Post on 19-Oct-2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM
VOZES SOCIAIS EM DIÁLOGO:
UMA ANÁLISE BAKHTINIANA DOS DIÁRIOS DE LEITURAS PRODUZIDOS
POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO.
RHENA RAÍZE PEIXOTO DE LIMA
NATAL-RN
2013
RHENA RAÍZE PEIXOTO DE LIMA
VOZES SOCIAIS EM DIÁLOGO:
UMA ANÁLISE BAKHTINIANA DOS DIÁRIOS DE LEITURAS PRODUZIDOS
POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Estudos da
Linguagem da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, como requisito
parcial para a obtenção do título de
Mestre em Letras. Área de
concentração: Linguística Aplicada.
Orientadora: Profa Dra. Maria da Penha
Casado Alves
NATAL-RN
2013
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Lima, Rhena Raíze Peixoto de.
Vozes Sociais em diálogo : uma análise Bakhtiniana dos diários de
leituras produzidos por alunos do ensino médio / Rhena Raíze Peixoto de
Lima. – 2013.
163 f. : il.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Letras.
Programa de Pós Graduação em Estudos da Linguagem, 2013.
Orientadora: Prof.ª Drª. Maria da Penha Casado Alves.
1. Linguística Aplicada. 2. Diários de leituras. 2. Gênero discursivo. 3. Vozes sociais. 4. Polêmicas discursivas. I. Alves, Maria da Penha
Casado. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/BSE-CCHLA CDU 81’33
RHENA RAÍZE PEIXOTO DE LIMA
VOZES SOCIAIS EM DIÁLOGO:
UMA ANÁLISE BAKHTINIANA DOS DIÁRIOS DE LEITURAS PRODUZIDOS
POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO
Dissertação de Mestrado, defendida por Rhena Raíze Peixoto de Lima, aluna
do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, na área de
Linguística Aplicada, aprovada pela banca examinadora, em 17 de abril de
2013.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves (Orientadora)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
_______________________________________________________________
Prof. Dr João Maria Paiva Palhano (Examinador Externo)
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
_______________________________________________________________
Prof. Dr Rodrigo Acosta Pereira (Examinador Interno)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Aos meus pais, principais responsáveis por
todas as minhas conquistas, independente
da grandeza delas.
AGRADECIMENTOS
A toda minha família ― tios, primos, avós ― que sempre se fizeram
presentes em todas as fases da minha vida, mesmo quando longe fisicamente;
por me ajudarem, principalmente, com o exemplo de vida e de superação, a
chegar onde cheguei.
Aos meus pais, principais responsáveis por todos os obstáculos
vencidos; pela segurança que me acolhe em todas as minhas decisões.
Aos meus irmãos, pela felicidade e apoio sinceros em cada momento
compartilhado.
Ao meu tio Ailton, pelo exemplo de responsabilidade, ética e
competência com o seu trabalho; por sempre servir de referência e por
modificar o meu pensamento sobre ser professor; pelo suporte cuidadoso e
amoroso que tem se mostrado em todos os momentos.
A Gilvando, pela colaboração na pesquisa cedendo diários de seus
alunos; por sempre me pôr em dúvidas; pelos incontáveis conselhos; pela
amizade sempre constante.
A Palhano, pela atenção, humildade e generosidade com que sempre
esteve à disposição; por me mostrar que a academia é muito mais do que
podemos enxergar.
À professora Maria da Penha Casado Alves, ou simplesmente Penha,
pelos ensinamentos, desde a graduação, sobre como devemos valorizar nossa
profissão. No mestrado, pelo empenho, paciência e cobranças oportunas.
A Orlando, pela atenção e paciência na revisão linguística; pelas críticas
e sugestões; pelo interesse que demonstrou em discutir comigo minhas
dúvidas teóricas e pelo companheirismo sem tamanho nos momentos mais
angustiantes da pesquisa.
Aos meus alunos do IFRN, pela troca de experiências, pela convivência,
pelo carinho, pelo respeito e pelo sincero interesse em minha pesquisa.
Aos colaboradores da pesquisa, alunos do IFRN, que muito gentilmente
autorizaram a utilização dos seus diários e não se preocuparam em expor
aquilo que foi escrito para ficar entre eles e o professor.
A todos que, espontaneamente, fazem parte do GELP, por não me
abandonarem no momento mais perturbador de minha vida profissional; por me
mostrarem o que é trabalhar em grupo e confirmarem a importância de
defender nossas (in)certezas.
Aos professores do IFRN, em especial, Elizete e Marília, que me
acompanharam durante o período em que estive trabalhando na instituição,
com muita generosidade, carinho, respeito, companheirismo e paciência.
Às amigas, Ienanda, Kássia e Beatriz, pela torcida, pelo apoio e pela
compreensão nos momentos em que precisei me fazer ausente.
RESUMO
O trabalho tem como objetivo principal analisar enunciados produzidos
por alunos do Ensino Médio, no gênero discursivo diário de leituras, partindo da
concepção de linguagem proposta pelo Círculo de Bakhtin. O gênero discursivo
em questão possui características peculiares que justificam sua escolha para
este trabalho, sobretudo, no que diz respeito às marcas de subjetividade, que
revelam, por meio do embate ideológico, posicionamentos sobre os temas mais
diversos. A partir dos enunciados selecionados para o corpus, foram criadas
categorias, durante a pesquisa, conforme orientações de Guba e Lincoln
(2006), Mazzotti e Gewandsznajder (1998) e Amorim (2002), para quem a
pesquisa na área de humanas não pode basear-se em categorias
preestabelecidas. Consideramos o diário como um gênero discursivo
(BAKHTIN, 2010a), que traz em si as características de composição, de estilo e
de conteúdo. Outros conceitos do Círculo, que dizem respeito ao enunciado, às
relações Dialógicas, às vozes sociais, à responsividade e à exotopia também
serviram de base para o estudo. Além disso, durante a análise dos enunciados
que compõem o corpus da pesquisa, utilizamos os conceitos de polêmicas
discursivas (BAKHTIN, 2010b) e Enquadramento (2010a). Ao término da
pesquisa, percebemos que a situação de avaliação em que os alunos se
encontravam; o fato de estarem em uma instituição cuja política segue os
documentos nacionais, embasados pela diversidade e pela pluralidade; e
conviverem em um espaço de sala de aula em que há diversidade de classe
social, faixa etária, enfim, de realidades diferentes, não foram fatores
suficientes para que essa diversidade fosse bem aceita em seus
posicionamentos. Assim, seus enunciados trazem vozes que demonstravam
uma dificuldade em aceitar o outro que é diferente de si. Diante disso,
concluímos que os professores precisam estar preparados para lidar com
esses discursos, criando estratégias para a mediação dessas vozes
destoantes, com as quais precisa travar contato cotidianamente no ambiente
escolar.
Palavras-chave: diário de leituras; gênero discursivo; vozes sociais; polêmicas
discursivas.
ABSTRACT
The work aims to analyze high school students utterances, in reading
diary discursive genre, starting from the language concept proposed by the
Bakhtin Circle. The genre in question has peculiar characteristics which justify
its choice for this work, especially with regard to subjectivity marks, that reveal,
through the ideological clash, positions on various issues. From the utterances
selected for the corpus, categories were created, during the research, according
to the guidelines of Guba and Lincoln (2006), Mazzotti and Gewandsznajder
(1998) and Amorim (2002), for whom the research in human sciences cannot
be based on pre-established categories. We consider diary as a discursive
genre (BAKHTIN, 2010a), which carries the characteristics of composition, style
and content. Other concepts of the Circle, concerning to utterance, dialogical
relations, social voices, responsiveness and exotopy also formed the basis for
the study. Moreover, during the analysis of the utterances that compose the
corpus of research, we used the concepts of discursive polemics (BAKHTIN,
2010b) and Framework (2010a). At the end of the research, we realized that the
assessment situation of students, the fact that they are in an institution whose
policy follows national documents, based on diversity and plurality, and live
together in a classroom space where there are differences of social class, age,
and finally, different realities, were not sufficient factors for this diversity be well
accepted in their positions. Thus, their utterances bring voices that
demonstrated a difficulty in accepting others that are different from themselves.
In view of this, we conclude that teachers need to be prepared to handle these
discourses, creating strategies for mediating these dissonant voices, with which
must make contact every day at school.
Keywords: reading diary; discursive genre; social voices; discursive polemics.
