrução e a afobação da
humanidade na grande metrópole de Paris oitocentista. Não há nada mais moderno
que a vida nas grandes cidades6, e a essa modernidade está intimamente ligada à
noção de conflito, “[a] modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente. E esse
elemento transitório, fugidio, cujas metamorfoses são tão frequentes, não se tem o
direito de desprezá-lo ou de dispensá-lo” (BAUDELAIRE, 2010, p. 35).
As flores do mal (1985) são reflexo de um poeta que vê, sente e vive no novo
espaço urbano de Paris sob fortes traços da modernidade: a mudança na
arquitetura, a maquinaria nas fábricas, o êxodo rural, a lotação do espaço citadino, o
comércio, o culto ao novo e a fragmentação das relações humanas. O poeta observa
as ruas de Paris, seus habitantes – velhos, trabalhadores, prostitutas – e tenta
apreender e retratar esse novo espaço urbano7.
Da modernidade oitocentista adentra-se na modernidade do século XX. Para
Walter Benjamin, a (im)possibilidade da produção estética na modernidade é um dos
4 A estrofe do poema O Cisne ilustra essa questão: Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história / Depressa muda mais que um coração infiel); / Paris muda! Mas nada em minha nostalgia / Mudou! Novos palácios, andaimes, lajeados, / Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria (BAUDELAIRE, 1985, p. 327-328). 5 Na visão benjaminiana, o fato de Baudelaire ter se colocado hostilmente contra o progresso constituiu-se condição imprescindível para que pudesse dominar Paris em sua poesia: “É muito importante que o ‘novo’ em Baudelaire não preste nenhuma contribuição ao progresso. É sobretudo, a crença no progresso que ele persegue com seu ódio como se ela fosse uma heresia, uma falsa doutrina e não um erro habitual” (BENJAMIN, 1989, p. 177). 6 A literatura modernista nasceu na cidade e com Baudelaire, principalmente na descoberta deste poeta de que as multidões significam solidão e que os termos multitude e solitude são intercambiáveis para um poeta de imaginação fértil e ativa deste poeta (KIRCHOFF, 2004). 7 Para Marshall Berman, o poeta de As flores do mal pôde ver-se não só como um espectador, mas como participante e protagonista dessa tarefa em curso; seus escritos parisienses expressam o drama e o trauma aí implicados. Baudelaire nos mostra algo que nenhum escritor pôde ver com tanta clareza: como a modernização da cidade simultaneamente inspira e força a modernização da alma dos seus cidadãos (BERMAN, 1986, p. 143).
25
pontos de sua preocupação teórica. A partir da segunda década do século XX, o
filósofo germânico faz dessa questão um tema fecundo para reflexão. Sua época
aproxima da época de Baudelaire, tornando “sua” modernidade contígua à do poeta,
e assim compartilhar das inquietações presentes nos poemas baudelairianos.
O pensador germânico não ficou alheio a essa questão crucial da
Humanidade, que foi a tematização da experiência moderna do sujeito em
sociedade. Essa experiência é entendida como “experiência vivida no choque”,
legado de um período da história que é perpassado por um sentimento ambíguo,
tecido duplamente pelo fio de um horror e de um encantamento. O horror
representado nas formas degeneradas e decadentes do flâneur, da prostituta, da
mercadoria, da moda; o encantamento construído sobre a compreensão da
decadência, da morte, das ruínas da história.
Benjamin (1994, p. 93) observa que na modernidade o sujeito, alheio à
história, se revela como fatalidade. Ao fazer uma leitura do quadro Angelus Novus,
de Paul Klee, o filósofo expressa que o sujeito moderno deu as costas à tradição,
pois acreditava que fugindo e negando o passado poderia ser feliz dentro da
tempestade que é o progresso8. A Tese IX formulada por Benjamin em Sobre o
conceito da história (1994), reafirma o descrédito com relação ao seu tempo, pois
esse é um contexto histórico repleto de valores relativos, em que a incerteza e a
insegurança rompem com qualquer possibilidade de uma vida futura estável.
Benjamin (1994) vislumbra no declínio da experiência o surgimento de uma
gama de novas narrativas, que estão relacionadas ao tempo cindido industrial, com
seu apelo no consumo e na efemeridade das coisas. O sociólogo germânico teceu
suas teses diante de uma experiência arruinada [entenda-se a modernidade] e em
crise, em que o progresso vem diretamente ligado à catástrofe. Nessa direção, a
dualidade entre experiência e vivência é uma das noções capitais para que se
entenda a teoria da cultura do filósofo. A experiência (Erfahrung) está relacionada à
8 Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1994. p. 226).
26
memória individual e coletiva, ao inconsciente, à tradição, ao passo que a vivência
(Erlebnis) relaciona-se à existência privada do homem, à sua solidão, ao choque.
Tendo por base os termos “vivência” e “experiência”, Benjamin (1994)
elaborou um balanço a respeito da modernidade, em que a concepção do presente
está impregnada pela noção de progresso histórico, quadro este intensificador do
afastamento crescente da consciência do presente em relação ao passado. O tempo
do progresso rege a modernidade; é um tempo efêmero, fluido: é o tempo da
vivência que habita o âmbito privado, que faz com que cada sujeito se torne cada
vez mais alienado de si próprio e da sociedade da qual faz parte, impossibilitando,
progressivamente, a obtenção de uma imagem de si ou de uma experiência no
sentido pleno.
Benjamin (1994) busca compreender a modernidade e lança mão da ideia de
presente intensificado para se referir à noção de um tempo que não escoa, fato que
torna o passado debilitado e o futuro ausente, em nome do retorno do sempre igual,
o tempo da repetição, da mesmice. A modernidade, pautada na busca pela
novidade, pelo novo, e amparada na rotina maçante em que não há o partilhamento
de experiências, não permite ao sujeito acabar aquilo que iniciou.
Na mesma esteira de Benjamin, só que não apresentando uma visão tão
pessimista a respeito da história moderna, Marshall Berman (1986) trata das
influências da modernidade. Ao deliberar acerca dos prós e dos contras da vida
moderna, o autor cita três elementos distintos – modernização, modernidade,
modernismo – que andam juntos, mas que devem ser vistos separadamente do
ponto de vista analítico.
Para o autor de Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da
modernidade (1986), ser moderno:
[...] é encontrarmo-nos em um meio-ambiente que nos promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de nós mesmos e do mundo – e que, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que conhecemos, tudo o que somos (BERMAN, 1986, p.15).
A modernidade é a experiência simbólica e sensorial da modernização.
Berman reconhece que ainda que essa época seja uma experiência vital através do
tempo e espaço que une a raça humana, essa experiência é paradoxal, pois
27
“despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e
contradição, de ambiguidade e angústia” (BERMAN, 1986, p. 15).
Destarte, para falar desse paradoxo, o crítico argumenta que o turbilhão da
vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes. Cabe, aqui, citá-las:
[...] grandes descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do universo e do lugar que ocupamos nele; a industrialização da produção, que transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes; descomunal explosão demográfica, que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais variados indivíduos e sociedades; Estados nacionais cada vez mais poderosos, burocraticamente estruturados e geridos, que lutam com obstinação para expandir seu poder; movimentos sociais de massa e de nações, desafiando seus governantes políticos ou econômicos, lutando por obter algum controle sobre suas vidas; enfim, dirigindo e manipulando todas as pessoas e instituições, um mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em permanente expansão (BERMAN, 1986, p. 16).
A conhecida metáfora9 de Marx – “Tudo que é sólido desmancha no ar” –,
alude à crise dos referenciais, à implosão das certezas, ao desvanecimento dos
parâmetros de crença e sustentação do sujeito e da sociedade capitalista. Nesse
contexto, a reação é em cadeia: o modelo econômico medieval, a razão iluminista,
os paradigmas estéticos, filosóficos, religiosos não dão mais conta da sociedade e
do homem do século XIX.
Se a visão bermaniana fala de influências que a sociedade viveu com o
desenvolvimento da modernidade, Anthony Giddens fala de consequências. Em As
consequências da modernidade (1991), o autor refere que
[...] “modernidade” refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. Isto associa a modernidade a um período de tempo e a uma localização geográfica inicial (GIDDENS, 1991, p. 11).
9 Berman enfatiza o contexto paradoxal da aventura moderna, trabalhando com o pensamento dialético herdado à Ideologia alemã e inspirado pelo Manifesto Comunista de Marx, claramente referendado no título do seu livro: “Em nossos dias, tudo parece estar impregnado de seu contrário”. E mais adiante: “todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidade e veneráveis preconceitos e opiniões foram banidas; todas as novas relações se tornam antiquadas antes que cheguem a ossificar. Tudo que é sólido desmancha no ar (MOORE, 1888, p. 475-6, apud BERMAN, 1986).
28
A modernidade foi construída sobre o solo fértil da liberdade e promessa de
oportunidades iguais para todos. Contudo, isso acarretou consequências, que,
segundo Giddens (1991), fizeram com que o homem moderno tivesse que “inventar”
tradições e romper com a “tradição genuína”, isto é, aqueles valores radicalmente
vinculados ao passado pré-moderno.
O autor desenvolve uma interpretação “descontinuísta” do desenvolvimento
social moderno. Conforme Giddens (1991, p. 15-16), é preciso capturar a natureza
dessas descontinuidades para poder analisar o que é realmente a modernidade e
diagnosticar suas consequências para a época presente. Para identificação dessas
descontinuidades que separam as instituições sociais modernas das ordens sociais
tradicionais, deve-se observar algumas características, como a) o ritmo da mudança
– as mudanças em todas as esferas, em condições de modernidade, acontecem
numa velocidade extrema; b) o escopo da mudança – as interconexões de diferentes
áreas, geram ondas de transformação social que penetram o mundo todo; e c) a
natureza intrínseca das instituições modernas - a modernização não transcorre de
maneira única e uniforme pelas diversas regiões do globo.
A modernidade, neste sentido, expressa descontinuidade, a ruptura entre o
que se apresenta como o “novo” e o que persiste como herança do “velho”. Para
entender a modernidade, Giddens (1991, p. 16) expressa que alguns fatores devem
ser levados em consideração. A saber: a) ruptura com a ideia de comunidade e
passagem à ideia de sociedade (dividida em interesses conflitantes, classes
antagônicas e grupos diversificados); b) ruptura com a ideia e a prática teológico-
política do poder político encarnado na pessoa do dirigente e passagem à ideia da
dominação impessoal ou da dominação racional, isto é, nascimento da ideia
moderna de Estado.
Ainda que se lance um olhar promissor sobre a interpretação descontinuísta,
Giddens alerta que não basta inventar novas palavras para explicar este
redemoinho, mas sim olhar com atenção a própria modernidade e analisar os
resultados, pois “estamos alcançando um período em que as consequências da
modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes”
(GIDDENS, 1991, p. 12-13).
Vive-se uma época marcada pela desorientação. A modernidade transformou
as relações sociais e também a percepção dos sujeitos e coletividades sobre a
segurança e a confiança, bem como sobre os perigos e riscos do viver. Nas
29
condições da globalização, há um mal-estar que alcança a todos, pois a sensação
de insegurança estende-se desde a maior cidade a menor comunidade, que o
progresso (ainda) não alcançou.
Os modos de vida produzidos pela modernidade, explica Giddens (1991, p.
14) “nos desvencilharam de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma
maneira que não tem precedente”. Por isso, a experiência da modernidade em
tempos globais colocou por terra as certezas, em que confiança versus risco,
oportunidade versus perigo são características paradoxais e permeiam todos os
aspectos da vida cotidiana. Ninguém, absolutamente ninguém, pode estar
completamente de fora diante das condições adversas que esse período
proporciona. Ser moderno é estar ciente das surpresas e dos riscos que estão
sempre à espreita, e planejar o futuro é uma impossibilidade caso o sujeito acredite
que ele deva ser planejado, levando em conta a construção histórica que alie
passado e presente.
Ao se posicionar sobre o fenômeno modernidade, Bauman observa que os
valores modernos derreteram. Em Modernidade e Ambivalência (1999, p. 14), o
sociólogo lembra que “a existência é moderna na medida em que contêm a
alternativa da ordem e do caos”. A modernidade sólida é caracterizada pela ideia do
projeto através do qual pretendia controlar, através do ordenamento racional e
técnico, o mundo pela razão. Com esse escopo, são dois os elementos através dos
quais o projeto moderno seguia caminho: os Estados-nações e a ciência.
Nesse ornamento, o Estado
[...] fornecia os critérios para avaliar a realidade do dia presente. Esses critérios dividiam a população em plantas úteis a serem estimuladas e cuidadosamente cultivadas e ervas daninhas a serem removidas ou arrancadas (BAUMAN, 1999, p. 29).
Na mesma direção, a ciência não era menos importante. Segundo o
sociólogo:
[a] ciência moderna nasceu da esmagadora ambição de conquistar a Natureza e subordiná-la às necessidades humanas. A louvada curiosidade cientifica que teria levado os cientistas ‘aonde nenhum homem ousou ir ainda’ nunca foi isenta da estimulante visão de controle e administração, de fazer as coisas melhores do que são (isto é, mais flexíveis, obedientes, desejosas de servir) (BAUMAN, 1999, p. 48).
30
Se a modernidade sólida foi a tentativa de controlar o mundo, eliminando toda
e qualquer espécie de ambivalência, a modernidade líquida10 é o mundo em
descontrole. Percebe-se que a ordem já não perdura entre os objetivos do projeto
moderno, e a crise do pensamento racionalista exige uma nova sensibilidade, em
que pensamento e emoção formem um novo paradigma que contemple e abrigue as
complexidades dessa “cultura de risco” da qual fala Giddens (1991).
Nesse sentido, um “mundo líquido” é a ideia que Bauman desenvolve ao
lançar um olhar nada confiante sobre o tempo da contemporaneidade. Expressões
como “modernidade líquida”, “vida líquida”, “tempos líquidos”, firmaram-se como
títulos de livros, e buscam trazer à lume a interpretação de uma época permeada por
incertezas, angústias e desafios. O autor defende que a atual sociedade global
passou do estágio da modernidade “sólida” para a modernidade “líquida”, fato que
se deu a partir da liquefação dos sólidos conceitos do passado, como valores e
crenças, que eram o alicerce da sociedade até então tida como modelo.
A liquidez fez “escorrer” a ambivalência para dentro de todos os setores da
sociedade. Hoje, percebe-se que a economia se desterritorializou. O trabalho, antes
localizado e vigiado em grandes fábricas, agora é flexível, pois não depende mais da
produção de bens materiais e nem da localidade onde são produzidos. A fluidez
também atingiu o poder, que não depende mais da localidade: o controle pode ser
feito à distância.
Em Vida Líquida (2009), Bauman destaca que o século XX trouxe à baila as
contradições que a modernidade não conseguiu resolver em sua trajetória. Se com a
modernidade o sujeito vive às custas da idealização e projeções futuras, no contexto
da modernidade líquida, cabe a ele habituar-se a um tempo que exige uma
sucessão de reinícios. A vida nessas condições é uma vida precária, vivida em
condições de incerteza constante (BAUMAN, 2009, p. 8). A liquidez e suas
características determinantes, fluidez e adaptabilidade, são qualidades que a
sociedade enaltece, pois crê que é necessária a mudança de forma para que o
sujeito se adapte a qualquer situação adversa.
Se a modernidade oferecia um leque de ideologias fortes, sustentáveis, que
fomentavam uma segurança existencial ao sujeito que nela confiava, na sociedade
10 A expressão “pós-modernidade” tem em “modernidade líquida”, de Bauman, seu equivalente. Nesse trabalho, não é considerado a modernidade em termos de superação (um período já ultrapassado), apenas procura-se marcar no mundo contemporâneo as diferenças em relação aos pressupostos modernos.
31
líquido-moderna não é mais assim. Tendo “derretido tudo que era sólido e profanado
tudo que era sagrado, a modernidade introduziu a era da permanente desarmonia
entre as necessidades e as capacidades”, observa Bauman na obra A sociedade
individualizada: vidas contadas e histórias vividas (2008a, p. 79-80).
O atual período da sociedade globalizada demarca a fragmentação das
estruturas “sólidas” da sociedade, aquelas que por muito tempo serviam de alicerce
cultural, institucional e psicológico para a formação das identidades. Os laços sociais
derreteram, tornando-se fluídos como os líquidos. Tem-se, então, instaurado a
“liquidez” das formas de vida, caracterizando a sociedade líquido-moderna, que é:
[...] uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir (BAUMAN, 2009, p. 7).
Para certificar isso, Bauman observa que tudo na contemporaneidade é
fluído, porque os líquidos não fixam o espaço, nem tampouco prendem o tempo,
como também não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos
a mudá-la. O sociólogo utiliza de modo metafórico o termo “líquido” para caracterizar
o processo de despersonalização do sujeito em sociedade. Os líquidos estão
associados à mobilidade e à inconstância, e podem mover-se facilmente. Tem-se a
passagem dos estágios da modernidade “sólida”11 para a “líquida”, caracterizando a
liquefação dos sólidos conceitos do passado, como valores e crenças, que
edificavam o modelo de sociedade até então visto.
Para ilustrar o “derretimento dos sólidos”, o sociólogo lança mão da alegoria
do “cadinho”, que é o traço permanente da modernidade. Em Modernidade Líquida
(2001), o autor refere que esse traço distintivo alude a um novo sentido:
Os sólidos que estão para ser lançados no cadinho e os que estão derretendo neste momento, o momento da modernidade fluida, são os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas – os padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas de coletividades humanas, de outro (BAUMAN, 2001, p. 12).
11 Trata-se de uma apropriação do conceito de “derreter os sólidos”, apresentado pelo Manifesto Comunista: forma pela qual o espírito moderno se dirigia à sociedade, considerada rija e inflexível para a necessária adaptação aos novos tempos.
32
Essa discordância dá margem para que se perceba a diluição das promessas
“sólidas” da modernidade, embasadas na ideia de uma sociedade para todos. Agora,
o homem experimenta a fluidez e a volatilidade do tempo, em que as inúmeras
esferas da sociedade atual – vida pública, vida privada, relacionamentos humanos –
passam por uma série de transformações, cujas consequências esgarçam o tecido
social. Tais alterações, fazem com que as instituições sociais percam a solidez e se
liquefaçam, tornando-se amorfas, paradoxalmente, como os líquidos.
Na modernidade líquida, a liquidez e a fluidez são as características
determinantes, pois são enaltecidas pela sociedade que considera necessária a
mudança de forma para a adaptação a qualquer situação adversa. Como fruto dessa
liquidez que permite a adaptação e dificulta a sedimentação, o que resulta em um
crescente individualismo presente em todas as esferas da sociedade.
Bauman (2001, p. 8) explica que “os sólidos suprimem o tempo; para os
líquidos, ao contrário, o tempo é o que importa”. A modernidade líquida traz à tona
os modos pelos quais o sujeito experimenta uma outra compreensão da realidade,
assim como vivencia situações marcadas pela individuação diante de uma
vertiginosa realidade, que é veloz, instável e precária. Tem-se, então, a “liquefação”
do projeto moderno, caracterizando a dissolução das forças ordenadoras que
permitiam ativamente reenraizar e reencaixar os antigos sólidos em novas formas
sociais modernas.
A sociedade do século XXI não é menos moderna que aquela que adentrou
no século XX. Ela é somente moderna de um modo diferente, pois oportuniza ao
sujeito o status de emancipação tão almejado. O que a faz tão moderna, ressalta o
sociólogo polonês, é a
[...] compulsiva e obsessiva, contínua, irrefreável e sempre incompleta modernização; a opressiva e inerradicável, insaciável sede de destruição criativa (ou de criatividade destrutiva, se for o caso: de ‘limpar o lugar’ em nome de um ‘novo e aperfeiçoado’ projeto; de ‘desmantelar’, ‘cortar’, ‘defasar’, ‘reunir’ ou ‘reduzir’, tudo isso em nome da maior capacidade de fazer o mesmo no futuro, em nome da produtividade ou da competitividade) (BAUMAN, 2001, p. 36).
Nessa linha de pensamento, são duas as características que fazem com que
a modernidade líquida seja vista com um olhar diferenciado. A primeira é o rápido
declínio da antiga ilusão moderna, resumida na crença que há no fim do caminho
percorrido um telos alcançável da mudança histórica, um Estado de perfeição a ser
33
atingido amanhã, algum tipo de sociedade boa, justa e sem conflitos (BAUMAN,
2001, p. 37).
A segunda mudança é a desregulamentação e a privatização das tarefas e
deveres diários. O que antes era visto como algo a ser realizado pela coletividade,
agora está fragmentado, ou seja, individualizado (BAUMAN, 2001, p. 38). Com isso,
ao tempo que o sujeito sente que a época propicia mais liberdade, sente também
que as responsabilidades que lhe cabem são imensas. Assim, ele precisa “moldar-
se” para estar à altura do esperado e poder fluir e escorrer tranquilamente pelos
“mares”, ora caudalosos ora turbulentos, da sociedade líquido-moderna. Nesse jogo
de sensações entra a problemática do sujeito.
O sujeito da modernidade líquida está fragmentado na sua condição de
cidadão pleno. Isso leva, consequentemente, a ponderar a discussão sobre a
questão do declínio das velhas identidades produzidas na modernidade sólida. A
seção que segue trata das identidades fragmentadas no âmbito da modernidade
líquida. Usa-se Giddens (2002), Stuart Hall (2005) e Bauman (1998b, 2001, 2005)
para esclarecer a questão.
1.2 Identidades movediças na modernidade líquida
A edição de 25 de dezembro de 2012 da revista Time concedeu o prêmio
tradicional de "Pessoa do Ano" para "você". Sim! para você: a cada usuário e criador
de conteúdo disponibilizado na web. Magistralmente, a capa da Time mostra um
teclado branco com um espelho no lugar da tela do computador, dando a entender
que cada “navegador” do ciberespaço pode ver seu reflexo.
Ao discorrer sobre a premiação inusitada, Slavoj Zizek argumenta que a
premiação “pessoa do ano” pondera acerca das identidades que o mundo online
possibilita criar. Esse fato, reflete o desejo incansável que o sujeito tem em ser
“outro” na busca pela perfeição. Para ilustrar isso, Zizek narra a seguinte história
sobre um comercial de uma TV inglesa:
Para pouco mais de uma década atrás, havia um brilhante comercial inglês de cerveja. A primeira parte reproduzia a conhecida história de uma moça que caminha ao longo de um riacho, vê um sapo, o toma nas mãos e beija, e o sapo miraculosamente se transforma em príncipe. Mas a história não acabava assim. O jovem olhava a moça de um jeito cobiçoso, a tomava nos braços, a beijava e ela se transformava em uma garrafa de cerveja, que ele exibia em um gesto triunfante (ZIZEK, 2012).
34
Ainda que irônica, a narrativa de Zizek faz repensar a constituição das
identidades dos sujeitos numa sociedade líquido-moderna, pautada no culto ao
fetichismo da imagem e dos objetos. Mais do que nunca, a constituição das
identidades está ligada a fatores que mantêm íntima relação com a globalização, os
avanços da tecnologia, a compressão espaço-tempo.
Esses fatores empurram o sujeito atual para que tenha uma postura mais
voltada ao “ter”, em detrimento do “ser”. Em sua essência, os debates presumem
que as velhas identidades, que por muito tempo estabilizaram a sociedade, estão
em declínio, fazendo, assim, surgir novas identidades e, consequentemente,
fragmentando o sujeito unificado. Nesse debate, as considerações de Giddens
(2002), Stuart Hall (2005) e Bauman (1998) merecem créditos, pois jogam luz sobre
a delicada questão que é a formação e firmação da identidade do sujeito na
sociedade pós-modernidade.
Os problemas referentes à constituição do sujeito têm despertado intensa
reflexão em diferentes campos do conhecimento, isso porque se observa um cenário
mundial que passou por profundas transformações sociais e econômicas,
caracterizando uma nova configuração do capitalismo no ocidente. Essa
configuração Fredric Jameson (2004, p. 22) denomina de “capitalismo tardio”, que
caracteriza a pós-modernidade em termos socioeconômicos. De acordo com o
crítico, “[q]ualquer ponto de vista a respeito do pós-modernismo na cultura é ao
mesmo tempo uma posição política, implícita ou explícita, com respeito à natureza
do capitalismo multinacional em nossos dias” (JAMESON, 2004, p. 29).
A pós-modernidade, segundo Jameson (2004), operou uma mudança de
ordem global quando o capitalismo intensificou suas formas e forças, ampliando-se
pelas corporações internacionais e pela crescente superação de fronteiras
nacionais. Nesse sentido, o termo “pós-moderno” é visto de forma mais genérica e
complexa, pois envolve tanto o movimento desenfreado da tecnologia da informação
e da indústria de consumo. O termo “pós-modernismo” é caracterizado como um
conjunto de práticas culturais que conduz à transformação da esfera cultural na
sociedade atual, em que ocorre a erosão “da fronteira entre a alta cultura e a
chamada cultura comercial ou de massa” (JAMESON, 2004, p. 3).
De outra banda, o pensador inglês Terry Eagleton (1998, p. 7) conceitua a
pós-modernidade como “uma linha de pensamento que questiona as noções
clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a ideia de progresso ou
35
emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas”. Eagleton (1998,
p. 7), vê o mundo atual como “contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível”
que se entrecruzam num “conjunto de culturas ou interpretações desunificadas
gerando um certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da
história e das normas, em relação às idiossincrasias e a coerência de identidades”.
A produção cultural pós-moderna, seja na erosão entre as fronteiras culta e
popular (JAMESON, 2004), seja instabilidade e imprevisibilidade (EAGLETON,
1998), encontra na cultura do narcisismo a resposta pela fragmentação do sujeito
em sociedade. Nessa direção, Giddens (2002, p. 160) explica que a cultura do
narcisismo, detalhada por Christopher Lasch ao lançar um olhar mais apurado sobre
as estratégias de sobrevivência privatizadas na cultura moderna, ainda impera na
alta modernidade. Nesse contexto, o consumismo faz com que o sujeito veja seu
entorno social como cercado por espelhos. Nessa profusão, as imagens do “eu” se
multiplicam. Numa sociedade dominada pelas aparências (ainda que aparências
possam enganar), o sujeito volta todas as suas energias à aparência de um “eu”
socialmente valorizado.
Em Modernidade e Identidade (2002), Giddens argumenta que, ao se discutir
a identidade do sujeito, essa deve ser observada à luz da reflexividade. As
transformações na identidade e a globalização são os dois polos da dialética do local
e do global nas condições da “alta modernidade” (GIDDENS, 2002, p. 36). Por isso,
o estabelecimento de conexões sociais de grande amplitude faz com que essa fase
da modernidade seja vista como uma “cultura do risco” (GIDDENS, 2002, p. 11).
A alta modernidade remete à modernidade tardia. Ela é apocalíptica não
porque se dirija em direção ao caos, mas porque introduz riscos que as gerações
anteriores não tiveram que enfrentar. Esse período rompe o referencial protetor da
pequena comunidade e da tradição, substituindo-as por organizações muito maiores
e impessoais, obrigando o sujeito à reflexão contínua diante dos ambientes
cambiantes globais que oferecem riscos a toda hora.
No âmbito da reflexividade, a identidade do sujeito é inerentemente frágil.
Embora o sujeito viva uma vida local, “os mundos fenomênicos da maioria [dos
sujeitos] são globais” (GIDDENS, 2002, p. 174). Nesses termos, a vida na alta
modernidade sugere que o sujeito sustente uma identidade que precisa ser
constantemente revista num cenário que alterna experiências cambiantes e
tendências e estilos fragmentados. Por isso, de tempos em tempos, a reflexividade
36
da identidade nunca cessa. É preciso que o sujeito questione a si mesmo acerca da
forma que age e aquilo que pensa.
Nesse ínterim, a construção das identidades implica em alguns dilemas
consoantes às tribulações do “eu”. Primeiro, tem-se a unificação versus
fragmentação (GIDDENS, 2002, p. 175-176), pois, em nível global, a tendência da
dispersão impõe suas forças, em que sujeito fica difícil unificar a narrativa coerente
sobre si mesmo diante das rápidas e rotineiras mudanças operadas pela
globalização. A fragmentação significa uma diversificação dos contextos de
interação, fazendo com que um mesmo sujeito incorpore os diferentes contextos de
sua vida numa narrativa integrada, fazendo dos diversos “eus” um só.
Como segundo dilema, tem-se a discordância entre a impotência e a
apropriação (GIDDENS, 2002, p. 177-179). Com a globalização, o sujeito tem
grandes oportunidades de se apropriar de diversas formas de vida, de interagir em
diversos ambientes (virtuais ou não) e, ao mesmo tempo, tornar-se “diferenciado”
dos demais. No entanto, essas vantagens não vêm gratuitamente. No pacote vêm
inclusas situações em que o sentimento de impotência foge ao controle.
O terceiro dilema contrapõe autoridade e incerteza (GIDDENS, 2002, p. 180-
181). Na sociedade globalizada, não existem autoridades definitivas, pois a tradição
já não tem poder como fonte primeira de autoridade, como ocorria nas sociedades
pré-modernas. O pluralismo agrega a todos. Todos servem-se de uma fatia desse
bolo que é a globalização: a ciência, a religião, os governos, todos participam de
decisões sobre temas que se cruzam e inter-relacionam. E ainda que essa
pluralidade forneça opções das mais variadas ao sujeito, as incertezas sobrepujam
a melhor das escolhas.
Experiência personalizada versus experiência mercantilizada é o quarto
dilema (GIDDENS, 2002, p. 182-186). Padrões de consumo promovidos pela
propaganda influenciam a formação da identidade do sujeito, promovendo estilos de
vida. A mídia publicitária estimula estilos de vida que vão ao encontro dos padrões
que a sociedade de consumo estabelece. Muitas vezes, o projeto reflexivo de se
construir uma identidade se traduz na posse de determinados bens. Aqui, o “ter”
sobrepuja o “ser”.
Em A identidade cultural na pós-modernidade (2005), Hall explica que essas
mudanças que culminaram num sujeito fragmentado devem-se às rápidas mudanças
da sociedade, fazendo com que a identidade perca sua unidade e estabilidade, a
37
ponto de fragmentar-se. O professor inglês se destaca no âmbito dos estudos
culturais contemporâneos, pois apresenta várias dimensões das implicações da
globalização e da liquidez moderna na criação da identidade individual e coletiva. O
sujeito na compreensão iluminista, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno são,
para Hall (2005), as três compreensões principais da identidade, que podem ser
inscritas em tempos históricos determinados. Interessa no estudo o sujeito pós-
moderno, que deriva do questionamento das estruturas modernas.
O sujeito pós-moderno é caracterizado pela ausência de uma identidade fixa,
essencial ou permanente, uma vez que a mesma se transforma continuamente e à
medida que as representações do sistema cultural que o rodeia vão variando. Não
há mais uma identidade unificada e estável, mas várias identidades que são
contraditórias ou não-resolvidas (HALL, 2005, p. 12). As estruturas sociais mudaram.
Agora, a paisagem sócio-cultural é outra. Novas identidades são projetadas num
mundo provisório, variável e problemático. À medida que os sistemas de significação
e representação cultural se multiplicam, o sujeito é confrontado por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma
das quais poderia se identificar ainda que temporariamente (HALL, 2005, p. 13).
Segundo Hall (2005, p. 13), a “identidade torna-se uma ‘celebração móvel’”. A
identidade na modernidade líquida é resultado direto das formas pelas quais o
sujeito é representado ou interpelado nos sistemas culturais de que faz parte. Ela é,
histórica e não biologicamente definida. Nessa direção, tem-se um sujeito que
desliza por múltiplas identidades com uma perda da estabilidade do sentido de si, o
que gera a “crise de identidade” (HALL, 2005, p. 9).
O sujeito pós-moderno é obrigado a flexibilizar-se em seu processo identitário,
pois é “atravessado” por diferentes divisões e antagonismos sociais que resultam em
variadas posições de sujeito, como identidades fragmentadas, inacabadas, abertas e
contraditórias. O que gera a crise de identidade é a ação conjunta de um duplo
deslocamento, a descentralização dos indivíduos tanto do seu lugar no mundo social
e cultural quanto de si mesmos.
A identidade não corresponde mais a realidade. Para Hall, o sujeito:
[...] previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais ‘lá fora’ e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as
38
‘necessidades’ objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático (HALL, 2005, p. 12).
Nesse contexto, mister observar que a “crise de identidade” (HALL, 2005) não
decorre de um processo simples que permeia os discursos de estudiosos da área
cultural. A crise faz
[...] parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social (HALL, 2005, p. 7).
A globalização, cuja hélice é movida pelo progresso das tecnologias de
transporte e comunicação, liga o local ao global. A maior interdependência global
leva, consequentemente, a um colapso das identidades tradicionais, ligadas ao local,
e produz uma diversidade cada vez maior de estilos e identidades (HALL, 2005, p.
74). Tem-se, assim, a hibridização e homogeneização de informações, estilos,
costumes, ideias, ideologias. Identidades que antes eram locais podem ser
encontradas agora em qualquer local.
Por outro lado, certos padrões se encontram em todos os lugares. Por
exemplo, os padrões que se relacionam ao consumo:
Os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global criam possibilidades de ‘identidades partilhadas’ – como ‘consumidores’ para os mesmos bens, ‘clientes’ para os mesmos serviços, ‘públicos’ para as mesmas mensagens e imagens – entre pessoas que estão bastante distantes umas das outras no espaço e no tempo (HALL, 2005, p. 74).
O sintoma da crise é, por sua vez, o declínio das velhas identidades tecidas
na modernidade, que foram a marca da estabilização do mundo social moderno.
Com o declínio, o conceito de identidade também passa por mudanças na medida
em que a visão de um sujeito integrado se liquefaz, e feito líquido, escorre, pinga,
transborda os antigos paradigmas de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade.
O processo vivido pelo sujeito pós-moderno deslocou a sensação de uma
identidade como objeto fixo e substituiu pela insegurança, angústia, incerteza e
precariedade. Bauman também se posiciona a respeito da identidade. Para ele, o
39
“eixo da estratégia de vida pós-moderna não é fazer a identidade deter-se – mas
evitar que se fixe” (BAUMAN, 1998b, p. 114). Indubitavelmente, tratar de dois
tempos distintos elencados por Bauman – o sólido e o líquido – faz com que a
discussão recaia sobre a questão da identidade, seu estabelecimento e firmação, na
contemporaneidade.
Na obra Identidade (2005), Bauman argumenta que a identidade passa por
um processo contínuo de construção, permanecendo assim, sempre incompleta.
Isso porque a modernidade gerou um mundo fluído, onde as identidades se
desfazem facilmente acompanhando o ritmo da vida líquida. Segundo o sociólogo
polonês,
[a] facilidade de se desfazer de uma identidade no momento em que ela deixa de ser satisfatória, ou deixa de ser atraente pela competição com outras identidades mais sedutoras, é muito mais importante do que o realismo da identidade buscada ou momentaneamente apropriada (BAUMAN, 2005, p. 26)
A razão moderna de ser do sujeito era inspirada pela razão cartesiana, e
situava-se no intervalo dos fenômenos: o presente é um renascer contínuo, diante
de um passado que é sonho. Já na época líquido-moderna, o mundo está repartido
em fragmentos mal coordenados, enquanto as nossas existências individuais são
fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados (BAUMAN, 2005, p.
18-19).
No que tange na afirmação da identidade, para os habitantes da sociedade
líquido-moderna, atitudes como cuidar da coesão, apegar-se às regras, agir de
acordo com precedentes e manter-se fiel à lógica da continuidade, flutuando na
onda das oportunidades mutáveis e de curta duração, constituem opções
promissoras (BAUMAN, 2005, p. 60).
Na modernidade em sua fase sólida, a identidade passou da ideia de
atribuição para a ideia de realização (BAUMAN, 1998b, p. 30). Nesse período, o
esforço individual é que fazia a diferença. Era preciso buscar forças na
individualidade, então lançada como sendo um projeto de vida. A identidade deveria
ser erigida sistematicamente, de degrau em degrau. Essa “construção” da identidade
exigia do sujeito a percepção clara do resultado final a longo prazo. Havia, assim,
“um vínculo firme e irrevogável entre a ordem social como projeto e a vida individual
como projeto, sendo a última impensável sem a primeira” (BAUMAN, 1998b, p. 31).
40
Na obra O mal-estar da pós-modernidade (1998b), Baumam destaca que o
projeto moderno prometia libertar o indivíduo da identidade herdada. Por outro lado,
esse projeto não se posicionou contra a maneira de se “forjar” uma identidade e nem
como mantê-la, pois somente transformou a identidade, que era questão de
atribuição do Estado em comunhão com o sujeito, em realização. Então, a
identidade tornou-se uma tarefa individual e da responsabilidade do próprio sujeito.
Na complexa vida líquida, “os seres humanos já não mais ‘nascem’ em suas
identidades”, explica o sociólogo polonês (2001, p. 40). O caráter identitário da vida
social é absorvido e descartado da esfera individual. A cada dia, a identidade precisa
ser revista. A cada dia, o sujeito precisa buscar entre as vivências líquidas razão e
força para compreender que já não mais nasce sujeito e cidadão em prol da
(re)construção da identidade.
