Post on 25-Sep-2020
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Geografia
Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana
Thiago Araujo Santos
ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO (ASA BRASIL):
A convivência com o semiárido e a construção de um regionalismo de
resistência
(Versão corrigida)
São Paulo
2016
Thiago Araujo Santos
ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO (ASA BRASIL):
A convivência com o semiárido e a construção de um regionalismo de
resistência
(Versão corrigida)
Tese apresentada à Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para a
obtenção de Título de Doutor em Ciências,
na Área de Geografia Humana.
Orientador (a): Profa. Dra. Marta Inez
Medeiros Marques
São Paulo
2016
iii
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
iv
Nome: Thiago Araujo Santos
Título: Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA Brasil): A convivência com o
semiárido e a construção de um regionalismo de resistência
Aprovado em:
Banca Examinadora
Julgamento: ____________________ Assinatura:____________________
Profa. Dra. Marta Inez Medeiros Marques
Orientadora
Tese apresentada à Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo para obtenção
do título de Doutor em Ciências, na Área
de Geografia Humana.
Prof. Dr. (a):________________________________________
Instituição:________________________________________
Julgamento:________________________________________
Assinatura:________________________________________
Prof. Dr. (a): ________________________________________
Instituição:________________________________________
Julgamento:________________________________________
Assinatura:________________________________________
Prof. Dr. (a): ________________________________________
Instituição:________________________________________
Julgamento:________________________________________
Assinatura:________________________________________
Prof. Dr. (a): ________________________________________
Instituição:________________________________________
Julgamento:________________________________________
Assinatura:________________________________________
vi
Agradecimentos
À Marta Inez Medeiros Marques, pela confiança e liberdade na orientação desta tese, bem
como pela inspiração semeada sob a forma verbal de ensinamentos ou de postura intelectual e
acadêmica.
À Valéria de Marcos. Por cada ensinamento, pela paciência de me formar pesquisador, pela
confiança em meu trabalho e pelos caminhos abertos no mundo da ciência.
À Larissa Mies Bombardi, pelas discussões na disciplina “Campesinato e luta de classes”.
A Ariovaldo Umbelino de Oliveira, pelas contribuições trazidas na avaliação do relatório de
qualificação.
À Emilia Moreira de Rodat, pela disposição e interesse em contribuir para esta pesquisa
através do projeto Casadinho (UFPB/USP).
A Pedro Vianna e Segundo Neto, pelos mapas.
A Anieres Barbosa da Silva e Clécio Petrúcio, pelas dicas aos trabalhos de campo.
A Marco Antonio Mitidiero Junior, pela amizade e interlocução constante.
A Antonio Carlos Robert Moraes (in memorian), pelos frutíferos e inesquecíveis diálogos e
pela inspiração permanente.
Aos camponeses e lideranças da ASA entrevistados nesta pesquisa. Pelas palavras, gestos e
silêncios. Pelos ditos e não ditos. Pela água e o café oferecidos. Pelas conversas.
Aos amigos. De João Pessoa (todos!), especialmente a Marcos Aurélio Fernandes, pela
década de cumplicidade. Aos de São Paulo (todos!), pelas preciosas vivências e experiências
compartidas nestes últimos oito anos: Fábio de Oliveira, Francisco Barbosa de Macedo,
Rafael Fanni, Mateus Araújo, Michell Tolentino, Carlos Andrés, Jáder Muniz, Jose Arnaldo,
Samarone Marinho, Andrei Cornetta, Michel Rocha e tantos outros. Aos da Projete Liberdade
Capoeira, pelo alento revigorante.
À Pietra Cepero, pelo apoio dado na finalização do trabalho.
Aos companheiros do grupo de estudos “Campo em Movimento”, pelo olhar inquieto
compartilhado frente ao mundo.
À Jennifer Caroline de Sousa, pela incansável prestatividade e incontáveis contribuições
dadas ao longo do último ano de realização desta pesquisa. Pelo acalento carinhoso nos
momentos mais intensos de inquietação e pelas palavras, sempre precisas, que nutriram
confiança e ânimo, essenciais no processo de escrita. Pela presença de sempre. E pelo amor.
Por fim, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela
bolsa concedida.
vii
Queremos ser libertados. O que dá uma enxadada no chão quer saber
o sentido dessa enxadada. E a enxada do forçado, que humilha o
forçado, não é a mesma enxada do lavrador, que exalta o lavrador. A
prisão não está onde se trabalha com a enxada. Não há o horror
material. A prisão está onde o trabalho da enxada não tem sentido,
não liga quem o faz à comunidade dos homens.
E nós queremos fugir da prisão.
“Terra dos Homens”, Antoine de Saint-Exupéry
viii
Resumo
SANTOS, T. A. Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA Brasil): A convivência com o
semiárido e a construção de um regionalismo de resistência [tese]. São Paulo: Universidade
de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2015.232 f.
A Articulação no Semiárido (ASA Brasil) – organização que reúne mais de 3000 movimentos
sociais, sindicatos, ONGs, associações, coletivos locais e regionais – surge, em 1999, com o
intuito de fortalecer a reivindicação por soluções definitivas às dificuldades de abastecimento
e acesso à água no semiárido brasileiro. Por um lado, o enfoque da ASA está no
desenvolvimento e consolidação de um amplo leque de estratégias organizativas voltadas à
valorização da autonomia e ao fortalecimento político dos camponeses. Por outro lado, as
organizações e movimentos que compõem a ASA dedicam-se à construção e difusão de
tecnologias alternativas, de baixo custo, que possibilitam o armazenamento hídrico
descentralizado por meio da captação de água da chuva, sendo as cisternas de placas a
principal entre elas. Através das estratégias assumidas e das tecnologias alternativas
desenvolvidas, as organizações e movimentos sociais ligados à ASA assumem uma posição
política contrária às tradicionais “soluções hídricas” assentadas nas grandes obras de
açudagem e nas medidas paliativas de “combate à seca”, sobretudo por estas resultarem na
concentração do abastecimento de água e abrirem espaço para a reprodução de relações de
dominação político-clientelistas, sendo a troca de água por voto sua expressão mais evidente.
Em 2003, foi criado o Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com
o Semiárido: Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC), fruto de uma parceria estabelecida
entre a ASA e o governo federal. Transformada em política pública, a distribuição das
cisternas de placas exigiu da ASA a configuração de um aprimorado processo organizativo,
de modo a possibilitar um considerável alargamento do alcance espacial dessa articulação e
sua atuação em múltiplas escalas geográficas. Tomando como referência a estrutura
organizativa e as estratégias configuradas pela Articulação, dedicamo-nos, nesta tese, à
análise da dimensão política das ações de convivência com o semiárido desenvolvidas pela
ASA. Nesta abordagem, constituem-se objeto de nosso interesse as implicações decorrentes
da relação estabelecida com o Estado e os antagonismos frente às tradicionais políticas de
combate à seca. Com base nas informações obtidas através de entrevistas, análise documental
e trabalhos de campo, fomos levados a considerar as ações político-interventivas e as
representações que acompanham as perspectivas de “combate à seca” e “convivência com o
semiárido” como ideologias geográficas que evidenciam, através do regionalismo,
contrapostos interesses de classe, revelando um conflito que encontra na relação entre política
e espaço um elemento central.
Palavras-chave: convivência com o semiárido; ideologias geográficas; campesinato.
ix
Abstract
SANTOS, T. A. Articulation in the Brazilian semiarid (ASA Brazil): The relationship with
semiarid and the construction of a resistance regionalism [tese] São Paulo: Universidade de
São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2015. 232 f.
The Articulation in the Semi-arid (ASA Brazil) – organization that assembles more than 3.000
social movements, syndicates, Non-governmental Organizations, associations, regional and
local collectivities – arose in 1999, with the intention for strengthen the demand for definite
solutions to supplies and water access difficulties of the Brazilian semi-arid. On the one hand,
ASA‟s focus is development and consolidation of wide range organized strategies directed in
valuation of autonomy and political strengthening of the peasants. On the other hand, ASA‟s
organizations and movements pursue for building and propagation cheaper alternative
technologies that allow decentralized water storage through rain capture, being plates tanks
the main option among them. Through the adopted strategies and developed alternative
technologies, organizations and social movements joined ASA admit an opposite political
position to traditional “water troubleshooting” based on big buildings and palliative ways to
“struggle against drought”, mainly for these ones result in water storage concentration and
open up space for reproduction of political-customer domination relationships, being water
change for vote the most evident expression of this. In 2003, The Formation and Social
Mobilization for Living in the Semi-Arid Program: One Million of Rural Tanks (P1MC)
created as a product of an established union between ASA and federal government. It has
been become a public policy, the plates tanks distribution required from ASA the
configuration of a refined organizational process, so that to enable a reasonable expansion of
spatial reach of this articulation and its action on multiple geographic scales. Taking
organizational structure and configured strategies by ASA as references, here, we aimed to
analyze political dimensions of relationship with the semi-arid‟s actions developed by ASA.
In this approach, the object is composed of consequential implications from established
interaction between the State and opponents against traditional politics of struggle against
drought. Based on obtained data by interviews, documentary analysis and field works, we
have considered that political-interventional actions and representations which are side by
side to the “struggle against drought” and “relationship with the semi-arid” perspectives as
geographic ideologies, that shows through the regionalism, contrary class interests, revealing
a disagreement essentially triggered by relation between politics and space.
Key-words: relationship with the semiarid; geographic ideologies; peasantry.
x
Lista de Figuras
Foto 1 – Processo de construção da cisterna – a base e as paredes. ....................................... 149
Foto 2 – Processo de construção da cisterna – a estrutura de apoio da parte superior.. ......... 149
Foto 3 – O processo de construção da cisterna – disposição das placas e acabamento. ......... 150
Foto 4 – A entrega da cisterna para a família beneficiada...................................................... 150
Foto 5 – Integrantes do Coletivo ASA Cariri Oriental Paraibano (CASACO), criado com
parte do P1MC. Na ocasião, os membros do Casaco participavam de um ato em defesa às
políticas de convivência com o semiárido, realizado na cidade de Campina Grande-PB. ..... 158
Foto 6 – Momento de oração no início do Curso de Gerenciamento de Recursos Hídricos
(GRH) – Comunidade Malhadinha, Jericó-PB. ...................................................................... 161
Foto 7 – Roteiro de apresentação dos integrantes da ASA sobre o P1MC, no Curso de
Gerenciamento de Recursos Hídricos (GRH) - Comunidade Malhadinha, Jericó-PB. .......... 161
Foto 8 – Destruição de cisterna de plástico em ocupação da Codevasp. Juazeiro-BA. ......... 176
Foto 9 – Cisterna de plástico transportada em caminhão do Ministério da Integração
Nacional (MIN). Cacimba de Dentro-PB. .............................................................................. 176
Foto 10 – Simulação de um cortejo fúnebre de uma cisterna de plástico. Ato de protesto
realizado em Campina Grande-PB. ........................................................................................ 177
Foto 11 – Cartaz destacando a rejeição às cisternas de plástico por camponeses do
município de Aroeiras-PB. Ato de protesto realizado em Campina Grande-PB.................... 177
Foto 12 – Segurando um cartaz com a frase “Somos nordestinos de Coração Valente”, em
referência a um slogan de campanha da candidata Dilma Rousseff, milhares de
camponeses marchando sobre a ponte de Juazeiro-BA/Petrolina-PE. ................................... 181
Foto 13 – Saudação de Dilma Rousseff aos milhares de camponeses presentes no ato em
seu apoio. Petrolina-PE.. ........................................................................................................ 181
xi
Sumário
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 12
Notas preliminares ................................................................................................................ 13
Abordagem metodológica ..................................................................................................... 16
Apresentação da problemática .............................................................................................. 19
Espaço e ideologia ................................................................................................................ 24
Região e regionalismo .......................................................................................................... 38
CAPÍTULO 1 – NORDESTE, REGIÃO-PROBLEMA E O COMBATE À SECA: ideologia geográfica de
um regionalismo de dominação ................................................................................................ 46
1.1. Sertão: espaço-outro ..................................................................................................... 49
1.2. Aspectos ambientais do Sertão nordestino .................................................................... 62
1.3. O combate à seca e o discurso regionalista: intervenções governamentais na
“região problema”..................................................................................................................... 70
CAPÍTULO 2 – CAMPESINATO E POLÍTICA: Expressões de resistência na realidade brasileira ... 85
2.1. Marxismo, campesinato e classe social: um percurso teórico ....................................... 88
2.2. O campesinato e a política na realidade brasileira ....................................................... 106
2.2.1. Expressões primordiais de resistência camponesa no sertão dos “coronéis” ........ 106
2.2.2. Expressões classistas nas lutas camponesas em um cenário de transformações ... 114
CAPÍTULO 3 - OS PASSOS DA ASA BRASIL SOBRE O CHÃO DO POVO: Os horizontes da
autonomia e a convivência com o semiárido .......................................................................... 126
3.1. As bases movimentalistas da ASA: o campo ético-político dos movimentos
populares ................................................................................................................................. 129
3.2. O processo de formação da ASA e os horizontes da autonomia ................................. 139
3.2.1. Das articulações à institucionalização da ASA ..................................................... 143
3.2.2. A estrutura organizativa da ASA e seus códigos ético-políticos .......................... 153
3.2.3. A relação ASA-Estado e o horizonte da autonomia de movimento ...................... 167
CONSIDERAÇÕES FINAIS – CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO: ideologia geográfica de um
regionalismo de resistência ..................................................................................................... 191
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................... 201
ANEXOS ................................................................................................................................... 213
13
Notas preliminares
Nesta tese, tomando como referência a estrutura organizativa e as estratégias
configuradas pela Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA Brasil), dedicamo-nos à análise
da dimensão política das ações de “convivência com o semiárido” e os antagonismos
assumidos pela Articulação frente às tradicionais políticas de “combate à seca”. A
compreensão das ações e estratégias da ASA, em particular em sua dimensão espacial,
pressupõe um aprofundamento sobre a relação entre a Articulação e o Estado. Neste sentido,
adquiriu uma maior centralidade em nossa pesquisa, enquanto referencial analítico, o P1MC –
Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido: um
milhão de cisternas rurais. Este programa, executado pela ASA, é o resultado de uma parceria
estabelecida com o Governo Federal, que tem como propósito a construção e difusão, no
semiárido, de cisternas de placas utilizadas para captação e armazenamento de água da chuva.
Sob o enfoque assumido nesta tese, a partir de nossa análise sobre a ASA, refletiremos a
respeito da espacialidade dos movimentos sociais contemporâneos e sua potencialidade
política frente aos arranjos socioespaciais hegemônicos configurados sob o capitalismo.
Cabe evidenciar que esta pesquisa de doutorado constitui-se um momento de uma
trajetória iniciada na nossa graduação em Geografia, realizada na Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). Em meados de 2005, integramos, na condição de bolsista, um projeto de
Extensão Universitária, coordenado pela Profa. Dra. Valéria de Marcos, então docente do
curso de geografia da UFPB e pelo Prof. Dr. Paulo José Adissi (Departamento de Engenharia
de Produção da UFPB). De uma forma geral, tínhamos como objetivo, naquele projeto,
encontrar caminhos para realizar melhorias no processo produtivo e de comercialização da
feira agroecológica1 que é realizada semanalmente, desde o ano de 2002, no interior daquela
universidade.
A nossa atuação na Extensão Universitária, através do trabalho realizado junto à feira
agroecológica, permitiu um primeiro contato com problemáticas associadas à questão
agrária, aproximando-nos de temáticas relacionadas à produção camponesa, agroecologia,
assentamentos rurais, reforma agrária, comercialização, agrotóxicos, etc. O aprofundamento
teórico sobre as questões de interesse para o projeto em que atuávamos passou a se constituir
1 As feiras agroecológicas podem ser definidas como espaços estabelecidos para a comercialização de alimentos
produzidos sem o uso de agrotóxicos diretamente dos produtores aos consumidores. Essas feiras agroecológicas
têm em comum os fundamentos do seu processo organizativo. Este tem como alicerce os princípios da
agroecologia utilizados na construção de estratégias a serem implantadas na produção e comercialização de
alimentos produzidos com base no trabalho familiar.
14
um propósito em nossa formação acadêmica, estreitando nossos vínculos com o campo de
leituras e discussões da Geografia Agrária2. A construção dessa base teórica se deu
consorciada com a nossa participação em vários trabalhos de campo nos assentamentos rurais
ligados à feira e em visitas semanais ao local de comercialização na UFPB3.
O encontro entre a dimensão teórica e a vivência viabilizada pela Extensão
Universitária nas áreas de produção e comercialização nos assentamentos nos instigou a
continuar estudando a problemática da agroecologia, tendo como princípio norteador a sua
compreensão sob as particularidades do desenvolvimento capitalista no campo brasileiro. Foi
assim que decidimos realizar a pesquisa da monografia de final de curso de bacharelado em
Geografia (UFPB) sobre a feira agroecológica citada, o que nos levou a compreendê-la
enquanto alternativa estabelecida para a superação das adversidades ligadas ao processo
produtivo e de comercialização nas áreas de assentamentos rurais4. Os resultados obtidos e as
leituras realizadas nos estimularam a aprofundar ainda mais a nossa busca por uma melhor
compreensão da agroecologia na realidade do campo no atual contexto social e econômico.