LISTA DE GRÁFICOS, QUADROS E ORGANOGRAMAS
Gráfico 1: Divisão dos alunos por sexo ........................................................... 26
Gráfico 2: Divisão dos alunos por faixa etária ................................................. 27
Gráfico 3: Divisão dos alunos por renda salarial ............................................. 28
Quadro 1: Quantidade de alunos por turma .................................................... 45
Quadro 2: Grupos de categorias ................................................................... 104
Organograma 1: Critérios utilizados para seleção dos diários ........................ 47
Organograma 2: Divisão dos diários por ano, por curso e por sexo ............... 48
Organograma 3: Divisão de categorias ......................................................... 103
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 13 1.1 GÊNESE DA PESQUISA ........................................................................... 13 1.2 EXPOSIÇÃO SOBRE O CORPUS DA PESQUISA .................................... 16 1.3 CONTEXTO ESPACIAL DA PESQUISA: A POLÍTICA DE ENSINO DO IFRN ................................................................................................................. 19
1.3.1 Contexto institucional e o ensino de Língua Portuguesa ......... 19 1.3.2 Ensino Médio Integrado – estrutura curricular e formas de
ingresso .......................................................................................................... 23 1.3.3 Perfil das turmas selecionadas .................................................. 26
1.4 CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA NA ÁREA DE CIÊNCIAS HUMANAS ....................................................................................................... 29
2 CONCEPÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS .......................................... 35 2.1 ORIENTAÇÕES TEÓRICAS INICIAIS ....................................................... 35 2.2 PESQUISAS INTERACIONISTA E DIALÓGICA: O PAPEL DOS SUJEITOS PARTICIPANTES ............................................................................................. 39 2.3 PERCURSO METODOLÓGICO ................................................................ 43 2.4 O TRABALHO COM O GÊNERO DIÁRIO DE LEITURA EM SALA DE AULA ............................................................................................................... 49
2.4.1 O que as vozes que nos antecedem dizem sobre os diários .... 50 2.4.2 O diário como gênero discursivo: estilo, composição e
conteúdo temático ......................................................................................... 54 2.4.3 O diário íntimo: o legado da subjetividade ................................. 59 2.4.4 O gênero diário de leituras e o contexto escolar ....................... 62 2.4.5 A linguagem verbo-visual nos diários de leituras ..................... 68
2.5 A CONCEPÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM ........................................ 72 2.6 RELAÇÕES DIALÓGICAS: RENOVAÇÃO DO MUNDO E DOS SUJEITOS ......................................................................................................................... 78 2.7 ENUNCIADO E PALAVRA VALORADA: LUGARES ONDE OS SUJEITOS SE TOCAM ....................................................................................................... 82 2.8 POSICIONAMENTO AXIOLÓGICO E VOZES SOCIAIS ........................... 89 2.9 CONCEPÇÕES DE LEITURA E DE ESCRITA .......................................... 93 2.10 DA TEORIA À ANÁLISE DOS ENUNCIADOS ......................................... 98 2.10.1 Divisão de categorias do enunciado: entre a polêmica velada e a polêmica aberta ............................................................................................ 101 3 ANÁLISE DOS ENUNCIADOS – POLÊMICA ABERTA ........................... 105 3.1 CHOQUE DIALÓGICO ............................................................................. 105
3.1.1 Enunciado I – “Meu emocional com a atividade em questão” 105 3.1.2 Enunciado II – “Se você não gosta, azar o seu” ...................... 108 3.1.3 Enunciado III – “Para o tucano que a carregue” ...................... 111 3.1.4 Enunciado IV – “A melhor parte de mim” (Parte I) ................... 116 3.1.5 Enunciado IV – “A melhor parte de mim” (Parte II) .................. 122
3.2. DIZERES SOBRE SEXUALIDADE ......................................................... 123 3.2.1 Enunciado V – “O mundo está chegando ao fim” (parte I) ..... 123 3.2.2 Enunciado V – “O mundo está chegando ao fim” (parte II) .... 126
4 ANÁLISE DOS ENUNCIADOS – POLÊMICA VELADA ............................ 128 4.1 DIZERES SOBRE SEXUALIDADE .......................................................... 128
4.1.1 Enunciado VI – “Sobre vampiros e purpurinas” (Parte I) ........ 128 4.1.2 Enunciado VI – “Sobre vampiros e purpurinas” (Parte II) ....... 131 4.1.3 Enunciado VII – “Talento não muito garantido” ....................... 132
4.2 DIZERES SOBRE O COMPORTAMENTO FEMININO............................ 134 4.2.1 Enunciado VIII – “Quero aparecer!” (parte I) ............................ 134 4.2.2 Enunciado VIII – “Quero aparecer!” (parte II) ........................... 137 4.2.3 Enunciado IX – “Safadeza gratuita” (parte I) ............................ 139 4.2.4 Enunciado IX – “Safadeza gratuita” (parte II) ........................... 143 4.2.5 Enunciado X – “Acerte no visual” ............................................. 144
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 148 REFERÊNCIAS .............................................................................................. 153 ANEXOS ......................................................................................................... 158
13
1 INTRODUÇÃO
1.1 GÊNESE DA PESQUISA
Assim como o gênero diário de leituras provém do gênero diário íntimo,
meu contato com diários, que começou cedo, deu-se primeiramente com este
e, logo após, com aquele. O gosto pela escrita, o qual não se satisfazia com os
cadernos e com as atividades escolares, fazia com que, desde a infância, fosse
presenteada com cadernos/diários que proporcionavam uma escrita intimista e
descompromissada. O hábito da escrita nesses diários tornou o gênero sempre
presente, apesar de ter convivido com a crescente opção por parte dos jovens
pelos blogs e demais gêneros surgidos com a internet.
Já na graduação, por meio da professora orientadora desta pesquisa,
tive acesso, de forma rápida, a um trabalho com diários de leitura, desenvolvido
por ela em outra turma de graduação. Esse primeiro contato com o diário de
leituras e com a possibilidade de desenvolver um trabalho por meio dele com
os alunos uniu a necessidade de criar novas metodologias para a sala de aula,
a paixão pelo gênero e a empolgação do início da carreira profissional. Assim,
mesmo sem muito conhecimento sobre o diário de leituras, arrisquei
desenvolver um trabalho com alunos de uma turma de 2º ano do Ensino Médio,
em que predominavam adultos com idade que variava de 21 a 60 anos.1 As
aulas ocorriam em uma escola estadual do município de Natal, no período
noturno, e grande parte dos alunos trabalhava durante o dia. Essa realidade
prejudicava grande parte dos trabalhos, que eram levados para casa, ou que
exigiam reuniões de grupo fora do horário da aula. Diante disso, propus à
turma o trabalho com os diários, que seriam produzidos em sala de aula, em
momento reservado para isso.
A intenção principal da atividade era que os alunos escrevessem
constantemente e valorizassem um pouco mais os textos trabalhados nas
aulas, uma vez que teriam como atividade regular comentar sobre esses textos
1 Os diários escritos nesse período não foram utilizados neste trabalho, pois todos foram
avaliados e devolvidos aos alunos.
14
em seus diários. Além disso, os estudantes teriam outra opção de atividade
além da prova escrita que os avaliava bimestralmente.
Quatro anos mais tarde, tive a oportunidade de lecionar no Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia — IFRN, na condição de
professora substituta. Na instituição, descobri que um dos professores de
Língua Portuguesa trabalhava com o gênero em turmas de 1º ano do Ensino
Médio. O mesmo professor, que acabou tornando-se colaborador desta
pesquisa, incentivou-me a aprofundar os estudos sobre o gênero e a
desenvolver um projeto de pesquisa sob viés teórico apropriado para o estudo.
Essa possibilidade deixou-me bastante empolgada devido à relação que
eu mantinha com os meus diários íntimos, gênero discursivo do qual provém o
diário de leituras. Seria, então, uma oportunidade de trabalhar com um gênero
que muito me agradava e que fazia parte tanto da minha vida pessoal, quanto
da vida profissional.
A partir de então, detive-me à preparação do projeto e pude aprofundar
o conhecimento sobre o gênero, o que me levou a descobrir que o diário de
leituras desempenhava um papel em sala de aula que transcendia a prática da
leitura e da escrita; ou seja, a escrita diarista proporcionava o registro de um
posicionamento subjetivo sobre temas diversos. Para mim, essa descoberta
teve papel decisivo na escolha pelo gênero como corpus de trabalho, pois a
exposição da opinião de alunos quanto a determinados temas fica restrita, na
maioria das vezes, ao momento da enunciação nas discussões em sala e
perde espaço para a voz do professor ou para a falta de tempo, tão escasso
diante da quantidade de conteúdos exigidos pelos programas das disciplinas.
Dar voz a esses sujeitos, diante dessa realidade, pareceu-me de
extrema necessidade, considerando igualmente o que, para Moita Lopes
(2009), constitui a pesquisa em Linguística Aplicada (L.A.). Segundo o autor, é
urgente e necessário que os trabalhos representem a voz daqueles a quem
geralmente não se ouve na academia. Por conseguinte, é “crucial pensar
formas de fazer pesquisa que sejam também modos de fazer política ao
tematizar o que não é tematizado e ao dar voz a quem não tem” (MOITA
LOPES, 2009, p. 22), não só como forma de produzir conhecimento sobre o
outro, o sujeito pesquisado, mas “principalmente pelo interesse de entender
15
como suas epistemes, desejos e vivências podem apresentar alternativas para
nosso mundo” (IDEM, p. 21).
Com relação à escuta dessas vozes, especificamente sobre o ensino de
leitura, Machado (1998), a partir de sua experiência com o gênero em sala de
aula, relata que o diário cria
condições para que todos os sujeitos leitores envolvidos numa situação de comunicação escolar específica exponham, confrontem e justifiquem suas diferentes interpretações e suas diferentes práticas e processos de leitura. (MACHADO, 1998, p. 8).
Conforme veremos adiante, o diário de leituras consiste em um espaço
em que o aluno pode sentir-se mais à vontade para expor seu ponto de vista
sobre diversos temas. E esse sentimento tem grande implicação na construção
de discursos dos quais muitas vozes que andam na contramão do discurso
oficial emergem.
Compreendi que, apesar de a voz do sujeito aluno já possuir espaço no
meio acadêmico, o diário trazia outras vozes, ou seja, posicionamentos
produzidos por um sujeito menos envolto pelas amarras dos direcionamentos
das atividades avaliativas convencionais.
Tive a oportunidade de ouvir algumas dessas vozes quando optei
trabalhar o diário com alunos do 1º ano na instituição; dessa vez, de maneira
mais sistematizada e orientada pelo professor colaborador e pelas orientações
presentes na bibliografia referente aos diários de leitura, utilizadas na atual
pesquisa. Alguns desses diários de minhas turmas compõem o corpus da
pesquisa, como veremos adiante.
