Post on 24-Jan-2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES
CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS
RENAN CARLOS MEDEIROS DA SILVA
O DENTRO É O FORA: Lygia Clark e a rematerialização do ato criador em poder do outro
NATAL/RN
2016
RENAN CARLOS MEDEIROS DA SILVA
O DENTRO É O FORA: Lygia Clark e a rematerialização do ato criador em poder do outro
Trabalho de Conclusão de Curso II apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Regina Helena Pereira Johas, como requisito para obtenção do Título de Licenciatura em Artes Visuais.
NATAL/RN
2016
RENAN CARLOS MEDEIROS DA SILVA
O DENTRO É O FORA: Lygia Clark e a rematerialização do ato criador em poder do outro
Trabalho de Conclusão de Curso II apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Regina Helena Pereira Johas, como requisito para obtenção do Título de Licenciatura em Artes Visuais.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Regina Helena Pereira Johas
Orientadora
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
___________________________________________________________________
Prof.ª Dr.a Laurita Ricardo de Salles
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
___________________________________________________________________
Prof.ª Dr.a Arlete dos Santos Petry
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Natal, ______ de _______________________ 2016.
Dedico este trabalho a minha mãe Ana,
família e amigos, pela dedicação, apoio e
carinho dados na minha trajetória. Aos
docentes que me ofereceram a
oportunidade de conhecer e formar
saberes.
“É preciso conhecer a natureza selvagem,
não elaborada, para tirar dela a grande lição.”
Roberto Burle Marx
RESUMO
Esta pesquisa investiga um recorte da trajetória da artista brasileira Lygia Clark (1920-1988) intitulado de fase sensorial (1964-1988) sob a ótica da teoria arquetípica do psiquiatra suíço Carl Jung. Em sua fase sensorial, a relação da artista com o seu trabalho se dá por meio dos objetos e proposições que cria para serem experimentados pelos participadores. O objeto sensorial media a transferência do ato criativo da artista para o participador. Neste caso, Lygia propõe que seu trabalho só se realiza no gesto criativo do participador, este detém a expressão final do objeto sensorial. Os diálogos abertos pela artista mostram uma postura artística que vincula arte e vida: a transferência do poder de criação e sua rematerialização criativa na experiência do outro. Jung estruturou sua teoria com uma crítica à criação artística e propôs uma estreita conexão entre a sua psicologia e a obra de arte poética, por considerá-la uma atividade psicológica e de criação simbólica. Sua teoria propõe o símbolo como uma expressão de aspectos de imagens universais: os arquétipos. O significado do símbolo, onde quer que este apareça, pode ser interpretado dentro de um contexto psicológico individual e coletivo. A análise das experiências clarkianas que religaram arte e vida, sujeito e ato criativo revelam, sob a abordagem arquetípica usada nesta pesquisa, uma vivência psíquica com o objeto sensorial que propicia a transição de conteúdos simbólicos entre o consciente e o inconsciente de quem cria por meio da imagem, forma ou processo do objeto sensorial.
Palavras chave: Lygia Clark; Carl Jung; arquétipo; psicologia analítica; arte sensorial.
ABSTRACT
This research investigates a clipping of the trajectory of the Brazilian artist Lygia Clark (1920-1988) entitled sensorial phase (1964-1988) from the archetypal theory of the swiss psychiatrist Carl Jung. In its sensorial phase, the relation of the artist to her work is through the objects and propositions she creates to be experienced by the participants. The sensory object mediated the transference of the creative act from the artist to the participant. In this case, Lygia proposes that his work is only realized in the creative gesture of the participant, this one holds the final expression of the sensorial object. The dialogues opened by the artist show an artistic stance that links art and life: the transference of the power of creation and its creative rematerialization in the experience of the other. Jung structured his theory with a critique of artistic creation and proposed a close connection between his psychology and the work of poetic art, considering it a psychological activity and symbolic creation. His theory proposes the symbol as an expression of aspects of universal images: the archetypes. The meaning of the symbol, wherever it appears, can be interpreted within an individual and collective psychological context. The analysis of the clarkians experiences that reconnected art and life, subject and creative act reveal, under the archetypal approach used in this research, a psychic experience with the sensorial object that propitiates the transition of symbolic contents between the conscious and the unconscious of those who create through the image, form or process of the sensorial object.
