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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
INSTITUTO DE ESTUDOS DE SAÚDE COLETIVA
LUIZ HENRIQUE DA SILVA LESSA
REFLEXÃO SOBRE O CONCEITO DE SAÚDE E SEUS INDICADORES A PARTIR DE CANGUILHEM E
WINNICOTT
Orientador
PROF. DR. ANDRÉ MARTINS
Rio de Janeiro 2008
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE INSTITUTO DE ESTUDOS DE SAÚDE COLETIVA
REFLEXÃO SOBRE O CONCEITO DE SAÚDE E SEUS INDICADORES A PARTIR DE CANGUILHEM E
WINNICOTT
LUIZ HENRIQUE DA SILVA LESSA
Dissertação de mestrado em Saúde Coletiva apresentada como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Saúde Coletiva.
Orientador
PROF. DR. ANDRÉ MARTINS
Rio de Janeiro 2008
Lessa, Luiz Henrique da Silva
Reflexão sobre o conceito de saúde e seus indicadores a partir de Canguilhem e Winnicott / Luiz Henrique da Silva Lessa – Rio de Janeiro: UFRJ / Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2008.
155 f. : il. ; 31 cm
Orientador: André Martins
Dissertação (mestrado) -- UFRJ, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, 2008.
Referências bibliográficas: f. 131-135
1. Saúde. 2. Processo saúde-doença. 3. Indicadores básicos de saúde. 4. Indicadores de morbi-mortalidade. 5. Promoção da saúde. 6. Conhecimento. 7. Vida. 8. Qualidade de vida. 9. Epidemiologia. 10. Psicanálise. 11. Saúde coletiva - Tese. I. Martins, André. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva. III. Título.
LUIZ HENRIQUE DA SILVA LESSA
REFLEXÃO SOBRE O CONCEITO DE SAÚDE E SEUS INDICADORES A PARTIR DE CANGUILHEM E WINNICOTT
Dissertação de mestrado em Saúde Coletiva desenvolvida no Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Aprovado em: Rio de Janeiro, 10 de março de 2008
Banca examinadora
_________________________________________________________ Prof. Dr. André Martins Vilar de Carvalho (IESC/UFRJ)
________________________________________________________ Prof. Dr. Guilherme Loureiro Werneck (ENSP/ FIOCRUZ)
________________________________________________________ Prof. Dr. Kenneth Rochel de Camargo Jr. (IMS/UERJ)
AGRADECIMENTOS Agradeço a Danae pelo amor, apoio, compreensão e entusiasmo em nossa caminhada juntos. À minha mãe pelo apoio, carinho e incentivo de sempre e por me ensinar a gostar de aprender. À minha avó, agradeço o tempero que deixa minha vida mais saborosa. A meu irmão pela paciência, companheirismo e entusiasmo. Vocês quatro aumentam muito a minha saúde. Ao Prof. André Martins minha gratidão pelos ensinamentos, pela paciência, pela orientação cuidadosa e pela alegria de ensinar. Aos professores Kenneth de Camargo Jr. e Guilherme Werneck pelas contribuições à época da qualificação e por me darem a honra de tê-los em minha banca de defesa. Agradeço a meus amigos, Denise, Eduardo e Raphael pelo incentivo, apoio e discussão crítica do projeto de pesquisa. A Catarina e Thaaty, amigas e colegas de orientação, agradeço por partilharem comigo seus saberes e experiências. A meus amigos George, Alessandro, Klaus, Brunos, Renata e Tamara, agradeço a amizade expressa na alegria dos nossos encontros e pelo apoio de sempre. Agradeço a Walter pela revisão do abstract. Aos professores do IESC e IMS/UERJ pelas aulas estimulantes e pelo incentivo de sempre. Aos funcionários do IESC pela atenção e presteza com que sempre me atenderam. E a CAPES pelo apoio financeiro em forma de bolsa
Agradeço ainda a todos aqueles que não foram citados diretamente, mas que contribuíram para a realização desta pesquisa e, sobretudo, para minha caminhada até aqui.
RESUMO
A definição de saúde como ausência de doença – definição negativa – reduz o processo saúde-doença a seus aspectos biológicos, subestimando a importância dos aspectos psíquicos e sociais. Têm-se como conseqüências a supervalorização de ações biomédicas, a hierarquização das profissões em saúde e a adoção de indicadores de saúde baseados em morbidade e mortalidade. Partindo do pressuposto de que a doença não é o pólo oposto da saúde, este trabalho teve como objetivo redefinir saúde positivamente, de forma a valorizar os aspectos psíquicos e sociais desta e relativizar o papel da doença na definição da saúde individual e coletiva. Para tanto, utilizou-se o conceito de normatividade de Canguilhem e criatividade de Winnicott como pontos de referência para a redefinição aqui proposta. Utilizando-se o método filosófico-conceitual de construção e atualização de conceitos de Martins, saúde foi redefinida como a capacidade que um indivíduo, entendido como unidade somatopsíquica, conquistou ao longo do seu desenvolvimento de ser criativo e normativo, de sentir-se e mostrar-se autêntico e potente frente à vida, apesar dos constrangimentos inerentes ao viver, inclusive o adoecimento. Sugere-se, inicialmente, cinco elementos facilitadores da saúde redefinida que poderão no futuro servir de base para a criação de indicadores positivos de saúde, quais sejam: capacidade de ser espontâneo, capacidade de ser inventivo ou de ação e transformação da realidade compartilhada, expectativas em relação ao futuro, sentimentos positivos em relação a si e apoio social. Por fim, conclui-se que definições positivas de saúde podem trazer novo sentido para as políticas e ações de promoção de saúde, fazendo com que estas sejam, por exemplo, baseadas nos elementos facilitadores de saúde aqui apresentados, diferenciando-se assim claramente as ações de promoção de saúde das ações de combate às doenças. Conclui-se ainda que a potencialização do trabalho de clínicos e gestores depende não apenas do desenvolvimento de ferramentas metodológicas, mas, fundamentalmente, do constante debate epistemológico em saúde. Palavras-chave: Conceito de saúde; Indicadores de saúde; Canguilhem; Winnicott
ABSTRACT The definition of health as absence of illness – a negative definition – brings the
health illness process to it’s biological aspect underestimating the importance of social and psychological aspects. As a consequence, we have the over improvement of biomedical actions, the hierarchical aspect related to health professions and health indicators based in health problems, particularly morbidity and mortality. Based on the assumption, that illness in not the opposite of health, this text’s objective is to find a new positive definition, to improve psychical and social aspects of health and to play down the role of illness in the definition of individual and group health. We have then used the concepts of normativity
from Canguilhen and creativity from Winnicott as references points for the new definition proposed in this text. Using the philosophical-conceptual method of construction and updating the concepts of Martins, health has been redefined as the capacity that an individual as somatopsychic unit, has achieved his development as a creative and normative human being, to feel and show it-self as authentic and powerful in the face of life despite all constraints that are inherent in human life, including illness. We propose five elements to redefine health that in the future could be used to create positive health indicators. They are: the capacity to be spontaneous, capacity to be inventive or to act and change their shared reality, expectations for the future, positive feelings toward the self and social support. We then concluded that positive definitions of health could bring new light into political actions and health promotion, based on the concepts presented above. We can then clearly make the difference between those actions that promote health from the ones that prevent and fight illness. We concluded that to turn clinical work and managers more efficient we don not depend only on methodological tools but fundamentally in a continuous epistemological discussion on health. Key words: health concept; health indicators; Canguilhem; Winnicott
SUMÁRIO
Apresentação.......................................................................................................................11 Capítulo 1 – Indicadores de saúde: os desafios de medir a saúde..................................22
1.1 – Definindo indicadores de saúde.......................................................................22 1.2 – Quem indica os indicadores: os critérios para a construção de instrumentos de
mensuração da vida.............................................................................................35 1.3 – O que indicam os indicadores de saúde?.........................................................39 1.4 – O conceito negativo de saúde..........................................................................44 Capítulo 2 – Redefinindo saúde a partir de Canguilhem e Winnicott...........................56 2.1 – A normatividade como modelo de saúde para Canguilhem.............................56 2.1.1 – O risco de uma compreensão solipsística da saúde...........................65
2.2 – Criatividade e espontaneidade: a concepção winnicottiana de saúde..............71 2.3 – A saúde como potência.....................................................................................84 2.4 – Elementos facilitadores da saúde redefinida....................................................90 2.4.1 – Capacidade de ser espontâneo...........................................................92
2.4.2 – Capacidade de ser inventivo ou de ação transformadora da realidade compartilhada.............................................................................................93
2.4.3 – Expectativas positivas em relação ao futuro......................................94 2.4.4 – Sentimentos positivos em relação a si próprio..................................95 2.4.5 – Apoio Social......................................................................................96 2.5 – Críticas à positivação da saúde.........................................................................99 Capítulo 3 – Qualidade de vida e resiliência: duas experiências de positivação do
conceito de saúde.......................................................................................110
3.1 – Qualidade de vida...........................................................................................110 3.2 – Resiliência......................................................................................................123
Conclusão...........................................................................................................................137 Referências.........................................................................................................................143 Anexos................................................................................................................................148 1 – WHOQOL-100………………………………………………………………..149 2 – The Resilience Scale.........................................................................................163 3 – Escala de Resiliência.........................................................................................165
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APRESENTAÇÃO
A tarefa de definir saúde, de transformar essa palavra em conceito, tem-se
mostrado um dos grandes desafios para o campo da saúde. Apesar da pluralidade de saberes
envolvidos na tarefa e da produção de algumas definições, há uma reconhecida dificuldade
em definir saúde como algo diferente de ‘ausência de doença’, o que chamamos de
definição negativa. O célebre livro O Normal e o Patológico, de Canguilhem, é um
exemplo de como a saúde pode ser definida de maneira positiva e conjugando diferentes
saberes. Entretanto, apesar de aclamada, a obra de Canguilhem se situa numa zona marginal
em relação à definição hegemônica e negativa de saúde. Os indicadores de saúde, por
exemplo, sofreram pouca ou nenhuma influência da definição de Canguilhem – que
concebe a saúde como a capacidade de ser normativo, flexível em relação às exigências do
meio – e mantêm o foco nas taxas de mortalidade e morbidade.
Tomar a saúde como ausência de doença é um problema que atinge o campo da
saúde como um todo e tem como conseqüência primeira a supervalorização dos aspectos
biológicos em detrimento dos aspectos psíquicos e sociais da vida, além da hierarquização
dos saberes e das profissões em saúde. A centralidade dos aspectos biológicos, sobretudo a
categoria doença, nos estudos e ações em saúde pode ser comprovada pelo grande número
de indicadores de saúde baseados em mortalidade e morbidade produzidos pela
Epidemiologia.
Almeida Filho (1990 e 2000a) e Barreto (1990) afirmam que a Epidemiologia, mas
não apenas ela, o campo da saúde como um todo, tem negligenciado a produção conceitual
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a respeito do objeto saúde e concentrado esforços na produção de métodos de mensuração
da saúde, definida negativamente, e modelos biomédicos de patologia.
Parece-nos que a falta de um referencial teórico que defina saúde de maneira
positiva tem levado o campo da saúde a produzir taxas específicas e chamá-las de
indicadores de saúde. Essa é uma confusão epistemológica que se traduz na figura de
linguagem chamada metonímia. Ou seja, ao medir um determinado atributo da vida
coletiva, toma-se esse atributo como a saúde inteira. Trata-se de tomar a parte pelo todo e
reduzir a saúde a um único atributo.
A partir da recomendação da Organização Mundial de Saúde – OMS – de que os
indicadores de saúde devem cobrir aspectos variados da vida como saneamento, lazer,
educação, liberdade, transporte, economia, habitação, etc, argumentamos que uma taxa
isoladamente não deveria ser considerada indicador de saúde, visto que para cumprir a
recomendação da OMS, um indicador de saúde deveria ser um instrumento complexo
composto por diferentes medidas1 e por métodos não-quantitativos de avaliação da saúde.
Dessa forma, entendemos que o que indica saúde não é a taxa em si, pois esta mede um
atributo muito específico, como mortalidade, por exemplo, mas o conjunto de ferramentas
selecionadas a partir de uma definição prévia de saúde e de critérios dessa saúde definida.
Neste trabalho procuraremos redefinir o conceito de saúde a partir de Canguilhem e
Winnicott e sugerir elementos facilitadores dessa saúde redefinida que possam servir no
futuro para a construção de novos indicadores de saúde.
1 Durante o texto optamos por usar as palavras “medida” e “índice” como sinônimos genéricos de taxas, razões e proporções. Ainda que isto represente uma imprecisão do ponto de vista conceitual-matemático, acreditamos que o texto ganhará em fluidez. Dessa forma, alertamos ao leitor para que entenda por medida e índice toda sorte de expressão matemática ou estatística que busca quantificar o estado de saúde de um indivíduo ou população.
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Para tanto, apresentamos no primeiro capítulo uma discussão acerca do que são
indicadores de saúde, para que servem e como são escolhidos. Nesse capítulo,
acompanhamos o pensamento de Vermelho, Costa e Kale (2004) na apresentação de uma
série de indicadores de saúde que têm por base índices de mortalidade e morbidade, e
chamamos a atenção para o seguinte comentário dos autores: “paradoxalmente, tais
indicadores expressam a falta, ou ausência de saúde, pois, em sua maioria, são medidas da
freqüência de óbitos em populações humanas”. (Vermelho, Costa & Kale, 2004:54)
Esse comentário nos levou a discutir a partir de Martins (1999), Almeida Filho
(1990, 2000a, 2000b), Almeida Filho & Jucá (2002), Segre & Ferraz (1997) e Barreto
(1990) o conceito de saúde que sustenta os indicadores baseados em morbidade e
mortalidade. Conceito esse que, como denuncia Almeida Filho (2000a), é normalmente
entendido como ausência de doença.
Ao final do capítulo um, argumentamos a favor da redefinição do conceito de saúde
e da construção de indicadores baseados não na doença ou na morte, mas na saúde
entendida como potência que um indivíduo tem de transformar sua própria vida, inclusive
apesar das doenças.
No segundo capítulo, apresentamos a concepção de saúde de Canguilhem (2002),
entendida como normatividade e a concepção de saúde do psicanalista e pediatra inglês
Donald Winnicott (1975, 1983, 1990, 1999, 2000, 2001) que define saúde como a
capacidade de ser criativo e espontâneo.
Canguilhem, em O Normal e o Patológico, sua tese de doutorado, debate com
teóricos da fisiologia e patologia dos séculos XVIII e XIX, principalmente o fisiologista
Claude Bernard (1813-1878), para demonstrar que não há continuidade entre os estados de
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saúde e doença. Diferentemente de Bernard que afirma a partir de Broussais (1772-1838)
que a diferença entre normal e patológico é de natureza quantitativa, Canguilhem propõe
que normal e patológico são qualitativamente diferentes. Para Canguilherm, os fenômenos
patológicos não são anormais, visto que eles também estabelecem uma norma, uma nova
norma. Entretanto, o que a faz patológica é o fato de ser uma norma inferior, menos flexível
do que a saúde. Nas palavras de Canguilhem (2002):
“Não há indiferença biológica. Pode-se, portanto, falar em normatividade biológica. Há normas biológicas sãs e normas patológicas, e as segundas não são da mesma natureza que as primeiras”. (Canguilhem, 2002:99)
O que o autor diz ao afirmar que não há indiferença biológica, é que a vida cria
modos de operar de acordo com as condições dadas pelo ambiente. Dessa forma, é próprio
da vida, e da saúde, a modificação, a criação de normas que melhor atendam às exigências
do meio. Portanto, não é o fato de modificar sua forma de operar no mundo que faz com
que o organismo seja patológico, mas as conseqüências qualitativas dessa modificação.
Uma das inovações do pensamento de Canguilhem está em valorar um organismo a
partir da relação deste com o mundo e não a partir de médias estatísticas. Para este autor,
saudável é o que mantém e potencializa a vida e patológico é o que suprime ou torna a vida
precária. Segundo Canguilhem (2002):
“Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação não são, em si mesmas, patológicas. Elas exprimem outras normas de vida possíveis. Se essas normas forem inferiores – quanto à estabilidade, à fecundidade e à variabilidade da vida – às normas específicas anteriores, serão chamadas patológicas. Se eventualmente, se revelarem equivalentes – no mesmo meio – ou superiores – em outro meio – serão chamadas normais. Sua normalidade advirá de sua normatividade. O patológico não é a ausência de norma biológica, é uma norma diferente, mas comparativamente repelida pela vida”. (Canguilhem, 2002:114)
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Como vemos, normal e patológico não se definem pelo fato de haver modificação
da vida, mas pela qualidade da modificação. A flexibilidade biológica é própria da saúde e
caracteriza-se pela capacidade de adaptar-se ativamente às variações do meio, de produzir
novas e melhores normas de vida. Isto é o que Canguilhem chama de normatividade.
Dessa forma, a saúde entendida como a capacidade de ser normativo nos remete à
complexidade da vida e não, como veremos, ao ideal de saúde da OMS ou, de tal modo, a
definições negativas. A concepção canguilhemiana de saúde inclui a doença, visto que
adoecer é próprio do viver. Nesse sentido, a doença pode ser um momento de reorganização
do organismo, um momento de crise em que se produz uma nova norma, que ao invés de
extinguir a vida, a torna possível por modificá-la. Nas palavras de Canguilhem (2002):
“Quando se diz que a saúde continuamente perfeita é anormal, expressa-se o fato da experiência do ser vivo incluir, de fato, a doença”. (Canguilhem, 2002: 107)
E ainda:
“A doença é ao mesmo tempo, privação e reformulação” (Canguilhem, 2002:149)
A partir da obra de Canguilhem, os conceitos de saúde e doença se redefinem. O
primeiro passa a ser entendido como a capacidade de ser normativo, denotando uma maior
plasticidade, enquanto o segundo é definido como a incapacidade de ser normativo,
portanto, denotando uma maior imutabilidade. Nas palavras do autor:
“O que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas”. (Canguilhem, 2002:158)
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Ou seja, ser saudável é poder viver a vida em sua complexidade, tolerar os
constrangimentos inerentes ao viver e, quando possível, modificar a maneira de viver para
que a vida seja melhor, mais potente e, por que não dizer, mais prazerosa. Nesse sentido, ter
saúde é poder lançar-se no mundo, arriscar e sobreviver aos percalços do viver espontâneo
e criativo. Para Canguilhem, “estar em boa saúde é poder cair doente e se recuperar; é um
luxo biológico”. (Canguilhem, 2002: 160)
Em Winnicott, por sua vez, a saúde é definida como a capacidade de ser criativo e
espontâneo. Capacidade conquistada pelo indivíduo durante seu desenvolvimento, a partir
do cuidado suficientemente bom promovido pela mãe, que o autor chama de mãe-ambiente.
E é esse cuidado, entendido como a adaptação ativa da mãe ao seu filho, que
possibilita o bebê ser espontâneo, vivenciar a experiência de onipotência que o faz sentir
criando o mundo e desenvolver-se satisfatoriamente. Nas palavras de Winnicott (1983)
“Podemos dizer que o ambiente torna possível o progresso continuado dos processos de maturação. Mas o ambiente não faz a criança. Na melhor das hipóteses possibilita à criança concretizar seu potencial”. (Winnicott, 1983: 81)
Ao longo do seu desenvolvimento, a criança vai se integrando, tornando-se um
indivíduo inteiro, em que corpo e mente são aspectos de uma unidade somatopsíquica
indivisível chamada pelo autor de psicossoma.
Esta unidade somatopsíquica é expressa pelo conceito de self. Um dos tradutores de
Winnicott para a língua portuguesa, Marcelo Brandão Cipolla, sintetiza o conceito de self
da seguinte maneira:
“O conceito psicanalítico que inclui o eu (ego) e o não-eu. É a totalidade da própria pessoa. Inclui também o corpo com todas as suas partes, a estrutura psíquica com todas as suas partes, o vínculo com os objetos internos e externos e o
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sujeito como oposto ao mundo dos objetos”. (Winnicott, 2001:7, nota do tradutor)
O self pode expressar-se de modo verdadeiro ou falso, dependendo sobretudo do
tipo de cuidado que o indivíduo recebeu quando bebê. O verdadeiro self é o resultado dos
cuidados promovidos por um ambiente suficientemente bom, que, ao não ser intrusivo,
possibilitou ao bebê viver a experiência de onipotência, experiência necessária para a sua
espontaneidade. Dessa forma, o verdadeiro self é espontâneo, não tem medo do ambiente e
é capaz de lidar com as frustrações inerentes ao viver.
O falso self é uma adaptação ao mundo para que o self verdadeiro não seja
aniquilado. Isso faz com que a divisão radical entre verdadeiro e falso self seja mais teórica
do que prática em relação à saúde. Um indivíduo saudável utiliza falso self nas relações
sociais, pois nem sempre é possível ser espontâneo. O protocolo social, a etiqueta e a
polidez podem ser considerados aspectos de um falso self saudável.
Entretanto, existe o falso self patológico, aquele que existe enquanto formação
reativa, que também protege o verdadeiro, mas este último encontra pouco ou nenhum
espaço para se manifestar. O falso self é submisso às exigências do mundo. O indivíduo
falso self não se sente autêntico, criativo e criador do mundo, mas manipulado por este. Nas
palavras de Winnicott (2000:312), “o falso-self, desenvolvido com base na submissão, não
pode candidatar-se à independência da maturidade, salvo, quem sabe, a uma
pseudomaturidade”.
Para ser um indivíduo inteiro e criativo, é necessário além da integração do ego,
integrar o mundo. Essa integração acontece no que Winnicott chama de posição depressiva.
Na posição depressiva, o bebê pode integrar na figura de uma única mãe, a mãe boa e a mãe
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má. A primeira é o aspecto da mãe que o bebê percebe como positivo, a “parte” da mãe
que não falha, e a segunda é o aspecto negativo, a mãe que demora em atender o bebê ou
que se antecipa a ele. Mãe boa e mãe má são aspectos de uma mesma e indivisível mãe,
mas que o bebê percebe como dissociados. Entretanto, ao passar pela posição depressiva, o
bebê integra esses aspectos e aceita a mãe como ela é, ou seja, humana, “boa” e “má” ao
mesmo tempo. Exatamente como o mundo que é bom e mau ao mesmo tempo, que tem
aspectos positivos e negativos, mas que é um único mundo, o mundo que há. Por ser um
autor não dicotômico, Winnicott entende que a saúde é fruto da integração de si e da
integração do mundo pelo bebê, da capacidade de ser criativo, inventivo e verdadeiro self.
A criatividade para o psicanalista inglês é definida como a capacidade de, ao
produzir pequenas soluções para a vida, obter alguma satisfação da experiência de estar
vivo. E isto não depende necessariamente do quadro clínico do indivíduo. Numa
perspectiva winnicottiana é possível ter diabetes, HIV, ser míope, cego ou paraplégico e
ainda assim extrair prazer da vida. Não um prazer idealizado, mas o prazer de estar vivo
apesar dos constrangimentos inerentes ao viver. Nas palavras de Winnicott (1975):
“Tenho a esperança de que o leitor aceite uma referência geral à criatividade [...], evitando que a palavra se perca ao referi-la apenas à criação bem sucedida ou aclamada, e significando-a como um colorido de toda ordem à atitude com relação à realidade externa”. (Winnicott, 1975: 95)
Nesse sentido, saúde é a capacidade de extrair algum prazer da vida, ainda que
acometido de alguma doença física ou psíquica. É sentir-se criador do mundo, potente
frente à vida e autêntico.
No final do capítulo, propomos, a partir de Canguilhem e Winnicott e apoiados no
método filosófico-conceitual de Martins (2004), uma nova definição de saúde. Saúde é a
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capacidade que um indivíduo, entendido como uma unidade somatopsíquica, conquistou ao
longo do seu desenvolvimento de ser criativo e normativo, sentir-se autêntico e potente
frente à vida, extraindo algum prazer desta, apesar dos constrangimentos inerentes ao viver,
inclusive o adoecimento, sendo o próprio indivíduo ponto de referência de sua saúde. O que
não exclui o combate às enfermidades, porém inserido em um outro âmbito.
Para redefinir saúde utilizamos o método filosófico-conceitual de construção e
atualização de conceitos. Sob a perspectiva do método proposto por Martins (2004), os
conceitos são entendidos como ferramentas para o trabalho teórico e/ou execução de uma
prática. Isso significa valorar os conceitos por sua utilidade e não pelo papel dogmático que
eles possam ter numa teoria. A pertinência de um conceito está em, de fato, vitalizar o
problema pesquisado e potencializar quem executa uma prática. Nas palavras de Martins
(2004):
“Uma metodologia, portanto, filosófico-conceitual, consiste na criação e/ou utilização de conceitos que nos permitam propor modos de ver o mundo, ou um problema específico, que o vitalize, de uma maneira outra que a habitual, por mais que esta um dia possa ter sido questionadora ou inovadora [...]”. (Martins, 2004: 956)
A partir do método filosófico-conceitual, procuramos definir saúde de maneira que
a nova definição sirva não apenas de referencial teórico para a pesquisa em saúde, mas
também de ferramenta para as diferentes práticas na atenção e cuidado em saúde. Para
tanto, propomos inicialmente cinco elementos facilitadores da saúde redefinida, são eles:
capacidade de ser espontâneo, capacidade de ser inventivo ou de ação e transformação da
realidade compartilhada, expectativas em relação ao futuro, sentimentos positivos em
relação a si e apoio social.
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No terceiro capítulo, apresentamos dois conceitos que buscam, ainda que de
maneira indireta, definir saúde positivamente, são eles: qualidade de vida e resiliência.
Ambos os conceitos se aproximam de nossa concepção de saúde ao tomarem o próprio
indivíduo como ponto de referência de sua saúde. Outro ponto de aproximação é a
definição de critérios da saúde redefinida como qualidade de vida e resiliência para a
construção de instrumentos de mensuração: o WHOQOL–100 para qualidade de vida e a
escala de resiliência para resiliência. Argumentamos que estas duas experiências são
importantes tentativas de criar alternativas ao conceito negativo de saúde. Entretanto,
nenhuma das duas se apresenta como definição de saúde, o que as faz perder força em
nosso entender.
Por fim, concluímos que as medidas utilizadas como indicadores de saúde,
sobretudo as de mortalidade e morbidade, não devem simplesmente ser substituídas ou
abandonadas. Elas são válidas para mapear as causas de morte e apresentar a distribuição
dessas causas por faixas etárias, regiões, etc, e o mesmo em relação às doenças. As
informações produzidas por essas medidas são necessárias para orientar ações e políticas
públicas não apenas no campo da saúde, mas também no da segurança pública, educação,
habitação, infra-estrutura, etc. Entretanto, elas não são capazes de indicar saúde no sentido
positivo que demos ao termo. Como elas operam apoiadas num conceito de saúde que se
define a partir da doença, o que fazem é indicar o nível de doença na população e não de
saúde exatamente. A partir de nosso trabalho, parece-nos equivocado afirmar que o pólo
oposto da saúde é a doença. Esse é um engano provocado pelo conceito negativo de saúde,
que define saúde como ausência de doença. E que peca ao fazer uma distinção radical entre
físico, psíquico e social.
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Concluímos, ainda, que novos indicadores de saúde devem ser produzidos tendo
como base definições positivas de saúde como a apresentada no capítulo dois desta
dissertação. Nesse contexto, a presente pesquisa pretende contribuir para um estudo futuro
que operacionalize os elementos facilitadores da saúde e os transformem em instrumentos
que comporão um novo indicador de saúde.
Ressaltamos que o estudo ora realizado não esgota o tema, tampouco constitui uma
verdade última. Nosso objetivo foi o de contribuir para que o campo da saúde coletiva
possa debater seus conceitos de saúde e seus indicadores a fim de produzir conceitos mais
operativos e remetidos à prática.
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CAPÍTULO I
INDICADORES DE SAÚDE: OS DESAFIOS DE MEDIR A SAÚDE
1.1. Definindo indicadores de saúde
A necessidade de coletar dados a respeito da situação de saúde das populações
humanas estimulou o desenvolvimento de instrumentos de mensuração que pudessem
informar aos governos e à sociedade o estado de saúde dessas populações. Esses
instrumentos são os chamados indicadores de saúde. Os primeiros estudos sobre situação de
saúde, próximos dos moldes em que são realizados contemporaneamente, datam do século
XIX e foram desenvolvidos por Willian Farr (OPAS, 2001), baseados em taxas de
mortalidade e expectativa de vida. Hoje, esses instrumentos são amplamente utilizados
como ferramentas na gestão e no planejamento dos sistemas de saúde e no apoio às ações
de prevenção e tratamento de doenças.
Como veremos a seguir, os indicadores de saúde são definidos como medidas que
resumem e expressam, em linguagem matemática, a situação de saúde de uma população. A
Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) define indicador de saúde como:
“uma noção da vigilância em saúde pública que define uma medida da saúde (ex. a ocorrência de uma enfermidade ou de outro evento relacionado com a saúde) ou de um fator associado com a saúde (ex. o estado de saúde ou outro fator de risco) em uma população específica” (OPAS, 2001: 1)
A definição acima, um tanto confusa, é desenvolvida em outro documento, intitulado
‘Indicadores Básicos de Saúde no Brasil: conceitos e aplicações’ da Rede Interagencial de
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Informações Para a Saúde, ligada à OPAS. Nesse documento, os indicadores são definidos
da seguinte maneira:
“Em termos gerais, os indicadores de saúde são medidas-síntese que contêm informação relevante sobre determinados atributos e dimensões do estado de saúde, bem como do desempenho do sistema de saúde. Vistos em conjunto, devem refletir a situação sanitária de uma população e servir para a vigilância das condições de saúde”. (REDE, 2002: 11)
Uma terceira definição nos é apresentada por Vermelho, Costa & Kale (2004). Para
os autores:
“os indicadores de saúde são, tradicionalmente, medidas (proporções, taxas, razões) que procuram sintetizar o efeito de determinantes de natureza variada (sociais, econômicos, ambientais, biológicos, etc) sobre o estado de saúde de uma determinada população”. (Vermelho, Costa & Cale, 2004: 34)
Apesar de próximas, as três definições apresentadas têm diferenças que devem ser
ressaltadas. A primeira definição, da OPAS, dá ênfase ao caráter de vigilância dos
indicadores, à capacidade desses instrumentos em apontar o número de casos de uma
doença (prevalência) e o número de novos casos (incidência), além de estimar o grau de
risco à saúde a que determinada população está submetida. A definição da REDE mantém o
aspecto de vigilância da saúde, atribuído aos indicadores de saúde pela definição anterior,
mas vai além ao incluir o desempenho do sistema de saúde. Outro aspecto relevante dessa
definição é a idéia de que os indicadores medem atributos do estado de saúde, não a saúde
como um todo, e, por isso, devem ser considerados em conjunto. A terceira definição é a
mais ampla das três, pois reconhece que a saúde é afetada por múltiplos aspectos. Dessa
forma, seus indicadores devem captar a influência desses diversos fatores, o que permitiria
uma abordagem complexa da saúde e de seus indicadores.
25
A definição de Vermelho, Costa & Kale está de acordo com a Organização Mundial
de Saúde (OMS), que recomenda que os indicadores de saúde observem não apenas o
número de doenças e mortes, mas também as condições demográficas, alimentação,
educação, trabalho, transporte, economia, habitação, saneamento básico, vestuário, lazer,
segurança social e liberdade humana a que as populações estudadas estão submetidas. Esta
recomendação da OMS, que está citada no texto de Vermelho, Costa e Kale (2004: 34), nos
induz a conceber os indicadores de saúde como instrumentos complexos, compostos por
diferentes medidas que em conjunto indicariam o estado de saúde de um determinado grupo
humano.
Entretanto, os autores citam uma série de índices de mortalidade como sendo os
principais indicadores de saúde, são eles: Coeficiente de Mortalidade Geral (CMG),
Mortalidade Segundo Sexo, Mortalidade Segundo Idade, Coeficiente de Mortalidade
Infantil. Em relação à mortalidade infantil, destaca-se o TTM5 (Taxa de Mortalidade em
Menores de Cinco Anos) recomendado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF), que mede as alterações relacionadas ao bem-estar da criança. Perguntamo-nos
como um instrumento que mede morte pode medir bem-estar. Isto nos forçaria a dizer que
estar vivo é igual a estar bem. O que não nos parece correto. E que comentaremos mais
adiante.
Além dos indicadores acima, os autores citam outros treze, sendo onze índices de
mortalidade e dois instrumentos baseados em medidas que buscam expressar mais do que
simplesmente mortalidade e morbidade, apesar de serem baseados em ambas: Expectativa
de Vida e o Disability Adjusted Life Year (DALY), ou, Anos de Vida Perdidos Ajustados
26
por Incapacidade, nome dado à versão em português, utilizado em estudos de carga global
de doença (Leite, 2006).
Comparando as medidas apresentadas com a definição de indicador de saúde de
Vermelho, Costa & Kale e a orientação da OMS, nos parece haver uma dissonância entre a
definição teórica e as medidas citadas como exemplos de indicadores de saúde. Nos
exemplos dados, ter saúde parece ter-se reduzido a estar vivo.