Bauman (1998b, p. 91) destaca que, psiquicamente, a “modernidade trata da
identidade: da verdade de que a existência ainda não se dar aqui, ser uma tarefa,
uma missão, uma responsabilidade”, enfim, é algo a ser buscado pelo sujeito no
contexto da vida social. Como o restante dos padrões, a identidade permanece à
frente, e é preciso buscá-la, dia após dia, pois “a identidade [está] permanentemente
inconsumada, [...] toda realização é meramente uma pálida cópia do seu modelo”
(BAUMAN, 1998b, p. 91-92).
Numa sociedade onde a ideia de simulacro impera, a identidade do sujeito
entra no arcabouço como fruto do grande projeto proposto pela modernidade.
Atualmente, a identidade do sujeito se coloca como um dos grandes enigmas a ser
desvendado ou reconstituído. É ponto de inesgotável discussão, um fenômeno
inquietante que reivindica reflexão. A “‘identidade’ agora se tornou um prisma,
através do qual aspectos tópicos da vida contemporânea são localizados, agarrados
e examinados” (BAUMAN, 2008a, p. 178).
O sujeito não teme mais a ambivalência nem busca mais fixar identidades
“sólidas”. Ser ambivalente tornou-se um valor admirado por políticos, empresários e
simpatizantes. Num mundo liquefeito, onde tudo é transitório e precário, ter
identidade fixa e bem definida não é atrativo, antes é sinal de desconfiança e
desprezo.
O mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos disponíveis projetados para imediata obsolescência. Num mundo como esse, as identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca
41
de roupa. O horror da nova situação é que todo diligente trabalho de construção pode mostrar-se inútil; e o fascínio da nova situação, por outro lado, se acha no fato de não estar comprometida por experiências passadas, de nunca ser irrevogavelmente anulada, sempre ‘mantendo as opções abertas’ (BAUMAN, 1998b, p. 112-113).
O presente é continuo. O passado é abolido da ideia de tempo, por isso,
manter as “opções abertas” significa não se apegar a nada, nem a ninguém. Além
disso, na vida líquida não há “para frente” ou “para trás”, o que pesa é o tempo
constituído de “agoras”, ininterruptos. O sujeito não se deixa levar por nenhum tipo
de forma de vida que enseja durabilidade o suficiente para se tornar um tédio e cair
na mesmice, na rotina. Desse modo, para o sujeito “a dificuldade já não é descobrir,
inventar, construir, convocar (ou mesmo comprar) uma identidade, mas como
impedi-la de ser firme e aderir depressa demais ao corpo” (BAUMAN, 1998b, p.
114), impedindo-o de “fluir” livremente.
A reflexão desenvolvida até aqui a respeito da identidade na pós modernidade
denota que a identidade como objeto fixo não é mais possível dentro de um espaço
urbano que perdeu a força ordenadora que tinha na modernidade. Os modos de vida
das cidades brasileira e portuguesa das três décadas finais do século XX e anos
iniciais do século XXI “diluíram” essa função, substituindo-a pela insegurança,
instabilidade, incerteza e precariedade.
A formação dos espaços urbanos nas últimas quatro décadas, seja nas
diferenças entre os estratos sociais que foram demarcando o que é centro e o que é
periferia, seja nos modos de ver, sentir e agir esses espaços por parte do cidadão,
caracterizam a instabilidade e precariedade do “ser” que culmina,
irremediavelmente, em sua fragmentação. De modo claro, os esclarecimentos a
respeito da fragmentação do sujeito resultam da vida arbitrária que o mesmo leva no
espaço urbano a partir da década de 1970. Quanto à alteridade, o espaço urbano
fomenta o surgimento de formas de vida que exigem do sujeito capacidades jamais
vistas no que tange à vivência com o outro.
A seção que segue trata da questão voltada à alteridade e à marginalização
do sujeito no contexto da cidade. Usa-se, para tanto, as ideias de Augé (1994),
Adorno (1994), Bauman (2004, 2006b), Boaventura de Sousa Santos (1995), Ester
Limonad (2000), Gomes (1994, 2000), K. Lynch (1999), Canclini (1999), Hall (2005)
e Nelson Brissac Peixoto (1987).
42
1.3 Sujeito e espaço urbano: da alteridade à marginalização
Presta atenção, bacana, a cidade não é mais a mesma, tem gente demais, tem mendigo demais na cidade, apanhando papel, disputando o ponto com a gente, um montão vivendo debaixo de marquise, estamos sempre expulsando vagabundo de fora, tem até falso mendigo disputando o nosso papel com a gente (FONSECA, 1994, p. 613).
A cidade, incompatível com qualquer atuação regeneradora, libertadora do tempo, da hierarquia, pois sempre alguém está acima, mandando em você, dispondo de você, ou abaixo, invejando você, querendo o que é seu (LACERDA, 2009, p. 154).
Ainda que as epígrafes sejam excertos de textos literários de dois autores
brasileiros, Rubem Fonseca e Rodrigo Lacerda, as referências são oportunas para
que se discuta a cidade à luz das suas modificações arquitetônicas constantes, bem
como lançar um olhar mais crítico sobre as mudanças que o ritmo acelerado e o
consumismo imprimem em seu habitante.
As falas das personagens do conto e do romance, respectivamente: “[p]resta
atenção, bacana, a cidade não é mais a mesma” (FONSECA, 1994, p. 613); ; “[a]
cidade, incompatível com qualquer atuação regeneradora” (LACERDA, 2009, p.
154), reforçam a mutabilidade que a polis vem sofrendo nos últimos três séculos. A
vida nas grandes cidades partilha formas de subjetivação e sociabilidades
semelhantes, que são forjadas pela propaganda, pelos meios audiovisuais, pelos
emaranhados de edifícios, pelo consumismo latente nos shopping centers, pelo
trânsito frenético das ruas.
As marcas e grifes que padronizam o sujeito que só é igual quando o assunto
é consumo. Contudo, o mesmo sujeito mostra toda sua heterogeneidade quando a
questão pede um olhar mais atencioso para com o seu semelhante. Esses fatores
vêm ao encontro do modelo de sociedade baseado no capitalismo tardio, que
condiciona valores e comportamentos sociais impulsionado pelo reino dos objetos,
do conforto, lazer de massa e de um tipo de consumismo denominado por Bauman
(2008b, p. 19) de “fetichismo da subjetividade”.
A cidade no âmbito da pós-modernidade, ela é o lugar que comporta a
maioria da população. Diariamente, milhares de praticantes do espaço circulam
pelas ruas, avenidas, centros comerciais, edifícios e periferia. Esses se beneficiam
43
daquilo que as grandes cidades podem oferecer, mas também sofrem as
consequências do ritmo acelerado e incessante que a globalização opera em todos
os setores da sociedade. A cidade pode tanto causar atração como repulsa para o
cidadão. Se a cidade atrai pelo progresso e pela sua praticidade, ela pode, também,
tornar-se um lugar de repulsa pelos vários problemas que angustiam seus cidadãos.
No contexto da alteridade, a individualidade é um problema que impossibilita o
sujeito ver e se comunicar com os outros. Nesse sentido, o dilema da alteridade
fomenta discussões acerca da marginalização que os modos de vida urbano
impõem ao sujeito no espaço urbano brasileiro e português.
A cidade inserida ao vórtice da globalização aceita e suporta a todos que nela
desejam viver, ainda que entre seus habitantes muitas vezes isso seja motivo de
conflitos de toda ordem. Por isso, o espaço urbano é um lugar de difícil leitura, uma
vez que o humano e o concreto estão em constante conflito. Segundo Renato
Cordeiro Gomes, em seu livro Todas as cidades, a cidade (1994), o espaço citadino
é um lugar que acolhe para si o conceito de “chama”, que é o humano e o fluido: os
relacionamentos que não encontram solidez e se desfazem. Em contraponto, tem-se
o conceito de “cristal”, que é o concreto e o rígido (asfalto, edifícios), representando
a cidade e a impossibilidade da alteridade plena, coerente e sólida.
Em outra obra, Cartografias urbanas: representações da cidade na literatura
(2000), Gomes esboça um breve panorama do desenvolvimento do Brasil. Conforme
o crítico, este desenvolvimento se deu de modo contraditório, pois viu-se, em nível
internacional, as mudanças radicais e velozes, que colocaram em discussão as
verdades da modernidade. Enquanto isso, no Brasil, verificou-se, a partir dos anos
70, o
[...] desenvolvimento da sociedade de consumo, que condiciona valores e comportamentos sociais ligados ao modo de vida impulsionado pelo reino dos objetos, do conforto e lazer de massa, pano de fundo para o surgimento de uma nova cultura urbana (GOMES, 2000, p. 67).
Nos acalorados discursos oficiais, a ideia de um projeto que pudesse frear o
atraso brasileiro esbarrou numa estrutura ultrapassada. Nesse embate, viu-se a
fragmentação “individualista do corpo social, que redundou no consumismo privado,
na retração individualista, na atomização dos seres, no hedonismo, no narcisismo,
na esterilização das crenças e dos dogmas comuns” (GOMES, 2000, p. 67). Como
44
consequência, viu-se cruzamento de elementos comuns que culminaram na crise
que refletiu na “cacofonia da cidade” (GOMES, 2000), em que a miséria, a
degradação e a alienação se acentuaram devido ao descaso dos governantes para
com a população.
Seguindo a linha de pensamento de Gomes (2000), Ester Limonad, no ensaio
“A cidade na pós-modernidade: entre a ficção e a realidade” (2000, p. 94), assevera
que a velocidade dos acontecimentos e das transformações ocorridas, em todos os
âmbitos da vida social, cultural política e econômica nas últimas décadas do século
XX, supera em muito a capacidade de assimilação por parte da produção científica e
defronta-nos com um problema restritivo, a ser superado no estudo dos fatos
sociais.
Esse problema, segundo Limonad (2000, p. 94), insere-se à revolução
tecnológica, em especial a informática, que fez com que a cidade deixasse de ser o
locus privilegiado da produção e torna-se espaço do consumo. Nesse processo de
consumo, se consome não apenas na cidade, mas a cidade enquanto objeto e
representação. Por isso, a cidade da sociedade pós-industrial, pretensamente pós-
moderna:
[...] apresenta-se-nos como um produto do desenvolvimento tecnológico vis-à-vis à deterioração do meio ambiente, do desperdício. Os serviços agigantam-se; as relações sociais e a vida material deterioram-se, acompanhando a degradação da natureza e do próprio homem (LIMONAD, 2000, p. 94).
No que tange em deliberar sobre a condição social, política e econômica de
Portugal, Boaventura de Sousa Santos, em Pela mão de Alice: o social e o político
na pós-modernidade (1995, p. 57), expressa que o país luso é uma sociedade de
desenvolvimento intermédio e por isso é um país periférico. As cidades portuguesas
sofrem com o atraso em muitos aspectos. Esses aspectos envolvem traçados
arquitetônicos esquecidos no tempo, uma precária infraestrutura que não
acompanhou o processo evolutivo postulado pela modernidade e um atraso
econômico que, passados alguns anos do século XXI, mostra-se mais acirrado na
crise financeira que assola a Europa. Desse modo, o cidadão luso sente que sua
história não se mostra progressiva, e isso solapa sua identidade ao ponto de
fragmentá-la.
45
As cidades brasileira e portuguesa das três décadas finais do século XX e
primeiros anos do século XXI apresentam-se como uma imensa arena de signos
gastos e dispersos, que fazem a ponte entre a urbe e o sujeito. Como resultado
disso, tem-se a erosão das sociabilidades, a desestabilização do homem sem
ideologias e ideais que vê crescer os índices de corrupção e o ápice da violência.
Na visão de Gomes (2000), a cidade tornou-se:
[m]orada incerta que é um “agora” precário a ser substituído por outro agora igualmente precário, quando a modernidade perde fé em si mesma e o presente faz a crítica do futuro e passa a desalojá-lo, e ganham força os conflitos de ordem cultural (GOMES, 2000, p. 68).
Na eminência dos conflitos urbanos, precariedade, incerteza, dúvida,
desesperança são fatores que passaram a desalojar o sujeito do seu canto seguro.
Acuado, o mesmo precisou sair à rua para ocupar e dividir os espaços públicos e
privados com os habitantes que se acotovelavam nos centros que se formavam ou
já estavam formados. Viver na cidade é uma experiência ambígua (BAUMAN, 2004,
p. 61). Na cena urbana, o relacionamento eu-outro é mercantilizado, e frágeis laços
de afeto têm a possibilidade de serem desfeitos frente a qualquer desagrado das
partes. O sujeito vive uma vida incompleta e vê no “possuir” uma maneira de suprir
essa carência, numa sociedade em que o capital, o poder, o consumo e a
competição geram um sujeito nada inclinado à cooperação e à solidariedade.
Em outra obra não menos importante, Confiança e medo na cidade (2006b),
Bauman disserta a respeito do medo e da obsessão por segurança que o homem
ocidental experimenta em tempos líquidos. As cidades, segundo o sociólogo,
[...] converteram-se no depósito de lixo de problemas de origem mundial. Os seus habitantes e aqueles que os representam confrontam-se habitualmente com uma tarefa impossível, seja para onde for que viremos os olhos: a [tarefa] de encontrar soluções locais para contradições globais (BAUMAN, 2006b, p. 28).
As contradições de ordem global sinalizam que a função ordenadora da
cidade está morrendo, lentamente. A agonia do espaço urbano deve-se a problemas
dos mais diversos, como superpopulação, precariedade de serviços públicos,
violência social, desemprego, entre outros. A cidade está fraturada por cruzamento
de signos, imagens e acontecimentos que reformulam a cada dia os lugares
antropológicos em detrimento dos “não-lugares”.
46
Com o “derretimento” das utopias da modernidade, as relações se liquefazem,
tomando rumos incertos e impedem a solidificação das identidades por meio das
relações estabelecidas pelos sujeitos, ao contrário dos lugares antropológicos. Para
elucidar isso, Augé (1994) faz um paralelo entre os lugares tradicionais e os lugares
criados pela “modernidade líquida”. Os lugares tradicionais, explica o autor, são os
lugares antropológicos, que referem à:
[...] construção concreta e simbólica do espaço que não poderia dar conta, somente por ela, das vicissitudes e contradições da vida social, mas à qual se referem todos aqueles [lugares] a quem ela designa um lugar (AUGÉ, 1994, p. 51).
Em Não-lugares (1994), Augé analisa a relação do homem com o espaço, a
questão da identidade e da coletividade. Ele designa “não-lugar” todos os
dispositivos e métodos que visam à circulação de pessoas, em oposição à noção
sociológica de “lugar”, isto é, à ideia de uma cultura localizada no tempo e no
espaço.
A título de exemplificação, rodovias, avenidas, hotéis, shoppings, aeroportos,
redes de fast-food, campos de refugiados, caixas eletrônicos, são vistos como “não-
lugares”, pois são todos destinados à passagem. “Não-lugares” não são ambientes
de habitação, e não requerem que se esteja sempre em contato com eles a ponto de
serem criadas relações duradouras. São lugares que são iguais em todas as
cidades, e planejados previamente para os sujeitos que os visitarão. Neles, são
inibidas quaisquer relações que fujam da transitoriedade para os quais os “não-
lugares” se destinam, como as relações de proximidade e troca de afetos.
Um lugar se define pelas relações e identidades estabelecidas pelos sujeitos
a ele vinculado. Ao contrário dos lugares antropológicos, o “não-lugar” é o espaço
que inibe relações e identidades específicas. Os lugares antropológicos “criam um
social orgânico, os ‘não-lugares’ criam tensão solitária” (AUGÉ, 1994, p. 87), onde
as relações entre sujeitos se dão no âmbito da indiferença e impessoalidade.
Essa percepção vem ao encontro da visão de Bauman, que expressa que as
cidades da modernidade líquida são
[o]s campos de batalha sobre os quais convergem, por um lado, os poderes mundiais e, por outro, as razões de ser obstinadas de cada um dos seus habitantes, que se entrechocam e combatem em busca de um novo acordo satisfatório ou minimamente tolerável: um tipo de convivência que se espera poder constituir uma paz duradoura, mas que, regra geral,
47
não consegue ser mais do que um armistício, uma trégua que permite a reparação das defesas que abrem brechas e a reorganização das tropas em vista do próximo confronto (BAUMAN, 2006b, p. 31-32).
A acuidade do sociólogo tem tonalidade bélica. Na obstinada luta pela
sobrevivência, o sujeito faz de cada dia uma “queda de braço” que impossibilita a
plenitude da alteridade, levando a sua marginalização. Hall (2005) corrobora com
essa questão e diz que quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado
global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da
mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados (HALL, 2005, p.
75), mais constata-se que as identidades se desvincularam; ou seja, estão
desalojadas de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem “flutuar
livremente”’.
Visivelmente, no “mundo líquido”, o aumento da densidade demográfica não é
proporcional ao aumento da densidade psicológica. Nas ruas das grandes cidades,
no interior dos estabelecimentos comerciais e de lazer, os olhares perderam a
serenidade de observar as pessoas e a realidade com profundidade.
Alegoricamente, a velocidade faz das cenas do cotidiano um imenso outdoor, uma
grande e interligada imagem de um quebra-cabeça que passa aos olhos do
transeunte rapidamente, tal qual a sensação que tem alguém que observa a
paisagem urbana da janela de um automóvel.
A sensação de estar perdido nos “não-lugares”, que são comuns a qualquer
esfera social, econômica e cultural da sociedade globalizada, caracteriza a
inquietude do sujeito, cujo cotidiano é acelerado e claustrofóbico. O sujeito da
modernidade líquida vive em cenários repletos de imagens, em que “[t]udo é apenas
lixo. [...] Tudo se torna apenas indícios de exaustão e decadência daquilo que se
converteu em simulacro de si mesmo” (PEIXOTO, 1987, p. 219).
A ilusória sensação de pertencimento ao “não-lugar” é reflexos da produção
de aparências, que Nelson Brissac Peixoto, em Cenários em ruínas (1987, p. 204),
vê como “uma verdadeira recriação ilusória do mundo, através de imagens
arquitetônicas fictícias, inscritas em fachadas decoradas, outdoors e superfícies
espelhadas”. Caminhar por galerias comercias, parar em frente às vitrinas das lojas
dos shopping centers em busca de um objeto que sacie o desejo de posse. Essa
postura confere à atitude comum do sujeito urbano que se assemelha ao flâneur da
época de Baudelaire.
48
O flâneur do século XIX é aquele sujeito que, em seu passeio pela cidade
oitocentista, consegue organizar, interpretar e gozar as transformações urbanas da
sua época. Benjamin (1989) acreditava que o olhar, fruto do perambular, tinha mais
validade que o trabalho. Na sociedade líquido-moderna, essa tarefa é cada vez mais
onerosa e carente de heroicidade. Não há para o sujeito tempo de sobra para gastar
em flaneries que não auferem lucro.
Além disso, seria, para o flâneur, difícil apreender a matéria constituinte das
múltiplas narrativas e discursos locais, nacionais, transnacionais e ciberespaciais
que são latentes na experiência urbana atual, que “não é mais uma construção do
espaço. A cidade agora é apenas uma imagem desenhada num painel publicitário”
(PEIXOTO, 1987, p. 204).
No afã de exemplificar as formas da velocidade, deslocamentos,
comportamentos, câmbios urbanos, múltiplas experiências vivenciais e divagações
de procedência diversa, Néstor García Canclini, em Consumidores e cidadãos:
conflitos multiculturais da globalização (1999), disserta acerca da impossibilidade de
satisfação e realização por parte do flâneur na modernidade tardia. Segundo o autor,
“narrar é saber que já não é possível a experiência da ordem que o flâneur esperava
estabelecer [...] Agora a cidade é como um videoclipe” (CANCLINI, 1999, p. 155),
uma montagem fervescente de imagens descontínuas que se cruzam e se plasmam,
dando cor a uma realidade de simulacros e mascaramentos do sujeito social.
49
2. A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO EM TEMPOS LÍQUIDOS
Argia. Cidades invisíveis (Aquarela em papel). Disponível em: http:// ascidadesvisitadas.blogspot.com.br/. Acesso em: 23 jun. 2013.
50
Antonio Candido escreve em Literatura e Sociedade (1967) sobre a mediação
entre obra literária e sociedade. Para o autor, só é possível compreender a literatura,
de qualquer época, “fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente
íntegra” (CANDIDO, 1967, p. 4). Nessa perspectiva, tem-se o entendimento de que
não é mais possível separar a literatura do corpo social, da história e do ideológico.
Ler, interpretar e compreender o texto literário, seja em verso ou em prosa, é
também estudar sociologia, filosofia, antropologia, psicanálise, biografia.
A partir dessa visão, é possível afirmar que a literatura é uma construção
histórica, em que o escritor sofre influências do contexto social. O texto literário,
como produto artístico, possibilita de modo mais abrangente a tomada de
compreensão e de consciência do mundo por parte do escritor e do leitor. De modo
abrangente, ainda que não se refira diretamente a uma realidade histórica, o texto
literário é portador de uma realidade polissêmica e plurissignificativa, permitindo ao
leitor a organização e compreensão do universo simbólico a partir da linguagem.
A narrativa literária estabelece uma transcendência sobre a realidade a partir
de uma construção discursiva pelos caminhos do imaginário, sendo que os fatos
chegam ao leitor como representação de algo, problematizando a história. Essas
observações vão ao encontro da perspectiva sociológica do estudo da literatura, que
vai além da tradicional visão de que o texto literário ampara-se, quase que
exclusivamente, na formação de leitores. A literatura é, como já se salientou,
resultado dessa “fundição” entre texto e contexto de que fala Candido (1967)12.
A narrativa é um fenômeno social à medida que resulta de convicções,
códigos, crenças e costumes, e enquanto tal exprime a sociedade, modificando-a ou
até mesmo negando-a. Na literatura contemporânea, a noção do referente como
“real” e a “verdade” em primeira instância é problematizada de modo que o estatuto
da representação da obra literária não mais se firma numa “verdade única”, fechada
em si mesma, totalizada.
Ao tratar dessa questão, Wolfang Iser (1983, p. 385) crê que o texto ficcional
não é de todo isento de realidade, pois “o ficcional contém elementos do real sem
que se esgote na transcrição desse real”. Para o autor de O Fictício e o imaginário:
perspectiva de uma antropologia literária (1983), a preparação de um imaginário por
12 Aqui cabe uma ressalva. Candido condiciona que o estudo do elemento social do texto literário não deve ser visto como mera relação de condicionamento meio-obra, mas numa perspectiva de “interiorização” do elemento social como elemento estruturador da obra (CANDIDO, 1967, p. 4).
51
parte do escritor alude que o “fingir” no ato criativo se relaciona “com a realidade
retomada pelo texto”. O texto literário “recria” a vivência social do homem,
transportando-o da realidade para a ficção.
Contudo, fingir não é mentir, mas tão somente “re-criar” o real por meio de
processo que Iser (1983) denomina como seleção, combinação e auto-
desnudamento13. Porquanto, esse processo pode, na esfera da representação, dar
conta das particularidades e das amplas significações do pensar, sentir e agir do
homem em sociedade. O ato de fingir, portanto,
[...] ganha a sua marca própria, que é a de provocar a repetição no texto da realidade, atribuindo por meio dessa repetição, uma configuração ao imaginário, pela qual a realidade repetida se transforma em signo e o imaginário em efeito do que assim é referido (ISER, 1983, p. 14).
Consoante à narrativa literária, Roland Barthes, em A escrita do romance
(2004, p. 35), enfatiza que “[é] a sociedade que impõe o romance. É, pois, pela
evidência de sua intenção, que se reconhece o pacto que liga, por toda a solenidade
da arte, o escritor à sociedade”. As transformações pelas quais passou e passa o
romance fundamentam-se naquilo que dá razão de ser deste gênero: atingir uma
forma ideal de representação do mundo com seu eminente protagonista, o homem.
As observações de Iser (1983), Candido (1967) e Barthes (2004) são
plausíveis para que se discuta a respeito do gênero romanesco. Desde sua gênese,
o romance é alvo de especulações reformulações e críticas num amplo interesse em
desvendar o modo como ele, enquanto obra de arte, se aproxima do ser humano e
seu meio. A par disso, esse capítulo estrutura-se em duas seções.
A primeira seção pondera discussões sobre a narrativa e a representação da
cidade como “lugar” da fragmentação e marginalização do sujeito. Para tanto, são
utilizadas referências de Gomes (1999), Fredric Jameson (2004), André Bueno
(2002), Roland Barthes (1985), Rejane C. Rocha (2011), Tânia Pellegrini (1996,
2002) e Ângela Maria Dias (2005).
13 Seleção é uma transgressão de limites na medida em que os elementos do real acolhidos pelo texto se desvinculam então da estruturação semântica ou sistemática dos sistemas de signos que foram tomados. Combinação cria relacionamentos intratextuais. Como o relacionamento é um produto do fingir, ele se revela, como a intencionalidade do texto. Auto-indicação ou autodesnundamento ocasiona um ato de duplicação peculiar designado pela expressão “como se” que por sua vez, indica que o mundo representado no texto deve ser visto como se fosse um mundo, embora não o seja, pois o mundo textual não significa aquilo que diz (ISER, 1996, p. 14-15).
52
Para discorrer sobre o dilema da alteridade no espaço urbano e como a
narrativa produzida no Brasil e em Portugal depois de 1970 trata dessa questão, a
segunda seção lança mão das ideias de Regina Dalcastagnè (2003, 2007, 2008),
Lucia Helena (2008), Silviano Santiago (2002), Seixo (1986), Ernesto Sabato (2003),
Theodor Adorno (1983, 1994), Barthes (2002), Nelson Brissac Peixoto (1987), Jaime
Ginzburg (2004), Michel Maffesoli (1984), Maurice Merleau-Ponty (1994), Marc Augé
(1994) e Zygmunt Bauman (1998a, 1998b, 2001, 2004, 2008).
2.1 Como andar na cidade movediça? fragmentação e marginalização do
sujeito na narrativa pós-moderna
Na gênese dos tempos, havia o barro, a pedra, os homens e um sonho em
comum: edificar a cidade. A cidade do século XIX é a Babel que prosperou com a
perda das conexões e a falta de referência aos valores do passado, o que resultou
na fragmentação do sujeito e da sua experiência. Os fragmentos da modernidade
em sua fase sólida – autoritarismo, mudanças estruturais na cidade, revolução
industrial, afirmação do capitalismo, novos modos de vida, aceleração do tempo e
formas de sociabilidades – estão liquefeitos e deslizam pelas cidades da
modernidade líquida, que os absorve tal qual uma esponja, de modo que “a
percepção urbana nega-se a operar como totalidade” (GOMES, 1994, p. 33).
Na esteira do capitalismo tardio (JAMESON, 2004), é preciso um olhar crítico
tanto sobre as grandes cidades brasileiras como as portuguesas. A fragmentação é
algo peculiar para ambas em muitos aspectos, resultado da violência, do
desemprego, da corrupção, da miséria, da exclusão e da marginalização. Estar
fragmentado refere que o sujeito não consegue “ler” o espaço urbano como fazia o
flâneur do século XIX.
Ao conceber à cidade o status de livro de registros que anota as vivências do
sujeito urbano, Gomes (1994) alerta que a leitura fica incompleta, pois tentar uma
leitura:
[...] globalizante, totalizadora, desse livro de registro, tentar uma reconstituição imaginária, através de suas folhas e pranchas, da cidade “como é ou foi agora”, é tarefa impossível. O livro é composto de pedaços, fragmentos, trechos apagados pelo tempo, rasuras – de textos que jamais serão recompostos na íntegra (GOMES, 1994, p. 24).
53
A percepção de Gomes a respeito do imaginário da cidade na modernidade
líquida caracteriza o labor de muitos escritores que buscam fazer colagens desses
fragmentos perdidos em meio às esquinas, em meio à multidão, em meio ao
emaranhados dos edifícios e às galerias dos centros comerciais que ocupam o
espaço citadino. Historicamente, as sociedades brasileira e portuguesa viveram
estados de exceção: o Brasil assolado pela Ditadura Militar que se estendeu até
1985, quando o cidadão pode comungar da democracia; e Portugal, que com a
Revolução dos Cravos, em 1974, passou a “respirar” mudanças sociais.
A partir desses eventos históricos, romancistas passaram a produzir uma
ficção voltada a outras questões sociais que não aos regimes ditatoriais de seus
países. Passou-se a narrar todas as formas de mazelas humanas que o espaço
urbano das três décadas finais do século XX podia oferecer, como estranheza e
fragmentação do sujeito, o que instiga os romancistas a deliberar sobre os dilemas
da alteridade no contexto urbano.
André Bueno delibera sobre a forma de como o universo da cidade pode lidar
com a estranheza, com a fragmentação, com a alteridade. Em Formas da Crise:
estudos de literatura, cultura e sociedade (2000), o crítico argumenta que:
[...] pode-se sugerir que trata disso fornecendo uma imaginação crítica e ampliada da vida cotidiana e histórica, dando espaço para que o leitor confronte, digamos assim, uma estranheza (a da forma literária) com outra estranheza (a opacidade da vida cotidiana, os fetiches da mercadoria, os sinais dispersos, a apenas aparente falta de hierarquia na reprodução do cotidiano) (BUENO, 2000, p. 222-223).
No cerne da estranheza, uma grande parte das narrativas tem representado a
cidade por meio de discursos libertos de qualquer alento, catarse, consolo ou utopia
que venham escamotear a realidade. A cidade líquida impõe ao sujeito modos
diferenciados de perceber, sentir e compreender o espaço em que vive. O capital, o
poder, o consumismo e a competição fazem com que se tenha a “liquefação” dos
instintos de solidariedade e de cooperação entre os seres humanos.
Com isso, lembra Bauman (2001, p. 29), é preciso que o sujeito abandone a
esperança de uma possível totalidade, tanto presente quanto futura. Na
modernidade líquida não é mais possível ao sujeito idealizar uma sociedade segura
e fraterna. A fragmentação é um dado histórico que solapa as sociedades brasileira
e portuguesa.
54
A título de exemplificação, as transformações no espaço físico da cidade e
nos modos de ser e agir do homem foi vista por Charles Baudelaire que
acompanhou de perto as transformações urbanísticas de Paris na segunda metade
do século XIX. Com sua poesia combativa, Baudelaire foi o escritor que primeiro
assimilou o caráter brusco e inesperado que caracterizou a transitoriedade do
homem dentro da cidade moderna no fervor do seu desenvolvimento industrial. Na
poesia baudelairiana, a cidade é palco de contradições e também campo para
resolvê-las. Os poemas da obra As flores do mal (1985) são metáforas da
destruição, da morte e da degeneração, verdadeiras alegorias que servem de norte
para que se tenha uma ideia das transformações na cidade e no tipo humano à
época.
Com o fim dos tempos de censura no Brasil e em Portugal, a temática
literatura e cidade têm despertado pesquisas em diversos campos do saber. Os
estudos abrangem os campos da História, Sociologia, Filosofia e Antropologia, que
veem no espaço citadino a concentração de linguagens e vivências que compõem o
difuso e complexo discurso acerca da fragmentária vida urbana. A cidade na
modernidade líquida é constituída de fragmentos, haja vista que sua base,
alicerçada na ideia de uma modernidade sólida, ainda sente os resquícios dos
tempos “nebulosos” que assolaram as Histórias brasileira e portuguesa.
As narrativas produzidas nesses dois países tecem essa “cidade-texto”,
voltadas aos processos de subjetivação figurados na construção de personagens
sem rumo, insatisfeitas com a vida e sem experiências úteis para transmitir. No caso
brasileiro, tem-se como exemplos os romances Eles eram muitos cavalos (2001), de
Ruffato, O mez da grippe (1981), de Valêncio Xavier. No caso da narrativa
portuguesa, tem-se Balada da praia dos cães (1983), de José Cardoso Pires, A
caverna (2000), de José Saramago e Amadeo (1984), de Mário Cláudio. Esses
romances juntam-se ao rol das muitas narrativas que permitem perceber a estreita
relação que a literatura mantêm com a vida urbana.
No artigo “A Forma do Real: a representação da cidade em Eles eram muitos
cavalos” (2011), Rejane C. Rocha argumenta que a narrativa contemporânea,
voltada à apreensão do espaço urbano e das formas de sociabilidades, constitui-se
na orla de dois elementos. Conforme Rocha (2011, p. 5), de um lado há o objeto em
si da representação: a urbe e sua realidade muitas vezes inapreensível e impossível
de ser narrada, composta por um cotidiano de violência, de disparidades sociais e
55
econômicas, de pequenas e grandes tragédias. De outro lado, temos a tradição
literária que desde o principio da modernidade, taxativamente escolheu o espaço
urbano como fonte de onde os escritores absorvem meios expressivos, como a
velocidade, a multidão, a industrialização.
Ao lançar mão de argumentos que deliberam sobre literatura e experiência
urbana, Pellegrini, no ensaio “Vazio cultural?” (1996), argumenta que a partir da
segunda metade do século XX, a cidade alcança outro papel na literatura brasileira.
Esse papel reserva-se a um “realismo alegórico que instalou-se nas cidades, lugar
símbolo da deterioração empreendida pelo capital”, que toma o espaço urbano como
“campo temático para suas obras: o caos urbano, a desumanização, a
incomunicabilidade, a individualização solitária e inevitável” (PELLEGRINI, 1996, p.
28).
Na mesma esteira, no artigo “A ficção brasileira hoje: os caminhos da cidade”
(2002), Pellegrini discute a literatura pós-ditadura, sinalizando que há uma “ficção
em trânsito”, o que caracteriza uma narrativa brasileira que revela um espaço urbano
ficcionalizado, abrigando significados novos e ampliando o seu espectro simbólico14.
Para a autora, de cenário que funcionava apenas como pano de fundo para idílios e
aventuras, a cidade pouco a pouco, foi se transformando numa possibilidade de
representação dos problemas sociais, até se metamorfosear num complexo corpo
vivo, de que os habitantes são a parte mais frágil (PELLEGRINI, 2002, p. 7).
Essa literatura em trânsito tem mostrado que a literatura de resistência de
certa forma ainda pulsa, só que agora menos politizada e mais fragmentária, bem
menos esperançosa. Na visão de Pellegrini (2002, p. 6), “esse período assiste à
gradativa introdução do pós-modernismo no Brasil, aqui entendido como a lógica
cultural do capitalismo tardio”15.
A temática trabalhada pela literatura no Brasil depois de 1970 do século XX
reflete a sua situação econômica e social, marcada pela desigualdade, e a sua
condição política, que atravessou a ditadura, a abertura e a redemocratização.
14 Nesse aspecto, a busca da expressão nacional, que representava o sentido agônico da convivência entre nacional e estrangeiro, já não é mais o único caminho da produção da literatura brasileira. Assiste-se, também, ao surgimento da busca de inserção no mercado, inclusive internacional, o que implica transformações significativas do código estético-literário, que aos poucos incorpora até, como se fossem naturais — claro que com as honrosas exceções de sempre —, descuidos, mesmices, obviedades e redundâncias na fatura, em busca de leitores cada vez mais apressados e interessados nos derivativos que a televisão oferece (PELLEGRINI, 2002, p. 6). 15 A autora faz uso da leitura da obra Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio (2004), de Fredric Jameson.
56
Nessa variação de temas, a presença do híbrido, do descontínuo, do provisório,
caracterizou uma ficção, que com o fim do regime militar, viu nascer novas questões
relacionadas aos grandes centros urbanos, como as drogas, a AIDS, a violência e
temas relacionados às minorias. Segundo Pellegrini (2002, p. 15), a ficção brasileira
criou um “corpo vivo”, que vem se revelando cada vez mais como “lócus horribilis,
que corresponde às nossas condições econômicas, sociais e políticas, neste início
de século tão cheio de presságios de todas as dimensões”.
Ângela Maria Dias, em “As cenas da crueldade: ficção brasileira
contemporânea e experiência urbana” (2005, p. 87), explica que essa temática não
consegue fugir à “recorrente perplexidade diante da experiência histórica,
ficcionalizada como absurda e inverossímil”. Ainda, “[p]ara além da crueldade da
convivência nas metrópoles ocupadas pelo presente perpétuo das imagens e pelo
cotejo dos males da desigualdade social, o real transparece como trauma” (DIAS,
2005, p. 87). Os argumentos da autora apontam para um presente perpétuo das
imagens da paisagem urbana contemporânea que está dominada por cenários
artificiais, simulacros, embalagens enganosas que impossibilitam ao sujeito captar a
realidade empírica.
Consoante a prosa portuguesa produzida depois de 1970, Carlos Reis (2004,
p. 16) argumenta que a narrativa lusa é marcada “pela crescente abertura a temas, a
valores e a estratégias discursivas pós-modernistas”. Nesse rol, romances de
autores como José Saramago, Almeida Faria, José Cardoso Pires, Lídia Jorge,
Augusto Abelaira e António Lobo Antunes não deixam de lançar um olhar aguçado
sobre o modo como se efetivam as questões voltadas à alteridade.
Em suas reflexões, Isabel Pires de Lima (1998, p. 4) volta-se à narrativa
portuguesa atual. A autora expressa que ver o romance português pós-moderno
implica observar a “especificidade do contexto político, social e cultural de um país
que, cortado por uma ditadura longa e anacrônica, não experienciou nem em
liberdade, nem em plenitude, o projeto moderno de emancipação”. Lima vê na
narrativa lusa traços pós-modernistas que trazem muito da metaficção historiográfica
de que fala Hutcheon (1991). A autora também percebe na narrativa de José
Saramago um exemplo dessa tendência pós-modernista.