Keywords: Lygia Clark; Carl Jung; archetype; analytical psychology; sensory art.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Lygia Clark em 1968, época em que trabalhava na série Nostalgia do Corpo......................................................................................................................... 06
Figura 2 - Lygia Clark em 1964, realizando o Caminhando........................................ 09
Figura 3 - Lygia Clark em 1968, usando a máscara sensorial Abismo....................... 10
Figura 4 - Água e Conchas, 1966.............................................................................. 11
Figura 5 - Pedra e Ar (1966): objeto sensorial de Lygia Clark da fase Nostalgia do Corpo......................................................................................................................... 12
Figura 6 - Objetos Relacionais e Máscara Abismo inseridos no contexto terapêutico da Estruturação do Self. Na fotografia, Lygia Clark e cliente durante uma sessão clínica......................................................................................................................... 13
Figura 7 - Arquiteturas Biológicas, 1969, época em que a artista ministrava um curso de arte gestual na Sorbonne, Universidade de Paris.................................................. 14
Figura 8 - Diálogo de Mãos, 1968............................................................................... 15
Figura 9 - Diálogo (Óculos), 1966............................................................................... 16
Figura 10 - Pensamento Mudo, sem data................................................................... 17
Figura 11 - Estruturas Vivas, 1969............................................................................ 19
Figura 12 - A Casa é o Corpo: Labirinto, 1968........................................................... 20
Figura 13 - Saco Plástico, 1976-1988......................................................................... 21
Figura 14 - Corpo Coletivo ou Fantasmática do Corpo, 1972-1975........................... 22
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 04
2 OBJETO-ARTE E FRONTEIRAS SENSORIAIS: DIÁLOGOS............................. 06
3 TRÂNSITO DA IMAGEM SIMBÓLICA NA FASE SENSORIAL........................... 17
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 21
REFERÊNCIAS......................................................................................................... 23
ANEXO A - O MUNDO DE LYGIA CLARK. Direção: Eduardo Clark. Brasil: Plug Produções, 1973. 24 minutos................................................................................. 24
4
1 INTRODUÇÃO
A arte brasileira tem no Neoconcretismo um dos seus expoentes, movimento
este surgido no Rio de Janeiro em meados de 1950 que propôs rupturas de vanguarda
na relação entre o artista, o objeto de arte e o espectador. A artista brasileira Lygia
Clark (1920-1988), integrante deste movimento artístico, encaminhava seu trabalho
para um novo rumo: abandonou a obra dada pronta ao espectador dando primazia ao
ato propositivo. Esta ruptura das abordagens tradicionais da obra de arte, por parte
da artista, lançou-a na busca por novas questões que propiciassem uma nova relação
do espectador com a arte. É o início da fase sensorial (1964-1988) de Lygia Clark, que
o presente trabalho aborda. Na vanguarda, Lygia Clark figura como iniciadora no
Brasil dessas novas relações com o objeto de arte.
As proposições realizadas pela artista neste recorte da sua trajetória
provocaram uma aproximação radical das fronteiras de campos diversos. Intitulado O
Dentro é o Fora, este estudo faz referência a um objeto de Lygia Clark de 1963 de
mesmo nome. Aqui, ele é usado como o transporte da sua metáfora: o fluxo
circulatório contínuo entre os espaços interior do homem e exterior a este, a realidade
psíquica pessoal e o mundo afora, a artista propositora e o espectador participador, o
objeto de arte e o corpo sensorial como lugar do acontecimento.
A escolha deste tema de pesquisa se deu em 2013, durante uma temporada
em que eu realizava leituras de férias sobre os movimentos artísticos das décadas de
1960 e 1970 no Brasil. O estudo do impacto das motivações estéticas deste período
na arte me revelou a existência de um outro caminho aberto nas vias do mundo
plástico: a assimilação do outro no contexto criativo. A descoberta do conjunto das
criações de Lygia Clark me levou a dirigir uma pesquisa própria sobre sua trajetória,
analisada e revista com as leituras que então eu fazia do psiquiatra suíço Carl Jung e
do crítico de arte Mário Pedrosa.