Outros autores (Rothman, 1987 e Jenicek & Cléroux, 1987) também apresentam
índices de mortalidade como exemplos de indicadores de saúde. Entretanto, Jenicek &
Cléroux (1987) fazem uma interessante classificação dos indicadores de saúde. Os autores
separam os indicadores em dois grandes grupos: indicadores diretos e indicadores indiretos.
Os indicadores diretos têm como foco medidas referentes aos indivíduos e se
subdividem em: (a) indicadores demográficos, que compreendem os índices de natalidade,
fecundidade, esperança de vida, etc; (b) indicadores clínicos, que são os índices de
mortalidade, morbidade e letalidade; (c) indicadores paramédicos, entendidos como os
índices de faltas ao trabalho por motivo de doença; (d) indicadores da qualidade das
funções fisiológicas, como resistência física, por exemplo; (e) indicadores de bem-estar
físico, mental e social, expressos por índices de doenças crônicas, depressão e grau de
estigma social; e (f) os indicadores determinados por especialidades médicas, por exemplo,
mortalidade materna (ginecologia e obstetrícia), mortalidade infantil (pediatria), etc.
Os indicadores indiretos são aqueles que apontam para fatores etiológicos das
doenças, tendo, dessa forma, a idéia de risco no seu bojo. Esses indicadores medem o nível
de risco à saúde a que populações estão expostas ao serem submetidas a determinadas
27
condições. Por exemplo, contaminação ambiental, consumo de cigarros, abuso de álcool,
etc.
A divisão empreendida por Jenicek & Cléroux nos permite ver com nitidez que
apesar de estarem sob a denominação de indicadores de saúde, cada medida se refere a um
aspecto específico da vida das pessoas e são muito diferentes entre si. Isto significa que
uma medida não substitui a outra e que elas devem estabelecer uma relação de
complementaridade a fim de possibilitar uma análise ampla do estado de saúde da
população. Esta parece ser a idéia da OMS, como já apresentamos e está presente no
seguinte comentário dos autores:
“Estes indicadores não podem ser interpretados de forma isolada. Por exemplo, uma alta taxa de natalidade em uma população não constitui um indicador de boa saúde se é acompanhada de uma esperança de vida baixa e uma mortalidade alta”. (Jenicek & Cléroux, 1987: 46)
Ou seja, uma medida isoladamente, ou em outras palavras, um único aspecto da
vida, não indica se os indivíduos de uma população estão ou não em boa saúde. Uma
medida sozinha indica apenas um fenômeno, o que já é muito importante, pois uma alta
taxa de mortalidade alerta as autoridades para o fato de que pessoas estão morrendo.
Entretanto, isoladamente, um índice não é capaz de explicar as causas das mortes, nem
evitá-las. Dessa forma, parece-nos que o que indica não é o índice em si, mas um conjunto
de informações, composto por medidas objetivas que, conjugadas, se prestam à
interpretação. Na prática, nenhuma medida é considera isoladamente, mas sempre em
conjunto de modo a formar um panorama que possibilite pesquisadores, gestores e
profissionais de saúde identificar o estado de saúde de uma dada população. Em
Epidemiologia não existem medidas isoladas, elas estão sempre em realação umas com as
28
outras. Neste sentido, chamar uma medida de “indicador de saúde” nos parece uma
imprecisão semântica, que pode causar (ou causa) a supervalorização dessas medidas
(isoladas ou mesmo em conjunto) e o uso ideológico dessa supervalorização para a
manutenção do status quo político-profissional no campo da Saúde. Por isso, acreditamos,
ainda que não tenha sido essa a intenção, que a divisão empreendida por Jenicek & Cléroux
(1987) deixa o termo ‘indicadores de saúde’ em suspenso, visto que para os autores, para a
OMS e mesmo segundo a definição de Vermelho, Costa & Kale (2004), uma medida é um
indicador daquilo que ela mede, sozinha ela não indica saúde. Por exemplo, na proposta de
Jenicek & Cléroux (1987), o índice de natalidade aparece como de fato é, um indicador
demográfico e não de saúde em si.
O estudo da Rede Interagencial de Informações para a Saúde (2002) também
apresenta uma classificação dos indicadores de saúde. Chamamos a atenção para o fato de
que, nesse documento, as taxas de mortalidade são classificadas como indicadores
demográficos e indicadores de mortalidade e não indicadores clínicos, como na proposta de
Jenicek & Cléroux (1987). Nos quadros a seguir reproduzimos algumas taxas utilizadas no
estudo citado (REDE, 2002), como exemplo dos principais indicadores de saúde presentes
em estudos epidemiológicos.
Indicadores demográficos2
Denominação Conceituação Método de cálculo
População total Número total de pessoas residentes num determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Utilização direta da base de dados, expressando-se os resultados em números absolutos ou percentuais.
Razão de sexos Número de homens para cada grupo de Número de residentes do sexo
2 O estudo apresenta dezesseis indicadores demográficos, dos quais selecionamos sete como exemplos.
29
cem mulheres na população residente num determinado espaço geográfico, no ano considerado.
masculino dividido pelo número de residentes do sexo feminino multiplicado por cem.
Grau de urbanização
Percentual da população residente em áreas urbanas em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
População urbana residente sobre a população total residente multiplicado por cem.
Taxa bruta de natalidade
Número de nascidos vivos por mil habitantes, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número total de nascidos vivos resi-dentes sobre a população total residente multiplicado por mil.
Taxa bruta de mortalidade
Número total de óbitos, por mil habitantes, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número total de óbitos de residentes sobre a população total residente multiplicado por mil.
Mortalidade proporcional por
idade
Distribuição percentual dos óbitos, por faixa etária, na população residente num determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número de óbitos por faixa etária sobre o número total de óbitos de residentes, excluindo os de idade ignorada, multiplicado por cem.
Esperança de vida ao nascer
Número médio de anos de vida esperados para um recém-nascido, mantido o padrão de mortalidade existente, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
A partir de tábuas da vida elaboradas para cada área geográfica, toma-se o número correspondente a uma geração inicial de residentes (Io) e determina-se o tempo cumulativo vivido por esta geração (To) até a idade limite. A esperança de vida ao nascer é o quociente da divisão To por Io.
Quanto à medida “Grau de Urbanização”, apresentada acima, é preciso cautela na
interpretação. Caso consideremos a vida urbana como sinônimo de saúde ou como
necessariamente promotora de saúde, corremos o risco de, erroneamente, tomar o campo
como insalubre e perigoso à saúde. Sem dúvida essa é uma idéia controversa e que
encontra pouco eco na realidade. Basta olhar para megalópoles como Rio de Janeiro, São
Paulo, Porto Alegre, Salvador e Recife que veremos como a urbanização não nos protege
das enfermidades. Em boa parte dos casos ela agrava problemas de saúde, como a dengue
no Rio de Janeiro, e cria outros, como a contaminação de lençóis freáticos, favelização,
30
inundações, acúmulo de lixo, emissão de poluentes na atmosfera e tantos outros. Dessa
forma, é preciso usar a medida do grau de urbanização com parcimônia e critério, visto que
muitos habitantes de zonas rurais vivem comparativamente melhor que habitantes de zonas
urbanas. O grau de urbanização pode contribuir positivamente para a avaliação da saúde de
populações urbanas em cidades urbanas e populações rurais em zonas rurais. Ou seja,
avaliar o quanto a urbanização é efetiva em determinada região urbana, o quanto a
urbanização impede a favelização e a degradação do meio ambiente e o quanto a
urbanização contribuiu para a degradação da saúde de populações rurais. E isso deve ser
feito sem considerar o urbano como sinônimo de saúde, como dissemos anteriormente. Um
exemplo de urbanização que em nada tem a ver com saúde é o bairro da Barra da Tijuca no
Rio de Janeiro. Esse bairro, localizado na zona oeste da cidade, é conhecido pelo grande
número de shoppings centers, pelos condomínios de luxo e pelo baixo índice de
saneamento básico. Grande parte do esgoto produzido pelos condomínios, hospitais,
clínicas veterinárias, etc é jogado in natura na lagoa de Marapendi ou na orla marítima do
bairro. Do que serve esse tipo de urbanização? Por outro lado, indícios de urbanização
podem significar risco à saúde de populações rurais de zonas rurais. Por exemplo, a
instalação de um industrias em uma região imprópria para a atividade industrial pode ter
como conseqüências a contaminação da água e do ar, o aparecimento de poluição sonora,
desmatamento, crescimento populacional desordenado e conseqüente favelização, etc (por
exemplo alguns municípios na Baixada Fluminense e do Norte Fluminense). Portanto, é
preciso ter cuidado para não criar e propagar preconceitos em relação ao campo e
superestimar a cidade urbana.
31
É possível que essa supervalorização do urbano seja ranço da medicina urbana
descrita por Foucault (1982) que está na origem da medicina social. Entretanto, não nos
deteremos nesse assunto, visto que nosso objeto é outro.
Indicadores socioeconômicos3
3 O estudo apresenta nove indicadores socioeconômicos, dos quais selecionamos seis como exemplos.
Denominação Conceituação Método de cálculo
Produto Interno Bruto – PIB –
per capita
Valor médio agregado por indivíduo, em moeda corrente e a preços de mercado, dos bens e serviços finais produzidos em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Valor do PIB sobre população total residente
Taxa de analfabetismo
Percentual de pessoas de quinze anos e mais de idade que não sabem ler nem escrever um simples bilhete, no idioma que conhecem, na população total residente da mesma faixa etária, num determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número de pessoas residentes de quinze anos e mais analfabetas sobre a população total residente de mesma faixa etária multiplicado por cem.
Razão de renda Número de vezes que a renda do quinto superior da distribuição de renda (20% mais ricos) é maior que a renda do quinto inferior da distribuição (20% mais pobres) na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Valor agregado do quinto superior de renda domiciliar per capita sobre o valor agregado do quinto inferior de renda domiciliar per capita
Proporção de pobres
Percentual da população residente com renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
População residente com renda familiar per capita de até meio salário mínimo sobre a população total residente multiplicado por cem.
Taxa de desemprego
Percentual da população economicamente ativa que se encontra sem trabalho, na semana de referência, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número de residentes de dez anos e mais de idade que se encontram desocupados e procurando trabalho, na semana de referência, sobre o número de residentes economicamente ativos da faixa etária considerada multiplicado por cem.
Taxa de trabalho Infantil
Percentual da população residente de dez a quatorze anos de idade que se encontra trabalhando ou procurando trabalho na semana de referência, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número de crianças residentes de dez a quatorze anos de idade que se encontrar trabalhando ou procurando trabalho sobre a população total residente dessa faixa etária.
32
Indicadores de mortalidade4
Denominação Conceituação Método de cálculo
Taxa de mortalidade
infantil
Número de óbitos de crianças menores de um ano de idade, por mil nascidos vivos, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Direto: número de óbitos de residentes com menos de um ano de idade, sobre o número total de nascidos vivos de mães residentes.
Taxa de mortalidade
materna
Número de óbitos femininos por causas maternas, por cem mil nascidos vivos, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número de óbito de mulheres residentes, por causas e condições consideradas de óbito materno, sobre o número de bebês nascidos vivos de mães residentes multiplicado por cem.
Taxa de mortalidade por
doenças do aparelho
circulatório
Número de óbitos por doenças do aparelho circulatório (códigos 100 a 199 da CID-105), por cem mil habitantes, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número de óbitos de residentes por doenças do aparelho circulatório, sobre a população total ajustada ao meio do ano multiplicado por cem mil.
Taxa de mortalidade por causas externas
Número de óbitos por causas externas (acidentes e violências, códigos V01 aY98 da CID-10), por cem mil habitantes, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número de óbitos dos residentes por causas externas, sobre a população total ajustada ao meio do ano multiplicado por cem mil.
Taxa de mortalidade por
acidentes de trabalho
Número de óbitos por acidentes de trabalho, por cem mil trabalhadores segurados, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número de óbitos por acidentes de trabalho, em segurados pelo SAT6, sobre o número médio anual de segurados pelo SAT.
Indicadores de morbidade e fatores de risco7
Denominação Conceituação Método de cálculo
Incidência de doenças
transmissíveis
Número absoluto de casos novos confirmados da doença (ex. sarampo, febre amarela, raiva humana, dengue), na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Somatório do número de novos casos confirmados em residentes.
Taxa de prevalência de
hanseníase
Número de casos detectados de hanseníase (todas as formas, A30 na CID-10), por dez mil habitantes, existentes na população residente
Número de casos confirmados de hanseníase (todas as formas), até o dia trinta e um de
4 O estudo apresenta dezoito indicadores de mortalidade, dos quais selecionamos cinco como exemplos. 5 Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – décima revisão. 6 Seguro Acidente de Trabalho que pode ser público ou privado. 7 O estudo apresenta vinte e dois indicadores de morbidade e fatores de risco dos quais selecionamos cinco como exemplos.
33
em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
dezembro do ano considerado, na população residente, sobre o total da população residente na mesma data multiplicado por dez mil.
Proporção de internações hospitalares (SUS) por
grupos de causas
Distribuição das internações hospitalares pagas pelo Sistema Único de Saúde por grupo de causas selecionadas (capítulos da CID-10), na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número de internações de resi-dentes, por grupo de causas, pagas pelo SUS, sobre o número total de internações pagas pelo SUS multiplicado por cem.
Proporção de nascidos vivos
de baixo peso ao nascer
Percentual de nascidos vivos com peso inferior a 2.500 gramas, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número de nascidos vivos de mães residentes com peso ao nascer inferior a 2.500 gramas, sobre o número total de nascidos vivos de mães residentes multiplicado por cem.
Taxa de prevalência de
fumantes regulares
Percentual de pessoas com mais de quinze anos de idade que fumam regularmente (diariamente) residentes em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número de pessoas com mais de quinze anos de idade que fumam diariamente, sobre a população total residente dessa faixa etária.
Indicadores de recursos8
Denominação Conceituação Método de cálculo
Número de profissionais de
saúde por habitante
Número de profissionais de saúde por mil habi-tantes, segundo categorias, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número de profissionais da categoria de saúde específica, sobre a população total residente ajustada pra o meio do ano, multiplicado por mil.
Número de leitos hospitalares por
habitante.
Número de leitos hospitalares públicos e privados, por mil habitantes, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número total de leitos hospitalares públicos e privados, sobre a população total residente ajustada para o meio do ano, multiplicado por mil.
Gasto nacional per capta com
saúde
Gasto total com saúde por habitante, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Valor total da despesa pública e privada com saúde, em reais, sobre a população total residente no ano considerado.
Gasto público com saúde como
proporção do
Percentual do PIB que corresponde ao gasto público em saúde, desagregado por esfera de governo (federal, estadual e municipal), em
Valor total das despesas com ações e serviços públicos de sa-úde, sobre o valor do PIB,
8 O estudo apresenta quatorze indicadores de recursos, dos quais selecionamos cinco como exemplos.
34
PIB determinado espaço geográfico, no ano considerado.
multiplicado por cem.
Gasto público com saneamento como proporção
do PIB
Percentual do PIB que corresponde ao gasto público com saneamento, desagregado por esfera de governo (federal, estadual e municipal), em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Valor total das despesas do setor público com saneamento, sobre o valor do PIB, multiplicado por cem.
Indicadores de cobertura9
Denominação Conceituação Método de cálculo
Número de consultas
médicas (SUS) por habitante
Número médio de consultas médicas apresentadas ao SUS por habitante, em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número total de consultas médicas apresentadas ao SUS, sobre o número total da população residente.
Número de procedimentos
complementares por consulta
médica
Número de procedimentos complementares de patologia clínica e imagenologia, por cem consultas médicas apresentadas ao SUS, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número total de procedimentos complementares de patologia clínica e imagenologia apresentados ao SUS, sobre o número total de consultas médicas apresentadas ao SUS.
Proporção de gestantes com
acompanhamento pré-natal
Percentual de gestantes com seis ou mais consultas de acompanhamento pré-natal, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número de nascidos vivos de mães residentes com seis ou mais consultas de acompanhamento pré-natal, sobre o total de nascidos vivos de mães residentes, multiplicado por cem.
Proporção de partos cesáreos
Percentual de partos cesáreos em relação ao total de partos, na população residente em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
Número de nascidos vivos de partos cesáreos de mães residentes, sobre o número total de nascidos vivos de partos hospitalares de mães residentes, com tipo de parto informado, multiplicado por cem.
Cobertura de serviços de
coleta de lixo
Percentual da população residente atendida por serviço regular de coleta de lixo domiciliar em determinado espaço geográfico, no ano considerado.
População residente atendida pelo serviço de coleta domiciliar regular de lixo, sobre a população total residente em domicílios, multiplicado por cem.
9 O estudo apresenta dezenove indicadores de cobertura, dos quais selecionamos cinco como exemplos.
35
Essa divisão é ainda mais extensa do que a proposta por Jenicek & Cléroux (1987).
Ela serve para nos mostrar que sob a mesma designação – indicadores de saúde – estão
medidas muito diferentes. Cada uma mede um fragmento muito específico da vida em
coletividade. Será possível determinar quanto uma população é saudável olhando apenas
uma medida de mortalidade? Se a taxa é baixa, isso significa que as pessoas estão vivendo
bem, com saúde? E caso a taxa seja alta, podemos dizer que os vivos estão em melhores
condições de vida do que as condições que levaram as outras pessoas à morte? Será que as
pessoas que vivem em zonas urbanas têm uma saúde melhor do que os habitantes de zonas
rurais? E o que é mais saudável: parto natural ou cesáreo? Qual é a relação
médico/habitantes para se ter saúde? Quem é mais saudável: aquele que vai muitas vezes ao
médico por ano ou aquele que nunca vai? Essas são perguntas que levam a outras, como:
afinal, se os indicadores medem fragmentos da vida, será que eles medem saúde? E o que é
saúde?
Essas são perguntas para cuja resposta esperamos contribuir ao longo desta
pesquisa. Mais adiante discutiremos o que medem os indicadores e a concepção de saúde
que sustenta os indicadores. Porém, antes é necessário entender como uma taxa passa a ser
considerada um indicador de saúde.
1.2. Quem indica os indicadores: os critérios para a construção de instrumentos de
mensuração da saúde
Para que taxas, índices e proporções sejam considerados bons indicadores de saúde,
eles devem obedecer alguns critérios estabelecidos internacionalmente e recomendados
pela OMS (OPAS, 2001). O primeiro deles é que o indicador deve ser abrangente, cobrir
36
um grande número de casos em uma população definida. Além disso, o indicador deve
utilizar dados de boa qualidade, com metodologia padronizada e de fontes
reconhecidamente seguras, como governos, universidades, institutos de pesquisa, etc.
Alguns critérios objetivos (OPAS, 2001) devem ser observados para a construção de
um indicador, são eles: (a) Validade. Que diz respeito ao fato de o indicador medir
exatamente aquilo que ele se propõe medir; (b) Confiabilidade. Atributo que garante que o
instrumento produza resultados semelhantes em situações parecidas; (c) Especificidade. O
indicador deve medir somente o fenômeno para o qual foi construído; (d) Sensibilidade. É a
capacidade de captar as mudanças do fenômeno observado; (e) Mensurabilidade. O
instrumento deve ser baseado em dados disponíveis ou de fácil aquisição; (f) Relevância.
Capacidade de dar respostas claras às políticas públicas; e (g) Custo-benefício. Os
resultados produzidos pelo instrumento devem justificar os investimentos técnico e
financeiro empregados na sua construção.
A adoção de critérios metodológicos para a construção de indicadores de saúde é um
outro elemento que permite a comparação internacional e a própria validação do
instrumento. Entretanto, nos perguntamos se mesmo com todo o rigor metodológico os
indicadores realmente indicam saúde. Por serem instrumentos tão específicos, parece-nos
inadequado chamá-los de indicadores de saúde, ainda que eles estejam de acordo com as
definições apresentadas. Caso consideremos que, por definição, indicador é aquilo que
indica alguma coisa, deveríamos esperar que um indicador de saúde indicasse saúde e não o
aspecto específico da vida que ele mede. Porém, reconhecemos que indiretamente os
indicadores de saúde são capazes de apontar problemas para os quais eles não foram
especificamente criados. Por exemplo, ao detectar que num contingente populacional há
37
altos índices de mortalidade de crianças até cinco anos, o indicador de “mortalidade de
crianças até cinco anos” nos chama a atenção para questões que vão além das mortes em si.
Se as crianças estão morrendo é provável que as causas estejam nas condições de vida a que
essas crianças estão submetidas. Dessa forma, o resultado obtido pelo indicador pode ser
cruzado com o resultado de outros indicadores (renda, escolaridade, saneamento, etc) e
dependendo do resultado desse cruzamento de informações pode-se supor que essa
população está submetida a uma situação de degradação social que leva não apenas à morte
de crianças pequenas, mas muito provavelmente a problemas de saúde de toda a população.
Acreditamos que essa capacidade difusa dos indicadores de saúde de apontar questões além
da sua especificidade poderia ser potencializada e explicitada caso eles fossem forjados a
partir de um conceito positivo de saúde. Um indicador de saúde deveria trazer consigo uma
definição de saúde, para então indicá-la a partir dos instrumentos que melhor servissem à
tarefa. Deveríamos considerar indicador de saúde um determinado conjunto de ferramentas
que, como um todo, indicasse saúde.
Um exemplo de proposta de construção de indicadores que considera indicador como a
conjugação de vários instrumentos para o fim de indicar algo, é encontrado no trabalho de
Drachler et al (2003). No artigo intitulado ‘Proposta metodológica para selecionar
indicadores de desigualdade em saúde visando definir prioridades de políticas públicas no
Brasil’, Drachler et al (2003) definem o que é saúde e o que é desigualdade. Este é um
passo que consideramos fundamental para a construção de um indicador, definir o seu
objeto. Neste caso, os autores desejavam construir um meio de medir a desigualdade em
saúde. Para eles:
38
“Saúde é definida pela qualidade de vida e pela capacidade de ser e agir de mulheres e homens; e desigualdade social, pelas diferenças produzidas socialmente que sejam moralmente injustas. Assim, desigualdade social em saúde refere-se às diferenças produzidas socialmente na qualidade de vida e na capacidade de ser e agir dos grupos sociais e indivíduos, porque essas diferenças são moralmente injustas. Nesse sentido, a saúde reflete características vitais aparentemente elementares como estar vivo e sem doença, estar bem, ter respeito próprio e ser respeitado e capaz de exercer ação política”.(Drachler et al, 2003: 463)10
Ao definir saúde e desigualdade em saúde, torna-se possível selecionar medidas,
que os autores chamam de indicadores, para que juntos possam indicar se há ou não e em
que grau há desigualdade em saúde. No estudo considerado, os autores selecionaram os
seguintes índices: expectativa de vida ao nascer, mortalidade, morbidade, estado nutricional
e acesso às estruturas e procedimentos de atenção à saúde.
Ainda que os autores chamem os índices selecionados de indicadores de
desigualdade em saúde, parece-nos inapropriado considerá-los como tal. Afinal, expectativa
de vida ao nascer, mortalidade ou qualquer outra medida isoladamente não indica
desigualdade em saúde. O que torna possível medir a desigualdade em saúde é o conjunto
de medidas selecionadas a partir da definição prévia do que é saúde e desigualdade em
saúde.
Dessa forma, acreditamos que a classificação feita no documento da REDE (2002)
traduz melhor o que de fato os índices são, ou seja, indicadores específicos (indicadores
demográficos, de mortalidade, de cobertura, de morbidade, etc) e não indicadores de saúde.
Entendemos que para um índice isoladamente ser considerado indicador de saúde, a
definição de saúde deveria corresponder ao atributo medido pelo índice, o que seria
10 Grifo dos autores.
39
necessariamente um erro, visto que seria uma redução artificial da saúde a um único
aspecto.
Nesse sentido, o que deve indicar um ‘indicador’ (índice ou medida, para
mantermos a coerência) não deve ser simplesmente o cumprimento de critérios
internacionais, como os adotados pela OMS. Os critérios são importantes para que os
indices sejam eficientes naquilo que eles se propõem avaliar especificamente, mas a seleção
de índices ou mesmo de outros instrumentos não quantitativos para a composição, agora
sim, de um indicador de saúde, deve obedecer ao critério de coerência com a definição de
saúde utilizada. Por exemplo, se considerarmos a saúde como cidadania, como Drachler et
al (2003) parecem conceber, será preciso mais do que índices de mortalidade e morbidade
para indicar saúde.
De alguma maneira estamos, a partir das definições apresentadas e da recomendação
da OMS, redefinindo o que são indicadores de saúde, visto que para indicarem saúde, eles
não podem ser considerados isoladamente, ou seja, sozinhas as medidas não indicam
diretamente saúde. Deveríamos entender por indicadores de saúde o conjunto de
ferramentas quantitativas e/ou qualitativas que indiquem o nível de saúde da população a
partir de uma definição conceitual prévia de saúde e de critérios de saúde. Entretanto, como
veremos adiante, há na prática o uso de medidas específicas como indicadores de saúde.
1.3 O que indicam os indicadores de saúde?
Essa é uma pergunta cuja resposta pode parecer óbvia: saúde. E o argumento
poderia ser: “O nome já diz tudo. Indicadores de saúde indicam saúde”. Porém, como
40
vimos, as definições consideram as medidas como indicadores, mesmo elas medindo
atributos muito específicos e não definindo o que estão considerando como saúde.
Um exemplo do uso de medidas como indicadores de saúde em si é o estudo ‘Saúde
Brasil 2004: uma análise da situação de saúde’, do Ministério da Saúde. No capítulo um, o
documento apresenta números sobre a cobertura de serviços de saneamento básico,
escolaridade da população, distribuição das unidades de saúde pelo país, distribuição de
médicos e enfermeiros. O capítulo dois aborda a “saúde reprodutiva” e apresenta números
em relação à assistência pré-natal, parto e baixo peso entre os recém-nascidos. Os capítulos
três, quatro e cinco são dedicados à farta estatística sobre mortalidade. E o sexto capítulo
versa sobre a prevalência de doenças transmissíveis, ou seja, morbidade.
Nesse estudo, encontramos uma estrutura parecida com o documento da REDE
(2002). Trata-se de uma espécie de inventário sobre os temas abordados em cada capítulo.
Será que índices de mortalidade, morbidade, cobertura de serviços de saneamento básico
traduzem o nível de saúde da população? O que o estudo considera como saúde? Esta
pergunta não está respondida no texto em questão. Podemos considerar que viver em uma
região com água tratada, esgoto encanado, serviços de saúde públicos e de qualidade, baixo
índice de mortalidade e morbidade aumenta a chance de se viver com saúde, mas não
garante saúde. Será que viver em um distrito rural sem cobertura de água, esgoto ou
serviços de saúde próximos é mais insalubre do que viver num bairro estruturado de uma
metrópole?
Apesar de não definir saúde, o ‘Saúde Brasil 2004’ tem méritos ao observar as
recomendações da OMS e utilizar não apenas índices de mortalidade e morbidade em suas
análises. Porém, saber se as pessoas morrem mais ou menos do que as taxas toleráveis ou se
41
vivem em locais com o número padrão de profissionais de saúde, não nos permite dizer se a
população está ou não saudável. Falta definir saúde.
Outro estudo, de Simões (2002), intitulado ‘Perfis de saúde e de mortalidade no
Brasil: uma análise de seus condicionantes no Brasil’, torna mais clara a falta que uma
definição de saúde faz em estudos desse tipo. O trabalho de Simões apresenta uma vasta
estatística sobre mortes no Brasil. É, sem dúvida, uma obra importante, sobretudo porque
aponta a violência como uma das principais causas de morte de jovens no país. Entretanto,
o estudo não pode ser considerado um perfil de saúde da população. A não ser que, mais
uma vez, consideremos estar vivo como sinônimo de saúde. O problema está em considerar
os indicadores de mortalidade como indicadores de saúde. Nesse caso, a saúde seria
simplesmente estar vivo dentro da expectativa de vida ao nascer. O trabalho de Simões tem
muitos méritos como um perfil de mortalidade do Brasil, mas não poderia ser considerado
um inventário sobre a saúde da população brasileira.
Um terceiro estudo chamado ‘As condições de saúde no Brasil’, de Mello Jorge &
Gotlieb (2000) é ainda mais exemplar na ênfase dada aos índides de mortalidade. O
trabalho das autoras está dividido em quatro capítulos: A população brasileira,
Nascimentos, Mortalidade e Morbidade. O terceiro capítulo, Mortalidade, é o maior,
ocupando duzentas das pouco mais de duzentas e setenta páginas do estudo. Trata-se
também de um inventário sobre o assunto de cada capítulo e que também nos leva a deduzir
que saúde é entendida como estar vivo e sem doença. Mas, saúde se reduz à ausência de
doença? E viver sem doença é necessariamente viver com saúde? Ou ainda: só se tem saúde
com uma ausência total de doenças, de qualquer ordem e em qualquer grau de limitação?
Se assim for, não há um único ser humano saudável no planeta.
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Os estudos citados medem mortalidade, morbidade, nascimentos e cobertura de
serviços de saúde e saneamento. Seria saúde a vida urbana planejada e livre de doenças?
Será por isso que os estudos sobre as condições de saúde da população dão ênfase à
mortalidade e morbidade? Vermelho, Costa & Kale (2004) tentam esclarecer de alguma
maneira essa questão. Para os autores:
“Diante das inúmeras dificuldades para se mensurar a saúde de uma população, o que se faz é quantificar e descrever a ocorrência de determinados agravos à saúde, doença e morte. Olha-se, portanto, a ausência de saúde, ou como habitualmente é dito, a saúde pelo seu lado negativo”. (Vermelho, Costa & Kale, 2004, p. 34)
E ainda:
“[...] opta-se assim pelas estatísticas de mortalidade. Estas, por utilizarem uma mesma metodologia, isto é, informações registradas na declaração de óbito (DO), padronizada internacionalmente, podem ser de cobertura universal e, portanto, ampla e internacionalmente comparáveis.” (Vermelho, Costa & Kale, 2004, p. 34)
Há duas importantes idéias nas citações acima. A primeira é a afirmação de que os
indicadores de saúde, as medidas em geral, não medem saúde, mas os aspectos específicos
para os quais foram construídos. Ou seja, os indicadores de morbidade indicam doença e
não saúde, assim como os de mortalidade indicam morte e não saúde. Isto significa que a
mensuração da saúde é feita a partir da doença, levando por dedução à seguinte lógica:
onde há doença não há saúde. A segunda é o fato de se utilizar a mortalidade por conta da
melhor comparabilidade entre as regiões e os países. Nessa perspectiva, onde se morre
menos, tem-se melhores condições de saúde. Certamente, altos índices de mortalidade ou
morbidade indicam que algo vai mal em determinada região, mas elas não são suficientes
para informar como está a saúde das pessoas vivas ou que não estão com doenças
diagnosticadas.
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Apesar de Vermelho, Costa & Kale afirmarem que há dificuldade em mensurar a
saúde, e que por isso medem doença, os autores não dizem que dificuldades são essas. A
partir de Almeida Filho (2000a), suspeitamos que a dificuldade seja de natureza conceitual
e se traduz na falta de um conceito positivo de saúde. Para Almeida Filho:
“[...] por causa de seu subdesenvolvimento epistemológico e conceitual, a epidemiologia não tem sido capaz de produzir uma referência teórica eficaz sobre o objeto saúde. Minha hipótese é que isto ocorre simplesmente porque o conceito de ‘saúde’ constitui um dos pontos cegos paradigmáticos da ciência epidemiológica”. (Almeida Filho, 2000a: 6)
E ainda:
“Há um consenso em relação à centralidade da noção de ‘doença’ para o discurso científico e práxico da Clínica. Clavreul (1983) chega a apontar uma incapacidade heurística da Clínica em definir os estados fisiológicos da saúde, salvo como ausência de doença”. (Almeida Filho, 2000a: 9)
É possível que a ênfase dada à mensuração da saúde pelo seu “lado negativo” não
seja apenas fruto de um problema metodológico como parecem apontar Vermelho, Costa &
Kale (2004), mas antes de uma confusão epistemológica, que na falta de uma definição
melhor, toma a saúde como ausência de doença. A dificuldade em definir saúde de maneira
positiva é um dos embates enfrentados pela Epidemiologia no seu interior para definir-se
como ciência independente e buscar alguma unidade conceitual. Barreto (1990) nos mostra
como a história da Epidemiologia é marcada pela luta por conquistar respeitabilidade
científica, o que levou a disciplina em alguns momentos a se preocupar mais com a técnica
do que com a construção de conceitos próprios e úteis à investigação das condições de
saúde da população. Barreto (1990:29) afirma que “a falta de conceitos que limitem com
nítida precisão o que seja saúde e o que seja doença tem trazido sérias questões para o
interior da disciplina”. Um dos problemas é a ênfase excessiva na doença e a dificuldade de
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apresentar estudos sobre a saúde de fato. Segundo o autor, o enfrentamento desse e de
outros problemas epistemológicos por setores da Epidemiologia tem alimentado um
movimento chamado ‘Epidemiologia da saúde’, que procurar afastar-se do modelo
biomédico, centrado na doença, e aproximar-se das ciências humanas.