A partir deste alicerce, realizamos, entre os anos de 2007 e 2010, nossa pesquisa de
mestrado, também sob orientação da Profa. Dra. Valéria de Marcos, no Programa de Pós-
Graduação em Geografia Humana (PPGGH), na Universidade de São Paulo (USP). Por meio
desta investigação, analisamos aspectos relativos à organização, produção e comercialização
de sete feiras agroecológicas localizadas em quatro municípios de diferentes mesorregiões do
estado da Paraíba5. Pudemos observar, a partir da investigação realizada, que tais feiras
carregam um significativo conteúdo político, particularmente por municiar o campesinato na
busca pela superação de variadas formas de subordinação empregadas pelo capital comercial
e industrial, no campo. Neste sentido, vimos que as feiras agroecológicas criam condições
objetivas de negação dessa realidade, possibilitando a constituição de alternativas gestadas no
processo produtivo e de circulação da produção agrícola, tanto em comunidades rurais, quanto
em áreas de assentamentos de Reforma Agrária.
2 Teve grande relevância também nesse período a nossa participação, como ouvinte, em uma disciplina de
Mestrado ofertada pela Profa. Dra. Valéria de Marcos, no ano de 2005, na UFPB. Nesta, tivemos a oportunidade
de aprofundar a discussão sobre o campesinato e a questão agrária, bem como tomar conhecimento de outras
experiências de produção alternativa na agricultura. 3 Ao longo do tempo de vigência dos projetos – e mesmo após o seu término – participamos de inúmeras
reuniões, assembleias, encontros, oficinas e eventos ligados à agroecologia. 4 Este trabalho, concluído em 2007, contou com a orientação da Profa. Dra. Valéria de Marcos (Departamento de
Geografia/FFLCH/USP). 5 Cf. Thiago Araujo Santos. Agroecologia como prática social: feiras agroecológicas e insubordinação
camponesa na Paraíba [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, 2010.
15
Como produto dessa pesquisa, aproximamo-nos significativamente de problemáticas e
questões que constituem a agenda dos movimentos sociais camponeses na
contemporaneidade. Em consonância com a luta pela terra, observamos, a partir da
investigação, a ênfase, por parte dos movimentos sociais estudados, na construção coletiva de
alternativas para a reprodução social na terra, o que faz emergir novas demandas e desafios.
Essas novas demandas e desafios passaram a somar-se, enquanto horizonte de ação, à própria
luta pela terra, que continua a ser realizada pelos camponeses e seus movimentos. O conjunto
de reflexões e indagações realizadas, neste processo investigativo, nos levou, com efeito, a
evidenciar a dimensão política da luta na terra, que, marcada por desafios específicos, exige a
atualização dos instrumentos e estratégias de ação dos movimentos sociais.
O contato específico com a dimensão da reprodução social enquanto campo de ação
dos movimentos sociais, possibilitado pela pesquisa de mestrado realizada, nos aproximou de
importantes estratégias delineadas no estado da Paraíba. Foi a partir desta aproximação, que
tivemos contato com a ASA, objeto central de nossa pesquisa de doutorado.
Entre as feiras agroecológicas inseridas em nosso recorte de análise, na pesquisa de
mestrado, três delas estão situadas no semiárido, sendo estas feiras apoiadas por
organizações/movimentos direta ou indiretamente ligados à ASA. Referimo-nos, aqui, à feira
agroecológica de Campina Grande-PB, realizada por camponeses da mesorregião do Agreste
Paraibano, contando com a assessoria do Pólo Sindical da Borborema e Assessoria a Projetos
em Agricultura Alternativa (ASP-TA); e às feiras agroecológicas de Aparecida-PB e
Cajazeiras-PB, formadas por camponeses de assentamentos rurais do Sertão Paraibano,
assessorados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Para essas organizações e camponeses, as feiras agroecológicas se constituem parte de
um amplo conjunto de estratégias de reprodução social, mobilizadas com o propósito de
viabilizar formas alternativas de enfrentamento às adversidades, muitas das quais associadas à
realidade do semiárido. Diante disto, nosso contato com essas feiras agroecológicas
inevitavelmente nos levou a uma aproximação com importantes práticas, empreendidas pelas
organizações ligadas à ASA, direcionadas à convivência com o semiárido: construção e
difusão de tecnologias alternativas, fomento de práticas associativas, promoção de formas
específicas de organização e articulação política a partir de redes temáticas, incentivo à
realização de visitas de intercâmbio pelos camponeses, fortalecimento de mecanismos
descentralizados de divulgação de informações, entre outras. Foi, com efeito, o contato com
16
este repertório amplo e diverso de práticas e estratégias organizativas que nos instigou ao
estudo da ASA a partir de nossa pesquisa de doutorado.
Abordagem metodológica
A área de atuação da ASA, que compreende o semiárido brasileiro, abrange um total
de 1.133 municípios de nove estados: Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba,
Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe6. A significativa abrangência territorial da
Articulação demandaria, por si só, o estabelecimento de um recorte no processo investigativo
sobre a organização. Ademais, a grande variedade de ações e o complexo processo
organizativo que perpassa o desenvolvimento da ASA tornam inviável uma análise detalhada
e profunda de cada uma das dimensões que a compõem.
Conscientes da impossibilidade de um alcance total – no processo de pesquisa – das
múltiplas e complexas questões emergentes, como parte do desenvolvimento da ASA,
estabelecemos, em nossa análise, um duplo recorte. O primeiro deles tem um caráter temático.
Veremos que as ações em prol da convivência com o semiárido são operadas em distintas
frentes, abarcadas, na estrutura da ASA, através das chamadas “redes”. Estas redes, em suas
particularidades, respondem à diversidade de demandas e problemáticas relativas à
convivência com o semiárido, viabilizando a concentração de esforços, por parte de seus
integrantes, em busca da formulação de ações e estratégias específicas. Neste sentido, temas
como cultivos agroecológicos, apicultura, armazenamento de sementes, educação
contextualizada, entre outros, agrupam camponeses interessados na busca por soluções
através da produção e troca de conhecimentos e experiências.
Em nossa investigação, não abdicando da consideração de eventuais referências a
outras redes e eixos de ação, priorizamos a coleta de informações e problematização de
questões associadas à captação hídrica. Por um lado, pela particular relevância das ações
empreendidas nesta área, no processo de formação da ASA, constituindo-se este o tema
central do projeto de convivência com o semiárido. Por outro lado, este enfoque justifica-se
pela centralidade que a problemática adquiriu em decorrência da relação estabelecida entre a
Articulação e o Estado, a partir de 2003, como decorrência do papel assumido pela ASA na
execução de políticas públicas voltadas à disseminação, no semiárido, das cisternas de placas
e outras tecnologias similares, através do P1MC.
6 Dados oficiais do Ministério da Integração Nacional, disponíveis em:
http://www.integracao.gov.br/desenvolvimento regional/publicacoes/delimitacao.asp
17
O processo de investigação exigiu, além disso, uma delimitação espacial para a
análise, diante da ampla área geográfica de atuação da organização. Toda a diversidade de
ações empreendidas pela ASA e a complexidade das articulações entre estas, nos diversos
estados que a integram, inviabilizariam uma proposta de acompanhamento exaustivo que
envolvesse, empiricamente, toda a área abarcada pela Articulação. Por esta razão, a
delimitação de um recorte espacial para a investigação responde, aqui, à necessidade de
circunscrever a realidade investigada de modo a possibilitar uma melhor aproximação dos
processos sociais que constituem nossa referência de pesquisa. Entretanto, é importante
ressaltar que, na perspectiva aqui assumida, estabelecer um recorte de análise não implica
abdicar da consideração das múltiplas relações estabelecidas, nos diferentes estados
federativos, que configuram a totalidade das ações da ASA.
Deste modo, elegemos como referência empírica fundamental para nossa investigação,
por suas próprias particularidades históricas, as organizações e movimentos sociais que
integram a ASA no estado da Paraíba. A coexistência, na Paraíba, de um movimento
camponês significativamente coeso e, ao mesmo tempo, diverso, parece-nos explicativo da
especificidade da atuação da ASA paraibana7. Neste estado, a Comissão Pastoral da Terra
(CPT), aglutinando forças com Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs) e ONGs, como a
Assessoria de Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), Centro de Ação Cultural
(Centrac) e Programa de Aplicação de Tecnologia Apropriada às Comunidades (PATAC), na
mesorregião do Agreste, contribuiu significativamente para a constituição e fortalecimento de
uma articulação política voltada às ações de convivência com o semiárido.
Nesta perspectiva, na Paraíba, os anos de 1990, década de criação da ASA,
constituíram-se um marco importante. Neste período, na mesorregião do Agreste, o trabalho
sindical assumiu novas “bandeiras”, para além das “questões trabalhistas”, enfocando suas
estratégias na construção de “novos instrumentos de assistência técnica para a produção, área
até então ocupada por entidades oficiais, firmando-se a partir deste momento uma forte
parceria com ONGs” 8. Assim, o Pólo Sindical da Borborema delineou caminhos para a
constituição de diversas experiências alternativas naquela região, com a importante parceria
7 Para uma referência à particularidade das ações da ASA, na Paraíba, cf. Ghislaine Duque. A Articulação do
Semi-Árido brasileiro: camponeses unidos em rede para defender a convivência no Semi-Árido. in Bernardo
Mançano Fernandes et. al., organizadores. Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas.
São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009, p. 303-
320. 8 Edgard Malagodi. O sindicato rural e seus parceiros: notas sobre um processo de mudanças. in Maria de
Nazareth Baudel Wanderley, organizadora. Globalização e desenvolvimento sustentável: dinâmicas sociais
rurais no nordeste brasileiro. São Paulo: Polis; Campinas, SP: Ceres – Centro de Estudos Rurais do IFCH –
Unicamp, 2004, p. 167.
18
da AS-PTA. Esta, por sua vez, em atuação na Paraíba desde 1993, desenvolveu estratégias
com o propósito de potencializar a formulação, defesa e execução de um “projeto de
desenvolvimento rural na região baseado nos princípios da sustentabilidade socioambiental
por meio da agroecologia” 9. A CPT, no mesmo momento, fortalecia projetos de apoio à
produção e comercialização agroecológica nas mesorregiões da Mata e Sertão Paraibano,
contando com a parceria de entidades como a Central das Associações dos Assentamentos do
Alto Sertão Paraibano (CAAASP), no caso do Sertão; e Cáritas, nos municípios da Mata
paraibana10
.
Para a obtenção do conjunto de informações úteis à nossa investigação, realizamos
trabalhos de campo em assentamentos e comunidades rurais na área de atuação da ASA,
beneficiadas pelas cisternas de placas11
, bem como em comunidades atendidas pelo Governo
Federal com recebimento de cisternas de polietileno12
; trabalhos de campo em atos de
protesto, marchas, reuniões e encontros13
; participamos de dinâmica organizativa que integra
o processo de construção de cisternas14
; visitamos sedes institucionais e secretarias de
organizações que compõem a ASA15
; consultamos notícias e reportagens publicadas em
9 Informação disponível em: http://www.aspta.org.br/programa-paraiba (Acesso em Ago./2014).
10 A Cáritas é uma entidade vinculada à Igreja Católica e atua na defesa dos direitos humanos e do
desenvolvimento sustentável solidário na perspectiva de políticas públicas, com uma mística ecumênica. Cf.
http://www.caritas.org.br/quemsomos.php?code=8 (Acesso em Ago./2014). Uma frente importante do apoio
assumida pela Cáritas refere-se aos Projetos Alternativos Comunitários (PACs), como mencionou Paul Singer.
Este autor observa que o pressuposto da “solidariedade libertadora”, subjacente à ação dos PACs, “sintetiza a
imensa evolução da Igreja Católica de uma ação meramente assistencial para uma postura de crítica ao
capitalismo, com a proposição de que a solidariedade liberta. Ela implica uma tese ousada: a de que os
trabalhadores, desde que se organizem e granjeiem apoio, podem por si só superar a miséria”. Neste sentido, o
mesmo autor afirma que “A nova postura de início não tinha um programa claro de como os trabalhadores
podem sair da miséria pelas suas próprias forças. Por isso ela convoca as próprias comunidades a encontrar as
saídas, pela aplicação do antigo mas ainda hoje indispensável método de ensaio e erro, através de uma vasta
multiplicação de diferentes „experiências‟”. Cf. Paul Singer. Introdução à Economia Solidária. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2002, p. 117. 11
Na microrregião do Alto Sertão paraibano, realizamos trabalhos de campo no assentamento Acauã, localizado
no município de Aparecida-PB; em São João do Cariri, situado na microrregião do Cariri Oriental paraibano e
em Soledade-PB, que faz parte da microrregião do Curimataú Ocidental. 12
Neste caso, visitamos comunidades rurais do município de Cacimba de Dentro-PB, localizado na microrregião
do Curimataú Oriental. 13
Destacaríamos, aqui: IV Marcha pela vida das mulheres e pela agroecologia (Solânea-PB/2013); V Marcha
pela vida das mulheres e pela agroecologia (Massaranduba-PB/2014); Marcha pela água de qualidade (Campina
Grande-PB/2014); ato em apoio à reeleição da presidenta Dilma Rousseff (Petrolina-PE/2014); Encontro
Unitário Camponês (João Pessoa/2013). 14
Tivemos a oportunidade de acompanhar o processo de mobilização, realizado por integrantes do Sindicato de
Trabalhadores Rurais (STR) de Aparecida-PB, para a construção de cisternas em uma comunidade rural de
Jericó-PB, participando do Curso de Gerenciamento de Recursos Hídricos (GRH), em março de 2013. 15
Visitamos as sedes/secretarias das seguintes organizações: AS-PTA (Esperança-PB), Centrac (Campina
Grande-PB), STR Aparecida-PB, além da secretaria nacional da ASA Brasil, localizada em Recife-PE.
19
boletins informativos da ASA ou de organizações e movimentos que a compõem16
, bem como
na imprensa17
; consultamos cartilhas informativas, cartas políticas18
, e participamos de
audiência pública voltada à publicização dos resultados e ações da Articulação19
.
A realização de entrevistas semi-estruturadas com camponeses e militantes de
organizações e movimentos que integram a Articulação nos permitiu a coleta de importantes
informações sobre a atuação da ASA em suas ações de convivência com o semiárido,
revelando-nos problemáticas que discutiremos nesta tese. Estas informações, somadas àquelas
obtidas através dos documentos/reportagens e à observação direta, realizada nos trabalhos de
campo, constituem o corpus fundamental sobre o qual nos apoiamos em nossa reflexão sobre
a ASA e as ações de convivência com o semiárido.
Por fim, cabe ressaltar que o aporte de informações mobilizado nesta pesquisa
responde a uma temporalidade específica da existência da ASA. O necessário encerramento
da investigação, como condição para permitir a redação desta tese, impôs, naturalmente, a
interrupção no processo de análise sobre a Articulação, o que se deu nos últimos meses de
2014. O recorte temporal estabelecido alcança como limite o momento correspondente à
disputa eleitoral do mês de outubro do referido ano, período no qual a ASA atuou ativamente
em prol da reeleição de Dilma Rousseff (PT) à presidência do Brasil.
Apresentação da problemática
A Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA Brasil), criada em 1999, é uma
organização formada por mais de 3.000 movimentos sociais, sindicatos, grupos de mulheres,
grupos de jovens, pastorais religiosas, coletivos locais e regionais e outras organizações que
atuam na gestão e no desenvolvimento de políticas públicas dirigidas à população
16
Os boletins informativos e reportagens, produzidos pela ASA, se constituem um instrumento político de
mobilização e divulgação de informações de interesse aos membros da Articulação, além de servirem como
registro de atividades ou eventos da Articulação. 17
Consultamos reportagens e publicações da imprensa, disponíveis em sites de diversas agências de notícias,
utilizando-as como recurso adicional para apoiar nossa abordagem sobre atos públicos, encontros, eventos, etc. 18
As chamadas “cartas políticas” são documentos elaborados com fins de publicização de posições políticas da
ASA. São escritos e divulgados em, pelo menos, dois tipos de ocasião: (1) como resultado de encontros
microrregionais, estaduais ou nacionais realizados pela Articulação, ou (2) em razão de alguma demanda
específica (por exemplo: demarcação de uma posição crítica a determinada decisão do governo ou para fins de
denúncia de alguma injustiça cometida pelo agronegócio em âmbito local). Trata-se, assim, de um esforço de
sistematização de uma posição política e ideológica com o propósito de informar a sociedade, divulgando-se
informações entendidas como de interesse coletivo, e, assim, visando à obtenção de uma maior legitimidade
política para as ações estabelecidas. Enquanto fonte de pesquisa, mobilizamos tais cartas enquanto registro das
posições assumidas pela ASA, isto é, como referencial para o entendimento de estratégias assumidas pela
Articulação em contextos críticos. 19
Referimo-nos, aqui, a uma audiência pública realizada no município de Soledade-PB, em Abril de 2014.
20
economicamente vulnerável do semiárido brasileiro. Antes mesmo de ser constituída a
articulação, as organizações e movimentos sociais que a compõem já elaboravam estratégias
voltadas à convivência com as adversidades que acompanham os períodos de estiagem no
semiárido, fortalecendo iniciativas locais e as difundindo. A configuração da ASA enquanto
articulação se define, nesta perspectiva, como um importante momento de convergência
política dessas organizações e movimentos, buscando-se o fortalecimento do conjunto das
ações e estratégias desenvolvidas.