Nesta pesquisa, busco investigar as aproximações realizadas pela artista no
tratamento que deu a seus objetos sensoriais e aos participadores deles sob a ótica
da teoria arquetípica do psiquiatra suíço Carl Jung. Na análise do trabalho da artista
sob o viés da abordagem junguiana, a pergunta que levanta o problema desta
pesquisa é: qual a relação entre a experiência não codificável, sensorial e a imagem
5
na fase sensorial de Lygia Clark? Desta pergunta nasce a proposta teórica desta
pesquisa investigadora dos papéis exercidos por essas relações.
Na estruturação da sua teoria, Jung elaborou uma crítica à criação artística e
propôs uma estreita conexão entre a sua psicologia e a obra de arte poética, por
considerá-la uma atividade psicológica e de criação simbólica. O médico propõe o
símbolo como uma expressão de aspectos de imagens universais: os arquétipos. O
significado do símbolo, onde quer que este apareça, pode ser interpretado dentro de
um contexto psicológico individual e coletivo. A análise de um processo simbólico que
emerge no ato criador artístico, em um sonho ou em um objeto de arte, se dá pelo
trânsito de imagens geradas.
O uso da abordagem da psicologia analítica de Carl Jung faz desta pesquisa
uma contribuição inédita no campo de estudos que cerca a fase sensorial da artista
Lygia Clark. Psiquiatra e artista estão reunidos nesta pesquisa por tratarem em seus
trabalhos a arte como uma postura estética e transformadora ante a vida, uma
experiência individual, psicológica e que se processa em conteúdos simbólicos.
6
2 OBJETO-ARTE E FRONTEIRAS SENSORIAIS: DIÁLOGOS
As vanguardas da segunda metade do século XX promoveram no mundo o
encontro de artistas de diferentes vertentes da arte que uniram áreas de atuação,
espaços artísticos e público em novas conjunturas estéticas. Dos palcos às galerias,
da obra ao corpo, linguagens se diversificaram e novos campos de criação surgiram
para exploração. No Brasil, uma geração de artistas procurava imprimir nas suas
criações uma nova postura ante à arte: eram os neoconcretos, movimento artístico de
berço carioca. A afinidade das pesquisas de seus participantes os reuniu. Dele saíram
Hélio Oiticica, Lygia Pape e Lygia Clark, artistas visuais que envolveram as suas
proposições de uma nova sensibilidade ao armar o ato criativo.
Figura 1 - Lygia Clark em 1968, época em que trabalhava na série Nostalgia do Corpo.
Fonte: CLARK, 1980.
7
O núcleo central das preocupações estéticas e artísticas do grupo estava na
necessidade de reestabelecer uma conexão perdida entre o homem e o objeto de arte.
A nova expressão artística dada ao objeto pelos neoconcretos abrange a
“espacialização da obra”, como escrito no Manifesto Neoconcreto (CASTRO, A. et
al.,1959, grifo nosso):
Entenda-se por espacialização da obra o fato de que ela está sempre se fazendo presente, está sempre recomeçando o impulso que a gerou e de que ela era já a origem. E se essa descrição nos remete igualmente à experiência primeira - plena - do real, é que a arte neoconcreta não pretende nada menos que reacender essa experiência.
Nesse contexto, Ferreira Gullar, integrante do movimento neoconcreto, criou a
Teoria do Não-Objeto (GULLAR, 1977) em face das criações artísticas dos
participantes do grupo. Nas palavras do autor: “O não-objeto nasce, portanto, do
abandono do espaço virtual (ou fictício) e da ação pictórica (metafórica) para o artista
agir diretamente sobre a tela (quadro) como objeto material, como coisa”. (GULLAR,
2007, p. 46). A artista Lygia Clark, na época, desmembrou a superfície de seus
quadros do espaço pictórico para integrá-los ao espaço do mundo, ao espaço real em
que transitamos. Sua pesquisa com a superfície como suporte para a ação real do
artista originou a série Casulos (1959): planos cortados e dobrados que modificam a
tela bidimensional do pintor em tridimensional, com o fim, como citou PEDROSA
(1986, p.165), de “integrar o espaço ilusório contido no quadro com o espaço real que
o rodeia e atravessa”. Esta ruptura com o espaço pictórico e a transformação do plano
pictórico em superfície de ação a levou a criar a série Bichos (1960), vista por muitos
autores, entre GULLAR (2007), PEDROSA (1986) e MILLET (1992), como uma
descida do Casulo ao chão.