Para tanto, a pesquisadora cita o romance Ensaio sobre a Cegueira,
publicado em 1995, como exemplo. Na obra, o narrador saramaguiano dá ao leitor
conhecer um mundo possível, alternativo ao mundo atual, que faz com que o leitor
57
abandone as leis deste último, passando a adotar outra perspectiva ontológica, ou
melhor: a mergulhar numa indeterminação ontológica de tipo pós-moderno.
A leitura feita até aqui sobre a narrativa contemporânea produzida no Brasil e
em Portugal, ainda que apontem mudanças quanto à estruturação e estilos, denota
que, indiscutivelmente, as narrativas brasileira e portuguesa refletem as
contradições das grandes cidades globalizadas, em detrimento das temáticas até
então consagradas nas tradições das letras brasileira e portuguesa, como a
problemática “nacional”.
De certo modo, o conceito de “nação”16, inspiração universalista, é oriundo
das metanarrativas da modernidade, e é desconstruído não apenas na teoria crítica,
mas também na criação literária pós-moderna. Nesse sentido, as narrativas
brasileira e portuguesa produzidas nas quatro últimas décadas são textos derivados
de uma experimentação estética e da valorização da heterogeneidade, difundida no
cotejo das diferenças sociais, da fragmentação do sujeito e da diluição da sua
identidade, bem como na marginalização do ser humano e no dilema da alteridade.
K. E. Schollhammer, em Ficção brasileira contemporânea (2009), define que o
“contemporâneo é aquele que, graças a uma diferença, uma defasagem ou um
anacronismo, é capaz de captar seu tempo e enxergá-lo” (SCHOLLHAMMER, 2009,
p. 9). A literatura contemporânea não é aquela “que representa a atualidade, a não
ser por uma inadequação, uma estranheza histórica que a faz perceber as zonas
marginais e obscuras do presente, que se afastam de sua lógica”
(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 10). Além disso, Schollhammer (1999, p. 30-31) dá
destaque à prosa pós-moderna que ganhou força a partir de 1980.
A fragmentação do sujeito na narrativa pós-moderna17 se dá,
concomitantemente, à tentativa de reconstrução da sua totalidade num mundo que
Bauman (2006, p. 36) vê cada vez menos convidativo. A próxima seção trata da
alteridade de maneira que se compreenda como a narrativa pós-moderna procura
representar um dos maiores dilemas das sociedades pós-modernas. O
16 Bauman argumenta que “nos tempos modernos a nação era a ‘outra face’ do Estado e a arma principal em sua luta pela soberania sobre o território e sua população. [...] O romance secular da nação com o Estado está chegando ao fim; não um divórcio, mas um arranjo de ‘viver juntos’ está substituindo a consagrada união conjugal fundada na lealdade incondicional” (BAUMAN, 2001, p. 211-212). 17 Essa questão acerca do “contemporâneo” e sobre o “pós-modernismo” na literatura será detalhada no capítulo 3 da dissertação, junto com a análise dos romances de Noll e Saramago.
58
relacionamento eu-outro e a fragmentação dos afetos18 na esfera da modernidade
líquida.
2.2 O dilema da alteridade: pensar, sentir, tocar o outro
Eu quero ler poesia, eu nunca tive um amigo, eu nunca recebi uma carta. Fico caminhando à noite pelos bares, eu tenho medo de dormir, eu tenho medo de acordar, acabo jogando sinuca a madrugada toda e indo dormir quando o sol já está acordando e eu completamente bêbado. Eu nasci neste tempo em que tudo acabou, eu não tenho futuro, eu não acredito em nada (ABREU, 1988, p. 63).
Tal qual o narrador do conto O rapaz mais triste do mundo (1988), de Caio
Fernando Abreu, a narrativa recente, seja de extração brasileira ou portuguesa,
partilha de personagens forjadas na impossibilidade de narrar um mundo seguro
para todos. A personagem da narrativa do escritor gaúcho caracteriza o sujeito
andarilho, que fragmentado em sua totalidade, flui, corre, desliza pelo espaço
urbano feito líquido, transbordando desesperança e ceticismo.
O narrador do conto de Abreu insere-se ao tipo de narrador apresentado por
Regina Dalcastagnè (2002). Na narrativa atual, há:
[n]arradores cheios de dúvidas ou abertamente mentirosos, personagens descarnadas e sem rumo “autores” que penetram no texto para se justificar diante de suas criaturas – esses seres confusos que preenchem a literatura contemporânea habitam um espaço não menos conturbado (DALCASTAGNÈ, 2002, p. 23).
O narrador do conto do escritor gaúcho está à margem do processo de
produção de bens e imagens. Ao tratar sobre “A auto-representação de grupos
marginalizados: tensões e estratégias na narrativa contemporânea” (2007), a autora
expressa que “[t]al como outras esferas de produção de discurso, o campo literário
brasileiro se configura como um espaço de exclusão” (DALCASTAGNÈ, 2007, p.
18).
18 A ideia, nesse estudo, não é deliberar sobre os afetos na visão da psicanálise, mas sim de perceber
como são rarefeitos os afetos nas relações sociais, e como essa ausência interfere diretamente na fragmentação do sujeito e dos seus vínculos.
59
A autora frisa que no âmbito das produções literárias, os autores brasileiros
são, em sua maioria, homens, brancos, moradores dos grandes centros urbanos e
de classe média. Nessa perspectiva, as personagens construídas nas suas
representações excluem o negro, pobre, homossexual, mendigo e prostituta, e
quando são incluídos, vem à cena numa posição secundária. Em contraponto a esse
prisma de exclusão, a pesquisadora discute a tensão presente em textos de
escritores provenientes de outros segmentos sociais, que têm de se contrapor a
essas representações já fixadas na tradição literária e, ao mesmo tempo, reafirmar a
legitimidade de sua própria construção. Cita, pois, Paulo Lins, com Cidade de Deus,
publicado em 1997, e Capão pecado, do escritor Ferréz, publicado em 2000
(DALCASTAGNÈ, 2007, p. 19) como exemplo disso.
Isso é revisto no artigo “Vozes nas sombras: representação e legitimidade na
narrativa contemporânea” (2008). No texto, Dalcastagné é enfática ao dizer que “[o]
silêncio dos marginalizados é coberto por vozes que se sobrepõem a ele, vozes que
buscam falar em nome deles” (DALCASTAGNÈ, 2008, p. 78) no âmbito da voz
autoral e a arte literária, entre legitimidade e autenticidade do narrado.
Nessa reflexão, necessário reportar-se ao importante texto de Theodor
Adorno, “Posição do narrador no romance contemporâneo”, publicado em 1958.
Adorno destaca a reificação das relações entre os sujeitos como elemento que
influencia diretamente na questão do discurso narrativo, haja vista o cabedal cultural
urbano19, responsável direto pela fragmentação do sujeito, que por meio da perda da
experiência e da memória coletiva transforma-se em um indivíduo isolado
socialmente.
Passado meio século de sua publicação, percebe-se o agravamento da
questão. A tese de Adorno conduz ao termo de difícil conceituação: epopeia
negativa. O pensamento do teórico acerca do narrador converge para a ideia de que
esse elemento é marcado pela negatividade e é estruturado a partir de três
elementos: o elemento social, o elemento histórico e o elemento individual. Esse
último condiz ao fato da não existência mais de um ego fixado e estável, mas da
verificação da ideia de que a construção do sujeito está em processo e em
transformação.
19 Entenda-se, nesse contexto, as mudanças sociais e culturais próprias da globalização.
60
Partindo do elemento individual, pode-se perceber que os romances
produzidos na modernidade líquida assemelham-se a epopeias negativas. Essas
narrativas são testemunhas de uma condição na qual o indivíduo liquida a si mesmo,
convergindo com a situação pré-individual no modo como esta um dia pareceu
endossar o mundo pleno de sentido (ADORNO, 1983, p. 273). O narrador, filiado a
essa perspectiva, mostra que sua constituição se dá através de um ângulo negativo.
Adorno reforça isso em sua tese ao lembrar que na epopeia clássica há afirmação
de uma coletividade que se firmava no herói. A negatividade se alicerça no fato de
que não há coletividade ou mesmo herói. A partir da negação desses elementos,
percebe-se que não há grandes feitos a serem narrados, mas sim uma subjetividade
que é convertida no seu contrário.
Segundo Adorno (1983, p. 269), “o que se desintegrou foi a identidade da
experiência, a vida contínua e articulada em si mesma, que só a postura do narrador
permite”, pois, “narrar algo significa, na verdade, ter algo especial a dizer, e
justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela estandardização e pela
mesmidade” (ADORNO, 1983, p. 270). Desse modo, depreende-se que a narrativa
fica impossibilitada de se concretizar numa sociedade em que não há interação
social e a alienação dos homens em relação a si mesmo se torna cada vez mais
institucionalizada.
Na narrativa pós-moderna não há espaços para heróis e nem tempo para atos
heroicos, nem tão pouco há aquele “lugar comum” da epopeia, para onde o herói
voltava depois de longas distâncias percorridas e lutas homéricas, fatos que lhe
restituíam o sentido da vida. Não há como o escritor narrar a cidade em sua
totalidade, pois, conforme Silviano Santiago (2002, p. 46), a pós-modernidade
“revela um narrador que olha para se informar, e, não, mergulhado na própria
experiência, doá-la a outrem. Na sociedade da imagem, o homem não mergulha
mais para dentro de si, em busca de um eu profundo”.
Por isso, o narrador pós-moderno recorre aos fragmentos figurativos de modo
disperso, e nunca uma imagem completa. É um tipo de narrador que quer extrair a si
da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele
narra da plateia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar, mas nunca
narra enquanto atuante (SANTIAGO, 2002, p. 52).
Vive-se numa sociedade em que o diálogo enquanto troca de opiniões sobre
ações que foram vivenciadas torna-se difícil. Essa constatação vai ao encontro da
61
tese desenvolvida por Santiago no ensaio “O narrador pós-moderno” (2002).
Segundo o crítico, “[a]s pessoas já não conseguem hoje narrar o que
experimentaram na própria pele” (SANTIAGO, 2002, p. 60). Por isso, “as narrativas
hoje são, por definição, quebradas. Sempre a recomeçar” (SANTIAGO, 2002, p. 54).
O narrador evidenciado por Santiago procura manter-se distante do fato
narrado. Olhar, espiar, flagrar, observar à distância são atitudes não apenas do
narrador pós-moderno, mas sim atitudes dos sujeitos que pertencem a sociedade do
olhar que encontram na aparência, no simulacro e na duplicidade sua expressão
mais completa (MAFFESOLI, 1984, p. 131).
Consoante a constituição contraditória e fragmentária do sujeito em seu
cotidiano, Michel Maffesoli expressa que é no jogo das aparências que se
desenvolve a vida do homem urbano no dinamismo das forças sociais. Em A
conquista do presente (1984), o filósofo explica que a teatralização da vida cotidiana
se dá quando o sujeito encena ser alguém que na verdade não é, usando máscaras
da aparência. Máscaras essas que ele pode mudar quando a situação exigir para
que, assim, ele se sinta inserido aos moldes da sociedade fetichista, voltada às
imagens e ao culto do consumo.
É na força da encenação diária do sujeito que pode-se compreender o
dinamismo das forças do sujeito que se mascara, ora para se “mostrar” superior ora
para se ocultar atrás da máscara do conformismo. A constatação de Peixoto (1987,
p. 204) de que o “mundo produzido como imagem” é fato comprovado na sociedade
atual, pois o sujeito relaciona-se antes com o objeto do que com seu semelhante.
Essa constatação que é recuperada nas palavras de Jameson (1995), ao
lembrar que no contexto da globalização, os sujeitos se relacionam antes com o
universo das imagens, para, num segundo momento, entrar em conta com o
produto. Para o crítico norte-americano, esse relacionamento com a imagem
“prende” o sujeito à teia do consumo, o que torna o mesmo incapaz de transcender a
esfera da objetividade.
O sujeito da modernidade líquida vive num universo saturado de clichês, em
que a banalização do espaço e das imagens projeta a descartabilidade não somente
dos objetos, mas também das pessoas. A cidade líquida não possibilita encontrar
rastro algum de identidades inteiriças, sólidas, mas apenas identidades “derretidas”,
sujeitos liquefeitos em sua constituição. No espaço urbano, os sujeitos tratam o
outro com indiferença, com impessoalidade, e “manter-se à distância parece a única
62
forma razoável de proceder” (BAUMAN, 2008, p. 93). Nesse contexto, o dilema da
alteridade ganha relevo e força, não podendo mais ser escamoteado ou tratado
como um problema de segunda ordem na categoria dos conflitos sociais.
A modernidade líquida propaga a necessidade do sujeito em seguir a mão
invisível do mercado, o que é uma obrigação caso ele queira manter sua cadeira
cativa, pois a vida na sociedade líquida-moderna “é uma versão perniciosa da dança
das cadeiras, jogada para valer” (BAUMAN, 2009, p. 10). Antes locais agora globais,
as contradições sinalizam que a função ordenadora da cidade está morrendo,
lentamente. A agonia do espaço urbano deve-se a problemas dos mais diversos,
como superpopulação, precariedade de serviços públicos, violência social,
desemprego, entre outros.
Consequentemente, o relacionamento eu-outro é mercantilizado, mostrando
que frágeis laços de afeto e relacionamentos profissionais estão aptos a serem
desfeitos, “derretidos” frente a qualquer desagrado. Nesse ponto, oportuno lembrar
das palavras de Theodor Adorno em sua tese “Educação após Auschwitz” (1994).
Na tese, o autor lembra de que o ocorrido no campo de concentração nazista não foi
um acontecimento isolado, mas algo que vem ao encontro de uma sociedade
reificada. Frieza, falta de amor e indiferença são condições formuladas ao longo da
história da Humanidade, e não foram exclusividade no Holocausto.
No círculo social da vida líquida, a alteridade sofre as consequências dessa
liquidez desmedida. Na cidade, não mais se tem o engajamento mútuo. Todos estão
ocupados o tempo todo, seja trabalhando na produção de objetos consumíveis, seja
consumindo. Bauman (2001) lança um olhar crítico sobre o dilema da alteridade na
sociedade atual, cujo cenário está desprovido de vínculos identitários coerentes e de
relações sinceras. Os relacionamentos seguem a lógica mercantil, que estimula o
descarte do que já foi consumido.
Bauman lança mão do pensamento do antropólogo Claude Lévi-Strauss, que
na obra Tristes Trópicos (1957), escreve sobre as duas estratégias de enfrentar a
alteridade: a antropoêmica e antropofágica. Interessa, aqui, a antropoêmica,
estratégia que se resume no ato de “‘vomitar’, cuspir os outros vistos como
incuravelmente estranhos e alheios: impedir o contato físico, o diálogo, a interação
social” (BAUMAN, 2001, p. 118). A vida na cidade traz em seu bojo a fama de ser
uma experiência que desperta sentimentos desencontrados, atrai e repele ao
63
mesmo tempo. Por isso mesmo, a homogeneidade social é descartada do círculo de
convivência.
No círculo globalizado da alteridade, relações amorosas, familiares,
profissionais são vistas com receio e desconfiança diante de um possível
relacionamento duradouro. Se a liquidez, como já foi expresso antes, é a grande
virtude do sujeito na atualidade, a durabilidade dos contatos e relacionamentos é
menosprezada. Bauman (2008b) reconhece nessa postura do sujeito da sociedade
líquido-moderna um consumidor acostumado às regras do mercado. Esse indivíduo
deseja aplacar seus anseios de consumo por algo novo que deve ser descartado
assim que o desejo for consumado ou que uma nova “mercadoria” seja ofertada.
Essa lógica é que dita as regras nos relacionamentos na atualidade. Segundo o
autor, a sociedade globalizada se distingue por uma reconstrução das relações
humanas a partir do padrão e à semelhança das relações entre os consumidores e
os objetos de consumo (BAUMAN, 2008b, p. 19).
Na obra Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria
(2008b), Bauman enfatiza que a cultura de consumo transforma os sujeitos em
mercadorias20. Fato que eles aceitam pacificamente e de forma alienada. Dentro
dessa lógica, percebe-se o esvaziamento do sentido das relações sociais, que vem
de mão dada com uma ameaça iminente ao consumidor, de que ele se torne
também uma mercadoria.
Próximo às ideias de Karl Marx acerca do fetichismo e da reificação, Bauman
chama esse fenômeno de “fetichismo da subjetividade” (2008b), em que o sujeito
assume aspecto de mercadoria para responder aos anseios da demanda do
mercado. Como exemplos, cita-se o aprimoramento profissional do sujeito, sendo
que para subir um degrau na carreira o mesmo não mede esforços para “puxar o
tapete” de alguém que possa representar um obstáculo à sua ascensão. Ainda, tem-
se a ideia fixa de “quem vai ao ar, perde lugar”, em que a mais pequena distração
pode representar a exclusão. Aliado ao desejo de ser sempre e sempre mais
competitivo, o sujeito demanda cuidados com o corpo (postura, forma de falar,
trajes, aparência física), afim de ser “consumível”.
20 Karl Marx adverte que o caráter místico da mercadoria não provém, portanto, de seu valor de uso, tampouco do conteúdo das determinações de valor, mas da autonomização das coisas objetivadas pelos produtores que, na modernidade capitalista, assume a forma de mercadoria (MARX, 1985a, V. 1, Tomo 1 e 2, p. 70).
64
O “fetichismo da subjetividade” advém da liquefação do “mundo bom e
seguro” que a modernidade em sua fase sólida construiu. A modernidade líquida
“derreteu” o ideal de uma sociedade transparente, em que nada de obscuro ou
impenetrável se colocasse no caminho do olhar. Em outras palavras, uma sociedade
em que nada estragasse a harmonia na relação eu-outro; nada “fora do lugar”; um
mundo sem “sujeira”, sem estranhos, sem impedimentos à felicidade (BAUMAN,
1998, p. 21).
No âmbito da alteridade, a vida líquida não permite ao sujeito firmar laços
duradouros. Tudo é construído com vistas ao consumo. Na obra Amor Líquido:
sobre a fragilidade dos laços humanos (2004, p. 10), Bauman argumenta que a
temeridade da aproximação do outro impede a concretização dos afetos, pois “é
preciso diluir as relações para que possamos consumi-las”. No coração da cidade, a
indiferença e a velocidade impede que se olhe o outro pelo ângulo daqueles que
estão impedidos de participar e impedidos de se mover. Aqueles que não têm poder
aquisitivo para consumir os bens ditados pela moda passageira, estão fora do jogo.
Ao grupo daqueles que não resistiram à dança das cadeiras podem se incluir
os desempregados, os mendigos, os estrangeiros, os deficientes físicos, os usuários
de drogas psicoativas, prostitutas, homossexuais. Esses representam o grupo
indigesto que podem atrapalhar a harmonia e a imagem social. São esses os
estranhos que, na percepção de Bauman (1998a, p. 28), não tem mais valia para o
mundo ordeiro, e “não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo”,
e que precisam, portanto, serem vomitados, afastados.
Nessa condição, subtende-se que o relacionamento eu-outro se liquefaz
diante da necessidade da convivência, e que só não acontece devido o receio, medo
ou egoísmo que se instalou entre os corações urbanos, tal qual uma parede de
vidro, em que se pode ver outrem, mas não se aproximar. É bem verdade que o
mundo é o que o sujeito vê e que, contudo, precisa aprender a vê-lo como se
apresenta21 (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 16).
21 Este redimensionamento do olhar para o campo da percepção traz em seu bojo uma outra concepção de vida, de existência, fundamentadas na vertente da filosofia contemporânea designada Hermenêutica fenomenológica, a qual se filia Maurice Merleau-Ponty, e que trata do ser no mundo enquanto ser situado nas relações de co-existência. Para tanto, desconstrói o discurso pragmático e individualista predominante nas estruturas sociais contemporâneas.
65
Ver-por-ver, ver-para-crer são expressões do cotidiano que jogam luz sobre o
olhar enquanto prática de ver o outro sem um olhar de exclusão, indiferença22,
afastamento ou de repulsa. O olhar, então,
[...] transcende o limite do visível para o invisível. Ou seja, olhar não é apenas dirigir os olhos para perceber o ‘real’ fora de nós, é sobretudo, um mergulho no sensível. O visível e o invisível não são duas faces diferentes do olhar, mas o modo próprio e originário de apreensão da realidade (SILVA, 2012, p. 17).
A problemática da alteridade está relacionada à condição do sujeito urbano,
que em meio a uma rotina maçante e no acúmulo de imagens e signos, procura se
reconhecer e se identificar com imagens, grifes e personalidades que em nada
refletem sua identidade, e sim uma identidade fluida, fruto dos meios mediáticos.
Quanto ao dilema da alteridade, Celeste Olalquiaga, no texto “Megalópolis:
sensibilidades culturais contemporâneas” (1998, p. 16), é enfática ao afirmar que a
experiência urbana transparece sentimentos, emoções e sensações que “são
evocados mais efetivamente pela imagem da mídia, do que pela exposição direta de
contato e apreensão do outro”. No contexto atual, a alteridade conhece sua cisão
mais radical na época atual.
Nos muitos espaços urbanos da sociedade líquido-moderna, os
relacionamentos oxidam os elos da corrente dos relacionamentos sociais íntegros, o
outro é um obstáculo que precisa ser “vomitado”. De modo claro, a renúncia em
olhar ao outro com olhos que não sejam de “vomitar” e de excluir qualquer elo de
ligação ou proximidade gera, consequentemente, a marginalização. Nessa reflexão,
marginalização não se refere a sujeitos voltados ao mundo sórdido da criminalidade
em todas as suas ramificações. Marginalidade, no sentido de sujeitos que são
postos à margem da modernidade líquida.
Desse modo, a narrativa produzida na modernidade líquida traz personagens
que usam a máscara da diferença, representando os sujeitos fragmentados que
coabitam num espaço urbano predisposto à pluralidades, antagonismos, conflitos e
tensões. O olhar nada otimista através do qual filósofos e sociólogos veem a
problemática da alteridade na cena urbana “respinga” na literatura.
22 Jean-Paul Sartre destaca a importância do olhar do outro no congelamento de traços do ser-para-si como um em-si, tornando o outro objeto do olhar. A indiferença, escreve o filósofo, “é uma cegueira com relação aos outros. Quase não lhes dou atenção, ajo como se estivesse sozinho no mundo; toco de leve as pessoas como toco de leve paredes; evito-as como evito obstáculos” (SARTRE, 1997, p. 474).
66
Jaime Ginzburg, em “Cegueira e Literatura” (2004), elabora uma reflexão
sobre a problemática da constituição do sujeito. Segundo o crítico, a cegueira pode
ser lida levando-se em conta dois aspectos. No primeiro aspecto, ela vem
“associada conotativamente aos limites do conhecimento, à ilusão, à incerteza”
(GINZBURG, 2004, p. 57). Nesse caso, ela é vista como uma metáfora. Em outra
perspectiva, a cegueira é vista como “uma forma específica de experiência,
caracterizada pelo limite, pela exposição do ser humano, da incomunicabilidade, da
impossibilidade de viver senão em uma condição trágica” (GINZBURG, 2004, p. 57).
Em muitos dos romances escritos em língua portuguesa depois de 1970, a
cegueira, em seu sentido metafórico, pode ser relacionada à impossibilidade de os
sujeitos fragmentados “não querer ver” o outro, remetendo, logo, a experiência de
choque oriunda de relacionamentos fugazes e precários de um tempo líquido em
que são muitas as vendas que inibem o olhar.
Assim, como narrar o outro? É ponto pacífico que depois dos anos 70 do
século XX a ficção brasileira e lusa fixou-se como urbana, e funcionam como
tradutores dessa espécie de “lugar de pressão” nos seus múltiplos níveis. Um
desses níveis, em especial, traduz a exclusão da maior parte dos indivíduos do
sistema que ela representa (PELLEGRINI, 2002, p. 15), colocando o sujeito à
margem da sociedade.
A fragmentação do sujeito em muitas das narrativas brasileira e lusitana se dá
num espaço urbano conturbado, que não mais permite o relacionamento eu-outro; e
quando o faz, não deixa de escamotear posturas que velam os verdadeiros
interesses no conflituoso jogo da alteridade. Lucia Helena, em esclarecedor ensaio
denominado “Uma sociedade do olhar: reflexões sobre a ficção brasileira” (2008, p.
11), vê na narrativa atual a flagrante presença da sociedade do olhar. Isso porque há
um bombardeio de ícones que congestiona a paisagem urbana e, com isso, queira
ou não, o sujeito altera seus hábitos e costumes, altera a convivência, a percepção
de si mesmo e do outro. Nessa sociedade do olhar, todos espiam, mesmo que de
modo involuntário, mas isso não quer dizer que enxergam melhor.
Ainda que o olhar esteja associado ao interior do ser, voltado para o sentido
da co-existência, visando o encontro com o outro, “o voyerismo obrigatório” cancela,
em vez de abrir, as dimensões do que se vê” (HELENA, 2008, p.11). Nesse
paradoxo, o leitor não deixa de ser um expectador de imagens das que os
narradores pós-modernos lançam mão na sua escritura. São narrativas que,
67
conforme já se viu com Pellegrini (1999, 2005), são verdadeiras operações
metalinguísticas costuradas por uma mistura de linguagens e imagens.
Helena (2008) coloca a narrativa de João Gilberto Noll no rol das narrativas
que operam na categoria ficção-limite e na textualização do problema da imagem da
arte literária na década de 80 do século passado. Na tessitura dos romances
Bandoleiros (1985) e Fúria do corpo (1981), a autora vê uma “pedagogia do olhar”
(HELENA, 2008, p. 16), em que o caráter do espetáculo e da “teatralização da vida
cotidiana” instaura um empreendimento artístico que culmina na “fria” dramatização
da vida contingente. Dramatização essa que mostra tudo aquilo que se expôs no
estudo até aqui, a saber: a fragmentação de uma identidade fixada no modelo
cartesiano (modernidade) em substituição pela insegurança, angústia, incerteza e
precariedade, o que caracteriza a problemática constituição do sujeito na sociedade
líquido-moderna.
Consoante as ponderações entre alteridade e vida urbana, Regina
Dalcastagné, em “Sombras da cidade: o espaço da narrativa brasileira
contemporânea” (2003), crê que há no romance uma espécie de suspensão do
espaço, que deixou de ser descrito na sua concretude, em que não há para as
personagens a possibilidade de constituírem uma experiência palpável, em que a
incompatibilidade é voga, seja em relação ao espaço seja em relação ao outro.
Na perspectiva da narrativa portuguesa, Seixo (1986) explica que a alteridade
no romance luso firma-se “no nível da sua organização semântica”. Isto é, na
estruturação lógica dos elementos constitutivos da narrativa e no direcionamento
temático e, além disso, também no próprio discurso literário, ou em sua identificação
mimética. Para a teórica, o novo aspecto utilizado para denotar o sentido de
alteridade que a narrativa suscita tem como elemento maior a auto-referencialidade:
Ao apontar para si próprio que o texto, engrandecendo as marcas do seu projeto literário, pode ultrapassar-se e encontrar o seu ‘outro lado’, que não é nem o reflexo social, nem o estatuto simbólico ou mítico, nem a sua projeção de mundividência (SEIXO, 1986, p. 22-23).
Grosso modo, as narrativas brasileira e portuguesa comungam da ideia de
Ernesto Sabato a respeito da personagem que o romance traz à cena. Em O escritor
e seus fantasmas (2003), o autor lembra que a personagem da narrativa atual é o
espelho do sujeito que se lançou “cegamente à conquista do mundo exterior,
preocupado tão somente com o manejo das coisas”, e que por isso “acabou por
68
coisificar-se, caindo no mundo bruto em que rege o determinismo cego” (SABATO,
2003, p. 84).
Por sua vez, as narrativas brasileira e portuguesa produzida nas últimas
quatro décadas têm revelado personagens fragmentadas em sua constituição.
Personagens que não ascendem a totalidade como se lia em muitos romances do
século XVIII. O passado da cidade não se coaduna com o tempo presente,
tampouco com o futuro. O sujeito sucumbe ao caudal de urbanidade e socialidade
que a cidade induz, pois o processo vivido pelo sujeito pós-moderno denota que os
vínculos na cidade líquida parecem oxidar cada vez mais os elos da corrente que
ligam os sujeitos entre si e em comunidade, elos esses que foram substituídos pela
insegurança, angústia, incerteza e precariedade.
O romance não ascende à pura imaginação, nem tende ser apenas simulacro
de uma realidade dada ao escritor anteriormente, e sim busca transitar numa
espécie de um lugar mais propício que possa potencializar a reflexão de si e do
outro, sem que o leitor se dê conta disso. Por isso, reforça Sabato (2003, p. 37), “o
grande tema da literatura não é mais a aventura do homem lançado na conquista do
mundo externo, mas que explora os abismos e covas de sua própria alma”, na busca
de entender a si mesmo e ao outro.
69
3. OS SUJEITOS FRAGMENTADOS DE ENSAIO SOBRE A
CEGUEIRA E HOTEL ATLÂNTICO
Capas. Disponível em: https://www.google.com.br/ search?q=capas+dos+livros+ensaio+sobre+a+cegueira+e+hotel+atlantico. Acesso em: 20 jun. 2013.
70
A prerrogativa de Antonio Candido (1967, p. 68) de que a literatura é “um
sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na
medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a” possibilita
compreender o posicionamento do crítico a respeito de que a obra literária é
resultante de um “fazer” e “pensar” históricos, em que o escritor sofre influências do
contexto sócio-histórico no ato de produzir sua escritura ficcional.
Em sua tese, Candido (1967) tece considerações sobre a crítica literária
sociológica e o modo como esta constrói a análise da obra literária. O sociólogo
defende uma crítica literária que possa verificar como a realidade social se
transforma em componente da estrutura da obra literária, de modo que pode ser
estudada em si mesma, e aponta que só o conhecimento da obra permite
compreender a função que a mesma exerce sobre o leitor.
Candido (1967, p. 4) enfatiza que a busca pela “unidade” da obra literária
somente pode ser compreendida quando houver a fundição do texto com o contexto.
O prisma social relegado à obra literária apresenta dois aspectos. O primeiro refere
que a concepção da obra de arte tem é valorada a partir dos valores da sociedade
em que é produzida, e estes permanecem na sua estrutura. O segundo aspecto
atenta para o fato de que a obra de arte influencia os seres humanos, produzindo
um efeito de reafirmação de valores sociais ou questionamentos destes, provocando
novas concepções de mundo e de conduta (CANDIDO, 1967, p. 19).
Consoante ao romance, gênero em foco nessa dissertação, os aspectos
elencados por Candido (1967) são passíveis de serem observados no estudo. Tanto
na estrutura do texto literário como na abordagem e nas temáticas utilizadas pelos
escritores, a narrativa pós-moderna não deixa escamotear as rápidas e constantes
mudanças evidenciadas no cenário global, antes sim traz a lume um mal-estar de
toda ordem que ora aflige ora denigre os sujeitos urbanos.
No contexto das relações entre literatura e sociedade à luz das
transformações da modernidade líquida, o romance é a arte que traduz em suas
linhas a condensação das incertezas e questionamentos diante de um mundo
globalizado que se mostra fragmentado, veloz, mediático, instável e efêmero. Nas
quatro últimas décadas, o gênero passou por mudanças que vão desde a
representação verossímil, quase fotográfica da vida, como se viu no romance
realista do século XIX, para outra mudança, em que os fatos narrados refletem o
caráter denso e fragmentado da vida do sujeito em sociedade. Com isso, na
71
modernidade líquida – tempo da “liquidez” da alteridade –, a representação da
realidade passou a ser sugerida e questionada a todo o momento, para que o texto
literário tenha sentido.
No tocante à literatura brasileira e à literatura portuguesa, nas quatro últimas
décadas, tem-se percebido que o espaço urbano tem sido objeto de representação
por parte dos escritores. A narrativa atual mapeia a trajetória do sujeito por um
espaço em que o sentido do “outro” está relacionado com o sentido social, e, as
vivências de alteridade são construídas e reconstruídas de acordo com as
experiências e as necessidades de sobrevivência que a vida na sociedade líquido-
moderna impõe.
Gomes (1994, p. 1), atento à literatura produzida nos anos finais do século
XX, enfatiza que ela é resultante de um “tempo pós-utópico, em que o presente
desaloja o futuro enquanto ‘terra prometida’, pondo sob suspeita as certezas que a
modernidade anunciava”. Para o crítico, a literatura, filha desse tempo de subtração
dessas certezas, tornou-se problema, como foi para as vanguardas, e constitui
elemento forte da pauta das questões pós-modernas (GOMES, 1994, p. 1).
No que tange à temática que envolve o espaço urbano e as vivências e
experiências do citadino, na narrativa pós-moderna a fragmentação do sujeito
ocorre, concomitantemente, à liquefação da alteridade, em que a relação eu-outro
somatiza a ambiguidade, a precariedade e a instabilidade dos relacionamentos. Os
sujeitos que coabitam os globalizados espaços urbanos vivem uma constante
relação de antipatia, em que os laços de afeto e proximidade com o outro acarretam
na marginalização do citadino.
Nesse sentido, o romance pós-moderno sinaliza uma “liquefação” da boa
sociedade, fator que dá margem a mal-estar de toda ordem. Com a dissipação do
“mal-branco”, não é possível concretizar uma boa sociedade, justa e igualitária. os
sujeitos põem à margem os bons costumes e valores antes cultivados, e
concretizam seus verdadeiros desejos e intenções, julgando não poder ser vistas por
ninguém. A civilidade é posta em xeque, e não há mais barreiras de valores ou
pudor. A narrativa revela a degradação humana em seu ápice.
A literatura de extração urbana representa a cidade e seu habitante por meio
de discursos libertos de qualquer alento, catarse, consolo ou utopia que possam
escamotear a realidade social. Conforme Dalcastagnè (2002, p. 31), a imagem da
cidade nos textos literários se impõe na tessitura ficcional, pois “o espaço urbano,
72
além de ser um espaço de aglutinação, é, antes de tudo, um território de
segregação”.
Se por um lado tem-se a crença de que o romance está em crise, tem-se, por
outro lado, escritores como José Saramago e João Gilberto Noll que percebem
nesse gênero literário a oportunidade para a representação de um tempo em crise.
Nessa direção, as “alteridades literárias” de duas culturas distintas – Portugal e
Brasil – auxiliam a refletir a respeito de como as narrativas desses escritores vêm
marcadas pelo espaço onde se configuram, bem como são marcadas pelas
temporalidades que as tornam possíveis e que de alguma maneira exprimem.
As “alteridades literárias” evidenciadas em Saramago e Noll permitem ver de
que maneira ocorrem os confrontos do cotidiano e auxiliam a pensar que nos rastros
da literatura se esboça uma “leitura” do homem e seu contexto social, como enfatiza
Candido (1967). No caso de Ensaio sobre a cegueira e Hotel Atlântico, objetos de
análise nesse estudo, tem-se a abertura para que se busque a representação das
vivências do sujeito no espaço urbano, observando-se os eixos temáticos
“alteridade”, “fragmentação” e “marginalização”.
As considerações acerca dos romances possibilitam refletir e discutir a
literatura pós-moderna num viés que possibilite aproximá-los, levando em conta a
desconstituição do “eu”, representado pela fragmentação do sujeito da sua paulatina
marginalização nos meandros relacionais evidenciados no espaço urbano. Essas
narrativas, por sua vez, constituem um imaginário providencial para a representação
do estranhamento da vida cotidiana citadina que marginaliza o sujeito.
O capítulo que encerra a dissertação é estruturado em duas seções. A
primeira seção traz a fortuna crítica da obra do escritor português a partir dos
romances da “fase pedra”. Ainda, elenca aspectos que inscrevem as narrativas da
“fase pedra” na pós-modernidade. A última parte dessa seção traz a leitura e análise
do Ensaio sobre a cegueira (1995). A segunda seção inicia com a fortuna crítica da
obra do escritor João Gilberto Noll para, depois, trazer uma leitura crítica de Hotel
Atlântico.
3.1 José Saramago e os romances da “fase pedra”
A crítica literária e a historiografia da cultura portuguesa e brasileira que se
têm dedicado à análise da produção literária portuguesa das últimas quatro décadas
73
são unânimes em afirmar que a Revolução dos Cravos, movimento militar ocorrido
em abril de 1974, demarcou o início de uma nova etapa da história de Portugal. A
essa nova etapa condizem transformações tanto de ordem política e ideológica,
aquisição de novos hábitos culturais, sociais e mesmo pela descoberta ou
instauração de uma nova “psicologia” coletiva, novos comportamentos e formas de
estar na vida. Nas questões de ordem estética, a arte passa por mudanças que
venham a se aproximar da representação da realidade contingente. A literatura é,
sem dúvidas, a mais abrangida.
Do ponto de vista formal e estético, a literatura lusa necessitava de uma
“nova” escrita que viesse a dar conta desse momento pós-revolução. A
“necessidade de tudo reconstruir”, escreve José Rodrigues de Paiva, em
“Revolução, renovação: caminhos do romance português no século XX” (2009, p. 2),
faz com que a representação ficcional das radicais e necessárias transformações
tenha de passar pela própria escrita que estava “abalada nas suas estruturas e
quebrada na sua organicidade canônica, fragmentada, desestruturada, tal como
esse mundo arrasado que era preciso soerguer dos escombros” (PAIVA, 2009, p. 3).