As dificuldades de acesso à água potável levaram os camponeses e assessores
integrados à ASA a desenvolver, aprimorar e disseminar um conjunto amplo de “tecnologias
alternativas” que tem se mostrado de grande relevância social e viabilidade. Dentre estas
tecnologias, a cisterna de placas está entre as mais conhecidas. Possuindo um baixo custo para
sua construção e manutenção, a cisterna de placas possibilita a captação de água dos telhados
das casas, em épocas de chuva, a partir da instalação de canos para o transporte da água que
corre nas calhas e de um reservatório com capacidade de armazenamento de 16.000 litros de
água. Esta tecnologia possibilita às famílias beneficiárias o acesso, em períodos de estiagem, a
água limpa e de boa qualidade para o abastecimento doméstico, superando a necessidade das
longas caminhadas para a busca desse bem natural.
A disseminação da construção das cisternas, ação desenvolvida pela ASA, tornou-se
uma política pública, a partir do ano de 2003, com o P1MC – Programa de Formação e
Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido: um milhão de cisternas rurais. Este
Programa é o resultado de uma parceria estabelecida com a ASA pelo governo federal, sob a
gestão do então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, por meio do Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), tendo como objetivo beneficiar cerca de
cinco milhões de pessoas, com renda de até meio salário mínimo por membro da família,
residentes permanentes na área rural e sem acesso ao sistema público de abastecimento de
água.
A execução do P1MC, realizada até o momento pela ASA, é perpassada por um
processo de formação, no qual se valoriza a participação das famílias beneficiadas e se
incentiva a organização comunitária e a mobilização dos camponeses atendidos pelo
programa. Deste modo, além de viabilizar a construção de cisternas de placas, tecnologia de
grande relevância para permitir a convivência com o semiárido, a ASA, a partir do P1MC,
abre espaço também para o fortalecimento de processos descentralizados de organização e
participação política por parte da população abarcada por suas ações.
21
Inscrevendo-se em uma região marcada por relações de poder fundadas sobre o
mandonismo de grupos oligárquicos tradicionais, as ações de convivência com o semiárido
buscam redefinir o lugar social dos camponeses, valorizando seus conhecimentos e práticas,
estimulando processos associativos, troca de experiências, aquisição de conhecimentos
técnicos, entre outras ações voltadas ao fortalecimento de sua posição como “sujeitos da
própria história”. É neste sentido que a ASA, em suas estratégias e ações, expressa a
resistência política às grandes obras e projetos desenvolvidos sob a perspectiva do combate à
seca.
Em meio ao rearranjo na economia nacional ocorrido no final do século XIX e início
do século XX, impulsionado pelo deslocamento da centralidade econômica do Nordeste
canavieiro para Centro-Sul cafeicultor, o combate à seca e seus efeitos instaura-se como
discurso oficial das elites agrário-regionais, convertendo-se o regionalismo nordestino em
uma estratégia mobilizada em prol de uma recolocação, em âmbito nacional, de frações de
classe em estado de decadência20
. Neste sentido, as “necessidades da região” foram
incorporadas como o fundamento de um discurso que garantia a legitimidade da participação
das elites periféricas no bloco do poder21
, criando-se meios para a incorporação de suas
demandas conservadoras junto ao Estado22
. As políticas de combate à seca, baseadas nas
grandes obras de açudagem, beneficiando os grupos oligárquicos tradicionais, resultaram na
concentração hídrica e na constituição de uma estrutura favorável à reprodução de relações de
dominação político-clientelistas, utilizando-se a água como “moeda” no jogo político.
No processo de consolidação das ações de combate à seca, a reprodução de uma
representação negativa sobre o espaço do semiárido se constituiu como parte das estratégias
voltadas à justificação das intervenções político-governamentais empreendidas. Um cabedal
de imagens impactantes – gado morto, vegetação seca, terra rachada, crianças desnudas e
desnutridas, entre elas – passou a ser mobilizado, de forma recorrente, como forma de revelar
a dureza da vida que ali se esconde, definindo com traços negativos os limites de uma região
que tem a seca como elemento fundador e a miséria como sua consequência natural. A
condição seca demarca o sentido para o espaço em questão, dotando-lhe de particularidade e
20
Cf. Rosa Maria Godoy Silveira. O Regionalismo Nordestino: existência e consciência da desigualdade
regional. São Paulo: Ed. Moderna, 1984. 21
O historiador Durval Muniz afirma que o regionalismo nordestino, na prática, aproximou diversas frações de
classe, tendo sido propagado tanto pelos grandes proprietários de terra da zona da Mata, quanto por comerciantes
das cidades, além dos criadores de gado e grandes produtores de algodão. Cf. Durval Muniz de Albuquerque
Junior. A invenção do nordeste e outras artes. 4a ed. rev. São Paulo: Cortez, 2009, p. 73. 22
Cf. Iná Elias de Castro. O mito da necessidade: discurso e prática do regionalismo nordestino. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1992
22
identidade, informando um senso comum, uma representação dominante que encontra na
natureza sua substância fundamental23
. Esta representação negativa da porção semiárida do
território brasileiro não emerge de modo neutro e espontâneo. Neste caso, a atribuição de um
sentido ao espaço responde a interesses sociais particulares, justificando transferências
vultosas de recursos públicos destinados às classes sociais administradoras dos problemas que
caracterizam a região, legitimando, assim, um conjunto de práticas político-interventivas.
Em oposição, além da disseminação de tecnologias alternativas e da busca pelo
fortalecimento de uma posição ativa dos camponeses frente às amarras impostas pelas
tradicionais relações de poder que marcam historicamente o semiárido, a ASA inscreve como
importante preocupação a inversão da imagem negativa da região, promovendo campanhas e
ações que evidenciam “um semiárido produtivo e otimista em contraposição ao imaginário da
miséria, por muitos anos vendidos à população” 24
.
A relação entre as ações de convivência com o semiárido e aquelas de combate à seca
configura, deste modo, um campo de disputa entre práticas sociais que têm o espaço como
importante referencial. Evidencia-se, assim, que o semiárido não ecoa pelos ventos da porção
mais seca do território brasileiro como um termo qualquer; como uma palavra, entre outras,
eleita para integrar, de forma mais ou menos recorrente, o vocabulário de camponeses,
técnicos, funcionários ligados ao Estado, intelectuais, agentes pastorais, militantes de ONGs e
movimentos sociais. O termo extrapola os limites de uma operação classificatória sobre o
clima de uma determinada região, carregando consigo um significativo peso simbólico e
abrigando, em sua semântica, distintos horizontes de ação política.
Os antagonismos que se expressam entre as ações e discursos das perspectivas de
convivência com o semiárido e de combate à seca adquiriram significativa visibilidade no
campo acadêmico. Nos trabalhos sobre o tema, são evidenciados, fundamentalmente, os
termos das distinções operadas entre uma e outra perspectiva, qualificadas como diferentes
“modelos” de políticas públicas25
, distintos caminhos de acessar a institucionalidade público-
estatal26
, antagônicos discursos27
, ou, de forma mais recorrente, como contrapostos
23
Iná Elias de Castro. Seca versus seca: novos interesses, novos territórios, novos discursos no Nordeste. in Iná
Elias de Castro et. al., organizadores. Brasil: questões atuais da reorganização do território. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1996, p. 297. 24
“Clima de otimismo no semiárido”, ASA Brasil, Acervo – Campanhas. Disponível em:
http://www.asabrasil.org.br/acervo/campanhas?artigo_id=289 (Acesso em Ago./2015). 25
Ghislaine Duque “Conviver com a seca”: contribuição da Articulação do Semi-Árido/ASA para o
desenvolvimento sustentável.Desenvolvimento e meio ambiente (UFPR). 2008, p. 133-140. 26
Thiago Rodrigo de Paula Assis. Sociedade civil e institucionalização de políticas públicas: o caso do P1MC.
Anais do 48º Congresso da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural – SOBER,
2010, p. 1-21.
23
“paradigmas de desenvolvimento” 28
. Em nossa abordagem – reconhecendo e valorizando as
evidentes transformações fomentadas pela Articulação, particularmente no que se refere à
promoção do acesso à água –, chamaremos a atenção, distintamente, para a proximidade
existente entre a práxis da convivência com o semiárido e a perspectiva de combate à seca,
identificando o regionalismo como elemento comum em ambas as perspectivas.
Neste sentido, veremos que, contra as políticas de combate à seca e o seu discurso
regionalista, a ASA operará sua práxis em contraposição ao regionalismo “dominante”,
configurando o que qualificamos como “regionalismo de resistência”. A inversão assumida
tem como horizonte a consolidação de uma representação do sertão seco não mais como
espaço-problema, mas como espaço-possível, lócus de uma vida comunitária, familiar,
camponesa, onde as práticas tradicionais do “povo”, bem como os valores ético-políticos que
as definem, se sobrepõem aos desmandos dos “coronéis” e dos latifundiários. Desenvolve-se,
com efeito, uma representação do sertanejo enquanto sujeito inventivo, portador de soluções
por seus próprios atributos sociais e culturais, reivindicando-se traços típicos do modo de vida
camponês como elementos associados à identidade regional que se busca fortalecer.
O conceito de ideologia geográfica, no sentido atribuído por Antonio Carlos Robert
Moraes29
, será mobilizado como meio para elucidar aspectos importantes da problemática em
foco, permitindo-nos, ao longo da tese, equacionar – de forma mais precisa – a prática política
e as representações subjacentes às contrapostas perspectivas em tensão. Enquadraremos a
problemática a partir da consideração de que, enquanto ideologias geográficas, as ações das
classes sociais envolvidas com a disputa em questão são configuradas através da convergência
e imbricação de três momentos centrais: (1) representação do espaço; (2) representação
social; e, por fim, (3) as práticas político-interventivas. Partimos da hipótese segundo a qual,
no campo da disputa entre as ações de convivência com o semiárido e aquelas de combate à
seca, a consideração das múltiplas relações entre os distintos momentos da tríade revela,
27
Cf. Mariana Moreira Neto. Outro Sertão: fronteiras da convivência com o Semiárido. Recife: Fundação
Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2013 e Almair Morais de Sá. Os modos de dizer e de fazer (d)a
convivência: enunciados e invenções de semiárido [dissertação]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba,
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA, 2012. 28
Cf., por exemplo, Flávio Lyra de Andrade e Paula Vanessa Mesquita Queiroz. Articulação no semiárido
Brasileiro – ASA e o seu Programa de Formação e Mobilização para a Convivência com o Semiárido: a
influência da ASA na Construção de Políticas Públicas. in Ângela Küster e Jaime Ferre Marti, organizadores.
Políticas públicas para o semiárido: experiências e conquistas no nordeste no Brasil. Fortaleza: Fundação
Konrad Adenauer, 2009; Roberto Marinho Alves da Silva. Entre o combate à seca e a convivência com o
semiárido: transições paradigmáticas e sustentabilidade do desenvolvimento [tese]. Brasília: Universidade de
Brasília, Centro de Desenvolvimento Sustentável, 2006; Diego Bruno Silva de Oliveira. O uso das tecnologias
sociais hídricas na zona rural do semiárido paraibano: entre o combate à seca e a convivência com o semiárido
[dissertação]. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Exatas e da Natureza, 2013. 29
Cf. Antonio Carlos Robert Moraes. Ideologias Geográficas. São Paulo: Anablume, 2005.
24
analiticamente, o espaço enquanto momento relevante na relação política do campesinato com
classes sociais antagônicas no semiárido, conformando o solo sobre o qual os homens e
mulheres se movimentam, adquirem consciência de sua posição social e lutam por seus
interesses30
.
Com o propósito de definir, mais claramente, as bases teóricas sobre as quais nos
apoiamos, realizaremos, a seguir, uma breve discussão sobre a relação entre espaço e política,
problematizando o regionalismo enquanto ideologia geográfica. Com isto, esperamos
evidenciar os caminhos a serem percorridos ao longo de nossa investigação, alicerçando,
assim, o enfoque analítico escolhido. Contudo, a proposta de uma discussão sobre o
regionalismo enquanto ideologia geográfica pressupõe um recorte teórico – seja pela natureza
complexa do problema, que evoca múltiplos significados; seja pela abundância de referenciais
empíricos sobre o regionalismo enquanto expressão política. Por isto, nos deteremos à
apresentação de um lastro teórico-filosófico possível para o enquadramento analítico do tema,
situando-o, em sua particularidade, em meio à relação entre poder, pensamento e classe social.
Espaço e ideologia
“O espaço (social) é um produto (social)”, afirmou Henri Lefebvre31
. Com efeito, a
centralidade da atividade produtora traz como corolário a ideia segundo a qual a produção do
espaço social constitui-se um ato teleológico, envolvendo, portanto, uma finalidade, isto é,
um movimento que se define como particularmente humano, simultaneamente coletivo e
individual. Assim sendo, tal movimento pressupõe a consciência, a capacidade de pré-idear,
de construção mental prévia da ação que se pretende executar32
. O fundamento da dimensão
teleológica da produção do espaço se encontra, neste sentido, no processo de humanização do
homem, no contínuo movimento de dominação e apropriação da natureza, que, como
conseqüência, passa a ser redefinida como natureza social, segunda natureza, sendo o
trabalho uma mediação central. Assume-se, assim, o trabalho como atributo essencialmente
humano, como elemento constitutivo da condição que difere os homens dos demais animais,
30
Como demonstraremos mais detidamente adiante, inspiramo-nos, em tal elaboração, no conceito de ideologia
em seu sentido gramsciano, qualificando-a, pois, enquanto “visão de mundo” inscrita na práxis humana,
integrando ação e representação como unidade constitutiva da realidade histórica. Cf. Antonio Gramsci.
Concepção dialética da história. 5a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987, p. 16. 31
Henri Lefebvre. A produção do Espaço. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins, tradutores. 2006, p. 36. 32
Antonio Carlos Robert Moraes. A questão do sujeito na produção do espaço. in Ideologias Geográficas. São
Paulo: Anablume, 2005, p. 16.
25
dotando aqueles de particularidade. Pressupondo, neste sentido, o trabalho numa forma
associada unicamente ao homem, Marx afirma, numa famosa passagem d‟O Capital:
Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha
envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colméia. Porém, o que
desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o
primeiro tem a colméia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final
do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já esperava presente na
representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que
já existia idealmente33
.
Reivindicando a perspectiva marxiana, o filósofo húngaro György Lukács qualifica o
ato teleológico, presente no trabalho, como um momento constitutivo de um salto ontológico.
Para este autor, não se pode considerar o ser social como independente do ser da natureza,
como antítese que o exclui. Na realidade, “as formas de objetividade do ser social se
desenvolvem à medida que a práxis social surge e se explicita a partir do ser natural,
tornando-se cada vez mais claramente sociais” 34
. Esse desenvolvimento, contudo, constitui-se
um processo dialético (e, como tal, em movimento), que começa com um salto, com um pôr
teleológico no trabalho para o qual não pode haver nenhuma analogia na natureza. É através
do ato do pôr teleológico no trabalho que se apresenta o ser social em si. Entretanto, o
desdobramento do processo histórico implica a transformação desse ser-em-si num ser-para-
si e, portanto, “a superação tendencial das formas e dos conteúdos de ser meramente naturais
em formas e conteúdos sociais cada vez mais puros, mais próprios” 35
. Trata-se de um
processo metabólico entre o homem e a natureza, “processo este em que o homem, por sua
própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza” 36
e, assim agindo
sobre a natureza externa, transformando-a, ele modifica, simultaneamente, a si mesmo37
.
É como um momento da produção da própria existência humana que o espaço é
produzido. Em outras palavras, o espaço surge como produto oriundo da história da
humanidade, “reproduzindo-se ao longo do tempo histórico, e, em cada momento da história,
em função das estratégias e virtualidades contidas em cada sociedade” 38
. Consequentemente,
as formas espaciais são um resultado concreto das projeções dos homens no processo
contínuo de antropomorfização da superfície terrestre, processo este necessariamente
33
Karl Marx. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 255-256. 34
György Lukács. Para uma ontologia do ser social I. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio
Schneider, tradutores. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 286-287. 35
György Lukács. op. cit., p. 287. 36
Karl Marx. op. cit., p. 255. 37
Idem. 38
Ana Fani Alessandri Carlos. A condição espacial. São Paulo: Contexto, 2011, p. 40-41.
26
alimentado por pré-ideações que têm o próprio espaço vivenciado, o ambiente construído,
como estímulo39
. A vida social é construída, assim, mediante um conjunto de relações sociais
que, em movimento, desenham toda uma trama espaço-temporal, uma geografia dinâmica e
complexa que tem nas mentes e mãos do homem sua gênese.
Evidencia-se, neste sentido, que a atividade produtora da vida e da própria realidade
social encontra sua realização num espaço-tempo apropriável para a ação. Mais precisamente,
como destaca a geógrafa Ana Fani Alessandri Carlos, se a natureza se coloca como condição
essencial da qual o homem e depois o grupo humano retira o que necessita para viver,
posiciona-se, simultaneamente, como um meio dessa atividade, realizando-se ao longo do
processo histórico como produto social mantendo, contudo, seu sentido natural40
. Por isto,
argumenta a autora, o espaço se define pelo movimento que o situa como condição, meio e
produto da reprodução social ao longo do processo civilizatório, configurando-se, assim,
como uma das produções da civilização41
. Em poucas palavras,
O sentido do espaço está, portanto, associado à ação humana, à produção,
ligando-se à noção de atividade e de trabalho, o que o situa no âmbito do
processo de produção, do modo como o trabalho se divide a partir da
hierarquização do grupo, de sua orientação, das relações de propriedade que
comandam a divisão de seus frutos, a técnica e o conhecimento42
.