Os Bichos clarkianos são esculturas compostas de placas de metal
manipuláveis pelo espectador. Seguindo as leis dadas pela artista à estrutura, imóvel,
o Bicho é uma possibilidade aberta ao gesto do espectador, e é neste ato que reside
o impulso criativo contínuo da recriação da obra. A procura do espectador pela
espinha dorsal do Bicho, ao rearticular os planos do metal, origina várias espécies de
formas e figuras de acordo com a atitude de quem maneja suas estruturas
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descontínuas. Esta série marca o contato efetivo do espectador junto ao objeto na
trajetória da artista, como citou Mário Pedrosa no texto “Significação de Lygia Clark”
(CLARK, 1980, p 24):
“Agora, Lygia chama o espectador à participação senão na criação, no desabrochar e no viver da obra de arte. O espectador não é mais um sujeito passivo e puramente contemplativo em face do objeto [...] Clark convida o sujeito-espectador a encontrar numa relação nova com a obra, quer dizer, com o objeto, de modo a que o sujeito participe da criação do objeto e este, transcendendo-se, o reporte à plenitude do ser”.
O crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981) foi um dos personagens que
circulou e integrou o ambiente artístico brasileiro da época. Às criações neoconcretas,
PEDROSA (1986, p.164) deu o nome de objeto-arte: “A construção do objeto-arte é a
expressão de uma necessidade intuitiva ou inconsciente do artista de completar ou
fechar o ciclo finalista em que se move sua criatividade”. Para o autor, a participação
do espectador na obra de arte é vista como uma nova relação entre o artista e o
sujeito, que agora também é o participador no ato de fazer a obra. Por ver como mais
adequado à proposta deste estudo, usarei o termo objeto-arte para caracterizar os
objetos da fase sensorial de Lygia Clark no decorrer desta pesquisa.
A fase sensorial (1964-1988), objeto de estudo deste trabalho, é composta
pelos objetos sensoriais (1966-1968), são eles: Caminhando (1964); Desenhe com o
dedo (1966); Água e Conchas (1966); Diálogo (Óculos) (1966); Pedra e Ar (1966) (Fig.
2); Máscaras Sensoriais (1967); O Eu e o Tu (1967); Cesariana (1967); Luvas
Sensoriais (1968); Nostalgia do Corpo (1968); Diálogo (1968); Diálogo de Mãos(1968);
Máscara-Abismo (1968); A Casa é o Corpo: Labirinto (1968); Óculos (1968); Camisa
de Força (1968); Ovo-Mortalha (1968); O Corpo é a Casa (1969). Na Sorbonne, em
Paris, realizou as proposições: Arquiteturas Biológicas (1969); Estruturas Vivas,
(1969); Corpo Coletivo (1970); Baba Antropofágica (1973); Túnel (1973); Canibalismo
(1973); Flor: Relaxação (1974); Rede de Elásticos (1974); Teia Coletiva (1974);
Cabeça (1975); Corpo Coletivo ou Fantasmática do Corpo (1972-75). Os objetos
relacionais (Fig. 3) integrados a proposta Estruturação do Self (1976-1988), são:
Conchas; Grande Colchão; Saquinho da Realidade; Saco Plástico; Almofadas.
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Figura 2 - Lygia Clark em 1964, realizando o Caminhando.
Fonte: CLARK, 1980.