Entretanto, a idéia de saúde como ausência de doença ainda é muito forte e está
apoiada num modelo de ciência que ainda é dominante. No próximo item discutiremos o
conceito de saúde por trás do uso dos índices em geral, mas, sobretudo, os de mortalidade e
morbidade, como indicadores de saúde.
1.4 O conceito negativo de saúde
Saúde antes de ser um conceito das ditas ciências da vida, é uma palavra de origem
etimológica variada. Como nos mostra Almeida Filho (2000b), em português e espanhol,
saúde e salud derivam da raiz latina salus que significa inteiro, intacto, íntegro. Que por sua
vez deriva do termo grego holos, que nos remete ao sentido de totalidade e é raiz dos
termos holismo e holístico. A palavra francesa santé e o verbete castelhano sanidad, assim
como o adjetivo ‘são’ da língua portuguesa, derivam do latim sanus, que significa puro,
imaculado, correto e verdadeiro. A palavra inglesa health tem origem no termo höl do
idioma germânico antigo, que também dá origem à palavra inglesa holy (sagrado), que
reencontra, por sua vez, o grego holos.
Como vemos, saúde deriva da idéia de inteireza e totalidade. A origem etimológica
da palavra saúde pode nos levar a, pelo menos, três interpretações a respeito do que é
saúde. A primeira seria que a saúde é a integralidade do indivíduo, a qualidade de ser uma
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totalidade, uno, inteiro. A segunda interpretação possível conceberia a saúde como inteireza
das partes do corpo, sem chagas, deformações e amputações. Ou seja, inteiro no sentido de
que não falta nenhuma parte do corpo e íntegro no sentido de que as partes são “como
deveriam ser”. A terceira trataria a saúde como o sagrado, o imaculado, o metafísico.
Aquilo que existe apenas como ideal e, portanto, sem correspondente na imanência do
mundo material.
As duas últimas interpretações estão intimamente ligadas quando se considera saúde
a ausência de doença. Nesse caso, a idéia de ausência de doença ganha o status de perfeição
e serve como referência para classificar quem tem ou não saúde. As interpretações que
demos aos diferentes significados da palavra saúde não são elucubrações, existem e podem
ser encontradas na literatura, inclusive científica, como veremos mais adiante. As duas
últimas interpretações encontram-se apoiadas numa tradição filosófica que começa em
Platão e deságua no paradigma dominante de ciência contemporânea, que chamaremos de
ciência clássico-moderna.
Segundo Martins (1999), a ciência clássico-moderna tem uma dupla origem. A
primeira data do final do século XII, quando a obra de Aristóteles chega ao ocidente através
de filósofos árabes e judeus interpretados pelos escolásticos. Naquele momento, a ciência
era baseada nos escritos do filósofo grego. Aristóteles propunha uma ciência do universal e
um método de demonstração de verdades universais, que tinha como pilares a pesquisa
experimental e a investigação da natureza.
A ênfase dada por Aristóteles à experiência deve-se ao pressuposto de que as
essências que definem a universalidade das coisas e que são as próprias formas, estão
incorporadas na matéria. Dessa forma, a observação da natureza é o meio privilegiado para
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que o intelecto possa, a partir de casos particulares, apreender o universal. Entretanto, não
foi o próprio Aristóteles quem transformou suas teorias em verdades absolutas, em dogmas,
portanto. Nas palavras de Martins:
“[...] a história modificou a importância dada por Aristóteles à observação: a escolástica, sobretudo a escolástica dita tardia, tomou os escritos de Aristóteles não como resultados da prática de seu pensamento e de sua observação, mas como verdades incontestáveis em si; enfim, tomou-os como dogmas, e tomou o raciocínio segundo à lógica aristotélica como uma prova da veracidade de suas afirmações específicas, independentemente do que se observa na natureza.” (Martins, 1999: 85)
Com o decorrer da história, o paradigma aristotélico vai ganhando novos elementos.
A partir de Copérnico e, sobretudo com Galileu, a matemática consolida-se como a
linguagem científica e como ferramenta de extração de verdades da natureza (Koyré, 2006).
Com Descartes e Newton o mecanicismo - que atribui à natureza uma organização regida
por leis da mecânica -, o reducionismo e o racionalismo tornaram-se os princípios da
ciência.
Esses princípios estão fortemente presentes na ciência moderna. O desejo de
controlar a natureza e dar sentido à organização própria do mundo inerentes ao
mecanicismo, reducionismo e racionalismo, encontra correlatos na ênfase dada na ciência
contemporânea ao método e ao controle. No caso do uso de taxas como indicadores de
saúde, parece-nos que o método de cálculo tornou-se mais importante do que o próprio
conceito de saúde. Grosseiramente, diríamos que não importa o que se quer medir, desde
que a régua – o método – seja considerada científica.
Uma segunda origem da ciência clássico-moderna está em Platão, que
diferentemente de Aristóteles, afirma que a essência das coisas, as idéias nos termos de
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Platão, está no mundo inteligível, separado do mundo sensível, onde habitam as cópias das
idéias. Platão valoriza as idéias em detrimento da matéria – da corporeidade, que seria fonte
de impureza e confusão. Essa divisão de mundos empreendida pelo filósofo e a
conseqüente desvalorização do corpo estão na base das dicotomias da ciência clássico-
moderna, como por exemplo: natureza e cultura, racional e afetivo, saúde e doença. Nos
termos de Martins:
“Platão fora o primeiro, portanto, a menosprezar o corpo, a matéria e os sentidos; a menosprezar o mundo real em prol de um mundo moral, racional, idealizado; a sentir a vida como perigosa, e a desejar uma ordem que a cristalize, que a domine, que a controle, que legisle. E esse domínio somente pode se dar a partir daquilo que nos leva para o mundo do controle, do não tempo: a razão, que deve, pois, impor sua lei sobre o real, a carne, o corpo, a matéria, a natureza, assim como sobre os entes e os povos que não a detêm”. (Martins, 1999: 88-89)
Esses elementos platônico-aristotélico-cartesianos, esse desejo de controle,
influenciam fortemente um sentimento, reforçado pela mídia, de que a ciência é a porta-voz
da verdade (como se houvesse uma!) e a redentora das incertezas e dos percalços inerentes
ao viver. Essa relação dogmática com a ciência, o cientificismo, como bem alerta Martins
(1999), não é partilhada por todos os cientistas. Entretanto, mostra-se muito forte em
discursos que afirmam que determinado fenômeno que ainda não encontra explicação, terá
no futuro, com o desenvolvimento da ciência, uma resposta lógica, convincente e
apaziguadora.
Martins (1999) lembra que a ciência não se reduz a este modelo clássico-moderno e
que, portanto, outros paradigmas de ciência existem e ainda outros podem ser criados. O
autor propõe um paradigma de ciência complexo, que utilize as reduções, quando
necessárias, e os conceitos, como suportes de compreensão do real. Esses suportes de
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compreensão devem sempre reenviar o pesquisador para a complexidade do real e não para
a simplificação deste. O paradigma proposto por Martins entende que os objetos da ciência
não são naturais, dados espontaneamente, mas criações humanas, abstrações, que servem
para construção de explicações parciais acerca do mundo e não para a decretação de
verdades absolutas.
Entretanto, a definição de saúde como ausência de doença está fortemente apoiada
no modelo clássico-moderno de ciência. Um exemplo é a Teoria Bioestatística da Saúde –
TBS – de Cristopher Boorse. A teoria de Boorse, que se diz naturalista, é um contraponto
ao normativismo. Para esse autor, o normativismo definiria saúde e doença puramente
como julgamentos de valor. O que para Boorse é um absurdo, visto que se fosse a saúde um
valor, nesse caso um valor humano, não se poderia falar em saúde ou doença em plantas ou
animais não-humanos. Dessa forma, Boorse, a partir da biologia evolutiva, constrói uma
teoria em que os conceitos de saúde e doença são, supostamente, descritivos, isentos de
valor.
Para tanto, o autor faz uma distinção entre doença e enfermidade:
“A questão é que enfermidade é uma mera subclasse da doença, isto é, aquelas doenças que têm certas características normativas refletidas nas instituições da prática médica. Uma enfermidade deve ser, primeiro, uma doença razoavelmente séria com efeitos incapacitantes que a fazem indesejável [...] Segundo, chamar uma doença de enfermidade é considerar seu portador como merecedor de tratamento especial e com responsabilidade moral diminuída” (Boorse, 1975 apud Almeida Filho & Jucá, 2002: 880)
Neste trecho, Boorse tenta estabelecer um conceito teórico, doença, e outro prático,
enfermidade. Doença seria qualquer diferença que uma função ou órgão apresente em
relação ao nível normal de funcionamento esperado para a sua espécie, gênero e idade,
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estabelecido estatisticamente. E enfermidade seria a doença em seu aspecto grave. Dessa
forma, a saúde teria duas definições negativas: uma teórica, o oposto de doença e outra
prática, o oposto de enfermidade.
Com estas definições, Boorse acredita ter construído uma base conceitual para a
saúde totalmente livre de julgamentos de valor, pois saúde seria a ausência de doença.
Porém, algumas questões permanecem. Qual seria a pertinência de se ter um conceito
teórico e outro prático de saúde, visto que a vida só se dá na imanência? Boorse parece
inspirar-se em Platão ou na interpretação religiosa da origem etimológica da palavra saúde,
visto que concebe um conceito que só tem existência enquanto abstração absoluta. Nesse
sentido, para que a saúde teórica exista não é necessária a saúde ‘prática’, saúde de fato em
pessoas reais. Da mesma maneira que para Platão, o mundo inteligível existiria
independentemente do mundo material.
Outro ponto que não ficou claro na definição de Boorse é a diferença entre doença e
enfermidade. A idéia de efeitos indesejáveis, que caracterizariam a enfermidade, nos parece
pouco descritiva e muito mais normativa. Afinal os efeitos são indesejáveis em que sentido
e para quem? E o que significa “responsabilidade moral diminuída?” Estas são questões
que ficam em aberto.
Segundo Almeida Filho e Jucá (2002), a teoria de Boorse é teleológica, visto que
para ele as funções biológicas servem para a consecução de determinados objetivos,
principalmente a sobrevivência e a reprodução. E qualquer queda na eficiência de uma das
funções biológicas, representa um processo patológico, visto que se afasta do nível
esperado para aquela função. Nas palavras do autor:
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“a condição de uma dada parte ou processo em um organismo é patológica quando a capacidade dessa parte ou processo para executar uma ou mais de suas funções biológicas espécie-típicas cai abaixo de uma faixa central de distribuição estatística para aquela capacidade em parte ou processos correspondentes nos membros de uma classe de referência apropriada da espécie.” (Boorse, 1987 apud Almeida Filho & Jucá, 2002: 883)
Neste sentido, a dedução lógica de Boorse é que a saúde é a ausência de qualquer
alteração considerada patológica, alterações tratáveis (enfermidade) ou não (doença). De
maneira geral, a saúde permanece sendo a ausência de doença. Boorse sintetiza sua
concepção de saúde da seguinte forma:
“Saúde teórica é a ausência de doença [...] então a classificação de estados humanos como saudáveis ou doentes é uma questão objetiva, a ser extraída dos fatos biológicos da natureza sem necessidade de juízos de valor. Designemos esta posição geral como naturalismo – o oposto do normativismo, a visão de que juízos de saúde são ou incluem julgamentos de valor”. (Boorse 1997 apud Almeida Filho & Jucá, 2002: 883)
A tentativa de Boorse de definir o que é saúde é louvável. Entretanto, o autor
recorre a uma prática típica da ciência clássica, o reducionismo. Boorse reduz a vida ao seu
aspecto biológico, incute uma teleologia fundamental neste, e desconsidera a experiência
humana de viver. Será que vivemos para cumprir metas biológicas? Será que a vida tem
uma meta objetiva independentemente desta ser desejável, como considera o autor?
Afirmar isso, apostar nisso, não é, já, estabelecer um valor?
Boorse construiu uma teoria baseada na biologia e na estatística para afirmar que a
saúde é a ausência de doença. Sua idéia parece encontrar eco em boa parte da
epidemiologia, mesmo sem esta possuir uma teoria acerca da saúde. Para nos
aproximarmos da concepção de saúde utilizada de maneira geral pela epidemiologia, seria
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interessante definirmos o objeto dessa ciência que tem como uma de suas tarefas medir
saúde.
Almeida Filho (1990) nos apresenta uma série de tentativas de definição do objeto
da ciência epidemiológica. Para Miettinem (apud Almeida Filho, 1990: 205), a
Epidemiologia é definida como “a ciência da ocorrência de doença”. Para outro autor,
Gordon (apud Almeida Filho, 1990), o objeto da Epidemiologia são as doenças em massa.
Mahon, Pugh & Ipsen (apud Almeida Filho, 1990:206) afirmam que a Epidemiologia tem
como objeto a “prevalência de doenças no homem”.
O autor reconhece o valor dessas tentativas de definição do objeto da Epidemiologia.
Entretanto, argumenta que tais tentativas pecam pelo excesso de pragmatismo que reduz o
objeto da Epidemiologia ao estudo da saúde e doença em populações humanas. Entretanto,
o problema persiste, pois, ainda que aceitemos que o objeto da epidemiologia seja a saúde e
a doença, este objeto continua impreciso, visto que não há uma definição clara do que é
saúde, salvo como já mostramos, como ausência de doença.
Almeida Filho (2000a) acredita que falta à Epidemiologia consistência epistemológica
que lhe permita definir saúde de maneira positiva a partir de critérios que não tenham a
doença como ponto central. O autor aponta o fato de que a falta de conceitos positivos de
saúde não é exclusividade da epidemiologia e atinge todo o campo da saúde:
“É certo que esta lacuna não é exclusiva da Epidemiologia. Em todas as disciplinas que constituem o chamado campo da saúde, noto um flagrante desinteresse em constituir conceitualmente o objeto saúde. Em contraste, pode-se facilmente constatar uma razoável concentração de esforços no sentido de produzir modelos biomédicos de patologia, com forte inspiração mecanicista ou, no máximo, sistêmica que, ao enfatizar os níveis de análise individual e subindividual, terminam por reduzir o alcance das suas contribuições”. (Almeida Filho, 2000a: 6-7)
52
O autor argumenta ainda que a falta de um conceito positivo de saúde faz a
Epidemiologia tentar conceituar e medir saúde de maneira indireta e dependente de
definições clínicas de doença. Nas palavras do autor:
“Penso que nem mesmo a coletivização da doença através do conceito de morbidade consegue indicar ‘essa coisa chamada saúde’. Não é por acaso que os textos epidemiológicos sobre saúde mostram-se sinuosos e inconvincentes; os seus formuladores patinam sobre metáforas, inventam maneiras indiretas de falar sobre saúde, porém o seu objeto continua sendo a enfermidade e a morte”. (Almeida Filho, 2000a: 7)
Uma tentativa de definição da saúde de maneira positiva, ou seja, diferente de
ausência de doença, foi a definição dada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Para
a OMS, “saúde é definida como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e
não consiste somente em ausência de doença ou enfermidade11”.
Reconhecemos que a definição de saúde da OMS procura avançar em relação à
definição negativa, pois tenta defender a idéia de que saúde não é a ausência de doença, o
que é um ponto muito positivo. Porém, apesar da flagrante boa intenção, a maneira como a
definição está redigida suprime a intenção de avançar e num certo sentido piora a definição
negativa já apresentada. Ao afirmar que a saúde é “um estado de completo bem-estar físico,
mental e social e não consiste somente em ausência de doença ou enfermidade”, a OMS
está dizendo que além de saúde ser a ausência de doença, é ainda o completo bem-estar
físico, mental e social. Dizer que não consiste somente é dizer que não é apenas ausência
de doença, mas também. Como vemos, da maneira como está escrita, essa definição, que
deveria expressar a idéia de que saúde não é a ausência de doença, mas sentir-se bem nos
11 No original: “la santé est definie comme un état de complet bien-être physique, mental et social et ne consiste pas seulement en une absence de maladie ou d’infermité.” Disponível em: <http://www.who.int/about/fr/>. Acessado em 9 de setembro de 2005. A tradução livre é nossa.
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vários aspectos que compõem a vida, tomou a ausência de doença não mais como saúde,
mas como condição sine qua non para a saúde que deve ser somada a um sentimento de
completude. Há, portanto, um outro aspecto criticável dessa definição, a idéia de completo
bem-estar. Saúde é ser completo em que sentido? Significa viver uma vida cor-de-rosa,
ideal? A idéia de uma existência fantástica fica mais forte com o termo bem-estar. A
definição não nos ajuda a entender o que é bem-estar. Será a mesma coisa que estar bem?
Considerando o sentido da definição como um todo, parece-nos que estar bem e bem-estar
não são sinônimos, visto que estar bem não exclui ter alguma doença ou alguma dor no
sentido filosoficamente trágico do termo, de dores da vida.
Um terceiro ponto que nos parece questionável na definição da OMS é a distinção
feita entre físico, psíquico e social. Porém, este não é um problema apenas dessa definição.
Nenhuma das taxas que apresentamos diz respeito ao aspecto psíquico da vida ou da saúde.
As que abordam a questão social a reduzem à classe social, visto que medem basicamente
renda e acesso a serviços públicos. Tanto os atributos psíquicos e sociais (estes entendidos
como as relações sociais, o sentimento de pertencimento a um grupo, a rede de apoio social
de um indivíduo, etc) são desconsiderados na prática de medição de saúde, assim como, nas
tentativas de definição do objeto saúde. No caso da definição da OMS, a segmentação da
saúde em partes, físico, mental e social, expressa e ratifica o olhar especializado que o
campo da saúde tanto diz combater. A idéia de transdisciplinaridade em saúde é
incompatível com uma definição de saúde que não integre esses aspectos e não considere o
ser humano uma unidade somatopsíquica e relacional. Segre & Ferraz (1997) fazem a
seguinte crítica à definição da OMS:
54
“A definição de saúde da OMS está ultrapassada porque ainda faz destaque entre o físico, o mental e o social. Mesmo a expressão ‘medicina psicossomática’, encontra-se superada, eis que, graças à vivência psicanalítica, percebe-se a inexistência de uma clivagem entre a mente e o soma, sendo o social também inter-agente, de forma nem sempre muito clara, com os outros dois aspectos mencionados”. (Segre, M. & Ferraz, F. C., 1997:540)
Acreditamos que uma definição operativa e inovadora de saúde deve
necessariamente superar falsas dicotomias como mente-corpo e natureza-cultura. E
considerar como problema de saúde a impossibilidade de um indivíduo sentir-se inteiro e
uno. A respeito desse assunto, discutiremos de maneira efetiva no capítulo dois.
Parece-nos que a definição negativa de saúde desempenha um papel fundamental no
uso de índices, sobretudo os de mortalidade e morbidade, como indicadores de saúde. Há
alguma lógica, ainda que questionável, em, a partir da idéia de saúde como ausência de
doença, medi-la no que seria seu aspecto negativo, a doença. Nesse caso, os índices de
morbidade seriam de alguma maneira indicadores dessa saúde concebida de forma
negativa. Entretanto, a doença não é o pólo oposto da saúde.
A ausência de um referencial teórico consistente, que defina a saúde de maneira
positiva, tem levado pesquisadores e governos a produzirem quantidades imensas de dados
que, apesar de serem úteis para uma série de coisas, não medem saúde, visto que, como
veremos no capítulo 2, a saúde é um valor atribuído ao indivíduo a partir da sua experiência
de viver potentemente. Almeida Filho (1990: 215) parece concordar com essa idéia quando
afirma o seguinte: “o que concretamente existe em uma população não é a morbidade,
doença ou saúde, mas sim sujeitos doentes ou sadios, membros dos grupos considerados”.
55
Portanto, é necessário redefinir o conceito de saúde de maneira a abarcar e dar
ênfase à experiência de viver, para somente então construirmos critérios e indicadores dessa
saúde redefinida.
Parece-nos que Canguilhem e Winnicott podem ser de grande serventia neste
momento, pois são autores que relacionam saúde à experiência de viver e que a definem
como a capacidade de ser criativo, espontâneo, de criar soluções para melhor viver e extrair
algum prazer da vida mesmo quando acometido por alguma enfermidade ou limitação.
56
CAPÍTULO II
REDEFININDO SAÚDE A PARTIR DE CANGUILHEM E
WINNICOTT
2.1 A normatividade como modelo de saúde para Canguilhem
Canguilhem em sua tese de doutorado O Normal e o Patológico discute a diferença
entre os fenômenos da saúde e os fenômenos patológicos, argumentando que há diferenças
qualitativas entre os primeiros e os segundos. Esse debate se dá em contraposição à
perspectiva de Broussais, mais tarde defendida por Auguste Comte e Claude Bernard, de
que o patológico seria uma variação, uma diferença quantitativa do normal, entendido como
saúde. Segundo Canguilhem (2002), para Broussais, a doença seria uma perturbação
anatômica ou funcional dos tecidos de forma a produzir uma variação, para mais ou para
menos, da excitação normal. Neste sentido, a condição de saudável estaria próxima à idéia
hipocrática de equilíbrio, aqui entendido como o equilíbrio do meio interno, do organismo,
que deve funcionar num estado ótimo, nem hiperexcitado tampouco deprimido.
A tese da homogeneidade entre saúde e estado patológico é retomada e reforçada
por Claude Bernard ao afirmar que:
“A saúde e a doença não são dois modos que diferem essencialmente [...]. É preciso não fazer da saúde e da doença princípios distintos, entidades que disputam uma à outra o organismo vivo [...]. Na realidade, entre estas duas maneiras de ser há apenas diferenças de grau: a exageração, a desproporção, a desarmonia dos fenômenos normais constituem o estado doentio”. (Bernard apud Canguilhem, 2002: 48-49)
57
Esta é uma idéia ainda bastante presente nos dias de hoje e que parece apoiar-se na
compreensão mecânica do funcionamento do corpo formulada por Descartes. Sendo o
corpo uma máquina, a diferença entre o funcionamento correto ou esperado dessa máquina
– a saúde – e o mau funcionamento – o estado patológico – seria uma questão de regulação,
de equilíbrio, de ajuste dos seus componentes ou funções. Essa idéia bastante
contemporânea pode ser encontrada, por exemplo, no modelo computacional da mente,
muito utilizado pelas neurociências e pela psicologia cognitiva. Como nos diz Canguilhem:
“Quase sempre procura-se, a partir da estrutura e do funcionamento da máquina já constituída, explicar a estrutura e o funcionamento do organismo; mas raramente procura-se compreender a construção mesma da máquina a partir da estrutura e do funcionamento do organismo” (Canguilhem, 1975: 101)
De fato, é curioso utilizarmos o funcionamento da máquina, criação humana, para
explicar o funcionamento do seu criador. Entretanto, essa compreensão mecânica do
funcionamento orgânico serve fortemente para sustentar a tese da homogeneidade entre
saúde e estado patológico. Afinal, não existe adoecimento da máquina, o que há é uma
desregulação do seu funcionamento esperado. Ou nas palavras de Canguilhem (1990:21)
“não há a doença da máquina, pois o fato é que não há a morte da máquina”. Nessa
perspectiva mecânica, conhecer o ponto ótimo do funcionamento da máquina humana é
fundamental para reconhecer os defeitos assim que eles surgirem. A fisiologia e a anatomia
são, em parte, expressões desse desejo de conhecer os padrões de funcionamento do
organismo-máquina e estabelecer de maneira objetiva o normal e o anormal, a desregulação
do corpo humano.
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Para uma máquina, funcionar em seu estado ótimo ou funcionar precariamente é
apenas uma questão de nível de regulação dos seus componentes e funções. As máquinas
não são dotadas de subjetividade; logo, para elas, tudo que se passa é indiferente. O
desgaste das engrenagens provocado pelo atrito de uma peça com outra é normal, o
superaquecimento que pode ocorrer também é normal do ponto de vista da termodinâmica.
Mesmo na natureza não há fenômenos anormais. Uma célula hospedar um vírus é
absolutamente banal do ponto de vista da biologia, um asteróide se chocar com algum
planeta também é um fenômeno bastante vulgar na perspectiva do cosmos. Entretanto, do
ponto de vista humano todos esses fenômenos ganham significado, ganham valor. Se para a
natureza uma célula hospedar um vírus é algo corriqueiro e sem importância, para nós é
motivo de completa reformulação da maneira de viver se o vírus for o HIV e a célula for
nossa. Logo, a diferença entre estar saudável ou enfermo não é definida apenas pelo nível
de resposta imunológica do organismo infectado, mas pela qualidade da experiência de
estar infectado. A pessoa com aids se vê obrigada a modificar sua maneira de viver. Isto
não significa que ela não possa viver bem, mas o fato é que sua vida será diferente quando
comparada com o período em que ela não estava infectada. Viver com ou sem aids são
experiências qualitativamente distintas que dependem apenas em parte da variação
quantitativa de médias biométricas. É neste sentido que Canguilhem discorda da tese
bernardiana, de origem broussainiana, de homogeneidade entre saúde e estado patológico.
Nas palavras do autor:
“Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação não são, em si mesmas, patológicas. Elas exprimem outras normas de vida possíveis. Se essas normas forem inferiores – quanto à estabilidade, à fecundidade e à variabilidade da vida – às normas específicas anteriores, serão chamadas patológicas. Se eventualmente, se
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revelarem equivalentes – no mesmo meio – ou superiores – em outro meio – serão chamadas normais. Sua normalidade advirá de sua normatividade. O patológico não é a ausência de norma biológica, é uma norma diferente, mas comparativamente repelida pela vida”. (Canguilhem, 2002: 114)
E ainda:
“Não há indiferença biológica. Pode-se, portanto, falar em normatividade biológica. Há normas biológicas sãs e normas patológicas, e as segundas não são da mesma natureza que as primeiras”. (Canguilhem, 2002: 99)
Os trechos acima demonstram bem a virada paradigmática que Canguilhem propõe.
O autor recusa a idéia de que o estado patológico seja um caos orgânico e também
estabelece uma sutil, porém importante diferença entre doença e estado patológico. A
doença, ainda que indesejável e de alguma maneira restritiva, somente teria um caráter
patológico quando estabelecesse uma norma de vida que fosse muito restritiva; por
exemplo, a ponto de não permitir ao organismo em questão viver em outro meio diferente
do exigido por sua doença ou, quando ainda mais grave, se opusesse de tal maneira à vida
que a extinguisse. O estado patológico seria não um caos, mas uma organização
extremamente rígida que reduz a possibilidade de vida a uma situação estritamente
controlada. Neste sentido, entendemos que uma doença não é necessariamente patológica
em si mesma. O caráter patológico depende do tipo de doença, é verdade, mas, sobretudo
da relação do indivíduo acometido pela doença com o seu meio. Em outras palavras, de
quão restritiva é a doença em questão.
Ao dizer que não há indiferença biológica, o autor chama atenção para a sua
concepção do que é saúde. Na perspectiva canguilhemiana, saúde e enfermidade (estado
patológico) seriam valores vivenciados na experiência pelos próprios viventes (humanos ou
60
não). Nessa redefinição de saúde e enfermidade, a primeira passa a ser entendida como o
valor preferido pelo ser vivo, enquanto a segunda seria uma reação às injúrias
eventualmente sofridas pela vida. Nas palavras do autor:
“O verbete do Vocabulaire philosophique parece supor que o valor só pode ser atribuído a um fato biológico por ‘aquele que fala’, isto é, evidentemente, o homem. Achamos, ao contrário, que, para um ser vivo, o fato de reagir por uma doença a uma lesão, a uma infestação, a uma anarquia funcional, traduz um fato fundamental: é que a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível, que a vida é polaridade e por isso mesmo, posição inconsciente de valor, em resumo, que a vida é, de fato, uma atividade normativa”. (Canguilhem, 2002: 96)
Num outro momento, Canguilhem é ainda mais incisivo ao defender a idéia de que
os seres vivos atribuem, de alguma maneira, valor à experiência de viver. E essa valoração
da vida se daria na primazia da experiência, indiferente às leis propostas pelas ciências da
vida. Canguilhem nos diz:
“Achamos que a vida de qualquer ser vivo, mesmo que seja uma ameba, não reconhece as categorias de saúde e doença, a não ser no plano da experiência, que é, em primeiro lugar, provação no sentido afetivo do termo, e não no plano da ciência. A ciência explica a experiência, mas nem por isso a anula”. (Canguilhem, 2002: 160)
O autor, ao contrário do que se possa imaginar, não está desqualificando as
contribuições das diversas ciências para a compreensão da vida, mas nos alertando para os
seus limites, para o fato de que a ciência trabalha com reduções e generalizações – como,
aliás, não poderia ser diferente – e que entre o real e a abstração científica há a experiência
de cada ser vivo. Talvez seja este o motivo pelo qual Canguilhem tão repetidas vezes
destaca a importância da experiência para se distinguir a saúde do estado patológico. Ao
colocar o organismo, ou no caso dos seres humanos, o indivíduo como parâmetro de sua
própria saúde, o autor dá uma importância secundária às médias biométricas, pensando-as
talvez como referências gerais, e recusa definitivamente a idéia de que saúde e doença
61
seriam diferenças de grau de um mesmo fenômeno. Tomando como ponto de referência a
experiência de viver, saúde e enfermidade são fenômenos qualitativamente distintos, pois
estar saudável ou não implica em modos de vida diferentes. Isto equivale a dizer que basta
ter se sentido enfermo uma vez para saber o quão diferente é a enfermidade da saúde, elas
são coisas diferentes.
A crítica de Canguilhem à tese de Claude Bernard fica ainda mais clara na análise
de Martins (2005):
“Dito de outra maneira, aos olhos de Canguilhem, é falso afirmar que entre o normal e o patológico existe uma diferença de grau de uma mesma constituição fisiológica. Não é falso que a doença não vem de um fora da natureza, não é falso que entre tecidos normais e tecidos alterados há uma diferença quantitativa, o que é falso é concluir que existe uma correspondência entre esta alteração e o estado patológico, assim como entre uma certa normalidade e o estado saudável. Resumindo, não existe, nos quer mostrar Canguilhem, tecido doente ou tecido são, senão metaforicamente, mas esta metáfora é perigosa porque pode conduzir a pensar que a saúde e a doença se referem ao estado de um órgão ou função e não ao estado do indivíduo, na complexidade de sua experiência efetiva. A experiência da saúde, poderíamos dizer, a capacidade ou a potência de agir, pode bem coexistir com as alterações ou graus fisiológicos fora da normalidade, estes presos ao sentido de média ou de um tipo ideal.” (Martins, 2005: 7)
O que vemos a partir da própria obra de Canguilhem e da análise acima de Martins
é que o autor francês recusa não apenas a tese da homogeneidade entre os fenômenos da
saúde e da patologia, como também recusa a identidade entre normal e saúde, visto que a
idéia de normalidade depende de um valor que é anterior e, portanto, externo ao organismo
real. Tomar o normal, seja a média ou o tipo ideal, como saúde implica em desejar que um
determinado organismo se comporte da maneira que ele supostamente deveria se
comportar, que ele opere segundo aquilo que as ciências naturais e da vida estabeleceram
como o correto, seja por medida ou por especulação. Identificar o normal à saúde é, em
62
última análise, fazer uma moral do corpo ou uma verdade do corpo (Canguilhem, 1990).
Em contraposição, Canguilhem propõe a normatividade como expressão da saúde e a
capacidade de ser normativo como o estado saudável.
Normatividade é para Canguilhem a capacidade que o organismo tem de estabelecer
novas e melhores normas de vida. Também deve ser entendida como a capacidade de ser
flexível frente às exigências do meio, sem que isso signifique adaptação total. Um
organismo extremamente adaptado, a ponto de somente sobreviver ou viver bem sob
determinadas condições, é um organismo que perdeu a sua capacidade de ser normativo e,
portanto, teve sua saúde diminuída ou, mesmo podemos dizer, está enfermo. Canguilhem
define normativo e normatividade da seguinte maneira:
“Em filosofia entende-se por normativo qualquer julgamento que aprecie ou qualifique um fato em relação a uma norma, mas essa forma de julgamento está subordinada, no fundo, àquele que institui as normas. No pleno sentido da palavra, normativo, é o que institui as normas. E é neste sentido que propomos falar sobre uma normatividade biológica”. (Canguilhem, 2002: 96-97)
Como vemos, a normatividade é capacidade de instituir normas, de preferir uma a
outra norma de vida, de valorar a experiência que se tem ao viver. Entretanto, e esse é um
ponto fundamental para esclarecer a maneira como interpretamos o pensamento de
Canguilhem, não nos parece correto acreditar que tendo a experiência do vivente, do
organismo, no centro da definição do que é saúde e enfermidade, a questão da saúde ficaria
reduzida ao julgamento do organismo. Ou seja, a questão da definição da saúde não poderia
ser uma enquete à qual o organismo responderia sim ou não à pergunta: você tem saúde?
Esse erro é fruto de uma compreensão baseada no princípio da racionalidade do
julgamento. Princípio esse refutado pelo próprio Canguilhem nas citações apresentadas nas
63
páginas 53 e 54 desta dissertação. Mas adiante retomaremos este debate. Por ora, nos
parece suficiente ressaltar a idéia de que o julgamento envolvido na normatividade não é a
mesma coisa que opinar sobre si mesmo.