O espírito renovador observado no cenário político e cultural com o fim da
Revolução dos Cravos se estendeu aos domínios da literatura e, obviamente, no
romance. No caso da ficção portuguesa, a “nova” escrita literária objetivou:
[...] ampliar algumas experiências de ordem estética já anteriormente intentadas, prosseguindo um caminho de renovação textual (sobretudo estrutural) começado a trilhar, principalmente no romance, por alguns autores já nos anos de 1960, em particular pelos que promoveram a saída estética do impasse e do esgotamento em que o neo-realismo fizera mergulhar a narrativa ficcional (PAIVA, 2009, p. 2).
Maria Alzira Seixo, no artigo “Narrativa e ficção: problemas de tempo e
espaço na literatura européia do pós-modernismo” (1994, p. 111), expressa que
certos modos mais salientes do romance português pós-moderno “remetem
simultaneamente para a auto-reflexividade e para a tomada de posição junto do
terreno social”. De um modo geral, o posicionamento “junto ao terreno social” é
flagrado nos romances de José Saramago (1922-2010), pois suas personagens
apresentam uma constante preocupação com os conflitos humanos, sejam esses de
ordem psicológica ou de ordem social, suscitando, pois, reflexões a respeito da
condição humana em sociedade.
74
Saramago conheceu a fama e o reconhecimento a partir de 1991, quando
recebeu o prêmio da Associação Portuguesa de Escritores (APE), com o romance O
Evangelho Segundo Jesus Cristo. Pelo conjunto de sua obra, recebeu, em 1995, o
prêmio “Camões”; e, em 1998, foi agraciado com o prêmio “Nobel de Literatura”.
Nesse estudo, opta-se por textos que fazem uma leitura crítica da narrativa
saramaguiana publicada a partir de 1995. Isso porque o escritor mesmo proferiu em
palestra datada de 1998, em Turim, que sua obra pode ser vista sob dois momentos
distintos: a fase “estátua” e a fase “pedra”. Consoante à primeira fase, Saramago
observa que nela ele descrevia a estátua em seu exterior, em sua superfície.
O que é a estátua? A estátua é a superfície da pedra [...] é o resultado daquilo que foi retirado da pedra, a estátua é o que ficou depois do trabalho que retirou pedra a pedra [...] Então é como se eu tivesse ao longo destes livros todos andado a descrever essa estátua [...] porque quando o acabei [...] não sabia que tinha andado a descrever uma estátua, para isso tive de perceber o que é que acontecia quando deixávamos de descrever e passávamos a entrar na pedra (SARAMAGO, 1998, s/p.).
A esse momento, inserem-se as obras Terra do pecado (1947), Manual de
pintura e caligrafia (1977), Levantado do chão (1980), Memorial do convento (1982),
O ano da morte de Ricardo Reis (1984), A jangada de pedra (1986), História do
cerco de Lisboa (1989) e O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991).
A fase “pedra” corresponde ao interno da estátua, em que “a tentativa de
entrar na pedra é como quem diz entrar no mais profundo de nós”, explica
Saramago (1998, s/p). A esse momento, correspondem os romances Ensaio sobre a
cegueira (1995), Todos os nomes (1997), A caverna (2000), O homem duplicado
(2002), Ensaio sobre a lucidez (2004), As intermitências da morte (2005), A viagem
do elefante (2008) e Claraboia (2011).
Os romances dessa fase têm como características uma linguagem discursiva
mais próxima da oralidade, em que a pontuação convencional de diálogos é
descartada para dar lugar a um discurso mais fluido, vindo a configurar num traço
estilístico do romancista. Além disso, as narrativas escritas a partir de 1995 trazem
também a discussão sobre os diversos tipos de mal-estar que assolam a
Humanidade, representados através do recurso à alegoria, em que Saramago
mantém seu viés humanístico visível na fase “estátua”, porém vista sob um prisma
atual. Nessa direção, alguns estudos voltados à segunda fase são elencados para
que se compreenda esse período de transição.
75
Consoante a prosa portuguesa produzida depois de 1970, Carlos Reis, em
“Romance e história depois da revolução: José Saramago e a ficção portuguesa
contemporânea” (1994, p. 16), argumenta que a narrativa lusa é marcada “pela
crescente abertura a temas, a valores e a estratégias discursivas pós-modernistas”.
O romance português das três últimas décadas instaura uma dinamicidade que traz
o amálgama entre diálogo crítico e discurso histórico e social, mistura essa que é
mediada por narrativas que analisam o contexto histórico-social e propõem, a partir
disso, novos olhares sobre o sujeito em sociedade.
Essa visão corrobora com o exposto por Seixo (1986), que destaca que, nos
romances portugueses da atualidade, é marcante a presença do aspecto de
“alteridade”. A pesquisadora cita como exemplo disso a produção ficcional de
Saramago. Em A palavra do romance (1986), a autora discorre a respeito desses
aspectos das realizações escriturais lusas, unindo a textualidade à auto-
referencialidade que a escritura romanesca passa a adotar, em Portugal, nas últimas
décadas.
Em outra obra, Lugares da ficção em José Saramago (2010), Seixo aborda a
questão que envolve a História e a ficção na prosa do escritor luso. Para ela, a
História é o outro tempo que vem ativar a consciência do presente. Contudo, alerta
Seixo, Saramago não faz História, faz ficção, integrando no romance dimensões
outras que engrandecem ou acentuam seu caráter textual específico, produzindo um
tipo de linguagem onde o passado objetual se contamina pelo presente crítico e
perspectivante (SEIXO, 2010, p. 23-24).
No caso de Ensaio sobre a cegueira, alguns elementos possibilitam
enquadrar o romance dentro do contexto da pós-modernidade. Diante da
diversidade de estéticas não é possível que se trace uma estética pós-moderna
definitiva, mas nas narrativas saramaguianas da segunda fase as experimentações
com a linguagem e o modo de pontuar as frases fazem com que se enquadre Ensaio
sobre a cegueira no rol dos romances pós-modernistas23.
Em sua dissertação de mestrado, O ser humano e a sociedade em
Saramago: um estudo sociocultural das obras “Ensaio sobre a cegueira” e “Ensaio
23 Os críticos descrevem a escrita pós-modernista como descontínua, mas nem sempre reconheceram a conexão entre esta descontinuidade semântica e narrativa e seu “correlativo objetivo” físico, o espaçamento do texto (FERNANDES, 2009, p. 303 apud McHALE, 1994, p. 181-182).
76
sobre a lucidez” (2008), Iris Selene Conrado comenta que os romances
saramaguianos pós-1995 possibilitam a reflexão sobre a linguagem, bem como a
percepção de um labor discursivo caracterizado pela pluralidade de vozes e pelo uso
da ironia e da intertextualidade. Esses fatores permeiam a representação do ser
humano em seus conflitos e angústias em sociedade.
A leitura da tese de doutorado de Walter Praxedes, intitulada A Elucidação
pedagógica, história e identidade nos romances de José Saramago (2001), levanta
questões como: A obra literária tem significado pedagógico e político? O romance
também se constitui em objeto da análise e reflexão política? Tais questionamentos
implicam uma compreensão de que o contexto histórico e a sociedade de cada
época influenciam o autor e a sociedade é influenciada pela obra que ele produz.
Para o autor, Saramago, no curso de sua carreira como escritor,
[...] tem demonstrado sua preocupação em tornar a literatura um instrumento de emancipação humana. O escritor português explicitamente já assume para si e para seus escritos o objetivo de contribuir para que a humanidade realize uma mudança de valores. No seu entendimento, as civilizações contemporâneas estão sofrendo o choque das rápidas transformações do nosso tempo, tanto as científicas e tecnológicas como as morais e axiológicas (PRAXEDES, 2001, p. 28).
Aprofundando a compreensão a respeito da leitura das obras de Saramago,
compreende-se que o escritor português tem uma compreensão centrada no
cumprimento do seu papel de escritor, em influenciar a vida social e em reafirmar
seu compromisso com a escrita e com a sociedade.
“A (des) construção da identidade nos romances de José Saramago” (s/d) é
título do artigo de Shirley de Souza Gomes Carreira. No texto, a autora faz uma
leitura dos romances Todos os nomes, Ensaio sobre a cegueira e A caverna,
mencionando que, ainda que o escritor luso não desconstrua o conceito de
identidade nessas obras, ele “coloca em xeque os processos de concepção da
identidade, atribuindo-lhe um princípio que, antes de ser social e histórico, é
primordialmente discursivo” (CARREIRA, s/d, p. 01).
Nesse estudo, ao se referir a Ensaio sobre a cegueira, Carreira (s/d, p. 3-4)
comenta que nesse romance as personagens não são nominadas e trazem o
enfraquecimento das marcas usuais da historicidade, tão comuns em muitos
romances do escritor português. Com isso, o texto pode ser visto como “um espelho
77
onde o leitor poderá mirar-se e refletir sobre o seu papel, enquanto cidadão do
mundo, na construção da história da humanidade” (CARREIRA, s/d, p. 4).
Em outro estudo, Carreira, em texto intitulado “O não-lugar da escritura: uma
leitura de Ensaio sobre a cegueira de José Saramago” (2001), mostra que a
impossibilidade de se situar a história do romance naqueles três conceitos da
historiografia – tempo, espaço e identidade – faz desta obra um retrato contundente
da própria condição humana. A autora expressa que no romance em questão,
[...] surpreende-nos a ausência das marcas usuais da historicidade. Não há sequer uma referência temporal que nos permita dizer com segurança em que momento histórico o mundo ficcional deve ser inserido. No entanto, a própria ausência de marcadores temporais permite-nos fazer reflexões acerca do seu significado. A percepção do tempo se faz sentir apenas na memória das personagens e nas observações do narrador. No continuum do tempo, o passado do qual as personagens se recordam é o conjunto de atitudes e valores que incorporavam antes da cegueira e sob esse aspecto o passado e o presente são julgados um à luz do outro na diegese (CARREIRA, 2001, p. 1).
Sandra Ferreira, no artigo “Espaços expectantes: sobre romances de José
Saramago” (2008), delibera a respeito da importância dos espaços no desenrolar
das tramas de muitos romances saramaguianos. Segundo ela, os romances do
escritor luso têm se caracterizados como “narrativas em que a estilização das
personagens adere aos recintos que as contêm, resultando disso que o arranjo dos
modos espaciais e temporais é decisivo para a interpretação desses romances”
(FERREIRA, 2008, p. 30).
Nessa direção, Ferreira (2008) anota que os espaços,
[...] sobretudo nos romances da segunda fase, assumem uma feição que parte da realidade empírica para infringir suas rígidas normas. A plasticidade e portabilidade dos cenários, na fabulação saramaguiana, representam ambientes públicos e privados que falam da nossa atualidade, mas se dimensionam em emanações labirínticas (FERREIRA, 2008, p. 30-31).
Levando em consideração as narrativas A caverna, Todos os nomes e Ensaio
sobre a cegueira, Ferreira (2008, p. 39) conclui que esses romances “elaboram
espaços que abolem a distância e propiciam a experiência da síntese”, elaboração
proveniente da proximidade entre as personagens nos lugares comuns em que eles
circulam. Lugares esses que são espaços que instigam a alteridade, sugerindo e
78
forçando relacionamentos a partir com as quais as personagens precisam “aprender”
a conviver com o outro, seja para aceitá-lo, seja para negá-lo.
Dos espaços expectantes de Ferreira (2008) chega-se à tese de doutorado de
Nanci Geroldo Richter. Em Os espaços infernais e labirínticos em Ensaio sobre a
cegueira (2007), a pesquisadora dá destaque à questão espacial em que se
desenvolve o enredo do romance em destaque. A autora analisa a narrativa
saramaguiana, levando em consideração os conceitos de espaço e lugar, como
também os conceitos de lugar e não-lugar segundo a perspectiva de Marc Augé
(2004).
Flávia Belo Rodrigues da Silva, em sua dissertação de mestrado intitulada
Entre a cegueira e a lucidez: a tentativa de resgate da essência humana nos
“ensaios” de José Saramago (2006), faz uma leitura dos dois romances à luz da
dialética cegueira e lucidez. Ao debater a questão da alienação humana em
sociedade, a autora frisa que a análise dessas narrativas possibilita entrever o papel
do ser humano nos anos finais do século XX, para que se tenha um mundo mais
justo. Isso porque os romances em questão “fornecem cenários que, apesar de
pertencerem a uma ficção imersa em acontecimentos insólitos, trazem à tona as
questões mais fundamentais da realidade do mundo atual” (SILVA, 2006, p. 9).
Além disso, Silva (2006) discute a questão dos gêneros literários diante da
hibridez de formas e discursos próprios da pós-modernidade. Nesse caso, em se
tratando dos dois romances que se intitulam “ensaios”, tem-se caracterizada uma
tênue fronteira entre os gêneros literários, sendo este um traço típico deste período.
Maiquel Röhring, no artigo “Uma leitura humanista de Ensaio sobre a
cegueira, Ensaio sobre a lucidez e As intermitências da morte, de José Saramago”
(2011), discute o estado de exceção que está intimamente relacionado ao
isolamento a que o Estado submete, nas três narrativas, os cidadãos e à
consequente suspensão de direitos. No entendimento de Röhring (2011, p. 15),
nessas três narrativas, saltam aos olhos as intenções políticas, pois apresentam um
questionamento e uma crítica à democracia e suas instituições e apontam, ainda,
para a necessidade de um sistema substantivamente democrático, no qual seja
realmente o povo a governar seu destino.
Anderson Pires Silva, no artigo “As impurezas do branco: Ensaio sobre a
cegueira como distopia positiva” (2011), disserta a respeito dos termos utopia e
79
distopia à luz da narrativa de Saramago. Consoante à distopia, o autor comenta que
o termo:
[...] designa uma narrativa situada no futuro, ou em um tempo indeterminado, tendo por princípio uma crítica às formas políticas de totalitarismo e uma visão pessimista sobre a natureza humana. Embora situada em uma realidade alternativa, a narrativa distópica, quase sempre, tem como alvo o próprio presente (SILVA, 2011, p. 49).
Em “Traços pós-modernos na ficção portuguesa atual” (1998, p. 4), Isabel
Pires de Lima explica que o romance português traz em sua tessitura a
especificidade do contexto político, social e cultural de um país que foi “cortado” por
uma ditadura longa e anacrônica. Desse modo, Lima (1998) vê traços pós-
modernistas na narrativa de Saramago e cita Ensaio sobre a Cegueira (1995) como
exemplo. Isso porque nessa narrativa o narrador dá ao leitor conhecer um mundo
possível, que assoma como alternativo ao mundo atual, sugerindo ao leitor a
abandonar as leis deste último, passando a adotar outra perspectiva ontológica, ou
melhor: a mergulhar numa indeterminação ontológica de tipo pós-moderno.
Desse modo, é possível ler o romance em questão como pós-modernista. O
primeiro elemento a ser observado diz respeito ao termo “ensaio”. Segundo Teresa
Cristina Cerdeira da Silva, em “De cegos e visionários: uma alegoria finissecular na
obra de José Saramago” (1998), Ensaio sobre a cegueira é um romance que se quer
ensaio. Além disso, a pesquisadora pondera que esse “não é tão somente um
romance cujo assunto é a cegueira, mas também um ensaio entendido como
experiência, experimentação que revele a possibilidade de enxergar para além das
aparências” (SILVA, 1998, p. 693).
As aparências, nesse contexto, referem ao leitor, que passa a ver e a reparar
outros horizontes que vão além das imagens cotidianamente presenciáveis. Por
isso, a epígrafe ao início do romance, pertencente ao Livro dos Conselhos: “Se
podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Desse modo, a leitura dessa narrativa
possibilita discutir outra questão: a problematização do pós-modernismo.
No que tange a deliberar sobre a questão dos gêneros literários diante da
hibridez de formas e discursos próprios da pós-modernidade, ao usar o termo
“ensaio” no título da sua narrativa, a obra abre margens para que se discuta a
fronteira entre os gêneros literários. E Saramago certamente não o fez de maneira
gratuita, haja vista sua predileção em dar nomes instigantes aos seus romances. A
80
título de exemplificação, tem-se História do cerco de Lisboa (1989), Manual de
pintura e caligrafia (1977), Memorial do convento (1982) e O Evangelho segundo
Jesus Cristo (1991).
Ensaio sobre a cegueira é pós-moderno porque busca esta experimentação
não apenas na forma, com a questão da hibridez de gêneros narrativos, mas
também no conteúdo, no qual a vivência humana pende entre a humanidade e a
animalidade, a solidariedade e a perversidade, a civilidade e a barbárie, a
democracia e a ditadura. Essas características dicotômicas não permitem uma
classificação precisa do romance “ensaio”, por isso vem ao encontro do exposto por
Hutcheon (1991, p. 25). A autora afirma que “o pós-modernismo é um fenômeno
contraditório, que usa e abusa, instala e depois subverte, os próprios conceitos que
desafia”. Assim, a hibridez dos gêneros – romance e ensaio – remete à modalidade
de escrita que, por sua vez, não correspondem ao que encontramos no conteúdo do
romance em questão.
Outro elemento a ser observado para que se possa enquadrar o romance
dentro do pós-modernismo remete à cidade ficcional em que se passa a história.
Essa cidade, diante do fato de não ter nome e estar situada num tempo não
demarcado pelo narrador, assoma como uma característica que possibilita ver como
um espaço da pós-modernidade. Nessa esteira, Shirley de Souza Gomes Carreira,
em seu texto intitulado “O não-lugar da escritura: uma leitura de Ensaio sobre a
cegueira de José Saramago” (2001), mostra que a impossibilidade de se situar a
história do romance naqueles três conceitos da historiografia (tempo, espaço e
identidade) faz desta obra um retrato contundente da própria condição humana.
Conforme a pesquisadora, não se pode ler o romance, dissociando a
ausência de referentes temporais da ausência de referentes espaciais. Se à luz da
perspectiva historicista o tempo e o espaço são essenciais no “todo” da obra, o olhar
que o pós-modernismo lança ao passado ultrapassa as barreiras formais da história,
pois “[a]o criar um texto em que essas marcas de identificação espaço-temporal
revelam-se enfraquecidas”, o escritor português “faz dele um espelho onde o leitor
poderá mirar-se e refletir sobre o seu papel, enquanto cidadão do mundo, na
construção da história da humanidade” (CARREIRA, 2001, p. 1).
Essa seção contempla uma leitura analítica do Ensaio sobre a cegueira e é
estruturada da seguinte forma. Inicialmente, elencam-se pontos que convergem para
que o romance possa ser enquadrado dentro do pós-modernismo. Depois, faz-se
81
uma leitura da narrativa levando em conta dois aspectos. No primeiro aspecto, “olhar
de fora”, procura-se ler a narrativa do ponto de vista das personagens que, usando
do expediente do poder, no caso o Estado e o exército, isolam as personagens
cegas no manicômio abandonado, excluindo-as e marginalizando-as. No segundo
aspecto, “olhar de dentro”, lê-se o romance num viés que analisa as atitudes das
personagens cegas entre si, em que pese deliberar acerca do dilema da alteridade e
das relações que denigrem e marginalizam os sujeitos no espaço de confinamento.
3.1.1 Ensaio sobre a cegueira: quero ver, mas não posso
No documentário Janela da Alma (2002), de João Jardim e Walter Carvalho, o
escritor José Saramago expressa que a temática acerca da cegueira surgiu
enquanto ele de repente pensou: “E se fossemos todos cegos?”, para no momento
seguinte constatar que:
[...] mas nós estamos realmente todos cegos! Cegos da razão, cegos da sensibilidade, cegos, enfim, de tudo aquilo que faz de nós não ser razoavelmente funcional no sentido da relação humana... mas, pelo contrário, ser agressivo, ser egoísta, ser violento, enfim, isso é o que nós somos. E o espetáculo que o mundo nos oferece é precisamente este. Um mundo de desigualdade, de sofrimento, sem justificação (SARAMAGO apud JANELA DA ALMA, 2002).
A constatação de Saramago ampara-se na sua visão sobre a condição do
sujeito inserido na sociedade globalizada, em que imagens ditam as regras da
convivência. O excesso de imagens deixa o homem cego, enfatiza o escritor. Com
os sentidos enganados, os homens seguem como rebanho na multidão. Na
acuidade saramaguiana, o homem contemporâneo tem seus sentidos perdidos. Em
primeiro lugar de si próprio; e, em segundo lugar, na relação com o mundo,
acarretando em sujeitos que circulam pelos lugares sem saber muito bem nem o que
são, nem pra que servem, nem que sentido tem a sua existência (JANELA DA
ALMA, 2002).
As palavras do escritor luso levam à reflexão sobre um tempo em que, ainda
que o homem tenha o sentido da visão, não consegue ver a si e muito menos ao
outro. Nessa direção, a cegueira, tema central do romance Ensaio sobre a cegueira,
é articulada a partir de um olhar que transcende o campo da visão imposto pela
sociedade da imagem, que é uma das características da pós-modernidade, e se
82
estende para um mundo ficcional onde o visível e o invisível se encontram e se
fundem.
A narrativa revela as cicatrizes do autoritarismo exacerbado por parte de um
governo autoritário de um país fictício no curso de uma epidemia de cegueira que
afeta boa parte dos habitantes de uma cidade sem nome. Partindo do fato de não
nominar a cidade e não localizá-la dentro de um espaço/tempo, o escritor português
faz entender que pode ser qualquer cidade (país, pátria, nação) onde imperam as
contradições imanentes à globalização.
O romance inicia com um acontecimento comum ao cotidiano de uma cidade
qualquer inserida na sociedade líquido-moderna. Nas ruas, muitos automóveis, a
tensão e pressa dos motoristas, que “com o pé no pedal da embraiagem, mantinham
em tensão os carros, avançando, recuando, como cavalos nervosos que sentissem
vir no ar a chibata” (SARAMAGO, 1995, p. 11). A luz verde do semáforo acende,
porém um dos automóveis não se move e “[e]m meio às buzinas enfurecidas e à
gente que bate nos vidros percebe-se o movimento da boca do motorista, formando
duas palavras: Estou cego” (SARAMAGO, 1995, p. 12). Trata-se, pois, do primeiro
caso de uma cegueira branca que lentamente contagia os habitantes da cidade, que
passam a viver em meio ao caos.
A primeira vítima da cegueira põe as mãos diante dos olhos para ver se havia
visão e constata que havia “[n]ada, é como se tivesse no meio de um nevoeiro, é
como tivesse caído num mar de leite” (SARAMAGO, 1995, p. 13). As imagens da
cidade tornam-se nebulosas e fragmentadas aos olhos do cego. A partir desse
momento, a cidade passa a ser acometida de uma epidemia de cegueira que vai,
pouco a pouco, alastrando-se por todos os recantos urbanos.
Assim, o cenário urbano que antes poderia ser descrito nos mínimos detalhes
pelo olhar, desde as pessoas, veículos, casas, prédios, cores, formas dos objetos,
às expressões e sentimentos que se misturam às imagens materializadas do
cotidiano, não pode mais ser descrito. Diz o primeiro cego: “Vejo tudo branco, e logo
deixou aparecer um sorriso triste” (SARAMAGO, 1995, p. 18). Paulatinamente, a
epidemia de cegueira se alastra sobre a cidade inominada, atingindo quase toda
população. Sem distinguir classe social, o “mal-branco” dissemina as instituições
públicas e privadas, como também os valores sociais e individuais que antes
norteavam a vida em sociedade.
Para as autoridades do país,
83
[e]nquanto não se apurassem as causas, ou, para empregar uma linguagem adequada, a etiologia do mal-branco, como [...] a cegueira passaria a ser designada, enquanto para ele não fosse encontrado o tratamento e a cura, [...] todas as pessoas que cegaram [...] seriam recolhidas e isoladas, de modo a evitarem-se ulteriores contágios (SARAMAGO, 1995, p. 45).
Partindo do aumento considerável das vítimas da cegueira e do isolamento
dos contagiados, a narrativa tece uma reflexão tenaz acerca da alteridade no âmbito
dos relacionamentos urbanos, sejam familiares, sociais ou profissionais. O romance
é um texto que se ocupa da desumanização, pois a cegueira não é tão somente a
impossibilidade de ver, mas é, sobretudo, uma condição através da qual as
personagens não conseguem exercer a humanidade.
A narrativa coloca o “ver” como um problema. Para realizar de modo pleno a
alteridade, o sujeito precisa enxergar o outro. Mas, no caso das personagens que
coabitam no texto de Saramago, o que pensam e como agem em relação aos cegos
em quarentena? Assim, buscar os rastros da sociabilidade na narrativa é discutir o
dilema da alteridade num viés que aborde a visão que o sujeito tem a respeito do
outro.
Levando em conta os eixos temáticos que balizam a leitura de Ensaio sobre a
cegueira – alteridade, fragmentação e marginalização –, no primeiro momento se
analisa o romance sob o “olhar de fora”. Busca-se, para tanto, a representação das
personagens fragmentadas diante da exclusão e marginalização perpetradas pelo
Estado em relação aos cegos, que são encarcerados num manicômio abandonado.
A epidemia de cegueira que percorre as linhas e entrelinhas do romance pode
ser apurada numa perspectiva estética e epistemológica. O pensamento de
Ginzburg (2004) é interessante, pois elabora uma reflexão sobre a problemática da
constituição do sujeito na atualidade e como alguns textos literários, como a crônica
de Paulo Mendes Campos, O cego de Ipanema (1998), o conto Amor, de Clarice
Lispector, o conto Infância, de Graciliano Ramos, e o conto São Marcos, de
Guimarães Rosa, os quais fazem referência ao sujeito pós-moderno e
contemporâneo.
Segundo o crítico, esses textos literários são representativos porque
tematizam a questão da cegueira do ponto de vista em que ela assoma como uma
forma particularmente importante na expressão da tragicidade humana. Para o
autor, “em tempos de catástrofes e desumanização, escritores procuram formas que
84
de algum modo estejam ligadas a uma experiência fragmentária e delicada de
constituição de sujeito”, e que “[m]uitas vezes esta se apresenta como experiência
inconclusa” (GINZBURG, 2004, p. 3).
O autor acredita que a cegueira do sujeito pode ser lida levando-se em conta
dois aspectos. No primeiro aspecto, ela vem “associada conotativamente aos limites
do conhecimento, à ilusão, à incerteza” (GINZBURG, 2004, p. 57). Nesse caso, ela é
vista como uma metáfora. Em outra perspectiva, a cegueira é vista como “uma forma
específica de experiência, caracterizada pelo limite, pela exposição do ser humano,
da incomunicabilidade, da impossibilidade de viver senão em uma condição trágica”
(GINZBURG, 2004, p. 57).
Recuperando o pensamento de Ginzburg (2004), as personagens de Ensaio
sobre a cegueira inserem-se na segunda perspectiva, haja vista que passam pela
experiência trágica de viver no limite. No romance, a condição trágica é
caracterizada quando os contagiados pelo “mal-branco” são colocados em
quarentena, afastados do convívio social, passando, então, da condição de doentes
à condição de excluídos e, concomitantemente, a de marginalizados.
No principiar da generalização da cegueira, o Governo reúne um grupo de
especialistas para decidir quais seriam as providências necessárias para erradicar o
“mal-branco” que se instalara na cidade. O presidente de logística e segurança
precisa definir para onde os cegos serão encaminhados. Um soldado apresenta para
o ministro quatro lugares que podem ser usados para encaminhar as vitimas: a feira
industrial em fase de conclusão, o hipermercado em processo de falência, a
instalação militar em desuso e o manicômio vazio.
A feira industrial e o hipermercado, por sua vez, representam espaços que
instigam a produção e o consumo, não cabendo, portanto, aos cegos serem levados
para tais lugares, pois, como relata a personagem ministro, “[a] indústria não
gostaria com certeza, estão ali investidos milhões” (SARAMAGO, 1995, p. 46). A
atitude do Governo caracteriza a ambivalência que é a vida nos grandes centros
urbanos.
Logo que os cegos são trazidos para o manicômio, o narrador faz uma
“leitura” do espaço através dos olhos da mulher do médico, a única que consegue
enxergar e decidiu pelo isolamento para acompanhar seu marido, o médico.
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A mulher guiava o marido para camarata. Era comprida como uma enfermaria antiga, com duas filas de camas. [...] havia mais caramatas, corredores longos e estreitos, gabinetes que deviam ser de médicos, sentinas encardidas, uma cozinha que não perdera o cheiro de má comida, um refeitório com mesas de zinco, três celas até a altura de dois metros e forrada de cortiça. Por trás do edifício havia uma cerca abandonada, com árvores mal cuidadas. Por toda parte havia lixo (SARAMAGO, 1995, p. 47).
Depois que a mulher do médico percorreu o inóspito ambiente com seu olhar,
fala para seu marido: “És capaz de imaginar onde nos trouxeram” a passo que ele
responde “Não”, e ela conclui “A um manicômio” (SARAMAGO, 1995, p. 48). É
nesse espaço que os cegos passam a conviver e precisam aprender a compartilhar
experiências que antes eram particulares a cada um, desde as necessidades
fisiológicas às angústias e aflições diante da inusitada situação. Assim, o lugar
antropológico é substituído pelo “não-lugar” diante da provisoriedade das camaratas
e pela redução dos códigos de convivência social a um estado de barbárie.
A partir dessa perspectiva, aos cegos cabe aprender a conviver de novo, a
construir novos parâmetros para o “eu” fragmentado. Desse modo, o dilema da
alteridade é traçado na narrativa em conformidade à forma específica de experiência
anunciada por Ginzburg (2004). Os primeiros contagiados pela cegueira são
expostos à incomunicabilidade e condicionados à condição trágica de terem que
viver situações limítrofes no manicômio. Aos olhos dos sujeitos que estão no poder,
e certos de que podem definir os rumos das vidas alheias, as opções dadas são
todas relacionadas à marginalização, pois na tratativa, a última opção – o manicômio
–, é a escolhida, pois essa instância representa a extinção das vontades individuais
e a submissão dos cegos à tutela hierárquica do Governo.
A ambivalência que caracteriza a ação do Governo pode ser lida levando em
conta o pensamento de Bauman. Na obra Confiança e medo na cidade (2006b, p.
31-32), o sociólogo enfatiza que as cidades da globalização “são os campos de
batalha”, em que os seus habitantes se “entrechocam e combatem em busca de um
acordo satisfatório ou minimamente tolerável”; um acordo social que dure o tempo
necessário para que o sujeito se reorganize e recomponha suas forças emocionais.
A vida na cidade “tem fama de ser uma experiência que desperta sentimentos
desencontrados. Atrai e repele ao mesmo tempo” (BAUMAN, 2006b, p. 41). A busca
pela homogeneidade social do espaço urbano, acentuada e reforçada pela
segregação, reduz a capacidade que o sujeito tem em tolerar as diferenças. Viver
em companhia de desconhecidos, mendigos, pedintes e desempregados é “sempre
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um tanto alarmante” (BAUMAN, 2006b, p. 66), pois esses sujeitos fazem despertar
uma grande multiplicidade de sentimentos, endêmicos e incuráveis, de que possam
ocorrer eventos imprevisíveis.
As autoridades do romance são a personificação do risco e do medo. O risco
não existe sem medo. Receosos e com medo, o Governo isola os cegos
contagiados da parcela de habitantes não afetados pela cegueira. O manicômio,
lugar destinado às vítimas da cegueira, estava há muito tempo abandonado e
mantinha a mesma estrutura organizacional que tinha para comportar os loucos.
Esse lugar passa receber outro tipo de excluído social, os cegos, sem que sejam
aventadas ideias que possam auxiliar no tratamento dos mesmos.
O “olhar de fora” os vê com desprezo e tão somente confirma a visão de que
se tem a respeito daqueles que não se encaixam ao mundo ordeiro. Mais uma vez
recorre-se ao pensamento de Bauman (2001, p. 118)24, que trata das duas
estratégias de enfrentar a alteridade: a antropoêmica e antropofágica. Nesse estudo,
interessa a estratégia antropoêmica, que se resume no ato de “‘vomitar’, cuspir os
outros vistos como incuravelmente estranhos e alheios: impedir o contato físico, o
diálogo, a interação social”.
Os guardas revestem-se do caráter antropoêmico, pois despidos de qualquer
senso de zelo e empatia pela condição dos cegos,
[s]abiam o que no quartel tinha sido dito essa manhã pelo comandante do regimento, que o problema dos cegos só poderia ser resolvido pela liquidação física de todos eles, os havidos e os por haver, sem contemplações falsamente humanitárias (SARAMAGO, 1995, p. 105).
A passagem caracteriza esse ato de “vomitar”, excluir o outro, não permitindo
a interação social, o contato. Ao eleger o manicômio como espaço de exclusão, o
escritor toma partido daqueles sujeitos que a modernidade líquida rejeita porque eles
não têm mais valia, pois eles estão fora das normas da sociedade.
No curso da quarentena, a luta pela satisfação das necessidades básicas
torna-se um dos fios condutores da história. A cegueira faz com os sujeitos cegos se
empenhem na conquista não do espaço, do “não-lugar”, mas sim na luta diária de
como aprender a usar os espaços do manicômio. Nessa questão, a divisão das
camaratas e das camas, as idas e uso dos banheiros, tudo a ser feito no manicômio
24 Bauman faz uso das ideias do antropólogo Claude Lévi-Strauss, que em Tristes trópicos (1957) menciona as duas estratégias de enfrentar a alteridade: a antropoêmica e antropofágica.
87
exige a aceitação da dura realidade que em quase nada pode ser alterada, exigindo,
pois, apenas adaptação e resignação.
No tocante à alimentação, os cegos confinados esperam pela comida que
lhes é alcançada diariamente pelo portão. Cientes de que a comida era pouca para
alimentar tantos famintos, os cegos se aglomeram na entrada para apanhar o
alimento, sendo que os guardas, assustados com a movimentação, disparam:
Os dois soldados da escolta, que esperavam no patamar, reagiram exemplarmente perante o perigo. Dominando, só Deus sabe como e porquê, um legítimo medo, avançaram até ao limiar da porta e despejaram os carregadores. Os cegos começaram a cair uns sobre os outros caindo recebiam ainda no corpo balas que já eram um puro desperdício de munição, foi tudo incrivelmente lento, um corpo, outro corpo (SARAMAGO, 1995, p. 88).
A passagem em tela reforça a noção de que o olhar ocupa o centro dos
debates acerca do aparecimento de sujeitos problemáticos como ocorre na
modernidade líquida. Na narrativa, tem-se caracterizando a instabilidade dos
relacionamentos, em que os cegos – na condição do outro – são vistos como uma
ameaça à sociedade.
O espaço social representado no Ensaio sobre a cegueira insere-se ao
modelo de sociedade de que fala Bauman (2005). Na narrativa, as personagens são
fragmentadas abruptamente e de um instante para outro passam da condição de
“ver” para a cegueira, fomentando o caos e o estranhamento entre os citadinos.
Diante do caos instaurado pela doença, o governo decide “higienizar” as ruas da
cidade e, para que isso seja possível, ele toma uma medida drástica que resulta no
confinamento.
O confinamento dos cegos vem ao encontro do observado por Bauman
quando refere que as ações de exclusão e limpeza do espaço social são medidas
tomadas em prol da “saúde da sociedade e para que o ‘funcionamento normal’ do
sistema social não sejam ameaçados” (BAUMAN, 2005, p. 81). Assim, o espaço
urbano ficcional da narrativa comporta mal-estares que podem ser evidenciados na
maioria das grandes cidades da modernidade líquida. Como exemplo disso, cita-se o
medo gerado pela falta de segurança, que faz nada mais que afastar as pessoas
umas das outras, não permitindo a efetividade dos relacionamentos “sólidos” e
confiáveis.
A política do medo cotidiano afasta qualquer dinâmica de interação social
mais sólida. Na narrativa saramaguiana, o medo do contato representa por um “mal-
88
branco”, que pode surgir de qualquer espaço urbano, seja do centro ou da periferia.
Sobre isso, Bauman (2006b, p. 36-37) expressa que “[o] medo do desconhecido, no
qual estamos envolvidos, busca desesperadamente algum tipo de alívio”. A busca
por segurança representa esse alivio.
A observação do sociólogo é pertinente, pois é com a insurgência do medo
que as grandes cidades europeias fizeram dos seus espaços urbanos verdadeiros
bunkers, equipados com todos os recursos tecnológicos necessários à vida privada.
Nos grandes centros comerciais, bairros nobres e condomínios luxuosos europeus,
a arquitetura do medo faz com que as disposições estéticas dos espaços urbanos
sejam transformadas radicalmente. Com isso, prédios, casas e shopping centers
seguros são erguidos contra as ameaças dos outros, que são aqueles que não são
considerados economicamente viáveis e os socialmente descartáveis.
Para Bauman (2008a, p. 93), nas cidades “manter-se à distância parece a
única forma razoável de proceder”. Por um princípio de economia, transfere-se a
responsabilidade moral do medo para o outro. É o outro que usa a máscara líquida
dos deserdados socialmente. Junto aos emaranhados aparatos de segurança que
alternam os “não-lugares” das grandes cidades europeias (instalação de câmeras
nas ruas e nos edifícios, como também escutas sensíveis e sofisticados aparelhos
que detectam qualquer ameaça a ordem estabelecida a uma distância muito longa)
sente-se que a sociedade líquido-moderna aprofunda seus receios e medos. O faz
na busca de suprimir os efeitos destrutivos que qualquer contato social que fuja do
desejo de bem-estar social.