Concomitante ao trabalho com os alunos do IFRN, conheci a teoria do
Círculo de Bakhtin, que deu clarividência a alguns questionamentos iniciais,
como também provocou muitos outros. Porém, após as discussões, algo que
me pareceu bastante claro sobre a teoria do Círculo foi a dinamicidade dos
pontos de vista, que trazem em si características de momentos histórico-sociais
específicos. Outra questão que surgiu nesse processo foi o fato de que não
devemos procurar respostas definitivas para os questionamentos de nossa
pesquisa. Essa descoberta dialogava com outras teorias que embasam a
16
pesquisa em L. A. adotadas neste trabalho, conforme abordaremos mais
adiante.
Consciente disso, apresento a atual pesquisa como um estudo que
procura contribuir, da forma como foi possível neste espaço, neste tempo, para
os estudos sobre um gênero pouco estudado no Brasil. Por entender que o
diário de leituras trata-se de um gênero relativamente novo, veremos, na
próxima seção, alguns aspectos que o compõem como atividade de avaliação
e como esse gênero discursivo foi trabalhado em sala de aula.
1.2 EXPOSIÇÃO SOBRE O CORPUS DA PESQUISA
Abordamos agora um pouco sobre o gênero diário de leituras e sobre
como foi desenvolvido o trabalho com os diários que foram utilizados como
corpus neste trabalho.
Segundo Machado (1998), o diário de leituras consiste em uma atividade
escolar em que predomina a subjetividade, isto é, o produtor escreve, periodica
ou cotidianamente, a partir de suas impressões pessoais. A sua produção é
endereçada, em primeiro lugar, para si mesmo2, com objetivos diversos que
variam conforme a situação, o indivíduo; ou seja, não existem “objetivos
predeterminados pelo gênero” (MACHADO, 1998, p. 24). Essa indeterminação
e a permissão à subjetividade é o que podem deixar muitos professores
desconfiados quanto ao diário, conforme Machado (1998) já apontava. Porém,
é possível desenvolver um trabalho sob orientação teórica, uma vez que, no
Brasil, já existem orientações para que atividades com o gênero sejam
desenvolvidas em sala de aula3.
Para melhor esclarecimento, apresentamos como foi desenvolvido o
trabalho com os produtores dos diários selecionados para a atual pesquisa. Os
professores colaboradores iniciaram a atividade com o diário no segundo
2 Machado utiliza a expressão “em primeiro lugar” para sinalizar a existência de um outro
destinatário inevitável, o professor. A presença de sua avaliação exerce influência sobre a
escrita dos diaristas. Sobre isso, falaremos na seção 2.4. 3 Além da bibliografia sobre o diário utilizada até aqui, podemos ver outros textos sobre o
gênero na seção 2.4.
17
bimestre de cada ano letivo (2009 e 2010). A partir da utilização de um roteiro
(anexo 1), a orientação era de que os alunos escolhessem um número de
textos, definido pelo professor (entre 10 e 20), de gêneros diversos,
encontrados em revistas, que poderiam ser também escolhidas pelo professor
ou pelos próprios alunos, conforme era estipulado pelo docente da disciplina de
Língua Portuguesa em cada bimestre.
As revistas iam desde aquelas direcionadas para o público jovem, como
Superinteressante, Mundo Estranho, Galileu, até as que apresentam um
conteúdo mais direcionado ao público adulto, como Época, Istoé, Veja, entre
outras. A partir dessas escolhas, os alunos seguiriam os passos para a
produção do diário (anexo 1), entregue pelo professor em uma espécie de
roteiro que orientou a produção e contextualizou o gênero discursivo, ainda
desconhecido pela grande maioria dos alunos. Uma das exigências da
atividade é o registro diário de, no mínimo, uma análise e, para que isso
acontecesse, o docente de cada turma procurou iniciar a atividade em uma
determinada quantidade de dias que antecediam o fim do bimestre, suficientes
para a produção da quantidade de textos solicitada por ele.
No primeiro contato com a revista, os estudantes iam escrevendo à
medida que liam os textos analisados, ao mesmo tempo, avaliavam os
aspectos composicionais e estruturais da revista como um todo, observando a
capa e anotando as impressões, as expectativas sobre o conteúdo, as
avaliações sobre como essa capa apresenta-se para o público a quem está
direcionada. E assim, os leitores iam descobrindo/aprimorando capacidades de
crítica e de análise que nem eles sabiam que possuíam, muitas vezes por não
terem a oportunidade de refletir sobre esses aspectos. Em seguida, os
diaristas4 registram, juntamente com a análise, um breve resumo dos textos
escolhidos; de forma que, em cada dia de registro, encontremos um resumo
acompanhado de análise de um desses textos.
Como podemos ver no roteiro e nas observações feitas pelo texto que
lhe serviu de base ― Abreu-Tardelli; Lousada; Machado (2007) ―, o diário de
leituras deve conter os registros referentes ao processo da leitura, ou seja, as
4 Termo utilizado por Machado (1998) e por Abreu-Tardelli; Lousada; Machado (2007).
18
reflexões surgidas durante esse processo que, na maioria das vezes, são
desconsideradas ou ficam apenas no rascunho, uma vez que grande parte das
atividades escolares exige, geralmente, apenas o produto final. Vemos
também, nessa orientação, que não existe uma estrutura fixa para a construção
dos diários. Isso permite que o professor insira, ao longo do ano, em cada
bimestre, partes adicionais como epígrafes, apresentação, conclusão,
avaliações da disciplina e do trabalho que vem sendo desenvolvido com o
gênero, por exemplo. Essas variadas possibilidades tornam o gênero um
campo ainda mais fértil para pesquisas diversas.
Os alunos também percebiam essa flexibilidade e, estimulados pelo
professor e pela autorização da presença da subjetividade, deixavam, em seus
diários, marcas pessoais que o identificavam. Assim, nos diários femininos,
encontramos poemas, declarações de amizades escritas pelos amigos, fotos
de pessoas queridas, adesivos, desenhos. As capas aparecem muito bem
decoradas, muitas delas com trabalhos artesanais que iam desde colagens
simples até trabalhos mais elaborados com pelúcia, emborrachados (E.V.A.) e
tecidos delicados. Os diários masculinos não ficaram de fora. Apesar de grande
parte apresentar-se de maneira mais desorganizada e grosseira, é muito
constante o aparecimento de figuras de personagens de videogames, letras de
música, símbolos de times, de bandas, fotos de séries preferidas e até mesmo
intervenções de outros colegas, comentando análises ou falando sobre o
produtor do diário (muitas dessas intervenções ocorriam sem a permissão do
dono do diário, que o deixava à mostra e acabava sendo vítima de brincadeiras
dos colegas).
Entre as figuras, desenhos e colagens presentes nessas atividades,
percebemos que um número bem reduzido de ocorrências dessa linguagem
visual confirmava o posicionamento assumido pelos alunos no texto
configurado na linguagem verbal. Isso constituía um diferencial em meio a
tantas imagens meramente ilustrativas. Mais à frente, vemos que, embora a
linguagem visual estivesse fora dos nossos objetivos de análise iniciais, essa
característica acabou orientando um de nossos critérios de análise.
Portanto, em meio às características aqui listadas, os diários constituem-
se como um espaço no qual os alunos posicionam-se abertamente sobre os
mais variados temas. Isso foi o que nos motivou à verificação e à análise dos
19
discursos que circulam entre esses jovens e que integram seus pontos de vista.
Os posicionamentos presentes nesses diários consistem no objeto da atual
pesquisa, aos quais atribuímos a nomenclatura vozes sociais, referenciada
pelo Círculo bakhtiniano.
Na próxima seção, expomos algumas diretrizes que compõem o ensino
no IFRN, como instituição federal de ensino; como essas diretrizes norteiam o
ensino de Língua Portuguesa na instituição; a política que rege a forma de
ingresso nos cursos médios integrados do instituto e dados que nos
apresentam um perfil das turmas de 1º ano em que os sujeitos participantes
estudaram na época da escrita dos diários.
1.3 CONTEXTO ESPACIAL DA PESQUISA: A POLÍTICA DE ENSINO DO IFRN
Esta seção tem como objetivo apresentar como se encontrava o IFRN,
em termos de leis, de diretrizes e de público, no momento de produção dos
diários. A importância dessa contextualização para a pesquisa deve-se à
contextualização do ambiente em que os diários foram produzidos, necessária
para que se compreenda em que momento institucional os produtores do diário
encontravam-se e quais políticas nacionais e locais direcionavam o ensino das
disciplinas desde o ano de 2009, ano em que os diários mais antigos foram
escritos.
1.3.1 Contexto institucional e o ensino de Língua Portuguesa
Tendo em vista que trabalhamos com diários dos anos de 2009 e 2010,
vemos que a lei nº 11.892 já estava sendo implantada. A referida lei
regulamenta que o antigo Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio
Grande do Norte (CEFET-RN) seja transformado em Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (BRASIL, 2008). O
Instituto, então, encontrava-se em um período de transição, que provocou
20
mudanças na instituição e incentivou seus profissionais a reverem os
documentos que embasavam seu ensino, ancorados nos documentos
nacionais oficiais
Segundo Pacheco (20--), os Institutos Federais ampliam a autonomia
dos antigos Centros Federais, articulando os ensinos básico, superior e
profissional, com caráter pluricurricular e multicampi. Isso significou para as
Instituições uma ampliação em termos de ensino, currículo, além da expansão
física, uma vez que diversos campi foram abertos ao redor do país. Outro
aspecto é a importância que é dada ao “bem social” da população, que pode
ser representado por meio da preocupação das necessidades de cada região.
Assim, os Institutos passam a oferecer cursos que atendem às necessidades
de cada área em que uma unidade é construída, em prol do desenvolvimento
local e regional.