10
No domínio do mundo plástico, PEDROSA (1986, p. 165) criticou as antigas
formas representativas da arte em detrimento de “criar em lugar deles uma nova
relação espacial que se define pela relação primordial do interior-exterior”. O contexto
histórico em que a artista Lygia Clark e suas proposições estão inseridos na história
da arte dialoga com seus devidos campos estéticos, motivação temática para que a
presente pesquisa se torne corrente no objeto de estudo que expõe a obra de arte que
se apresenta em si mesma. A relação subjetiva estabelecida entre a criação da artista
e a criatividade do participador do objeto é a via de trânsito entre a imagem gerada no
objeto-arte e a sensação, o viver do corpo que participa.
Figura 3 - Lygia Clark em 1968, usando a máscara sensorial Abismo.
Fonte: CLARK, 1980.
11
Figura 4 – Água e Conchas, 1966.
Fonte: CLARK, 1980.
Lygia acende a “realidade imediatamente percebida” (GULLAR, 2007, p. 81)
em sua obra como uma nova forma de inserir a expressão plástica. Por meio do ato
imanente do participador ela estabelece a relação entre sujeito, objeto-arte e artista
na realocação do real: “Agora o espaço pertence ao tempo continuamente
metamorfoseado pela ação. Sujeito-objeto se identificam essencialmente no ato. [...]
12
Ele se cola à ação.” (CLARK, 1980, p. 24) O sentido do objeto-arte reside na
experiência do ato de fazê-la, repeti-la é lhe dar outra significação, é outro instante:
“Você e ele formarão uma realidade única, total, existencial. Nenhuma separação
entre sujeito-objeto. É um corpo-a-corpo, uma fusão. As diversas respostas nascerão
das suas vozes.” (CLARK, 1980, p 26).
Figura 5 - Pedra e Ar (1966): objeto sensorial de Lygia Clark da fase Nostalgia do Corpo. Fonte: ARTNET. New This Month in U.S. Museums. Disponível em:
< http://www.artnet.com/Magazine/news/ntm3/ntm5-1-03.asp#18> Acesso em: 28 out. 2015.
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Figura 6 - Objetos Relacionais e Máscara Abismo inseridos no contexto terapêutico da Estruturação do Self. Na fotografia, Lygia Clark e cliente durante uma sessão clínica.
Fonte: EL PAÍS. Brasil: De las figuras antropofágicas al arte sensitivo. Disponível em: <http://goo.gl/AKVAun> Acesso em: 26 out 2015.
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O objeto-arte clarkiano se despiu de suas funções estéticas e a artista o inseriu
no domínio sensorial do sujeito-participante, que detém a criação da proposta do
objeto na sua realização e finalização. As sensações sensoriais do outro tomaram o
lugar do objeto, deslocando definitivamente Lygia Clark da obra auto expressiva. Esta
tomada de um novo rumo na sua trajetória gerou a sua fase sensorial. Como aponta
GULLAR (2007, p 69):
“A incapacidade de reconstruir a linguagem artística impôs a Lygia aventurar-se na dimensão obscura das sensações como um caminho para reencontrar a comunicação com o outro. Daí por que passou a atribuir a essas suas experiências função terapêutica e não estética. No fundo, acreditava que, através das sensações – fossem elas bucais, epidérmicas, motoras ou visuais –, poderia atingir mais profundamente o indivíduo oculto sob camadas e camadas de noções, conceitos e superstições que o impediriam de ser ele mesmo.”
A função do gesto expressivo no ato do participante é para os objetos da fase
sensorial de Lygia Clark o cerne da sua proposição. Por propor uma revitalização
sensorial do corpo por meio das sensações do sujeito-participante que os realiza, é
neste ponto que a estrutura do objeto-arte clarkiano encontra chaves na teoria
arquetípica da abordagem junguiana: “É o homem que assegura o seu próprio
erotismo. Ele torna-se o objeto de sua própria sensação.” (CLARK, 1980, p 35).
Figura 7 – Arquiteturas Biológicas, 1969, época em que a artista ministrava um curso de arte gestual na Sorbonne, Universidade de Paris.
Fonte: CLARK, 1980.
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Figura 8 – Diálogo de Mãos, 1968.
Fonte: CLARK, 1980.
16
Figura 9 – Diálogo (Óculos), 1966.