Por este movimento, as formas espaciais socialmente produzidas respondem aos
condicionamentos da estrutura econômica dominante. Isto significa que se, por um lado, a
antropomorfização da natureza possui uma realidade própria em cada modo de produção,
respondendo às suas condições específicas, por outro lado ela expressa uma universalidade. A
universalidade desse processo encontra-se, exatamente, naquilo que Robert Moraes e Messias
da Costa qualificaram como “valorização do espaço”, já que “em qualquer época e em
qualquer lugar, a sociedade, em sua própria existência, valoriza o espaço” 43
. Os autores, ao
empregar o termo valorização do espaço, referindo-se ao movimento contínuo de
transformação da natureza em natureza socialmente produzida, reivindicam a perspectiva
segundo a qual o trabalho – enquanto mediação central da produção da sociedade e do espaço
39
Antonio Carlos Robert Moraes. op. cit., p. 22-23. 40
Ana Fani Alessandri Carlos. op. cit., p. 24. 41
Idem. 42
Ana Fani Alessandri Carlos. op. cit., p. 24. 43
Antonio Carlos Robert Moraes; Wanderley Messias da Costa. Geografia Crítica: a valorização do Espaço. 2a
ed. São Paulo: Hucitec, 1987. p. 122.
27
– é a fonte primordial do valor44
. Neste sentido, a relação sociedade-espaço passa a ser
entendida como uma relação valor-espaço, precisamente por tal relação ser substantivada pelo
trabalho humano45
. Por isso, “a apropriação dos recursos próprios do espaço, a construção de
formas humanizadas sobre o espaço, a perenização (conservação) desses construtos, as
modificações, quer do substrato natural, quer das obras humanas, tudo isso representa criação
de valor” 46
. Sob esse ponto de vista,
[...] o desenvolvimento histórico é também uma progressiva e desigual
acumulação de trabalho na superfície da terra. Essa acumulação, que
desnaturaliza o espaço vai também complexizá-lo. Às desigualdades naturais
da superfície da terra, sobrepõem-se as desigualdades de alocação de
trabalho47
.
Ana Fani Alessandri Carlos destaca que, entre os indivíduos do grupo ou da
sociedade, as normas diante do trabalho a ser realizado são constituídas por relações formais,
reais, práticas simbólicas, o que nos obriga a pensar nas relações sociais que compõem esse
processo. Como destacamos anteriormente, a produção material e também a produção dos
indivíduos são determinadas socialmente, emergindo, consequentemente, o indivíduo e seus
produtos como resultados da história, isto é, como frutos do processo incessante de
constituição do humano. É por este motivo que a autora destaca a presença de uma dialética
entre produção/reprodução da vida humana – produção/reprodução do espaço48
. Nessa
perspectiva, a realidade social aparece como prática sócio-espacial, espaço-tempo da ação,
levando-nos a localizar “o sentido e conteúdo dessa ação, na indissociabilidade entre a
produção do espaço e a produção-reprodução da vida social” 49
.
Constituindo-se um ato teleológico, a produção/valorização do espaço demanda o
reconhecimento do estatuto ontológico da esfera da consciência e da subjetividade, o que nos
44
A teoria do valor tem sua origem na Economia Política Clássica, possuindo contornos variáveis nas obras de
W. Petty, Quesnay, Turgot, Adam Smith, David Ricardo, entre outros. Em seu projeto de realizar uma Crítica à
Economia Política, Marx incorpora criticamente a teoria do valor, desenvolvida pelos teóricos que o precederam,
sublinhando o seu caráter estritamente social. Através da teoria do valor-trabalho, em especial sob a influência
de Smith e Ricardo, Marx “retirou o véu” das mercadorias, evidenciando as contradições relacionadas ao seu
processo produtivo. Como um resultado de sua abordagem, o conceito de mais-valia foi formulado pelo filósofo
alemão como uma expressão explicativa fundamental para o entendimento da origem do lucro e do processo de
acumulação do capital e, portanto, como uma mediação teórica para explicitar as relações contraditórias entre as
classes sociais sob o capitalismo. 45
Antonio Carlos Robert Moraes e Wanderley Messias da Costa. op. cit., p. 123. 46
Idem. 47
Ibidem, p. 124. 48
Ana Fani Alessandri Carlos. op. cit., p. 24. 49
Idem.
28
leva aos meandros do imaginário humano50
. Estamos diante, pois, de um espaço produzido e,
como tal, passível de apropriações simbólicas e interpretações. Esta dimensão simbólica,
dialeticamente articulada à própria dimensão objetiva da produção do espaço, retroalimenta o
movimento, veiculando projetos e interpretações, expressando a valorização subjetiva do
espaço51
. Com efeito, nas palavras de Ana Fani Alessandri Carlos, a problemática espacial
esclarece o momento do processo de reprodução da sociedade, revelando, desde modo, as
contradições desse movimento e iluminando os resíduos – momentos em que a vida reage e
supera as contradições que emanam de sua produção. Por esta razão, “na produção do espaço
ganha sentido e significado a vida do ser humano, de modo que a problemática espacial
transcende a mera objetividade do processo” 52
. Deste modo, para a autora,
O caminho de análise impõe o questionamento das transformações da
realidade e a pertinência/necessidade de superar conceitos, na
indissociabilidade de dois conjuntos de problemas: de um lado a dimensão
real e concreta do espaço vivido em suas cisões como produto prático da
produção do espaço abstrato que se transforma na velocidade das condições
impostas pela técnica (como movimento necessário à realização da
acumulação); e, de outro, a constituição de um pensamento sobre o espaço,
desvendando seus conteúdos na complexidade e unidade da vida social53
O equacionamento da relação entre consciência e ser social mostra-se, neste sentido,
de fundamental importância. A reflexão desenvolvida por Marx e Engels, em A ideologia
alemã, constitui-se, para tal projeto, uma referência inegável. Nesta obra, escrita entre 1845 e
1846 e publicada originalmente, em sua totalidade, em 1933, os autores demarcam um
posicionamento distinto daquele que até então orientava a filosofia alemã, redefinindo os
termos da relação sujeito-objeto e, consequentemente, reposicionando o homem enquanto
criador de sua própria humanidade e agente transformador da natureza, mediante a atividade
produtiva. Nesta obra, Marx e Engels afirmam seu ponto de partida como sendo “os
indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já
encontradas como as produzidas por sua própria ação” 54
. Com efeito, tendo a vida material
dos homens como pressuposto, torna-se relevante desvelar a produção dos meios de vida, já
que “ao produzir seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida
50
Antonio Carlos Robert Moraes. A questão do sujeito na produção do espaço. in Ideologias Geográficas. São
Paulo: Anablume, 2005, p. 24. 51
Ibidem, p. 25. 52
Ana Fani Alessandri Carlos. op. cit., p. 24. 53
Idem. 54
Karl Marx e Friedrich Engels. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus
representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846).
São Paulo: Boitempo, 2007, p. 86-87.
29
material” 55
. Para tal, os homens dependem, antes de tudo, da natureza dos meios de vida já
encontrados e que têm de produzir. Neste sentido, para os autores, este modo de produção é,
muito mais,
[...] uma determinada forma de sua atividade, uma forma determinada de
exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses indivíduos. Tal
como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são
coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem, como também
com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende
das condições materiais de sua produção56
Descortinar as relações estabelecidas pelos indivíduos determinados, enquanto
produtores, considerando as relações sociais e políticas determinadas, define-se, neste sentido,
como o horizonte teórico almejado. Neste horizonte, nas palavras de Marx e Engels, “é
preciso que, em cada caso particular, a observação empírica coloque necessariamente em
relevo – empiricamente e sem qualquer especulação ou mistificação – a conexão entre a
estrutura social e política e a produção”. Neste enfoque, o interesse da análise deve recair não
na aparência das relações sociais na esfera da imaginação, mas nos sujeitos como realmente
são, isto é, “tal como atuam, como produzem materialmente e, portanto, tal como
desenvolvem suas atividades sob determinados limites, pressupostos e condições materiais,
independentes de seu arbítrio”57
.
A teoria marxiana tem como alicerce fundamental a obra de Friedrich Hegel. A
centralidade do trabalho, como dimensão ontológica primordial para a constituição do
humano, constitui-se um dos pressupostos hegelianos incorporados pelo seu discípulo alemão.
Para Marx, em referência à obra Fenomenologia do Espírito, de Hegel,
A grandeza da “Fenomenologia” hegeliana e de seu resultado final – a
dialética, a negatividade enquanto princípio motor e gerador – é que Hegel
toma, por um lado, a autoprodução do homem como um processo, a
objetivação (Vergegenständlichung) como desobjetivação
(Entgegenständlichungi), como exteriorização (Entäusserung) e suprassunção
(Aufhebung) dessa exteriorização; é que compreende a essência do trabalho e
concebe o homem objetivo, verdadeiro, porque homem efetivo, como
resultado de seu próprio trabalho58
.
55
Ibidem, p. 87. 56
Karl Marx e Friedrich Engels. op. cit., p. 87, grifos dos autores. 57
Karl Marx e Friedrich Engels. op. cit., p. 93. 58
Karl Marx. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 123.
30
Entretanto, Marx pondera que Hegel vê apenas a positividade do trabalho, entendido
como o “vir-a-ser para si (Fürsichwerden) do homem no interior da exteriorização ou como
homem exteriorizado” 59
, abdicando, por isto, de seu lado negativo, o trabalho estranhado.
O sociólogo Celso Frederico observa que a parcialidade desse enfoque é interpretada
por Marx como uma decorrência necessária do fato de, em sua abordagem, Hegel “não
distinguir a objetivação (as formas pelas quais o homem se exterioriza, realizando-se em seu
fazer) da alienação (uma forma particular e degradada de objetivação)” 60
. Frederico
argumenta que, propondo uma dialética centrada em objetos reais, Marx, ao contrário, separa
claramente o momento positivo da objetivação – aquele em que o homem exterioriza suas
forças essenciais e se reconhece em suas obras – do momento negativo da alienação, quando,
por razões históricas e sociais, o resultado de sua objetivação deixa de ser reconhecido. Com
efeito, ao momento positivo da objetivação, Marx acrescenta um segundo momento, o da
alienação, considerada como o momento disruptivo que separa o homem de sua essência, que
o faz não se reconhecer em suas obras61
.
A compreensão do duplo caráter que define a objetivação das forças essenciais do
homem a partir do trabalho passa, nesta perspectiva, pelo entendimento da humanização do
homem como um processo histórico, movimento produzido pelo próprio desenvolvimento das
forças produtivas. A consciência é constituída, assim, neste movimento, não como
“consciência pura”, mas, nas palavras de Marx e Engels, como consciência “contaminada”
pela matéria, manifestando-se sob a forma de linguagem62
. Esta, para os autores, é a
“consciência real, prática, que existe para os outros homens e que, portanto, também existe
para mim mesmo; e a linguagem nasce, tal como a consciência, do carecimento, da
necessidade de intercâmbio com outros homens” 63
. Por isto, a consciência, desde o início, já
é um produto social e continuará sendo enquanto existirem os homens64
. Neste sentido, a
produção de representações, ideias – em uma palavra, o universo simbólico – submete-se,
numa perspectiva marxiana, ao primado ontológico da objetividade, constituindo-se este um
momento da própria realidade material. Em síntese, “a produção de ideias, de representações,
da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com
59
Ibidem, p. 124. 60
Celso Frederico. O jovem Marx (1943-44): as origens da ontologia do ser social. São Paulo: Cortez, 1995, p.
178. 61
Ibidem, p. 179. 62
Karl Marx e Friedrich Engels. op. cit., p. 34. 63
Ibidem, p. 34-35. 64
Ibidem, p. 35.
31
o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real” 65
. Tal compreensão
posiciona os homens (reais, ativos) como efetivos produtores de suas representações e ideias,
estando estes condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e
pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas66
.
Desvendando este movimento, em seu momento inicial, os autores afirmam:
A consciência é, naturalmente, antes de tudo a mera consciência do meio
sensível mais imediato e consciência do vínculo limitado com outras pessoas
e coisas exteriores ao indivíduo que se torna consciente; ela é, ao mesmo
tempo, consciência da natureza que, inicialmente, se apresenta aos homens
como um poder totalmente estranho, onipotente e inabalável, com o qual os
homens se relacionam de um modo puramente animal e diante do qual se
deixam impressionar como o gado; é, desse modo, uma consciência
puramente animal da natureza (religião natural) – e, por outro lado, a
consciência da necessidade de firmar relações com os indivíduos que o
cercam constitui o começo da consciência de que o homem definitivamente
vive numa sociedade67
.
O aumento da produtividade, o incremento das necessidades e o aumento da
população desenvolvem e aperfeiçoam a consciência, num processo social dinâmico que
encontra na divisão do trabalho um elemento central. Para Marx e Engels, a divisão do
trabalho, contudo, só se torna realmente divisão a partir do momento em que surge uma
divisão entre trabalho material e espiritual. Somente a partir de então, a consciência pode, nas
palavras dos teóricos, realmente imaginar ser outra coisa diferente da consciência da práxis
existente, “representar algo realmente sem representar algo real – a partir de então, a
consciência está em condições de emancipar-se do mundo e lançar-se à construção da teoria,
da teologia, da filosofia, da moral etc. „puras‟” 68
A filósofa Marilena Chauí destaca como uma herança de Hegel, no pensamento de
Marx, a ideia de que a realidade é história e por isso é reflexiva, ou seja, realiza a reflexão.
Isto significa que a existência social dos homens é um produto de contradições e que,
“realizando uma volta completa sobre si mesma, pode conduzir à transformação desse modo
de existência social” 69
. A autora destaca que, em Hegel, “não havia a menor dificuldade para
considerar o real capaz de reflexão, pois o real era o Espírito, o Espírito era sujeito e todo
65
Ibidem, p. 93. 66
Ibidem, p. 94. 67
Ibidem, p. 35-36. 68
Idem. 69
Marilena Chauí. O que é ideologia. 2a ed. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 55.
32
sujeito era sujeito porque capaz de reflexão”70
. Na perspectiva marxiana, por outro lado, a
reflexão advém não precisamente na matéria inerte, regida por relações mecânicas de causa e
efeito, mas da “matéria social”, isto é, das relações sociais entendidas como relações de
produção, “como o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições
materiais de existência e o modo como pensam e interpretam essas relações” 71
. Nas palavras
de Marx e Engels,
A consciência [Bewusstsein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser
consciente [beusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real.
Se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para
baixo como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo
histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina
resulta de seu processo de vida imediatamente físico72
.
A questão da ideologia insere-se, pois, nos termos de uma relação entre a consciência
e o ser consciente definida pelo processo de vida real, pelas relações sociais de produção.
Mais precisamente, a ideologia representa, neste sentido, uma representação invertida do ser
consciente sobre si próprio e sobre o mundo, uma imagem comprometedora do seu
significado real. Como numa câmara escura, o objeto não aparece tal como ele é,
posicionando-se, aos olhos de que vê, de cabeça para baixo. A metáfora da câmara escura
ilustra tal inversão e, assim, embasa o sentido atribuído por Marx e Engels a determinadas
formas de representação e ideias produzidas pelos homens, particularmente sob os moldes da
produção capitalista.
O termo ideologia, utilizado por Marx e Engels, em sua obra escrita em 1845-46, tem
uma origem precedente. Num primeiro momento, o termo foi utilizado por Destut de Tracy,
em 1801, em seu tratado Elementos de ideologia, identificado como uma “ciência das ideias”,
que se constituía como parte da zoologia. Napoleão utilizará o termo, posteriormente, em
polêmica contra o próprio Destut de Tracy, tratando-o como um “ideólogo”, concebendo tal
termo como equivalente a “metafísico abstrato”, alheio à realidade73
. Em sua obra introdutória
sobre o tema, Marilena Chauí menciona que esse sentido pejorativo do termo ideologia veio,
mais especificamente, de uma declaração de Napoleão, num discurso ao Conselho de Estado
em 1812, quando afirmou que todas as desgraças que afligiam a França deveriam ser
70
Idem. 71
Idem. 72
Karl Marx e Friedrich Engels. op. cit., p. 94. 73
Michael Löwy. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na
sociologia do conhecimento, 8ª Edição, São Paulo, Cortez, 2003, p. 10.
33
atribuídas à ideologia, “(...) essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas
primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao
conhecimento do coração humano e às lições da história” 74
. Com isso, afirma a autora,
Bonaparte invertia a imagem que os ideólogos tinham de si mesmos: “eles, que se
consideravam materialistas, realistas e anti-metafísicos, foram perversamente chamados de
„tenebrosos metafísicos‟” 75
.
Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, conservam o sentido napoleônico do termo
ideologia, associando-o a uma concepção invertida da realidade, a uma falsa consciência. O
ideólogo, neste sentido, é aquele que inverte as relações entre as ideias e o real, fazendo
daquelas o verdadeiro motor da vida. Ao assim mobilizar o termo, os autores o vinculam,
pois, a uma visão deturpada da própria realidade. Assim, “a ideologia, que inicialmente
designava uma ciência natural da aquisição, pelo homem, das idéias calcadas sobre o próprio
real, passa a designar, daí por diante, um sistema de idéias condenadas a desconhecer sua
relação real com a realidade” 76
. Para Marx e Engels, neste prisma,
[...] a ideologia é uma forma de falsa consciência, correspondendo a interesses
de classe: mais precisamente, ela designa o conjunto das idéias especulativas e
ilusórias (socialmente determinadas) que os homens formam sobre a realidade,
através da moral, da religião, da metafísica, dos sistemas filosóficos, das
doutrinas políticas e econômicas etc.77
Cabe reiterar que, na perspectiva marxiana, as ideias não são uma projeção imediata e
necessariamente coerente do real na consciência. Tampouco tais ideias ou representações
possuem uma existência autônoma, independente da realidade histórica. Estas são
constituídas, isto sim, como um resultado de um processo social mediante o qual o real é
significado, forjado, alimentado de sentido. Este processo é orientado por mediações que
respondem, necessariamente, a interesses e perspectivas determinadas dos sujeitos sociais em
relação e conflito. Por este viés, não se deve conceber as representações como algo deslocado
da atividade real dos homens, isto é, do intercâmbio material que integra o processo social de
produção da riqueza sob o capitalismo.
Pela inequívoca vinculação das representações à sua própria realidade social e
histórica, o filósofo José Carlos Bruni ressalta que a abordagem sobre as ideologias pressupõe
74
Marilena Chauí. op. cit., p. 29-30. 75
Ibidem, p. 30. 76
Idem. 77
Michael Löwy. op. cit., p. 10.
34
a articulação de três conceitos: poder, pensamento e classe social78
. O autor argumenta que
seu fulcro é a idéia do saber enquanto forma de poder, tendo como base a divisão social do
trabalho e a divisão da sociedade em classes. Na realidade, a separação entre trabalho manual
e trabalho intelectual origina a ilusão da autonomia do pensamento e a separação entre classes
dominadas cria as condições para a subordinação do pensamento aos interesses da classe
dominante. Deste modo, o pensamento passa a exercer também uma função de dominação, na
medida em que, pelo poder do pensamento justifica-se a necessidade de aceitação de certas
idéias e certos valores que, por serem universais, se impõem à sociedade como um todo.
Assim,
[...] o emprego sistemático do princípio da universalidade abstrata torna-se o
recurso lógico fundamental da ideologia: com ele apaga-se justamente a
particularidade, o lugar socialmente determinado de onde o discurso
ideológico é proferido. Com isto, a divisão e a contradição sociais existentes
de fato são apagadas: a sociedade é pensada enquanto unidade, passível de
diferenciação interna, mas não dotada de uma negatividade intrínseca que
opõe dominantes e dominados, exploradores e explorados, e que engendra sua
luta, isto é, sua história79
.
Para além do sentido da ideologia enquanto “produção da ilusão”, isto é, operação
mistificadora do real, o autor evidencia outra perspectiva, também presente no campo teórico-
político marxista: a ideologia como “visão de mundo”. Neste viés, a consciência iludida é
entendida como parte do real, deixando, por isto, de ser o objeto imediato da crítica que busca
sua dissolução, passando a ser pensada em sua objetividade, como constituinte da própria
realidade histórica, estando, assim, inscrita na práxis80
. Segundo Bruni, ação e representação,
nesta compreensão, constituem uma unidade com a qual a totalidade da práxis humana pode
ser pensada como histórica81
. O princípio assumido é o de que está no nível da ideologia a
tomada de consciência que os homens passam a ter sobre seus conflitos e posições, sendo a
ideologia o modo de ver as coisas e de se relacionar praticamente com elas. Por isto, para o
autor, reconhecendo a substância histórica das ideologias, isto é, sua realidade objetiva, o
problema passa a ser a tentativa de compreender sua necessidade, sua permanência e as
condições de sua transformação82
.
78
José Carlos Bruni. Ideologia e Cultura. Ciências Sociais: coletânea de textos. 1987, p. 86. 79
Ibidem, p. 87. 80
José Carlos Bruni. op. cit., p. 94. 81
Idem. 82
Ibidem, p. 95.
35
O pensamento de Antonio Gramsci define-se como um importante aporte referencial
para a construção de um sentido positivo para o conceito de ideologia. Este autor dá à
ideologia um “significado mais alto de uma concepção do mundo, que se manifesta
implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida
individuais e coletivas” 83
. Neste entendimento do conceito, é estabelecida uma vinculação
mais direta da ideologia à realidade histórica de sua produção, estando esta diretamente
relacionada aos movimentos das forças sociais, sustentando e organizando interesses dos
sujeitos. Como conseqüência, alarga-se o enfoque sobre o modo pelo qual, a partir dessas
forças sociais, são construídas formas de intervenção na realidade84
. Neste caso, portanto, não
se trata de situar a ideologia como um recurso operacional exclusivo das classes dominantes,
em cada momento histórico, mas de considerá-la, em sua objetividade, como uma expressão
de interesses de distintas classes sociais.
Para Gramsci, é necessário distinguir entre o que ele denominou de ideologias
historicamente orgânicas e ideologias arbitrárias. As primeiras, necessárias a uma
determinada estrutura, “têm uma validade que é validade „psicológica‟: elas „organizam as
massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem
consciência de sua posição, lutam, etc.” 85
. As segundas, por sua vez, na medida em que são
arbitrárias, “não criam senão „movimentos‟ individuais, polêmicas, etc.” 86
. Sendo assim,
considerando-se uma relação entre forma e conteúdo, para o autor as forças materiais são
definidas como o conteúdo e as ideologias são a forma, sendo esta distinção entre forma e
conteúdo entendida como “puramente didática, já que as forças materiais não seriam
historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as
forças materiais” 87
.
Evidencia-se, assim, que a questão da ideologia inscreve-se, na obra de Gramsci, como
parte de uma questão teórica de grande relevância no campo teórico-político marxista: a
relação entre estrutura e superestrutura. Para Gramsci, em particular, este era um problema
central, levando o autor a afirmar que o problema de tal dicotomia “deve ser posto com
exatidão e resolvido para que se possa chegar a uma justa análise das forças que atuam na
história de um determinado período e determinar a relação entre elas” 88
. Para o filósofo
83
Antonio Gramsci. Concepção dialética da história. 5a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987, p. 16. 84
Nágela Aparecida Brandão e Edmundo Fernandes Dias. A questão da ideologia em Antonio Gramsci.
Trabalho & Educação, 2007, p. 82. 85
Antonio Gramsci. op. cit., p. 62-63. 86
Ibidem, p. 63. 87
Antonio Gramsci. op. cit., p. 62-63. 88
Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere (vol. 3). 5a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 36.
36
Norberto Bobbio, o posicionamento de Gramsci, frente a tal dicotomia, se volta,
precisamente, a um duplo embate. Por um lado, ao materialismo vulgar (ou economicismo),
que reduz todo o movimento histórico ao momento estrutural. Por outro, ao idealismo, para
quem o movimento histórico é atribuído às forças espirituais, independente das condições
materiais em que atuam89
. Com efeito,
Ele (Gramsci) não esquece de modo algum as condições materiais, mas tem
perfeita consciência de que elas, por si sós, não movem a história: o
movimento da história depende da consciência que esse ou aquele grupo
social tem acerca das possibilidades de ação e de luta que lhe são permitidas
pelas condições objetivas dadas. Não é por acaso que Gramsci define a
liberdade – hegelianamente – como consciência da necessidade. Com isso,
ele quer dizer que a história do homem é história humana e não natural, já
que não é história da necessidade cega, mas da necessidade reconhecida,
aceita e utilizada90
.
Ao assim conceber a relação estrutura-superestrutura, elaborando uma crítica ao
idealismo e ao materialismo vulgar, Gramsci ressalta a dimensão da ação política, da agência
dos homens no fazer da própria história. Nas palavras de Bobbio, a relação entre estrutura e
superestrutura – que, considerada de modo naturalista, é interpretada como relação de causa e
efeito e leva ao fatalismo histórico – inverte-se, quando considerada do ponto de vista do
sujeito ativo da história, da vontade coletiva91
. Na base de tal inversão está a recusa, por
Gramsci, da compreensão segundo a qual a economia encontra-se reduzida às relações
técnicas de produção, redução esta feita, entre outros, por Bukharin e Achille Loria, que são
duramente criticados nos Cadernos do Cárcere92
. Recusando tal visão reducionista, o autor
considera que as relações especificamente políticas das forças sociais dependerão de certas
condições necessárias e suficientes para sua emergência, estando a vontade dos sujeitos
submetida às condições dadas pela estrutura econômica, entendida sob o prisma da totalidade,
isto é, como o conjunto das relações sociais.
Este “lugar ativo” do sujeito, na perspectiva gramsciana, resulta do próprio movimento
de mudança na consciência política coletiva, alcançando seu maior desenvolvimento no
momento definido por Gramsci como “catarse”. Este termo qualifica a passagem/movimento
por meio do qual “o particular (o econômico-corporativo ou egoístico-passional) é
89
Norberto Bobbio. Ensaios sobre Gramsci e o conceito de sociedade civil. 2a ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999,
p. 75. 90
Idem. 91
Ibidem, p. 60. 92
Carlos Nelson Coutinho. De Rousseau a Gramsci: ensaios de teoria política. São Paulo: Boitempo, 2011, p.
116.
37
dialeticamente superado no universal (o ético-político), superação que Gramsci considera uma
determinação essencial da práxis política” 93
. Trata-se, mais precisamente, do “momento da
política”, em que a práxis humana põe em movimento a passagem das determinações
objetivas à subjetividade criadora, produtora de “novas iniciativas” 94
.
O movimento de passagem das determinações objetivas à subjetividade criadora, isto
é, a ação efetiva na realidade, passa pela ideologia – entendida, em sua historicidade, como
visão de mundo. Carlos Nelson Coutinho observa que, neste sentido, para Gramsci, a
ideologia pode ser qualificada como uma “representação do ser que está na base da proposta
de um dever ser”, constituindo-se, por isto, um momento fundamental da práxis95
. Para o
marxista sardo, assim, independente de ser verdadeira ou não do ponto de vista
epistemológico, uma teoria se torna ideologia quando se “apodera das massas”, isto é, quando
alimenta uma ação efetiva sobre o real96
.
Analisando tal perspectiva, Norberto Bobbio observa que, ao contrário de Marx, para
quem a ideologia aparecia depois das instituições, como justificação póstuma e mistificadora
de um domínio de classe, para Gramsci a relação entre instituições e ideologias, ainda que no
esquema de uma ação recíproca, aparece invertida, isto é, “tornam-se o momento primário da
história, enquanto as instituições passam a ser o momento secundário” 97
. Isto significa que,
Uma vez considerado o momento da sociedade civil como o momento
através do qual se realiza a passagem da necessidade à liberdade, as
ideologias – das quais a sociedade civil é a sede histórica – são vistas não
mais apenas como justificação póstuma de um poder cuja formação histórica
depende das condições materiais, mas como forças formadoras e criadoras
de nova história, colaboradoras na formação de um poder que se vai
constituindo, e não tanto como justificadoras de um poder já constituído98
.
Esta abordagem implica uma reconsideração do lugar social dos “dominados” que, ao
invés de um status passivo, de determinados à assimilação da ideologia dominante, adquirem
um estatuto potencial criativo, voltado à re-elaboração simbólica dos termos da própria
dominação. Sobre essa mudança de perspectiva, resultante da re-elaboração gramsciana do
conceito de ideologia, José Carlos Bruni complementa que, contrariamente à ideia de um
poder ilimitado e absoluto da dominação, a perspectiva proposta por Gramsci reconhece a
93
Ibidem, p. 121. 94
Ibidem, p. 122. 95
Ibidem, p. 10. 96
Ibidem, p. 11. 97
Norberto Bobbio. op. cit., p. 62. 98
Norberto Bobbio. op. cit., p. 62.
38
“dialética da dominação, das formas de resistência à imposição, da re-elaboração das
mensagens ideológicas da classe dominante, a ponto de produzir resultados às vezes opostos
aos dos visados” 99
. Assim concebida, a ideologia posiciona-se, na realidade social, em
múltiplos pontos, emanando não apenas de um “centro” social irradiador (classe dominante),
constituindo-se, isto sim, parte do movimento social de produção do dever ser, representando
as contraditórias concepções de mundo dos distintos indivíduos, grupos e classes sociais.
Como consequência da reflexão aqui realizada, particularmente da abordagem
gramsciana, dispomos de novos instrumentos para a compreensão de traços relativos à
problemática da produção do espaço, em especial em sua dimensão subjetiva. Apresentamos,
neste sentido, um aporte teórico que nos autoriza a estabelecer relações e encadeamentos entre
a questão da ideologia e a produção do espaço, assumindo-se, pois, que a identificação e
análise de tais relações podem elucidar aspectos relevantes dos processos sociais que, em seu
movimento, expressam articulações que envolvem categorias como poder, pensamento e
classe social.
Região e regionalismo
A relação entre espaço e política encontra, certamente, na categoria região uma das
mais evidentes formas de expressão, estando tal relação inscrita em sua própria etimologia,
que remete ao latim regere, que significa dominar, reger. A despeito disto, a região não se
constitui, precisamente, uma categoria marxista fundamental, ainda que – como vimos, até
aqui – o universo da prática política seja um instigante objeto teórico àqueles inspirados pelas
teorias de Marx. Uma razão para este fato é apresentada por Ann R. Markusen. A autora
argumenta que a teoria marxista está construída sob o referencial do modo de produção,
deslocando-se desse aspecto geral para fenômenos específicos, o que impede os teóricos desta
perspectiva analítica de trabalhar com um conceito como o de região sem buscar situá-lo nas
categorias básicas de seu quadro de referência100
. Parte-se, na prática, do fato de que a região
apresenta conotação de uma entidade territorial e não, fundamentalmente, sociológica – o que
resulta no interesse marxista sobre as lutas inscritas nas regiões, buscando-se captar seus
significados, causas, efeitos, etc., e não na investigação da entidade per si.
Parece-nos, neste sentido, que a incorporação do conceito de ideologia no âmbito da
investigação sobre a produção do espaço, particularmente no que se refere à questão regional
99
José Carlos Bruni. op. cit., p. 96. 100
Ann R. Markusen. Região e regionalismo: um enfoque marxista. Espaço & Debates, 1981, p. 61.
39
e do regionalismo, constitui-se um esforço de análise pertinente. Com este argumento, em
concordância com Robert Moraes, assumimos a ideia segundo a qual seria possível nomear
um campo no universo das ideologias como “geográfico”, precisamente por este expressar a
consciência do espaço trabalhada num sentido político. Para o autor, este campo manifesta no
universo das ideias a relação sociedade-espaço, constituindo-se como uma via privilegiada de
vínculo do saber geográfico com a prática política101
. Parte-se, assim, do princípio segundo o
qual as ideologias geográficas alimentam, ao mesmo tempo, as políticas territoriais dos
Estados e a autoconsciência que os diferentes grupos sociais possuem sobre seu espaço.
Integrando como elemento ativo o universo político, as ideologias geográficas exprimem
localizações e identidades, constituindo-se enquanto a substância das representações coletivas
acerca dos lugares, que impulsionam o movimento de sua reconfiguração ou a acomodação
dos grupos sociais nos espaços dados102.
O mesmo autor evidencia que os discursos sobre o espaço são distribuídos em diversos
contextos, sendo operados a partir da imprensa, como também na literatura, no pensamento
político, na pesquisa científica, etc. Como consequência, “em meio a estas múltiplas
manifestações vão sedimentando-se certas visões, difundindo-se certos valores. Enfim, vai
sendo gestado um senso comum a respeito do espaço. Uma mentalidade acerca de seus temas.
Um horizonte espacial, coletivo” 103
. Institui-se, deste modo, um ordenamento espacial que,
atravessando o campo das representações, incide direta ou indiretamente sobre a conflituosa
dinâmica das relações sociais.
Neste processo, as escalas geográficas, produzidas sob o capitalismo, constituem-se
uma dimensão importante no jogo político que acompanha o desenvolvimento deste modo de
produção, solidificando e cristalizando os poderes hegemônicos e o movimento de dominação
que acompanha este processo. As hierarquias entre as diversas escalas – “local”, “regional”,
“nacional” e “global” – expressam, neste sentido, um equacionamento político do espaço que,
ao mesmo tempo em que afirma e legitima processos sociais de dominação, limita e
constrange eventuais expressões contra-hegemônicas104
. Com efeito, as hierarquizações
101
Antonio Carlos Robert Moraes.Uma nota sobre o conceito de ideologia.in Ideologias geográficas. São Paulo:
Anablume, 2005, p. 44. 102
Idem. 103
Antonio Carlos Robert Moraes. Geografia e consciência do espaço. in Ideologias geográficas. São Paulo:
Anablume, 2005, p. 32-33, grifo nosso. 104
Para a ideia de “produção de escalas geográficas”, aqui incorporada, embasamo-nos, particularmente, nas
reflexões dos geógrafos Neil Smith e David Harvey sobre a espacialidade da política. Como aprofundaremos nas
considerações finais desta tese, reconhecemos as escalas produzidas enquanto um campo de disputa política em
que são tensionados interesses antagônicos e projetos contrapostos, refletindo e reafirmando as posições relativas
das classes sociais em meio aos arranjos socioespaciais do capitalismo. Cf. David Harvey. Espaços de
40
estabelecidas dão “a impressão de que as escalas são imutáveis ou mesmo totalmente naturais,
em vez de produtos sistêmicos de mudanças tecnológicas, formas de organização dos seres
humanos e das lutas políticas” 105
. Constituindo-se uma particularidade deste processo, a
região e o regionalismo ganham corpo no universo político e social. Expressando
posicionamentos e interesses, situadas em meio a antagonismos entre classes, grupos sociais e
indivíduos, tais categorias não apenas representam posições sociais e simbólicas
determinadas, constituindo-se, mais do que isso, enquanto condutos eficazes mobilizados em
meio às relações de poder que constituem a prática social e a produção do espaço enquanto
processo teleológico.