Essa preocupação com o “bem social” é manifestada nas demais
diretrizes apontadas para esse novo modelo institucional, que objetiva, entre
outras coisas,
ir além da compreensão da educação profissional e tecnológica como mera instrumentalizadora de pessoas para o trabalho determinado por um mercado que impõe seus objetivos. É imprescindível situá-los como potencializadores de uma educação que possibilita ao indivíduo o desenvolvimento de sua capacidade de gerar conhecimentos a partir de uma prática interativa com a realidade. Ao mergulhar em sua própria realidade, esses sujeitos devem extrair e problematizar o conhecido, investigar o não conhecido para poder compreendê-lo e influenciar a trajetória dos destinos de seu locus de forma a se tornarem credenciados a ter uma presença substantiva a favor do desenvolvimento local e regional. (PACHECO, 20--, p. 8).
Dessa forma, a proposta está atrelada ao desenvolvimento da
Instituição, mas sempre mantendo esse diálogo com o local em que está
situada para que seja possível compreendê-la e, a partir disso, responder às
suas necessidades. Quando falamos em necessidades, podemos pensar em
necessidades de mercado, mas a proposta enfatiza, juntamente com a
preocupação em formar o profissional, a formação humana do indivíduo.
Assim, a instituição deve capacitar e formar profissionais aptos para o trabalho,
mas sem deixar de lado a formação ontológica, responsável pela propagação
21
de “princípios e valores que potencializam a ação humana em busca de
caminhos mais dignos de vida” (PACHECO, 20--, p. 11).
Então, podemos afirmar que nessa dupla missão de preparar para o
mercado de trabalho e para a vida consiste o papel do Ensino Médio Integrado
dos Institutos Federais. Essa característica, porém, já havia sido instituída
desde a regulamentação do decreto nº 5.114, o qual define que a educação
técnica de nível médio deve ser desenvolvida de forma articulada com o Ensino
Médio nas instituições federais (BRASIL, 2004).
Os cursos nos quais os autores dos diários estavam matriculados são
classificados, conforme regimento federal, como cursos técnicos de nível médio
na forma integrada. Compreendemos, nesse sentido, que esses alunos
conviviam com essa dualidade e com o objetivo institucional de trabalhar a
formação humana juntamente com a formação profissional.
Assim, a proposta organizadora desses cursos apresenta-se
numa matriz curricular integrada, constituída por uma base de conhecimentos científicos, tecnológicos e humanísticos de: Formação geral, que integra disciplinas das três áreas de conhecimento do Ensino Médio (Linguagens e Códigos e suas tecnologias, Ciências Humanas e suas tecnologias e Ciências da Natureza, Matemática e suas tecnologias), observando as especificidades de um currículo integrado com a educação profissional [...]. (IFRN, 2009, p. 9).
Nesse contexto, a disciplina de Língua Portuguesa na instituição,
coexistindo com as demais disciplinas, deve propiciar o acesso à multiplicidade
e diversidade, o que, neste caso, implica na presença de textos de diversos
gêneros, discursos e linguagens. Nessa perspectiva, os planos dos cursos
integrados projetam o perfil de um aluno concluinte dessa modalidade.
Segundo, o plano do curso de Informática, por exemplo, um aluno concluinte
desse curso deve estar apto a
Ler, articular e interpretar símbolos e códigos em diferentes
linguagens e representações, estabelecendo estratégias de solução e
articulando os conhecimentos das várias ciências e outros campos do
saber; [...] conhecer e utilizar as formas contemporâneas de
linguagem, com vistas ao exercício da cidadania e à preparação para
o trabalho, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da
autonomia intelectual e do pensamento crítico; [...]. (IFRN, 2009, p.
8).
22
Dessa forma, vemos que a proposta de ensino do IFRN vai ao encontro
do que propõem os documentos nacionais direcionados para as práticas do
Ensino Médio. Sobre essa articulação entre o ensino de Língua Portuguesa na
Instituição e esses documentos, Lima (2011) mostra como ocorre o diálogo
entre as teorias educacionais vigentes e as práticas dessa instituição de
ensino. Como professor da disciplina no Instituto, o autor analisou seis manuais
selecionados pelo MEC para serem submetidos à escolha dos professores do
Ensino Médio em 2005. A indicação dos manuais deu-se via PNLEM
(Programa Nacional do Livro do Ensino Médio).
A partir dessa análise, o autor verifica que, mesmo de forma lenta, as
reflexões acerca do ensino de Língua Portuguesa vão sendo encontradas
nesses manuais. Afirma, sobre o IFRN que, antes mesmo da LDB entrar em
vigor, o Instituto já promovia mudanças curriculares no Ensino Médio que
condiziam com o discurso dessa lei:
Em 1995, a então Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte
(ETFRN), hoje denominada Instituo Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia (IFRN), [...] inicia a implementação de um novo projeto
pedagógico pautado na concepção de educação como instrumento
de reconhecimento. As bases filosóficas defendiam uma formação
omnilateral do educando. Buscava-se, dessa forma, a superação da
dicotomia teoria-prática por meio de uma articulação entre as bases
científicas e tecnológicas e do fomento de atitudes interdisciplinares
por parte dos docentes da instituição. (LIMA, 2011, p. 22).
Com base nisso, podemos afirmar que o espaço em que os alunos
produtores dos enunciados estão inseridos é um espaço onde, há algum
tempo, circulam discussões atuais no que diz respeito à disciplina a qual a
atividade dos diários está submetida.
Dessa forma, estão presentes no programa dessa disciplina conteúdos
que proporcionam discussões sobre diferentes registros de linguagem,
contextos de produção, intenções de comunicação, por meio de uma
diversidade de textos, pertencentes aos diferentes gêneros. Isso significa
apresentar ao aluno as possibilidades de se utilizar a língua no seu cotidiano,
informando-o sobre como deve fazer suas escolhas lexicais, de acordo com o
23
objetivo que pretende alcançar, por meio da adequação correta da língua ao
seu ambiente de comunicação.
Nesse caminho, a disciplina de Língua Portuguesa direciona-se para a
“busca de soluções para os problemas de seu tempo, aspectos que,
necessariamente, devem estar em movimento e articulados ao dinamismo
histórico da sociedade em seu processo de desenvolvimento” (PACHECO, p.
17).
A seguir, vemos como os alunos do técnico integrado, de nível médio,
ingressam no Instituto.
1.3.2 Ensino Médio Integrado – estrutura curricular e formas de
ingresso
O Projeto Político Pedagógico (PPP) do IFRN, ainda em processo de
construção e disponibilizado no site do Instituto, acompanha as diretrizes
nacionais. Segundo o projeto, essa modalidade de ensino tem como objetivo
formar cidadãos que sejam capazes de atuar como profissionais técnicos de
nível médio, tendo como base uma formação sólida no que diz respeito à
educação básica, articulando trabalho, ciência, cultura e tecnologia. Essa
formação, de acordo com o projeto, pretende, entre outras coisas, superar a
“dualidade histórica entre os que são formados para o trabalho manual e os
que são formados para o trabalho intelectual e a histórica separação entre o
pensar e o fazer, característica sedimentadora do modelo capitalista” (IFRN,
2012, p. 112).
O PPP apresenta, sobre esses cursos, a estrutura curricular, a prática
profissional e os requisitos e formas de acesso. No caso da estrutura curricular,
o documento afirma que os cursos estão organizados em sistema seriado
anual, com duração de 4 anos letivos e distribuição de disciplinas divididas
entre disciplinas de Ensino Médio e disciplinas de formação técnica, de
periodicidades anual e semestral. As disciplinas estão divididas em uma carga
horária de 2.400 horas, para as disciplinas do Ensino Médio, e de 800, 1.000
ou 1.200 horas, para as disciplinas técnicas, de acordo com o curso. Além
24
desse tempo reservado a esses dois tipos de disciplina, é estabelecida a carga
horária de 400 horas dedicada à prática profissional.
Com relação a essa prática, as horas utilizadas para que ela seja
desenvolvida procuram conciliar a teoria e a prática, no desenvolvimento de
projetos integradores/técnicos, de extensão e/ou de pesquisa; e/ou estágio
curricular supervisionado (estágio técnico), a partir do início da segunda
metade do curso.
Enfatizamos a questão dos requisitos e formas de acesso neste
momento, pois julgamos importante para este trabalho que se obtenha um
perfil do aluno ingressante no IFRN, assim como do aluno que cursa o primeiro
ano do Ensino Médio Integrado.
Para ingressar na instituição, os alunos precisam obter o certificado de
conclusão do Ensino Fundamental. A forma de ingresso pode ser via processo
seletivo ou por meio da transferência de um curso para outro. Neste caso, o
estudante precisa estar matriculado regularmente no segundo período de um
dos cursos integrado e manifestar desejo, perante a instituição, de transferir-se
de um curso para outro.
A primeira forma de ingresso citada proporciona duas oportunidades
para os alunos dessa faixa etária: a) por meio do Proitec ― Programa de
Iniciação Tecnológica e Cidadania ―, curso, oferecido pela instituição, na
modalidade a distância, para alunos da rede pública, com o objetivo de
preparar os estudantes a ingressarem na instituição, por meio de provas
destinadas apenas para esses alunos da rede pública; b) por meio do ingresso
anual no Ensino Técnico Integrado para alunos da rede pública ou particular.
Consiste na aplicação de uma prova com questões objetivas de Português e
Matemática, em nível de Ensino Fundamental, e uma prova discursiva de
Produção textual.5
Com relação ao Proitec, o edital do programa é aberto no início do ano,
com informações referentes ao curso e já com as datas das provas definidas.
5 Informações obtidas no site do Instituto, por meio do link
. Acesso em: 04 mar. de
2013.