Fonte: CLARK, 1980.
Os diálogos abertos pela artista mostram uma postura artística que vincula arte
e vida: a transferência do poder de criação e sua rematerialização criativa na
experiência do outro, o outro como espaço criativo definitivo, uma nova relação
espacial entre interior-exterior que recupera a subjetividade do outro na exploração
das suas sensações. O objeto-arte clarkiano é pessoal e coletivo à medida que é
suporte para que o outro exprima sua criatividade no vivido.
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3 TRÂNSITO DA IMAGEM SIMBÓLICA NA FASE SENSORIAL
Em sua fase sensorial, a relação da artista Lygia Clark com o seu trabalho se
dá por meio dos objetos e proposições que cria para serem experimentados pelos
participadores. O objeto sensorial media a transferência do ato criativo. Neste caso, a
artista propõe que seu trabalho só se realiza no gesto criativo do participador. Este
detém a expressão final do objeto sensorial. Na estrutura da teoria arquetípica, o
psiquiatra Carl Jung define os estados psicológicos do homem criador que envolvem
a estrutura psicológica da obra de arte (JUNG, 1985, p 75). Para o médico, a criação
artística é um processo simbólico que se constitui em uma transição de conteúdos
conscientes e inconscientes formados por símbolos que são imagens do inconsciente
coletivo (JUNG, 1996), camada mais profunda da psique e repositório dos arquétipos
ou imagens universais.
Figura 10 – Pensamento Mudo, sem data.
Fonte: CLARK, 1980.
O ponto de contato entre a teoria de Jung e o trabalho de Lygia Clark se
estabelece na abordagem que eles dão à criação artística: uma vivência psíquica que
propicia a transição de conteúdos simbólicos entre o inconsciente e o consciente de
quem cria. A artista põe o caráter estético da arte de lado e a apreende como uma
experiência psicológica que se processa em âmbito coletivo, junto ao outro, ao passo
que o psiquiatra elabora em sua teoria da criação artística a figura do artista como
criador de um movimento psicológico inconsciente.
18
A psicologia arquetípica de Carl Jung usa o método de analogia de símbolos
para reunir as condições necessárias para a compreensão de uma imagem
arquetípica com significado simbólico. Um processo psíquico inconsciente pode usar
de imagens para se representar no consciente do indivíduo. Uma ideia ou imagem
quando se desloca do inconsciente para o consciente pode se manifestar por meio de
símbolos nos sonhos, ou na criação artística:
“Os símbolos apontam direções diferentes daquelas que percebemos com a nossa mente consciente; e portanto, relacionam-se com coisas inconscientes, ou apenas parcialmente conscientes.” (JUNG, 2008).
O aspecto inconsciente da imagem simbólica se manifesta em ocorrências
psíquicas conscientes. A criação artística pertence ao domínio dessas ocorrências.
Para Jung (2008), o inconsciente conserva uma profusão de pensamentos, imagens
e impressões provisoriamente ocultos que continuam a influenciar nossas mentes
conscientes. Através da percepção sensorial, experimentamos conscientemente
flutuações perceptivas no nosso corpo pelo toque, sabor, som, cheiro e imagem. Em
algumas ocasiões não chegamos a notá-las, mas o inconsciente, no entanto, conserva
e registra essas percepções sensoriais subliminares que despertam reações diversas
nas pessoas quando estimuladas. Qualquer coisa que experimentamos pelas vias
sensoriais pode tornar-se subliminar, ou seja, passar ao inconsciente.
Do mesmo modo que um conteúdo consciente pode ficar em estado subliminar
no inconsciente, novos conteúdos que nunca vieram ao consciente podem emergir.
Para Jung, “o inconsciente não é apenas um simples depósito do passado, mas está
também cheio de germes de ideias e de situações psíquicas futuras [...] pensamentos
inteiramente novos e ideias criadoras.” (2008, p 41). O homem tem a tendência de
construir símbolos e expressá-los por meio de associações e imagens como uma
maneira de tentar restabelecer o equilíbrio psicológico entre o consciente e o
inconsciente. Jung chamou esse processo psíquico de função compensatória (Jung,
2008, p 56). Para o autor, as partes conscientes e inconscientes do indivíduo devem
estar em comum acordo para uma saúde psicológica completa e consciência do
próprio corpo. Do mesmo modo que há símbolos individuais na psique humana,
existem os símbolos de caráter coletivo, os arquétipos.