Isto significa que, ao eleger e difundir os traços definidores da região (aspectos do
ambiente, cultura, língua, sotaque, culinária, etc.), estabelecendo elos de identidade cultural
assentados na proximidade geográfica, acaba-se por diluir o entendimento sobre a
constituição da região como ato arbitrário – e, portanto, político –, levando, por outro lado, a
uma compreensão, cada vez mais forte e descentralizada, da região como uma entidade da
própria natureza. Isto implica a formação de um senso comum que encontra no espaço seu
quadro referencial fundante, alcançando, no limite, a compreensão da cultura e da política
como epifenômenos do ambiente.
O sociólogo francês Pierre Bourdieu, situando a constituição da região em meio a
relações de poder, mais precisamente a um campo de disputa, ressalta que a sua delimitação
resulta de um ato arbitrário, aspirando a substituição dos princípios práticos do juízo cotidiano
por critérios logicamente controlados e empiricamente fundamentados na ciência. No entanto,
destaca o autor, as classificações práticas estão sempre subordinadas a funções práticas e
orientadas para a produção de efeitos sociais e, ademais, tais representações podem contribuir
para produzir aquilo por elas descrito ou designado, isto é, a realidade objetiva. Em outras
palavras, está em jogo, no processo classificatório, o poder de impor uma visão do mundo
social através dos princípios de “di-visão” que, “quando se impõem ao conjunto do grupo,
realizam o sentido e o consenso sobre o sentido e, em particular, sobre a identidade e a
unidade do grupo, que fazem a realidade da unidade e da identidade do grupo” 106
.
Considerando a dimensão arbitrária, do sentido classificatório que qualifica a região, o
historiador Albuquerque Junior argumenta que definir a região implica, no limite, pensá-la Esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 107-110 e Neil Smith. Contornos de uma política espacializada:
veículos dos sem-teto e produção de escala geográfica. in Antonio A. Arantes, organizador. O espaço da
Diferença. Campinas: Papirus, 2000, p. 143-144. 105
David Harvey. op. cit., p. 108. 106
Pierre Bourdieu. A identidade e a representação: elementos para uma reflexão crítica sobre a ideia de região.
in O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 113.
41
“como um grupo de enunciados e imagens que se repetem, com certa regularidade, em
diferentes discursos, em diferentes épocas, com diferentes estilos e não pensá-la uma
homogeneidade, uma identidade presente na natureza” 107
. Com efeito, não estando inscrita na
natureza enquanto um dado empírico da realidade, a região se define, na perspectiva do autor,
enquanto uma identidade espacial, historicamente construída mediante critérios e objetivos
específicos.
Yves Lacoste, em sua conhecida obra A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para
fazer a guerra, realiza uma reflexão crítica sobre a “região geográfica” formulada pelo
geógrafo francês Vidal de La Blache, sendo esta definida enquanto uma porção do espaço
individualizada a partir da articulação dos fatos humanos e naturais que marcariam seu
conteúdo108
. Entendendo a “região geográfica” como um “conceito-obstáculo”, por ter
impedido “a consideração de outras representações espaciais e o exame de suas relações”,
Lacoste argumenta que a região lablacheana é imaginada como o fruto de uma sutil e lenta
combinação das forças da Natureza e do Passado, sendo apresentada como a expressão de
uma permanência, de uma autenticidade. Assim sendo, a região serve para a maioria das
pessoas enquanto “um meio de „aí se encontrar‟ dentro da confusão de outras organizações
espaciais, de maior ou menor envergadura”. Diante disto, adverte o autor que, enquanto seria
politicamente mais sadio e mais eficaz considerar a região como uma forma espacial de
organização política, os geógrafos acreditam na ideia de que a região é um dado quase eterno,
produto da geologia ou da história. Ao assim proceder,
Os geógrafos, de algum modo, acabaram por naturalizar as ideias de região:
não falam eles das regiões calcáreas, de regiões gramíticas, de regiões frias,
de regiões florestais? Eles utilizam a noção de região, que é
fundamentalmente política, para designar todas as espécies de conjuntos
espaciais, quer sejam topográficos, geológicos, climáticos, botânicos,
demográficos, econômicos ou culturais109
.
107
Durval Muniz de Albuquerque Junior. A invenção do nordeste e outras artes. 4a ed. rev. São Paulo: Cortez,
2009, p. 35 108
Elucidando o conceito de região geográfica de La Blache, Roberto Lobato Corrêa afirma que esta “abrange
uma paisagem e sua extensão territorial, onde se entrelaçam de modo harmonioso componentes humanos e
natureza. A ideia de harmonia, de equilíbrio, evidente analogia organicista que Vidal de La Blache adota,
constitui o resultado de um longo processo de evolução, de maturação da região, onde muitas obras do homem
fixaram-se, ao mesmo tempo com grande força de permanência e incorporadas sem contradições ao quadro final
da ação humana sobre a natureza”. Cf. Roberto Lobado Corrêa. Região e organização espacial. 7a ed. São
Paulo: Ática, 2003, p. 28. 109
Yves Lacoeste. A geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. 4a ed. Campinas: Papirus,
1997, p. 65-66.
42
Enquanto “forma espacial de organização”, a região pode se constituir, pelo eficaz
efeito naturalizador que a acompanha, enquanto um poderoso instrumento de dominação
política. Ao “se encontrarem” na região, as pessoas acatam o discurso performativo que
embasa uma unidade social ancorada no espaço, o que fomenta o estabelecimento de laços
entre os indivíduos com referência aos locais de origem e residência, derivando-se, daí, um
conjunto de atributos socioculturais que demarcariam a unidade interna e, evidentemente, a
diferença frente ao mundo extra-regional.
Antonio Carlos Robert Moraes, diante desta realidade, ressalta que essa “ilusão de
identidade sem referência social objetiva” acaba tendo como efeito a diluição das
desigualdades de classe. Gera-se, deste modo, uma “mentalidade corporativa de base
espacial”, um “corporativismo regional” politicamente eficaz. Segundo o autor, tal eficácia
advém do fato de esses valores servirem à fragmentação da organização popular, já que as
“identidades restritas obstaculizam a soldagem dos interesses políticos dos dominados, em
escalas maiores” 110
. Em outras palavras,
Observa-se que a identidade pelo espaço, ao mesmo tempo que cimenta
concepções nacionais ao nível das classes dominantes, atua na dispersão dos
dominados, em seu secionamento no território. Para as elites, o nacional como
horizonte geográfico, para as classes populares, o local ou no máximo o
regional como perspectiva de espacialização. Portanto, a concepção do
território unindo ou dividindo os sujeitos políticos111
.
No limite, deste modo, ao tornar os processos sociais qualidades do espaço, o discurso
regional qualifica as relações entre pessoas e classes como relações entre lugares. Este
fenômeno, qualificado teoricamente por Lacoste como “geografismo”, define-se, segundo o
próprio autor, como a constituição de metáforas que “transformam em forças políticas, em
atores ou heróis da história, porções do espaço terrestre ou, mais exatamente, os nomes dados
(pelos geógrafos) a territórios mais ou menos extensos” 112
. O geógrafo francês alerta que,
contudo, “esses malabarismos de estilo não são assim tão inocentes como podem parecer à
primeira vista, pois eles permitem escamotear as diferenças e as contradições entre os
diversos grupos sociais que se encontram nesses lugares ou sobre esses territórios” 113
.
110
Antonio Carlos Robert Moraes. Território e identidade na formação brasileira. in Ideologias Geográficas. São
Paulo: Anablume, 2005, p. 101. 111
Idem. 112
Yves Lacoste. op. cit., p. 66. 113
Yves Lacoste. op. cit., p. 65.
43
***
O breve percurso teórico, até aqui realizado, serve-nos como referência para a
indicação dos caminhos que serão seguidos ao longo desta tese. Ressaltamos a consideração,
aqui defendida, de que o universo das ideologias é integrado por um “campo geográfico”. Ao
assim delimitar a problemática a ser discutida de agora em diante, esperamos elucidar
dimensões de um campo de disputa entre “horizontes geográficos” distintos e que têm, ambos,
o semiárido como referência fundamental. Incorporando o sentido gramsciano sobre o
conceito de ideologia, problematizaremos os antagonismos entre as perspectivas da
convivência com o semiárido e aquela de combate à seca como expressões opostas de uma
consciência do espaço trabalhada num sentido político, como trunfo, por meio do
regionalismo. De um lado, enquanto ideologia geográfica voltada à dominação política de
classe, operada pelas elites agrário-regionais; de outro, como busca pela ruptura da estrutura
de dominação oligárquica. Veremos que, sob as duas perspectivas, o regionalismo incide
sobre a política tanto em escala intra-regional (configurando identidade e unidade), quanto
extra-regional (como meio legitimador de reivindicações políticas junto ao Estado).
A reflexão proposta será desenvolvida em três capítulos. No primeiro deles,
enfocando a realidade brasileira, veremos como, através do regionalismo, foi possível
configurar uma representação espacial negativa sobre a porção semiárida do território
nacional. Argumentaremos que, como consequência, através da consolidação da
representação do Nordeste como “região-problema”, tendo esta região como imagens-força a
seca e a miséria, foi justificado um conjunto de ações político-interventivas, empreendidas
pelas mãos das elites agrário-regionais, cujos efeitos sociais expressam, claramente, a
funcionalidade política do regionalismo como ideologia geográfica de dominação.
No segundo capítulo, discutiremos a relação entre campesinato e política.
Inicialmente, problematizaremos tal relação no campo teórico-político, identificando os
principais pontos de tensão relativos ao tema, mapeando diversos posicionamentos sobre o
lugar social dos camponeses sob o capitalismo. Em seguida, evidenciaremos algumas
expressões de resistência, na realidade brasileira, num contexto de redefinições econômicas e
políticas. Argumentaremos que, em meio às importantes mudanças ocorridas entre o final do
século XIX e a primeira metade do século XX, foram redefinidos, simultaneamente, os traços
das lutas camponesas e das organizações dedicadas à sua mediação política (Igreja, partidos
políticos). Veremos que, do lado das agências de mediação, o desafio estava na busca pela
adequação ao “novo campesinato”, em processo de libertação da grande propriedade e dos
44
seus rígidos vínculos de dependência clientelista, situando-se em meio aos novos traços de
suas reivindicações e demandas, mediando, assim, a emergência de novas formas de
consciência política e práticas organizativas. No que se refere ao campesinato, por sua vez, as
novas condições econômicas e sociais abertas, resultantes da ruptura com antigas formas de
dominação, impuseram a adaptação ao contexto sociopolítico emergente, abrindo espaço para
a configuração de uma “nova cultura camponesa” que foi se sobrepondo à autoridade da
cultura tradicional e abrindo espaço para a invenção e inovação cultural114
.
O dinamismo na relação entre Estado e movimentos sociais, na realidade brasileira,
constitui o tema geral de interesse no capítulo terceiro, sendo este o corte empreendido para
abordarmos o processo de formação da ASA e construção da convivência com o semiárido.
Situaremos a emergência da ASA em meio a um processo de mudanças político-institucionais
resultantes do processo de abertura democrática, na década de 1980, passando o Estado a
absorver demandas de “entidades da sociedade civil”, consolidando um campo composto por
ONGs, movimentos sociais, redes solidárias, articulações, etc. voltado à aplicação do fundo
estatal na execução de políticas públicas. Abordando este processo sob o foco da relação
Estado-movimento social, defenderemos o argumento segundo o qual a ASA – em suas ações
de convivência com o semiárido – mobiliza um conjunto de códigos ético-políticos forjados
em décadas anteriores, particularmente entre os anos 1970 e 1980, num período de
significativa emergência movimentalista. Naquele contexto, em pleno regime militar, foram
abertos espaços para novas iniciativas de organização e participação política, por parte de uma
população situada, até então, às margens dos canais político-institucionais existentes.
Consequentemente, os padrões de ação e discursos das organizações e movimentos sociais
passaram por um importante processo de redefinição, forjando-se um novo quadro de
referências, fundado, a partir de então, em princípios como o da autonomia e do
reconhecimento do “povo como sujeito da própria história”, princípios estes buscados através
da valorização dos conhecimentos próprios dos sujeitos sociais, bem como mediante a
negação de formas hierarquizadas e centralizadas de representação político-institucional.
Argumentaremos, neste sentido, que – incorporando esse quadro de referências – a ASA
estabelecerá, a partir da década de 1990, sua inserção na esfera estatal, criando meios de
difundir “tecnologias alternativas” e promover novas formas de socialização da política entre
os camponeses do semiárido brasileiro.
114
Em grande medida, referenciamo-nos, nesta reflexão, nos trabalhos do sociólogo José de Souza Martins.
Sobre a tese da emergência de uma “nova cultura camponesa”, fruto das transformações acima referidas, cf., em
específico, José de Souza Martins. Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos
movimentos sociais no campo. São Paulo: Hucitec, 1989, p. 22.
45
Nas considerações finais da tese, elencaremos os argumentos desenvolvidos ao longo
do trabalho e aprofundaremos nossa abordagem sobre a convivência com o semiárido
enquanto uma ideologia geográfica de base regionalista, estabelecida enquanto “consciência
espacial” voltada à elaboração de um “outro semiárido”, dissociando-se da leitura negativa da
região em prol de uma construção positiva, assumindo, assim, o semiárido como espaço de
convivência e, como tal, de possibilidades. Neste sentido, refletindo sobre as contradições que
envolvem a relação ASA-Estado, problematizaremos a espacialidade das ações políticas da
Articulação em meio às limitações e constrangimentos impostos pela “política espacial”
hegemônica.
46
CAPÍTULO 1 – NORDESTE, REGIÃO-PROBLEMA E O COMBATE À SECA: ideologia
geográfica de um regionalismo de dominação
47
Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a
linguagem de sinhá Terta, pediu informações. Sinhá Vitória,
distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e
como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros.
(...)
- Como é?
Sinhá Vitória falou em espetos quentes e fogueiras.
- A senhora viu?
Aí sinhá Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe
um cocorote.
O menino saiu indignado com a injustiça, atravessou o
terreiro, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, à
beira da lagoa vazia.
“Vidas secas”, Graciliano Ramos.
Então, é isso que é o inferno! Nunca imaginei... Não se
lembram? O enxofre, a fogueira, a grelha... Que brincadeira!
Nada de grelha. O inferno... O inferno são os outros!
“Entre quatro paredes”, Jean Paul Sartre.
48
No Brasil, o termo “sertão” é associado, predominantemente, a um amplo repertório
de imagens, representações. Terra rachada pelas longas estiagens, caatinga espinhosa,
povoada por homens vestidos com gibão e protegidos do sol escaldante por chapéus de couro.
Terra dos vaqueiros e das mulheres em suas longas caminhadas, equilibrando baldes d‟água
na cabeça. Lugar de cangaceiros, romeiros, homens lutadores. Homens desconfiados, brabos,
marcados pela dureza de um ambiente hostil, árido, seco – infernal. O sertão é, enfim, este
espaço de privações. Gado morto, terra de gente atingida pela seca, eventualmente também
vitimizada pelas inundações desmedidas. Este sertão carrega, em si, um peso simbólico
repleto de dor e sofrimento, mas também de esperança e fé. Do coronelismo e seus
desmandos; do cangaço e seus personagens míticos. Sertão é, enfim, lugar de pessoas e
paisagens exóticas, costumes e hábitos idiossincráticos. Parte do Brasil, sem dúvida, mas uma
parte distinta – marcadamente peculiar. Parte distante, quase separada – lugar de onde se
migra. Este sertão de sofrimento e privações encontra sua oposição no litoral, lugar de
oportunidades, terra de promissão, de onde vem a ajuda, o socorro e, no limite, para onde se
vai, em busca da construção de uma vida diferente, longe do flagelo.
Discutiremos, neste capítulo, essas imagens do sertão seco e árido enquanto uma
construção simbólica que integra e alimenta projetos e políticas de intervenção pública na
porção semiárida do território brasileiro. Veremos que o termo “sertão” carrega um sentido de
“alteridade espacial” que se torna funcional para a construção de um projeto de dominação
elaborado e constituído desde o não-sertão (litoral), lugar central. Nesta perspectiva,
entendemos que a representação espacial – pelos sentidos que traz e propaga – se constitui um
momento relevante na consolidação do domínio objetivo sobre o território, localizando os
sujeitos sociais a partir de um determinado discurso hegemônico.