25
No caso do edital aberto em 20126, as provas foram marcadas para julho e
setembro. A primeira prova é constituída por 40 questões de múltipla escolha,
divididas entre as disciplinas Português, Matemática e Ética e Cidadania. A
segunda prova, por sua vez, além das questões de múltipla escolha, também é
constituída por uma questão discursiva, que consiste em uma produção textual.
Mas o programa em questão não envolve apenas as provas. Como já
mencionamos, trata-se de uma formação continuada e a distância, com carga
horária total de 160 horas. Seu objetivo principal é proporcionar o
aprofundamento dos conteúdos por parte dos alunos da rede pública do nosso
estado. Contemplando as disciplinas que se farão presentes nas provas, no
Proitec, não há limites de vagas e, para se inscreverem, os alunos podem
acessar a internet (o Instituto concede espaço para que o aluno que não possui
acesso à internet possa fazer sua inscrição no campus mais próximo), optando
por um campus, ao qual ficará vinculado, ao longo do programa, na condição
de aluno.7
Durante o curso, segundo o mesmo edital, são disponibilizados para os
inscritos materiais que os auxiliam nos estudos, como livro, acompanhado de
DVD contendo as teleaulas e um livro de atividades para subsidiar os estudos.
Por meio desses dois processos seletivos, todo ano letivo, as vagas de
cada curso são 50% preenchidas por alunos de escola pública e 50% por
alunos de escola privada. Esse tipo de seleção inclusiva é um dos fatores que
fazem com que as turmas do Ensino Médio Integrado possuam uma variedade
de níveis de conhecimento e, principalmente, de classe social. A título de
informação, antigamente, alguns alunos, provenientes de escolas particulares,
ingressavam em uma escola pública no último ano do Ensino Fundamental
apenas para fazer parte dessa inclusão. Porém, o atual sistema de ingresso só
permite participar do Proitec os alunos que estudaram durante todo o Ensino
Fundamental em escola pública.
6 Edital 03/2012, disponível em . Acesso em:
04 mar. de 2013.
7 Segundo o edital, não estão previstas vagas para o campus da Cidade Alta, na cidade de
Natal.
http://portal.ifrn.edu.br/ensino/processos-seletivos/tecnico-integrado/itec/proitec-2012/documentos-publicados/edital-03-2012-proitec-2012http://portal.ifrn.edu.br/ensino/processos-seletivos/tecnico-integrado/itec/proitec-2012/documentos-publicados/edital-03-2012-proitec-2012
26
Como resultado dessa junção dos selecionados pelos dois processos,
temos turmas com perfis como os que veremos agora.
1.3.3 Perfil das turmas selecionadas
Nesta subseção, exibimos os dados das turmas em que os produtores
dos diários encontravam-se matriculados na época da produção do trabalho.
Os dados foram fornecidos pela diretoria de cada um dos cursos e, segundo
funcionários, foram retirados de uma ficha cadastral que os alunos preenchem
ao ingressar no IFRN. A intenção de apresentá-los nesta pesquisa é situar o
leitor acerca do perfil das turmas em que os diários foram produzidos.
Primeiramente, apresentamos o gráfico que mostra quantos alunos do
sexo masculino e quantos do sexo feminino cursavam a disciplina de Língua
Portuguesa em cada um dos cursos escolhidos.
Gráfico 1: Divisão dos alunos por sexo Fonte: Autoria própria, 2013.
27
A partir do gráfico, é possível perceber que a turma de Edificações é a
mais equilibrada com relação à presença de homens e mulheres em sala de
aula, enquanto que, nas turmas de Informática, essa divisão não é tão
equitativa. Já com relação às turmas de Eletrotécnica e Mecânica, podemos
perceber uma quantidade elevada de homens que se sobrepõe às mulheres.
Essa grande diferença, possivelmente, significa que ainda se faz presente,
entre as pessoas de nossa região, o pensamento de que esses cursos são
voltados para o público masculino.
Em seguida, apresentamos o gráfico que mostra como se dava a divisão
dos alunos por faixa etária em cada turma.
Gráfico 2: Divisão dos alunos por faixa etária Fonte: Autoria própria, 2013.
A faixa etária dos alunos matriculados nos cursos é bem diversificada,
como vemos. Porém, percebemos que predominam as idades de 15 e 16 anos,
idade em que, geralmente, os jovens ingressam no Ensino Médio. Poucos
alunos ingressam na instituição com idade menor, são os casos em que os
jovens começam os estudos mais cedo e, consequentemente, chegam a esse
nível de ensino antes dos demais.
Quanto aos mais velhos, as situações são mais diversificadas. Uma
delas é o caso de reprovação. A título de informação, segundo professores do
28
Instituto, a disciplina de Língua Portuguesa é uma das disciplinas que mais
reprovam os alunos no 1º ano; portanto, todos os anos, as turmas desse nível
são compostas pelos calouros e pelos alunos reprovados na disciplina. Outra
situação é a de alunos que já cursam o Ensino Médio em outra escola, mas
que decidem iniciá-lo novamente para poder cursar o Ensino Médio no IFRN.
Além das situações já citadas, temos também os alunos que, por algum motivo,
atrasaram os estudos e, consequentemente, chegaram ao E. M. em uma idade
mais avançada do que o esperado para esse nível de ensino.
Por fim, veremos o gráfico que apresenta a divisão dos alunos por renda
salarial.
Gráfico 3: Divisão dos alunos por renda salarial Fonte: Autoria própria, 2013.
Como mostra o gráfico, em uma mesma turma, convivem alunos com
renda familiar de até um salário mínimo e alunos cuja renda familiar ultrapassa
dez salários. Porém, é predominante, em todas as turmas, os jovens cuja renda
familiar vai de um a cinco salários mínimos. O que nos chama a atenção neste
gráfico é a quantidade de alunos, em alguns cursos, que não informam a renda
salarial. Segundo os funcionários que nos disponibilizaram esses dados, muitos
deles não estão cientes da renda de sua família no momento do preenchimento
da ficha cadastral. Esses dados são utilizados, também, pelo grupo de Serviço
29
Social da escola, que avalia os alunos de baixa renda para que bolsas de
trabalho sejam disponibilizadas para eles, além de outros benefícios, como
alimentação, oferecidos pelo governo federal. Portanto, os que permanecem
sem fornecer a renda de sua família, provavelmente, não estão interessados,
ou não precisam, desses benefícios.
Saindo desse contexto institucional, abordamos, agora, como a pesquisa
se insere na área das Ciências Humanas e na Linguística Aplicada.
1.4 CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA NA ÁREA DE CIÊNCIAS
HUMANAS
Nas últimas décadas, as pesquisas em Ciências Humanas vêm
trazendo, cada vez mais, uma postura política diante da sociedade. De fato, as
pesquisas realizadas nas instituições acadêmicas estão voltando-se não
somente para a compreensão dos problemas que afligem a sociedade e seu
cotidiano, mas também para procurar desenvolver estratégias para
enfrentarmos esses problemas. Ou seja, a pesquisa acadêmica está, cada vez
mais, adquirindo um caráter responsivo, optando por trilhar um caminho que
nega e denuncia os procedimentos metodológicos positivistas e objetivos
mecânicos.
Acreditando ser essa perspectiva a que responde às necessidades
contemporâneas, muitos teóricos da área reforçam a importância desse modo
de fazer pesquisa e desenvolvem estudos no intuito de propagá-lo. Entre eles,
estão as autoras Freitas, Jobim e Souza, e Kramer, para quem a verdadeira
pesquisa acadêmica precisa, sobretudo,
Interagir com as concepções construídas no cotidiano das relações sociais, possibilitando uma permanente troca entre visões de mundo que se expressam através de registros de linguagem ou de gêneros discursivos distintos. Os indivíduos e os grupos podem conquistar uma consciência crítica, cada vez mais elaborada, sobre a experiência humana, na medida em que são capazes de permitir que os diferentes gêneros de discurso (desde o discurso acadêmico até as formas cotidianas de expressão, através de ações, opiniões e representações sociais) possam interagir, transformando e re-significando mutuamente as concepções, sobre o conhecimento e a
30
experiência humanas que circulam entre as pessoas num determinado espaço sociocultural, e num dado momento histórico. (FREITAS; JOBIM E SOUZA, KRAMER, 2007, p. 8).
Portanto, a pesquisa atual na área de humanas deve estar atenta ao que
acontece nesse espaço sociocultural que é construído, transformado e
ressignificado pelos sujeitos por meio da interação; logo, um espaço que sofre
constantes transformações. E estando atenta ao espaço e aos sujeitos,
dinâmicos e heterogêneos por natureza, esse tipo de pesquisa, que pretende
atender aos sujeitos, de uma forma geral, não pode privilegiar pensamentos
hegemônicos. Ao contrário, deve-se comprometer com a democratização. Mas
o que significa democratizar o campo da pesquisa acadêmica nos dias de
hoje? Significa, sobretudo, dar voz aos grupos excluídos das pesquisas
acadêmicas, ou, nas palavras de Moita Lopes (2009), “ouvir as vozes das
periferias ou daqueles que foram alijados dos benefícios da modernidade”
(MOITA LOPES, 2009, p. 21). Ou, como no caso desta pesquisa, permitir que
as vozes dos alunos ocupem relevante espaço na pesquisa acadêmica.
Segundo esse linguista e pesquisador, essa mudança do como fazer
pesquisa passa a ser bem perceptível no Brasil a partir dos anos 90, quando,
ancoradas nas teorias de autores como Vygotsky e Bakhtin, no tocante à
compreensão da linguagem como instrumento de construção do conhecimento
e da vida social, as Ciências Sociais passam a questionar a teorização do
sujeito social de forma homogênea, responsável pelo “apagamento” das
diferenças e das singularidades. Esses questionamentos resultaram em uma
reteorização “em termos de visões pós-estruturalistas, feministas antirracistas,
pós-coloniais e queer” (MOITA LOPES, 2009, p. 19). Dentro dessa linha de
pensamento, podemos concluir que todos os trabalhos que pretendem
contribuir para a pesquisa na área de Humanas devem trilhar por esse
caminho.