O que nos parece fundamental na normatividade é a idéia de que ter saúde é poder
ser flexível, criativo ou inventivo, no sentido de ser capaz de produzir novas normas de
vida, de se reinventar e reinventar o mundo de alguma forma. Como exemplo disso que
Canguilhem chama de normatividade, podemos pensar nas pessoas que superam
deficiências físicas ou mentais e inventam maneiras próprias de se locomover, trabalhar e
construir lugares sociais. Podemos citar ainda as pessoas que convivem com alguma doença
crônica, mas que apesar da doença vivem bem e se sentem potentes, como muitas pessoas
com alergia, diabetes, hipertensão, aids, etc.
A compreensão que Canguilhem tem acerca da saúde não é um elogio à doença,
porém, tampouco é uma ficção científica em que ter saúde é imitar organicamente todos os
tratados de fisiologia e anatomia. Uma das inovações do pensamento do autor francês é
incluir a doença nos fenômenos normais, no sentido de comuns, da vida. A doença não é o
pólo oposto da saúde na perspectiva canguilhemiana, ela é um modo de vida diferente em
relação à saúde. Um modo que pode inclusive ser compatível com a vida. O que o autor
considera anormal, incomum, é viver sem jamais adoecer. Quanto a isso, Canguilhem nos
fala o seguinte: “Quando se diz que a saúde continuamente perfeita é anormal, expressa-se
o fato da experiência do ser vivo incluir, de fato, a doença”. (Canguilhem, 2002: 107)
Afirmar a doença como um aspecto normal da vida, aprová-la, no sentido
nietzschianamente trágico do termo, é colocar em questão a idéia, subjacente às definições
negativas de saúde, que se pode ou, ao menos, se deveria viver sem doença; que a vida
64
saudável seria uma vida asséptica, controlada de forma a não correr riscos. Talvez não seja
à toa que a noção de risco tenha um papel fundamental na epidemiologia e na construção de
indicadores de saúde. A questão que fica em aberto é: pode-se viver livremente sem correr
riscos, sobretudo, o risco de adoecer? Canguilhem parece responder que não ao considerar
a saúde uma salvaguarda do organismo, uma margem de tolerância às agressões do meio
que permite o organismo se expandir, se desenvolver, arriscar:
“O que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas”. (Canguilhem, 2002: 158)
E ainda:
“A saúde é uma margem de tolerância às infidelidades do meio. [...] Estar em boa saúde é poder cair doente e se recuperar; é um luxo biológico”. (Canguilhem, 2002: 159-160)
A normatividade proposta por Canguilhem se afasta definitivamente da idéia de
equilíbrio, estabilidade, adaptação e nos apresenta uma perspectiva dinâmica da saúde. Ser
saudável é ter a capacidade contínua de modificar-se, expandir-se no mundo, mesmo que
isso implique em eventualmente adoecer.
Com o conceito de normatividade, o autor retira da biologia o monopólio
epistemológico de definição do que é saúde. Da perspectiva canguilhemiana, a saúde
extrapola o campo da fisiologia e anatomia, pois deixa de ser determinada pelas médias
biométricas, por padrões estritamente mensuráveis e passa a ter no centro da sua definição a
experiência do vivente. Sendo a saúde uma qualidade da vida, um valor, torna-se
impossível defini-la apenas à luz dos saberes biomédicos, definir saúde passa a ser uma
tarefa de diversos saberes, a fim de contemplar seus aspectos sociais e psíquicos. Nas
palavras do autor:
65
“O homem, tendo prolongado seus órgãos por meio de instrumentos, considera seu corpo apenas como um meio de todos os meios de ação possíveis. É, portanto, além do corpo que é preciso olhar, para julgar o que é normal ou patológico para esse mesmo corpo”. (Canguilhem, 2002: 162)
2.1.1 O risco de uma compreensão solipsística da saúde
Ao tomar o vivente como parâmetro de sua própria saúde, poderíamos pensar que
caberia somente a ele a avaliação de sua saúde. Isto implicaria afirmar que saúde seria uma
questão de domínio privado e, portanto, inacessível pela experiência de outros, visto que
somente cada indivíduo teria acesso direto a sua experiência de estar vivo e à qualidade da
vida que se vive. Uma das possíveis conseqüências da adoção dessa perspectiva seria a
extinção de qualquer saber sobre saúde. Todas as teorias e práticas em saúde tornar-se-iam
obsoletas, pois todas, em maior ou menor grau, são baseadas numa concepção coletiva. Da
mesma maneira como não há ciência do caso isolado, não há terapêutica do caso particular,
ainda que a qualidade de qualquer tratamento terapêutico seja diretamente proporcional a
sua capacidade de adaptação às características e necessidades singulares do vivente em
tratamento.
Dessa forma, a adoção de uma compreensão solipsística da saúde representaria a
rejeição de todas as conquistas da humanidade nesse campo. Vacinas, acupuntura,
transplantes, fitoterapia, saneamento, psicanálise, próteses, farmacologia são alguns
exemplos de como a produção coletiva de saber sobre o tema saúde tem ajudado a
humanidade a manter e recuperar a saúde, além de se prevenir de algumas doenças. É
igualmente verdade que o conhecimento produzido pelo homem tem provocado efeitos
desastrosos, inclusive a diminuição da saúde e o controle da vida. Porém, nos perguntamos
se a “descoletivização” da saúde teria necessariamente como conseqüência o aumento da
66
potência dos indivíduos. Ou se, por outro lado, ela não produziria uma radical
individualização da vida a ponto de corrermos o risco de negligenciar a própria saúde
individual e coletiva em nome de uma suposta soberania dos indivíduos.
Canguilhem (1990), em sua conferência12 intitulada A saúde, conceito vulgar e
questão filosófica, defende a tese de que a saúde seria algo do domínio privado dos
indivíduos, algo tão da ordem de um solipsismo, que não haveria cabimento em falar de
ciência da saúde, visto que não há ciência do particular. O fundamento dessa posição do
autor parece estar na leitura que ele faz de Merleau-Ponty, e que o leva a supor “[...] a
existência de um lado do corpo humano vivo ‘inacessível aos outros, acessível somente ao
seu titular’”. (Merleau-Ponty apud Canguilhem, 1990:31) Com essa suposição, Canguilhem
parece se afastar ou recusar qualquer perspectiva científica em relação ao objeto saúde. O
autor é categórico ao afirmar que a “saúde não e um conceito científico, é um conceito
vulgar. Não quero dizer trivial, mas simplesmente comum, ao alcance de todos”.
(Canguilhem, 1990: 14) Canguilhem radicaliza um aspecto da normatividade, proposta por
ele quarenta e cinco anos antes da citada conferência, a capacidade que um ser vivo tem de
preferir uma ou outra condição de vida. O autor parece reduzir a saúde a uma mera questão
de opinião. Neste sentido, cada indivíduo humano seria literalmente juiz de sua saúde. Não
haveria nenhum aspecto objetivo ou mensurável na saúde. Canguilhem transforma a saúde
num valor humano, toma partido de maneira antropocêntrica em relação ao tema de tal
forma que não poderíamos mais falar em saúde dos animais, das plantas13, ou ainda saúde
do bebê, tampouco poderíamos falar simplesmente em normatividade biológica, mas
12 Proferida em 1988 e publicada em 1990. 13 Crítica inclusive feita por Boorse para justificar sua proposta de radical matematização da saúde. (ver páginas 43 - 45 desta dissertação)
67
apenas em normatividade do organismo humano, visto que para cada modificação orgânica
corresponderia um juízo de valor. Esta individuação da saúde seria o motivo da
impossibilidade de sua mensuração. Caponi (1997) resume da seguinte maneira esta nova
proposição de Canguilhem:
“Podemos dizê-lo de outro modo. A saúde não pertence à ordem dos cálculos, não é o resultado de tabelas comparativas, leis ou médias estatísticas e, portanto, não pertence ao âmbito dos iniciados. É, ao contrário, um conceito que pode estar ao alcance de todos, que pode ser enunciado por qualquer ser humano vivo”. (Caponi, 1997: 289)
Caponi não apenas resume o pensamento de Canguilhem como parece corroborar a
proposta do autor francês ao justificar a radical individualização da saúde da seguinte
maneira:
“Se nos negarmos a aceitar a associação corpo-mecanismo [feita por
Descartes] e pensarmos que para uma máquina seu estado de funcionamento não é sua saúde e que sua regulação nada tem a ver com a enfermidade, então devemos excluir do conceito de saúde as exigências de cálculo (contabilidade) que pouco a pouco absorveram seu sentido individual e subjetivo”.14 (Caponi, 1997: 290)
Embora Canguilhem localize a saúde no âmbito da experiência vivencial,
acreditamos que a posição adotada pelo autor e apoiada por Caponi tem alguns problemas.
O primeiro é a supervalorização da capacidade de julgamento dos indivíduos. Ao supor que
são os indivíduos, e somente eles, que devem dizer se têm ou não saúde, o autor privilegia a
razão e a consciência, o que neste momento o aproxima mais de Descartes do que o
contrário, em detrimento dos atributos inconscientes da vida mental que também interferem
na formação de juízos de valor. A psicanálise nos ensina que é absolutamente possível um
indivíduo desejar algo que lhe faz mal sem que ele tenha consciência disto. A mídia, o
marketing, a publicidade contribuem fortemente para que as pessoas valorem o mundo a
14 O comentário entre colchetes e em itálico é nosso.
68
partir de valores que são externos a elas e que, na maioria das vezes, em nada contribuem
para o seu aumento de potência, sua saúde. Por exemplo, o modelo de corpo exibido pela
mídia como bonito, sensual e saudável leva um número enorme de pessoas, sobretudo
jovens, a cometer excessos durante o treinamento, a ingerirem, sem acompanhamento
médico, fórmulas milagrosas para o emagrecimento e até mesmo a usarem esteróides
anabolizantes. É a mesma mídia que estimula, ao contrário do exemplo anterior, um certo
hedonismo expresso no consumo de alimentos de baixíssimo valor nutritivo e alto valor
calórico em nome de um suposto prazer. Podemos dizer ainda que alguém pode estar tão
adoecido que pode desejar e achar bom usar drogas em excesso e dizer que está saudável.
Logo, acreditar que a consciência individual é o melhor juiz para definir a saúde é correr o
risco de propor uma anti-saúde ou, ainda mais grave, promover uma desresponsabilização
dos governos em relação às medidas relativas ao tema.
Um segundo problema é a desnaturalização do homem. Será que apesar da
singularidade de cada indivíduo não há nada que nos seja comum, inclusive em relação à
saúde? Afinal, não constituímos uma espécie? Canguilhem contribui enormemente com a
questão da saúde ao incluir a experiência dos seres vivos na sua definição. Entretanto, dizer
que há algo de singular na saúde, afirmar que saúde não se reduz aos seus aspectos
biológicos, e que mesmo estes não devem ser tomados como absolutos invariáveis, não
significa abrir mão do que a ciência tem de positivo para oferecer. Apontar os limites da
ciência e dos seus instrumentos não deve ser entendido como uma negação da ciência.
Atribuir a ela os erros cometidos pela humanidade é dotá-la de uma subjetividade que ela
não tem. A ciência não é boa nem ruim, ela não quer controlar ou lucrar. Quem é bom e
ruim, quem deseja controlar a natureza, lucrar não importa de que maneira é o homem. E
69
isso fica claro em determinadas orientações ideológicas que em nome da saúde se propõem
controlar a vida das coletividades, como bem denuncia o autor no trecho a seguir:
“O corpo é um produto na medida em que sua atividade de inserção num meio característico, seu modo de vida escolhido ou imposto, esporte ou trabalho, contribuem para moldar seu fenótipo, isto quer dizer modificar sua estrutura morfológica e, portanto, singularizar suas capacidades. É aqui que um certo discurso encontra ocasião e justificativa. Esse discurso é o da Higiene, disciplina médica tradicional, doravante recuperada e travestida por uma ambição sócio-político-médica de regular a vida dos indivíduos”. (Canguilhem, 1990: 23-24)
A crítica canguilhemiana à Higiene nos parece perfeita. Porém, ela não deve ser
tomada como uma crítica à ciência de maneira geral, apesar da conferência do autor dar
margem a esse tipo de interpretação. Não devemos confundir Higiene com Saúde Pública,
menos ainda com Saúde Coletiva. O fato de existirem saberes com ambição de regulação
da vida coletiva não significa que todo saber sobre saúde tenha a mesma ambição. Logo,
não nos parece que seja o melhor argumento para justificar a adoção de uma concepção
solipsística da saúde a suspeita de que toda e qualquer contribuição científica, ou mesmo
popular de base coletiva, acerca da saúde, tenha como intuito ou resultado o controle das
individualidades.
Apesar de localizar o conceito de saúde no campo da opinião pessoal, o autor parece
reconhecer o risco de se cair numa moral da saúde, ou uma moral naturista que teria na sua
base o que Canguilhem chama de saúde selvagem, entendida como uma saúde em estado
bruto, sem elaboração intelectual. Ou seja, como se saúde fosse alguma coisa em si mesma
e não uma construção, inclusive racional. O naturalismo e os diversos tipos de
vegetarianismo são exemplos de propostas de vida, de uma certa ética pessoal, que se
tomadas como a nova verdade da saúde, tornam-se morais e até mesmo geram
70
comportamentos caricaturais ao pregarem uma naturalização, no sentido de uma
descivilização. É como se para viver integrados à natureza tivéssemos que deixar de ser
quem somos para virarmos selvagens. Nas palavras de Canguilhem:
“Essa defesa e ilustração da saúde selvagem privada, por desconsideração da saúde cientificamente condicionada, tomou todas as formas possíveis, inclusive as mais ridículas”. (Canguilhem 1990: 34)
Nesse trecho, já no final da transcrição da conferência, Canguilhem parece
relativizar suas próprias idéias ao considerar o risco de se forjar um conceito de saúde que
não seja fruto de reflexão crítica e que, inclusive, não tenha utilidade prática para a
resolução de problemas coletivos. Como já dissemos, tão grave quanto reduzir a vida a seus
aspectos biológicos, é reduzi-la ao seu aspecto cognitivo, no caso dos humanos. É, portanto,
necessário construir um conceito de saúde que leve em consideração a complexidade da
vida, a coletividade e que seja operativo, que possa de alguma maneira contribuir para as
diversas práticas clínicas, para a formulação de políticas públicas e para a construção de
instrumentos de aferição dessa saúde redefinida.
Para tanto, tomaremos como contribuição para a nossa formulação do que é saúde,
apresentada no item 3 deste capítulo, a normatividade proposta por Canguilhem em O
normal e o patológico. Sempre que nos referirmos à normatividade, será em relação àquela
entendida como a capacidade orgânica de ser flexível frente às exigências do meio.
No item seguinte apresentaremos a concepção de saúde do pediatra e psicanalista
inglês Donald Winnicott. Enquanto Canguilhem discutiu saúde do ponto de vista do
organismo, Winnicott privilegiará os aspectos psíquicos, sem que isto implique em
desconsiderar a corporeidade.
71
2.2 Criatividade e espontaneidade: a concepção winnicottiana de saúde
Winnicott é um autor que dedicou a maior parte de sua vida ao trabalho clínico e
sua obra reflete seu percurso profissional. Conceitos diretamente relacionados com o
manejo clínico e com a observação do desenvolvimento de crianças com as mais variadas
histórias de vida dão à psicanálise de Winnicott um vigor que o triângulo edipiano,
proposto por Freud, parece ter perdido na contemporaneidade. Uma importante diferença
entre Freud e Winnicott é o modelo de explicação do desenvolvimento humano. Enquanto o
primeiro teoriza em termos do desenvolvimento da energia sexual, a libido, e estabelece
como etapas desse desenvolvimento as fases oral, anal e fálica que teriam como desfecho a
escolha do objeto sexual ao fim do complexo de Édipo (por volta dos seis anos de vida), o
segundo procura compreender o desenvolvimento humano a partir do cuidado que o bebê
recebe desde os primeiros dias e meses de vida e, portanto, da relação da pessoa com o
ambiente.
Como veremos, para Winnicott a saúde é o resultado de um desenvolvimento
satisfatório, é uma conquista do indivíduo a partir da capacidade de se sentir uma pessoa
inteira, espontânea e criativa. Podemos separar, apenas para fim de apresentação teórica, o
desenvolvimento proposto por Winnicott em três momentos: integração, personalização e
realização ou relação de objeto. Esses três momentos apesar de diferentes estabelecem entre
si uma relação de complementaridade e simultaneidade. Tudo que favorece a integração,
favorece também a personalização e a realização.
O termo integração refere-se à constituição do ego, ao surgimento gradual, durante
o cuidado provido pela mãe, de uma delimitação entre o bebê e o mundo. Winnicott (1983:
72
55) define ego da seguinte maneira: “pode-se usar a palavra ego para descrever a parte da
personalidade que tende, sob condições favoráveis, a se integrar em uma unidade”.
Para esse autor, todo bebê que não tem lesão cerebral traz consigo a capacidade de
desenvolver-se satisfatoriamente. Entretanto, esse desenvolvimento depende de cuidados
adequados providos pelo ambiente que cerca o bebê. Ambiente no sentido winnicottiano
não é apenas o espaço físico, mas o que ele chama de "mãe-ambiente". Ou seja, uma mãe,
biológica ou substituta, que se adapte ativamente às necessidades de seu bebê. Por adaptar-
se ativamente devemos entender a habilidade que as mães saudáveis têm de prover
cuidados no momento certo, quando o bebê demanda, e na quantidade adequada, o
necessário para satisfazer o bebê. Caso a relação mãe-bebê seja suficientemente boa, o bebê
terá as condições necessárias para se desenvolver. Nos termos de Winnicott:
"Podemos dizer que o ambiente favorável torna possível o progresso continuado dos processos de maturação. Mas o ambiente não faz a criança. Na melhor das hipóteses possibilita à criança concretizar seu potencial". (Winnicott, 1983: 81)
Apesar da tendência inata a desenvolver-se, o bebê no início de sua vida é
absolutamente dependente do cuidado alheio. Trata-se da incapacidade do bebê de dar
conta de suas necessidades, nesse caso necessidades somáticas como a fome. No início de
sua vida, o bebê não está integrado, não é uma unidade, mas um ser indiferenciado do
ambiente. Do ponto de vista do bebê, tudo que acontece – da sensação de fome à atenção a
essa necessidade – vem dele e é por ele criado. Na verdade a própria categoria "ele" não faz
sentido ainda. Neste momento inicial de sua vida, o bebê não está maduro o suficiente para
descobrir que tem bordas, limites de um corpo que é seu e separado de tudo aquilo que o
cerca. A aquisição de um senso de unidade será resultado dos cuidados ofertados pela mãe-
73
ambiente. Nesse estágio, o mundo e o bebê são uma coisa só e é desejável que seja assim.
O seio que alimenta a criança é uma extensão dela, ou melhor, uma criação do bebê. O
lactente, como o chama Winnicott, precisa ter essa experiência ilusional de criar o mundo e
cabe à mãe em sua adaptação ativa garantir essa experiência ao bebê. Como diz Winnicott
(2000: 327), “a mãe, por adaptar-se quase cem por cento, proporciona ao bebê a
possibilidade de ter a ilusão de que o seio é uma parte dele”.
É pela repetição dessa adaptação da mãe ao seu bebê que ela introduz a
exterioridade. Paradoxalmente, é permitindo que o bebê tenha uma experiência de
onipotência que a mãe vai apresentando ao seu filho a existência de duas polaridades, a
interioridade e a exterioridade, ou o “eu” e tudo aquilo que é não-eu. Nas palavras de
Winnicott:
"A adaptação da mãe à necessidade do bebê quando suficientemente boa, dá a este a ilusão de que existe uma realidade externa que corresponde à sua capacidade de criar. Dito de outro modo, há uma superposição entre o que a mãe fornece e o que o bebê é capaz de conceber. [...] O bebê concebe o seio somente na medida em que um seio poderia ser criado ali e então". (Winnicott, 2000: 328)
Ao ser cuidado de modo a ter observado seu direito à onipotência, o bebê tem a
experiência do que Winnicott chama de continuar existindo. Isto significa não sofrer
nenhuma retaliação pela sua espontaneidade, por exemplo, se movimentar no berço da sua
própria maneira, mamar no momento em que sentir fome, ter suas necessidades atendidas
no momento certo. Essa vivência onipotente que preserva a espontaneidade do bebê é a
origem da capacidade de ser espontâneo (isto não é a mesma coisa que ser inconveniente)
ao longo de toda a vida e está na base da criatividade. Ao integrar-se, o bebê começa a
poder suportar uma também gradual desadaptação da mãe. Quanto a isto o autor nos diz:
74
“É parte do repertório da grande maioria das mães prover uma desadaptação gradativa, e isto está muito bem orientado para o rápido desenvolvimento que o lactente revela. Por exemplo, há o começo da compreensão intelectual, que se desenvolve como uma vasta extensão de processos simples, como o reflexo condicionado. (Imaginem um lactente esperando a alimentação. Vem o tempo em que o lactente pode esperar uns poucos minutos porque os ruídos na cozinha indicam que a comida está prestes a aparecer. Ao invés de ficar simplesmente excitado pelos ruídos, o lactente usa esses novos itens para se capacitar a esperar." (Winnicott, 1983: 83)
A capacidade de esperar pela mãe é uma conquista do bebê que tem a sua
dependência absoluta agora relativizada. A partir desse momento ele começa a desenvolver
alguns recursos mentais15 para suportar a desadaptação da mãe. Entretanto, como já
dissemos, o bebê só desenvolve essa capacidade se pôde viver plenamente sua onipotência.
Caso os cuidados dispensados ao bebê sejam insuficientes, ou nos termos de Winnicott, se
o ambiente for intrusivo, por excesso ou negligência, o bebê terá que desenvolver
precocemente atributos mentais para dar conta da intrusão sofrida. Isso significa
desenvolver uma mente cuja experiência será separada do corpo. Uma das conseqüências
da ocorrência de problemas na integração, aliás, é a psicose.
A integração é um elemento fundamental para a concepção de saúde de Winnicott.
Tornar-se uma unidade, no sentido de diferenciar-se dos objetos não-eu é condição para a
aquisição futura de um senso de self, de inteireza, e, conseqüentemente, de um devir
criativo e potente. Ter vivido a onipotência de maneira satisfatória facilitará o bebê crescer
sem medo de sofrer retaliações à sua espontaneidade por parte do ambiente. Isto não 15 A capacidade de esperar pela mãe indica que o bebê está usando a intelectualidade. Essa intelectualidade não é uma racionalidade (no sentido normal de razão), um entendimento, mas uma ação imaginativa a partir de experiências sensoriais. Tampouco é um reflexo condicionado puro, um "bebê pavloviano", afinal, não se trata de uma questão de arco reflexo, um estímulo (sons da cozinha) que provocam uma resposta (por exemplo, o bebê salivar). Estamos falando de algo mais sutil que está relacionado ao que Winnicott chama de psicossoma, uma unidade somatopsíquica que permite pensarmos em uma experiência intelectual não-racional, uma intelectualidade pré-simbólica apoiada na experiência corpórea.
75
significa ser ingênuo a ponto de supor que o mundo é sempre amistoso e que não há nada
com que se preocupar. Entretanto, confiar no ambiente significa não ter uma vivência
persecutória, não acreditar que o mundo é simplesmente hostil e que se está a todo tempo
na iminência de se sofrer uma intrusão tal como acontecia na tenra infância. Neste sentido,
confiar no ambiente e em si mesmo é viver os problemas reais, e não os imaginários frutos
de uma paranóia neurótica ou psicótica, e sentir-se potente para enfrentá-los e superá-los
sempre que possível. A integração é conseqüência de cuidados adequados e, por sua vez,
base do sentimento de confiança. Em relação à integração Winnicott diz o seguinte:
“A integração está intimamente ligada à função ambiental de segurança. A conquista da integração se baseia na unidade. Primeiro vem o 'eu' que inclui 'todo resto é não-eu'. Então vem 'eu sou, eu existo, adquiro experiências, enriqueço-me e tenho urna interação introjetiva e projetiva com o não-eu, o mundo real da realidade compartilhada'" (Winnicott, 1983: 60)
Após a integração, esse momento de delimitação do ego que podemos sintetizar pela
frase “eu existo, sou um e tenho um corpo”, vem a personalização, a acomodação do ego no
corpo, um momento em que o indivíduo passa do “eu tenho um corpo” para o “eu sou o
meu corpo”. Este é o momento teórico em que se dá a consolidação do psicossoma, uma
unidade somatopsíquica divisível apenas no campo teórico. Winnicott (2001: 8) diz que a
personalização é o estágio em que “a psique e o soma já aprenderam a conviver”. Quando
algo dá errado e a personalização não acontece, ocorre o surgimento de uma vida mental
dissociada da corporeidade que lhe seria correspondente. O indivíduo desenvolve uma
mente que tem vida própria e está alojada em algum lugar de um corpo. Winnicott nos
apresenta como exemplo dessa dissociação entre vida mental e existência corporal o caso
de uma paciente psicótica que “em análise deu-se conta que durante a maior parte do tempo
76
ela vivia em sua cabeça, atrás de seus olhos. Enxergava através dos olhos como se fosse
através de janelas, e, portanto não podia saber o que seus pés estavam fazendo" (Winnicott,
2000: 223). A personalização leva o indivíduo a uma vivência integradora dos diferentes
atributos da sua existência, a ter mais do que uma mente e um corpo, mas a ser um
psicossoma.
O psicossoma é talvez um dos mais importantes e inovadores conceitos
winnicottianos. Esse conceito sintetiza o espírito do pensamento desse psicanalista, um
pensamento não dicotômico, que não separa mente e corpo. Para Winnicott, a mente não é
uma entidade, mas uma função somatopsíquica, uma função do psicossoma. Ou seja, a
mente não está em lugar algum, a não ser no indivíduo como um todo. Assim, o pensar não
é uma atividade puramente mental, mas corpórea também, como no exemplo do bebê com
um pensamento pré-reflexivo, sensório, que aguarda a mãe trazer sua refeição. Para o autor,
a mente é “a especialização da parte psíquica do psicossoma” (Winnicott, 2000: 333). Neste
sentido, a personalização bem sucedida faz o indivíduo experimentar mais do que uma
existência egóica, mental, dissociada da corporeidade, mas um sentimento de inteireza, de
self.
Por ser o psicossoma uma unidade e o ego apenas uma experiência mental,
Winnicott desenvolveu um outro conceito para tratar da experiência do indivíduo ser
inteiro, integrado: o conceito de self. Uma definição sintética desse conceito está na nota do
tradutor Marcelo Brandão Cipolla que diz que self é:
"o conceito psicanalítico que inclui o eu (ego) e o não-eu. É a totalidade da própria pessoa. Inclui também o corpo com todas as suas partes, a estrutura psíquica com todas as suas partes, o vínculo com os objetos internos e externos e o sujeito como oposto ao mundo dos objetos". (in: Winnicott, 2001:7, nota de rodapé)
77
A aquisição de um senso de self nos leva ao terceiro momento do desenvolvimento
emocional proposto por Winnicott, a realização ou relação de objeto. Como vemos na
definição de Cipolla, o conceito de self refere-se à experiência de ser uma unidade no
mundo, um indivíduo relacional que tem uma existência somatopsíquica num determinado
tempo e espaço que é anterior a ele, mas ao mesmo tempo, e em algum grau, é por ele
criado. Para esclarecer como se dá a realização é preciso antes apresentar alguns conceitos
como verdadeiro e falso self, objetos transicionais e fenômenos transicionais.
O self pode ser verdadeiro ou falso dependendo da reação ao tipo de ambiente que
acolheu o bebê. O verdadeiro self surge como resultado da espontaneidade do bebê e pela
capacidade da mãe em tolerar e permitir que seu filho seja espontâneo. Isto se dá ao
permitir que o bebê sinta confiança no ambiente, ou seja, que ele vivencie o ambiente como
algo não intrusivo e, como vimos, a ilusão tem papel fundamental nesse processo. É como
se o cuidado suficientemente bom desse um recado ao bebê: seja você mesmo e não tenha
medo disso! Ao vivenciar os impulsos do Id sem retaliações, o lactente tem a possibilidade
de ir se integrando, personalizando, crescendo e se tornar uma pessoa inteira, espontânea e
capaz de lidar com as frustrações inerentes ao viver. Um exemplo de espontaneidade a
partir da confiança no ambiente é a criança na escola que não tem medo de levantar o braço
e tirar uma dúvida com o professor; mesmo que seus colegas zombem.
O falso self por sua vez é uma adaptação ao mundo para que o self verdadeiro não
seja aniquilado. Isto faz com que a divisão radical entre verdadeiro e falso self seja mais
teórica do que prática em relação à saúde. Um indivíduo saudável utiliza falso self nas
relações sociais, afinal não é possível ser espontâneo o tempo todo. Assim, o protocolo
78
social, a polidez e a etiqueta podem ser considerados aspectos de um falso self “saudável”.
Entretanto, existe o falso self patológico, aquele que existe enquanto formação reativa, que
também protege o verdadeiro, mas este último pouco encontra espaço para se manifestar. O
falso self é uma adaptação submissa às exigências do mundo para evitar retaliações que
poderiam ser sentidas como perigosas à frágil integração. Nesse sentido, o indivíduo que
vive a partir de um falso self é quase sempre reativo e pouco espontâneo, ele não se sente
autêntico, criativo e criador do mundo, mas manipulado por este. Segundo Winnicott
(2000:312), “O falso self, desenvolvido com base na submissão, não pode candidatar-se à
independência da maturidade, salvo, quem sabe, a uma pseudomaturidade num ambiente
psicótico”. Porém, muitos falsos self aparentam ser maduros e autênticos. Por exemplo, a
racionalização pode ser um aspecto de falso self. O bebê que não experimenta a ilusão de
criar o seio materno, que é exposto a um ambiente intrusivo, pode desenvolver
precocemente, reativamente, uma intelectualidade para dar conta da negligência materna.
Ou seja, uma criança pequena muito esperta não significa necessariamente uma criança
saudável e feliz. E o mesmo vale para os adultos.
A capacidade de estabelecer relações com os objetos não-eu (pessoas, animais,
crenças, etc) de maneira autêntica e produtora de alguma satisfação pessoal depende da
experiência de onipotência do bebê e também de um outro tipo de ilusão típica das crianças
pequenas: os fenômenos transicionais que por sua vez são facilitados pelos objetos
transicionais. Winnicott nos explica estes conceitos da seguinte forma:
“Introduzi as expressões 'objeto transicional' e 'fenômeno transicional' para designar a área intermediária da experiência, entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e a verdadeira relação objetal, entre a atividade da criatividade primária e a projeção do que já teria sido introjetado, entre a não consciência primária da dívida e o
79
reconhecimento da dívida”. (Winnicott, 2000: 317)
Para Winnicott há, além da realidade interna (os sonhos, os pensamentos, as
sensações, por exemplo) e da realidade compartilhada, um espaço intermediário, o espaço
potencial. Voltemos a pensar em termos da vida dos bebês. Para o lactente não há diferença
entre ele e o mundo, mas à proporção que ele vai amadurecendo e se integrando, sua
realidade interna encontra a externa. O objeto transicional é – como o próprio nome diz –
um facilitador desse encontro, ajuda a fazer a transição entre a realidade interna e a externa,
ele é a primeira posse de um objeto não-eu. Um objeto tão importante para a criança que
chega a substituir a mãe em alguns momentos, um objeto que é em parte criado pela criança
e em parte percebido como exterior a ela. Outra importante função do objeto transicional é
servir de tranqüilizador frente à ansiedade provocada pela demora da mãe em atender a
criança ou na hora de dormir. Se as coisas correm bem, espera-se que o objeto transicional
seja:
“gradualmente descaracterizado, de modo que no decorrer dos anos ele se torne não tanto esquecido, mas relegado ao limbo. Com isto quero dizer que, na saúde, o objeto transicional não 'vai para dentro', nem o sentimento a seu respeito sofre repressão necessariamente. Ele não é esquecido e não há luto por ele. Ele perde o sentido, e isto porque os fenômenos transicionais tornaram-se difusos, espalharam-se sobre todo o território intermediário”. (Winnicott, 2000: 321)
Os objetos transicionais, assim como os fenômenos transicionais, servem para
possibilitar a relação da criança com o mundo e criar uma área intermediária que existirá
para toda a vida e onde a vida mesma acontece. Um exemplo de fenômeno transicional é a
brincadeira comum entre as crianças pequenas que dizem, por exemplo, que uma poltrona
na sala é um monstro e quando dizem isso, correm e gritam. As crianças não estão
alucinando, elas sabem que a poltrona não é um monstro e se um adulto as advertir a
80
brincadeira acaba. Mas naquele momento a poltrona é um objeto externo à criança, mas
criado por ela também. Essa capacidade de criar o que existe, de dar à realidade partilhada
uma pessoalidade é o que Winnicott chama de brincar. A capacidade de brincar é fruto dos
estágios do desenvolvimento emocional que vimos até agora e acontece no que o autor
chama de espaço potencial.