No caso em questão, veremos que esse discurso carrega um pressuposto naturalista
que explica e qualifica a miséria do homem sertanejo pelos atributos naturais de sua região. O
conceito geográfico de região é mobilizado enquanto instrumento legitimador desse discurso,
integrando o processo de produção dessa alteridade espacial negativa. Neste espaço-outro,
problemático, o homem é vítima da seca, da natureza. Na representação instauradora desse
Nordeste sertanejo, o homem-vítima não é visto como sujeito, não é portador das potenciais
soluções para as calamidades que o atingem, da mesma maneira que tais calamidades não são
interpretadas como decorrência da própria sociedade em que o homem-vítima é parte.
Veremos, com efeito, que as calamidades e a miséria, vistas como produtos da seca, passam a
ser definidas como características identificadoras, traços essenciais dessa região. Gerir tal
49
condição natural – combatendo os seus efeitos – passa a ser a tarefa assumida pelos
governantes e reivindicada pelas “elites regionais” que, guarnecidas pelo discurso naturalista,
viabilizam a construção de grandes obras e projetos hídricos, sobretudo de instalação de
açudes e barragens. Por este caminho, o Nordeste, tendo o sertão como referência fundante,
passa a ser qualificado e instituído como região-problema.
1.1. Sertão: espaço-outro
O “sertão” é um termo que remete, de imediato, ao estranho. Lugar desconhecido e,
como tal, desamparado. O seu sentido de “espaço outro”, propagado inicialmente no período
colonial, para se referir aos “espaços vazios” do interior do Brasil, lugares a serem
desbravados, passa a ser referido, posteriormente, a partir do final do século XIX, à porção de
clima semiárido do território nacional. Conserva-se, contudo, num e noutro caso, um sentido
de representação espacial que ressalta e evidencia a polaridade com o litoral, lugar civilizado,
portador de qualidades que o sertão, por sua natureza, não dispõe.
Ressaltando essa polaridade, em particular do segundo momento, Albuquerque Júnior
destaca que este sertão, que será tema de muitos discursos e trabalhos artísticos, torna-se uma
questão arquetípica da cultura brasileira. Com efeito, essa questão emerge da própria
discussão nacionalista em torno da cultura e sua relação com a civilização, sendo o litoral o
espaço que representa o processo colonizador e desnacionalizador. O sertão, por sua vez,
aparece como o lugar onde a nacionalidade se esconde, lugar livre das influências
estrangeiras115
. O sertão é aí muito mais um espaço substancial, emocional, do que um recorte
territorial preciso, constituindo-se, nas palavras do autor,
[...] uma imagem-força que procura conjugar elementos geográficos,
lingüísticos, culturais, modos de vida, bem como fatos históricos de
interiorização como as bandeiras, as entradas, a mineração, a garimpagem, o
cangaço, o latifúndio, o messianismo, as pequenas cidades, as secas, os
êxodos etc. O sertão surge como a colagem dessas imagens, sempre vistas
como exóticas, distantes da civilização litorânea. É uma ideia que remete ao
interior, à alma, à essência do país, onde estariam escondidas suas raízes116
.
“Colagem de imagens”, o sertão não se define precisamente como uma realidade
natural. Como alerta Robert Moraes, enquanto uma realidade fáctico-material, a noção de
115
Durval Muniz de Albuquerque Junior. A invenção do nordeste e outras artes. 4a ed. rev. São Paulo: Cortez,
2009, p. 67. 116
Durval Muniz de Albuquerque Junior, op. cit., p. 67.
50
sertão não representa uma individualidade específica que o identifique como um ente telúrico
dotado de particularidades intrínsecas, não podendo, assim, ser estabelecido como um tipo de
meio natural singular, nem como uma modalidade própria de paisagem humanizada117
. Em
síntese, conforme o autor, o sertão não é um lugar preciso, mas uma “condição atribuída a
variados e diferenciados lugares”. Trata-se, enfim, de um símbolo imposto a determinadas
condições locacionais, sob certos contextos históricos.
O objeto empírico desta qualificação varia espacialmente, assim como
variam as áreas sobre as quais incide tal denominação. Em todos os casos,
trata-se da construção de uma imagem, à qual se associam valores culturais
geralmente – mas não necessariamente – negativos, os quais introduzem
objetivos práticos de ocupação ou reocupação dos espaços enfocados. Nesse
sentido, a adjetivação sertaneja expressa uma forma preliminar de
apropriação simbólica de um dado lugar118
.
Os traços que definem o sertão – suas imagens, símbolos, etc. – trazem como
elementos de referência o seu outro, o não-sertão (litoral). Deste modo, como observou Nísia
Trindade Lima, o sertão é concebido como um dos pólos do dualismo que contrapõe o atraso
ao moderno, e é analisado com frequência como o espaço dominado pela natureza e pela
barbárie. Segundo a autora, no outro pólo, litoral não significa simplesmente a faixa de terra
junto ao mar, mas principalmente o espaço da civilização119
.
O processo classificatório que qualifica o sertão se institui, assim, como um ato
valorativo mediante o qual, a partir do lugar de onde se fala – o não-sertão – é forjada e
projetada a imagem do sertão, para o qual e sobre o qual se fala, predominantemente,
enquanto seu negativo. Referenciando-se a partir do litoral, legitima-se o poder de
classificação, poder este referendado pela posição geográfica central, de onde emana, com
sentido de naturalidade, o atributo da universalidade. O pressuposto é o de que o não-sertão
não é um lugar tal qual o sertão, mas uma espécie de lugar superior, transcendente, atópico.
Podemos qualificar este ato classificatório valorativo como uma tautologia espacial120
, isto é,
117
Antonio Carlos Robert Moraes. Sertão: um “outro” geográfico. in Geografia histórica do Brasil: capitalismo,
território e periferia. São Paulo: Annablume, 2011, p. 100. 118
Ibidem, p. 101. 119
Nísia Trindade de Lima. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade
nacional. Rio de Janeiro: Revan: IUPERJ, UCAM, 1999, p. 60. 120
Na terminologia filosófica tradicional, tautologia significa genericamente “um discurso (em especial, uma
definição) vicioso porquanto inútil, visto repetir na conseqüência, no predicado ou no definiens o conceito já
contido no primeiro membro” (por exemplo: “todo solteiro é um não-casado”). Cf. Nicola Abbagnano.
Dicionário de Filosofia. Alfredo Bosi, tradutor. 2aed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 939. Se, contudo, na
terminologia filosófica esse discurso vicioso apresenta-se “inútil”, veremos que, no âmbito do exercício de
representação espacial, seu uso responde a uma operação classificatória que traz efeitos sociais e políticos (por
51
um exercício lógico de representação do espaço fundamentado num sentido auto-referente,
estabelecido a partir do centro (no caso, não-sertão – litoral).
Ilustrando esse tipo de procedimento classificatório, que traz em si pretensões de
universalidade, Carlos Walter Porto-Gonçalves nos apresenta um exemplo pertinente e
elucidativo. O autor observa que assim como cada um, de cada lugar do mundo, tem de
assinalar em seu endereço eletrônico o país onde mora e de onde fala – .br (Brasil) ou .ve
(Venezuela) ou .mx (México) ou .cu (Cuba) ou .ar (Argentina) ou .co (Colômbia) – aquele
que fala a partir dos EUA não precisa adicionar .us ao seu endereço e, assim, “é como se
falasse de lugar-nenhum tornando familiar que cada qual se veja, sempre, de um lugar
determinado, enquanto haveria aqueles que falam como se fossem do mundo e não de
nenhuma parte específica”. O autor observa ainda que, no Brasil, há o nordestino, o sulista e o
nortista, mas não há o sudestino, nem o centro-oestista. Afinal, “o sudeste é o centro e, como
tal, não é parte. É o todo! E a melhor dominação, sabemos, é aquela que, naturalizada, não
aparece como tal” 121
.
Na prática, seguindo esta lógica, o poder de classificação referenciado no não-sertão
impõe, inevitavelmente, a condição subordinada do sertão, já que este se apresenta, como
vimos, como uma projeção negativa. Tal subordinação não está fundamentalmente assentada
em atributos naturais objetivos, definidos pelas qualidades próprias do espaço. Trata-se, na
verdade, do resultado de um processo configurado por relações sociais desiguais e
contraditórias e que manifesta essas desigualdades e contradições espacialmente. Em outras
palavras, o sertão, enquanto representação espacial, se constitui como um momento do
processo de objetivação, no espaço, de desigualdades produzidas sob o capitalismo,
canalizando essas desigualdades e contradições na forma de relação centro-periferia. Assim
sendo, o sertão pode ser compreendido como uma manifestação particular do discurso
legitimador dessa relação, em escala nacional. Por esta razão, este processo não está
desprovido de intencionalidades e interesses, integrando o complexo jogo de conflitos – e seu
universo próprio de dominação e resistência política – que configura o capitalismo enquanto
relação social.
Se, no plano da lógica, a tautologia pode ser definida como um vício de linguagem ou
falácia argumentativa que resulta na afirmação da verdade do sujeito mediante sua própria
exemplo, legitimando e fomentando a execução de determinadas ações político-estatais), não sendo, portanto,
desprovido de utilidade prática. 121
Carlos Walter Porto-Gonçalves. Apresentação da edição em português. in Edgardo Lander, organizador. A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales – CLACSO, 2005, p. 9-10.
52
repetição disfarçada no predicado122
– não podendo-se derivar daí, pois, um sentido
explicativo satisfatório seja para o sujeito, seja para o predicado –, no plano da representação
do espaço, por sua vez, o que estamos chamando de tautologia espacial é constituída como
um exercício classificatório que institui e define a periferia por meio da própria projeção, em
negativo, do centro, não podendo-se, do mesmo modo, derivar daí uma explicação coerente de
nenhum dos dois termos. Observa-se, neste sentido, que o recurso à tautologia espacial
reforça uma representação hierarquizada do espaço cujo alicerce se encontra, precisamente,
nos termos da relação centro-periferia.
Isto evidencia a potencialidade das imagens criadas e forjadas sobre o espaço – suas
representações – enquanto fator de dominação política. Por esta razão, como temos
argumentado, parece-nos profícuo o esforço teórico de associar tais representações espaciais
ao conceito de ideologia. Como vimos na introdução desta tese, as ideologias geográficas
constituem-se como a substância das representações coletivas acerca dos lugares, posicionado
os indivíduos, grupos e classes sociais, levando-os à transformação ou acomodação política.
Desenvolvendo sua proposição sobre o tema, Robert Moraes circunscreve três modalidades de
discursos abarcadas pelas ideologias geográficas:
- O discurso que veicula uma visão do espaço, do território, do lugar etc.
Aqui os temas como o do “caráter” de uma dada área, ou o da “aptidão” de
certas porções do planeta, ou ainda o do “destino” de determinados lugares,
aparecem como bem ilustrativos. – O discurso que tenta colocar as questões
sociais como qualidades do espaço. As teses do determinismo geográfico
podem ser apresentadas aqui como uma grande exemplifcação. O discurso
diretamente normativo a respeito do espaço, em variadas escalas. Os planos
e projetos que visam ordená-lo, destruí-lo, reconstruí-lo etc., servem como
exemplo123
As representações do espaço vinculadas às práticas políticas que elas orientam e
legitimam, no âmbito das ideologias geográficas, estão diretamente conformadas pelo
exercício de classificação que hierarquiza e qualifica o espaço. Este exercício é definido por
um poder, que manifesta um ato de direito, isto é, a autoridade de circunscrever, impor e
legitimar uma dada visão do mundo social. Segundo Bourdieu, este ato de direito que consiste
em afirmar com autoridade uma verdade que tem força de lei é um “acto de conhecimento, o
122
Nicolai Abbagnano, op. cit., p. 939. 123
Antonio Carlos Robert Moraes. Uma nota sobre o conceito de ideologia. in Ideologias geográficas. São
Paulo: Anablume, 2005, p. 44-45.
53
qual, por estar firmado, como todo o poder simbólico, no reconhecimento, produz a existência
daquilo que anuncia” 124
. Com efeito,
O auctor, mesmo quando só diz com autoridade aquilo que é, mesmo
quando se limita a enunciar o ser, produz uma mudança no ser: ao dizer as
coisas com autoridade, quer dizer, à vista de todos e em nome de todos,
publicamente e oficialmente, ele subtrai-as ao arbitrário, sanciona-as,
santifica-as, consagra-as, fazendo-as existir como dignas de existir, como
conforme à natureza das coisas, “naturais” 125
.
As imagens e representações passam a ser, assim, encarnadas como um dado objetivo
da realidade, assimiladas como uma resultante da própria natureza. Como tal, apresentam-se
enquanto verdade, operacionalizando e avalizando, assim, os processos sociais que as
articulam e as acionam. Constituem-se, deste modo, essas imagens e representações, enquanto
um discurso naturalizador de uma dada ordem social.
A lógica da naturalização de processos sociais, mediante a construção de imagens e
representações sobre estes, está fortemente presente no desenvolvimento do capitalismo, em
suas diversas manifestações histórico-geográficas particulares. Robert Moraes elabora uma
reflexão sobre a espacialidade do capitalismo em seu processo de mundialização – isto é,
expansão por todo o planeta e conseqüente incorporação dos lugares “singulares” à sua lógica.
O autor observa, de início, que a história do capitalismo é, numa perspectiva geográfica, em si
mesma, a história da expansão de determinadas relações sociais, que avançaram até abarcar
todos os quadrantes do planeta. Pode-se observar, deste modo, uma história universal num
âmbito global, o que permite entender a expansão progressiva e a mundialização do capital
como atributos essenciais da espacialidade desse modo de produção126
.
No processo de expansão espacial do capitalismo, enquanto modo de produção,
processo este necessariamente multi-escalar, ocorre uma forte articulação entre universalidade
e singularidade, segundo o autor. Uma importante e eficaz característica da dominação
capitalista é sua capacidade adaptativa à variação (natural e social) dos lugares, “no sentido
em que a capacidade de inovação e de conviver com o diverso possibilitava a criação de
estruturas específicas (no limite, singulares) que se integravam e reproduziam a lógica geral
do sistema” 127
. Assim,
124
Pierre Bourdieu. A identidade e a representação: elementos para uma reflexão crítica sobre a ideia de região.
in O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 114. 125
Idem. 126
Antonio Carlos Robert Moraes. Geografia histórica do capitalismo. in Geografia histórica do Brasil:
capitalismo, território e periferia. São Paulo: Annablume, 2011, p. 17-18. 127
Antonio Carlos Robert Moraes. op. cit., p. 18.
54
A diversidade e variedade – natural e social – dos quadros terrestres devem
ser avaliadas nesse contexto como um forte elemento interveniente na
história territorial do capitalismo. Tendo como característica essencial de sua
espacialidade a expansão constante, esse modo de produção tende a colocar
cada vez mais lugares sob a órbita da lógica do capital128
.
A incorporação desses lugares se dá, cabe enfatizar, através de movimentos
contraditórios, isto é, sem necessariamente implicar na dissolução completa e absoluta das
particularidades presentes nas novas áreas assimiladas à sua lógica. Neste sentido, a
expansividade intrínseca ao funcionamento do capitalismo “acarreta uma homogeneização
diferenciadora dos lugares terrestres, que os torna mais iguais e mais diversos ao mesmo
tempo” 129
. As relações que constituem esse processo trazem, assim, rígidas hierarquias,
manifestadas em trocas desiguais, intercâmbios injustos e posições diferenciadas130
.
Analisando historicamente este processo em escala global, Edgardo Lander ressalta
que a consolidação das relações de produção capitalistas e do modo de vida liberal, até que
estas fossem internalizadas como formas naturais de vida social, teve uma dimensão colonial
e imperial de conquista e subordinação territorial, por parte das potências da Europa. As
hierarquias e posições desiguais, constituídas nesse processo de expansão capitalista, são
reafirmadas mediante a naturalização do domínio, justificado pela suposta superioridade
cultural, econômica, social e territorial das potências dominantes131
. Neste sentido,
[...] a “superioridade evidente” desse modelo de organização social – e de
seus países, cultura, história e raça – fica demonstrada tanto pela conquista e
submissão dos demais povos do mundo, como pela “superação” histórica das
formas anteriores de organização social, uma vez que se logrou impor na
Europa a plena hegemonia da organização liberal da vida sobre as múltiplas
formas de resistência com as quais se enfrentou132
.
Conforme o autor, essa visão de mundo tem como eixo articulador central a ideia de
modernidade que, segundo afirma, captura complexamente quatro dimensões básicas: 1) a
visão universal da história associada à ideia de progresso; 2) a “naturalização” tanto das
relações sociais como da “natureza humana” da sociedade liberal-capitalista; 3) a
128
Ibidem, p. 21. 129
Ibidem, p. 22. 130
Idem. 131
Edgardo Lander. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. in A colonialidade do saber:
eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO,
2005, p. 31. 132
Ibidem, p. 33.
55
naturalização ou ontologização das múltiplas separações próprias dessa sociedade; 4) a
necessária superioridade dos conhecimentos que essa sociedade produz frente aos demais
conhecimentos existentes133
.