Certamente, isso se deve à tendenciosa incapacidade que o sujeito tem em
desenvolver autênticas relações interpessoais, bem como se deve aos preconceitos
generalizados em torno daqueles sujeitos que são vistos, cotidianamente, como
incompatíveis ao modo de ser que a modernidade líquida enseja. No romance, os
governantes agem de modo que o controle e a ordem local sejam mantidos a todo
custo. Por isso, cada vez que chega ao manicômio uma nova leva de cegos, ouve-
se do alto-falante um discurso gravado, em que o Governo lamenta pela medida
tomada em relação à epidemia da cegueira:
O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios as populações na crise que estamos a atravessar, quando parece verificar-se algo de semelhante a um surto epidêmico de cegueira, provisoriamente designado por mal-branco, e desejaria poder contar com o civismo e a
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colaboração de todos os cidadãos para estancar a propagação do contágio [...] O Governo está perfeitamente consciente das suas responsabilidades (SARAMAGO, 1995, p. 49-50).
Ironicamente, o discurso do Governo pede desculpas pela medida tomada.
Enfatiza, também, que os cegos cumpram com seu papel no decorrer da
quarentena, dando-lhes a entender das suas responsabilidades e que o isolamento
representa, acima de tudo, um ato solidário para com seus compatriotas. O governo
espera, também,
[...] que aqueles a quem esta mensagem se dirige assumam também, como cumpridores cidadãos que devem ser, as responsabilidades que lhes competem, pensando que o isolamento em que agora se encontram representará, acima de quaisquer outras considerações pessoais, um acto de solidariedade para com o resto da comunidade nacional (SARAMAGO, 1995, p. 49-50).
O governo, na ficção de Saramago, é investido de aparências, e, ainda que
faça uso dos expedientes da benevolência e do altruísmo, sua postura política não
caracteriza zelo para com o outro, o cego, pelo contrário, o exclui do convívio social.
No afã de alargar seu poderio, as autoridades lançam mão de artifícios cruéis
para investir na marginalização e exclusão social. Para tal, diz que o isolamento
representa um ato de solidariedade com o resto dos habitantes não infectados pelo
“mal-branco”. Contudo, no curso do confinamento, essas aparências são postas em
xeque pelas personagens. Indignados com as ordens repassadas pela voz no alto-
falante, que tratavam sobre o funcionamento das camaratas e regras do manicômio,
os cegos percebem que foram traídos. Então, as vozes ecoam pelo inóspito
manicômio: “Estamos fechados. Vamos morrer aqui todos, Não há direitos, Onde
estão os médicos que nos tinham prometido” (SARAMAGO, 1995, p. 73).
A voz coletiva soa como vazio, pois as autoridades não escutam o apelo.
Assim, ao fechar a porta do manicômio, os cegos passam de um estado
supostamente igualitário a um estado segregário, em que o governo passa a ser
sustentado por dois pilares: repressão e ausência de direitos básicos para uma
vivência digna. Para as personagens que formam o grupo governamental, o não
reconhecimento do outro acarreta na exclusão. Os cegos são vistos como um só
corpo doente, e são lançados fora do círculo social com vista a proteger os demais
habitantes da contaminação.
A cegueira representa para as autoridades um sinal de alerta, pois o risco de
contágio poderia representar:
90
[...] uma passagem da ordem para a desordem pública. [...] A coerção exercida pelo Estado em direção aos cegos instaura uma política de exceção, um estado de sítio em que o alarde precisa, mesmo que aparentemente, surgir controlado. Nesses casos, medidas provisórias assumem estatuto de lei e são tomadas como práticas legitimadas, embora não possuam legalidade jurídica (SILVA, 2011, p. 2).
Da parte dos soldados, o Estado não desempenha o papel de “cuidador” dos
vitimizados pela cegueira. Ao invés de dar auxílio aos cegos, os soldados
desdenham os pedidos de ajuda. Isso fica caracterizado na passagem em que a
personagem mulher do médico negocia a alimentação junto aos soldados que
despejam garrafões de amônia sobre o sangue que verteu dos corpos dos cegos
que foram executados por não seguirem as ordens. A personagem questiona:
E a comida, aproveitou a mulher do médico a ocasião para recorda-lhes, A comida ainda não chegou, Só do nosso lado há mais de cinqüenta pessoas, temos fome, o que estão a mandar não chega para nada (SARAMAGO, 1995, p. 85).
Ao passo que um soldado responde: “[...] Isso da comida não é com o exército
(SARAMAGO, 1995, p. 85). Em outra passagem os soldados deixam as caixas de
suprimentos na entrada do manicômio e pedem que os cegos se aproximem para
recolhê-las. Uns cegos se aproximam, e um deles pede orientação: “Por favor,
ajudem-me, diga-me por onde devo ir” (SARAMAGO, 1995, p. 106), ao passo que,
sarcasticamente, um guarda fala:
Vem andando, ceguinho, vem andando, disse de lá um soldado em tom falsamente amigável, (...) por aqui mesmo, nesta direcção, chegarás onde te estão a chamar, ao encontro da bala que substituirá em ti uma cegueira por outra (SARAMAGO, 1995, p. 107).
O isolamento dos cegos não contempla segurança, bem-estar, higiene básica
e alimentação adequada. Para eles, não há por parte dos governantes o
cumprimento das promessas anunciadas. A postura do governo caracteriza a
ambivalência da atitude para com os cegos. Uma atitude que expressa os extremos
da covardia, pois, por um princípio de economia, o governo transfere a
responsabilidade moral de seu autoritarismo e negligências para o outro, no caso, as
vítimas da cegueira.
91
O funcionamento normal da sociedade é ameaçado por sujeitos doentes.
Esses, na visão da sociedade elitista e consumista, não têm mais utilidade, pois
representam o excedente. Em Vida Líquida (2009), Bauman lança um olhar crítico
sobre os excedentes que a sociedade voltada aos bens de consumo produz e que,
no final, refuga, lançando-os ao lixo. Segundo o sociólogo, o lixo humano que as
grandes cidades ocidentais produzem tornou-se um problema para a sociedade
consumista que se vê de mãos atadas diante do fenômeno que despeja pelas ruas
das grandes cidades mendigos, desempregados, estrangeiros. Enfim, toda uma
“massa” de sujeitos que engrossam as estatísticas dos “refugos” que ocupam as
ruas das grandes cidades europeias.
Onde deve ser despejado o lixo humano produzido pela globalização?
Bauman não vê com otimismo essa questão, pois
[a]s formas de lidar com o lixo humano que se transformaram na tradição moderna não são mais viáveis, e novas maneiras não foram inventadas, muito menos postas em operação. Pilhas de lixo humano crescem ao longo das linhas defeituosas da desordem mundial, e se multiplicam os primeiros sinais de uma tendência à autocombustão, assim como os sintomas de uma explosão iminente (BAUMAN, 2004, p. 68).
As personagens cegas representam a “pilha de lixo” que é posto em
quarentena. O “mal-branco” somatiza os mal-estares que denigrem o esgotamento
dos sentidos nos espaços urbanos das grandes cidades, colaborando para que se
tenham no espaço urbano relações obstruídas pelo receio ou medo de manter
contato com o semelhante.
O outro é visto como aquele que usa a “máscara líquida” da alteridade; ele é
a ameaça constante, por isso a atitude dos guardas que lançam mão de uma
agressividade sem medida. Após deixarem caixas contendo comida à entrada do
manicômio, os soldados pedem para que os cegos se aproximem para recolher o
material. Guiados por uma corda esticada desde as camaratas ao portão de entrada
do manicômio, os cegos aproximam-se, perfilados e guiados pela corda esticada. Na
voz do narrador, “[e]m circunstâncias diferentes, o grotesco espetáculo teria feito rir
à gargalhada o mais sisudo dos observadores” (SARAMAGO, 1995, p. 105).
No entanto, o esmaecimento da alteridade é evidente na narrativa quando os
cegos soltam as mãos da corda e aproximam como se fossem animais, feito gatos
engatinhando. Ao vê-los desse jeito, ao rés-ao-chão,
92
[a] vontade dos soldados era apontar as armas e fuzilar deliberadamente, friamente, aqueles imbecis que se moviam diante dos seus olhos como caranguejos coxos, agitando as pinças trôpegas à procura da perna que lhes faltava (SARAMAGO, 1995, p. 105).
A passagem caracteriza que muitos sentimentos humanos caíram por terra,
entre eles a solidariedade, a compaixão e a benevolência, pois a violência, seja na
sua forma física ou simbólica, estabelece uma estranha relação entre opressor e
oprimido. Para Silva (2011, p. 52), “a inversão desses papéis através da força faz
com que a narrativa decrete que a natureza humana é violenta”, sendo que o que
difere os bons dos maus é o propósito que justifica a violência por parte das
autoridades para com relação aos cegos.
A marginalização é constatada na indiferença por parte dos soldados para
com os cegos, solapando o último resquício de dignidade. Na narrativa, isso é
caracterizado na passagem em que um cego chega à porta principal do manicômio e
alerta os guardas que um grupo de cegos passou a roubar e a controlar a
distribuição de comida. “Ajudem-nos que estes estão a querer roubar-nos a comida”
(SARAMAGO, 1995, p. 139), grita a personagem, ao passo que
“[o]s soldados fizeram de conta que não tinham ouvido, as ordens que o sargento recebera de um capitão após da visita de inspeção eram peremptória, claríssimas, Se eles se matarem uns aos outros, melhor, menos ficam (SARAMAGO, 1995, p. 139).
A maneira como os guardas veem o outro é apenas mais um dos sintomas da
indiferença e desprezo tão marcantes nas vivências em sociedade. Não há contato
direto com os confinados, sendo que é sugerido o aniquilamento da massa de
confinados objetivando diminuir despesas financeiras para o Estado.
A rudeza no tratamento dispensado aos confinados denota um olhar
indiferente às situações que requerem a efetivação da alteridade. Os cegos são
marginalizados no âmbito da co-existência, na negação ao visível, em que os
guardas encarnam a máscara do individualismo, não permitindo que, a partir do
caos, a alteridade possa ser solidificada novamente. Para o segundo sargento a
ocupar o cargo de vigilância, ao saber que os cegos estavam reclamando a falta de
materiais de higiene básica e de alimentos, acha que “o melhor era deixá-los morrer
à fome, morrendo o bicho acabava-se a peçonha” (SARAMAGO, 1995, p. 89). A fala
da personagem expõe o processo de humilhação pelo qual passam os cegos no
93
manicômio. As máscaras sociais são diluídas na confluência conflituosa do “não-
lugar”.
Aos cegos, marginalizados, não cabe outra saída a não ser o aniquilamento,
seja através do esquecimento por parte das autoridades, seja através da morte que
devido às necessidades biológicas e às doenças pouco a pouco vão tomando os
corpos degradados. Esse processo, além de excluir e marginalizar, também pauta-
se em doses diárias de humilhação. Conforme já se expôs, fatores como o
isolamento dos cegos num manicômio, a má distribuição de alimentação e produtos
de higiene, o descaso e inoperância dos guardas, as péssimas instalações sanitárias
do ambiente, colaboram para que se confirme, através do “olhar de fora”, a
marginalização que vem atrelada à humilhação dos sujeitos cegos.
A humilhação diária pela qual passam os cegos do romance pode ser vista na
contextualização da relação entre opressor e oprimido enfatizada por Bauman em
Amor líquido (2003). Na obra, o sociólogo traça um panorama do processo de
humilhação pelo qual passou o homem lembra que o mesmo tem reflexo direto nos
relacionamentos das grandes cidades ocidentais. Para o sociólogo, o Holocausto é a
experiência trágica que transformou negativamente a humanidade, pois com ele o
ser humano experimentou um nível impressionante e nunca visto antes no que diz
respeito às formas mais cruéis de humilhar o outro. “Como escapar à dor e a
humilhação? A forma natural é matar ou humilhar seu algoz ou benfeitor. Ou
encontrar outra pessoa mais fraca para triunfar sobre ela” (BAUMAN, 2003, p. 110).
A cegueira, como se mostra na narrativa, sai do fato de estar cego para
alcançar a cegueira de um ponto de vista ontológico, apontando, pois, para outras
possibilidades de cegueiras, como a psicológica e a alegórica25. Ao fazer-se valer
das anotações da personagem escriturário, o narrador faz menção que é no devir da
história que o sujeito precisa reconhecer a essência humana, sabendo “ver” na
pluralidade e na diversidade de contextos que a sociedade líquido-moderna oferece.
Isso porque é nos meandros da alteridade que o sujeito pode fazer-se ver e ser
visto.
25 Quanto à cegueira alegórica, remete-se o leitor para o texto de CONRADO, Iris Selene. O ser humano e a sociedade em Saramago: um estudo sociocultural das obras Ensaio sobre a cegueira e Ensaio sobre a lucidez. Maringá, 2006. 140 f. Disponível em: www.ple.uem.br/defesas/pdf/ isconrado.pdf.
94
O narrador sugere que ele saia do seu estado de cegueira psicológico e
venha “escriturar” as mazelas e humilhações pelas quais passam seus colegas de
confinamento. Certamente, ele “faria constar que não se pode andar pela cerca
interior sem tropeçar em cegos escoando suas diarréias”, também escreveria que
“enquanto a estas horas a camarata dos malvados deverá já estar entulhada de
caixas de comida, aqui os desgraçados não tarda que se vejam reduzidos a apanhar
migalhas do chão imundo” (SARAMAGO, 1995, p. 159-160).
No Ensaio sobre a cegueira, o sujeito é pensado em seu meio natural, cultural
e histórico, posto que a cegueira e o olhar, o “ver” e o “ser” são confrontados no
decorrer da narrativa. Em sua dissertação de mestrado, Ensaio sobre a cegueira:
um olhar que transcende o olho (2012), Maria Ivonete Coutinho da Silva diserta
acerca do olhar e se apoia nas palavras de Merleau-Ponty. Para a autora, o olhar:
[...] transcende o limite do visível para o invisível. Ou seja, olhar não é apenas dirigir os olhos para perceber o ‘real’ fora de nós, é sobretudo, um mergulho no sensível. O visível e o invisível não são duas faces diferentes do olhar, mas o modo próprio e originário de apreensão da realidade (SILVA, 2012, p. 17).
No que tange à apreensão do cotidiano baseado no signo das aparências, a
autora frisa que o sujeito “é programado para não ver”, ainda que ele seja
diariamente convidado a “presenciar as imagens do espetáculo urbano, que como
todo espetáculo, exige ser visto rapidamente, em momentos breves e imagens
efêmeras” (SILVA, 2012, p. 18). De certo modo, a ênfase dada pelo narrador à
cegueira, quando relata que “só num mundo de cegos as coisas serão o que
verdadeiramente são” (SARAMAGO, 1995, p. 128), encontra respaldo nas atitudes
de negação, exclusão e marginalização por parte daqueles – Governo, autoridades e
soldados – que veem os confinados com um “olhar de fora”.
A leitura da narrativa feita até aqui mostra que a estratégia antropoêmica é
voga no que tange à alteridade: os cegos, representando os estranhos ao mundo
ordeiro, são “vomitados”, ou seja, excluídos e marginalizados pelo Estado. De outro
ângulo, Ensaio sobre a cegueira pode ser lido com um “olhar de dentro”, com
ênfase às ações das personagens em sua quarentena no manicômio. Assim, essa
parte do texto procura deliberar acerca do dilema da alteridade entre os cegos
confinados, com ênfase à fragmentação dos relacionamentos e à marginalização.
95
A perda da visão por parte da maioria das personagens do Ensaio sobre a
cegueira é apenas mais um passo para a modificação do olhar. O manicômio
assoma como lugar em que as experiências entre os sujeitos precisam ser
assimiladas e re-aprendidas para que, assim, a dimensão do espaço (camaratas,
corredores, banheiros), seja ressignificado. Cria-se, assim, uma nova comunidade
que em muito lembra os espaços labirínticos de uma cidade.
Antes, em suas rotinas diárias, libertas do “mal-branco”, as personagens
conviviam com todo e qualquer pré-conceito que norteava a vida no mundo visível.
No manicômio, onde os cegos “vão ali como carneiros ao matadouro, balindo como
de costume, um pouco apertados, é certo, mas essa sempre foi a sua maneira de
viver, pelo com pelo, bafo com bafo, cheiro com cheiro” (SARAMAGO, 1995, p.112),
eles precisam assimilar as dificuldades, e novas regras de convivência precisam ser
estipuladas para que a convivência seja, pelo menos, tolerável.
Os sujeitos confinados precisam pensar a alteridade posto que estão
limitados pela cegueira. O manicômio representa não só estruturalmente, mas
também de modo subjetivo, a condição fragmentária do sujeito envolto nas
contingências que Bauman (2009, p. 19) vê como sendo uma “vida líquida”. A
mulher do médico, não alheia à sua condição de vidente de tudo que a cerca dentro
da camarata, ao assistir uma discussão entre os cegos para ver quem ficava com a
melhor cama, a personagem faz de sua nova experiência um autoexame, autocrítica
e autocensura, pois sentencia: “o mundo está todo aqui dentro” (SARAMAGO, 1995,
p. 102).
A constatação da mulher do médico instiga à reflexão a respeito do re-
aprendizado a que são condicionados os sujeitos cegos do romance. Para Silva
(2012),
a situação de cegueira exige a reestruturação do olhar, ou seja, a readaptação perceptiva ao mundo, um aprendizado da visão envolvendo todos os sentidos para poder assegurar a existência de centenas de cegos num mundo restrito e estruturado para quem pode ver (SILVA, 2012, p. 47).
Configura-se, assim, uma nova sociedade, haja vista que os sujeitos são
reduzidos ao grau zero da civilização, semelhante a uma orla primitiva, onde tudo
tem de ser refeito, tudo tem de ser re-aprendido. Assim, ações simples e corriqueiras
para quem consegue enxergar, como fazer as necessidades básicas de higiene,
tornam-se complicadas diante da cegueira.
96
A questão que envolve nuanças de ordem espacial e de tempo evidenciada
no romance Ensaio sobre a cegueira, leva a pensar a relação do homem com o
espaço e a questão da alteridade no contexto da coletividade. Nesse contexto, Marc
Augé, em Não-lugares (1994), faz uma abordagem sócio-cultural da pós-
modernidade. Os lugares tradicionais são os lugares antropológicos, que referem à
construção simbólica do espaço que não poderia dar conta, somente por ela, das
vicissitudes e contradições da vida social, mas à qual se referem todos aqueles a
quem ela designa um lugar (AUGÉ, 1994, p. 51). O autor designa “não-lugar” todos
os dispositivos e métodos que visam à circulação de pessoas, em oposição à noção
sociológica de “lugar”, isto é, à ideia de uma cultura localizada no tempo e no
espaço.
Ensaio sobre a cegueira pode ser lido levando em conta a noção de “não-
lugar” (AUGÉ, 1994), pois o escritor desconstrói as referências típicas do “lugar
antropológico”, sobre as quais a literatura, por ser umas das formas de expressão
cultural de um povo, busca sua referência concreta. O romance traz em sua tessitura
a ausência de marcas temporais e espaciais, bem como não permite ver as marcas
usuais da historicidade.
A lição transmitida pela narrativa é que o mundo de imagens passa a ser
substituído por um mundo de sons dispersos, perdidos no “mar leitoso” que se
apresenta aos cegos. Com exceção da mulher do médico, a única que não sucumbe
à cegueira, as demais personagens se veem diante de uma vida sem os referentes
do seu lugar antropológico (AUGÉ, 1994). A ausência de marcadores temporais e
espaciais na narrativa e a própria cegueira das personagens reforçam a ideia
do “não-lugar”.
Os elementos demarcadores do lugar antropológico, caracterizado pelas
raízes identitárias, relacionais e históricas são desfeitas no “não-lugar” do
manicômio. O novo espaço é marcado pela provisoriedade da subsistência nas
camaratas, pela redução dos códigos de convivência social a um estado de barbárie.
A cegueira descentraliza, liquefaz as identidades e revela o verdadeiro caráter do
sujeito. Aos olhos do narrador, não escapa a visão apurada e fria do ambiente que
pouco a pouco mostra que, cegos ou não, as personagens são aquilo que eram
quando a cegueira ainda não os tinha vitimizado.
Aqui não há só gente discreta e bem-educada, alguns são uns mal- desbastados que se aliviam matinalmente de escarros e ventosidades sem
97
olhar a quem está, verdade seja que no mais do dia obram pela mesma conformidade, por isto a atmosfera vai se tornando cada vez mais pesada (SARAMAGO, 1995, p. 99-100).
A quarentena imposta aos cegos leva a discutir o dilema da alteridade tendo
como parâmetros a relação do sujeito com o espaço, em especial as nuanças
voltadas à fragmentação dos relacionamentos. No que tange à nova vida dos cegos,
o ensinamento de Augé (1994) é oportuno quando assevera que os espaços
urbanos que mediam a relação eu-outro necessitam passar por uma reavaliação.
Para o narrador do romance, ainda nos primeiros dias de convívio, “bastavam
duas ou três palavras trocadas para que os desconhecidos sem convertessem em
companheiros de infortúnio, e com mais três ou quatro se perdoavam mutuamente
todas as faltas, algumas delas bem graves” (SARAMAGO, 1995, p. 133). Com o
passar dos dias, as diferenças vem à lume. De modo sentencioso, o narrador lembra
que mesmo que os cegos deem o melhor de si, não podem esquecer:
[...] daquilo que são aqui, cegos, simplesmente cegos, cegos sem retóricas nem comiserações, o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos (SARAMAGO, 1995, p. 135).
As palavras do narrador acerca da dureza que é ser cego num manicômio em
que os sujeitos são levados aos limites, recupera o pensamento de Ginzburg (2004).
Diante da experiência trágica a qual os cegos são relegados, uma experiência
pautada na tragicidade, a exposição das vítimas pode ser vista na perspectiva em
que a cegueira é “associada conotativamente aos limites do conhecimento, à ilusão,
à incerteza” (GINZBURG, 2004, p. 57).
Na voz do narrador, de que “na terra dos cegos quem tem um olho é rei”
(SARAMAGO, 1995, p. 103), reveste-se de uma fina ironia, que acaba encontrando
respaldo na atitude desonesta de alguns cegos. Para exemplificar, tem-se a
passagem em que o narrador relata o episódio do retorno dos cegos que haviam
buscado as caixas com alimentação junto aos guardas no portão do manicômio.
Enquanto alguns cegos aplaudem o sargento, que reprimira seus subordinados por
orientarem de maneira equivocada os cegos no seu trajeto de volta às camaratas,
outros cegos “[a]proveitando-se do alvoroço, [...] tinham-se escapulido com umas
quantas caixas, as que conseguiram transportar, maneira evidentemente desleal de
prevenir hipotéticas injustiças de distribuição” (SARAMAGO, 1995, p. 107).
98
A passagem em tela ilustra que o redimensionamento das relações entre os
cegos é colocado em xeque diante da experiência trágica que é viver no limite. Cria-
se, inicialmente, um jogo dicotômico, em que as diferenças afloram na divisão das
camaratas, na divisão dos alimentos e na escolha das camas. O ditado popular que
versa “que em terra de cego aquele que tem um olho é rei” é diluído quando as
personagens discutem a respeito da divisão da comida que está sendo dividida de
modo desonesto. Um cego, irônico, se posiciona sobre o problema: “Aqui nem os
zarolhos se salvariam” (SARAMAGO, 1995, p. 103), esvaziando o sentido do ditado
acima citado.
A cegueira faz com que as personagens, fragmentadas em sua constituição,
ajam como os líquidos de que fala Bauman (2001) quando se refere à inconstância
dos sujeitos na sociedade líquido-moderna. Na sociedade do Ensaio, os “sólidos”
derreteram, pois a liquidez dos relacionamentos dificulta a sedimentação das
experiências entre os cegos. A liquefação dos laços e vínculos que firmavam as
relações entre os cegos resulta num crescente individualismo.
Isso faz eclodir a revolta entre alguns cegos que, num tempo anterior ao
confinamento, estavam mais acostumados às gentilezas e à nobreza do ato de
repartir o pouco que tinham. “Os de boa-fé”, conta o narrador, “que sempre os há por
mais que se lhes diga, protestaram, indignados, que assim não se podia viver, Se
não podemos confiar nos outros, aonde é que vamos parar” (SARAMAGO, 1995, p.
107).
O re-aprendizado da alteridade, representado na urgência da adaptação ao
“não-lugar” e na insurreição da incerteza, acaba liquefeito diante das atitudes
desonestas dos cegos que pertenciam às outras camaratas que não fosse a
camarata do médico e da sua esposa. O manicômio não possibilita que as ações
baseadas nas “políticas de coletividades” (BAUMAN, 2001) tenham êxito.
As políticas de vida são conduzidas quase que exclusivamente de modo
individual, fazendo com que o leitor reflita sobre a linha tênue que se coloca entre o
individual e o coletivo. As imagens do cotidiano evidenciadas na narrativa
caracterizam o declínio da ideia de que se possa uma sociedade perfeita, boa e
justa, sem conflitos entre os sujeitos (BAUMAN, 2001, p. 37). A sociedade de cegos
liquefaz as últimas identidades que procuravam manter suas falsas aparências, pois
como expressa o médico: “só num mundo de cegos as coisas serão o que
verdadeiramente são” (SARAMAGO, 1995, p. 128).
99
A fala da personagem sintomatiza que, na sociedade dos cegos, não há como
mascarar as identidades que cada um mantinha em seu contexto social anterior ao
manicômio. Com a crise de identidade, a necessidade de adaptação aos ambientes
faz com que os sujeitos procurem, dia-a-dia, adaptarem-se a um ambiente
degradado. Dificultada a adaptação, os instintos humanos caem por terra diante da
animalização que paulatinamente toma os corações encarcerados.
O narrador vê a chegada de mais cegos ao manicômio como um fator que
exigiria mais disciplina entre os contagiados. Se inicialmente havia duas ou três
dúzias de vítimas, a nova leva de contagiados recolhidos ao manicômio, mais de
duzentos sujeitos, demandaria uma reorganização não só no que refere à ocupação
das camas, mas também no que toca aos modos de convivência. Por isso, ao ver e
perceber que havia uma generalização de tumulto, a mulher do médico alerta: “[s]e
não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo
para não viver inteiramente como animais” (SARAMAGO, 1995, p. 119).
A percepção da personagem se dá diante de um cenário em que múltiplas
identidades somatizam a perda da estabilidade do sentido de si. Na vida líquida das
camaratas, não há máscaras que sustentem a fragilidade, a instabilidade e a
inconstância do sujeito. Desse modo, as ações das personagens visam a justificar a
fragilidade dos laços humanos num local em que “ter” vem antes do “ser”, haja vista
as necessidades fisiológicas que sobrepujam às necessidades psicológicas.
Sem o sentido da visão, os cegos e tudo mais que está em seu entorno
assumem não o espectro do acabado, daquilo que pode ser tocado. Liquefeitas, as
velhas identidades dos sujeitos da narrativa não correspondem mais à realidade do
mundo antropológico, pois suas identidades estão fragmentadas, contraditórias e
não resolvidas (HALL, 2005, p. 12), e precisam ser reformatadas para que se
ajustem a um tempo líquido.
Aos tomados pela cegueira cabe o anonimato, tal como ocorre no mundo
ordeiro, que gira em torno dos relacionamentos administrados. Os sujeitos não são
conhecidos pelos nomes, mas sim pelo “nome fantasia” da empresa, por exemplo.
Na tessitura do romance, a identificação das personagens através de suas
profissões ou postos que ocupam no círculo social (médico, mulher do médico,
ladrão, motorista, ajudante de farmácia, rapariga dos óculos escuros, rapazinho
estrábico), faz com que cada sujeito integre uma coletividade disforme.
100
Na sociedade do manicômio, heterogênea e impessoal, os nomes dos
sujeitos em nada importam. Logo que chegam ao manicômio, a mulher do médico
organiza a fila de cegos e diz “o melhor será que vão se numerando e dizendo cada
um quem é” (SARAMAGO, 1995, p. 66). Os cegos hesitam e “dois dos homens
falaram simultaneamente, um fez uma pausa, parecia que ia dizer o nome, mas o
que disse foi, sou polícia, e a mulher do médico pensou, não disse como se chama,
também saberá que aqui não tem importância” (SARAMAGO, 1995, p. 66).
A posição social até então exercida pelos sujeitos não mais é levada em
conta. Sua condição os destitui do exercício de seus papéis como sujeitos de
direitos, tendo, então, sua identidade “diluída”. Marginalizadas, as personagens que
ocupam as camaratas apresentam identidades inconsumadas (BAUMAN, 1998b, p.
91), fluidas e liquefeitas. O ambiente degradado faz com que as personagens se
auto-examinem, se avaliem, se questionem. A mulher do médico, numa das
primeiras noites de quarentena, reflete sobre a condição a qual estão condicionadas.
Para ela:
[...] tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembramos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para que, para que iriam servir-nos os nomes, nenhum cão reconhece outro cão (SARAMAGO, 1995, p. 64).
A interrogação da personagem remete à crise de identidade na modernidade
líquida, em que é lugar-comum constatar que a alteridade é mediada por uma co-
existência frágil, repartida em fragmentos mal coordenados, ao passo que as
existências individuais são fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente
conectados (BAUMAN, 2005, p. 18-19).
A sucessão de acontecimentos expõe a constituição contraditória e
fragmentada dos sujeitos cegos em seu cotidiano de ilusões e incertezas.
Indubitavelmente, é no jogo das aparências e no mascaramento da realidade que as
vitimas da cegueira expõe suas fragilidades diante do dinamismo das forças sociais.
O cotidiano dos cegos não escapa à barbárie que já foi abordada por Adorno (1994)
ao referir que a frieza, a falta de amor e a indiferença são condições formuladas no
curso da história da Humanidade, e não exclusividade do Holocausto.
A frieza e a indiferença fazem com o último grupo de cegos que chegara ao
manicômio se imponha e passe a confiscar as caixas com alimentação em troca de
pagamentos. “Não nos deixaram trazer a comida” (SARAMAGO, 1995, p. 138), grita
101
um dos cegos encarregado de pegar a comida à entrada do manicômio e trazê-la
para a camarata em que ficavam o médico e sua esposa. Conforme a personagem,
“[e]les dizem que isso acabou, a partir de hoje quem quiser comer terá que pagar”
(SARAMAGO, 1995, p. 138).
Em meio a protestos e ânimos alterados, a negociação acerca da comida tem
início. A mulher do médico acompanha alguns colegas de camarata que, exaltados,
se dirigem ao átrio. Lá chegando, “a mulher do médico compreendeu logo que
nenhuma conversação diplomática iria ser possível, e que provavelmente não o
seria nunca”, pois os cegos malvados rodeavam as caixas de comida, “um círculo de
cegos armados de paus e ferros de cama, apontados para a frente como baionetas
ou lanças, fazia frente ao desespero dos cegos que os cercavam” (SARAMAGO,
1995, p. 138-139).
Em meio à batalha campal travada no átrio, entre golpes às cegas e
empurrões desencontrados, a mulher do médico:
[...] aterrorizada, viu um dos cegos quadrilheiros tirar do bolso uma pistola e levantá-la bruscamente no ar. O disparo fez soltar-se do teto uma grande placa de estuque que foi cair sobre as cabeças desprevenidas, aumentando o pânico (SARAMAGO, 1995, p. 140).
A partir desse momento, outra relação é constituída. De modo trágico, a
relação entre opressor e oprimido parte de um contexto em que se presume que a
harmonia e a união devam ser voga com vistas à igualdade. Os cegos da camarata
do médico pela segunda vez são marginalizados. Se antes eles eram
marginalizados pelos guardas do manicômio, a partir do conflito interno a
marginalização se dá num viés do “olhar de dentro”.
O cego da pistola e os demais do seu grupo assumem o poder interno do
manicômio e discrimina ordens a todos: “a partir de hoje seremos nós a governar a
comida [...], sofrerão as consequências de qualquer tentativa de ir contra as ordens,
a comida passa a ser vendida, quem quiser comer, paga” (SARAMAGO, 1995, p.
140). Inicialmente, o pagamento pela comida diária se dá através da arrecadação de
objetos que tenham valor.
Os cegos das outras camaratas mostram opiniões divididas. Uns reclamam
ao passo que muitos não reconhecem que possuir ou não seus objetos não fazia
diferença para quem está cego. Assim, “desfaziam-se do que possuíam com uma
espécie de indiferença, como se pensassem que, vista bem as coisas, não há no
102
mundo nada que em sentimento absoluto nos pertença” (SARAMAGO, 1995, p.
143).
Mas, passados alguns dias, outros bens são requisitados em troca de comida.
Dessa vez, “os cegos malvados mandaram recado de que queriam mulheres. [...] Se
não nos trouxerem mulheres, não comem” (SARAMAGO, 1995, p. 165). Diante da
degradante imposição, os cegos levaram a exigência às camaratas. Inicialmente, os
homens da camarata do médico relutaram e negaram-se a acreditar que ainda havia
espaço para mais degradação daquilo que os civilizados chamam de dignidade.
No dia seguinte, na hora marcada, a mulher do médico organiza a fila que iria
até a camarata dos cegos malvados. Uma a uma, as mulheres se posicionavam
para ir ao encontro fatídico. Em fila indiana,
[a] rapariga dos óculos escuros foi pôr-se atrás da mulher do médico, depois, sucessivamente, a criada do hotel, a empregada do consultório, a mulher do primeiro cego [...], a cega das insônias, uma fila grotesca de fêmeas malcheirosas, com as roupas imundas e andrajosas (SARAMAGO, 1995, p. 174).
Após passarem pelos compridos corredores, as mulheres expostas ao
sacrifício chegam à camarata dos cegos malfeitores. De dentro do local que logo
serviria de “abatedouro” do último resquício de dignidade das mulheres, “saíram
gritos, relinchos, risadas” (SARAMAGO, 1995, p. 175). Alguns cegos, afoitos,
afastam rapidamente a cama que servia de barricada à entrada da camarata:
“Depressa, meninas, entre, entrem, estamos todos aqui como uns cavalos, vão levar
o papo cheio” (SARAMAGO, 1995, p. 175), disse um deles entre risos sarcásticos.
O que se viu depois disso são cenas que poderiam ser inenarráveis. Contudo,
o narrador saramaguiano não poderia furtar-se de “ver” e relatar a barbárie a qual as
mulheres estavam sendo submetidas.
Os cegos relincharam, deram patadas no chão, Vamos a elas que se faz tarde, berraram alguns, Calma disse o da pistola, deixe-me ver primeiro como são as outras. Apalpou a rapariga dos óculos escuros e deu um assobio, Olá, saiu-nos a sorte grande, deste gado ainda cá não tinha aparecido. [...] Esta é das maduras, mas tem jeito de ser também uma rica fêmea. Puxou para si as duas mulheres, quase se babava quando disse, Fico com estas, depois de as despachar passo-as a vocês. [...] A cega das insônias uivava de desespero debaixo de um cego gordo, as outras quatro estavam rodeadas de homens com as calças arriadas que se empurravam uns aos outros como hienas em redor de uma carcaça (SARAMAGO, 1995, p. 176).
103
A passagem em tela caracteriza o estado de animalização que toma os cegos
esquecidos dentro do manicômio por parte do Estado. Tanto as mulheres cegas que
foram violentadas como os cegos malvados que as violentaram física e moralmente,
enfim os sujeitos de Ensaio sobre a cegueira revelam sua face animalesca em seu
plano mais cruel e sórdido. Para o narrador, o comportamento destes passa a ser
comparado com o dos animais. O uso dos termos “relincharam”, “patadas”,
“berraram”, “gado”, “fêmea”, “babava”, “uivava” e a expressão que os compara
diretamente “[...] como hienas ao redor de uma carcaça” (SARAMAGO, 1995, p.
176), descreve os sujeitos bárbaros sem velar suas atitudes perante o leitor.
A barbárie a qual são submetidas as mulheres cegas revela que os sujeitos
perderam o sentido de civilidade e responsabilidade, caracterizando sua natureza
bruta, contraditória e fragmentada. A narrativa traz à lume as imperfeições e
deformidades existentes no caráter humano dos sujeitos cegos, o faz através da
descrição ou evocação de fatos grosseiramente vulgares, sórdidos e grotescos,
“derretendo” as máscaras sociais.
A representação da realidade no romance desvela um tempo de crise a partir
de uma versão desumanizada dos sujeitos fragmentados. A narrativa instiga que o
ser humano “abra os olhos” e que tenha mais sensibilidade e posicionamento crítico
no que tange aos rumos da relação eu-outro em sociedade. A fragmentação e
marginalização do sujeito é o sintoma da crise instaurada no bojo da sociedade
líquido-moderna, em que o esmaecimento dos afetos advém da fragilidade dos
limites que separam o ser humano da barbárie.
Acerca disso, André Bueno (2002) destaca que
[d]epois de Freud, sabemos todos como são frágeis os limites que separam civilização e barbárie, contratos sociais e violência cega. Sabemos como é difícil a vida em sociedade, tanto de renúncia que se faz necessária, o quanto de aceitação da realidade e diminuição do prazer se apresentam inevitáveis (BUENO, 2002, p. 282).