O espaço potencial é a herança que os objetos e os fenômenos transicionais da
infância nos deixam. Ele se torna com o gradual amadurecimento do indivíduo um lugar de
interseção entre a realidade externa e interna, que permite o indivíduo sentir-se o mais
possível autêntico, criativo, realizando algo positivo para si. É o espaço potencial que
favorece sermos criativos, extrair prazer do trabalho, devanear; crer em forças superiores,
escrever dissertações, etc. Nas palavras de Winnicott:
“Essa área intermediária da experiência, não questionada sobre se ela pertence à realidade interna ou externa (compartilhada), constitui a parte maior da experiência do bebê, e pela vida afora se mantém como o lugar das experiências intensas no campo da arte, da religião e da imaginação, e também do trabalho científico criativo”. (Winnicott, 2000: 331)
Todos esses elementos que favorecem a relação do indivíduo com o mundo fazem
parte da realização, esse momento em que o indivíduo é uma pessoa inteira e pode
relacionar-se com a sociedade, identificar-se com ela, não por adaptação, que levaria a
experimentação de um falso self, mas porque a sociedade é parte da criação do indivíduo e
ele se sente potente frente à vida, podendo lidar com frustrações sem medo de ser
aniquilado.
Como dissemos no início deste item, a saúde para Winnicott é resultado do
desenvolvimento emocional satisfatório do indivíduo que tem como conseqüência a
81
capacidade de ser criativo. A criatividade aqui não é entendida como uma habilidade
especial ou uma inteligência superior, mas como a capacidade de criar pequenos
dispositivos de vida que façam o próprio indivíduo se sentir realizando algo ou, em outras
palavras, ter o sentimento de que sua vida vale a pena e merece ser vivida apesar das
dificuldades específicas de cada vivente, e isto inclui o adoecimento. Winnicott define
criatividade da seguinte maneira:
“Tenho a esperança de que o leitor aceite uma referência geral à criatividade [...], evitando que a palavra se perca ao referi-la apenas à criação bem sucedida ou aclamada, e significando-a como um colorido de toda a atitude com relação à realidade externa”. (Winnicott, 1975: 95)
O sentido que o autor dá ou termo criatividade visa descolá-lo da idéia de produção
de objetos ou idéias socialmente reverenciados para afirmar que criatividade é um modo de
relação que o indivíduo estabelece com a realidade externa. Modo de relação este que
representa uma conquista do indivíduo a partir da sua relação com o ambiente no curso do
seu desenvolvimento.
Isto significa que a criatividade depende da capacidade de confiar no ambiente
conquistada no início da vida e expressa na espontaneidade. A partir da confiança no
ambiente é possível relaxar e experimentar a não-integração da saúde, um momento em que
os contornos do corpo se afrouxam. Para ilustrar o que o autor chama de estado não-
integrado da saúde, pensemos em alguém em sua própria casa, lendo um livro que lhe
interessa. Nesse momento, o indivíduo está relaxado e assim está porque não tem que se
preocupar com o ambiente, ele está "desarmado". Enquanto lê, não pensa na pressão que
uma perna faz sobre a outra ao cruzá-las, não pensa na temperatura ou se há outras pessoas
em casa, etc. Entretanto, se de repente na cozinha cai uma panela no chão, o barulho o põe
82
em alerta e o indivíduo se integra. Essa flexibilidade, essa capacidade de suportar um
estado não-integrado sem prejuízo para o indivíduo é próprio da saúde. Nas palavras do
autor:
"A desintegração, durante o repouso, o relaxamento e o sonho pode ser admitida pela pessoa saudável, e a dor a ela associada pode ser aceita, especialmente porque o relaxamento está associado à criatividade, de modo que é a partir do estado não-integrado que o impulso criativo aparece e reaparece. As defesas organizadas contra a desintegração roubam uma precondição para o impulso criativo e impedem, portanto, uma vida criativa". (Winnicott, 1999: 12)
A saúde entendida como criatividade requer a plasticidade enunciada acima por
Winnicott. A expressão da saúde winnicottiana é, portanto, o que o autor chama de brincar.
No original em inglês o termo empregado é playing que não é exatamente a mesma coisa
que brincar, visto que o termo pode ser utilizado no sentido de jogar um jogo, tocar um
instrumento, praticar um esporte, encenar um papel teatral e também brincar. De maneira
ampla e sem compromisso com os formalismos que uma tradução exige, nos parece que o
termo playing na obra de Winnicott tem o sentido de realizar algo, o que não implica
exatamente uma ação, mas uma postura diante da vida. Entretanto, a tradução para o
português dá uma bela idéia do que seja o playing. Afinal o brincar winnicottiano tem um
pouco da postura das crianças, que cultivam um olhar curioso sobre o mundo. As crianças
estão sempre descobrindo novidades mesmo nas coisas antigas e já supostamente
conhecidas. O conceito de brincar tem a ver com sentir prazer em viver a vida como se ela
fosse uma brincadeira, sem esquecer que brincar às vezes machuca e fere. Ou seja, brincar
implica em de vez em quando sentir dor, perder, mas sem que isto implique em deixar de
brincar. As crianças nos ensinam a cair, chorar e em seguida querer brincar mais do que
83
nunca. Brincar para Winnicott significa fazer qualquer coisa de forma criativa e prazerosa,
é a expressão da espontaneidade, é deixar-se atravessar pelo que podemos, deleuzianamente
falando, chamar de devir criança. Sentir-se suficientemente potente frente à vida para criá-
la e recriá-la é a saúde winnicottiana, e o brincar é a sua expressão. Quanto a isso,
Winnicott nos diz:
"Em outros termos, é a brincadeira que é universal e que é própria da saúde: o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia".(Winnicott, 1975: 63)
O que nos parece especialmente intrigante no brincar como expressão da saúde, da
criatividade, é que se sentir realizando algo não está necessariamente relacionado ao fato
de ter ou não doença. Até mesmo a maneira como se lida com o adoecer ou com a morte
pode ser saudável ou não, dependendo da capacidade de brincar do indivíduo. A luta
contra o envelhecimento travado nos consultórios dermatológicos nos dias de hoje e a
ingestão de toda sorte de substância na busca de um corpo com aparência de saudável não
nos parecem exemplos de saúde. Entretanto, as pessoas que procuram cuidados médicos
para rejuvenescer ou não envelhecer não o fazem porque estão doentes, mas porque não
estão saudáveis. Não se trata de pessoas com alguma entidade nosológica diagnosticada,
mas pessoas que sofrem de desnutrição do imaginário, de uma pobreza psíquica própria de
uma existência baseada no falso self. O que talvez Winnicott queira dizer com o seu
conceito de playing é que dependendo da qualidade do desenvolvimento de um indivíduo,
ele pode morrer de câncer e com saúde ou viver uma vida inteira sem nenhuma
perturbação orgânica ou psíquica significativa e, ainda assim, nunca ter sido saudável.
Entender saúde como a capacidade de ser criativo não é desconsiderar os atributos
84
biológicos da saúde; é, ao contrário, retirar a questão da definição de saúde da abstração
biométrica e encarnar os aspectos biológicos num corpo dotado de subjetividade que tem
a sua saúde fortemente influenciada pela qualidade da experiência de vida. Este é um
ponto em que Winnicott e Canguilhem se encontram próximos.
Até aqui apresentamos o que esses dois autores entendem por saúde. No próximo
item nos dedicaremos a explicitar, a partir de Canguilhem e Winnicott, o que entendemos
por saúde e quais elementos são facilitadores da saúde que propomos.
2.3 A saúde como potência
A saúde como ausência de doença tem sido definida de maneira estatística a fim de
estabelecer um padrão de funcionamento orgânico e social (acesso a serviços de saúde,
saneamento, educação, etc) que sirva como norteador das ações e políticas de saúde. A
matematização da saúde procura evitar equívocos nas ações dos profissionais de saúde e
gestores. Uma vez estabelecido um padrão de saúde, tudo que está fora do padrão passa a
ser indesejável e, portanto, objeto de intervenção específica. Como conseqüência dessa
maneira de conceitualizar saúde, temos a supervalorização de ações de prevenção e
tratamento de doenças. Tratamento este que em não raras vezes representa ações
específicas de combate à sintomatologia das doenças e não à etiologia delas. A obesidade,
por exemplo, representa um desafio contemporâneo ao sistema de saúde. Será que este
fenômeno mundial pode ser combatido com cirurgias de redução de estômago e
campanhas de educação nutricional? O que leva alguém a se tornar obeso? Será que tratar
a obesidade é a mesma coisa que combater o excesso de peso? A princípio, dentro de uma
concepção negativa de saúde, a obesidade – a doença – e seu sintoma mais visível – o
85
excesso de peso – se confundem. Entretanto, aspectos psíquicos também estão envolvidos
no fenômeno da obesidade, porém, negligenciados ou relativizados em sua importância
nas ações de combate à doença. Provavelmente, em muitos casos a obesidade é fruto da
diminuição de potência dos indivíduos16. Quanto a isso, nos parece que a concepção de
saúde como ausência de doença é incapaz de sustentar ações que promovam e
restabeleçam a saúde como potência individual e coletiva. E isto se deve ao modelo de
ciência hegemônico no campo da saúde.
O conceito negativo de saúde está apoiado no paradigma clássico-moderno de
ciência que apresentamos no capítulo 1, que se caracteriza pela linguagem matemática,
pelas reduções do real complexo a alguns de seus atributos, pela busca de leis universais
e, sobretudo, pelo seu desejo de controle. Como já dissemos anteriormente, essas
características não são necessariamente ruins. Não há dúvida que esse modelo de ciência
foi e é importante para a humanidade. Avanços no campo da saúde, dos transportes, das
comunicações, da infra-estrutura nas cidades urbanas e rurais são devidos à produção
científica. Entretanto, como bem nos lembra Martins (1999), a letalidade das armas (fuzis
que disparam mil tiros por minuto, bombas atômicas e bioquímicas), a insustentabilidade
ambiental da produção de riquezas no mundo, o aparecimento de doenças resultantes do
estilo de vida estressante, o consumo exagerado de alimentos pobres em bons nutrientes e
ricos em gordura, sal e açúcar são alguns exemplos dos efeitos colaterais dessa
racionalidade científica clássico-moderna.
No que toca diretamente à tarefa de conceitualizar a saúde, parece-nos impossível
16 Sobre o tema obesidade abordado numa perspectiva complexa ver: CARVALHO, M. C. & MARTINS, A. A obesidade como objeto complexo: uma abordagem filosófico-conceitual. Ciênc. saúde coletiva, v..9, n.4, p.1003-1012, 2004.
86
construir um conceito positivo se nos mantivermos no mesmo paradigma dominante de
ciência que forjou o conceito negativo. Dessa maneira, parece-nos fundamental retomar a
proposta de paradigmas complexos feita por Martins (1999), que o autor chama de
paradigma espinosiano e paradigma quântico. O primeiro caracteriza-se por ser um
paradigma não dicotômico, que parte do princípio da não-separabilidade entre mente e
corpo e natureza e cultura, sendo cada elemento desses um atributo do real complexo e
uno. Um só real constituído pela substância universal, chamada por Spinoza de Natureza.
A ontologia espinosiana compreende que cada elemento do real, que vemos como
unidades em si, separadas das outras unidades (pessoas, objetos, plantas, etc), é um modo
diferente da substância, uma modificação particular que apesar de sua singularidade
mantém uma relação de continuidade com todos os outros elementos do real. Neste
sentido, esta folha de papel e as mãos de quem a segura e lê são diferentemente a mesma
coisa, duas modificações singulares da substância.
O paradigma espinosiano tem, pelo menos, duas grandes conseqüências. A
primeira é epistemológica, no sentido de que qualquer saber desenvolvido a partir desse
paradigma terá que necessariamente considerar seu objeto na imanência do real, nas suas
inter-relações inevitáveis e, portanto, compreender que qualquer redução é, de fato, uma
redução e deve ser sempre relativizada e servir para reenviar o pesquisador para a
complexidade do mundo. Dito de outra forma, ter claro que o resultado de uma pesquisa,
de uma experimentação não é a verdade sobre o objeto estudado, mas, antes, o resultado
de um certo recorte do real, possível a partir de uma dada metodologia e da interpretação
desses resultados à luz de uma ou mais teorias. A segunda conseqüência é ética. Se
entendermos afetivamente que somos todos constituídos pela mesma substância e que
87
através dela estabelecemos uma relação de continuidade e interdependência com todos os
outros modos, questões como racismo, degradação ambiental (afinal, o homem médio se
sente separado da natureza), violência, os impasses bioéticos, etc seriam necessariamente
redimensionadas.
O segundo paradigma apresentado pelo autor é o paradigma quântico. Neste, o real
também é concebido como uno, o campo quântico, onde todas as coisas são constituídas
pelos quanta, que são não-separáveis entre si. O paradigma quântico entende,
analogamente ao espinosiano, que tudo está ligado entre si, visto que tudo é composto
pelos quanta. A singularidade de cada ser, visto como separado dos demais, se deve às
infinitas combinações dos quanta que compõem átomos, que por sua vez compõem
moléculas, que compõem tecidos, órgãos, sistemas, organismos e tudo o que há no real.
Esse paradigma, diferentemente do clássico-moderno, não repudia a imprecisão ou os
paradoxos, ao contrário, é por eles constituído e os tem como objetos de estudo. Um
exemplo de paradoxo é o próprio quantum, que é onda ou partícula dependendo do tipo de
interação que se estabelece com o meio em que está; porém, ele não é nem onda nem
partícula. Outra característica do quantum é estar permanentemente em movimento, um
movimento intrínseco chamado spin. Esse paradoxo, insuportável na ciência clássico-
moderna, é o pilar fundamental da física quântica. Sem ele não há possibilidade de
questionamento acerca dos aspectos subatômicos do real. Entretanto, toda a inovação
teórica e metodológica da física quântica não torna obsoletas as conquistas da física
newtoniana. Por exemplo, continua-se utilizando os princípios da física newtoniana para a
construção de ferrovias, ao mesmo tempo em que se aplica conhecimentos da física
quântica para o emprego de semicondutores na propulsão dos trens de alta velocidade que
88
circularão por elas.
De maneira análoga, o paradigma espinosiano-quântico não deve ser entendido
como uma oposição ao clássico-moderno, mas uma diferença, uma ferramenta para se
estudar aspectos do real em que o paradigma clássico-moderno se mostrar ineficaz,
desinteressante ou mesmo manipulador do objeto estudado, isto é, enquadrando seus
objetos a qualquer custo nos seus parâmetros de cientificidade, o que descaracterizaria a
ciência como tentativa de aproximação do real e a tornaria uma ficção.
Acreditamos que o campo da saúde ganharia em termos teóricos e práticos se
incluísse em seus estudos e ações o paradigma espinosiano-quântico ou outro paradigma
complexo. Considerar a razão como inseparável do afeto; a cultura como um aspecto da
natureza humana e não uma redenção da nossa animalidade; o homem como uma unidade
somatopsíquica que se constitui a partir das suas inter-relações pessoais e ambientais,
poderia tornar desnecessárias determinadas ações paliativas realizadas para contornar os
efeitos colaterais da aplicação da racionalidade científica clássico-moderna. Por exemplo,
ações de humanização da medicina, visto que, sendo o psiquismo um atributo do
psiquessoma, toda ação no corpo levaria necessariamente em consideração suas
repercussões subjetivas. Esse paradigma também contribuiria para um maior protagonismo
dos pacientes em seus tratamentos. O médico deixaria de ser um representante da
racionalidade e da ciência, em contraposição à ignorância do paciente – constituída como
fruto da sua poluição corpórea e das crendices populares –, para ser o que, de fato, um
médico deve ser, um terapeuta, alguém que de posse de um saber específico, e operando a
partir de uma razão-afetiva, pode desenvolver junto com o paciente estratégias de
enfrentamento do adoecimento que respeitem a integralidade da saúde humana. Para tanto,
89
as próprias concepções de saúde e doença, tratamento e prevenção teriam que ser
redefinidas a partir desses novos paradigmas a fim de se tornarem conceitos mais
operativos e propiciadores de novas práticas. Nas palavras de Martins (1999):
“Se concebermos uma ciência não mais de domínio do homem sobre a natureza, mas de uma nova aliança entre os dois – uma ciência como meio de compreensão da complexidade do real; a razão como razão-afetiva, conhecimento racional-intuitivo, no mundo, somatopsíquica; os formalismos da linguagem dita ‘natural’ e das matemáticas como não mais tendo a pretensão de enunciar a verdade do real (ainda que a verdade ‘possível de ser enunciada’ em determinada época histórica ou segundo determinada ‘região’ da ciência), mas como suporte de reenvio para a complexidade vivida por nós no real imanente; o ser humano como corpo-mente, modalidade da natureza, em continuidade com os outros seres – então neste novo paradigma ontológico, epistemológico e por conseguinte ético, paradigma da não-separabilidade, da continuidade dos seres descontínuos, paradigma quântico-espinosiano, os conceitos de vida e de morte, de saúde e de doença, se redefinem”. (Martins, 1999:108)
A citação acima, além de resumir o que dissemos anteriormente, nos alerta para o
fato de que os conceitos, que por uma razão ou outra acabamos tomando como naturais e
existentes desde sempre, são na verdade datados e fruto de uma certa história da
racionalidade científica (com Platão, Aristóteles, Descartes, Comte e Kant, por exemplo), e
que, portanto, afiliações diferentes (Spinoza, Nietzsche, Canguilhem e Winnicott) podem
nos levar a epistemologias distintas e conseqüentemente a novas práticas. E é exatamente
isso que Martins faz ao definir saúde como capacidade de transformação de si e da
realidade. A partir de seu paradigma complexo, o autor redefine os conceitos de vida,
morte, saúde e doença da seguinte forma:
“[...] podemos dizer que a morte passa a ser tida como parte da vida (como, aliás, já o fora em outras épocas da história); a vida como transformação (e não mais como perenidade, autoconservação ou cristalização). Por conseguinte, a saúde (física, psíquica e ambiental) como capacidade de transformar-se, de morrer para o antigo para renascer para o novo; e a enfermidade (física, psíquica e ambiental)
90
como a impossibilidade modal e momentânea de transformação (de renovação, de regeneração), o desejo de cristalizar o fluxo do tempo, de parar a pulsão de vida que constitui ao mesmo tempo o nosso psiquê-soma e todo o universo” 17. (Martins, 1999: 109)
Martins se aproxima de Canguilhem e Winnicott ao deslocar o foco na ocorrência
de doença para a definição de saúde. Essa aproximação é ainda maior quando o autor
inclui, sem rancor, sem lamentar e desejar que fosse diferente, o adoecimento e a morte no
curso natural da vida. Definir saúde como capacidade de transformação é outro ponto em
comum entre esses autores. A partir deles nos parece que podemos dar um passo a mais no
debate sobre o que é saúde e definir esse conceito a partir da idéia de capacidade de
transformação, como potência.
Entendemos saúde como a capacidade que um indivíduo, entendido como unidade
somatopsíquica, conquistou ao longo do seu desenvolvimento de ser criativo e normativo,
de sentir-se e mostrar-se autêntico e potente frente à vida, apesar dos constrangimentos
inerentes ao viver, inclusive o adoecimento. Nesta redefinição, o próprio indivíduo torna-se
o ponto de referência de sua saúde. Neste sentido, estar saudável é sentir-se potente,
realizando algo para si que valha a pena, que torne a vida como ela é, incluindo aí o
adoecimento, mais prazerosa e merecedora de ser vivida.
2.4 Elementos facilitadores da saúde redefinida
Um conceito de saúde baseado na experiência de vida e na não-separabilidade entre
corpo e mente e natureza e cultura nos parece estar mais de acordo com o princípio de
integralidade do Sistema Único de Saúde. Para cuidar do indivíduo como uma pessoa
inteira, é preciso um conceito de saúde que não esteja definido a partir da doença e que,
17 Itálicos do autor.
91
portanto, estimule o cuidado à pessoa, tanto saudável quanto doente, e não o simples
combate à doença. A promoção de saúde também ganha nova dimensão com esta maneira
de definir saúde. Promover saúde seria não mais uma extensão das ações de prevenção, mas
a adoção de ações e políticas que favorecessem a saúde redefinida. Para tanto, é necessário
definir elementos que favoreçam a saúde tal como a entendemos.
Definir elementos facilitadores da saúde evita que, ao tomar a experiência de vida
como referência da saúde, reduza-se a investigação da saúde das coletividades a meras
enquetes de opinião: tenho ou não tenho saúde. E ainda, no futuro, esses elementos poderão
se tornar objetos de diferentes indicadores de saúde, como é hoje a mortalidade, por
exemplo. Para tanto, propomos inicialmente cinco elementos que, a partir das teorias que
adotamos para a nossa definição de saúde, entendemos favorecerem a saúde como potência
criativa e normativa. São eles: capacidade de ser espontâneo, capacidade de ser inventivo
ou de ação transformadora da realidade compartilhada, expectativas positivas em relação ao
futuro, sentimentos positivos em relação a si e apoio social. Chamamos a atenção para dois
pontos. O primeiro é o fato de que esses são elementos favorecedores da saúde por nós
definida e não condições de saúde. Logo, não devem ser entendidos como critérios a serem
atendidos total ou parcialmente por um indivíduo para a definição da sua saúde. Entretanto,
entendemos que se um indivíduo tem esses elementos incorporados à sua vida, sua chance
de estar efetivamente potente é maior. O segundo ponto diz respeito ao modo como esses
elementos se organizam. Entendemos que eles estabelecem entre si uma relação de
interdependência e podem ser separados (apenas teoricamente) em níveis. Os elementos
capacidade de ser espontâneo e capacidade de ser inventivo constituem um primeiro nível
de organização dos elementos facilitadores da saúde porque representam a possibilidade de
92
se viver a partir de um verdadeiro self . Por sua vez, o nível primário é favorecedor e, em
algum grau, causa do nível seguinte, o nível secundário. Neste segundo nível, estão os
elementos expectativas positivas em relação ao futuro e sentimentos positivos em relação a
si que representam a maneira como o indivíduo se organiza subjetivamente e se posiciona,
inconscientemente ou não, no mundo por ele criado (no sentido winnicottiano do termo).
Este nível nos leva a um terceiro nível que representa o ambiente e a compreeensão
winnicottiana de que todos precisam de um ambiente suficientemente bom. Neste nível
terciário está o elemento apoio social.
Uma vez mais advertimos que esta organização em níveis é teórica, pois trata-se de
uma tentativa de expressar a maneira como entendemos a articulação desses elementos para
a facilitação da saúde. Entretanto, não é possível dizer com clareza quando um nível
termina e o seguinte começa. Na imanência da vida tudo acontece ao mesmo tempo. Por
exemplo, o bebê antes mesmo de ter um Eu, já está inserido num determinado contexto
social que terá impacto direto no seu desenvolvimento. E ao passo que se desenvolve, que
se torna uma pessoa inteira, o indivíduo pode recriar seu contexto social, reinventar o
mundo. Em outras palavras, assim como as etapas do desenvolvimento humano se
confundem em suas bordas, os limites dos níveis dos elementos facilitadores da saúde
também são imprecisos, pois esta imprecisão é própria da natureza humana. A partir de
agora apresentaremos cada um desses elementos facilitadores separadamente.
2.4.1 Capacidade de ser espontâneo
93
Como vimos, em Winnicott18 a espontaneidade está na base de sua concepção de saúde.
Sentir-se espontâneo permite ao indivíduo estabelecer relações que respeitem a sua
autonomia e a alheia, possibilita, ainda, a afirmação trágica da vida, no sentido
nietzscheano da expressão. Isso significa afirmar o mundo como ele é, nos seus aspectos
positivos e negativos.
A capacidade de ser espontâneo permite ao indivíduo operar o quanto mais for
possível a partir do seu verdadeiro self, sentindo-se capaz de se expressar e de afirmar seus
valores. Se pensarmos em termos coletivos, a espontaneidade é o que autoriza um
determinado grupo a lutar por suas reivindicações, a marcar seu protagonismo social. A
capacidade que um indivíduo ou grupo tem de expressar seus sentimentos, opiniões e
anseios é condição para a transformação da realidade. Ser o que se é e sentir-se potente o
suficiente para afirmar sua singularidade no mundo tem impacto direto na qualidade da
experiência de viver e, portanto, na saúde.
2.4.2 Capacidade de ser inventivo ou de ação transformadora da realidade
compartilhada
Este é um ponto em que a normatividade de Canguilhem e a criatividade de
Winnicott se encontram. A capacidade de ser inventivo se traduz na flexibilidade orgânica e
psíquica ou, em outros termos, na flexibilidade psicossomática frente às demandas do
ambiente. A capacidade de inovação, de criação (consciente, inconsciente, vegetativa) de
soluções que potencializem a vida impacta a saúde nos seus aspectos biológicos, psíquicos
e sociais. Como vimos em Canguilhem, a imutabilidade biológica, a radical adaptação a
18 A relação entre espontaneidade e saúde e as conseqüências negativas da impossibilidade de se vivenciar a espontaneidade podem ser apreciadas no texto: WINNICOTT, W. (2000) Psicoses e Cuidados Maternos. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, p. 305-315.
94
determinadas condições precariza ou mesmo extingue a vida. Por sua vez, a criatividade,
aspecto psíquico análogo à normatividade biológica, determina a qualidade da existência ao
permitir um indivíduo sentir-se criador da realidade ou submetido a ela, sentir-se realizando
algo ou, ao contrário, sendo manipulado pelo outro social. Nesse sentido, a capacidade de
ser inventivo se traduz nas transformações positivas engendradas pelo indivíduo a fim de
melhorar sua experiência de viver.
2.4.3 Expectativas positivas em relação ao futuro
Expectativas positivas em relação ao futuro não são explicitamente discutidas por
Canguilhem, Winnicott ou Martins, entretanto, acreditamos que este seja um elemento
facilitador da saúde proposta pelos três autores. Entendemos por expectativas em relação ao
futuro a avaliação racional e afetiva que um indivíduo faz de seu futuro. Quando positivas,
as expectativas em relação ao futuro podem expressar e reforçar a confiança que um
indivíduo tem em si mesmo e no ambiente, elementos fundamentais da saúde proposta por
Winnicott. As expectativas em relação ao futuro estão relacionadas com a capacidade de
ação transformadora da realidade no sentido em que, se sentindo e estando potente, o
indivíduo, mesmo em uma situação desfavorável no presente, é capaz de vislumbrar um
futuro melhor e intervir na realidade para criar o futuro desejado. E isto não deve ser
confundido propriamente com esperança. A esperança traz em geral no seu bojo a idéia de
passividade, esperar que algo aconteça por acaso, destino ou por interferência divina. Ao
contrário, expectativas positivas em relação ao futuro dizem respeito à constatação de que
se é capaz de realizar algo, de transformar a vida naquilo que for possível.
“Expectativa em relação ao futuro”, no singular mesmo, tem sido utilizado como
indicador da saúde negativamente definida. Sabroza, Leal, Souza Jr. et al (2004),
95
apresentam associações entre gravidez precoce e baixa expectativa em relação ao futuro e,
ainda, argumentam que a baixa expectativa, somada a outros fatores (baixa auto-estima,
falta de apoio familiar, alto nível de estresse e sintomas depressivos), influencia o modo
como a relação mãe-bebê vai se estabelecer. Ou seja, da nossa perspectiva teórica, a
associação encontrada pelos pesquisadores impacta não apenas a saúde da mãe-adolescente
como pode de fato comprometer o desenvolvimento do bebê.
Da mesma maneira como baixa expectativa em relação ao futuro impacta
negativamente a saúde, supomos que expectativas positivas possam impactar positivamente
a saúde, em outras palavras, favorecer o aumento da potência de vida, da criatividade e
normatividade de um indivíduo. Neste sentido, expectativas positivas podem indicar e
favorecer a reunião de energia psíquica suficiente para pôr em marcha os projetos de vida
de um determinado indivíduo.
2.4.4 Sentimentos positivos em relação a si próprio
Sentimentos positivos em relação a si próprio também não são tratados diretamente
pelos três autores de base, entretanto, nos parece que este é um elemento implícito da saúde
proposta pelos autores, sobretudo Winnicott, por dar maior destaque aos aspectos
psicológicos da saúde. Entendemos por sentimentos positivos em relação a si mesmo a
auto-avaliação feita por um indivíduo considerando aspectos emocionais, físicos e morais.
Nutrir sentimentos positivos em relação a si mesmo é um aspecto importante para o
indivíduo sentir-se potente frente à vida, capaz de expressar sua espontaneidade e
transformar a realidade da qual ele faz parte. Gostar de si também é um elemento
propiciador de cuidados de si, entendidos como o cuidado de alimentar-se de maneira a não
agredir seu organismo, o cuidado de estabelecer relações mais éticas, o cuidado de
96
preservar-se, não no sentido econômico de poupar-se a ponto de viver com a quantidade
mínima de estímulos e riscos, mas preservar-se sempre que necessário para poder se
expandir sempre; isto inclui não cair em moral alguma, inclusive a moral do corpo
saudável.
Padoxalmente a capacidade de nutrir sentimentos positivos em relação a si depende
muito da relação entre indivíduo e ambiente numa época tão primitiva do desenvolvimento
que não poderíamos propriamente falar de indivíduo e de ambiente, trata-se do estágio de
dependência absoluta do bebê. Neste momento em que o bebê vivencia a experiência de
onipotência é que se estabelecem os fundamentos da capacidade de ser espontâneo e a
capacidade de confiar no ambiente. Essa experiência primitiva de poder ser quem se é sem
sofrer retaliações por isso é a base para o desenvolvimento do amor próprio. Ao ser ele
mesmo e vivenciar positivamente essa experiência de autenticidade, o bebê pode desejar19
ser quem ele já é, amar-se e desenvolver esse amor ao logo da vida.
Sentimentos positivos em relação a si podem ser expressos pela idéia de se tem algo
positivo para dar ao mundo, algo muito próprio da adolescência20
2.4.5 Apoio Social
Apoio social é o último elemento que apresentaremos, pois de alguma forma ele
recapitula todos os anteriores e explicita a importância dos relacionamentos sociais na
saúde. Winnicott nos apresenta a relação mãe-bebê como a mais fundamental das relações.
Com isso o autor expressa sua certeza de que o homem é um ser relacional, que se constitui 19 Esta não é uma boa palavra para esta etapa do desenvolvimento, mas nos falta uma melhor. 20 Ver WINNICOTT, D. W. (2001) Adolescência – transpondo a zona das calmarias. A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, p.1115-128. E WINNICOTT, D. W. (1975) Conceitos contemporâneos de desenvolvimento adolescente e suas implicações para a Educação Superior. O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
97
como pessoa a partir dos cuidados que recebe e das relações que estabelece, como vimos
anteriormente. Podemos dizer que para Winnicott é impossível conceber um homem
isolado, auto-suficiente, pois o homem é fruto da sua interação com o ambiente que inclui
outros homens. Neste sentido, entendemos que o apoio social desempenha a função
materna, agora não mais concentrada em uma única pessoa, a mãe, mas diluída em todas as
relações sociais e na própria cultura. Dessa forma, quando mais as relações sociais
desempenharem a função materna suficientemente boa, maior apoio social elas estarão
promovendo e, assim, facilitando a saúde. Isto nos faz winnicottianamente concluir que, da
mesma maneira como não existem indivíduos isolados, igualmente não existe “o coletivo”,
como entidade anterior à existência de homens singulares, mas o coletivo de homens
concretos e singulares que apesar das suas singularidades têm aspectos comuns e que
estabelecem entre si uma relação de interdependência.
Dessa forma, entendemos que a qualidade dos relacionamentos sociais de um
indivíduo tem forte influência em sua saúde. Por qualidade entendemos a capacidade que o
conjunto de relações de um indivíduo, a rede social, tem de gerar apoio a esse indivíduo.
Cohen & Syme (1985 apud Stansfeld, 1999) definem apoio social como os “recursos
providos por outras pessoas”, isto significa “informações passadas ao sujeito para que ele
acredite que é cuidado, amado, estimado e valorizado e pertencente a uma rede social de
comunicação e obrigações mútuas”. (Cobb, 1976 apud Stansfeld, 1999) A partir das
citações apresentadas, entendemos apoio social como o conjunto de ações que um
indivíduo recebe de seus pares a fim de apoiá-lo, confortá-lo e estimulá-lo. Essas ações
podem ser a provisão de recursos financeiros, afetivos ou de ajuda prática como, por
98
exemplo, alguém que se dispõe a tomar conta dos filhos de outra pessoa enquanto esta
última está no trabalho.
Berkman & Glass (2000) discutem a relação entre integração social e a prevenção
de mortes e a ocorrência de doenças. Segundo os autores, redes sociais que promovem
apoio social a seus membros são capazes de reduzir os índices de mortalidade em todas as
causas de morte. Os autores citam um estudo realizado por Berkman & Syme em 1979 que
concluiu que homens e mulheres com poucos laços sociais tinham 1,9 e 3,1 mais chances,
respectivamente, de morrer nos nove anos seguintes (no caso, entre o período de 1965 e
1974) do que pessoas com mais contatos sociais. Outros estudos são apresentados
relacionando apoio social e redução da mortalidade por doenças cardíacas, por exemplo.