Como sabemos, trabalhar com o discurso do aluno não constitui uma
novidade na grande área da Linguística. É muito comum nos depararmos com
pesquisas que utilizam como corpus entrevistas, trabalhos, exercícios,
gravações em que encontramos o discurso dos discentes em evidência.
Sabemos também que tanto a participação em entrevistas, quanto o registro
31
em atividades escolares estão sendo influenciados pela imagem que o aluno
pretende passar de si como estudante, como participante de pesquisa.8 A partir
disso, entendemos que o diário de leituras não está isento dessa influência.
Porém, entendemos que se trata de um gênero discursivo que confere uma
maior liberdade9 ao produtor e essa liberdade, embora ande junta com a
imagem do outro (nesse caso, o professor), traz consequências para a
produção de um discurso em que podemos encontrar vozes que vão de
encontro ao que é socialmente estabelecido ou aos discursos hegemônicos da
atualidade.
Isto é, essa maior liberdade permitida pelo gênero ainda proporciona
uma espécie de democratização, da qual tratava Moita Lopes (2009), no
sentido de que amplia a possibilidade de o aluno falar sobre o que pensa
acerca dos discursos que circulam na sociedade. Democratizar, nesse caso, é,
também, permitir que o aluno exponha o seu ponto de vista sobre a sala de
aula, sobre a escola, sobre o conteúdo, sobre as temáticas dos textos que lê no
dia a dia, enfim, sobre o que lhe é apresentado nesse espaço escolar.
Dessa forma, em sintonia com o atual perfil de pesquisa brevemente
exposto, este trabalho pretende colaborar para os estudos contemporâneos
sobre linguagem, sobre as práticas discursivas, sobre o gênero diário de
leituras e sobre os conceitos bakhtinianos de dialogismo e vozes sociais
representados em enunciados concretos. Conforme Bakhtin (2010a) afirma, os
discursos presentes no meio social materializam-se nos gêneros. Assim,
esperamos encontrar, materializadas nesse gênero escolar, vozes circulantes
no meio social que revelam diferentes pontos de vista.
Para tanto, nos valeremos das peculiaridades do gênero, principalmente,
no que diz respeito às considerações subjetivas que são feitas sobre o texto
analisado, seu conteúdo e sua possível dificuldade de interpretação por parte
do diarista. O diferencial do diário está no fato de, apesar de ser um gênero
escolar, apresentar-se como um espaço onde reina “o universo temático da
experiência pessoal, incluindo-se aí ações, sentimentos, sensações e
8 A influência do outro sobre o discurso do eu é parte integrante da teoria do Círculo de
Bakhtin e será abordada na seção que versa sobre a concepção dialógica da linguagem. 9 A utilização do termo “liberdade” para referir-se a uma das características dos diários é
utilizado por Abreu-Tardelli, Lousada e Machado (2007). As razões para essa utilização podem
ser encontradas na seção 2.4.
32
pensamentos relacionados a essa vivência” (MACHADO, 1998, p. 28). Os
juízos de valor pautados, principalmente, nas impressões pessoais tornam a
utilização desse gênero propício à manifestação das vozes constituintes dos
sujeitos participantes, uma vez que estes se encontram fora das atividades
tradicionais escolares, as quais solicitam respostas objetivas e que, por
conseguinte, não permitem a opinião pessoal dos estudantes.
O gênero em questão, portanto, além de exercitar a escrita e a leitura
crítica dos alunos, constitui um espaço para os comentários empíricos, para a
individualidade, para aquilo que a academia não pode aceitar como válido por
não apresentar a obrigatoriedade da presença de argumentos sólidos e
comprovados cientificamente. Abrir as portas para a individualidade e para a
subjetividade do sujeito é entrar em contato mais diretamente com sua
consciência, formada por diferentes vozes que o constituem.
Como podemos ver, os estudos na área de Ciências Humanas, assim
como as características do gênero diário de leituras colocam em questão um
sujeito constituído socialmente e, por essa razão, um ser que comporta em si
diversos posicionamentos que o fazem único, singular e múltiplo ao mesmo
tempo. Dentro desse contexto, a vertente da L. A. escolhida para este trabalho
dialoga com as concepções apresentadas até então. Segundo Menezes, Silva
e Gomes (2009), um consenso entre estudiosos sobre a L.A. é de que ela é
a linguagem como prática social, seja no contexto de aprendizagem de língua materna ou de outra língua, seja em qualquer outro contexto em que surjam questões relevantes sobre o uso da linguagem.” (MENEZES; SILVA; GOMES, 2009, p. 25).
Rajagopalan (2008) afirma que a L.A. deve estar voltada para questões
práticas, isto é, deve organizar-se como um tipo de pesquisa que se volta aos
estudos de uma teoria que esteja ligada às necessidades dos sujeitos em sua
constante utilização da língua no cotidiano. O autor chama a atenção para o
fator social, dizendo que ele não deve estar para a Linguística apenas como
um adereço, mas como um elemento indispensável para que se pense
questões de língua. Nas palavras do autor:
33
A atividade linguística é uma prática social. Sendo assim, qualquer tentativa de analisar a língua de forma isolada, desvinculada das condições sociais dentro das quais ela é usada, cria apenas um objeto irreal. Longe de ser uma opção teórica ou até mesmo uma condição para conduzir a atividade científica, como costumam dizer os adeptos dessa tendência, tal manobra, sob olhar atento e crítico, se revela um gesto imbuído de conotações ideológicas — precisamente do tipo que seus defensores acreditam estar excluindo de suas práticas científicas. (RAJAGOPALAN, 2008, p. 163).
Partindo desse pressuposto, consideramos os enunciados analisados
como representantes de nossa conjuntura política, cultural, social e ideológica.
E, inseridos nas práticas sociais, os enunciados não apenas a representam,
mas podem ser considerado como constituintes e constituídos dessas práticas,
conforme veremos com mais detalhes mais adiante.
Podemos perceber uma consonância entre esse campo de estudo e o
que se vem propondo nos demais campos de conhecimento que constituem a
área humanística. Sobre esse aspecto, Moita Lopes (2009) apresenta o sujeito
da L.A. como um ser social, heterogêneo, fluido e mutável que constrói sua
subjetividade no meio social por meio da linguagem que, por sua vez, o reflete.
E aqui entendemos a importância de compreender nossas práticas discursivas.
Elas denunciam o que somos. “Somos os discursos em que circulamos, o que
implica dizer que podemos modificá-los no aqui e no agora” (MOITA LOPES,
2009, p. 21).
Diante da multiplicidade de discursos com os quais nos deparamos —
muitos deles entendidos no passado como ilegítimos —, o autor afirma que é
crucial
submeter todas as nossas práticas, inclusive as de pesquisa, a princípios de natureza ética, uma vez que nem todos os significados são válidos. Tais princípios nos devem fazer avaliar as vantagens que levamos em detrimentos de outros, assim como nos devem fazer recusar significados que façam sofrer, um parâmetro do qual não podemos nos afastar. (MOITA LOPES, 2009, p. 22).
Considerando todo esse contexto, esperamos que esta pesquisa possa
fortalecer esse novo rumo que a pesquisa vem tomando, assim como o novo e
adequado tratamento que se tem dado aos sujeitos como objetos de pesquisa.
A colaboração do diarismo pode ser resumida nas palavras de David (apud
34
MACHADO, 1998, p. 22): “em face de uma humanidade psiquicamente
esfacelada, esse gênero talvez seja o único capaz de expressar a civilização
esfacelada em que vivemos”.
Para uma melhor organização das informações, dividimos o texto em
cinco capítulos. O primeiro trata-se desta introdução, na qual objetivamos situar
a pesquisa; situar o seu espaço e os sujeitos participantes; legitimá-la como
inserida no campo da L.A e apresentar o corpus.
Em seguida, temos o segundo capítulo, no qual expomos os
pressupostos teóricos que orientam todo o percurso da pesquisa, e os
caminhos percorridos sob essa orientação (escolha do corpus, objetivos e
questões, critérios de seleção). É neste capítulo também que situamos a
concepção de linguagem norteadora da pesquisa, assim como os principais
conceitos da teoria bakhtiniana que serviram de suporte: as relações
dialógicas, o conceito de enunciado a noção de posicionamento axiológico e
vozes sociais, entre outros. Coerente com esses conceitos, apresentamos a
forma como compreendemos os processos de leitura e de escrita no trabalho
com os diários e como, motivados por essa compreensão, consideramos os
enunciados produzidos pelos alunos. No final deste capítulo, esclarecemos
como ocorreu o processo de divisão de categorias e a nomeação dos
enunciados escolhidos para que possamos introduzir as análises dos dez
enunciados escolhidos para o corpus.
Os capítulos três e quatro são destinados às análises. Neste, agrupamos
os enunciados da Polêmica aberta; naquele, os enunciados pertencentes ao
grupo da Polêmica velada.
Por fim, nossas considerações finais, capítulo em que discutimos os
resultados da pesquisa e direcionamos essa discussão para estudos
posteriores.