No romance saramaguiano, a violência que escorre dos “contratos” entre os
cegos pode ser contemplada como o declínio da alteridade. Ainda que vista em
segundo plano no rol das questões sobre as quais gira a narrativa, a violência é
percebida como
[...] resultado, uma adaptação instável e perigosa, posto que a renúncia e a repressão criam uma hostilidade contra a própria civilização, que pode
104
se manifestar como violência e formas irracionais de “resolver” o mal-estar que a vida social impõe (BUENO, 2002, p. 282).
A ausência de perspectivas por parte das personagens do manicômio revela
uma lacuna no âmbito dos valores morais e éticos, bem como a fragmentação dos
laços sociais que são, página por página, substituídos pelo estranhamento do outro.
A narrativa põe em suspenso a esperança. Na voz da personagem mulher do
médico, enxergar já não é mais motivo para acreditar diante da barbárie instaurada
no manicômio. Primeiro, por ter matado o cego malvado com várias estocadas de
tesoura durante as orgias:
A mão levantou lentamente a tesoura, as lâminas um pouco separadas para penetrarem como dois punhais. [...] Não chegarás a gozar, pensou a mulher do médico, e fez descer violentamente o braço. A tesoura enterrou-se com toda a força na garganta do cego. [...] O grito mal se ouviu (SARAMAGO, 1995, p. 185).
Com a morte do cego malvado, o caos é inevitável no interior do manicômio.
Alguns conflitos corpo a corpo são vistos na rotina desumanizadora dos cegos. Em
outra oportunidade, após uma tentativa frustrada de invadir a camarata onde os
cegos malvados guardavam a comida objeto de disputa, a mulher do médico rasteja
pelo chão imundo na busca de resgatar dois colegas mortos a tiros. Ela constata
que:
[...] pela porta do átrio que dá para a cerca exterior entra uma difusa claridade que cresce pouco a pouco, os corpos que ainda estão no chão, mortos dois deles, os outros vivos ainda, vão lentamente ganhando volume, desenho, traços, feições, todo peso de um horror sem nome, então a mulher do médico compreendeu que não tinha qualquer sentido, se o havia tido alguma vez, continuar com o fingimento de ser cega, está visto que aqui ninguém se pode salvar, a cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança (SARAMAGO, 1995, p. 204) (grifos do autor).
A cegueira tematizada no Ensaio sobre a cegueira se desdobra como uma
experiência do “re-aprendizado”, em que o sentido do olhar adquire suma
importância no relacionamento entre os cegos confinados no manicômio. Ainda que
o narrador diga que “não é preciso ter olhos para saber de que lado está a mão
direita” (SARAMAGO, 1995, p. 104), a perda da visão por parte das personagens
expõe as dificuldades que essa perda impõe ao sujeito, necessitando que o cego se
ajude aos olhos alheios, que também não veem.
105
Desse modo, do manicômio à liberdade com o retorno à vida na cidade, para
as personagens cegas a cegueira é questionada em todo o percurso narrativo. Esse
tipo de cegueira “configura-se de forma paradoxal, porque é pelo viés dela que se
discute o olhar como uma busca de sentido explícito e reconhecível para a
sociedade em que se perdeu quase por completo, os princípios fundamentais que
norteiam a visão” (SILVA, 2012, p. 20). A mensagem positiva que o romance deixa
na cosmogonia pós-moderna é traduzida pela postura crítica da mulher do médico
que, estando fora do manicômio após o incêndio que destruiu o local e tentando
readaptar-se à vida na cidade em caos, questiona: “E como poderá uma sociedade
de cegos organizar-se para que viva”, ao passo que ouve do médico: “Organizando-
se, organizar-se já é, de uma certa maneira, começar a ter olhos” (SARAMAGO,
1995, p. 282).
A narrativa mostra que o olhar é objeto do desejo de ver, contudo há “cegos
que veem, Cegos que, vendo, não veem” (SARAMAGO, 1995, p. 310), o que
corrobora com a passagem ao final da narrativa, em que o médico oftalmologista
convida para que abram os olhos, e alguém responde: “não podemos, estamos
cegos”, sendo que o médico diz: “É uma grande verdade que o pior cego foi aquele
que não quis ver” (SARAMAGO, 1995, p. 283).
A seção fez uma leitura de Ensaio sobre a cegueira, levando em conta dois
aspectos. Com um “olhar de fora”, leu-se a narrativa do ponto de vista das
personagens que, usando do expediente do poder, no caso o Estado e o exército,
isolam as personagens cegas no manicômio abandonado, excluindo-as e
marginalizando-as. Com um “olhar de dentro”, leu-se o romance num viés que
analisou as atitudes das personagens cegas entre si, em que pese deliberar acerca
do dilema da alteridade e das relações que denigrem e marginalizam os sujeitos no
espaço de confinamento.
A próxima seção delibera acerca de João Gilberto Noll. Primeiro, traz um
apanhado crítico sobre a obra do escritor para, em seguida, fazer uma análise do
romance Hotel Atlântico (1989).
106
3.2 João Gilberto Noll e as narrativas líquidas
Numa entrevista datada de outubro de 2006, o escritor João Gilberto Noll fala
a respeito de uma das características marcantes de sua prosa literária: o nomadismo
de suas personagens, que não encontram ancoragem, lugar fixo no mundo social.
Sobre essas características, afirma Noll (2000, p. 19), “não trato de pessoas em
cenários domésticos, em volta da mesa da cozinha. Os cenários da minha gente são
a rua. [...] Toda minha ficção existe a partir de um sentimento de desterro”. Por isso,
na literatura do escritor gaúcho, as relações de alteridade se dão por esvaziamento,
sendo que a construção do sujeito se dá pelo anonimato, pela solidão, a ausência de
contatos afetivos duradouros, de vínculos profissionais, políticos, residenciais ou
representantes de estratificação social.
A literatura brasileira contemporânea reúne variadas tendências, o que deixa
claro que a forma mais apropriada de ela se aproximar é através do ponto de vista
da multiplicidade. O “fazer” literário de Noll pode ser inserido naquilo que Karl Erich
Schollhammer (2009) denomina de “realismo de novo” ao fazer alusão à literatura
produzida no Brasil a partir de 1980.
Em Ficção brasileira contemporânea (2009, p. 9), o crítico explica que para
narrar o tempo presente o escritor deve ter a astúcia de se “orientar no escuro e, a
partir daí, ter coragem de reconhecer e de se comprometer com um presente com o
qual não é possível coincidir” (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 10). Visto desse viés, ao
escritor contemporâneo cabe um desafio: dar respostas a um anacronismo ainda
tributário de esperanças que lhe chegam tanto de um passado histórico em ruínas e
de um futuro permeado por utopias em que o sujeito vaga sem esperanças e
desiludido.
Schollhammer discorre sobre um contexto literário atual por ele denominado
de “o ‘realismo de novo’, em que a literatura contemporânea26 procura criar efeitos
de realidade, sem precisar recorrer à descrição verossímil ou à narrativa causal e
coerente” (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 79). No bojo da representação literária
dentro de um prisma pós-moderno, o crítico expressa que a literatura atual não é
aquela “que representa a atualidade, a não ser por uma inadequação, uma
26 Não comparando o termo “realismo” aos escritores realistas do passado, cita a prosa literária experimental de Luiz Ruffato, autor do romance Eles eram muitos cavalos (2001), como exemplo claro desse “novo realismo” que desestabiliza a objetividade da representação realista.
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estranheza histórica que a faz perceber as zonas marginais e obscuras do presente,
que se afastam de sua lógica” (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 10).
Consoante às diferenças estabelecidas entre a modernidade e o momento
atual da história, tem-se a ênfase de que “o presente contemporâneo é a quebra da
coluna vertebral da história e já não pode oferecer nem repouso, nem conciliação”
(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 12). Nesse sentido, o “novo realismo” é pautado na
vontade dos escritores em relacionar literatura e arte com a realidade social e
cultural da qual a ficção emerge, em que a produção artística assoma como força
transformadora (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 54), dando suporte à prosa pós-
moderna que ganhou força a partir de 1980, em que pese situar o nome de João
Gilberto Noll como um dos expoentes literários dessa geração.
Na literatura brasileira, João Gilberto Noll (1946 – Porto Alegre – RS) vem
chamando atenção da crítica e do público leitor como um dos mais expressivos
nomes surgidos na prosa ficcional depois de 1970. Foi com a coletânea de contos O
cego e a dançarina (1980), que o escritor gaúcho despontou no cenário cultural,
conquistando prêmios como “Revelação do Ano” da Associação Paulista dos
Críticos de arte, “Ficção do Ano” do Instituto Nacional do Livro e o “Prêmio Jaboti” da
Câmara Brasileira do Livro.
Noll é autor dos romances A fúria do corpo (1981), Bandoleiros (1985),
Rastros do verão (1986), Hotel Atlântico (1989), O quieto animal da esquina (1991),
Harmada (1993), A céu aberto (1996), Canoas e marolas (1999), Berkeley em
Bellagio (2002), Mínimos Múltiplos Comuns (2003), Lorde (2004), os livros de contos
Máquina de ser (2006) e Acenos e afagos (2008).
Consoante à obra nolliana, Sarita Costa Erthal Cordeiro, em sua dissertação
de mestrado Por vias e desvios: um panorama sobre o protagonista de João Gilberto
Noll em suas trilhas contemporâneas (2008), destaca que o narrador-protagonista do
escritor gaúcho é um tipo que merece atenção, porque, apesar de sua constante, é:
[...] um andarilho que percorre as imagens que ele próprio cria, em contínuo perambular pelo espaço/tempo, sem que, com isso, as experiências dessas andanças se agreguem a ele e modifiquem, de algum modo, sua maneira de agir perante o mundo e as situações pelas quais passa. Ele se diferencia entre as narrativas por surpreender o leitor a cada passo que dá (CORDEIRO, 2008, p. 9).
Nesse sentido, esclarece Cordeiro (2008, p. 9), as muitas transgressões nos
romances do escritor gaúcho causam um desconcerto no leitor, pois este não
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consegue decodificar se os acontecimentos narrados aconteceram na trama ou
apenas imaginação do narrador-protagonista. Além disso, a análise das narrativas
de Noll permite uma leitura que desvele a paranoia presente em sua literatura, que é
um choque por desconstruir os modelos sociais ao qual o leitor está submetido.
Rafael Campos Quevedo, em “Experiência e pobreza na narrativa de João
Gilberto Noll” (2007), faz uma leitura de quatro romances nollianos. Em referência a
Hotel Atlântico (1986), Harmada (1993), A céu aberto (1996) e Berkeley em Bellagio
(2002), o autor parte do pressuposto de que essas narrativas são registro do
definhamento da experiência e da memória, elementos que dão suporte à figura do
narrador. No artigo, o autor indaga sobre a configuração problemática do narrador
da obra de Noll do ponto de vista da “falta do ter o que narrar”, espécie de paradoxo
emblemático da conjuntura em que a obra do escritor gaúcho se insere.
Ao se reportar a essas narrativas, Quevedo (2007) destaca que nelas:
[...] tudo se passa como se elas fossem engendradas ‘durante’ o processo mesmo da escrita, ou seja, o conteúdo da narrativa não precederia o texto em si, mas passaria a existir de maneira concomitante ao próprio ato de narrar. Isso nos sugere a possibilidade de estarmos diante de uma escrita que parte do “grau zero” da memória, que não se origina de um centro irradiador de onde se poderia jorrar uma experiência a ser comunicada, mas tudo se passa como se tal escrita fosse a confissão e o testemunho dessa ‘pobreza’ (QUEVEDO, 2007, p. 4).
Quevedo (2007, p. 2) observa que a pobreza advinda da falta do que ter para
narrar por parte dos protagonistas de cada narrativa em questão faz com que ao
final de cada romance se tenha algum tipo de colapso com a linguagem, seja na
forma de impotência total ou parcial dos sentidos: mudez ou surdez como em Hotel
atlântico e Harmada; seja no conflito entre língua materna e língua estrangeira, caso
de Berkeley; ou na encenação de uma mudez, como ocorre em A céu aberto.
Além disso, frisa o autor, a ideia de se chegar até o mutismo ou a alguma
forma de privação de um ou alguns dos sentidos que dizem respeito à faculdade da
comunicação pode ser entendida sob dois prismas: o da degeneração e o do triunfo.
No primeiro caso, emudecer pode significar, pelo viés da queda, a amputação de uma faculdade essencial, sem a qual o indivíduo se desumaniza, torna-se um mutilado, expulso da comunidade do lógos onde se abriga a humanidade como forma de se ‘proteger’ da ameaçadora ancestralidade animal. Sob o outro ponto de vista, a mudez pode ser vista não como perda, mas como coroamento, ascensão. O indivíduo salta sobre o fosso do qual a linguagem se pretende ponte e alcança, sob a forma do silêncio, a consciência, de natureza mística, a partir da qual a linguagem
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torna-se absolutamente desnecessária. Nesse caso, é ela, a linguagem, que é vista como precariedade e insuficiência. O silêncio, por sua vez, é almejado como a instância última, não do conhecimento conceitual e discursivo (lógos), mas da sabedoria mística, espécie de superação do hiato entre homem e mundo (QUEVEDO, 2007, p. 2).
No tocante aos romances analisados, Quevedo (2007, p. 12) expressa que
essas narrativas não apresentam a figura do sujeito conciliado, justamente porque,
em Hotel Atlântico, Harmada, A céu aberto e Berkeley em Bellagio, tem-se a
manifestação de um projeto de literatura que quer a qualquer custo fugir do engodo
da grande mentira da unidade, da verdade e da sabedoria enquanto experiência de
uma tradição.
Fernanda Dusse, no artigo “Signos partidos: uma análise da (des)construção
da subjetividade na narrativa de O quieto animal da esquina, de João Gilberto Noll”
(2002), comenta que há semelhanças entre a obra de Noll e a de outros autores e
textos pós-modernistas brasileiros, como Bernardo de Carvalho, Dalton Trevisan ou
Silviano Santiago. Em todos eles, destaca Dusse (2002, p. 3), a “fragmentação é
utilizada como técnica sintática e semântica, possibilitando o debate sobre a
ressignificação do leitor na narrativa pós-moderna”.
Dusse faz uma leitura do romance O quieto animal da esquina (2003),
explicando que na narrativa de Noll:
[...] fragmentação e pluralismo estão presentes nas contradições e angústias de seu protagonista-narrador. Sua escrita é um convite à reflexão, na medida em que busca romper com aspectos vários da tradição literária, como a onisciência do narrador (que é nesta obra absolutamente volátil), a organização textual em blocos interligados (a conexão entre as partes da novela precisa ser pensada pelo leitor) ou a presença de diferentes vozes marcada pela existência de diferentes personagens (pois aqui é o protagonista-narrador que incorpora pontos de vista opostos e desconexos, mostrando a pluralidade do indivíduo) (DUSSE, 2012, p. 3).
Nesse sentido, destaca Dusse (2012, p. 4), “mais importante que construir
sentidos, a obra de Noll é um convite para lidar com a desconstrução”, em que seu
“fazer” literário pós-moderno se faz de migalhas e questionamentos, abandonando a
ilusão de sentido do texto ou sentido da vida. Ao assumir a descrença e a
impotência como patamares narrativos, O quieto animal da esquina possibilita
perceber algumas ações típicas do romance de formação, a fim de apresentar a
personagem à luz de sua origem, seu conhecimento e seu caráter.
Entretanto, em O quieto animal da esquina:
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[...] é nítido o caráter irônico empregado pelo autor, que, ao se aproximar de tal gênero, desconstrói seus valores e representações simbólicas. Percebemos, que embora em movimento, o protagonista não tem destino, caminhando perdido e sem se sentir responsável por seu futuro (DUSSE, 2012, p. 5).
A desconstrução de valores e as errâncias das personagens de que fala
Dusse (2012) são contempladas em outro artigo, “A inquietação do andarilho:
desterritorialização em Hotel Atlântico” (2010), de Marcelo Barbosa Alcaraz e Rita de
Cassia Moser Alcaraz. No artigo, os autores fazem uma leitura do romance Hotel
Atlântico (1989) e levam em consideração a perspectiva do andarilho.
Segundo Alcaraz e Alcaraz, Hotel Atlântico:
[...] não pretende examinar a condição social e histórica dos tempos que correm e sim, a existência do homem pós-moderno, buscando uma existência em mundo fugidio e absurdo. Como nada é certo e seguro, como quase nada se pode planificar em mundo que se transforma em ritmo inumano, a única categoria em que se pode fiar é a das possibilidades (ALCARAZ; ALCARAZ, 2010, p. 8).
Consoante a isso, em Hotel Atlântico, a fragmentação da identidade do sujeito
e a problemática da alteridade são aspectos que saltam aos olhos. Nesse romance,
o “outro é quase sempre visto como estranho, não como alguém que se possa
estabelecer uma relação, a não ser que seja passageira” (ALCARAZ; ALCARAZ,
2010, p. 4). Consequentemente, o protagonista do romance de Noll é um sujeito
fragmentado que não foge à “vivência de um ego absolutamente infantil. Cada
encontro vai mostrando o total desinteresse de se criar vínculos. Os laços se tornam
impossíveis, é uma relação do narrador com o nada” (ALCARAZ; ALCARAZ, 2010,
p. 4).
Giuliano Hartmann, em “A céu aberto, de João Gilberto Noll: identidade
narrativa, biografias do corpo, transgressão e subjetividades” (2010), enfatiza que o
universo narrativo nolliano é um “mar no qual se navega pelo leme da incerteza”. Ao
fazer uma leitura do romance A céu aberto (1996), Hartmann insere essa narrativa
ao mundo globalizado, que não mais apresenta fronteiras a serem transpostas ou
respeitadas. As personagens dessa narrativa são “[c]riaturas que se frutificam nas
raias da marginalidade e que, incorporadas a uma possível realidade social,
intensificam a disparidade existente entre a contravenção e o legitimamente aceito”
(HARTMANN, 2010, p. 2).
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Hartmann (2010) comenta que A céu aberto possibilita uma reflexão a
respeito da condição e da contravenção das subjetividades no bojo da pós-
modernidade, pois essa é “uma narrativa que explora lugares inominados para então
evidenciar as consequências da vida capitalista na construção dos sujeitos
anônimos que percorrem as margens, tentando apenas sobreviver” (HARTMANN,
2010, p. 2). Ao fazer uma leitura dessa narrativa, o autor busca entender a
identidade do sujeito pós-moderno e sua paulatina fragmentação no âmbito da
sociedade globalizada, em que a forma do texto literário também é vista como
fenômeno e reflexo direto da inconstância que se tornou a vida humana.
Cristina Maria da Silva, em sua tese de doutorado intitulada Rastros das
socialidades: conversações com João Gilberto Noll e Luiz Ruffato (2009), aborda a
escrita literária de Noll e de Luiz Ruffato, tomando como perspectiva a tese de que
nos textos literários desses autores estão presentes as marcas da experiência social
com toda sua gama de mal-estares, com em seus conflitos e tragicidades. Ao se
reportar ao “fazer” literário de Noll, a autora expressa que seus textos são:
[...] sensíveis ao que tece a vida social, sendo uma literatura do fragmento, do instante e da diversidade humana. Uma literatura que ensina acompanhar os rastros da socialidade, adentrando as trilhas da vida que se constrói para além da clareza e da argumentação lógica (SILVA, 2009, p. 91).
Como exemplo disso, Silva (2009, p. 111-112) cita o romance Bandoleiros
(1985) e enfatiza que a narrativa segue por uma trilha de enredos, aparentemente
desconexos. Ainda, o escritor lança mão do discurso cinematográfico na construção
de suas narrativas, nas quais atravessam desesperos, desilusões, angústias da vida
cotidiana com suas presenças efêmeras, cenas eróticas passageiras, a contínua
busca de sentidos e a fragmentação das fronteiras entre o bem e o mal.
Em outra tese que merece ser citada no estudo, intitulada A transfiguração
narrativa em João Gilberto Noll: “A céu aberto”, “Berkeley em Bellagio” e “Lorde”
(2007), de Fábio Figueiredo Camargo, o pesquisador assevera que na literatura de
Noll existe uma deserção da companhia do outro na cultura que só consegue algum
alívio ao tocar a carne humana, para, a partir daí, entrar nesse gozo provisório,
efêmero, que é o contato com o outro.
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Camargo (2000) expressa que Noll filia-se ao rol de escritores cujos textos
literários não escamoteiam:
[...] a desesperança do homem contemporâneo, que nada mais tem a narrar, embora continue a narrar, que não possui sonhos a serem concretizados, ajuda a compreender que não há mais o que fazer a não ser continuar infinitamente uma ladainha eterna, sem se preocupar com mais nada a não ser o presente (CAMARGO, 2000, p. 19-20).
No que tange ao romance Céu aberto (1986), Camargo (2000, p. 40) reitera
que provisoriedade e efemeridade levam a entender que não há um sujeito
completo, só há alguém fragmentado, em estado decadente, o que “configura-se na
profunda perplexidade do sujeito que vivencia a decadência do mundo e de si
próprio”, que vê a sua própria perda de lastro (PIRES, 2000, p. 41 apud CAMARGO,
2000, p. 40). Essa aparência esgarçada dá a definição do que é esse sujeito em
frangalhos ou fragmentado.
Camargo observa que Noll, em entrevista a Ronaldo Bressane (2000),
destaca que sua escrita é aquela que lida com o desconforto do leitor.
Ela não está interessada em causar ou possibilitar a este um conforto moral, um conforto pequeno-burguês. Há uma necessidade para o escritor de levar seu leitor a uma jornada na qual este vislumbre algo para além da realidade concreta que se lhe aparece todos os dias. Esse desconforto, organizado pelos seus temas os mais insólitos e pela implosão de todos os valores burgueses com os quais o seu leitor está acostumado, é o motor propulsor da angústia de sua literatura. Só o que existe é o sentimento de perda e de desamparo nessa escrita do desconforto que traz ao seu leitor a inquietude de se saber em um mundo por demais arrasado e, ao mesmo tempo, com a possibilidade de o poético e o belo instaurarem-se em meio ao desencanto e à destruição. Não há certeza de saída, há, sim, a derrocada dos valores burgueses, o fim dos seres de papel, quase sempre desaparecidos, subsumidos em suas angústias cotidianas, embora eles, em suas elocubrações, não se cansem de dizer o quanto estão cansados de representar e de se representar em um mundo já tão exaustivamente representado (CAMARGO, 2000, p. 132-133).
Além disso, frisa o pesquisador, há um estilo nolliano do qual não se pode
fugir nem negar, que é:
[a] superficialidade em suas histórias de narradores errantes que não se envolvem emocionalmente nem param para pensar sobre questões importantes para a humanidade é mera aparência, pois há uma preocupação em se refletir sobre a situação do homem contemporâneo em meio a uma sociedade de superfícies como a tela da TV, do cinema, do computador, uma sociedade de consumo na qual não se tem espaço para ligações mais profundas (CAMARGO, 2000, p. 19-20).
113
Sobremaneira, é a partir dessa representação do sujeito desterrado que Noll
cria suas diversas personas na tessitura de suas narrativas. Para Camargo (2000, p.
133), é “nessa explosão de ‘eus’ os mais diversos, embora advindos de um só
sujeito, que se faz essa produção que não cessa de se escrever e de se inscrever
na contemporaneidade brasileira”.
Ivana Ferigolo Melo, em “A narrativa de João Gilberto Noll: a ficção
(des)constituindo o ser” (2011), dá atenção à finitude da existência do homem
contemporâneo. No que tange ao “fazer” literário do escritor gaúcho, a autora frisa
que “desconstruindo valores e subjetividades característicos da realidade social
imediata, as narrativas de Noll terminam entronizando a liberdade individual como
utopia” (MELO, 2011, p. 6).
A autora vê, ainda, que nas obras desse escritor
[...] a rudeza e a coloquialidade linguística potenciadas no fragmento se fazem patentes em todos os romances de Noll, caracterizando-os como produtos simbólicos que rompem com as correntes literárias que, estabelecendo o combate da arte de consumo, reivindicavam, em torno dos anos 60, um romance forjado a partir de uma linguagem elaborada e nada convencional ou cotidiana. Como marca singular do “fazer” literário do escritor gaúcho, tem-se a linguagem seca, despida de “arranjos” e rebuscamentos. A palavra no romance em questão é “seca”, símbolo de uma anomia, em que a vida se faz na transitoriedade do instante que marca os desencontros da vida (MELO, 2011, p. 3).
Outrossim, quanto à inserção da obra de Noll à pós-modernidade,
Schollhammer (2009, p. 31) destaca que a prosa nolliana serve de modelo para
definir o pós-moderno, haja vista a nova posição do sujeito marcada pela expressão
literária de uma individualidade desprovida de conteúdo psicológico, sem
profundidade e sem projeto. Desse modo, a leitura de alguns pesquisadores da obra
nolliana é oportuna para deliberar acerca da pós-modernidade em seus textos.
A ênfase ao novo realismo na literatura conforme Schollhammer (2009)
insere-se às relações que o romance pós-moderno mantém com o universo que o
alimenta, ou seja, a sociedade líquido-moderna. Esse é o tempo da
contemporaneidade em que a liquidez, amparada por suas características
determinantes, a fluidez e a adaptabilidade, são as qualidades enaltecidas pela
sociedade que considera necessária que o sujeito deva mudar de “forma”,
liquefazer-se, para a adaptação aos modos de vida que os espaços urbanos exigem.
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Nos romances de Noll, a pós-modernidade se faz presente quando suas
narrativas percebem a catástrofe do passado e representam através de suas
personagens nômades a dispersão e fragmentação do sujeito. O escritor gaúcho
inscreve-se à pós-modernidade ao narrar as possibilidades existenciais aleatórias e
imprevisíveis de um sujeito que vive à deriva diante do caos, do desmoronamento
das utopias da modernidade e da presença consciente da morte. Ainda que a escrita
ficcional de Noll não vá ao passado como o romance pós-moderno estudado por
Hutcheon (1991), é possível perceber a pós-modernidade na narrativa desse
escritor, a parodia à tradição ao criticar o passado e olhando-o, também, de forma
crítica (CAMARGO, 2000, p. 21).
Eneida Maria de Souza, em A preguiça: mal de origem (2001), analisa a
narrativa Canoas e marolas (2001). Levando em conta esse romance, a autora frisa
que a narrativa pós-moderna de João Gilberto Noll é
[...] pautada pelo mal-estar e pela comprovação de uma poética que, não tendo mais nada a dizer em termos de experiência e de saber acumulado no passado, utiliza- se de uma retórica do fragmento e de uma solução formal minimalista. A obsessão por situações de perda e pelo espectro da morte transforma a escrita em encenação de enredos já conhecidos e de enunciações estereotipadas, por se tratar de uma estrutura repetitiva e circular, portanto, exaurida. Personagem e narrativa cumprem o ritual de uma estética e de uma ética da negação, da letargia e do cansaço como uma das formas de se inscrever na escrita faltosa e sem trégua (SOUZA, 2001, 84).
Sem dúvidas, a escrita ficcional de Noll apresenta coaduna em sua tessitura o
mal-estar, o fragmento, a obsessão por perdas e outras características elencadas
pela ensaísta, o que ajudaria a denominá-la como pós-moderna. Para Hutcheon
(1991, p. 15), “o pós-modernismo ensina que todas as práticas culturais têm um
subtexto ideológico que determina as condições da própria possibilidade de sua
produção ou de seu sentido”. A ideologia, na narrativa pós-moderna de Noll, é
representar uma realidade em que em nada há de ideológico.
Na vertente das personagens errantes que percorrem as páginas dos
romances, como Bandoleiros (1985), Hotel Atlântico (1989), O quieto animal da
esquina (1991), Canoas e marolas (1999), Berkeley em Bellagio (2002), tem-se a
oposição dos “não-lugares” (AUGÉ, 1994) ao lar, diante da desterritorialização,
termo próprio do que é o pós-moderno na literatura, como o desenraizamento, o
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desapego aos bens subjetivos e materiais, bem como o individualismo de uma
sociedade pautada na realidade social imediata.
Na seção que seguiu viu-se que as personagens do Ensaio estão confinadas
e querem ver, mas não conseguem. Nessa perspectiva, a seção que segue procura
ler o romance Hotel Atlântico num viés em que o narrador-protagonista vê, mas não
quer ver a dinâmica da vida líquida.
3.2.1 Hotel Atlântico: vejo, mas não quero ver
O delineamento das especificidades e configurações das subjetividades na
modernidade líquida apoiam-se em mal-estares que esgarçam o tecido social e
individual do sujeito. Instabilidade, precariedade e efemeridade são elementos que
fazem parte dos mal-estares que denigrem a figura humana no contexto da vida
líquida. Paulatinamente, as alterações do espaço urbano e o esmaecimento das
relações sociais silenciam a alteridade como valor fundante do comportamento ético
nas sociedades primitivas, levando o sujeito “à indeterminação crescente e ao
princípio da incerteza” (BAUDRILLARD, 1990, p. 10).
Na sociedade líquido-moderna, a alteridade desconhece o relacionamento eu-
outro como valor que possa ser levado em conta na esfera fragilizada das relações
sociais. Isso vem ao encontro do exposto por Touraine. Em Pensar outramente: o
discurso interpretativo dominante (2009, p. 145), o autor explica que o “sujeito não é
definido pelos papeis sociais nem pelas relações, que são intersubjetividades”.
Somente é possível definir o sujeito pela relação consigo mesmo. Ao dissertar sobre
o tema eu-outro, o autor acredita que a “alteridade é muito mais do que uma
diferença”. Falar do outro é uma maneira indireta de dizer que o
[...] sujeito não pode ser alcançado diretamente em mim e que é olhando através do outro que eu percebo a presença ou a ausência, em mim, de um sujeito que não é facilmente perceptível (TOURAINE, 2009, p. 191).
Consoante ao sujeito e sua constituição, Touraine (2009, p. 144) brada pela
liberdade do sujeito, desejando que “as ‘grandes narrativas’ da vida pública e da
História sejam substituídas pelas ‘grandes narrativas’ do sujeito, de sua criação, de
sua defesa contra todas as formas do ‘nós’”. As narrativas do sujeito em sua
subjetividade devem ser levadas em conta, e isso faz com que o romance Hotel
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Atlântico seja visto como um texto literário fonte de reflexão e questionamento sobre
o declínio da narrativa da vida pública e da História.
O texto de Noll considera a história do sujeito urbano, insulado pelo trivial e
corriqueiro, que escamoteia sua identidade e não encontra ponto fixo no espaço
ficcional inominado. O romance tem como protagonista um ex-ator, que vivencia e
narra suas andanças pelas estradas brasileiras. Para esse sujeito, não há modelos
de vida em sua trajetória que o estimulem a ter um lugar fixo no mundo social.
Personagem sem destino, o narrador-protagonista é o típico sujeito que Peixoto
(1987) considera ser aquele que vem do nada e parte para lugar nenhum, que
aparece de repente, que ninguém sabe de onde veio nem para onde vai.
A narrativa encontra abrigo para o trânsito no qual vive a personagem
protagonista. Ao falar sobre a escolha do título, o escritor em depoimento à Maria
Flávia Armani Magalhães (1993), declara que
“Hotel” é coisa do abrigo. (...) e “Atlântico” vem de Atlas, eu não sabia, depois é que fui ver a origem da palavra – vem de Atlas. Porque quando o Atlântico foi descoberto era o maior mar que até então se conhecia, essa imensidão... e depois está bem claro, eu não acho que seja possível para o homem essa falta de movimento divino: o ser humano realmente é um fenômeno incompleto, que está sempre em formação. (...) para haver esse movimento tem que pegar fogo às vezes, tem que se aflitar, tem que se conflituar (NOLL apud MAGALHÃES, 1993, p. 309).
A leitura do texto literário possibilita perceber a dimensão do vazio existencial
representada através das suas andanças. Além de abrigo e pouso, a palavra hotel,
assim como os locais em que ela se hospeda em suas andanças, assoma como
desejo, procura de algo que nem ela sabe o que é. O narrador-protagonista do
romance é o tipo de sujeito mergulhado na condição pós-moderna da existência,
que, segundo Bauman, tem uma identidade que se dissolveu em meio à circulação
incessante dos signos midiáticos e informacionais da modernidade líquida
(BAUMAN, 2001).
O romance é atravessado por uma tendência de se romper com a estética da
narrativa tradicional. Por isso, é possível inserir o texto literário à literatura pós-
moderna. Como exemplos disso, tem-se o fato de que o romance é narrado em
primeira pessoa, sendo que o narrador é o protagonista da trama, ainda, os períodos
são curtos e a narrativa é estruturada em seis blocos.
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Permeada pelo insólito, pelo fronteiriço e pelo inacabado, a narrativa inicia
quando a personagem protagonista chega para hospedar-se no hotel. Logo, se vê
cercado pela agitação comum aos locais em que alguém é assassinado, posto que
no hotel alguém fora morto horas antes. Junto ao balcão, a personagem pede “[u]m
quarto com banheiro, cama de casal, uma televisão, e uma mesa onde eu possa
apoiar os cotovelos e pensar” (NOLL, 1989, p. 6). No decorrer do romance, uma das
características marcantes desse sujeito é o fato de não levar consigo bagagens.
Quando interpelada a respeito disso, a personagem dissimula. Assim o faz quando a
atendente do hotel pergunta: “E a bagagem?”, para depois dissimular e responder:
“A bagagem eu deixei guardada no Galeão” (NOLL, 1989, p. 6).
As alterações da modernidade líquida e a maneira como Noll as representa
em suas obras é objeto de reflexão de Analice de Oliveira Martins, que em
Identidades em vôo cego (2004), reforça a ligação da obra do escritor com as
alterações do mundo contemporâneo afirmando que:
João Gilberto Noll ficcionaliza, de certa forma, uma trajetória das individualidades contemporâneas, assim como, promove, em alguns momentos, uma desreferencialização bastante radical do espaço geográfico, sem contudo apagar as marcas da condição urbana. Talvez mais do que qualquer outra em seu conjunto, a ficção de Noll traga à baila personagens em trânsito, deslocando-se não só por lugares e não-lugares como também por outras individualidades, outros "selfs". A condição de nomadismo aqui é recorrente (MARTINS, 2004, p. 79).
No romance pós-moderno, as personagens frequentemente “aparecem
confusas acerca do mundo em que estão e de como deveriam agir com relação a
ele”, explica Harvey (2007, p. 46). A confusão, proposital ou não, que caracteriza o
narrador-protagonista da narrativa em análise se filia aos tipos de sujeitos gerados
nesses tempos líquidos, que colocam a leitura em suspenso, sem que o leitor tenha
clareza a respeito dos acontecimentos. Para o leitor, a dúvida permanece, não
sabendo se eles realmente aconteceram ou se tudo se resume em pura imaginação
do narrador.
O narrador-protagonista de Hotel Atlântico insere-se ao tipo de narrador
apresentado por Dalcastagnè (2007), ao referir-se à narrativa atual, em que se vê:
[n]arradores cheios de dúvidas ou abertamente mentirosos, personagens descarnadas e sem rumo “autores” que penetram no texto para se justificar diante de suas criaturas – esses seres confusos que preenchem a literatura
118
contemporânea habitam um espaço não menos conturbado (DALCASTAGNÈ, 2007, p. 23).
Como acontece na maioria dos romances de Noll, o narrador-protagonista de
Hotel Atlântico é marcado pela expressão literária de uma individualidade desprovida
de conteúdo psicológico, sem profundidade e sem projeto (SCHOLLHAMMER, 2009,
p. 31). O andarilho pós-moderno que transita pelas páginas de narrativa é aquele
sujeito que está sempre a partir, e que “não tem experiências a contar, não tem o
que falar sobre seu próprio eu. Desconhece sua própria história” (CORDEIRO, 2008,
p. 9-10).
Os “‘não-lugares’ criam tensão solitária” (AUGÉ, 1994, p. 87). A ânsia de
partir, sair sem rumo, é atestada quando ao acordar no quarto do hotel, ao
amanhecer, a personagem mostrava-se afoita, nervosa:
Fechei a cortina [da janela]. Uma contagem regressiva estava em curso, eu precisava ir. Mas resolvi voltar para a cama. Tirei os sapatos com os próprios pés. Sabia que de dentro de mim eu representava um desespero, porque daqui um pouco eu precisava ir (NOLL, 1989, p. 9).
Representante da angústia do sujeito urbano o andarilho, em sua constante
movimentação por espaços geográficos não previamente definidos, transita por
espaços fluidos que não lhe possibilitam firmar raízes. Sempre forçando os limites
do espaço em que transita, o percurso do andarilho é feito “não-lugares” (AUGÉ,
1994). Seu percurso é feito de extravios e recomeços numa cidade que não passa
de um mero cartão postal, uma imagem que pode ser guardada no bolso.
Comprei um postal da ponte de Florianópolis. Eu costumava guardar postais de recordação. Naquelas dias eu levava no bolso de trás da calça dois postais. Já estavam bem amarfanhados. Um deles mostrava a praia de Copacabana à noite. O outro, a barca para Niterói. Agora, aquele postal da ponte de Florianópolis atravessando um mar de azul escandalosamente artificial, aquele postal faria companhia aos outros (NOLL, 1989, p. 30-31).