Entretanto, toda discussão se mantém apoiada no conceito negativo de saúde ao limitar-se a
apresentar evidências epidemiológicas que provem que laços sociais previnem mortes e
doenças. Esses estudos por si só já representam um grande avanço ao incluir na pauta de
discussão sobre indicadores de saúde as relações interpessoais. Porém, acreditamos que o
apoio social é importante não apenas por reduzir a ocorrência de doenças e morte, mas
também por, possivelmente, aumentar a capacidade individual e coletiva de criar soluções
para se viver melhor, como no exemplo citado da mãe que pode sair para trabalhar porque
tem alguém que a apóia ao tomar conta de seus filhos enquanto ela está fora. Outros
exemplos são as cooperativas de trabalhadores que coletivamente criam soluções para o
desemprego, os mutirões para construção de casas, a formação de bibliotecas públicas não-
estatais, as creches comunitárias, entre outras experiências de apoio coletivo. Dessa forma,
apoio social é um elemento facilitador da saúde por sua positividade, e não por seu,
também relevante, aspecto preventivista.
99
2.5 Críticas à positivação da saúde
Esses elementos facilitadores da saúde redefinida podem se somar aos critérios de
saúde definida a partir da doença para, além de evitar doenças, aumentar a saúde dos
indivíduos e conseqüentemente das coletividades. Isto significa aumentar a saúde mesmo
dos indivíduos doentes. Nesse sentido, um posto de saúde, uma creche, uma praça ou uma
linha de ônibus tornam-se elementos diferentes, porém todos de grande importância para a
prevenção de doenças, para o restabelecimento e promoção de saúde.
Definir saúde, ainda que parcialmente e sem nenhuma pretensão de sermos
verdadeiros ou de esgotar o tema, é uma tarefa perigosa, pois o risco de se cair em
totalitarismos é grande. A experiência de se sentir saudável é tão ampla e complexa que
extrapola os limites do dizível. Isso não significa, contudo, que nada possa ser dito sobre
saúde ou que devamos continuar, resignados pela impossibilidade de definir saúde em sua
“totalidade”, nos referindo a ela como uma negatividade da doença. Ao redefinir saúde
corremos o risco de forjar um conceito ainda mais restritivo que o negativo, exatamente por
sua amplitude. Como diz Ferreira Gullar, se tudo é arte, nada é arte. Reconhecemos o risco
de ampliar o conceito de saúde a tal ponto que ele se torne inoperante ou, pior ainda,
operante em demasia, justificando toda e qualquer ação de intervenção na vida das pessoas
em nome da saúde delas. Nesse sentido, parece-nos que a crítica feita por Camargo Júnior
(2007) a concepções positivas de saúde serve como alerta e redimensiona a discussão em
torno da necessidade de revisão epistemológica dos conceitos do campo da saúde.
Segundo o autor, a principal crítica à definição negativa de saúde se dá pelo fato
dela ser centrada na categoria doença, que o autor chama de reificação da doença, e tem
como conseqüência a redução das questões referentes ao processo saúde-doença a seus
100
aspectos puramente biológicos. Camargo Júnior (2007) reconhece a pertinência da crítica à
centralidade da categoria doença na definição de saúde. Por outro lado, acrescenta que
tampouco há uma definição positiva de doença, que é comumente entendida como a
ausência de saúde. Dessa forma, o autor reconhece a importância do debate epistemológico
no campo da saúde, mas aponta para seus riscos.
“Em que pese a legitimidade da busca por uma definição “positiva” de saúde enquanto empreendimento filosófico, dado o anteriormente exposto, é questionável a eficácia de uma tal definição em solucionar as dificuldades já mencionadas. Em primeiro lugar, questões fundamentais (em particular, o reducionismo e a reificação) não são de fato resolvidas. Com efeito, essas propostas com freqüência recaem no mesmo deslizamento, ao tomarem os modelos propostos como expressão de verdades mais essenciais sobre as questões do adoecer e do cuidado do que os modelos das doenças. Um modelo mais abrangente, é verdade, mas sempre limitado frente à inesgotável diversidade da experiência humana, e portador de um essencialismo ainda mais aprisionador, ao supor que dá conta da “totalidade” (outra expressão recorrente) do processo saúde/doença”. (Camargo Júnior, 2007: 70)
O risco de querer estabelecer uma nova verdade em relação ao objeto saúde é de
fato grande, porém, não é devido ao desejo de definir saúde em sua positividade, mas fruto
do paradigma de ciência a que mesmo as ciências humanas estão submetidas. O desejo de
ser verdadeiro, de dizer a verdade e demonstrá-la com evidências é o que caracteriza a
produção científica nas mais variadas áreas do saber, inclusive no campo da saúde. A
definição negativa de saúde também se pretende verdadeira e se justifica com o argumento
de que apenas os “agravos à saúde” produzem evidências por serem passíveis de
mensuração. Dessa forma, talvez parte do problema apontado por Camargo Júnior na
citação acima esteja não no eventual desejo totalizador das tentativas de definição positiva,
mas no paradigma de ciência que atravessa essas e outras definições de saúde.
101
Noutro momento, o autor nos alerta para o risco de uma definição demasiado ampla
de saúde servir para aumentar a medicalização da vida e justificar o mau uso do dinheiro
público. Nas palavras do autor:
“essas propostas incorrem no risco de expansão ilimitada das oportunidades de intervenção sobre os indivíduos e coletivos por parte das instituições de saúde. Dispomos de claros precedentes históricos destes riscos: as teses apresentadas à Faculdade Nacional de Medicina, estudadas por Jurandir Freire Costa, no já clássico Ordem médica e norma familiar (COSTA, 1983), eram exemplos de “promoção de saúde” avant la lettre. Eram também propostas de medicalização em larga escala da sociedade: dos currículos e arquitetura escolares às relações familiares, nada lhes escapava”. (Camargo Júnior, 2007: 70)
E ainda:
“é esse o risco que percebo na ênfase excessiva numa suposta “definição positiva” da saúde como orientadora da atuação dos serviços de saúde: se é de fato desejável que todos os indivíduos possam estender ao máximo suas aspirações, sem limitá-las à mera evitação de doenças, por outro lado é igualmente indesejável supor que é lícito estender a esfera de atuação do chamado ‘setor saúde’ à totalidade da vida, da experiência humana, numa medicalização mais radical do que a denunciada pelos pioneiros do campo há quatro décadas. Parece-me possível apontar exatamente este caráter na generalização da idéia de ‘saúde’ que passa a incluir quase que literalmente tudo, e a busca obsessiva de um viver saudável passa a ser tão dominada por essa idéia quanto se queria evitar.” (Camargo Júnior, 2007: 71)
No trecho acima, o autor chama a atenção para outro ponto importante do debate,
possivelmente, o mais delicado do tema: o risco de policiamento (ou medicalização) da
vida das pessoas por parte das autoridades de saúde. Em outras palavras, o risco de
intervenção ou tutela da vida das pessoas por parte de algum representante do setor saúde
em nome da preservação da saúde individual ou coletiva. De fato, há esse risco. Aliás,
sempre houve. Ele parece ser inerente a qualquer ação pública que tenha impacto na vida
das coletividades. Entretanto, nos questionamos se o policiamento seria necessariamente
conseqüência da ampliação do conceito de saúde. O próprio Camargo Júnior diz que há
102
exemplos na História de experiências totalitárias em nome da saúde e cita o relatado em
Ordem Médica e Norma Familiar de Jurandir Freire Costa como um exemplo de tutela da
vida dos habitantes do Brasil colônia. Esse é sim um importante exemplo de como um
saber pode ser utilizado para fins ideológicos. A obra de Costa (1999)21 mostra como os
médicos da época se articularam com a Coroa Portuguesa a fim de ganharem prestígio e
assim eliminarem os barbeiros e demais curandeiros do período colonial. À Coroa
Portuguesa interessava controlar a população por meio da mudança de costumes e isso só
foi possível graças ao uso do discurso médico, sobretudo o da Higiene. A medicalização da
vida no Brasil Colônia em nada teve a ver com uma proposta de positivação da saúde.
Tampouco as teses apresentadas na Faculdade de Medicina, já no Brasil Império e citadas
no livro de Costa, estavam apoiadas numa concepção positiva de saúde que tomasse o
indivíduo como referencia de si mesmo. Estes episódios históricos narrados por Costa
foram motivados, no período colonial, por uma disputa de poder entre a Coroa Portuguesa e
os grandes fazendeiros, patriarcas, que dominavam grandes extensões territoriais de
maneira quase feudal e assim diminuíam o poder central do monarca. E no Brasil Império
pelos interesses políticos da burguesia. A narrativa histórica de Costa nos faz lembrar mais
do movimento pelo Ato Médico do que dos movimentos de positivação da saúde.
Outros autores que descrevem a interferência do Estado na vida das pessoas pela via
da saúde não citam experiências de positivação da saúde como causas dessa interferência.
Rosen (1980 e 1994) não fala da Polícia Médica como uma tentativa de ampliação do
conceito de saúde. Foucault (2002), em sua História da Loucura na Idade Clássica, não
21 Camargo Júnior cita a 2ª edição de Ordem Médica e Norma Familiar, de 1983. Nós estamos utilizando a 4ª edição de 1999.
103
trata do asilamento de todo tipo de desviante como fruto de uma compreensão mais ampla
do que seja saúde. Ao contrário, o fim do uso de manicômios no tratamento de pessoas com
severo sofrimento mental, promovido pelas experiências de Reforma Psiquiátrica em todo o
mundo, é resultado de uma reformulação epistemológica das teorias que sustentam o campo
da Saúde Mental. A modificação do conceito de saúde mental é parte importante do
processo de extinção do manicômio e da des-hierarquização das profissões em Saúde
Mental.
Podemos, ainda, pensar em exemplos contemporâneos. Nos Estados Unidos, uma
pessoa pode ser obrigada a se submeter a um tratamento de saúde (médico ou psicológico)
por ordem de um juiz de Direito. Esse tipo de intervenção do Estado, como nos exemplos
anteriores, não é motivado pela adoção de um conceito de saúde diferente do tradicional
“ausência de doença”.
Em grande parte, a interferência do “setor saúde” na vida das pessoas se deu, e se
dá, em nome de um desejo de controle e poder que em nada tem a ver diretamente com
saúde. Provavelmente as ações de saúde foram utilizadas porque eram legitimadas por um
paradigma de ciência baseado no positivismo e reducionismo e, portanto, supostamente
infalível, pois detentor da verdade. Isso não significa que definições positivas, por amplas
por natureza, se prestem necessariamente à medicalização e controle dos indivíduos. Na
verdade, a questão do controle não depende exatamente da positividade ou negatividade do
conceito saúde, mas do jogo de interesses políticos e econômicos. E nesse jogo não há
escrúpulos ou coerência teórica, qualquer coisa pode ser usada para levar a cabo
determinados interesses, sendo o único critério de escolha dos métodos a conveniência. Por
exemplo, em nome da liberdade e da segurança nacional os Estados Unidos recentemente
104
restringiram direitos civis com um decreto chamado Ato Patriótico; em nome da paz a
Organização das Nações Unidas aceita a idéia de Guerra Preventiva; em nome da
preservação ambiental governos privatizam recursos naturais, etc. Em nome de uma melhor
saúde, instituições financeiras internacionais pressionam países a privatizarem seus
sistemas de saúde. Neste contexto econômico, podemos ainda supor que o conceito
negativo de saúde tem servido a interesses econômicos de indústrias farmacêuticas e de
biotecnologia. Logo, não devemos atribuir às tentativas de positivação de saúde um desejo
de poder e manutenção do status quo que é anterior a elas e aos quais elas surgiram como
alternativa. Por tanto, a crítica deve ser dirigida não aos conceitos positivos de saúde, mas a
toda e qualquer apropriação indevida dos conceitos, inclusive os negativos, do campo da
saúde para o cerceamento da liberdade, a acumulação injusta de riqueza, precarização das
condições de saúde das populações, etc. E cabe a toda sociedade, mas, sobretudo, aos
profissionais e pesquisadores da saúde, identificar e denunciar qualquer abuso nesse
sentido.
Seguramente, sempre haverá o risco de se recair numa moral da saúde, em um
modelo estereotipado de vida saudável e na obrigação de ser feliz. O que poderia aumentar
ainda mais o abuso de drogas, o consumo de fármacos e tudo que em nome da saúde
pudesse, ao contrário, degradar a saúde. Entretanto, isto não seria totalmente novo. A moral
da saúde, na verdade moral da hipocondria, baseada nas definições negativas de saúde é
amplamente divulgada pela mídia. Qualquer hebdomadário tem como matéria de capa um
novo risco à saúde ou uma nova solução científica para os problemas de saúde. A moral da
hipocondria deseja banir o adoecimento da experiência humana, além de apoiar uma certa
prática moral da clínica, não exclusiva dos médicos, que culpabiliza os pacientes pelo
105
adoecimento (Martins, 2003). O que não raras vezes se traduz em dietas extremamente
restritivas, proibição do fumo, prescrição de comportamentos ditos saudáveis (e os
psicólogos fazem isso em larga escala, medicalizam a vida alheia sem fármacos) etc., como
se adoecer ou curar-se fosse uma questão de mera escolha de quem sofre. A culpabilização
e o linchamento moral que sofrem obesos e fumantes, por exemplo, não são resultados de
uma medicalização da vida, via cultura, promovida pela ampliação do conceito de saúde.
Como nos mostra Martins (2003), a luta obsessiva contra o adoecimento tem
justificado a atual medicalização da vida, além de criar um fetiche em relação à tecnologia
em saúde que faz com que desejemos o maior número possível de exames para provar
cientificamente que nada temos ou que temos algo errado; e transformar o artificial em
mais verdadeiro do que o natural, os complexos vitamínicos são percebidos como mais
“vitaminados” do que as frutas, legumes e verduras, ainda que o excesso de vitamina das
pílulas contra o adoecimento e a decrepitude da velhice possam fazer mal à saúde pela sua
superdosagem ou simplesmente serem eliminadas pelo organismo, sem ganhos e sem
prejuízos.
Dessa forma, nos parece que a medicalização da vida não será um por vir, fruto das
transformações conceituais no campo da saúde. A medicalização já existe, ainda que de
maneira não direta (no Brasil), pois se dá mais pela via da cultura do que das ações
governamentais. Portanto, o conceito negativo de saúde também se presta à medicalização,
assim como supostamente uma definição ampla e positiva se prestaria. Uma das
desvantagens da definição atual é que, além de tudo que apresentamos até aqui, ela ainda se
mostra pouco operativa na prevenção e tratamento daquilo que Lessa (1998) chama de
doenças da modernidade: doenças cardíacas, diabetes, obesidade e câncer.
106
Acrescentaríamos a essa lista outros males contemporâneos: stress, depressão, síndrome do
pânico, transtornos alimentares e o abuso de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas. Como
um conceito de saúde baseado no evitamento e na extinção da doença pode nos ajudar a
pensar soluções para doenças sem etiologia clara ou mesmo doenças relacionadas ao estilo
de vida, ao desenvolvimento econômico e às mudanças climáticas? Talvez algumas dessas
doenças sejam até mesmo agravadas pelo caráter utópico da definição negativa de saúde.
Por não ter um corpo dentro dos padrões de estética e saúde disseminados pela mídia e
endossados pelo campo da saúde, alguém, com sua potência diminuída, pode desenvolver
uma relação de ódio com o próprio corpo que a levaria a compulsão por comida ou álcool,
por exemplo. Ou ao contrário, ao desenvolvimento de uma percepção de si tão alterada que
a levasse se privar de comida ou a ingerir laxantes, anfetaminas, etc. Certamente um
conceito positivo como o que apresentamos neste capítulo tem a vantagem de poder pensar
a saúde sem lançar mão de tipos ideais e, assim, ajudar na promoção e recuperação da
saúde individual e coletiva sem que as pessoas se sintam alheias ao processo de construção
da sua própria saúde ou submetidas a modelos externos.
Outra questão abordada por Camargo Júnior em sua crítica à positivação da saúde é
a possibilidade da retirada de recursos do setor saúde para o uso em outras áreas da
administração pública.
“E mesmo do ponto de vista das políticas públicas, este ‘expansionismo sanitário’ acaba se traduzindo no desvio de recursos da atenção à saúde, onde legisladores e o Executivo (federal e estadual) propuseram que os mesmos fossem aplicados, para os mais variados tipos de programa de cunho assistencialista, já que ‘saúde é tudo’”. (Camargo Júnior, 2007: 71)
Quanto ao desvio de recursos da saúde para outras áreas, isto já é uma realidade.
Desde a criação da Constituição de 1988, jamais governo algum investiu no campo da
107
saúde stricto sensu a porcentagem do produto interno bruto – PIB – prevista em lei. A
questão que permanece é se isso seria potencializado a partir da justificativa de que tudo é
saúde, logo o dinheiro que deveria ser aplicado na reforma ou na compra de materiais para
um hospital poderá servir para a construção de restaurantes populares porque a alimentação
é um elemento da saúde. Esta é de fato uma problemática que além de atual pode se tornar
ainda mais grave dependendo da maneira como as definições positivas forem usadas.
Entretanto, não nos parece que a epistemologia possa servir para evitar a sangria do
dinheiro público. A definição negativa de saúde, reconhecidamente limitada, também não
se mostrou um instrumento eficaz do controle dos gastos públicos e isto, provavelmente, se
deve ao fato de que ela não se destina a isso. A probidade ou a improbidade administrativa
dos governantes deve ser combatida pela criação de novos e melhores dispositivos jurídicos
e administrativos e não pela manutenção do status quo epistemológico do campo da saúde.
As críticas feitas por Camargo Júnior são contribuições fundamentais para o debate
sobre a definição de saúde por introduzir a dimensão da ética. Saímos, portanto, da questão
puramente epistemológica, construção de conceitos, para a reflexão sobre as conseqüências
das modificações teóricas operadas ou sugeridas. O autor nos mostra que mesmo a
intenção, legítima, de avançar conceitualmente, e por extensão avançar nas práticas, pode
nos levar a um retrocesso. Dessa forma, novas questões se apresentam. Será que devemos
correr os riscos apontados por Camargo Júnior sob a pena de desmontar a estrutura de
saúde construída a duras penas por nossos antecessores? Por outro lado, será que a
concretização do sonho de nossos antecessores, expresso no projeto do Sistema Único de
Saúde e nos seus princípios norteadores, não depende, ainda que em parte, de assumirmos
esses riscos? Estas são questões que merecem um trabalho próprio e um outro percurso de
108
reflexão. Logo, não serão tratadas nesta dissertação. Por ora, parece-nos suficiente ter
apresentado uma definição possível de saúde.
À guisa de conclusão deste capítulo, acreditamos que a definição apresentada pode
contribuir para que a saúde seja um tema transversal nas políticas públicas, sem que isso
descaracterize as funções específicas do Ministério da Saúde. Um exemplo de
transversalidade é a questão da sustentabilidade ambiental que não se restringe ao
Ministério do Meio Ambiente, tampouco descaracteriza as especificidades das ações deste
ministério. Acreditamos que a definição aqui apresentada também pode contribuir para a
discussão da hierarquização das profissões em saúde. Se a saúde não é mais a ausência de
doença e o corpo biológico é um dos elementos do psiquessoma, a hegemonia da profissão
médica torna-se insustentável. Nesse sentido, abrir-se-ia a possibilidade para a construção
da tão sonhada interdisciplinaridade. O paciente também ganharia em protagonismo, visto
que é o indivíduo a referência para sua saúde em nossa redefinição. Assim, a relação
médico-paciente ou cuidador-paciente seria uma aliança para restabelecer a saúde
diminuída. O paciente teria papel ativo nessa aliança e deixaria de ser um elemento passivo
que só recebe e cumpre as decisões tomadas por outros. Por fim, a idéia de promoção de
saúde também se redefiniria, tornando-se a busca, em conjunto com os indivíduos de uma
dada população, de ações que favoreçam o aumento da potência individual e coletiva. Isto
significa que em alguns casos a promoção da saúde em nada se aproximará de ações
sanitárias.
Esperamos ter apresentado com clareza o que entendemos por saúde e como
diferentes percursos teóricos podem favorecer o debate epistemológico em nosso campo.
No capítulo seguinte, apresentaremos conceitos positivos de saúde já utilizados pelo campo
109
da saúde e pelo Estado e discutiremos os pontos de aproximação e divergência entre nossa
proposta e as demais.
110
CAPÍTULO III
QUALIDADE DE VIDA E RESILIÊNCIA: DUAS EXPERIÊNCIAS DE
POSITIVAÇÃO DO CONCEITO DE SAÚDE
A insatisfação com a definição negativa de saúde e com seus indicadores tem dado
origem a uma série de tentativas de positivação do conceito saúde. Insatisfação que pode
ser resumida pela crítica de Bowling à definição de saúde como ausência de doença: “saúde
é usualmente referida na negatividade, como ausência de doença, enfermidade e moléstia.
Todas as medidas do estado de saúde tomam saúde como ponto de partida e medem os
desvios em relação a ela. Elas estão medindo na verdade má saúde” (Bowling, 1998: 6).
Neste capítulo apresentaremos dois conceitos positivos de saúde alinhados à crítica
de Bowling e utilizados na clínica e na formulação de políticas públicas, são eles: qualidade
de vida e resiliência. Nosso objetivo é apresentar conceitos alternativos à tradicional
definição negativa que já impactam de alguma maneira o campo da Saúde Coletiva. E,
assim, discutir em que pontos nossa proposta de conceito de saúde se aproxima e se
distancia deles.
3.1 Qualidade de vida
O conceito de qualidade de vida tem ocupado lugar de destaque em trabalhos
clínicos, epidemiológicos e conceituais. Na biblioteca eletrônica SCIELO22, financiada com
recursos públicos da FAPESP23 e CNPq24, são encontrados 228 artigos com as palavras
22 Scientific Electronic Library Online. Endereço: http://www.scielo.br 23 Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. 24 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
111
“qualidade de vida” no título. Quando a busca é feita pelas mesmas palavras nos resumos, o
resultado são 786 artigos. Em outra biblioteca eletrônica, a PubMed25, mantida pelo
governo dos Estados Unidos e vinculado à U.S. National Library of Medicine e ao National
Institutes of Health, foi encontrado o número de 95.430 artigos contendo no título as
palavras “quality of life” e publicados entre os anos de 1960 e 2007. A título de
comparação, no mesmo PubMed, a palavra “aids” aparece no título de 141.934 artigos,
enquanto o termo “mortality” está no título de mais de meio milhão de artigos. Ao
limitarmos a busca pelos três termos ao período dos últimos dez anos (1997 a 2007),
encontramos o termo “aids” em 51.820 títulos de artigos, quality of life no título de 69.306
artigos e, finalmente, mortality no título de 266.036 artigos. Isto significa que, nos últimos
dez anos, a produção sobre qualidade de vida superou a produção sobre aids, um tema que
reconhecidamente mobiliza pesquisadores no mundo todo e recebe financiamento público e
privado. Entretanto, estes números também indicam que, apesar do maior interesse pelo
tema qualidade de vida, as questões referentes à mortalidade ainda ocupam lugar de
destaque entre as publicações científicas do campo da saúde.
De maneira alguma estamos enveredando por uma meta-análise da produção
científica sobre qualquer um dos três termos. Entretanto, numa sondagem superficial, nos
parece que o tema qualidade de vida tem ganhado importância, levando, inclusive, a
Organização Mundial de Saúde a constituir um grupo de trabalho, o WHOQOL group, para
definir qualidade de vida e desenvolver seus indicadores. O que veremos mais adiante.
A diferença entre o número de artigos encontrados na SCIELO e na PubMed pode
ser explicada de muitas maneiras. A SCIELO é mais jovem, completa em 2007 dez anos de
25 Endereço: www.pubmed.gov
112
criação, disponibiliza artigos mais recentes e não está no centro político da produção
científica mundial. A biblioteca PubMed é mais antiga, foi criada no início da década de
1990 como um site de acesso gratuito ao conteúdo do indexador MedLine. Por isso, reúne
um número maior de revistas indexadas em comparação com a SCIELO. O fato de ser um
indexador em língua inglesa também explicaria o seu acervo maior, visto que a maior parte
da produção científica mundial é publicada em inglês.
Entretanto, a própria história do termo “qualidade de vida” pode ajudar a explicar a
disparidade entre os resultados encontrados. Segundo Fleck, Leal, Louzada et al (1999), o
termo qualidade de vida foi usado pela primeira vez pelo presidente dos Estados Unidos,
Lyndon Johnson, em 196426, num discurso em que defendia a idéia de que os objetivos
econômicos não deveriam ser medidos pelos balanços dos bancos, mas pela qualidade de
vida que o resultado dos balanços proporciona às pessoas. Dessa forma, qualidade de vida
surge como um termo da política norte-americana e posteriormente torna-se, via ciências
humanas, conceito do campo da saúde em oposição à redução da vida a seus aspectos
biológicos mensuráveis. Nas palavras de Fleck, Leal, Louzada et al:
“Assim, a preocupação com o conceito de ‘qualidade de vida’ refere-se a um movimento dentro das ciências humanas e biológicas no sentido de valorizar parâmetros mais amplos que o controle de sintomas, a diminuição da mortalidade ou o aumento da expectativa de vida”. (Fleck, Leal, Louzada et al, 1999: 20, grifo dos autores)
Porém, o termo “qualidade de vida” não apresenta um consenso acerca de seu
significado. Há definições que tomam qualidade de vida como expressão da saúde
26 Esta informação entra em conflito com o resultado da pesquisa que fizemos na PubMed. Lá, encontramos um artigo publicado em 1960 com o título de On the quantity and quality of life. Porém, não tivemos acesso ao conteúdo do artigo. A referência completa é a seguinte: LONG, P.H. (1960) On the quantity and quality of life. Med Times. May;88:613-9.
113
negativamente definida e há outras que concebem qualidade de vida como um conceito
amplo de saúde.
Bowling (1998) faz uma pequena revisão sobre o conceito de qualidade de vida. A
autora nos apresenta quatro definições para o termo. Reproduziremos três, pois a quarta é a
definição da Organização Mundial de Saúde e para esta dedicaremos um espaço em
separado. A primeira definição apresentada pela autora concebe qualidade de vida como “a
realização do indivíduo de uma situação social satisfatória dentro dos limites da capacidade
física” (Bowling, 1998: 6). A segunda definição diz que qualidade de vida “consiste na
posse de recursos necessários para a satisfação das necessidades, anseios e desejos do
indivíduo, participação em atividades propiciadoras de desenvolvimento pessoal e auto-
atualização e comparação satisfatória entre si mesmo e os outros” (idem). A terceira
definição entende qualidade de vida “como um conceito que representando as respostas
individuais aos efeitos físicos, psíquicos e sociais do adoecimento cotidiano influencia a
extensão da satisfação pessoal em relação às circunstâncias nas quais a vida se realiza”
(idem).
A dificuldade de definir algo que se confunde com a própria experiência de existir
no mundo faz com que os pesquisadores corram o risco de ampliar um conceito como
qualidade de vida a ponto dele não significar nada. Por outro lado, para minimizar esse
risco é comum recorrer ao artifício de dar substância àquilo que não tem. Exemplos disso
são as três definições apresentadas por Bowling. Todas as três usam como parâmetros de
qualidade de vida a capacidade física e a comparação do indivíduo com o outro social. Isto
significa valorar uma vida singular a partir de critérios externos a esta vida, critérios
supostamente objetivos e passíveis de mensuração. Nesse sentido, um indivíduo teria a
114
experiência de maior qualidade de vida quanto mais identificado com o outro social fosse e,
quanto mais fosse por este aceito como um membro legítimo do grupo social. Seria, dessa
forma, por exemplo, um aspecto da qualidade de vida o consumismo num contexto social
consumista? Ou ainda, seria o ajustamento social expressão de um devir saudável? Sempre?
Como já dissemos no capítulo anterior, um indivíduo pode valorar sua vida e o mundo de
maneira bastante equivocada sem se dar conta disso. A influência da mídia, da religião, do
grupo social pode levar alguém a desejar e agir baseado numa moral econômica, religiosa
ou social.
O aspecto físico presente na primeira e na terceira definições também é controverso.
A primeira definição privilegia o aspecto funcional e biomecânico do corpo. Nesse sentido,
a qualidade de vida seria em parte definida pela capacidade que um indivíduo tem de gozar
da funcionalidade do seu corpo dentro dos limites desse mesmo corpo. Na perspectiva
canguilhemiana e winnicottiana, o que caracteriza a saúde é a superação das limitações, a
construção de alternativas ao que está posto e não a simples adaptação às circunstâncias
dadas como a definição citada parece sugerir. O corpo na terceira definição aparece
representado pela capacidade (imunológica?) de resistir ao adoecimento e combatê-lo. Esse
é um entendimento sobre saúde alinhado à definição negativa de saúde. Nesse sentido, a
qualidade de vida consistiria em não adoecer física, psíquica e socialmente, este último
aspecto entendido como desajustamento social. Do nosso ponto de vista, a impossibilidade
de adoecer pode representar uma defesa somatopsíquica contra a própria vida. Uma vida
livre de riscos pode ser uma vida bastante vazia de experiências, uma vida que não se
expande e fica acomodada a uma dada situação considerada segura. Não se trata de um
115
elogio à doença, mas um reconhecimento de que mais importante do que não adoecer, visto
que adoecer é próprio da vida, é a capacidade de se recuperar, de se transformar.
Nosso ponto de divergência em relação à definição apresentada não está na
capacidade imunológica. Esta é fruto da boa nutrição, de uma constituição fisiológica
satisfatória e de um estilo de vida respeitador de si próprio. Questionamos uma
interpretação que se faz comumente desse tipo de definição. É importante não
confundirmos a idéia de um corpo saudável, do ponto de vista biológico, – e isso inclui a
capacidade de ter respostas imunológicas adequadas quando possível e necessário for –
com a idéia de não adoecer a qualquer custo. A confusão entre essas duas idéias é típica do
nosso tempo e tem, em parte, sua causa nas definições de saúde e qualidade de vida
centradas nos aspectos biológicos da vida; afinal, se saúde é a ausência de doença, é preciso
não adoecer nunca para manter-se continuamente saudável. Dessa forma, acreditamos que a
definição de qualidade de vida apresentada precisa ser mais bem enunciada, pois como está
dá margem a interpretações equivocadas.
É preciso reconhecer que as três definições apresentadas são tentativas de ampliar
aquilo que se entende por saúde. Isso por si só já é uma grande contribuição para o campo
da saúde porque mantém aceso o debate acerca do objeto saúde. A principal dificuldade
talvez seja o fato de empreender tal tarefa dentro do mesmo sistema semiótico, do mesmo
paradigma de ciência que forjou o conceito negativo de saúde e o defende, argumentando
que apenas os instrumentos que medem os agravos à saúde cumprem os critérios de
cientificidade. Dessa forma, não é raro encontrar tentativas de ampliação do objeto saúde
que acabam por retomar os mesmos critérios utilizados para definir saúde na negatividade.
Um exemplo disso é o artigo de Buss (2000) intitulado “Promoção da saúde e qualidade de
116
vida”. Nesse artigo, o autor discute a importância das ações de promoção de saúde para a
qualidade de vida da população. Entretanto, durante todo o tempo Buss se refere a
“condições de vida” como sinônimo de qualidade de vida, preferindo inclusive utilizar em
alguns momentos do texto os dois termos ao mesmo tempo. Vamos às palavras do autor:
“O debate sobre qualidade (condições) de vida e saúde tem também razoável tradição tanto no Brasil quanto na América Latina. Pain (1997)27 publicou um excelente artigo de revisão sobre estudos que relacionam condições de vida e saúde desenvolvidos nas últimas décadas, no âmbito das correntes da medicina e epidemiologia social. (Buss, 2000:165)
E ainda:
“Em um amplo estudo sobre as tendências da situação de saúde na Região das Américas recentemente publicado, a OPAS (1998)28 mostra de forma inequívoca, que os diferenciais econômicos entre os países são determinantes para as variações nas tendências dos indicadores básicos de saúde e desenvolvimento humano. A redução na mortalidade infantil, o incremento na esperança de vida, o acesso à água e ao saneamento básico, o gasto em saúde, a fecundidade global e o incremento na alfabetização de adultos foram função direta do Produto Nacional Bruto dos países. Entretanto, demonstrar que a qualidade/condições de vida afeta a saúde e que esta influência fortemente a qualidade de vida não é o único desafio”. (idem)
No trecho acima, vemos como a equivalência entre qualidade de vida e condições de
vida leva à valorização dos indicadores clássicos de saúde. Um conceito, qualidade de vida,
que foi forjado para ampliar a compreensão acerca do objeto saúde, acaba valorizando os
mesmo critérios de mensuração de saúde adotados a partir do conceito para o qual ele
pretendia ser um contraponto.
27 PAIN, J.S. Abordagens teórico-conceituais em estudos de condições de vida e saúde: notas para reflexão e ação. In BARATA, R. B. (org.) Condições de vida e situação de saúde. Saúde e Movimento 4. Rio de Janeiro: ABRASCO, p. 7-30, 1997. 28 OPAS 1998. La Salud en las Américas, vol. 1, OPAS, Washington.