35
2 CONCEPÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS: RELAÇÃO ENTRE
CONCEITOS E ATITUDES DIANTE DA PESQUISA
Este capítulo objetiva apresentar maiores informações sobre as
concepções teóricas metodológicas que nortearam toda a pesquisa. Sabendo
que “as visões de homem e de mundo presentes numa determinada
perspectiva teórica marcam toda a sua organização metodológica e estrutural
conceitual” (FREITAS; JOBIM E SOUZA; KRAMER, 2007, p. 8), discorremos
aqui sobre como concebemos, ao longo da pesquisa, os sujeitos envolvidos no
trabalho, a teoria que será abordada, o gênero discursivo diário de leituras e o
próprio modo de fazer pesquisa na área de Ciências Humanas atualmente, sob
a concepção dialógica bakhtiniana.
2.1 ORIENTAÇÕES TEÓRICAS INICIAIS
Em primeiro lugar, faremos uma contextualização sobre as atuais
orientações para a pesquisa na área de Ciências Humanas. Em se tratando de
metodologia nessa área, é necessário considerarmos que, independente da
linha teórica, ela sempre visa a uma melhor compreensão do ser humano,
como sua denominação já aponta. Portanto, antes de mais nada, precisamos
compreender o homem contemporâneo e, para a pesquisa em questão, o
concebermos como ser de linguagem, que interage com o mundo e constitui-se
como sujeito participante de uma sociedade. Essa constante interação é o que
garante a permanente transformação do homem e dessa sociedade. Tendo em
vista que tratamos de um trabalho inserido na área de L. A., consideramos
também o fato de que essa inserção e constituição humana na sociedade
acontecem por mediação da linguagem. Assim sendo, é por meio dela que
construímos enunciados, ao mesmo tempo em que ela nos transforma e
ressignifica.
Essa concepção de homem e de linguagem influenciou esta pesquisa no
momento em que entramos em contato com os textos analisados. Nesse
36
contexto, utilizamos como base também as orientações do Círculo bakhtiniano
para as pesquisas nessa área (BAKHTIN, 2010a). Portanto, compreendemos
que os enunciados presentes nos diários materializam o pensamento de um
grupo da sociedade da época em que foram escritos (alunos, adolescentes,
estudantes do Ensino Médio do IFRN). Apesar de representarem uma pequena
parcela desse grupo, os enunciados que foram selecionados para serem
analisados representam posicionamentos que circulam na sociedade da época.
Ou seja, o posicionamento desses jovens não pertence somente a eles, não foi
criado de forma isolada, mas dentro do ambiente social e histórico em que se
construíram, e permanecem construindo-se, como sujeitos de linguagem.
Assim, esse caráter de transformação permanente do homem e da
sociedade conferido por essa abordagem é uma das concepções que orientam
este trabalho. Sendo o homem um ser que não se caracteriza como previsível,
ao estudá-lo, não podemos garantir resultados que venham ao encontro de
determinada expectativa do pesquisador. Portanto, o sujeito pesquisador deve
adentrar na pesquisa com questões e objetivos formulados, mas com a
consciência de que as etapas do projeto podem sofrer (re)ajustes durante o
percurso. Sobre isso, Mazzotti e Gewandsznajder (1998) nos dizem que um
projeto de pesquisa não é uma “camisa de força” ou algo que deve ser seguido
necessariamente à risca, mas “um guia, uma orientação que indica onde o
pesquisador quer chegar e os caminhos que pretende tomar” (MAZZOTTI;
GEWANDSZNAJDER, 1998, p. 149).
Guba e Lincoln (2006), ao fazerem referência à “metodologia
investigativa” também se opõem à construção de um conjunto de regras que se
encaixem em qualquer tipo de pesquisa. Do contrário, os autores posicionam-
se em favor da adequação da metodologia à natureza da pesquisa (GUBA;
LINCOLN, 2006).
Consonante com essa ideia, Freitas (2007) aponta a importância de se
compreender os fenômenos sociais em toda a sua “complexidade e em seu
acontecer histórico”. Para tanto, há que se ir ao encontro da situação no seu
acontecer, “no seu processo de desenvolvimento” (FREITAS, 2007, p. 27). É
por essa razão que Moita Lopes (2009) coaduna essa visão por entender que
em se tratando de algo complexo, múltiplo e heterogêneo como o ser humano,
não há como basear-se em relações de “causa e efeito”, tendo em vista
37
também a complexidade das práticas discursivas nas quais esses sujeitos
estão inseridos.
Nesse sentido, as categorias nas quais foram inseridas as vozes
analisadas foram criadas a partir da análise dos enunciados e das vozes que
deles emergiam. Não há espaço, nessa abordagem à qual nos referimos, para
categorias preestabelecidas pelo pesquisador, uma vez que isso seria falar
pelo corpus em vez de ouvi-lo. Podemos afirmar, portanto, que as teorias
mencionadas, neste capítulo, serviram de aporte teórico para a criação do
corpus e das categorias, mas não ditaram de forma categórica como essas
categorias deveriam aparecer, uma vez, que sem a seleção do corpus e o
constante contato com ele, não poderíamos saber que categorias adotar.
Sobre isso, Amorim (2002) também alerta-nos sobre o diferencial desse
pensamento que orienta a concepção de metodologia aqui adotada:
No que concerne às Ciências Humanas, a questão da voz do objeto é decisiva. Segundo Bakhtin, é o objeto que distingue essas ciências das outras (ditas naturais e matemáticas). Não é porém o homem seu objeto específico, uma vez que este pode ser estudado pela Biologia, pela Etologia etc. O objeto específico das Ciências Humanas é o discurso ou, num sentido mais amplo, a matéria significante. O objeto é um sujeito produtor de discurso e é com seu discurso que lida o pesquisador. Discurso sobre discursos, as Ciências Humanas têm portanto essa especificidade de ter um objeto não apenas falado, como em todas as outras disciplinas, mas também um objeto falante. (AMORIM, 2002, p. 10).
Nessa perspectiva, analisamos o discurso, do qual emergem
posicionamentos diversos sobre o mundo, o qual os sujeitos (re)significam
cotidianamente e com o qual permanecem em constante diálogo, construindo
seus pontos de vista e, consequentemente, a si mesmos como sujeitos de
linguagem.
Sobre a visão de mundo que norteia o modo como consideramos esses
discursos, Bakhtin (2010a) apresenta-nos a assertiva de que a pesquisa
precisa enxergar o mundo como acontecimento, em vez de vê-lo como
estanque e acabado. O autor, ao falar sobre metodologia, também mostra que
o ponto de partida para compreender um determinado momento histórico é o
texto. Dialogando com esse pensamento, Freitas (2007) afirma que a fonte de
dados para uma pesquisa qualitativa é o texto
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no qual o acontecimento emerge, focalizando o particular como instância de uma totalidade social. Procura-se, portanto, compreender os sujeitos envolvidos na investigação para, por meio deles, compreender também o seu contexto. (FREITAS, 2007, p. 27).
É nessa perspectiva que os diários de leitura podem constituir um corpus
para uma pesquisa nessa área, uma vez que representam enunciados
carregados de valores que, embora advindos de apenas dez sujeitos, podem
ajudar-nos a compreender a totalidade da conjuntura social na qual estamos
imersos atualmente.
Dentro desse corpo das ciências ditas humanas, encontra-se a
Linguística Aplicada, cuja preocupação maior é fazer pesquisa de forma a
trazer respostas para os problemas enfrentados pelo homem em sua interação
no meio. No entanto, é importante ressaltar que, para Moita Lopes (2009), não
há como apresentar respostas e soluções fechadas para os problemas na L. A.
Portanto, o tipo de resposta a que nos referimos trata-se do esclarecimento e
aprofundamento proporcionado pela pesquisa nessa área. Assim, a atual
pesquisa, em vez de objetivar explicar fenômenos por meio de respostas
imediatas, visa aprofundar e interpretar esses fenômenos.
Essa característica está inserida dentro da pesquisa qualitativa de cunho
interpretativista, uma vez que enfatiza a compreensão e o aprofundamento dos
dados e não sua quantidade, conforme nos indica Freitas (2007), ao verificar
que o critério que se deve buscar nesse tipo de pesquisa “não é a precisão do
conhecimento, mas a profundidade da penetração e da participação ativa tanto
do investigador quanto do investigado” (FREITAS, 2007, p. 28).
Finalizando, ressaltamos que as concepções adotadas para a pesquisa
e sua inserção na pesquisa qualitativa interpretativista obedece às
características do objeto escolhido. Temos, como objeto de pesquisa, as vozes
que emergem dos enunciados produzidos pelos alunos. A concepção de vozes
na perspectiva bakhtiniana pressupõe, como já mencionamos, os
posicionamentos que fazem parte da memória discursiva dos sujeitos e que se
materializam nos enunciados. Esses posicionamentos são sempre valorados e
estão ligados a um determinado grupo social que confirma e reafirma um certo
tipo de discurso em um dado contexto social. Assim, esse objeto orienta a
análise específica no âmbito do discurso, ou seja,
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não se trata de um trabalho de análise linguística ou literária, mas de uma tentativa de identificar limites, os impasses e a riqueza do pensamento e do saber que são postos em cena no texto. Preocupação epistemológica, mas também ético-política, na medida em que alguns textos de pesquisa nos dão a perceber a relação entre o pesquisador e o seu outro num contexto cuja dimensão política se impõe a qualquer reflexão. (AMORIM, 2002, p.8).
Assim, esse modo de fazer pesquisa, ao aprofundar o discurso, terreno
fértil para compreender o homem e suas relações sociais, acaba priorizando o
homem antes de qualquer coisa, pois o contato com o texto é o contato com o
próprio homem e seus valores.
A importância que procuramos conferir aos sujeitos participantes dessa
pesquisa é teorizada na seção seguinte, na qual procuramos explicitar o papel
do sujeito pesquisador e dos sujeitos pesquisados.