Por fim, esses pedaços desaparecem, como se fundissem a um sujeito
igualmente fragmentado e registram um simples impulso, para depois ficarem
esquecidos num lugar qualquer. A passagem em que o andarilho deixa para trás o
mapa que deixara sobre o banco é altamente significativa. Após sair do hotel, ele
pega um táxi e percorre as ruas da cidade. Mais tarde, chega à estação rodoviária e
senta sobre um banco. Então, tendo em mãos um mapa do Brasil, seu olhar passeia
119
pelas regiões brasileiras: “Os meus olhos desceram um pouco, entraram no interior
de São Paulo [...]” (NOLL, 1989, p. 16), para depois esquecer o mapa e partir,
novamente:
Dobrei o mapa, disfarçadamente coloquei-o debaixo da bunda. Depois me levantei e saí andando. Não dei cinco passos, uma mulher sentada num banco da frente me chamou: - Ei senhor, o senhor esqueceu alguma coisa ali. Olhei para trás [...] vi o papel dobrado no assento do banco, me virei para a mulher, abanei a cabeça dizendo: - Não é meu (NOLL, 1989, p. 17).
Em cada partida, o andarilho faz com que o leitor fique na expectativa, pois
para um ser errante, tudo o que possa relacioná-lo aos lugares em que passou deve
ser deixado para trás. É o típico sujeito pós-moderno, esquisito, que faz do
nomadismo sua razão de ser. Porque está de passagem o tempo todo? Para onde
vai? Quais são seus desejos? Seu perfil é rarefeito numa narrativa em que a
motivação e a verossimilhança são diluídas em prol de situações ambíguas. Muitas
vezes, o leitor precisa procurar nas entrelinhas do texto um sentido para sua
vivência.
Postais e mapa são esquecidos porque é característico ao sujeito diluir
qualquer objeto que possa trazer ao narrador-protagonista alguma recordação, pois
ele próprio afirma: “[e]u não guardo nada comigo” (NOLL, 1989, p. 41). As imagens
que traz em seu olhar tornam-se vazias de significação, são meros cartões
amarrotados no bolso ou mapa esquecido num lugar qualquer da cidade.
O andarilho vê a cidade como um lugar que não lhe pertence, assim como
acredita que não pertence a lugar algum. Por isso, não são raras passagens que
denotam que ele estava sempre a partir: “Uma contagem regressiva estava em
curso, eu precisava ir” (NOLL, 1989, p. 9). Em conformidade com o pensamento de
Peixoto (1987, p. 361), “[q]uanto mais rápido o movimento, mais profundidade as
coisas têm, mais chapadas ficam, como se estivesse contra um muro, contra uma
tela”. A cidade, ao olhar do andarilho, está convertida num cenário, os sujeitos em
personagens (PEIXOTO, 1987, p. 361).
Nesse sentido, em se tratando da representação de sujeitos fragmentados,
que ocupam os mais diferentes “não-lugares” da cidade, torna-se voga a presença
de personagens andarilhas, sem rumo e sem lugar antropológico para fincar raízes.
Nelson Brissak Peixoto, em Cenários em ruínas: a realidade imaginária
120
contemporânea (1987), pontua que o andarilho reescreve uma história pessoal em
cada lugar que passa. As andanças e errâncias da personagem do romance de Noll
são representações da inquietude do sujeito, envolto por um cotidiano acelerado e
claustrofóbico, que vive em cenários descontínuos e repletos de imagens, mas nada
parece tirá-lo da sensação de viver “rudimentos de ilusão” (NOLL, 1989, p. 30).
A sensação de estar perdido nesses “não-lugares”, que são comuns a
qualquer esfera social, econômica e cultural da sociedade globalizada, caracteriza a
inquietude do sujeito, cujo cotidiano é acelerado e claustrofóbico. O andarilho,
segundo Peixoto (1987, p. 82), tem como constituição viver na inquietude. A
inquietação faz
[v]iver em hotéis, [...] em motéis de beira de estrada. Num lugar qualquer onde estiver passando em locais que se fique por pouco tempo, em que não se deixe rastros, dos quais não se guarde lembranças (PEIXOTO, 1987, p. 82).
Na narrativa, a inquietação do andarilho faz com que ele se sinta um liberto
por não ter que permanecer sempre no mesmo lugar. Em sua ânsia de partir –
“Cruzar fronteiras permite uma nova percepção das coisas” (PEIXOTO, 1987, p. 82)
–, a personagem desabafa: “Quando me vi com a passagem na mão me sentindo
como que comprando a minha alforria. E me invadiu a sensação de uma liberdade
demasiada” (NOLL, 1989, p. 17). No entanto, essa sensação é ilusória, pois o
andarilho é o sujeito que não sobreviveu à perniciosa dança das cadeiras (BAUMAN,
2005, p. 10). Suas andanças tem como garantia a permanência temporária pelos
“não-lugares” que transita, antes de ter que partir rumo a outra cidade.
O caráter ético da vida social do narrador-protagonista é diluído das relações
individuais. Da passagem das relações sólidas e duradouras às relações líquidas e
instantâneas, o não-apego do andarilho à relações duradouras coaduna com a
observação de Bauman (2005, p. 18-19) quando trata dos traços identitários do
sujeito inserido à modernidade líquida. A personagem está imersa num tempo em
que a sociedade em volta está repartida em fragmentos mal coordenados, e sua
existência é fatiada numa sucessão de episódios fragilmente conectados.
O ser pleno já não existe mais para o mundo da totalidade. Tem-se, por sua
vez, a artificialidade que toma conta dos relacionamentos. Os laços sociais que
unem momentaneamente dois sujeitos são relacionamentos guarda-roupa, “reunidas
enquanto dura o espetáculo e prontamente desfeitas quando os expectadores
121
apanham seus casacos nos cabides” (BAUMAN, 2005a, p. 37). Por isso, a
personagem enfatiza: “Eu não guardo nada comigo” (NOLL, 1989, p. 41) diante da
mulher do hotel quando ela pergunta ao andarilho o motivo de ter como bens apenas
a roupa do corpo.
Na obra Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas (2001),
Maffesoli destaca:
Qualquer que seja o nome que se lhe possa dar, a errância, o nomadismo está inscrito na própria estrutura da natureza humana; quer se trate do nomadismo individual ou do social. De alguma forma, está ai a expressão mais evidente do tempo que passa, da inexorável fugacidade de todas as coisas, de sua trágica evanescência (MAFFESOLI, 2001, p. 37-38).
O andarilho de Hotel Atlântico tem sua constituição fragmentada. Por isso, no
decorrer da leitura é difícil depreender acerca da visibilidade do olhar da
personagem. O que vê? O que não quer ver? Essas são questões que tornam a
leitura do romance inquietante.
Sujeito anônimo na multidão de qualquer grande metrópole do mundo, a
personagem incorpora a massa de transeuntes nas ruas velozes, um andarilho que
vai “andando pela rua com os olhos postos em frente, fixos” (NOLL, 1989, p. 56). É
caminhante do finito, ora por entre automóveis e prédios ora por lugares
descampados, num pequeno povoado do interior brasileiro.
Na prosa ficcional nolliana há um constante entrecruzamento de imaginários,
a multiplicidade dos acontecimentos e a intensificação da ficcionalização do real. O
movimento do andarilho de Hotel Atlântico, por geografias incertas, faz questionar as
dimensões espaciais e temporais do narrado. Schollhammer (2009) reforça a
relação da obra do escritor gaúcho com as teorias ligadas à pós-modernidade, pois
[...] Noll cumpre uma trajetória que o identifica, inicialmente, como o intérprete mais original do sentido pós-moderno de perda de sentido e de referência. Sua narrativa se move sem um centro, não ancorada num narrador autoconsciente; seus personagens se encontram em processo de esvaziamento de projetos e de personalidade, em crise de identidade nacional, social e sexual, mas sempre à deriva e à procura de pequenas e perversas realizações do desejo (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 32).
O romance insere-se às produções literárias que têm como temática o
citadino em meio ao “caos urbano, a desumanização, a incomunicabilidade, a
122
individualização solitária e inevitável” (PELLEGRINI, 1996, p. 28). No cotejo
experiência urbana e representação do sujeito, no romance de Noll há seres
predominantemente visuais, posto que a maioria das informações que o homem do
século XXI recebe lhe vem por imagens. Diferentemente da forma de cegueira que
vitimiza as personagens do romance de Saramago, Ensaio sobre a cegueira (1995),
o narrador protagonista de Hotel Atlântico traz consigo a verdade de que a imagem
não traz mais consigo a duração do olhar.
O instantâneo e o imagético são voga na modernidade líquida. As ações do
sujeito voltam-se à instantaneidade. Tudo é produzido para ser consumido. Tudo se
torna descartável: objetos, pessoas, identidades. Com isso, o sujeito, sua identidade
e sua história são “derretidas”. O sujeito da modernidade “sólida” foi posto no
cadinho, e está derretendo para novamente ser recolocado em sociedade em busca
de uma nova adaptação.
Recuperando o pensamento de Bauman (2009, p. 7), líquido-moderna é “uma
sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num
tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e
rotinas, das formas de agir” (BAUMAN, 2009, p. 7). Nesse contexto, possível pensar
as errâncias do narrador-protagonista seguindo a alegoria do “olhar líquido”,
buscando uma aproximação terminológica com os “líquidos” de Bauman. O
sociólogo é autor de expressões como “vida líquida”, “modernidade líquida”, “tempos
líquidos”, “medo líquido”, “amor líquido”, somatiza os mal-estares que assolam o
sujeito na esfera da sociedade globalizada.
No artigo “A literatura líquida de João Gilberto Noll” (2008), Tânia Nunes
expressa que o escritor brasileiro
[...] vale-se em sua escrita da palavra úmida. O que podemos chamar de a literatura líquida do autor tem, como marca singular, a palavra a esvaziar o corpo, a secá-lo em sua linguagem, como símbolo de uma ausência, uma anomia, em que a vida se faz na transitoriedade do instante, ou seja, seus personagens ingerem e expelem pelos orifícios corporais os desencontros da vida (NUNES, 2008, p. 1).
Semelhante reflexão acerca da vivência do andarilho e da liquidez de seus
relacionamentos é somatizada no mal-estar da personagem principal de Hotel
Atlântico, que traz em seu “olhar líquido” a dinâmica fluida entre a vida e a morte. No
universo ficcional do romance, o mal-estar se dá na dificuldade da personagem
protagonista em compartilhar tanto a experiência como a sua percepção de mundo,
123
que é vivida sempre de modo solitário e marcada pelo signo da indiferença para com
o outro.
Substancialmente, o olhar da personagem não consegue enquadrar o todo e
muito menos demarcar a singular relação de distância entre ela e seu tempo, pois
ela é o típico sujeito contemporâneo, que fragmentado em sua constituição, recebe
em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo. A contemporaneidade –
modernidade líquida, pós-modernidade – nasce da não-possibilidade do sujeito
apreender seu tempo, em que expressões como “muito cedo” e “muito tarde”, “já” e
“ainda não”, se entrecruzam e demarcam o estranhamento em tempos líquidos.
Hotel Atlântico exemplifica o tempo líquido em que o homem vive, quando
tudo é fluido, sem sentido e traz como signos a precariedade, instabilidade e
efemeridade. A narrativa desfolha imagens que se esfacelam em segundos no estilo
direto, seco e sábio do escritor de dizer muito com poucas palavras. Nela, não há
espaço para a experiência, pois no constante estranhamento gerado pela alteridade
em tempos líquidos, a vivência, o experimento e a tentativa contínua são as balizas
do sujeito em sociedade.
O estranhamento se dá na impossibilidade que a personagem tem em manter
o olhar focado em um objetivo que pudesse levá-lo a estabelecer vínculos
duradouros e residência fixa. “Olhar líquido” é, portanto, uma expressão da cegueira
que toma os corações urbanos, entregues à individualidade e ao excesso de
imagens, que fazem com que o sujeito acredite estar vivendo num eterno presente,
no qual “a repetição do mesmo não fosse tão poderosa que não anunciasse mais
qualquer possibilidade de ruptura e de descontinuidade” (BIRMAN, 2012, p. 9).
A visão de Joel Birman acerca da mudança em algumas categorias
constitutivas do sujeito fala dos mal-estares vigentes na atualidade. A principal
mudança evidenciada pelo filósofo é a relação do sujeito com o espaço e com o
tempo, em que o primeiro engloba o segundo. Na obra, O sujeito na
contemporaneidade: espaço, dor e desalento na atualidade (2012), o filósofo cita
que “o tempo vai para o espaço”, pois “o mundo se reduz ao espaço do aqui e
agora, sem expansão, sem escansão e sem qualquer horizonte possíveis, pois é a
pontualidade da sua presença que aqui se impõe” (BIRMAN, 2012, p. 101).
O mal-estar na modernidade líquida está centrado nos registros da ação e do
corpo, indicando uma ruptura entre os registros do espaço e do tempo, em que o
espaço “passa a dominar todo o território do psiquismo” (BIRMAN, 2012). No
124
romance de Noll há um impasse na dinâmica psíquica do sujeito andarilho. O
registro do tempo não importa para a personagem, pois ela está sempre envolta por
angústias que a levam a partir, constantemente.
Na obra, isso é verificável na passagem em que a personagem está sentada
num banco da rodoviária. Liquefeito, o narrador-protagonista divaga sobre a liquidez
de sua existência:
Olhando aquele chão sujo eu não tinha nada a pensar. Talvez uma vaga saudade da intimidade infantil com o chão. Me surgiu a ideia de que a viagem me devolveria essa intimidade. Sabe lá se não vou ter que dormir no chão, era o que me dizia uma voz interna entre excitada e apreensiva (NOLL, 1989, p. 15-16).
A confusão gerada pela personagem denota um sujeito sem raízes e sem
histórias para contar. Há, na passagem acima, um desencantamento que caracteriza
o “vazio no existir” (BIRMAN, 2012, p. 113). Esse vazio fragmenta o andarilho de sua
constituição. Sua história é pautada apenas no efêmero momento, o passado não
existe, e o futuro precisa ser escrito. Sobre o tempo, existe somente o agora,
pautado na necessidade de partir, viajar, o que é revelado num impulso
incontrolável.
Na leitura do filósofo, o vazio é uma figura retórica para que se compreenda o
sujeito na atualidade. O vazio “remete à categoria do espaço. [...] O vazio é o espaço
em negativo”, que provoca o “esgotamento do sujeito de maneira trágica, se
esvaindo do seu desejo de ser, de viver e agir” (BIRMAN, 2012, p. 123). Esse vazio
na existência do andarilho se dá na sua constituição fragmentada, inacabada. Para
ele não há projeto de existência, por isso o narrador-protagonista constata que se
sentia “a viver rudimentos de ilusões” (NOLL, 1989, p. 30).
A partir da indiferença e da falta de experiências para passar ao outro, o
“olhar líquido” do andarilho denota a fragmentação da identidade sólida, pois o eixo
da estratégia de vida pós-moderna evita que a identidade se fixe (BAUMAN, 1998b,
p. 114). Assim como inicia a narrativa, do nada, de um acontecimento vago: “Subi as
escadas de um pequeno hotel na Nossa Senhora de Copacabana, quase esquina da
Miguel Lemos” (NOLL, 1989, p. 5), a chegada do andarilho a um lugar para pousar e
dele sair se dá de maneira rápida, sem que fiquem vestígios de sua passagem.
A identidade do andarilho chega ao estágio do não-eu, é postiça, é reflexo
das vestimentas do cotidiano. O sujeito andarilho é permeável a tudo e promíscuo
125
com tudo o que toca (ROUANET, 1987, p. 234). A personagem caracteriza a
ambivalência que permeia a vida líquida, precária e efêmera, dos habitantes da
modernidade líquida e suas identidades frágeis e escorregadias. Através de suas
atitudes, o narrador protagonista mostra que não há mais uma identidade unificada e
estável. As estruturas sociais mudaram. Agora, a paisagem sócio-cultural é outra,
haja vista que novas identidades são projetadas num mundo provisório, variável e
problemático.
Hotel Atlântico pode ser visto como alegoria da representação da abertura
política no país com o fim do tempo ditatorial. O retrato, a um só tempo, da coragem
e desorientação de um personagem sem destino, vivendo à sorte do acaso, assim
como muitos brasileiros. A identidade não-resolvida (HALL, 2005, p. 12) do andarilho
se apresenta na grande alegoria da viagem. Deslocado no espaço e no tempo, a
“liquidez” da forma de vida da personagem é a postura do sujeito desorientado na
esfera da sociedade líquido-moderna, em que “as condições sob as quais agem
seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a
consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir” (BAUMAN, 2009, p. 7).
Na esfera da liquidez, o passado é abolido, e o presente é contínuo para o
narrador-protagonista. A personagem mostra não ter uma identidade “sólida”. Por
isso, ele não se apega a nada, nem a ninguém, pois ele próprio afirma: “Eu não
guardo nada comigo” (NOLL, 1989, p. 41). Não há um olhar que remeta o olhar para
trás em suas andanças pelo país. Sobremaneira, o andarilho não enseja construir
uma identidade, mas sim agir de certa forma para com isso impedi-la de ser firme e
aderir depressa demais ao corpo (BAUMAN, 1998b, p. 114).
Para o andarilho, “identidade significa não ter casa” (PEIXOTO, 1987, p. 82).
Por isso sua indecisão ao deixar o hotel para partir para algum lugar ainda
desconhecido: “Quem sabe volto para o quarto?, me perguntava. Quem sabe eu
fico, desisto? Quem sabe eu me caso com a melindrosa da portaria? Quem sabe me
contento na companhia de uma mulher?” (NOLL, 1989, p. 13). Essa passagem
denota não apenas a perda de referenciais geográficos e sociais da personagem,
mas também a impossibilidade do sujeito recompor os traços da sua identidade e de
identificar traços de sua origem.
Isso corrobora para que o andarilho tenha dificuldade de projetar uma
representação de si mesmo. O narrador-protagonista não fornece uma visão
absolutizante dos fatos narrados em seu instante ficcional, o que gera a incerteza e
126
desconforto pelo fato de omitir referências sobre sua origem e destino. Essa postura
da personagem vem ao encontro do tipo de narrador de que fala Dalcastagnè
(2007). Por ser descarnada e sem rumo, a personagem desconhece o local em
detrimento do global, e suas constantes partidas não auferem deixar rastros de sua
passagem nem de sua história.
Os “não-lugares” em que transita o andarilho, são marcados pela fluidez do
tempo, em que a imaginação é suspensa para as vivências. A incerteza do andarilho
acerca de seu destino é vista na passagem em que ele olha um mapa:
Enquanto eu abria o mapa ia lembrando do que eu tinha dito para o motorista do táxi. Que eu faria um tratamento contra o alcoolismo em Minas. No mapa o interior de Minas parecia um formigueiro de localidades. Os meus olhos desceram um pouco, entraram pelo interior de São Paulo, pararam no Paraná (NOLL, 1989, p. 16).
Na passagem em tela, a escolha do próximo local a pisar se dá de modo
aleatório. Assim, ele diz: “Resolvi comprar uma passagem para Florianópolis. [...] De
repente uma ilha: era um tema que me interessava” (NOLL, 1989, p. 16). A
personagem se insere ao rol de sujeitos confusos e sem rumo, pois subitamente o
andarilho muda seu itinerário e, ao invés de ir para Minas tratar-se contra o
alcoolismo, vai noutra direção.
As errâncias do narrador-protagonista podem ser lidas segundo a ideia de
Peixoto (1987), que escreve acerca do imaginário voltado às andanças do andarilho.
Para o autor:
É preciso mudar sempre. Desaparecer, tornar-se desconhecido, partindo para longe ou se perdendo na própria cidade, é a verdadeira forma do movimento da viagem. Ser sempre alguém diferente, como se fosse de fora (PEIXOTO, 1987, p. 82).
A passagem é significativa para que se compreenda a personagem de Noll. É
um sujeito que transita pelos espaços da cidade de maneira anônima, sem que isso
lhe incomode. Além disso, o andarilho “evitava a ideia de recorrer a alguém.
Recorrer a alguém seria o mesmo que ficar, e eu precisava ir” (NOLL, 1989, p. 13).
Negar o outro, não necessitar do outro e a ânsia em partir do narrador-
protagonista entra em conformidade com as palavras de Peixoto (1987), pois
[...] não ter casa, não ter memória, não ter para onde ir. Afirmar sempre sua distância. Abandonar os lugares conhecidos, desfazer continuamente a
127
própria identidade: processos infinitos de estranhamento (PEIXOTO, 1987, p. 82).
Por onde passa, o andarilho apaga sua história, haja vista que não há
integração do corpo à identidade. Esse fator leva à marginalização do sujeito por
não ter experiências para narrar aos que encontra pelo caminho em suas andanças
pelo Brasil. A relação tensa entre a linguagem, em primeira pessoa, e o olhar
constrói uma narrativa conduzida por movimentos e a busca incessante por novas
paisagens e imagens. Não há mergulho na subjetividade, posto que o lema é “viver
na superfície, não se apegar a nada nem ninguém, não criar raízes” (PEIXOTO,
1987, p. 82).
O sujeito fragmentado que narra no romance transita pelo visto e o não-visto,
neutralizando sua subjetividade que caminha para a autodestruição (VILLAÇA, 1996,
p. 105). O olhar do narrador-protagonista neutraliza o outro, não reconhecendo-o no
contexto da alteridade. No que tange aos modos de como o sujeito recebe as
imagens do seu entorno diariamente, Ítalo Calvino, em Seis propostas para o
próximo milênio (1990), elege a visibilidade como proposta importante. Para o
pensador italiano, hoje o sujeito é bombardeado por uma quantidade de imagens a
ponto de não distinguir mais a experiência direta daquilo que viu há poucos
segundos na televisão (CALVINO, 1990, p. 107).
Outrossim, a experiência contemporânea é pressionada por um acúmulo de
imagens sucessivas que não conseguem se sustentar por si mesmas, diluindo-se
antes de adquirir consistência na memória visual do sujeito. O “olhar líquido” do
narrador-personagem é resultante de um olhar pautado apenas no fugaz e no
passageiro. Por isso do seu olhar fragmentado sobre as imagens que o cotidiano lhe
traz aos olhos. Diante do bombardeio de imagens ao qual está submetido, o
andarilho não mais é capaz de perceber todos os objetos que estão disponíveis.
Sobremaneira, a personagem cega pelo fato de não ter mais nenhum tipo de
conhecimento associado à apreensão do objeto pelo olho. É esse bombardeio que
lhe incapacitou a ponto de cegá-lo. Consoante à alteridade, Hotel Atlântico
caracteriza o mal-estar da modernidade líquida, firmado na desconstituição do “eu” e
engendrado pelo esmaecimento dos afetos. Aqui, recupera-se as palavras de
Ginzburg ao expressar que muitos textos literários podem ser lidos como
representação de “tempos de catástrofes e desumanização”, em que “escritores
128
procuram formas que de algum modo estejam ligadas a uma experiência
fragmentária e delicada de constituição de sujeito” (GINZBURG, 2004, p. 3).
No que tange à representação da alteridade na narrativa de Noll, suas
experiências no contato com o “outro” são vazias de sentido, ficando apenas no
contato físico. Em Hotel Atlântico, o andarilho não aprofundar relacionamentos
sociais ou amorosos, fato que vem ao encontro do pensamento de Ginzburg (2004,
p. 3) quando enfatiza que “em tempos de catástrofes e desumanização, escritores
procuram formas que de algum modo estejam ligadas a uma experiência
fragmentária e delicada de constituição de sujeito”, que “[m]uitas vezes esta se
apresenta como experiência inconclusa”.
Ao representar um sujeito cujas experiências são fragmentadas, o texto de
Noll se insere a essa visão de Ginzburg. A relação da personagem protagonista com
o “outro” caracteriza o descompromisso do sujeito para com sua história. Na
narrativa, as relações de alteridade e de individualidade são pautadas no anonimato
e em situações que, impregnadas pela mentira, fazem com que a personagem
preencha a ficha do hotel: “estado civil casado eu menti – e imaginei uma mulher me
esperando num ponto qualquer do Brasil” (NOLL, 1989, p. 6).
O andarilho percorre as imagens de um mundo que ele mesmo cria. Seu
contínuo viajar pelo espaço e tempo não corroboram para que ele tenha
experiências autênticas para contar aos outros que encontra pelo caminho. Em nada
suas andanças agregam ao mesmo conhecimento para que possa, a partir das
experiências, agir ou mudar sua situação. Por manter experiências inconclusas, é
um sujeito alheio a tudo que o cerca. Suas passagens nos locais que pisa são
breves, assim como são breves e instáveis seus relacionamentos, em que o olhar
não alcança o outro.
Ao conhecer a porteira do hotel, o narrador-protagonista, “como deveria estar
num dia de canastrão” (NOLL, 1989, p. 6), pede para que a mulher trouxesse até o
seu quarto um copo de uísque. Quando ela entra, ele diz que “tinha se apaixonado
em questão de segundos”, e então, no calor da hora, “vendo-se despida ela
imediatamente se pôs de quatro sobre o imundo carpete verde. Eu me ajoelhei por
trás. A minha missão, cobri-la fora do alcance dos seus olhos” (NOLL, 1989, p. 7).
A passagem corrobora para que se compreenda a frieza com que os
relacionamentos são pontuados na narrativa. Relacionamentos destituídos de afeto,
que sugerem ao leitor indagar acerca dos motivos que levam o andarilho a optar,
129
voluntária ou involuntariamente, por um tipo de cegueira? Será que a cegueira à
qual ele está destinado é mesmo opção sua? Haverá mesmo uma cegueira
inevitável, como sina dessa personagem? O trabalho de linguagem exercido por Noll
caracteriza um texto fragmentado, com cenas sobrepostas e episódios que
começam de repente, sem ligação direta com o assunto anterior, leia-se os
encontros repentinos com a mulher do hotel, que acabam em relacionamentos
sexuais destituídos de qualquer esperança de reencontro futuro, a não ser que seja
por acaso, no ir e vir de suas perambulações.
O olhar do andarilho é fugaz e disperso. As imagens que se desenham ao seu
olhar tornam-se vazias de significação. As imagens são apenas cartões amarrotados
no bolso, tal quais os “pedaços” de acontecimentos que são narrados no curso do
romance, que antes mesmo que alcancem um desfecho, os “fragmentos de
narrativas” são abandonados pelo narrador para, assim, dar-se o início de outro
acontecimento sobre sua vida “veloz”.
A liquidez confunde a vida. O palpável escorre feito líquido e transpassa as
fronteiras do visível. O andarilho é um ser que se esgueira por fronteiras e tem uma
vida pautada por acontecimentos insólitos. Assim, não mais tendo regras para seguir
em seu cotidiano, ele transforma o real em experiências de quase ficção. O romance
expõe o mal-estar da vivência citadina, pois propõe uma experiência traumática, em
que o problema da alteridade se coloca na ordem do dia. Assim, a constituição do
andarilho e sua representação se dá perpassada por uma narrativa em que o sujeito
nega a si e ao outro.
Por isso, “negar-se o tempo todo, romper permanentemente como o que se é,
voltar sempre a zero” (PEIXOTO, 1987, p. 82) caracteriza o narrador-protagonista do
romance de Noll, um sujeito alheio a tudo, sejam pessoas ou objetos. Os
relacionamentos na narrativa são esvaziados de sentido. O “outro”, no romance, é
visto como um estranho que pode “frear” as partidas do andarilho; ao “outro”
somente é possibilita manter relações passageiras, fugazes, frias.
A relação que a personagem protagonista estabelece com o “outro” é pautado
na dúvida, e essa máscara ela usará até o final da narrativa, sem que se saiba ao
certo sobre a veracidade do que é narrado. A personagem que vaga sem rumo e
paradeiro dramatiza um sujeito liquefeito, cujo “eu” está desconstituído, e flui,
escorre e faz transbordar a incompatibilidade de “ser” numa modernidade líquida
que valoriza somente quem está ligado ao “ter”.
130
No universo da ficção de Noll, destaca Helena (2008, p. 16), “sublinha-se
como é difícil compartilhar tanto a experiência como a percepção do mundo, que é
vivida sempre de modo solitário”. Hotel Atlântico é uma narrativa tecida na fúria dos
corpos que se encontram por encontrar. É no enlace da sexualidade e dos códigos
obscenos que o andarilho demonstra que não há espaço para “ficar”, fincar raízes.
No contexto da vivência líquida, firmar laços de afeto caracteriza um ato arriscado,
senão perigoso, pois não se sabe de antemão o resultado final dessa experiência
amorosa, resumida na missão que era “cobri-la fora do alcance dos seus olhos”
(NOLL, 1989, p. 7).
A personagem inominada dilui a relação para que possa, em seguida,
consumi-la (BAUMAN, 2004, p. 10) para, depois, sair pelo mundo. As relações
amorosas na vida líquida são impregnadas de risco. A personagem-protagonista
mantém para com a atendente do hotel aquilo que Bauman (2004, p. 10) denomina
de “relacionamento de bolso”, pois o andarilho pode voltar e, quiçá, dispor do corpo
da mulher por um breve instante. Nos breves e fragmentados encontros amorosos
da contemporaneidade, é voga as relações instantâneas sem que haja profundidade
e esperança de um novo encontro. Por isso, o narrador-protagonista confidencia ao
sair do hotel pela manhã: “Eu disse adeus, falei que um dia a gente ia se rever me
sentindo completamente ridículo” (NOLL, 1989, p. 12).
Para a personagem, o fato de se sentir ridículo se assenta na lógica do
descarte que afeta também os relacionamentos. A alteridade amorosa tem o seu
declínio diante da liquidez humana que faz escorrer os afetos pelos alicerces
enfraquecidos de um mundo líquido que, em suspenso, vive a proliferar alteridades
baseadas no corpo, na pura expressão da sexualidade. O outro é visto como
estranho, não como alguém que se possa estabelecer uma relação, a não ser que
seja passageira (ALCARAZ; ALCARAZ, 2010).
De certo modo, a problemática da alteridade evidenciada em Hotel Atlântico
está associada à ilusão e à incerteza (GINZBURG, 2004, p. 57). O narrador-
protagonista está limitado aos conhecimentos que auferem ao sujeito sua inserção à
sociedade voltada à imagem e aos signos dispersos da modernidade líquida. Age à
moda dos cegos, pois em verdade seu relacionamento para com os outros sujeitos
se dá de modo bruto e frio, ficando ao final da relação o vazio e o inominável:
“Nenhum toque acima da cintura, nada que não fossem ancas anônimas se
procurando, patéticas” (NOLL, 1989, p. 8-10). A exposição direta ao outro é
131
impossibilitada pela cegueira que dificulta ao andarilho manter relacionamentos
sólidos e duradouros.
A condição pós-moderna do narrador-protagonista encaminha-se para um
devir que decreta a falência da subjetividade, em que pese considerar a morte dos
aspectos que definem a subjetividade humana, como a capacidade de firmar
relacionamentos. A fragilidade dos laços de afeto no romance pode ser percebida
como receio que o sujeito tem em aproximar-se do outro, impedindo a concretização
dos afetos, pois “é preciso diluir as relações para que possamos consumi-las”
(BAUMAN, 2004, p. 10).
Para o andarilho, elementos como bens culturais, princípios éticos e
afetividade são esferas as quais ele não ascende, pois sua constituição é precária
num universo marcado por encontros ambivalentes, saturado de vivências vazias e
por imagens que marcam o efêmero e o precário no vórtice da vida líquida. O
andarilho, pegando de empréstimo as palavras de Bauman (2005, p. 8), tem uma
vida precária, vivida em condições de incerteza constante.
Consoante às ponderações entre alteridade e vida urbana, Regina
Dalcastagné, em “Sombras da cidade: o espaço da narrativa brasileira
contemporânea” (2003), crê que há no romance uma espécie de suspensão do
espaço, que deixou de ser descrito na sua concretude, em que não há para as
personagens a possibilidade de constituírem uma experiência palpável, em que a
incompatibilidade é voga, seja em relação ao espaço seja em relação ao outro.
“Mas eu precisava ir” (NOLL, 1989, p. 13), repete o andarilho para si mesmo
ao sair do hotel, pela manhã. Essa personagem não guarda recordações dos
sujeitos que encontra pelo caminho, tampouco pretende ficar e fincar raízes e tecer
sua história. Os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma por
muito tempo. A personagem narradora do texto de Noll é fluida, não fixa o espaço e
nem prende o tempo (BAUMAN, 2001, p. 8). O andarilho sempre está a partir,
fugindo do outro. Individualmente, ele persegue a ilusória satisfação plena que
nunca chega.
A condição finita da personagem incorpora novos personagens em cada lugar
por onde passa, de hotel em hotel, de cidade em cidade, as circunstâncias vão
traçando a sua improvisada trajetória. Anonimamente, o andarilho tece suas breves
relações num universo constituído por descontinuidades. No afã de escamotear a
realidade na qual está inserida, a personagem vive simulacros do que realmente é.
132
As dissimulações de si mesmo irrompem até mesmo quando o sujeito inominado
chega a um povoado do interior do Rio Grande do Sul.
Com o corpo bastante degradado diante da doença degenerativa que o
assola, o andarilho acorda no hospital e constata que sua perna direita fora
amputada. Inicialmente, o médico, que era candidato a prefeito da cidade, o acolhe
em seu hospital por saber que ele era um ator. Porém, ao saber da decadência do
ator andarilho, abandona-o no leito hospitalar por acreditar que ele não poderia
trazer benefícios políticos para sua candidatura.
Marginalizado, o narrador-protagonista não crê ter perdido uma parte do seu
corpo. No diálogo que trava com a filha do médico que vinha visitá-lo cada dia no
hospital, o andarilho devaneia sobre sua condição deplorável como sujeito:
De repente me acendeu a esperança de que tudo aquilo tudo não passava de um pesadelo. De repente me veio a velha sensação de que alguém estava representando, no caso aquela garota (NOLL, 1989, p. 66).
Para Maffesoli (1984, p. 136), “[a] repetição do teatro é o cadinho do parecer
social”. O fato de o andarilho acreditar que aquela cena do quarto do hospital
poderia ser mera representação, aproxima-se do aspecto teatral que sua vida líquida
sempre fora; um misto de aparência e de simulacro. A teatralidade do cotidiano de
que fala Mafessolli (1984) vem ao encontro das cenas finais do romance, em que o
narrador-protagonista, inválido e inerte, não faz mais do que crer que sua condição
fragmentada seja apenas mais uma cena que está sendo gravada.
Nesse sentido, a “encenação da vida cotidiana”, expressa Maffesoli (1984),
ensina
[...] que, do mais grotesco ao mais patético, na ordem do produtivo ou na ordem do lúdico, assistimos a um encaixe de situações maleáveis e pontuais que obedecem menos a uma construção intelectual do que a uma figuração ‘imaginal’, ao mesmo tempo contraditória e constituída na aparência (MAFFESOLI, 1984, p. 138).
A única relação mais próxima e duradoura que o andarilho consegue manter é
com o enfermeiro do hospital, Sebastião. No mais, a narrativa mostra que os sujeitos
com as quais o protagonista cruza em sua trajetória são apresentados apenas com o
primeiro nome. No que tange às personagens secundárias, a narrativa não dá ao
leitor informações sobre quem elas são. Quando há pistas sobre isso, elas são
133
dadas a partir de fragmentos de acontecimentos que na maioria das vezes não
apresentam um desfecho, este fica a cargo do leitor e da sua imaginação.
Por conseguinte, na narrativa são muitos os pontos de interrogação e as
lacunas a serem completadas: a recepcionista do hotel, o garoto que o levou até o
quarto do hotel, o motorista de táxi, Eva, a loura com quem se envolvera. Susan, a
americana que conheceu no ônibus durante a viagem a Florianópolis, os dois
rapazes com os quais seguiu viagem até Porto Alegre: Nelson e Leo; Marisa,
Antonio, Dr. Carlos, a filha de Dr. Carlos: Diana. Com todas essas pessoas, mantém
relações esvaziadas, anônimas e desprovidas de qualquer sentimento afetivo, o que
fica evidenciado principalmente, na relação sexual entre o aventureiro e a
recepcionista do hotel no Rio de Janeiro.
Quanto à relação de proximidade com Sebastião, ela se dá no momento de
invalidez, em que o andarilho estagna em suas andanças. Completamente
dependente da ajuda do enfermeiro, o narrador-protagonista recorre ao profissional
em saúde para iniciar a sua última viagem e completar o percurso. Sobremaneira,
em Hotel Atlântico o corpo da personagem principal se revela como pilar da vida
líquida, pois na esfera da existência circunstancial vivida pelo sujeito sem nome do
romance, o sujeito reduzido a si mesmo tem no corpo residência única do existir.
Assim, na narrativa, ainda que o olhar líquido busque não mostrar afetividade, o
corpo em sua degradada condição é um corpo que fala, e pede socorro.
Ao deliberar sobre o corpo, Eagleton (2007, p. 73) escreve que no arcabouço
do pós-modernismo os sujeitos vivem o apogeu do corpo de maneira escancarada.
Na atualidade, “[o]s corpos constituem formas de falar do sujeito humano sem cair
no humanismo piegas”. À margem de subjetivismos de qualquer ordem, a
personagem tematiza a ambivalência que permeia a vida precária dos sujeitos na
cidade contemporânea. No espaço urbano das grandes cidades brasileiras, sujeitos
de “olhar líquido” estão em permanente confronto na construção e reconstrução do
“eu” fragmentado.