117
Concordamos que condições precárias de vida podem ter como conseqüência pior
qualidade de vida. Entretanto, nossa experiência como psicanalista nos faz suspeitar de que
o contrário não é verdadeiro. Condições de vida (saneamento, emprego, renda, acesso a
serviços de saúde, etc) satisfatórias, em não raros casos, não têm como desdobramento a
experiência pessoal de se viver uma vida com qualidade. Logo, essa relação entre qualidade
de vida e indicadores clássicos de saúde deve ser analisada com muito cuidado e merece
um trabalho à parte. Entretanto, a equivalência entre condições e qualidade de vida feita por
Buss (2000) não é o estado da arte em relação ao tema qualidade de vida.
Na década de 1990, a Organização Mundial de Saúde – OMS – formou, tal como
mencionamos anteriormente, um grupo de trabalho constituído por pesquisadores de
diversos centros de pesquisa espalhados pelo mundo, o chamado WHOQOL group. O
grupo foi formado com o objetivo de definir qualidade de vida e em seguida elaborar um
instrumento capaz de medi-la. Em 1995, a OMS definiu qualidade de vida como “a
percepção do indivíduo de sua posição na vida no contexto da cultura e sistema de valores
nos quais ele vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”29
(WHO, 1997: 1). A definição da OMS, diferentemente das anteriormente apresentadas,
valoriza a experiência subjetiva do indivíduo em relação a sua vida sem que isso implique
comparação de si com o outro social, com o ideal social acerca de um indivíduo com
determinadas características. Este é um importante aspecto dessa definição e que a
aproxima de alguma maneira da proposta canguilhemiana de ter o indivíduo como
29 No original: “WHO defines Quality of Life as individuals perception of their position in life in the context of the culture and value systems in which they live and in relation to their goals, expectations, standards and concerns”.
118
parâmetro de sua própria saúde. Quanto a este ponto, Fleck (2000) – único pesquisador
brasileiro a participar do WHOQOL group – nos esclarece o seguinte:
“O que está em questão não é a natureza objetiva do meio ambiente, do estado funcional ou do estado psicológico, ou ainda como o profissional de saúde ou um familiar avalia essas dimensões: é a percepção do respondente/paciente que está sendo avaliada”. (Fleck, 2000: 34)
Apesar de ter o indivíduo como parâmetro de sua própria saúde, entendida como
qualidade de vida, a avaliação da qualidade de vida não se reduz a uma enquete de opinião.
A avaliação é feita a partir de critérios definidos pelo grupo WHOQOL e formalizados no
instrumento de avaliação da qualidade de vida da OMS, o WHOQOL-100.
O WHOQOL-100 é composto por cem perguntas referentes a seis diferentes
aspectos do viver, chamados de domínios. Os domínios do WHOQOL-100 são os
seguintes: físico, psicológico, níveis de independência, relações sociais, meio ambiente e
espiritualidade/ religiosidade/ crenças pessoais. Os domínios são divididos em sub-
aspectos, chamados facetas, como demonstrado no quadro 1 abaixo.
Quadro 1: domínios e facetas do WHOQOL-10030
Domínios Físico Psicológico Nível de independência
Relações sociais
Meio ambiente
Aspectos espirituais/religião/crenças
pessoais Facetas Dor e
desconforto Sentimentos
positivos Mobilidade Relações
pessoais Segurança
física e proteção
Espiritualidade/religiosidade/crenças pessoais.
Energia e fadiga
Pensar, aprender, memória e
concentração
Atividades da vida cotidiana
Apoio social
Ambiente do lar
30 Este quadro é uma versão do quadro apresentado por Fleck (2000: 35) para mostrar a distribuição das facetas pelos domínios do WHOQOL-100.
119
Sono e repouso
Auto-estima Dependência de medicação
ou de tratamento
Atividade sexual
Recursos financeiros
Imagem corporal e aparência
Capacidade de trabalho
Cuidados de saúde e sociais:
disponibilidade e qualidade
Sentimentos negativos
Oportunidade de adquirir
novas informações e
habilidades
Participação em, e
oportunidades de
recreação/lazer
Ambiente físico:
poluição, ruído, transito
e clima
transporte
Cada faceta do instrumento é composta por quatro perguntas. E existe uma vigésima
quinta faceta não específica com perguntas sobre qualidade de vida. Essas perguntas estão
espalhadas ao longo do questionário e são identificadas com a letra “g” (ver o instrumento
completo na seção de anexos).
As respostas às perguntas devem levar em consideração as duas últimas semanas e
são dadas através de escalas de intensidade, capacidade, freqüência e avaliação,
dependendo do conteúdo de cada pergunta. Para cada pergunta há cinco possíveis repostas
e para cada resposta há um escore correspondente. A primeira resposta recebe o escore 1 e
a quinta resposta recebe o escore 5. Como no exemplo a seguir:
F2.1 Você tem energia suficiente para o seu dia-a-dia?
120
nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5
Dessa forma, quanto maior for o escore total de cada domínio, maior é a qualidade
de vida em relação àquele aspecto específico. Porém esta regra de pontuação não é igual
para todas as perguntas. As perguntas F2.2, F2.4, F3.2, F3.4, F7.2, F7.3, F9.3, F9.4, F10.2,
F10.4, F13.1, F15.4, F16.3, F18.2, F18.4, F22.2, F23.2, F23.4 têm os valores invertidos. A
resposta 1 passa a valer 5, a 2 valerá 4 e assim por diante. Como no exemplo a seguir:
F23.4 O quanto as dificuldades de transporte dificultam sua vida? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 (1=5) 2 (2=4) 3 (3=3) 4 (4=2) 5 (5=1)
A inversão dos escores é para manter a lógica de que a resposta mais negativa terá
sempre o valor 1 e a resposta mais positiva terá o valor 5. O resultado final do questionário
é obtido através do software SPSS a partir da sintaxe disponível no site31 do Departamento
de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, único
centro brasileiro a integrar o grupo WHOQOL32.
Não poderíamos nos deter em uma análise pormenorizada do instrumento
WHOQOL-100 por dois motivos. O primeiro deles é que este não é o objetivo de nossa
pesquisa e o segundo é que não possuímos as competências necessárias para tal
empreendimento33. Dessa forma, nossa intenção não é afirmar se esse instrumento tem ou
não validade, se está ou não adequado à população brasileira. Nosso interesse pelo
31 Endereço eletrônico: http://www.ufrgs.br/psiq/whoqol4.html 32 Endereço eletrônico: http://www.who.int 33 Recomendamos ao leitor interessado nas questões relativas à validação do instrumento, etapas de teste e re-teste, análise da amostragem do instrumento piloto, adaptação à população brasileira e tradução para Língua Portuguesa os artigos de FLECK, M. P. A.; LEAL, O. F.; LOUZADA, S. et al (1999) e FLECK, M. P. A.; LOUSADA, S.; XAVIER, M.; CHACHAMOVICH, E.; VIEIRA, G.; SANTOS, L; PINZON, V (1999)
121
WHOQOL-100 está na coerência epistemológica que o forjou. O WHOQOL-100 é fruto de
um debate conceitual acerca do objeto qualidade de vida. Ele é conseqüência de uma dada
definição do conceito qualidade de vida. Dito de outra forma, ele é um instrumento que se
propõe medir a qualidade de vida tal qual definida pela OMS e a partir de critérios também
previamente definidos.
É essa coerência que nos parece sinal de boa ciência. A construção de instrumentos
de mensuração em saúde, ou de maneira mais ampla, a construção de indicadores de saúde
deveria estar subordinada a uma definição conceitual prévia do objeto que eles pretendem
medir. Dessa forma, um indicador de saúde seria sempre um indicador de uma dada
concepção de saúde e teria sua qualidade, enquanto instrumento, avaliada não apenas pelo
seu aspecto metodológico, mas também pela qualidade da definição conceitual de seu
objeto.
Acreditamos que o empreendimento do grupo WHOQOL é bem sucedido neste
sentido. O grupo estabeleceu um conceito positivo de qualidade de vida, definiu critérios de
qualidade de vida a partir do conceito formulado previamente e em seguida construiu um
instrumento para avaliar aquilo que eles entendem como qualidade de vida. Esta coerência
entre as etapas é o que garante que iniciativas como essa jamais se tornarão totalitárias
como, com razão, teme Camargo Júnior (2007). Medir qualidade de vida ou saúde a partir
explicitamente de uma dada concepção é exatamente o que permite o contraponto, a
discordância e, portanto, a existência de outras perspectivas sobre o mesmo tema. O que
nos faz correr o risco de totalitarismo é a hegemonia de um ponto de vista, de uma
definição, seja ela negativa ou positiva, ou de uma profissão apenas, seja a de médico ou
outra qualquer.
122
Comparando nossa proposta de conceito de saúde e o instrumento WHOQOL-100,
encontramos alguns pontos em comum. O primeiro e mais fundamental é ter o indivíduo
como parâmetro de si mesmo. O segundo é dar uma dimensão subjetiva a elementos antes
avaliados por critérios externos, como por exemplo: renda. No WHOQOL-100, nenhuma
questão relativa à renda é sobre o valor nominal da renda: quando você ganha por mês? O
que é avaliado é a experiência proporcionada pela renda como exemplificado na pergunta
F18.1: “Você tem dinheiro suficiente para satisfazer suas necessidades?”
Outro tema que ganha dimensão subjetiva no WHOQOL-100 é o transporte. A
pergunta F23.2 (em que medida você tem problemas com transporte?) abre de fato uma
perspectiva transcultural, pois não valoriza um estilo de vida específico. A questão não é
sobre a oferta de transporte, mas sobre a relação do indivíduo com o transporte. Dessa
maneira, alguém que vive numa zona com escassez de transporte pode responder que tem
problema com transporte, pois esse indivíduo precisa se locomover com agilidade ou por
longas distâncias, e outro indivíduo morador da mesma localidade pode afirmar que não
tem problema com transporte, pois este indivíduo não precisa se locomover para longas
distâncias. Da mesma forma, alguém que vive num grande centro urbano, onde há excesso
de oferta de transporte, pode responder que tem problema com o tema baseado na sua
experiência cotidiana de engarrafamentos.
Outro ponto de proximidade entre nossa proposta e o instrumento da OMS é a
inclusão dos aspectos representantes da doença, como a dor e o uso de medicamentos.
Sentir dor ou fazer uso contínuo de medicamentos não implica necessariamente em não ter
qualidade de vida. As questões referentes a esses temas têm o mesmo valor que todas as
outras questões. Logo, alguém que faça uso ininterrupto de medicamentos, como algumas
123
pessoas com aids ou diabetes, pode ser considerado com qualidade de vida. Se isso é
possível, se é possível dizer que alguém com aids tem qualidade de vida, porque não é
possível dizer que essa pessoa tem saúde?
Em última análise, o ponto forte do instrumento está em avaliar não a qualidade de
vida, num sentido genérico, mas a qualidade da vida de um indivíduo a partir do seu
próprio ponto de vista, sem que isso se reduza a um mero “acho ou não acho que tenho
qualidade de vida”. Percorrendo caminhos muito diferentes, indivíduos com realidades e
anseios diferentes podem demonstrar se têm ou não qualidade de vida, se são ou não
saudáveis a partir dos critérios adotados pelo grupo WHOQOL.
Nosso ponto de divergência está apenas no fato do grupo WHOQOL fazer uma
distinção velada entre saúde e qualidade de vida. Se ter saúde não é viver com qualidade, o
que será saúde então?
3.2 Resiliência
O conceito de resiliência tem sua origem na física e significa a propriedade que
determinados materiais possuem de retomar sua forma original após serem submetidos à
pressão. Elásticos, molas, varas de salto em altura, ligas de aço são alguns exemplos de
objetos e materiais com a propriedade de resiliência.
O termo foi apropriado pela Psicologia para explicar a razão pela qual determinados
indivíduos, sobretudo crianças e adolescentes, não sucumbem quando submetidos a
situações de risco ou eventos catastróficos em que a maioria dos indivíduos sofreria algum
tipo de dano. Como nos mostram Pinheiro (2004) e Carvalho et al (2007) não há consenso
em relação à definição de resiliência, mas de maneira geral o termo é entendido como “a
capacidade de o indivíduo, ou a família, enfrentar as adversidades, ser transformado por
124
elas, mas conseguir superá-las” (Pinheiro, 2004: 68). Entretanto, o mesmo termo é
empregado em diferentes sentidos, alguns bastante questionáveis – por exemplo, o uso da
palavra resiliência como sinônimo de invulnerabilidade, conforme exemplificado na
proposta de Pereira (2001):
“Uma das grandes apostas para o próximo milênio será tornar as pessoas mais resilientes e prepará-las para uma certa invulnerabilidade que lhes permita resistir a situações adversas que a vida proporciona, pelo que se torna imperioso identificar os fatores de risco e particularmente os fatores de proteção pessoais e interpessoais”. (Pereira, 2001: 87-88)
Pensar a saúde em termos de invulnerabilidade parece ser um empreendimento
fadado ao fracasso, pois que irreal ou, pior, propiciador de práticas de cuidado de si e de
políticas públicas que em nada favoreçam a saúde. Por exemplo, em nome da
invulnerabilidade, a alienação e a defesa maníaca podem ser estratégias psíquicas para dar
conta de algum mal-estar. Entretanto, essas estratégias em nada lembram a saúde que
esboçamos anteriormente e tampouco oferecem perspectiva de resolução concreta para a
situação geradora de sofrimento. Outra possibilidade de prática perigosa em nome da
invulnerabilidade seria a intensificação do uso indiscriminado de medicamentos,
substâncias ditas naturais e, em casos mais graves, o uso de anabolizantes. O que levaria a
uma corrida, ainda mais desenfreada do que a que já assistimos nos dias de hoje, pelo corpo
perfeito, saúde ideal, existência sem riscos.
Nessa perspectiva, talvez a própria idéia de cuidado de si seria reduzida,
ironicamente, a uma prática de medicalização de si. Por exemplo, em vez de melhorar a
nutrição para não mais sofrer de indigestão, um indivíduo poderia, como já pode, optar pela
propagandeada receita “um Engov antes e um depois”. Esse indivíduo continuará a abusar
da ingestão de gordura, açúcar, alimentos hipercalóricos, comidas de baixa qualidade
125
nutricional sem que seu organismo tenha a capacidade de protestar, via adoecimento, contra
esse estilo de vida destruidor de si mesmo, pois estará entorpecido por medicamentos. Ou
seja, em nome de uma sensação de invulnerabilidade, poder-se-ia inclusive optar por inibir
as defesas naturais do organismo. E o que teria isso a ver com ser ou estar saudável? No
âmbito das políticas públicas, a promoção da invulnerabilidade poderia justificar o
atropelamento de debates no campo da bioética sobre manipulação genética, o retorno de
ideologias como a eugenia, etc.
Porém, a equivalência entre resiliência e invulnerabilidade parece ter sido superada.
Segundo Carvalho et al (2007), essa confusão epistemológica teria origem na transposição
do termo da Física para a Psicologia. Ainda segundo a autora, contemporaneamente a
compreensão acerca da resiliência seria a de um processo dinâmico que envolve fatores de
risco e fatores de proteção e não mais a invulnerabilidade de um corpo e psiquismo
enrijecidos, pois defendidos. Nas palavras dos autores:
“A princípio e, principalmente, em virtude da transposição desse conceito da física para a psicologia, a definição do termo resiliência esteve muito relacionada à idéia de ‘invulnerabilidade’ (resistência absoluta ao estresse) e de ‘adaptação’. No entanto, essas concepções têm sido fortemente criticadas por causa do seu caráter estático e absoluto, optando-se por uma visão mais dialética e processual da resiliência. De acordo com esta perspectiva, mais do que recobrar um estado anterior após uma situação de estresse/trauma, a resiliência, no contexto humano, implica ‘superação’ da dificuldade enfrentada, possibilitando uma re-significação e/ou a construção de novos caminhos diante da adversidade. Trata-se, então, de uma capacidade a ser construída ao longo do processo de desenvolvimento humano”. (Carvalho et al, 2007: 2025)
Junqueira & Deslandes (2003), Pinheiro (2004) e Carvalho et al (2007) parecem
concordar quanto ao caráter processual e relacional da resiliência. Ou seja, a capacidade de
ser resiliente não é uma característica inata, mas alguma coisa que vai sendo construída ao
longo da vida a partir da interação das características pessoais do indivíduo com o seu
126
meio. Isso significa que a resiliência se desenvolve a partir da tensão entre fatores de risco e
fatores de proteção. Não há um a priori em relação ao que é ou não fator de risco ou
proteção. Em linhas gerais, os fatores de risco são todas as condições consideradas
desfavoráveis ao desenvolvimento do indivíduo, enquanto os fatores de proteção são todos
os elementos envolvidos na vida dos indivíduos (traços de subjetividade, apoio social,
relações familiares) que o ajudam a transpor as dificuldades. Dessa maneira, o surgimento
da capacidade de ser resiliente depende necessariamente da existência de uma situação-
limite que precisa ser suplantada. Quanto a isso Carvalho et al (2007: 2025) nos diz o
seguinte: “Sobre os fatores de risco, é importante destacar que a resiliência aparece em
situações que expõem ao risco. Portanto, sem ‘risco’, adversidade ou situação ‘estressora’
não se pode falar em resiliência”.
Como dissemos no início deste item, as pesquisas sobre resiliência têm, em grande
parte, crianças, adolescentes e populações consideradas em situação de risco como objeto
de estudo (Junqueira & Deslandes, 2003). Isto faz com que a pobreza, a desagregação
familiar, o abuso de drogas, a violência de toda sorte sejam apontados na literatura como
fatores de risco e, conseqüentemente, como resilientes os indivíduos que conseguiram
transpor as situações de risco e se adaptaram à vida social. Como exemplificado na
passagem em que Pinheiro (2004) descreve estudos com jovens egressos de instituições
para crianças e adolescentes em conflito com a lei:
“No entanto, apesar desse caráter autoritário e rígido das instituições, que se torna um fator de risco ao desenvolvimento posterior do sujeito, algumas pesquisas (Altoé, 199034; Álvares, Moraes & Rabinovich,
34 Altoé, S. (1990). Infâncias perdidas: o cotidiano nos internatos-prisão. Rio de janeiro: Xenon.
127
199835) com egressos revelaram que vários indivíduos conseguiram ultrapassar as adversidades, tornando-se cidadãos adaptados às normas sociais, ou seja, foram capazes de estabelecer vinculações afetivas importantes, executaram atividade laborativa e educacional, e não se envolveram com atividades delinqüenciais”36 (Pinheiro, 2004: 69).
Questionamos-nos se resiliência é sinônimo de adaptação. A partir das definições
que apresentamos, não nos parece que um termo tenha o mesmo significado que o outro.
Ainda que a flexibilidade somatopsíquica, necessária para a superação de situações-limite,
implique em algum grau de adaptação às exigências do meio num dado momento, isso não
significa necessariamente ter a vida reduzida às exigências ambientais e/ou sociais. Nesse
sentido, podemos pensar que o que Pinheiro está querendo dizer é que a capacidade de ser
resiliente pode ser decisiva para a inserção social de pessoas, de todas as idades, em
situação de desvantagem social, entenda-se, pessoas em situação de pobreza, discriminação
étnica, religiosa, sexual ou de gênero. E chamamos a atenção para o termo “inserção
social”, pois este traz no seu bojo a idéia de construção de lugares sociais baseados na
cidadania, portanto, na participação ativa das pessoas na vida social, diferentemente do
termo adaptação que está impregnado de um sentido de submissão, de sujeitar-se a algo do
qual não se faz parte. Do contrário, colocada a questão apenas nos termos de Pinheiro,
temos a impressão de que há por trás da idéia de resiliência um preconceito social típico de
nosso tempo, a idéia de que a pobreza tem necessariamente como desfecho a delinqüência.
Essa é a idéia de base de programas de assistência social que procuram ocupar o dia de
crianças e adolescentes pobres para que estes fiquem longe das drogas e da criminalidade.
É como se todo pobre fosse propenso à delinqüência. Dessa forma, atribui-se aos que
35 Alvarez, A; M. S; Moraes, M.C.L; Rabinovich, E. P. (1998). Resiliência: um estudo com brasileiros institucionalizados. Revista Brasileira de Desenvolvimento Humano, 8 (1/2), p. 70-75. 36 O grifo é nosso.
128
conseguiram atingir uma vida nos padrões sociais vigentes uma característica especial,
diferenciada dos outros, a resiliência.
Um aspecto que nos chama a atenção em relação ao tema resiliência é que ele fica
circunscrito às situações de risco social ou doença. Apesar de o conceito refletir o interesse
dos pesquisadores por aquilo que faz alguém viver, se expandir no mundo apesar dos
percalços e da enfermidade, a doença e o risco ainda ocupam papel central na definição de
resiliência. Acreditamos que na perspectiva dos estudos de resiliência, a capacidade de ser
flexível é tomada não como um atributo da saúde comum, mas como uma capacidade
extraordinária de defesa orgânica e, sobretudo, psíquica. Como na passagem na qual
Carvalho et al (2007) citam o caso de pessoas que vivem há anos infectadas com o vírus
HIV, mas, surpreendentemente, não desenvolvem sintomas da aids. Nas palavras das
autoras:
“Pesquisas exaustivas vêm demonstrando o impacto negativo do vírus sobre a vida das pessoas, contribuindo, assim, para o avanço dos conhecimentos nessa área. No entanto, igual preocupação não tem sido dada à investigação dos fatores de proteção no desenvolvimento dos pacientes com HIV/AIDS, os quais podem estar contribuindo para a saúde, bem-estar, qualidade de vida e resiliência desses indivíduos. Desde o momento da infecção até o surgimento de algum sintoma, podem transcorrer meses ou anos, sendo esse intervalo difícil de definir. O tempo médio de desenvolvimento de sintomas tem sido de cinco a oito anos, porém existem pessoas infectadas há 15 anos ou mais que nunca tiveram complicações de saúde por causa do HIV/AIDS. O que existe de diferente nessas pessoas?”
A compreensão de que saúde é algo para além da doença é um ponto de forte
aproximação entre nossa proposta e o conceito de resiliência. Considerar saúde a
capacidade de transformar-se, de superar obstáculos, de avançar apesar de todos os
percalços é o que caracteriza a resiliência como uma experiência epistemológica de
positivação do objeto saúde. Entretanto, por sua natureza, o conceito de resiliência está
129
limitado a casos muito específicos, a histórias de superação que, apesar de não serem raras,
não representam a experiência comum de viver. Ainda que o termo resiliência tenha sido
tomado de uma outra maneira, vemos nele forte aproximação com a idéia winnicottiana de
criatividade. Afinal, e em última instância, ser criativo ou ser resiliênte significa ser capaz
de criar soluções, de inventar maneiras novas de viver a fim de contornar os problemas,
mais ou menos graves, inerentes ao viver.
Caso tomemos resiliência como saúde, teríamos dificuldade em qualificar como
saudável alguém que nunca passou por uma situação-limite37. Do nosso ponto de vista, a
resiliência é um aspecto da saúde positiva. Ser criativo e normativo é o que favorece, em
termos teóricos, um indivíduo ser resiliente em uma situação extrema. Quanto mais saúde
tiver um indivíduo, maior será sua capacidade de resiliência, entendendo que isto não tem
absolutamente nada a ver com invulnerabilidade. Num sentido canguilhemiano, podemos
dizer que, inclusive, a capacidade de adoecer faz parte da resiliência, visto que “a doença é,
ao mesmo tempo, privação e reformulação” (Canguilhem, 2002:149).
Apesar de não ser um conceito de saúde extensível à população em geral, o tema
resiliência tem suscitado interesse tanto no âmbito da formulação de políticas públicas
quanto nas práticas clínicas. Um exemplo disso é o interesse da Organização Pan-
Americana de Saúde – OPAS – de tornar o conceito corrente entre os profissionais de saúde
por meio do seu “Manual de identificação e promoção da resiliência em crianças e
adolescentes” (OPAS 1998). 37 A importância dada pelo campo da saúde à categoria “situação-limite” no uso o termo resiliência, não é encontrado, por exemplo, na Educação e Psicologia. Cyrulnik (2002 e 2003) descreve a resiliência como uma conquista do desenvolvimento do indivíduo, uma capacidade de elaboração psíquica, no sentido psicanalítico do termo, de problemas, sejam eles mais graves ou comuns. O autor se aproxima de Winnicott ao localizar nas relações ambientais precoces os aspectos promotores de resiliência e apontar a criatividade como um elemento do processo de resiliência.
130
O manual está dividido em cinco capítulos e se organiza como uma apostila de
curso, com linguagem didática e conteúdo voltado para a prática dos diversos profissionais
de saúde. Nele, a OPAS define o que é resiliência e apresenta as características de uma
subjetividade resiliente, assim como os elementos promotores de resiliência. Segundo a
entidade, resiliência é um termo adotado “pelas ciências sociais para caracterizar aqueles
sujeitos que, apesar de nascerem e viverem em condições de alto risco, se desenvolvem
psicologicamente saudáveis e socialmente exitosos” (OPAS, 1998: 8). Novamente as idéias
de êxito social e risco aparecem como condição para se falar em resiliência. A definição da
OPAS parece ficar mais restrita àquilo que se convencionou chamar de situações de risco
social ou vulnerabilidade social, o que dificultaria a utilização dessa definição em outras
situações de superação de limites. Porém, se nos mantivermos no campo dos problemas
sociais, a definição da OPAS se mostra mais avançada em comparação com as idéias de
Pinheiro (2004), apresentadas anteriormente. E este avanço consiste em destacar a saúde
psicológica dos indivíduos e relacionar o “êxito social” a esta saúde. Se considerarmos
saúde psíquica a criatividade descrita por Winnicott, nos parece coerente pensar que quanto
mais saudável um indivíduo for, maior será sua chance de se inserir socialmente de maneira
cidadã. Nesse sentido, devemos considerar êxito social a conquista da cidadania e não um
acrítico ajustamento social. Entretanto, há que se ter sempre o cuidado de explicitar o
sentido que se quer dar a termos imprecisos, como êxito social, sob a pena dessas
definições serem utilizadas no reforço de preconceitos de toda sorte. Em se tratando de um
organismo internacional, como a OPAS, esse cuidado precisa ser redobrado, pois se trata da
definição da principal entidade do campo da saúde no continente americano. Organismo
que baseado neste e em outros conceitos orienta a formulação de políticas públicas em
131
saúde de seus Estados membros, sobretudo dos países mais pobres. Isto significa que uma
definição com problemas pode gerar práticas baseadas em preconceitos sociais em escala
continental. Certamente não é essa a intenção dos pesquisadores e nem da entidade.
Entretanto, ao ler os estudos sobre resiliência ficamos com a impressão de que resiliência é,
em parte, a capacidade de superar a pobreza. Nesse sentido, parece que a diferença entre a
riqueza e a pobreza está na saúde dos indivíduos. Nessa perspectiva, a pobreza seria
determinada mais pelas características individuais do que pelas condições
macroeconômicas e políticas de um país. O que nos parece distante da realidade.
Chamamos a atenção do leitor para o fato de que nada disso está dito nos artigos
pesquisados, tampouco no manual da OPAS. Essa é uma interpretação, uma provocação, na
verdade, que fazemos a partir da centralidade do tema pobreza nos escritos sobre
resiliência, como no trecho a seguir do manual da OPAS:
“O enfoque de resiliência é parte de uma vasta corrente conceitual que examina a pobreza, seus efeitos, características e componentes. A importância que adquire a resiliência consiste em que os fatores sobre os quais as ações (parte da intervenção) são possíveis, são conhecidos e, portanto, se delimitam de antemão”. (OPAS, 1998: 16)
O enfrentamento de situações-limite, inclusive a pobreza, tem maior possibilidade
de lograr êxito quando o indivíduo possui determinadas características subjetivas que
favorecem a resiliência. São elas: controle das emoções e dos impulsos, autonomia, senso
de humor, alta auto-estima, empatia, capacidade de compreensão e análise das situações,
certa competência cognitiva, e capacidade de atenção e concentração (OPAS, 1998).
Determinadas características ambientais também favorecem a resiliência, segundo o manual
da OPAS. O ambiente aqui é entendido como o contexto social e familiar em que o
132
indivíduo está inserido, e suas características promotoras de resiliência são: estabilidade
afetiva do meio, redes informais de apoio social e, no caso de crianças e adolescentes,
“relação de apoio incondicional de um adulto significativo” (OPAS, 1998: 20). Estas são
características comuns a indivíduos resilientes de diferentes idades. A grande parte delas é
de natureza subjetiva, mas mesmo estas podem ser estimuladas desde a vida intra-uterina
por ações que compõem o que a OPAS chama de ações promotoras de resiliência.
Nesse manual, a OPAS descreve ações que a família e os profissionais de saúde
podem realizar para promover resiliência em crianças e adolescentes. Para cada faixa etária
há um conjunto de medidas favorecedoras de resiliência. Para o período gestacional, por
exemplo, é recomendado criar um ambiente acolhedor à gravidez, de forma a proporcionar
suporte emocional e prático à gestante, bem como transmitir carinho e tranqüilidade ao
feto. O manual sugere ações específicas como:
“Comunicar-se freqüentemente com seu feto, pensando nele e falando-lhe com voz suave, tarefa em que o pai também deve participar, especialmente a partir do quinto mês de gravidez. [...] Cantar-lhe, sussurrar-lhe canções familiares e expô-lo à música suave adequada ao meio sócio-cultural em que está crescendo. É de se ressaltar que estudos recentes mostram a proximidade e a associação entre o desenvolvimento do centro cerebral de sensibilidade musical e o de capacidade lógico-matemática”. (OPAS, 1998: 29)
A estas, outras recomendações específicas se seguem para a fase de gestação. Em
seguida há orientações para as diferentes faixas etárias da criança e do adolescente até os
dezesseis anos. A título de resumo apresentamos no quadro 2 uma recomendação para cada
faixa etária.
133
Quadro 2: ações de promoção de resiliência recomendadas pela OPAS38 e distribuídas por faixa etária
Período/Faixa etária
Ações
Gestação Acariciar o bebê por meio do ventre materno Recém-nascido Manter o bebê ao lado da mãe. Se não há nenhuma doença materna que impeça,
não é conveniente separar o bebê da mãe De 0 a 3 anos Modelar comportamentos que comuniquem confiança, otimismo e fé em bons
resultados, para crianças de 2 a 3 anos De 4 a 7 anos Incentivar a criança a demonstrar simpatia e afeto, a ser agradável e a fazer
coisas boas para os demais De 8 a 11 anos Os pais devem desenvolver comportamentos que transmitam valores e normas,
incluindo fatores de resiliência De 12 a 16 anos Oferecer preparação para enfrentar as dificuldades do ingresso no mercado de
trabalho
As ações sugeridas pela OPAS estão de acordo com a concepção de saúde que
defendemos. A partir de Winnicott, podemos pensar que a qualidade dos cuidados
dispensados ao bebê tem impacto direto no seu desenvolvimento. Logo, é louvável que a
OPAS valorize e estimule políticas e ações de saúde que tenham como público-alvo os pais
e seus filhos como parte das estratégias de promoção de saúde. Entretanto, lembramos que
essas recomendações devem ser feitas a todos os pais, não importando a classe social.
Consideramos que todos têm a ganhar ao cuidarem melhor de seus filhos, ao transmitir-lhes
carinho e apoio.
O “Manual de identificação e promoção da resiliência em crianças e adolescentes”
da OPAS (1998) é bastante claro ao apresentar o conceito de resiliência, o perfil de
indivíduos resilientes e as ações promotoras de resiliência. Entretanto, a identificação do
atributo resiliência num indivíduo fica submetida a uma avaliação subjetiva e retroativa.
Dito de outra forma, a resiliência será identificada por alguém (profissional de saúde,
38 Este quadro é baseado nos quadros “Que pueden hacer los padres y adultos responsables?”. Para cada faixa etária existe um quadro correspondente no Manual da OPAS (1998). Esses quadros podem ser encontrados entre as páginas 29 e 49.
134
educador, cuidador) a partir da observação pessoal da história de superação de outra pessoa.
Dessa forma, não haveria como identificar a resiliência em um indivíduo antes que ele
fosse submetido a uma situação-limite e bem sucedido.
Apesar do desenvolvimento de uma escala de resiliência por Wagnild & Young
(1993) cinco anos antes da publicação do Manual da OPAS (1998), a primeira não é citada
pelo segundo. Entretanto, a escala proposta por Wagnild & Young (1993) já foi traduzida
para sete idiomas, inclusive a língua portuguesa (Pesce et al, 2005). Esse instrumento tem
como objetivo auxiliar a formulação e avaliação de ações de promoção de resiliência por
meio da mensuração da capacidade de ser resiliente dos indivíduos.