19
A imagem primordial ou arquétipo é coletiva. De acordo com JUNG (1985, p
69), é formada pelos resíduos psíquicos de inúmeras vivências de experiências
individuais do mesmo tipo. O arquétipo é mutável e passa por atualização com a
repetição da experiência por toda a humanidade. O arquétipo que irrompe do
inconsciente coletivo no ser criador ou artista é um símbolo, figura, processo ou
imagem característicos da época em que ocorre e produz transformações com função
compensatória em âmbito coletivo.
Figura 11 – Estruturas Vivas, 1969.
Fonte: ALL DAY EVERY DAY. Brasil: Lygia Clark: The Abandonment of Art. Disponível em: < https://goo.gl/BNRfMu> Acesso em: 26 out 2015.
20
O psiquiatra Carl Jung descreve dois modos de distinguir a psicologia da obra
de arte: o modo psicológico e o modo visionário de criação poética. O primeiro modo
está atrelado as vivências de ordem pessoal, ao inconsciente pessoal do criador e a
uma personalidade humana. O segundo é o modo visionário, que acontece em uma
vivência originária: é um processo criador e impessoal, que de acordo com o autor, “é
um pressentimento poderoso que quer expressar-se [...] imprimindo-lhe uma forma
visível.” (JUNG, 1985, p 85, grifo nosso). A imagem primordial, ou arquétipo, da obra
poética visionária constitui uma realidade psíquica com sua estrutura psicológica
própria. Para o autor, “é uma imagem do inconsciente coletivo, a saber, da estrutura
inata e peculiar dessa psique que constitui a matriz e a condição prévia da
consciência.” (JUNG, 1985, p 85). A obra de arte simbólica pertencente ao modo
visionário não deve ser analisada pelo inconsciente pessoal do artista, e sim pela
teoria do inconsciente coletivo, repositório das imagens primordiais comuns a toda a
humanidade.
O homem para Jung é um “ser resultante da associação homem-símbolos”
(2008, p 121). Os símbolos variam seu significado de pessoa para pessoa, por isso é
importante estabelecer que significação o ligam ao indivíduo. O estudo do simbolismo
mostra que tudo pode assumir uma significação simbólica.
Figura 12 – A Casa é o Corpo: Labirinto, 1968.
Fonte: ALL DAY EVERY DAY. Brasil: Lygia Clark: The Abandonment of Art. Disponível em: < https://goo.gl/BNRfMu> Acesso em: 26 out 2015.
21
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A propensão de criar símbolos transforma inconscientemente objetos ou formas
em símbolos com enorme importância psicológica para o indivíduo: “As imagens são
a única realidade que apreendemos diretamente; são a expressão primária da mente
e sua energia, que não podemos conhecer senão através de imagens que apresenta.”
(HILLMAN, 1978, p 197). O corpo inteiro produz imagens, sejam visuais, táteis, ou
sonoras, qualquer das nossas impressões sensoriais podem se transformar em
símbolos com significados para a nossa psique.
Lygia Clark instituiu a abertura da sua fase sensorial (1964-1988) com a
proposição Caminhando (1964) (Fig. 2). Esta consiste de uma fita de Moebius na qual
o participador caminha com uma tesoura. A estrutura da fita contrasta com as noções
de orientação espacial comuns: direita/esquerda, avesso/direito, frente/verso,
cima/baixo etc. Lygia ressalta que “na obra sendo o ato de fazer a obra, você e ela
tornam-se totalmente indissociáveis. Há um só tipo de duração: o ato. O ato é que
produziu o ‘Caminhando’. Não há nada antes, nada depois.” (CLARK, 1980, p 26). Ao
oferecer a proposição ao participador e, esta só se realiza com o ato engendrado pelo
outro, a artista estabelece uma ligação com o outro, o mundo coletivo.