2.2 PESQUISA INTERACIONISTA E DIALÓGICA: O PAPEL DOS SUJEITOS
PARTICIPANTES
A concepção de pesquisa que iremos abordar nesta seção diz respeito à
maneira como tratamos os sujeitos participantes. Conforme veremos nos
tópicos seguintes, a voz do pesquisador não deve predominar sobre as vozes
dos alunos participantes. É no diálogo entre essas vozes que a pesquisa vai
constituindo-se e tomando forma, sem que nenhuma das partes seja
privilegiada.
Os conceitos de interação e dialogismo assemelham-se por não
considerarem o homem fora do contexto social. Isso nos auxilia a pensar
diretrizes metodológicas no sentido de considerar a importância do outro na
pesquisa, não apenas como um objeto, mas como real colaborador para que
esta pesquisa se realize. Desse modo, a interação com os sujeitos passa a ser
inevitável, uma vez que “[...] nossa natureza social simplesmente não permite
que escapemos à interação” (MORATO, 2004, p. 313), considerando que “toda
a ação humana procede de uma interação” (MORATO, 2004, p. 312).
Porém, para que possamos nomear uma pesquisa como interacionista, é
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preciso que saibamos de que tipo de interação estamos falando, pois, segundo
Morato (2004), muitas pesquisas dizem-se interacionistas, mas não realizam
um trabalho que deixe claro como esse tipo de interação ocorre, pois os
sujeitos pesquisados continuam assumindo um papel passivo e inferior dentro
da pesquisa. Por esse motivo, concordamos com Santos (2010), quando a
autora afirma que interação é ir além das aparências, reconhecendo o outro
como único e singular no todo da sociedade. Essa escolha teórica,
consequentemente, deixa de lado as generalizações. Como vemos, essa
concepção dialoga com o que vimos anteriormente sobre a pesquisa
interpretativista e com a visão de pesquisa e de ser humano apresentadas por
Bakhtin (2010a).
Para este autor, o objeto das Ciências Humanas é o ser humano,
expressivo e falante, inesgotável em seu sentido. Além disso, assim como a
linguagem é dialógica, a pesquisa deve manter esse diálogo com o outro, em
oposição a uma atitude monológica, que consiste em seu silenciamento,
quando o pesquisador, em vez de dar voz a esse outro, fala por ele.
Baseando-se nisso, Freitas afirma que
O homem não é um objeto, nem algo sem voz: é outro sujeito, outro que eu que interage dialogicamente com seus interlocutores. Dessa maneira pesquisador e pesquisado se constituem como dois sujeitos em interação que participam ativamente do acontecimento da pesquisa. Esta se converte em um espaço dialógico, no qual todos têm voz, e assumem uma posição responsiva ativa. (FREITAS, 2010, p. 17).
Nesse sentido, não temos um pesquisador que fala sozinho e um
pesquisado que serve apenas para ser observado, mas, considerando que o
objeto pesquisado também é um falante, não podemos, a partir dessa
concepção, deixar de ouvi-lo. No caso desta pesquisa, o contato entre as duas
partes ocorre por meio dos enunciados analisados. São as vozes presentes na
escrita dos alunos, participantes e colaboradores da pesquisa, que devem ser
ouvidas constantemente para que seja apontada uma interpretação desses
discursos. O respeito à voz desse outro acontece, portanto, a partir dessa
atitude teórica e metodológica do sujeito pesquisador diante de sua pesquisa.
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Por isso, é preciso que, nesta seção, abordemos também o conceito de
exotopia (BAKHTIN, 2010a), tendo em vista que estamos falamos sobre
interação dos sujeitos participantes da pesquisa. Falaremos sobre esse
conceito em outros momentos do trabalho. No entanto, neste momento,
tratamos do distanciamento da pesquisadora em relação a alguns produtores
dos enunciados, que foram seus alunos; em relação à atividade escolar diário
de leituras; e em relação à situação de sala de aula em que os discursos
(confirmados ou negados nos enunciados) circulavam no cotidiano escolar.
Assim, compreendemos que, durante todo o processo da pesquisa, mais do
que um conceito, a exotopia deve ser encarada como uma atitude, na qual o
pesquisador opta por manter o afastamento de seu objeto e da situação
vivenciada com os demais participantes da pesquisa, para que ocorra uma
melhor compreensão desse objeto, dessa situação.
Nesse sentido, essa relação exotópica é o que mantém o equilíbrio entre
pesquisador e pesquisado, proporcionando que ambas as vozes sejam ouvidas
e consideradas. O autor procura esclarecer o conceito no trecho a seguir:
A diferença volitivo-emocional e concreta e a posição ético-cognitiva da personagem no mundo têm tamanha autoridade para o autor que este não pode perceber o mundo concreto apenas pelos olhos da personagem nem deixar de vivenciar apenas de dentro os acontecimentos da vida dela; fora da personagem o autor não consegue encontrar um ponto de apoio axiológico convincente e sólido. Evidentemente, para que venha a realizar-se um todo artístico, ainda que inacabado, são necessários alguns elementos de acabamento; logo, urge colocar-se de algum modo fora da personagem [...], caso contrário teremos um tratado de filosofia ou uma confissão-relatório pessoal, ou, por último, dada tensão ético-cognitiva encontrará vazão em meros atos-ações éticos da vida. (BAKHTIN, 2010a, p. 15).
Quando consideramos as personagens como os produtores dos
enunciados e o autor como a pesquisadora, compreendemos que a autoridade
dos sujeitos envolvidos solicita ao pesquisador que vivencie o dizer desses
sujeitos, ou seja, adentre nos dizeres e caminhe lado a lado para compreender
os seus discursos. Porém, nesse movimento, é preciso também voltar para seu
lugar de pesquisador e obter uma visão distanciada do seu “todo artístico”.
Quando esse processo não ocorre, conforme a citação, a pesquisa perde sua
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essência a adquire características de tratado filosófico ou de “confissão-
relatório pessoal”.
Nesse contexto, a exotopia é um conceito/atitude coerente com a
proposta de pesquisa dialógica, apontada por Bakhtin, como também com a
proposta interacionista, que preconiza a interação entre os sujeitos.
Outro ponto que julgamos importante levantar é a proposta de
intervenção da pesquisa interacionista, apontada por Freitas (2010). Segundo a
autora, não há como não falar em intervenção, mesmo que esse termo seja
posto em discussão, tendo em vista que as alterações e transformações
provocadas pela interação entre os sujeitos trata-se de uma forma de intervir
um na vida do outro.
Diante do que foi discutido até então, a autora aponta algumas
expressões que definem a palavra “intervenção” nesta pesquisa: “mudança no
processo”, “transformação”, “re-significação dos pesquisados e pesquisador”,
“ação mediada”, “compreensão ativa” (FREITAS, 2010, p. 19). São palavras
que podem ser atribuídas ao próprio processo da pesquisa qualitativa
interpretativista, que não possui uma ideia de intervir de forma monologizada e
autoritária, mas compreende que todos os que estão nela envolvidos aprendem
uns com os outros e dela saem transformados. Outro aspecto importante
apontado pela autora é a questão da relevância maior conferida ao processo
de transformação desses sujeitos, ou seja, às mudanças que ocorrem caminho
da pesquisa; enquanto que o resultado seria apenas uma consequência desse
processo de intervenção. Nas palavras da autora,
Em nossas pesquisas está sempre implícita essa compreensão ativa, mas não há explicitamente uma intervenção planejada. Ao procurarmos atingir os objetivos propostos, responder as questões formuladas, estamos conscientes do processo dialógico entre sujeitos que irá acontecer. Processo esse que afetará de alguma forma seus participantes, que provocará mudanças, transformações nas pessoas podendo também interferir de alguma forma no contexto pesquisado. Estamos em nossas pesquisas muito mais interessados nesse processo e no que ele desencadeia do que em buscar resultados mensuráveis. (FREITAS, 2010, p. 20).
A procura por resultados imediatos pode fazer-nos trilhar um caminho
oposto ao apresentado na citação, gerando uma priorização por resultados que
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respondam a um certo tipo de expectativa e o esquecimento da importância
maior do processo que desencadeia nesse resultado.
Sobre essa atitude intervencionista, Souza (2011) conclui que estar
diante de uma pesquisa significa assumir a responsabilidade e unicidade diante
dela, não atendendo, portanto, somente a interesses pessoais do pesquisador.
A partir do conceito de ética bakhtiniano, a autora engloba na pesquisa
intervencionista atitudes como a não universalidade dos sujeitos, relativização
de verdades, responsabilidade e escuta do outro. Nas palavras da autora, “há
no encontro do pesquisador e seu outro um compromisso ético com a produção
de um conhecimento desinteressado” (SOUZA, 2011, p. 37), no qual esse
“conhecimento desinteressado” implica fazer pesquisa sem focalizar em
interesses privados. O conhecimento deve priorizar, antes de tudo, o homem
em sua singularidade.
Como vemos, as teorias que direcionam o nosso percurso metodológico,
em suma, estão coerentes com a união que o Círculo bakhtiniano sugere entre
arte, vida e cultura, além das propostas de dialogismo, responsividade e
alteridade. Esses conceitos são abordados com maior profundidade na seção
2.5.
Finalizamos esta seção ressaltando a importância da questão ética
dentro da pesquisa. Moita Lopes (2009) deixa claro que uma pesquisa pode ser
considerada como ética quando opta por não causar “sofrimento humano” a
nenhuma das partes envolvidas. Esperamos que o trabalho ora desenvolvido
represente um exemplar dessa postura, ao conferir voz aos participantes,
contribuindo para essas vozes com uma reflexão singular acerca dos
enunciados analisados.
2.3 PERCURSO METODOLÓGICO
Ao constatar a presença dos posicionamentos