Segundo Wagnild & Young (1993), a escala de resiliência mede o grau de
resiliência dos indivíduos através da avaliação de características pessoais que facilitam a
adaptação a circunstâncias adversas, por exemplo, confiança em si mesmo, capacidade de
enfrentar problemas, capacidade de tomar decisões por si só. O instrumento é composto por
vinte e cinco afirmações e as respostas são dadas através de uma escala de concordância
que vai de 1 a 7. O numeral 1 corresponde à resposta “discordo fortemente”, enquanto o
numeral 7 significa “concordo fortemente”. O numeral marcado como resposta vale como
escore da questão. A soma dos escores de todas as questões pode variar entre 25 e 175.
Quanto maior for o escore total, maior é a capacidade de resiliência do respondente. Na
versão original39, em inglês, há vinte e seis afirmações, uma a mais que na versão brasileira.
Essa vigésima sexta afirmação é opcional, segundo Wagnild & Young (1993), e tem como
enunciado a frase: “eu sou resiliente”40.
39 Ver na seção “anexos” a versão original da escala de resiliência e a versão em português. 40 No original: “I am resilient”.
135
Todas as afirmativas do questionário buscam avaliar o quanto o respondente se
sente capaz de enfrentar e resolver situações adversas, como podemos constatar através das
afirmativas propostas pela escala. A afirmativa 2, por exemplo, diz “eu costumo lidar com
os problemas de uma forma ou de outra”; a 13 afirma “eu posso enfrentar tempos difíceis
porque já experimentei dificuldades antes”; ou ainda, a afirmativa dezessete, “minha crença
em mim mesmo me leva a atravessar tempos difíceis”.
Assim como no caso do WHOQOL-100, não nos cabe julgar se a escala de
resiliência de Wagnild & Young é ou não efetiva naquilo que se propõe fazer. A adaptação
para a população brasileira foi feita por Pesce et al (2005) e os autores avaliam
positivamente o instrumento. Nosso interesse está na relação direta entre o conceito de
resiliência e seu instrumento de mensuração. Assim como no caso do constructo qualidade
de vida, temos aqui um instrumento forjado a partir de um conceito positivo e que procura
medir aquilo que está definido no conceito de origem, neste caso específico a capacidade de
superar situações-limite sem sofrer muitos danos.
Acreditamos que este deve ser o caminho a ser seguido no campo da saúde.
Primeiro a discussão teórico-conceitual e somente em seguida a proposição metodológica.
Se quisermos sair do consenso paralisador em relação à precariedade da definição de saúde
como ausência de doença, teremos que construir uma cultura de valorização da
epistemologia em saúde. Experiências como as apresentadas neste capítulo são
contribuições nesse sentido. Contribuições valiosas, porém ainda tímidas, pois não
procuram reformar o conceito de saúde diretamente. Ambos os conceitos, qualidade de vida
e resiliência, apresentam-se como alternativas indiretas ao conceito negativo de saúde e em
alguns momentos estabelecem relação de complementaridade com este.
136
Com este capítulo, esperamos ter demonstrado que a busca pela positivação do
objeto saúde é possível e está em marcha. Optamos por apresentar apenas essas duas
experiências por elas estarem chanceladas por organismos internacionais. O que demonstra
que mesmo dentro dos centros produtores da racionalidade dominante em saúde há espaço
para a diferença e há insatisfação com a definição negativa de saúde. Entretanto,
experiências de positivação do objeto saúde podem ser encontradas em diferentes práticas e
discursos sobre saúde, como a Homeopatia, a Medicina Tradicional Chinesa e outros
movimentos ditos alternativos. Cada um com suas respectivas potências libertadoras e seus
correspondentes riscos de normatização da vida41.
41 Sobre racionalidades médicas e saúde ver Luz (1988 e 1993) e Martins (1999)
137
CONCLUSÃO
Este trabalho procurou, a partir de uma perspectiva filosófico-conceitual,
demonstrar que é possível definir saúde de maneira positiva, tendo a experiência do
indivíduo como ponto de partida. Não tivemos a pretensão de esgotar o tema, mesmo
porque, se há uma conclusão a que chegamos, é a de que o campo da saúde tem mais a
ganhar com o processo contínuo de debate acerca de seus conceitos fundamentais do que
com a supressão do debate pelo surgimento de uma nova verdade. Este trabalho é apenas
uma contribuição para o processo de discussão.
Nossa pesquisa termina com mais perguntas que respostas. Isso significa que a
conclusão a que se refere o título deste capítulo diz mais respeito a um ciclo – o curso de
mestrado – do que propriamente à pesquisa. Termina-se aqui uma importante etapa na
formação de um pesquisador, mas a pesquisa iniciada neste curso de mestrado parece ser
trabalho para uma vida. Contudo, acreditamos que algumas considerações podem ser feitas
acerca das idéias que apresentamos nos capítulos anteriores.
Ao longo do capítulo 1, apresentamos a definição de indicadores de saúde, como
são formados, exemplos desses instrumentos e sua relação com a definição negativa de
saúde. Durante a pesquisa que fizemos para o capítulo, a orientação e o exame de
qualificação, pudemos ter maior clareza acerca da importância dos indicadores de saúde
para as políticas e ações em saúde. A capacidade de mapear os agravos à saúde, de indicar
problemas sociais e de infraestrutura que impactam a saúde faz dos indicadores atuais
instrumentos imprescindíveis para a boa gestão dos recursos públicos e privados investidos
não apenas no setor de saúde stricto sensu, mas também em outros setores da economia.
138
Entretanto, esses instrumentos são limitados quando queremos investigar a saúde no
sentido positivo que demos ao termo. Isso não significa que indicadores clássicos e
definições positivas de saúde sejam incompatíveis. Mesmo quando as definições positivas
tiverem maior impacto nas políticas públicas, os indicadores clássicos continuarão a ter
grande importância pelas razões que apresentamos anteriormente. Afinal, utilizar uma
definição positiva de saúde não implica em negligenciar o combate às doenças, mas em
redimensionar o papel do combate às doenças dentro do campo da saúde. Isso significa que
combater e prevenir doenças são aspectos importantes das ações em saúde, mas que não são
a mesma coisa que promover saúde ou mesmo garantia de saúde para uma população.
Nesse contexto, os indicadores clássicos de saúde seriam parte de uma série de outros
instrumentos utilizados para orientar as políticas públicas de saúde nos seus aspectos de
prevenção e tratamento de doenças, assim como na promoção de saúde.
No capítulo 2, apresentamos, a partir de Canguilhem e Winnicott, o que
entendemos por saúde. Lá, argumentamos que a doença não é o pólo oposto da saúde e que
é possível viver com saúde mesmo acometido por alguma doença. Esse é um ponto que
devemos observar mais detalhadamente. A princípio, essa afirmação contém um paradoxo.
Sendo a saúde a ausência de doença, como se pode ter doença e saúde ao mesmo tempo?
Considerando a definição positiva de saúde que apresentamos – a capacidade de criar
soluções somatopsíquicas para os percalços inerentes ao viver – e entendendo doença,
grosso modo, como categoria nosológica, podemos pensar que quanto maior for a saúde de
um indivíduo, quanto mais potente ele for, maior será sua capacidade de construir
estratégias de enfrentamento da doença e soluções para as limitações impostas por esta. Por
exemplo, no caso de um paciente hospitalizado ou em tratamento, podemos pensar que sua
139
recuperação dependerá, em parte, da sua saúde, expressa na capacidade de participar
ativamente do seu próprio tratamento. Nesse sentido, o que chamamos de adesão ao
tratamento passa a ser compreendido como uma aliança entre a equipe de saúde e o
paciente. Mesmo em casos mais graves, como o de pacientes em estágio terminal, ainda
podemos falar em saúde. A possibilidade de ser ativo até o seu último instante de vida,
escolher onde morrer – permanecer no hospital ou ir para casa, por exemplo, é uma
manifestação da saúde possível naquele momento. É nesse sentido que afirmamos que
saúde é potência e que a capacidade de ser potente pode sempre ser redimensionada
infinitamente para que mesmo nas mais precárias situações de sustentabilidade da vida
possamos falar numa saúde possível. Nesta perspectiva, as estratégias de tratamento (e
cuidados paliativos) devem ser reorganizadas a fim de incluir diferentes profissionais e
práticas de saúde que fortaleçam o indivíduo, ao invés de apenas combater diretamente a
doença.
No capítulo 3, apresentamos dois conceitos que procuram valorizar aspectos
positivos da saúde: qualidade de vida e resiliência. O crescente interesse por qualidade de
vida e resiliência nos mostra como há entre os pesquisadores do campo a preocupação em
encontrar alternativas ao conceito negativo de saúde. O envolvimento de organismos
internacionais como a OMS e a OPAS é bem-vindo e dá maior legitimidade ao debate
acerca da epistemologia da saúde. Porém, é preciso mais do que a produção de conceitos
paralelos. Com o desenvolvimento científico e tecnológico, torna-se imperativo que
conceitos-chave como os de saúde, doença e vida ocupem papel de destaque na pauta de
discussão dos organismos internacionais, dos governos e das universidades. Do contrário,
corremos o risco de bloquear outros importantes debates – como o uso de células-tronco
140
embrionárias em pesquisas, eutanásia, aborto – e, sobretudo, corremos o risco de não
desenvolver novos dispositivos de atenção à saúde em nosso país. Ou seja, o debate
epistemológico em saúde é fundamental, pois não apenas organiza os saberes acerca da
saúde, mas, sobretudo, serve de balizamento ético para todas as ações na área. Quanto mais
explícito e direto for o debate, melhor.
Diferentemente do que se possa pensar, trabalhos conceituais podem ter grande
impacto prático na formulação de políticas públicas, na tomada de decisão de gestores e na
orientação das ações de promoção de saúde, prevenção e tratamento de doenças. Por
exemplo, se considerarmos a definição positiva de saúde que apresentamos, podemos
imaginar que ações de promoção de saúde poderiam ser balizadas pelos elementos
facilitadores de saúde que citamos. Isto significa que promover saúde ganharia uma
dimensão maior do que a prevenção de doenças e ações consideradas, até então, estranhas
ao campo da saúde ganhariam em importância, como: a construção de creches, hortas
comunitárias, etc. De modo algum estamos sugerindo abrir mão dos avanços já
conquistados, como o programa de saúde da família, os agentes comunitários de saúde, as
campanhas de imunização, a construção de postos e centros de saúde, etc. O que propomos
é a reflexão de que outros elementos podem se somar aos dispositivos já existentes para que
a promoção de saúde seja o mais efetiva possível. Dessa forma, a diferença entre prevenção
e promoção de saúde ficaria mais nítida, pois a primeira se caracterizaria pelas ações que
visassem diminuir as chances de um indivíduo contrair determinada doença, enquanto a
segunda seria o conjunto de ações que favorecessem a capacidade de ser espontâneo,
capacidade de transformação da realidade compartilhada, as expectativas em relação ao
futuro, os sentimentos positivos em relação a si e o apoio social.
141
Por esta perspectiva, saúde passa a ser um tema transversal nas ações
governamentais, assim como sustentabilidade ambiental, direitos humanos e
desenvolvimento econômico o são. Isto não implica na dissolução dos limites dos
ministérios e secretarias de governo, cada um continuaria com as suas atribuições
específicas e seus respectivos orçamentos. A diferença estaria em considerar os impactos
positivos à saúde como elemento a ser considerado no planejamento e execução das ações
de cada ministério ou secretaria.
Entendemos que nossas propostas são ainda insipientes, servindo mais como
provocação ao debate que efetivamente propostas a serem postas em prática imediatamente.
É preciso aprofundar os pontos discutidos nesta dissertação e, ainda, considerar outros
elementos que não puderam ser abordados. Um desses elementos é a relação entre os
princípios do SUS, principalmente integralidade, e o conceito negativo de saúde.
Acreditamos que a investigação desse tema pode trazer ainda mais elementos que
justifiquem a necessidade de uma revisão dos conceitos utilizados pelo campo da saúde.
Afinal, como podemos pensar a integralidade da atenção e a conseqüente
interdisciplinaridade dos cuidadores, se o conceito negativo e hegemônico de saúde
supervaloriza os aspectos biológicos em detrimento dos aspectos psíquicos e sociais? E
mesmo dentre os aspectos biológicos há a supervalorização da biomedicina. A princípio,
parece-nos que há uma incompatibilidade entre a lei do SUS e o conceito negativo de
saúde. Estudar o tema pode levantar mais hipóteses sobre a dificuldade de completar a
implementação do SUS, que provavelmente não se restringe somente à falta de
investimento financeiro por parte dos governos. Acreditamos que este tema merece uma
pesquisa à parte.
142
Outras questões permanecem em aberto e precisam ser consideradas no futuro. Por
exemplo, como construir indicadores da saúde positivamente definida? Existem
ferramentas metodológicas para isso ou seria preciso criá-las? Como operacionalizar
conceitos positivos de saúde (e de doença) para potencializar o trabalho clínico? Estas e
outras perguntas só poderão obter respostas – se isso for possível – a partir do permanente
exercício de repensar os conceitos e, conseqüentemente, as práticas. Abrimos este trabalho
apresentando a crítica de Almeida Filho (1990 e 2000a) à supervalorização da produção
metodológica em saúde em detrimento da produção conceitual. O autor parece ter razão.
Pouco nos servirá um grande número de instrumentos cientificamente concebidos, se o solo
epistemológico em que eles se apóiam for pobre. Quanto mais claros forem os conceitos,
mais efetivas serão as ações de proteção e promoção da saúde.
Por ora, o que podemos concluir é que a qualidade dos instrumentos de mensuração
da saúde depende antes da epistemologia que da metodologia, se esta não repensar seus
fundamentos, e que, provavelmente, está na primeira boa parte das soluções para os
impasses que apresentamos nesta dissertação.
143
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149
WHOQOL-100 Versão em português
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE AVALIAÇÃO DE QUALIDADE DE VIDA
Coordenação do Grupo WHOQOL no Brasil Dr. Marcelo Pio de Almeida Fleck
Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Porto Alegre- RS - Brasil Instruções Este questionário é sobre como você se sente a respeito de sua qualidade de vida, saúde e
outras áreas de sua vida. Por favor, responda todas as questões. Se você não tem certeza
sobre que resposta dar em uma questão, por favor, escolha entre as alternativas a que lhe
parece mais apropriada. Esta, muitas vezes, poderá ser a sua primeira escolha.
Por favor, tenha em mente seus valores, aspirações, prazeres e preocupações. Nós estamos
perguntando o que você acha de sua vida, tomando como referência às duas últimas
semanas.
Por exemplo, pensando nas últimas duas semanas, uma questão poderia ser:
Quanto você se preocupa com sua saúde?
nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente
1 2 3 4 5 Você deve circular o número que melhor corresponde ao quanto você se preocupou com
sua saúde nas últimas duas semanas. Portanto, você deve fazer um círculo no número 4 se
você se preocupou "bastante" com sua saúde, ou fazer um círculo no número 1 se você não
se preocupou "nada" com sua saúde. Por favor, leia cada questão, veja o que você acha, e
faça um círculo no número que lhe parece a melhor resposta.
Muito obrigado por sua ajuda.
150
As questões seguintes são sobre o quanto você tem sentido algumas coisas nas últimas duas
semanas. Por exemplo, sentimentos positivos tais como felicidade ou satisfação. Se você
sentiu estas coisas "extremamente", coloque um círculo no número abaixo de
"extremamente". Se você não sentiu nenhuma destas coisas, coloque um círculo no número
abaixo de "nada". Se você desejar indicar que sua resposta se encontra entre "nada" e
"extremamente", você deve colocar um círculo em um dos números entre estes dois
extremos. As questões se referem às duas últimas semanas.
F1.2 Você se preocupa com sua dor ou desconforto (físicos)? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F1.3 Quão difícil é para você lidar com alguma dor ou desconforto? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F1.4 Em que medida você acha que sua dor (física) impede você de fazer o que você precisa? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F2.2 Quão facilmente você fica cansado(a)? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F2.4 O quanto você se sente incomodado(a) pelo cansaço? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F3.2 Você tem alguma dificuldade para dormir (com o sono)? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F3.4 O quanto algum problema com o sono lhe preocupa? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F4.1 O quanto você aproveita a vida? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5
151
F4.3 Quão otimista você se sente em relação ao futuro? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F4.4 O quanto você experimenta sentimentos positivos em sua vida? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F5.3 O quanto você consegue se concentrar? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F6.1 O quanto você se valoriza? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F6.2 Quanta confiança você tem em si mesmo? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F7.2 Você se sente inibido(a) por sua aparência? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F7.3 Há alguma coisa em sua aparência que faz você não se sentir bem? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F8.2 Quão preocupado(a) você se sente? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F8.3 Quanto algum sentimento de tristeza ou depressão interfere no seu dia-a-dia? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5
152
F8.4 O quanto algum sentimento de depressão lhe incomoda? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F10.2 Em que medida você tem dificuldade em exercer suas atividades do dia-a-dia? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F10.4 Quanto você se sente incomodado por alguma dificuldade em exercer as atividades do dia-a-dia? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F11.2 Quanto você precisa de medicação para levar a sua vida do dia-a-dia? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F11.3 Quanto você precisa de algum tratamento médico para levar sua vida diária? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F11.4 Em que medida a sua qualidade de vida depende do uso de medicamentos ou de ajuda médica? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F13.1 Quão sozinho você se sente em sua vida? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F15.2 Quão satisfeitas estão as suas necessidades sexuais? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F15.4 Você se sente incomodado(a) por alguma dificuldade na sua vida sexual? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5
153
F16.1 Quão seguro(a) você se sente em sua vida diária? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F16.2 Você acha que vive em um ambiente seguro? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F16.3 O quanto você se preocupa com sua segurança? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F17.1 Quão confortável é o lugar onde você mora? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F17.4 O quanto você gosta de onde você mora? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F18.2 Você tem dificuldades financeiras? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F18.4 O quanto você se preocupa com dinheiro? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F19.1 Quão facilmente você tem acesso a bons cuidados médicos? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F21.3 O quanto você aproveita o seu tempo livre? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F22.1 Quão saudável é o seu ambiente físico (clima, barulho, poluição, atrativos) ? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5
154
F22.2 Quão preocupado(a) você está com o barulho na área que você vive? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F23.2 Em que medida você tem problemas com transporte? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F23.4 O quanto as dificuldades de transporte dificultam sua vida? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 As questões seguintes perguntam sobre quão completamente você tem sentido ou é capaz
de fazer certas coisas nestas últimas duas semanas. Por exemplo, atividades diárias tais
como lavar-se, vestir-se e comer. Se você foi capaz de fazer estas atividades
completamente, coloque um círculo no número abaixo de "completamente". Se você não foi
capaz de fazer nenhuma destas coisas, coloque um círculo no número abaixo de "nada". Se
você desejar indicar que sua resposta se encontra entre "nada" e "completamente", você
deve colocar um círculo em um dos números entre estes dois extremos. As questões se
referem às duas últimas semanas.
F2.1 Você tem energia suficiente para o seu dia-a-dia? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F7.1 Você é capaz de aceitar a sua aparência física? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F10.1 Em que medida você é capaz de desempenhar suas atividades diárias? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F11.1 Quão dependente você é de medicação? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F14.1 Você consegue dos outros o apoio que necessita? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5
155
F14.2 Em que medida você pode contar com amigos quando precisa deles? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F17.2 Em que medida as características de seu lar correspondem às suas necessidades? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F18.1 Você tem dinheiro suficiente para satisfazer suas necessidades? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F20.1 Quão disponível para você estão as informações que precisa no seu dia-a-dia? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F20.2 Em que medida você tem oportunidades de adquirir informações que considera necessárias? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F21.1 Em que medida você tem oportunidades de atividades de lazer? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F21.2 Quanto você é capaz de relaxar e curtir você mesmo? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F23.1 Em que medida você tem meios de transporte adequados? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5
156
As questões seguintes perguntam sobre o quão satisfeito(a), feliz ou bem você se sentiu a
respeito de vários aspectos de sua vida nas últimas duas semanas. Por exemplo, na sua vida
familiar ou a respeito da energia (disposição) que você tem. Indique quão satisfeito(a) ou
não satisfeito(a) você está em relação a cada aspecto de sua vida e coloque um círculo no
número que melhor represente como você se sente sobre isto. As questões se referem às
duas últimas semanas.
G2 Quão satisfeito(a) você está com a qualidade de sua vida? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 G3 Em geral, quão satisfeito(a) você está com a sua vida? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 G4 Quão satisfeito(a) você está com a sua saúde? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F2.3 Quão satisfeito(a) você está com a energia (disposição) que você tem? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F3.3 Quão satisfeito(a) você está com o seu sono? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F5.2 Quão satisfeito(a) você está com a sua capacidade de aprender novas informações? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F5.4 Quão satisfeito(a) você está com sua capacidade de tomar decisões? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5
157
F6.3 Quão satisfeito(a) você está consigo mesmo? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F6.4 Quão satisfeito(a) você está com suas capacidades? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F7.4 Quão satisfeito(a) você está com a aparência de seu corpo? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F10.3 Quão satisfeito(a) você está com sua capacidade de desempenhar as atividades do seu dia-a-dia? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F13.3 Quão satisfeito(a) você está com suas relações pessoais (amigos, parentes, conhecidos, colegas)? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F15.3 Quão satisfeito(a) você está com sua vida sexual? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F14.3 Quão satisfeito(a) você está com o apoio que você recebe de sua família? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F14.4 Quão satisfeito(a) você está com o apoio que você recebe de seus amigos? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5
158
F13.4 Quão satisfeito(a) você está com sua capacidade de dar apoio aos outros? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F16.4 Quão satisfeito(a) você está com com a sua segurança física (assaltos, incêndios, etc.)? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F17.3 Quão satisfeito(a) você está com as condições do local onde mora? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F18.3 Quão satisfeito(a) você está com sua situação financeira? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F19.3 Quão satisfeito(a) você está com o seu acesso aos serviços de saúde? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F19.4 Quão satisfeito(a) você está com os serviços de assistência social? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F20.3 Quão satisfeito(a) você está com as suas oportunidades de adquirir novas habilidades? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F20.4 Quão satisfeito(a) você está com as suas oportunidades de obter novas informações? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5
159
F21.4 Quão satisfeito(a) você está com a maneira de usar o seu tempo livre? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F22.3 Quão satisfeito(a) você está com o seu ambiente físico ( poluição, clima, barulho, atrativos)? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F22.4 Quão satisfeito(a) você está com o clima do lugar em que vive? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F23.3 Quão satisfeito(a) você está com o seu meio de transporte? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F13.2 Você se sente feliz com sua relação com as pessoas de sua família? Muito infeliz infeliz nem feliz nem infeliz feliz muito feliz 1 2 3 4 5 G1 Como você avaliaria sua qualidade de vida? muito ruim ruim nem ruim nem boa boa muito boa 1 2 3 4 5 F15.1 Como você avaliaria sua vida sexual? Muito ruim ruim nem ruim nem boa boa muito boa 1 2 3 4 5 F3.1 Como você avaliaria o seu sono? Muito ruim ruim nem ruim nem bom bom muito bom 1 2 3 4 5
160
F5.1 Como você avaliaria sua memória? Muito ruim ruim nem ruim nem boa boa muito boa 1 2 3 4 5 F19.2 Como você avaliaria a qualidade dos serviços de assistência social disponíveis para você? Muito ruim ruim nem ruim nem boa boa muito boa 1 2 3 4 5 As questões seguintes referem-se a "com que freqüência" você sentiu ou experimentou
certas coisas, por exemplo, o apoio de sua família ou amigos ou você teve experiências
negativas, tais como um sentimento de insegurança. Se, nas duas últimas semanas, você
não teve estas experiências de nenhuma forma, circule o número abaixo da resposta
"nunca". Se você sentiu estas coisas, determine com que freqüência você os experimentou e
faça um círculo no número apropriado. Então, por exemplo, se você sentiu dor o tempo
todo nas últimas duas semanas, circule o número abaixo de "sempre". As questões referem-
se às duas últimas semanas.
F1.1 Com que freqüência você sente dor (física)? Nunca raramente às vezes repetidamente sempre 1 2 3 4 5 F4.2 Em geral, você se sente contente? Nunca raramente às vezes repetidamente sempre 1 2 3 4 5 F8.1 Com que freqüência você tem sentimentos negativos, tais como mau humor, desespero, ansiedade, depressão? Nunca raramente às vezes repetidamente sempre 1 2 3 4 5
161
As questões seguintes se referem a qualquer "trabalho" que você faça. Trabalho aqui
significa qualquer atividade principal que você faça. Pode incluir trabalho voluntário,
estudo em tempo integral, cuidar da casa, cuidar das crianças, trabalho pago ou não.
Portanto, trabalho, na forma que está sendo usada aqui, quer dizer as atividades que você
acha que tomam a maior parte do seu tempo e energia. As questões referem-se às últimas
duas semanas.
F12.1 Você é capaz de trabalhar? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F12.2 Você se sente capaz de fazer as suas tarefas? nada muito pouco médio muito completamente 1 2 3 4 5 F12.4 Quão satisfeito(a) você está com a sua capacidade para o trabalho? muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 F12.3 Como você avaliaria a sua capacidade para o trabalho? muito ruim ruim nem ruim nem boa boa muito boa 1 2 3 4 5 As questões seguintes perguntam sobre "quão bem você é capaz de se locomover"
referindo-se às duas últimas semanas. Isto em relação à sua habilidade física de mover o
seu corpo, permitindo que você faça as coisas que gostaria de fazer, bem como as coisas
que necessite fazer.
F9.1 Quão bem você é capaz de se locomover? muito ruim ruim nem ruim nem bom bom muito bom 1 2 3 4 5 F9.3 O quanto alguma dificuldade de locomoção lhe incomoda? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5
162
F9.4 Em que medida alguma dificuldade em mover-se afeta a sua vida no dia-a-dia? Nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F9.2 Quão satisfeito(a) você está com sua capacidade de se locomover? Muito insatisfeito insatisfeito nem satisfeito nem insatisfeito satisfeito muito satisfeito 1 2 3 4 5 As questões seguintes referem-se às suas crenças pessoais, e o quanto elas afetam a sua
qualidade de vida. As questões dizem respeito à religião, à espiritualidade e outras crenças
que você possa ter. Uma vez mais, elas referem-se às duas últimas semanas.
F24.1 Suas crenças pessoais dão sentido à sua vida? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F24.2 Em que medida você acha que sua vida tem sentido? Nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F24.3 Em que medida suas crenças pessoais lhe dão força para enfrentar dificuldades? Nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5 F24.4 Em que medida suas crenças pessoais lhe ajudam a entender as dificuldades da vida? nada muito pouco mais ou menos bastante extremamente 1 2 3 4 5
163
THE RESILIENSE SCALE™
Please read the following statements. To the right of each you will find seven numbers, ranging from "1" (Strongly Disagree) on the left to "7" (Strongly Agree) on the right. Circle the number which best indicates your feelings about that statement. For example, if you strongly disagree with a statement, circle "1". If you are neutral, circle "4", and if you strongly agree, circle "7", etc.
Strongly Strongly
Disagree Agree 1. When I make plans, I follow
through with them. 1 2 3 4 5 6 7
2. I usually manage one way or another.
1 2 3 4 5 6 7
3. I am able to depend on myself more than anyone else.
1 2 3 4 5 6 7
4. Keeping interested in things is important to me.
1 2 3 4 5 6 7
5. I can be on my own if I have to. 1 2 3 4 5 6 7 6. I feel proud that I have
accomplished things in life. 1 2 3 4 5 6 7
7. I usually take things in stride. 1 2 3 4 5 6 7 8. I am friends with myself. 1 2 3 4 5 6 7 9. I feel that I can handle many things
at a time. 1 2 3 4 5 6 7
10. I am determined. 1 2 3 4 5 6 7 11. I seldom wonder what the point of
it all is. 1 2 3 4 5 6 7
12. I take things one day at a time. 1 2 3 4 5 6 7 13. I can get through difficult times
because I've experienced difficulty before.
1 2 3 4 5 6 7
14. I have self-discipline. 1 2 3 4 5 6 7 15. I keep interested in things. 1 2 3 4 5 6 7 16. I can usually find something to
laugh about. 1 2 3 4 5 6 7
17. My belief in myself gets me through hard times.
1 2 3 4 5 6 7
18. In an emergency, I'm someone people can generally rely on.
1 2 3 4 5 6 7
19. I can usually look at a situation in a number of ways.
1 2 3 4 5 6 7
20. Sometimes I make myself do things whether I want to or not.
1 2 3 4 5 6 7
164
Strongly Strongly Disagree Agree
21. My life has meaning. 1 2 3 4 5 6 7 22. I do not dwell on things that I can't
do anything about. 1 2 3 4 5 6 7
23. When I'm in a difficult situation, I can usually find my way out of it.
1 2 3 4 5 6 7
24. I have enough energy to do what I have to do.
1 2 3 4 5 6 7
25. It's okay if there are people who don't like me.
1 2 3 4 5 6 7
26. I am resilient. 1 2 3 4 5 6 7
165
PORTUGUESE TRANSLATION OF THE RESILIENCE SCALE
Renata P. PesceI, II; Simone G. AssisII; Joviana Q. AvanciII; Nilton C. SantosII; Juaci V. MalaquiasII; Raquel CarvalhaesII
ICentro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
IIEscola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil
RESUMO
Busca-se apresentar os resultados da adaptação transcultural para o português da escala de resilência de Wagnild & Young e da avaliação psicométrica desta. A escala foi adaptada para uma amostra de escolares dos ensinos fundamental e médio da rede pública de ensino do Município de São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brasil. São apresentados dados do estudo-piloto, com 203 alunos entrevistados em dois momentos consecutivos (teste-reteste), bem como do total de alunos investigados na pesquisa (977). Quanto à adaptação transcultural, foram encontrados bons resultados na equivalência semântica dos itens, tanto para o significado geral,quanto para o referencial. O alfa de Chronbach encontrado foi de 0,85 no pré-teste e 0,80 na amostra total. Na confiabilidade intra-observador, verificou-se que o kappa situou-se entre regular e moderado e o coeficiente de correlação intraclasse foi de 0,746 (p = 0,000). Análise fatorial indicou três fatores não totalmente homogêneos e diferenciados dos achados pelo autor da escala. Quanto à validade de constructo, nota-se correlação direta e significativa com auto-estima, supervisão familiar, satisfação de vida e apoio social. Verificou-se correlação inversa com a escala que avalia violência psicológica.
ABSTRACT
This study describes the cross-cultural adaptation to Portuguese and the psychometric evaluation of the resilience scale developed by Wagnild & Young. The scale was adapted for a sample of students from public schools in São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brazil. Data from the pilot study (203 students interviewed at two points in time) and from the entire study (977) are presented. The cross-cultural adaptation showed good results in the semantic equivalence for: general meaning (above 90.0%) and referential meaning (above 85.0%). Chronbach alpha was 0.85 in the pilot study and 0.80 in the total sample. Kappa between the two points in time was regular and moderate, and the intraclass correlation coefficient was 0.746 (p = 0.000). Factorial analysis indicated three non-homogeneous factors. Construct validity demonstrated direct and significant correlation with self-esteem, family supervision, life satisfaction, and social support. There was an inverse correlation with the scale that evaluates psychological violence.
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Escala de Resiliência Itens Discordo Concordo
Fortemente Fortemente 1. Quando eu faço planos, eu os levo
até o fim. 1 2 3 4 5 6 7
2. Eu costumo lidar com os problemas de uma forma ou de outra.
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3. Eu sou capaz de depender de mim mais do que de qualquer outra pessoa.
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4. Manter Interesse nas coisas é importante para mim.
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5. Eu posso estar por minha conta se eu precisar.
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6. Eu sinto orgulho de ter realizado coisas em minha vida.
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7. Eu costumo aceitar as coisas sem muita preocupação.
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8. Eu sou amigo de mim mesmo 1 2 3 4 5 6 7 9. Eu sinto que posso lidar com
várias coisas ao mesmo tempo. 1 2 3 4 5 6 7
10. Eu sou determinado. 1 2 3 4 5 6 7 11. Eu raramente penso sobre o
objetivo das coisas. 1 2 3 4 5 6 7
12. Eu faço as coisas um dia de cada vez.
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13. Eu posso enfrentar tempos difíceis porque já experimentei dificuldades antes.
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14. Eu sou disciplinado. 1 2 3 4 5 6 7 15. Eu mantenho interesse nas coisas. 1 2 3 4 5 6 7 16. Eu normalmente posso achar
motivo para rir. 1 2 3 4 5 6 7
17. Minha crença em mim mesmo me leva a atravessar tempos difíceis
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18. Em uma emergência, eu sou uma pessoa em quem as pessoas podem contar
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19. Eu posso geralmente olhar uma situação de diversas maneiras.
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20. As vezes eu me obrigo a fazer coisas querendo ou não.
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Itens Discordo Concordo Fortemente Fortemente
21. Minha vida tem sentido. 1 2 3 4 5 6 7 22. Eu não insisto em coisas as quais
eu não posso fazer nada sobre elas.
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23. Quando eu estou numa situação difícil, eu normalmente acho uma saída.
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24. Eu tenho energia suficiente para fazer o que eu tenho que fazer.
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25. Tudo bem se há pessoas que não gostam de mim.
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© Wagnild and Young (1987). Portuguese translation: Pesce, Assis, and Santos (2004).