O sujeito da modernidade líquida, diferente do sujeito cartesiano, é aquele
“cujo corpo se integra a sua identidade” (EAGLETON, 2007, p. 72). O andarilho que
percorre as margens da narrativa integra sua identidade liquefeita à sua condição
física. O estado degradante do seu corpo, devido a uma doença degenerativa que o
acompanha desde o princípio do texto, somatiza o mal-estar do homem que vive sob
134
o signo da incerteza, em que o corpo assoma como única certeza palpável quando
todo o entorno torna-se cada vez mais abstrato (HARTMANN, 2010).
O andarilho revela então, o seu fracasso enquanto sujeito de si, itinerante das
experiências fugazes. Inválido em sua constituição física, não agrega mais valor à
sociedade líquido-moderna. É um sujeito que não mais “não se encaixa no mapa
cognitivo, moral ou estético do mundo” (BAUMAN, 1998, p. 27), cujo ordenamento
se dá por meio de estruturas que baseadas em interesses políticos e econômicos
em detrimento do social.
A personagem sem nome não condiz à estrutura do mundo ordeiro de que
fala o sociólogo polonês. Ao analisar o paciente e fazer a limpeza do toco que
restara da perna amputada, o médico explica para um residente que o acompanha:
- Vivemos num mundo de estruturas. Como em qualquer outra, quando se extrai uma parte da estrutura óssea toda estrutura é afetada (NOLL, 1989, p. 83)
Alegoricamente, o corpo do andarilho significa o alicerce enfraquecido da
sociedade atual. Sua integridade física está fragmentada, por isso sua
marginalização por parte do médico que o acompanha no período de internação no
hospital da cidade. O médico o esquece, pois o paciente, um ator decadente, não
lhe trará benefícios políticos e financeiros.
Diante do andarilho, a postura da personagem médico caracteriza o gesto de
reconhecer no outro como elemento que fratura e desestabiliza o sistema. O
narrador-protagonista é a vida que não vale a pena ser vivida, por isso é excluído,
pois o capital, o poder, o consumo e a competição são os princípios de uma
sociedade nada inclinada à cooperação e à solidariedade (BAUMAN, 2004, p. 158).
O conteúdo social não mais define o sujeito, explica Touraine na obra
Poderemos viver juntos? (1998). Ao deliberar sobre a constituição do “eu, o autor
escreve que:
[...] Já não sabemos quem somos. A nossa patologia principal teve sua origem por longo tempo no peso repressivo que as proibições, as leis exerciam sobre nós; vivemos uma patologia às avessas, a da impossível formação de um eu, afogado na cultura de massa ou encerrado em comunidades autoritárias (TOURAINE, 1998, p. 71).
Para o andarilho não há constituição que possa auxiliar o leitor em defini-lo.
Ser errante, o narrador-protagonista não dissimula e não nega sua identidade
135
líquida. A experiência do sujeito andarilho vem marcada pelo horizonte de
indeterminação que se devem ao signo da falta que atravessa seu cotidiano. As
falas do narrador-protagonista atestam a incompletude do ser, que deambula de
cidade em cidade, e hospeda-se em hotéis que servem por algumas horas de
paradeiro. É nesse “não-lugar” que o sujeito para, por alguns instantes, e flagra sua
imagem no espelho.
A presença do espelho se repete continuamente no romance de Noll que,
posicionados na linguagem, refletem e iluminam múltiplas miradas. Os espelhos
participam dos múltiplos jogos de olhares construídos pelas vozes narrativas. E o
que refletem essas superfícies? Em Hotel Atlântico, o encontro do narrador-
protagonista revela o encontro com o outro, com aquele a quem ele nega: a si
mesmo. No excerto abaixo, o estranhamento ao seu reflexo faz com que a
personagem perceba fragmentos de uma vida que está à margem de si mesmo, cujo
“lampejo” de realidade somente o espelho pode refletir, por alguns instantes, antes
que o olhar se desvie em outra rota de fuga.
Me olhei num espelho no pequeno saguão do hotel. [...] Naquele espelho eu parecia de uma terra remota, obrigado a enfrentar diariamente as maiores intempéries. Senti como se uma falta do que eu jamais precisaria suportar. Baixei os olhos (NOLL, 1989, p. 32).
Fecundada pelo olhar que se nega em ver, a narrativa dá a ver um sujeito que
corresponde ao mundo em fragmento, que também incorpora através do próprio
reflexo no espelho o enigma a ser desvendado. Sua imagem no espelho parecia ser
o rosto de alguém distante, de alguém que há muito tempo ficara para trás, do qual
nem lembrança havia.
Ao expressar: “[s]enti como se uma falta do que eu jamais precisaria suportar.
Baixei os olhos” (NOLL, 1989, p. 62), o narrador-protagonista caracteriza o
desamparo que é a sombra da sua degradação. A fragmentação de si revela a
percepção angustiada de quem está limitado ao corpo. A recusa do andarilho frente
a realidade mescla as experiências da marginalidade e do periférico como forma de
abalo e ruptura com as convenções de uma normalidade social alienada.
Não diferente acontece com a personagem principal de Hotel Atlântico, que
faz das suas constantes partidas a refuta de um “real” que em nada lhe prende para
firmar raízes e manter relacionamentos duradouros. Touraine (2009, p. 145)
136
esclarece “o sujeito é o olhar sobre o corpo individual, não-social”. O andarilho é
escorregadio e frágil em sua constituição, mostra-se liquefeito em sua subjetividade,
a ponto de concordar quando a personagem Eva diz: “Um desocupado, é disso que
te chamam – eu costumava dizer sozinho me olhando no espelho. Um desocupado!
– eu sem querer gritei” (NOLL, 1989, p. 9).
É através da sua imagem refletida no espelho que a personagem constata
que definhara:
Na frente do espelho olhei as minhas olheiras fundas, a pele toda escamada, os lábios ressequidos, enfiei a língua pela cárie inflamada de um dente, pensei que não adiantava nada eu permanecer aqui, contabilizando sinais de que meu corpo estava se deteriorando (NOLL, 1989, p. 11).
Por isso, a personagem encarna o andarilho, um ser sempre em fuga de si e
da realidade. Isso é constatado quando resolve partir, e ao se deparar com a mulher
na portaria do hotel, o narrador-protagonista diz: “notei que alguma coisa a intrigava.
Franzindo os olhos ela me perguntou por que eu tinha ficado com esse olhar
envelhecido”, ao passo que ele responde: “De fato, não posso disfarçar que de uns
minutos para cá qualquer coisa aconteceu para me deixar assim” (NOLL, 1989, p.
12).
O narrador-protagonista, ao ser questionado pela mulher, assustada diante da
resposta do mesmo, responde: “Olha, meu anjo, acho que estou partindo para
saber” (NOLL, 1989, p. 12). A reação da personagem reflete na busca do sujeito em
encontrar razão para si mesmo numa sociedade impregnada pelo esvaziamento do
tempo e do espaço. A postura da personagem protagonista do romance é
caracterizada pelos impulsos ao agir, mostrando-se completamente inconsequente.
Voltada a atitudes que o impelem sempre a partir, ao desassossego, a
incompletude, a personagem insere-se ao grupo de sujeitos cuja identidade não
consegue encontrar “ancoragem estável no mundo social” (HALL, 2005, p. 7). A
morte é seu ancoradouro. O definhamento do corpo da personagem-protagonista é a
alegoria da fragmentação do sujeito inserido ao vórtice da modernidade líquida,
tempo de derretimento das utopias e da possibilidade de ver no amanhã um porto
seguro.
Em Hotel Atlântico, a questão do corpo sobressai às questões que pedem
atenção às subjetividades. Princípios morais e éticos não são levados em conta
137
diante da liquidez da narrativa e de sua personagem principal. O discurso social é
silenciado em detrimento da voz solitária do andarilho, que expõe a fragmentação de
si. Nesse contexto, nas últimas páginas da narrativa o “derretimento” do corpo do
andarilho representa aquilo que Touraine, em Pensar outramente: o discurso
interpretativo dominante (2009, p. 197), expressa sobre a morte em todas as suas
formas: o “mais elevado momento de uma relação de alteridade é a morte do outro”.
Os outros no romance são os sujeitos com os quais o andarilho teve contato
no curso de suas andanças. Um a um, os sujeitos foram sendo fragmentados e
postos à margem pelo “olhar líquido” do narrador-protagonista, até que ele narre seu
último lampejo de vida, fluida e inconstante:
Quando Sebastião saiu do quarto comigo nos braços os meus olhos não agüentaram tanta claridade do sol, e se fecharam. Depois do choque reabri os olhos, e me dei conta de que eu via tudo de cabeça para baixo, porque a minha cabeça pendia para trás. Eu sabia que Sebastião caminhava, eu sabia de tudo, normalmente, mas já não possuía a audição. (...) Só me restava respirar, o mais profundamente. E me vi pronto para trazer, aos poucos, todo o ar para os pulmões. Nesses segundos em que eu enchia o pulmão de ar, senti a mão de Sebastião apertar a minha. Sebastião tem força, pensei, e eu fui soltando o ar, devagar, devagarinho, até o fim (NOLL, 1989, p. 98).
O final da narrativa fica em aberto. A representação da morte do corpo fica
sugerida: “e eu fui soltando o ar, devagar, devagarinho, até o fim” (NOLL, 1989, p.
98). Em Hotel Atlântico, o corpo e suas relações são construídos à margem da
subjetividade, “derretendo” e diluindo a vida em toda sua complexidade. Se no
decorrer da narrativa a viagem funciona ainda como ponto de articulação dos
dilemas e conflitos envolvidos no processo de representação do outro, com a
representação da possível morte do narrador-protagonista tem-se a fragmentação
do sujeito em seu último estágio.
O “mundo tinha ficado mudo” (NOLL, 1989, p. 98), constata o andarilho que
vai carregado nos braços de Sebastião para gozar de seus últimos instantes de
sujeito. Ao ser carregado pelo enfermeiro, a alteridade é consumada, ainda que
tardiamente. O “olhar líquido”, que aos poucos vai cegando de vez para o mundo, vê
“bem cada coisa, embora de cabeça para baixo. [...] um cachorro correndo atrás das
patas e um cavalo que puxava uma carroça, eu vi uma imensidão de areias brancas”
(NOLL, 1989, p. 98).
138
A passagem em que o narrador-protagonista revela que “vê bem cada coisa,
embora de cabeça para baixo”, traz a lume a representação de uma realidade
fragmentada e de seus sujeitos excluído pela modernidade líquida. Consoante à
marginalização do sujeito e de sua representação em seus textos, Noll diz em uma
entrevista que sua “ficção trata dos deserdados sim. Dos excluídos. É uma literatura
da exclusão, reflete sobre o estado de exclusão total” (NOLL, 2000). Ainda, que a
“própria alma, a própria natureza do indivíduo fica radicalmente comprometida. São
personagens que às vezes só conseguem realmente sobreviver no estado de
evasão” (NOLL, 2000).
A imagem do mundo de cabeça para baixo é significativa. Nela, está
estampada a configuração do tempo líquido, que escorre ao olhar do narrador-
protagonista na certeza (ou ilusão?) de que não mais é possível ser captado,
contemplado em toda sua profundidade. O livro, a última página, um sujeito que cala
e não mais vê.
139
COMO NARRAR O OUTRO?
POR UMA CONCLUSÃO DE OLHOS ABERTOS
Tobias cura de cegueira de seu pai. (Óleo sobre tela). Jacques Blanchart (França, 1638). Disponível em: http://pt.wahooart.com/ @@/8Y3TNQ-Jacques-Blanchard-Tobias-Cura-da-cegueira-de-seu-Pai-(3)Acesso em: 22 jul. 2013.
140
Percorrendo o caminho da alteridade literária de dois escritores, o português
José Saramago e o brasileiro João Gilberto Noll, o estudo teve como objetivo geral
verificar como se dá a representação da alteridade, da fragmentação e da
marginalização do sujeito em Ensaio sobre a cegueira (1995) e Hotel Atlântico
(1989).
A proposta assentou-se numa leitura crítico-comparativa dessas narrativas
escritas em língua portuguesa, em que pesou o encontro de imaginários e discursos
sobre a representação do sujeito na sociedade líquido-moderna. Através do “fazer”
literário, Saramago e Noll criaram imagens que permitem conferir sentidos ao que é
vivido, visto, tocado, como também ao que é, na maioria das vezes, “soterrado”
pelas páginas oficiais da historiografia ocidental.
Reveladas pela linguagem, as representações sociais dos sujeitos
evidenciadas na tessitura das narrativas saramaguiana e nolliana revelam um mal-
estar assentado numa “cegueira” de que o sujeito é vítima como que também
vitimiza. Nessa direção, os eixos temáticos que balizaram a leitura crítica e analítica
dos romances em questão – alteridade, fragmentação e marginalização –,
consideraram o sujeito urbano no vórtice da modernidade líquida. Ficções que não
se impõem como verdade, mas apenas representações da realidade, as narrativas
são escritas sobre a página movediça de um tempo líquido, em que os sujeitos-
personagens são cercados por imagens do cotidiano que não conseguem
escamotear os fragmentos da condição humana.
No crivo da alteridade literária, os sujeitos das narrativas são narrados por
vozes que procuram dizer o sujeito contemporâneo com toda sua força. Segundo
Cornelius Castoriadis (1982, p. 124), o “sujeito não se diz, mas é dito por alguém,
existe, pois como parte do mundo de um outro”. Assim, levando em conta as
narrativas em questão, encerra-se essa dissertação partindo de uma interrogação:
Como narrar o outro? A leitura e análise dos romances que formaram o corpus de
análise são articuladas por um olhar crítico que transcende o campo de visão
imposto pela sociedade da imagem e se estende para as páginas da narrativa,
permitindo entrever a fundição do visível e do invisível.
A reflexão em tela volta-se à alteridade num contexto em que o sujeito não
reconhece o outro no âmbito das relações sociais. Tanto no romance de Saramago
como no de Noll, as personagens, sejam elas principais ou secundárias,
estabelecem vínculos que são fragmentados pouco a pouco, a ponto de marginalizá-
141
las. A fragmentação do “eu”, a generalização do corpo e a percepção do “outro” são
narrados nesses textos literários por narradores que narram a liquidez das formas de
vida, característica da sociedade líquido-moderna.
Nos romances, a representação do sujeito urbano remete a uma metáfora da
pós-modernidade, uma vez que os elementos de referência, selecionados pelos
autores, proporcionam essa consideração. Recuperando as palavras de Iser (1996,
p. 18) os aspectos e elementos da vida real, ao se converterem em campos de
referência do texto, denunciam a intencionalidade desse texto, que é chamar a
atenção do leitor para o modo de vida da cidade contemporânea. Os textos literários
de Saramago e Noll são narrativas que instauram uma realidade ficcional
reconhecida enquanto verdade representacional.
Nos romances em comento, a realidade ficcional é tão próxima da realidade
vivenciada nas ruas das cidades, que se torna possível enxergar o anacronismo27 de
um tempo líquido, percebido de modo diferente pelos narradores dos dois romances.
Ensaio sobre a cegueira é narrado em terceira pessoa, ao passo que Hotel Atlântico
é narrado em primeira pessoa. Destarte, depreende-se uma reflexão a respeito dos
narradores que “falam” em ambas as narrativas, buscando semelhanças ou
diferenças sem, contudo, deixar de perceber as relações que romances deixam
entrever.
Há diferenças na estrutura dos dois textos, o que é evidenciado na maneira
de pontuar as frases como na colocação das vozes das personagens. Porém, o que
se quer aqui é demarcar o modo como o narrador de cada romance “diz” aquilo que
pretende dizer acerca da alteridade, da fragmentação das personagens e da sua
marginalização no âmbito da modernidade líquida.
Narrado em terceira pessoa, Ensaio sobre a cegueira possibilita, pela
estruturação formal do texto, o partilhamento de vozes que compartilham o seu
discurso. Estruturas linguísticas são “entrelaçadas” por relações experimentadas por
uma escrita que mostra a sua “autoria” através do caráter dialógico do discurso
indireto livre. A leitura do Ensaio caracteriza um discurso de “uma língua plena de
‘palavra do outro’” (MORETTI, 2009, p. 140). A pontuação da narrativa tem apelo à
oralidade, pois não há os travessões, os dois pontos ou as aspas a indicar quem
27 Segundo Schollhammer (2009, p. 11) “a urgência é a expressão sensível da dificuldade de lidar com o mais próximo e atual, ou seja, a sensação, que atravessa alguns escritores, de ser anacrônico em relação ao presente”.
142
fala. A própria leitura em voz alta é que indicará a identidade do falante ou
enunciador.
No romance, narrador e personagens se recusam à fala monológica, ao
egocentrismo, estabelecendo o diálogo no qual todas as vozes podem ser ouvidas.
A figura do narrador saramaguiano é aquela do “sábio experiente que se transforma
em contador, porque tem algo de importante a comunicar” (BERRINI, 1998, p. 57).
Indubitavelmente, o narrador do Ensaio permite-se à multiplicidade de vozes. O
diálogo com o outro reflete a intencionalidade dos discursos, que é a de apontar a
direção em saída do caos social instaurado na cidade líquida com a epidemia da
cegueira. A saída, segundo a mulher do médico em diálogo com o marido ao olhar
as ruas da cidade e o lixo nelas espalhado, é “organizar-se já é, de uma certa
maneira, começar a ter olhos” (SARAMAGO, 1995, p. 282). Para que uma
sociedade de cegos viva, necessário que os sujeitos se organizem.
Visto como regente e harmonizador de um concerto de vozes, o narrador do
Ensaio encontra respaldo nas palavras do próprio escritor, que diz que o caráter
polifônico que o narrador assume na sua ficção não é unilinear (SARAMAGO, apud
ROANI, 2001, p. 232). Por isso, a multiplicidade de vozes que ecoa pelas páginas do
romance é um chamamento ao leitor para enxergar para além das aparências, para
além do que preconiza a sociedade da imagem.
Na sociedade líquido-moderna, há “cegos que veem, Cegos que, vendo, não
veem” (SARAMAGO, 1995, p. 310), expressa a personagem médico para o
rapazinho estrábico que questiona os motivos da cegueira. A cegueira que vitimiza
os sujeitos destituí a possibilidade de que eles possam lançar mão das máscaras
sociais consagradas pelo discurso oficial, constituídas das aparências que os olhos
veem. O romance quer, pois, romper com um tipo de cegueira assentado na ética,
haja vista que condições adversas e desumanas dos campos de concentração dos
regimes totalitários do século XX. Na narrativa, essa semelhança é menos notória
pelas condições de sobrevivência e muito mais latentes pela reflexão sobre a
natureza humana que o confinamento propõe.
Quanto à personagem mulher do médico; o narrador se faz “dizer” e “ouvir”
através da voz dela. Esta chama para si “a responsabilidade de ter olhos quando
outros os perderam” (SARAMAGO, 1995, p. 241). Com isso, firma-se um pacto entre
narrador e personagem, em que a mulher do médico é o único sujeito que tem o
143
sentido da visão, e o esconde para acompanhar e zelar pelo seu esposo durante o
confinamento.
Em Saramago: um roteiro para os romances (1999, p. 90), Eduardo Calbucci
explica que a “mulher do médico não cegou porque provavelmente era a única que
tinha verdadeiramente consciência pessoal”, ou seja, consciência da importância da
ação humana para a convivência social, consciência da distinção entre o certo e o
errado, o bem e o mal, independente da estrutura social, consciência do que é
essencialmente humano, pois, quanto aos outros, “de tanto olhar as pessoas
pararam de ver, de reparar, de distinguir” (CALBUCCI, 1999, p. 89).
Não desistoricizado, o texto literário se Saramago é pós-moderno porque
confronta dois mundos: o mundo que o leitor vive e conhece, anterior à “cegueira
branca”, com todas as suas conquistas e criações do homem civilizado, e o mundo
novo que, paulatinamente, precisa ser (re)construído no curso da narrativa. O
escritor português torna o romance representativo, pois tematiza a questão da
cegueira do ponto de vista em que ela assoma como uma forma particularmente
importante na expressão da tragicidade humana.
O mundo ficcional de Ensaio segue a direção do desconhecido e da
superação da barbárie. No contexto da alteridade, o escritor se faz entender pela
voz da mulher do médico. Camila Rocha Muner, no artigo “Ensaio sobre a cegueira:
a voz de um narrador muito antigo” (2008), expressa a respeito da figura do
narrador. Para ela, o narrador,
[...] ora irônico, ora pesaroso, bem humorado ou crítico, o narrador de Saramago parece querer incomodar a consciência daqueles que percorrem, pela leitura, suas histórias. Assim, é-lhe peculiar fazer uso da invasão do pensamento das personagens, a fim de revelar suas verdades mais recônditas, também de manusear o tempo ficcional em conjunto com o histórico, causando um vai-e-vem revelador de uma pluralidade de pontos de vista e de julgamentos, que, a priori, poderiam gerar certo desconforto e confusão entre real e ficção, mas que podem, ainda, demonstrar o caráter relativo das verdades que, inadvertidamente, parece que todos nós, no papel de leitores, aceitamos como únicas (MUNER, 2008, p. 3).
Ao se fazer “ouvir” através da mulher do médico, a atitude do narrador é
justamente a desse ser que, contando o que sabe e o que observa, auxilia na
construção de sentidos, na percepção de algo que está para além da primeira vista.
Sobremaneira, a alteridade, na narrativa, é constante ao olhar dessa personagem,
que procura conceder um outro olhar sobre a situação. É através dela que o
144
narrador constrói imagens significativas para o leitor, apontando saídas para o caos
social instaurado na cidade ficcional do Ensaio.
Bakhtin, em Estética da criação verbal (2000, p. 43-47), expõe que, por se
situar num lugar fora do âmbito das demais personagens, o narrador passa a ter um
“excedente constante” da sua “visão” e do seu “conhecimento”, o que favorece o
princípio do seu “acabamento estético”. Entretanto, para alcançar a percepção do
horizonte concreto do outro, o narrador do Ensaio trabalha um movimento de
aproximação, abandona a heterodiegese e assume-se como testemunha do que
narra, fazendo sua a voz que é coletiva.
O modo de contar, para Saramago, tem tanta importância quanto o que está
sendo contando. A alteridade literária no romance se faz ver no ato de guiar o leitor
na construção de sentidos e mesmo refletindo a respeito da criação literária. Essa
voz que orienta em meio à cegueira das personagens pede atenção acerca da
responsabilidade que é ter olhos, quando os demais não veem, ainda que
enxerguem. Para Calbucci (1999, p. 89), essa frase explicita as intenções do
romance, à medida que faz com que o leitor perceba toda a metáfora dessa onda de
cegueira, que figurativiza a alienação, a massificação, a perda da individualidade do
sujeito.
No romance saramaguiano, a dialética proposta pelo narrador - “ver” e
“reparar” - se assenta na preocupação, indignação e perplexidade perante uma
sociedade líquido-moderna que não mais valoriza os relacionamentos “sólidos”. Na
narrativa, o narrador “repara” a indiferença entre os sujeitos cegos e conclui que “é
dessa massa que somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade”
(SARAMAGO, 1995, p. 40).
O narrador do Ensaio lança mão da experiência própria dos narradores que
tem algo para contar. “Ter olhos” é sinônimo da obrigação que o leitor tem em “ver”,
“reparar” para fugir à contingência de um tempo líquido, em que “o mundo está cheio
de cegos vivos. [...] Quando a experiência dos tempos não tem feito outra coisa que
dizer-nos que não há cegos, mas cegueiras” (SARAMAGO, 1995, p. 308).
Firmado na aura da experiência, o narrador do romance de Saramago tem a
feição de um narrador que vem de longe e tem muito a dizer, conforme cita
Benjamin, em O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov (1994). Na
contramão do tipo de narrador evidenciado no Ensaio, o narrador-protagonista de
145
Hotel Atlântico é “uma relação do narrador com o nada” (ALCARAZ; ALCARAZ,
2010, p. 4).
O narrador-protagonista de Hotel Atlântico denota uma individualidade
desprovida de conteúdo psicológico, sem profundidade e sem projeto
(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 31). Por isso, a personagem, [...] sentado no banco do
pátio, ouvindo o órgão, [...] Olhava a falta da minha perna, apalpava o toco como se
eu ainda tivesse dúvidas. [...] Achava o mundo bem infeliz” (NOLL, 1989, p. 84).
O andarilho pós-moderno que transita pelas páginas da narrativa é aquele
sujeito que está sempre a partir e que não tem experiências a contar. No romance
de Noll, o abandono de uma narrativa para subitamente iniciar outra se deve ao fato
de que o narrador-protagonista não tem experiências para narrar. Isso vem ao
encontro do expresso por Benjamin que, em Experiência e Pobreza (1994, p. 197),
diz que “[a] arte de narrar está em vias de extinção”.
Na narrativa do escritor brasileiro, as cenas vivenciadas pela personagem
protagonista denotam o desapego à sua história, o que caracteriza o registro de
vivências individuais, efêmeras e fragmentadas que solapam o relato transmissor de
qualquer experiência que esse possa ter tido. Hotel Atlântico não é uma escrita
linear, épica e confortável. A partir das errâncias do narrador-protagonista de
identidade inconsumada, tem-se uma “epopeia do fragmento. [...] Palavras
destituídas de qualquer expressão, amarras invisíveis, a ‘experiência da agonia’ [...]
Desterrados vivendo num ‘miasma aventureiro’ e diante do naufrágio da memória’”
(SILVA, 2009, p. 180).
A dualidade entre experiência e vivência é uma das noções capitais para que
se entenda a teoria da cultura de Benjamin. A experiência (Erfahrung) está
relacionada à memória individual e coletiva, ao inconsciente, à tradição, ao passo
que a vivência (Erlebnis) relaciona-se à existência privada do homem, à sua solidão,
ao choque. A leitura do romance aponta que a personagem inominada não
consegue intercambiar experiências. Sua vivência é vazia de sentido, e diante de
uma ocupação que pudesse lhe trazer experiência para contar, a personagem
reflete: “um desocupado. [...] eu costumava dizer sozinho me olhando no espelho.
Um desocupado! Eu sem querer gritei” (NOLL, 1989, p. 9).
O narrador-protagonista, “com o corpo incompleto” (NOLL, 1989, p. 84), é um
sujeito fragmentado. Não sabe e nem faz esforço em revelar suas origens. É um
sujeito que não tem experiências para contar ao outro. Sua vida é líquida, seu
146
contato com o outro é pautado na fluidez. A atendente do hotel; a americana
arqueóloga; Nelson e Léo, que lhe dão carona para que ele chegue a uma cidade
qualquer; a garota de traços orientais; e Sebastião, o enfermeiro, são alguns sujeitos
que entram na vida da personagem principal e dela saem, não mais que num de
repente. A alteridade “derrete”, sem que se possa vislumbrar a partilha de alguma
experiência que seja útil no curso de suas andanças pelos “não-lugares”.
No romance não há transmissão de informação. Há, somente, a narração do
instante, pautado em repetições, o que torna a narrativa anti-benjaminiana, pois “a
repetição substitui o conhecimento derivado da experiência. Assim como a produção
automática e seriada dos tempos modernos, o homem [pós-moderno] se viu privado
de exercer suas experiências. Tornou-se um mero repetidor desprovido de memória”
(CORDEIRO, 2008, p. 47). Essa constatação encontra respaldo nas atitudes da
personagem principal de Hotel Atlântico, cujas figurações da experiência urbana
desvelam aspectos de várias vivências balizadas por questões como a solidão, a
ausência de uma total comunicabilidade entre o homem e seus pares,
caracterizando o desencantamento, a fadiga, a corrosão de si e um vazio não
possível de ser completado diante do absurdo de uma vida líquida.
Esse vazio sem ter o que contar para alguém é caracterizado na passagem
em que o narrador-personagem embarca num ônibus rumo a Florianópolis. Já
dentro do veículo, a personagem senta ao lado de uma americana que viera ao
Brasil para coordenar escavações de uma possível civilização pré-colombiana.
Seu nome era Susan Flemming, Tinha grandes olhos verdes. Contou que fazia a viagem por terra para conhecer melhor o interior do Brasil. Aí ficamos horas sem falar. Quando começou a se formar um belo pôr-do-sol me veio à boca qualquer coisa que eu nem fixei. Fixei ela responder que achava que não. Voltamos ao silêncio por uma meia hora (NOLL, 1989, p. 18-19).
Silenciar é não ter o que narrar, e isso é sentencioso no romance de Noll. A
desterritorialização e as vivências destituídas de sentido fazem com que ele não
tenha nada para contar sobre sua vida para sua companheira de viagem. Então,
solapa-se o último resquício da memória e da história, seja individual ou coletiva. “A
experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os
narradores”, expressa Benjamin (1994, p. 198). Contudo, o narrador do romance de
147
Noll não comunica mais a experiência e nem dá mais conselho, ele não se envolve
mais com o ato de narrar e conduz a narrativa para a ruptura do enredo.
A respeito disso, Camargo (2000) expressa que Noll filia-se ao rol de
escritores cujos textos literários não escamoteiam:
[...] a desesperança do homem contemporâneo, que nada mais tem a narrar, embora continue a narrar, que não possui sonhos a serem concretizados, ajuda a compreender que não há mais o que fazer a não ser continuar infinitamente uma ladainha eterna, sem se preocupar com mais nada a não ser o presente (CAMARGO, 2000, p. 19-20).
Benjamin reconhece que a capacidade de intercambiar experiências parecia
ser segura e inalienável. Contudo, a leitura do romance nolliano faz crer que as
“ações da experiência estão em baixa” (BENJAMIN, 1994, p. 198). O sentimento de
desnorteio, a ausência de sólidas referências familiares, questões que, em seu
conjunto, corroboram para que se tenham histórias de vida diluídas ante um “olhar
líquido”.
Com isso, a vertente da narrativa nolliana vai ao encontro do que pensa
Benjamin (1994) sobre a matriz do romance. Para o pensador da Escola de
Frankfurt,
[...] a matriz do romance é o indivíduo em sua solidão, o homem não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações, a quem ninguém pode dar conselhos e que não sabe dar conselhos a ninguém. Escrever um romance significa descrever a existência humana, levando o incomensurável ao paroxismo (BENJAMIN, 1994, p. 54).
Tanto no tema como na linguagem, Hotel Atlântico desvela a pobreza da
experiência e também da pobreza da palavra escrita como processo de
comunicação. Tem-se um narrador distanciado da experiência clássica que prezava
a dimensão utilitária do seu discurso. A narrativa lida com a fragmentação. Seja na
estrutura, em blocos, seja no trato com a linguagem, como nas relações “líquidas”
que o narrador-protagonista tem para com o outro, o romance se faz de migalhas e
questionamentos, abandonando a ilusão de sentido do texto ou sentido da vida.
No romance, narrar o outro requer distanciamento. O outro é quase sempre
visto como estranho, não como alguém que se possa estabelecer uma relação, a
não ser que seja passageira” (ALCARAZ; ALCARAZ, 2010, p. 4).
Consequentemente, o protagonista do romance de Noll é um sujeito fragmentado
148
que não foge à “vivência de um ego absolutamente infantil. Cada encontro vai
mostrando o total desinteresse de se criar vínculos” e, como já se frisou, “[o]s laços
se tornam impossíveis, é uma relação do narrador com o nada” (ALCARAZ;
ALCARAZ, 2010, p. 4) e que, diante dos limites do corpo e de sua deterioração, vive
“rudimentos de ilusões” (NOLL, 1989, p.30).
A crença popular que conta que quem viaja muito tem muito a contar não
encontra respaldo nas viagens que faz o andarilho. Na visão de Benjamin (1994, p.
198), o narrador é aquele vem de longe. O que não entra em conformidade com o
narrador-protagonista de Hotel Atlântico, pois o mesmo viaja muito e, no entanto,
não tem muito a contar. A alteridade aparece nos deslocamentos encenados por
uma escritura líquida, em que o andarilho somatiza o mal-estar do sujeito diante de
uma realidade social e cultural que não o completa, por isso a personagem repete
constantemente: “Uma contagem regressiva estava em curso, eu precisava ir”
(NOLL, 1989, p. 9).
No romance nolliano, os fatos narrados exprimem a experiência negativa do
sujeito em sociedade, ao ponto que “[a] morte é a sansão de tudo o que o narrador
pode contar” (BENJAMIN, 1984, p. 208). E o narrador-protagonista assim o faz: “Só
me restava respirar, o mais profundamente. E me vi pronto para trazer todo o ar para
os pulmões. [...] e eu fui soltando o ar, devagar, devagarinho, até o fim (NOLL, 1989,
p. 98).
Diferenças, semelhanças, aproximações. Os romances objetos de análise
possibilitam uma leitura crítico-analítica que considere vários ângulos. Seja na
representação crítica e fragmentária de condicionamentos sócio-históricos nos
textos literários e no enfoque temático quanto nas opções estéticas, Ensaio sobre a
cegueira e Hotel Atlântico desbravam a difícil tarefa de pensar a civilidade quando se
tem um mal-estar coletivo que fragmenta o sujeito em sua constituição, a ponto de
marginalizá-lo. Nesse contexto, a literatura possibilita discutir e refletir acerca de
como experiências sociais podem ser exploradas esteticamente pelos escritores e
como estratégias artísticas podem colaborar na representação de um determinado
contexto social.
Tendo como eixos temáticos que direcionaram a leitura dos dois romances –
alteridade, fragmentação e marginalização –, as narrativas permitem uma
aproximação que remete às personagens cegas do texto de Saramago e ao
149
andarilho de Noll, em que pese considerar a cegueira como elemento fundante que
expõe as personagens à paulatina fragmentação no espaço urbano mediado pela
globalização.
Ensaio sobre a cegueira e Hotel Atlântico são resultado da “fundição” entre
texto e contexto de que fala Candido (1967). As narrativas englobam o processo
baseado em quatro momentos da produção em que fala o autor, como: “o artista,
sob o impulso de uma necessidade interior, escolhe certos temas, usa certas formas
e a síntese resultante age sobre o meio” (CANDIDO, 1967, p. 25). Nessa direção, o
estudo do elemento social nos romances objetos de análise na dissertação não deve
ser visto como mera relação de condicionamento meio-obra (sendo a obra, desta
forma, uma ilustração de determinadas dinâmicas sociais), mas numa perspectiva de
“interiorização” do elemento social como elemento estruturador da obra.
Os dois romances analisados dialogam com as histórias portuguesa e
brasileira, cada qual em seu contexto. As personagens protagonistas das narrativas
inserem-se aos ditames da Globalização, evento social, político e econômico que
trouxe drásticas consequências à sociedade global, em que pese considerar a ideia
de um mundo bom e seguro; uma sociedade transparente, em que nada de obscuro
ou impenetrável se colocasse no caminho do olhar; uma sociedade em que nada
estragasse a harmonia na relação eu-outro; nada fora do lugar; um mundo sem
sujeira, sem estranhos, sem impedimentos à felicidade.
As narrativas tratam do desencantamento do sujeito nas confluências da
modernidade líquida. São romances que narram a transitoriedade absurda de vidas
insuladas pela solidão e precariedade no contato com o outro (alteridade), e
mostram imagens distorcidas no espaço e tempo. Assim, remetem o leitor a uma
necessária reflexão a respeito do desalento da existência no cerne de uma “vida
líquida”, que não conhece outro final senão o da fragmentação do eu. Destarte, são
obras que se justificam tanto pela densidade crítica e valor expressivo que os
romances têm na produção literária dos escritores quanto sua receptividade pelo
público leitor e crítica.
Utilizando as palavras de Ginzburg (2004), as narrativas saramaguiana e
nolliana são representativas porque tematizam a questão da cegueira do ponto de
vista em que ela assoma como uma forma particularmente importante na expressão
da tragicidade humana. Tanto os cegos do Ensaio como o andarilho de Hotel
Atlântico caracterizam um tipo de cegueira que está associada “aos limites do
150
conhecimento, à ilusão, à incerteza”; ainda, é vista como “uma forma específica de
experiência, caracterizada pelo limite, pela exposição do ser humano, da
incomunicabilidade, da impossibilidade de viver senão em uma condição trágica”
(GINZBURG, 2004, p. 57).
No que tange aos problemas que instigaram a lançar mão dos romances
analisados, Ensaio sobre a cegueira e Hotel Atlântico dialogam entre si e apontam
para a fragmentação das personagens em seus diferentes contextos culturais. Os
sujeitos das narrativas inserem-se na orla de personagens que têm como
características determinantes a liquidez e a fluidez. Como consequência dessa
liquidez que permite a adaptação e dificulta a sedimentação, as personagens de
ambas as narrativas apontam para a liquefação dos laços e vínculos que firmavam
as relações sociais, resultando em um crescente individualismo presente em todas
as esferas da sociedade pós-moderna.
As narrativas trazem o entrecruzamento dos discursos ficcional e histórico,
aproximações entre a criação estética literária e a realidade social do Brasil e de
Portugal. As personagens cegas do romance saramaguiano estão expostas a uma
forma particular de experiência, permeada pela tragicidade; ao passo que a cegueira
do andarilho é metafórica, por estar fadado à incerteza, à ilusão e à falta de
conhecimento, leia-se aqui, à falta de experiências para intercambiar. Nessa direção,
buscou-se entender o sujeito urbano em suas vivências sociais e como elas, em
detrimento da experiência, ocasionam a fragmentação do “eu” e, consequentemente,
sua marginalização.
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