Figura 13 – Saco Plástico, 1976-1988.
Fonte: ALL DAY EVERY DAY. Brasil: Lygia Clark: The Abandonment of Art. Disponível em: < https://goo.gl/BNRfMu> Acesso em: 26 out 2015.
22
O participador, ao realizar o ato criativo que finaliza a proposta do objeto
clarkiano, vive na sua realidade psíquica o símbolo do qual o objeto ou a proposição
artística é formado. O símbolo é a expressão do arquétipo inconsciente que surgiu na
obra de arte visionária. Vivê-lo, na obra de Lygia Clark, é completar o processo
simbólico inconsciente iniciado pela artista: primeiro ele é tornado consciente, é
transferido ao participador pelo objeto-arte e finalizado pelo seu ato criativo. O
participador detém o poder sobre a maneira como sua realidade psíquica viverá o
arquétipo coletivo presente no objeto-arte.
Figura 14 – Corpo Coletivo ou Fantasmática do Corpo, 1972-1975.
Fonte: CLARK, 1980.
Ao atender a chave da estrutura psicológica da obra de arte visionária, o objeto-
arte clarkiano é considerado nesta pesquisa uma forma visível (JUNG, 1985, p 85),
de conteúdo simbólico psicológico e sintetizado no ato criativo proposto pela artista
na sua realização pelo outro: “O processo criativo consiste [...] numa ativação
inconsciente do arquétipo e numa elaboração e formalização na obra acabada.”
(JUNG, 1985, p 71). Como o cerne das proposições sensoriais de Lygia Clark, a obra
só se realiza quando a mesma acaba pelo ato criativo do outro.
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REFERÊNCIAS CASTRO, Almícar de; GULLAR, Ferreira; WEISSMANN, Franz; CLARK, Lygia; PAPE, Lygia; JARDIM, Reynaldo; SPANÚDIS, Theon. Manifesto Neoconcreto. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 mar. 1959. Disponível em: <http://www.mariosantiago.net/Textos%20em%20PDF/Manifesto%20neoconcreto.pdf> Acesso em: 16 ago. 2014. CLARK, Lygia. Arte Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980. CLARK, L.; SCOVINO, F. Breviário sobre o Corpo. Disponível em: <http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wp-content/uploads/2012/01/ae16_Lygia_Clark-.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2014. Cronologia de Obras: Associação Cultural ‘O Mundo de Lygia Clark’. Disponível em: <http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=4>. Acesso em 28 out. 2014. ITAÚ CULTURAL. Lygia Clark. Disponível em: <http://www.escritoriodearte.com/artista/lygia-clark/>. Acesso em: 16 ago. 2014. GULLAR, Ferreira. Teoria do não-objeto. In: AMARAL, Aracy A. (coord.). Projeto Construtivo Brasileiro na Arte: 1950 - 1962. São Paulo; Rio de Janeiro: Pinacoteca do Estado de São Paulo; MAM-RJ, 1977. p.85-94. GULLAR, F. Etapas da arte contemporânea: do cubismo ao neoconcretismo. São Paulo: Nobel, 1985. GULLAR, F. Experiência Neo-concreta: Momento-Limite da Arte. São Paulo: Cosac & Naif, 2007. HILLMAN, James. Estudos de Psicologia Arquetípica. Rio de Janeiro: Achiamé, 1978. JUNG, C. G. O Espírito na Arte e na Ciência. Petrópolis: Vozes, 1985. JUNG, C. G. O Eu e o Inconsciente. Tradução de: Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha. 11 Ed. Petrópolis: Vozes, 1996. JUNG, C. G. O Homem e seus Símbolos. Tradução de: Maria Lúcia Pinho. 2 Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. MILLET, M. A. Lygia Clark: obra-trajeto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. PEDROSA, M. Mundo, homem, arte em crise. Aracy Amaral (Org.). 2 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1986.
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ANEXO A – O MUNDO DE LYGIA CLARK. Direção: Eduardo Clark. Brasil: Plug Produções, 1973. 24 minutos. Disponível em: < https://vimeo.com/133457919 > Acesso em: out. 2016.