Essa realidade instauradora da modernidade, nas palavras de Aníbal Quijano, é o
resultado de um processo “que começou com a constituição da América e do capitalismo
colonial/moderno e eurocentrado134
como um novo padrão de poder mundial” 135
. Neste
sentido, a chegada de Colombo na América inaugura dois processos que articuladamente
conformam a história posterior: a modernidade e a organização colonial do mundo. Dá-se
início, assim, a um longo processo que culminará nos séculos XVIII e XIX com a organização
da totalidade do espaço e do tempo em uma “grande narrativa universal”, na qual a Europa é
simultaneamente o centro geográfico e a culminação do movimento temporal136
.
É mediante esse projeto modernizador que se evidencia a “superioridade” das formas
de organização social estabelecidas a partir da sociedade liberal de mercado, onde os traços
fundamentais de sua primazia ficam demonstrados tanto pela conquista e submissão dos
demais povos do mundo137
, como pela “superação” histórica das formas anteriores de
organização social138
. Segundo Boaventura de Sousa Santos, a idéia de “superação” das
formas “primitivas” de organização social tem como base, de um lado, a conexão do
racionalismo iluminista com o capitalismo liberal e individualista e, por outro, a presença do
Estado moderno e democrático. Por este caminho, como conseqüência da chegada desta
comunidade estatal, haveria a dissolução da comunidade anterior: a comunidade étnica139
.
Para esta perspectiva,
133
Idem. 134
“Eurocentrismo é o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboração sistemática começou na
Europa Ocidental antes de mediados (sic) do século XVII, ainda que algumas de suas raízes são sem dúvida mais
velhas, ou mesmo antigas, e que nos séculos seguintes se tornou mundialmente hegemônica percorrendo o
mesmo fluxo do domínio da Europa burguesa. Sua constituição ocorreu associada à específica secularização
burguesa do pensamento europeu e à experiência e às necessidades do padrão mundial de poder capitalista,
colonial/moderno, eurocentrado, estabelecido a partir da América”. Cf. Anibal Quijano. Colonialidade do poder,
eurocentrismo e América Latina. in Edgardo Lander, organizador. A colonialidade do saber: eurocentrismo e
ciências sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO, 2005, p. 246-247. 135
Ibidem, p. 227. 136
Edgardo Lander, op. cit., p. 26. 137
Segundo Robert Moraes, o processo de valorização do espaço na colonização do território latino-americano
estava calcado no entendimento de que a colônia era um “espaço a se ganhar”, a ser conquistado na missão
civilizatória, englobando em seu seio populações autóctones enquanto um recurso natural a mais a ser apropriado
na área colonizada. Cf. Antonio Carlos Robert Moraes. Patrimônio natural, território e soberani. in Meio
ambiente e ciências humanas. São Paulo: Hucitec, 2002, p. 37. 138
Edgardo Lander, op. cit., p. 33. 139
Boaventura de Sousa Santos. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez,
1995, p. 316.
56
[...] a racionalidade e a modernidade foram imaginadas como experiências e
produtos exclusivamente europeus. Desse ponto de vista, as relações
intersubjetivas e culturais entre a Europa, ou melhor dizendo a Europa
Ocidental, e o restante do mundo, foram codificadas num jogo inteiro de
novas categorias: Oriente-Ocidente, primitivo-civilizado, mágico/mítico-
científico, irracional-racional, tradicional-moderno. (...) Sob essa codificação
das relações entre europeu/não europeu, a raça é, sem dúvida, a categoria
básica140
.
Nas palavras de Moraes, essa noção eurocêntrica de cultura “inscreve-se nesse
processo de realização do imperialismo, o qual apresenta seus „códigos historicizantes‟ sob a
aparência de uma „universalidade neutra‟” 141
. Neste prisma, a história caminha de forma
linear e “na frente do tempo seguem os países centrais do sistema mundial e, com eles, os
conhecimentos, as instituições e as formas de sociabilidade que neles dominam” 142
. É nos
termos dessa lógica que a modernidade ocidental produz a “não contemporaneidade do
contemporâneo”, ou seja, não aceita a coexistência de formas sociais distintas em um mesmo
momento histórico143
. Nesta concepção eurocêntrica da história, aquilo que se diferencie do
padrão da sociedade liberal capitalista é compreendido como manifestação de um passado em
vias de superação, como um resquício a ser removido pela instauração da modernidade
ocidental. Assim, essa integração/submissão ao mundo eurocêntrico-ocidental impõe,
inevitavelmente, “a adesão a um conjunto de valores culturais originados e comandados pela
Europa, entre os quais se salienta a concordância com o controle político e econômico
europeu do resto do mundo” 144
. Tal domínio, visto como natural,
[...] ancorava-se numa visão evolutiva da história da humanidade que
entendia a colonização ultramarina como uma expansão de agentes do
processo social. A área central desse movimento era alçada nessa visão à
condição de herdeira do mais elevado conhecimento humano, constituído ao
longo de grandes etapas civilizacionais: a Grécia clássica, o império romano,
a Cristandade medieval, e, finalmente, a Europa moderna145
.
Esse processo culmina no estabelecimento de uma ordem que encontra na forma
nacional-estatal uma importante expressão. Serge Latouche argumenta que a estruturação das
sociedades ocidentais em Estados nacionais constitui a base fundamental da identidade
140
Anibal Quijano. op. cit., p. 238. 141
Antonio Carlos Robert Moraes. Ocidentalismo e história da geografia. in Geografia histórica do Brasil:
capitalismo, território e periferia. São Paulo: Annablume, 2011, p. 42. 142
Boaventura de Sousa Santos. O Fórum Social Mundial: manual de uso. São Paulo: Cortez, 2005, p. 22. 143
Boaventura de Sousa Santos. op. cit., p. 22. 144
Antonio Carlos Robert Moraes. op. cit., p. 40. 145
Ibidem, p. 40-41.
57
nacional dos indivíduos membros, ao menos no nível imaginário. As sociedades ocidentais
são, com efeito, primeiramente sociedades políticas. A força de tal concepção reside em seu
alcance de impregnação no imaginário, o que, segundo o autor, a torna quase indestrutível,
porque se afirma, precisamente, enquanto natural e trans-histórica146
. Assim, o Estado-nação
encarna a condição de sujeito do direito internacional e, como tal, ele é soberano147
. Por outro
lado, “As sociedades que não adotaram a forma nacional-estatal não têm existência jurídica;
existem para ser descobertas, conquistadas e civilizadas” 148
.
O Brasil, país constituído pela colonização portuguesa, teve a conquista territorial
como elemento-base de seu processo colonizador. Neste sentido, a apropriação do espaço,
exploração dos seus recursos naturais e a subordinação de suas populações originárias foram
aspectos presentes da formação territorial em questão. Por isso, Robert Moraes defende a tese
de que uma forte visão territorialista acompanha a concepção de país ao longo da formação
nacional brasileira149
. O autor argumenta que não há nenhum elemento de unidade e
identidade no território nacional brasileiro que preceda o colonizador. A unificação do
território não se dava por características naturais bem definidas, sendo seus limites, na
realidade, formados por um mosaico de biomas e ecossistemas. Do mesmo modo, não havia
uma unidade cultural ou ética que configurasse a coesão da população autóctone, já que este
território era ocupado por uma variedade ampla de povos diferenciados, dispersos e
autônomos, falantes de línguas distintas distribuídas em vários troncos lingüísticos. Em
síntese, “foi a instalação do colonizador que criou um elemento de unidade do Brasil como
um território colonial do império português, como um conjunto de áreas de colonização que
conformaram a América Portuguesa” 150
.
146
Serge Latouche. A ocidentalização do mundo: ensaio sobre a significação, o alcance e os limites da
uniformização planetária. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 93. 147
Partindo da ideia de que a relação das sociedades ocidentais com as periféricas, dominadas, se dá mediante a
bipartição, fundada na distinção entre o moderno e seu “outro” (arcaico, atrasado, etc.), Sousa Santos elucida
que, no campo do direito moderno, “[...] este lado da linha é determinado por aquilo que conta como legal ou
ilegal de acordo com o direito oficial do Estado ou com o direito internacional. O legal e o ilegal são as duas
únicas formas relevantes de existência perante a lei, e, por esta razão a distinção entre ambos é uma distinção
universal. Esta dicotomia central deixa de fora todo um território social onde ela seria impensável como
princípio organizador, isto é, o território sem lei, fora da lei, o território do a-legal, ou mesmo do legal e ilegal de
acordo com direitos não oficialmente reconhecidos. Assim, a linha abissal invisível que separa o domínio do
direito do domínio do não-direito fundamenta a dicotomia visível entre o legal e o ilegal que deste lado da linha
organiza o domínio do direito”. Cf. Boaventura de Sousa Santos. Para além do pensamento abissal: das linhas
globais a uma ecologia dos saberes. in Boaventura de Sousa Santos; Maria Paula Meneses, organizadores.
Epistemologias do Sul. São Paulo, 2010. 148
Serge Latouche, op. cit., p. 94. 149
Antonio Carlos Robert Moraes. Ideologias geográficas na história brasileira. in Ideologias Geográficas. São
Paulo: Anablume, 2005, p. 83. 150
Ibidem, p. 84.
58
Como parte desta visão territorialista, a afirmação da unidade e da autoridade estatal
se deu tendo como base uma prioridade do território diante da população. Em outras
palavras, a ideia da “construção do país” foi constitutiva da formação da nacionalidade
brasileira, sendo o “povo” nada mais do que um instrumento de edificação do país, isto é, um
meio na execução dos objetivos perseguidos pelas elites e pelo Estado, e não como a
finalidade das ações. Sedimenta-se, assim, no plano das classes dominantes, uma ótica “de
claro conteúdo anti-humano, onde o país é identificado com o seu espaço, sendo a população
um atributo dos lugares” 151
. Neste sentido, a ideia da “construção do país” estava associada,
nesta ótica, diretamente ao domínio do território pelo Estado, incorporando-se os fundos
territoriais ao território usado152
.
Em meio ao processo de formação territorial do Brasil, brevemente descrito até aqui, o
sertão constitui-se uma manifestação particular dessa visão territorialista, visão esta que
apresenta, como vimos, pressupostos hierarquizantes e valorativos sobre os espaços aos quais
se refere. Na prática, o termo já era utilizado, no período colonial, como qualificador de um
espaço não-civilizado, ainda não suficientemente incorporado à dinâmica sócio-econômica
nacional. Seriam, assim,
[....] os lugares da expansão futura, onde dominavam as características da
originalidade natural, espaços habitados pelos “povos selvagens” e pelas
populações isoladas que “vivem a margem da civilização”. Ao atribuir a
condição de sertão a uma dada localidade já se assinalava o desejo de
apropriá-la e inseri-la nos circuitos de produção de mercadorias, rompendo
com seu isolamento e destruindo seus modos de vida tradicionais. E esse ato
de conquista, violento por excelência, era justificado como parte da missão
civilizadora de construir o país, sedimentando a civilização nessas terras
ainda submetidas à barbárie153
.
Parece-nos evidente, com efeito, que essa concepção hierarquizante e valorativa do
espaço e da população a ele relacionada encontra forte correspondência com as formas de
justificação e legitimação dos processos de dominação e ocupação colonial dos espaços
periféricos, em escala global. Em outras palavras, neste caso, o sertão constitui uma
151
Antonio Carlos Robert Moraes. Território e identidade na formação brasileira. in Ideologias Geográficas. São
Paulo: Anablume, 2005, p. 98. 152
Antonio Carlos Robert Moraes. op. cit., p. 88. Sobre a distinção entre território e território usado, o autor
afirma: “Para bem equacionar em termos geopolíticos a pioneira construção do poder estatal brasileiro é
necessário diferenciar os conceitos de „território‟ e de „território usado‟, de modo a captar sua relação nesse
processo. O território diz respeito à área do domínio político internacionalmente reconhecido como de soberania
legítima de um Estado, principalmente pelos Estados vizinhos. O território usado, uma fração desse espaço,
compreende os lugares economicamente integrados na lógica do sistema colonial, dotados de estruturas
produtivas incorporadas pela colonização”. Cf. Ibidem, p. 86. 153
Ibidem, p. 90.
59
manifestação, em escala nacional, de um modo de equacionar o espaço fundamentado numa
lógica bipolar que separa os espaços marcados pela civilização, modernidade – em uma
palavra, definidos pelo caráter da universalidade – daqueles dominados pela natureza, pelo
costume, pelo atraso – isto é, definidos pelo atributo da singularidade. Sobre isto, Nísia
Trindade de Lima observa:
É como se estivéssemos diante de um efeito especular dos sentimentos,
motivados pelo contato com as sociedades que vivenciaram a modernização.
Ou, se quisermos nos reportar à perspectiva do século XIX, um efeito da
imagem das “nações civilizadas”. Teríamos, assim, a reprodução interna, na
sociedade brasileira, das contradições experimentadas no contraste com
aquelas sociedades154
.
Com efeito, parece-nos profícuo observar que essa forma de representação espacial
bipolar, tautológica – presente tanto na relação dos impérios europeus com as colônias, quanto
na relação do Estado nacional com seus fundos territoriais, como no caso brasileiro – marca
também o desenvolvimento de outros estados nacionais periféricos.
O exemplo argentino pode ser elucidativo155
. Neste país, o termo desierto serve – tal
como o sertão, no Brasil – como qualificador de um espaço-outro, caracterizado pela
distância não apenas geográfica, mas também e, sobretudo, social e cultural. Trata-se, desde
modo, de um espaço “vazio”, lugar apartado da civilização, da modernidade – no limite, da
própria sociedade. Segundo Mariana Lois, analisando as imagens territoriais forjadas com
base no conceito de desierto, o mesmo foi mobilizado, na Argentina, fundamentalmente para
fazer referência aos espaços que se encontravam sob domínio indígena, em particular, do
Chaco argentino156
, tendo sido amplamente utilizado também para aqueles situados na
Patagônia157
. Para a autora, a conceituação desierto esconde um discurso legitimador de uma
série de ações governamentais destinadas à apropriação e dominação dos espaços referidos, ao
longo do período de consolidação do Estado-nação argentino. Na prática, subjacente ao termo,
encontrava-se o propósito oficial de transformar o desierto em seu oposto – o não-desierto –,
mediante um processo de ocupação e posterior imposição dos valores morais associados à
civilização e o progresso. Neste sentido,
154
Nísia Trindade de Lima, op. cit., p. 61. 155
Antonio Carlos Robert Moraes. O sertão: um “outro geográfico”. in Geografia histórica do Brasil:
capitalismo, território e periferia. São Paulo: Annablume, 2011, p. 108. 156
O chaco argentino, definido pela forte presença indígena, integra a região do chamado gran chaco, que
atravessa parte dos territórios da Argentina, Bolívia, Paraguai e Brasil. 157
Carla Mariana Lois. La invención del desierto chaqueño: una aproximación a las formas de apropiación
simbólica de los territorios del Chaco en los tiempos de formación y consolidación del estado nación argentino.
Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, 1999.
60
[…] cuando hablaban de "desierto" el énfasis estaba puesto en el referente
empírico territorial: la ausencia de civilización era asumida como un "vacío"
y legitimaba la conceptualización como "desierto", dotándolo de un sentido
muy laxo que nada decía sobre los habitantes del lugar. De esta forma,
ignorando la existencia de población indígena, es que se construye el vacío
y, consecuentemente, el desierto. En torno a esta cuestión se fundamentan y
se materializan los proyectos de apropiación territorial (de características
militares) llevados adelante por el Estado: el criterio de apropiación – y de
legitimación de la apropiación – suponía que „la estatalidad se impone sobre
la nada‟. Esto, significativamente, ponía fuera de la discusión la cuestión
indígena y situaba al desierto como escenario óptimo para la civilización158
Observa-se que a demarcação da diferença, no espaço, apresenta-se como um recurso
retórico necessário para justificar, no limite, sua superação. Por meio de tal operação é que se
constrói e se fortalece o sentido da unidade, em escala nacional, constituída pela
homogeneização espacial mediante a imposição dos códigos e valores moderno-
civilizacionais do centro. É válido evidenciar que a região – conceito clássico da Geografia –
cumpre um papel central neste processo.
É com base em tal perspectiva classificatória que, tal como no caso do desierto
argentino, o sertão brasileiro foi instituído como uma realidade geográfica. Num primeiro
momento, que se refere ao contexto do Império e de afirmação do Estado nacional brasileiro,
aparece como meio de imposição colonial da unidade territorial, mediante uma concepção
genérica (sem uma delimitação geográfica precisa, específica), que o afirmava como um outro
a ser ocupado, dominado e civilizado. Neste sentido, mais abstrato, sinônimo de fundo
territorial, deveria ser incorporado pelo Estado, assimilado pelos seus valores e códigos
institucionais159
. Esse “antigo regionalismo”, nas palavras de Albuquerque Junior, inscrito no
interior da formação discursiva naturalista, partia da concepção de que as diferenças entre os
espaços do país, em formação, definiam-se como um reflexo imediato da natureza, do meio e
da raça. Nesta perspectiva, as variações de clima, de vegetação, de composição racial da
158
Carla Mariana Lois. op. cit. s.p. 159
“As partes do território não usadas pela economia colonial (agora nacional) podem ser qualificadas como
“fundos territoriais” na perspectiva de uma geopolítica estatal. Manter o domínio e a integralidade destes fundos
se apresenta como a principal tarefa posta para o novo Estado, e a forma monárquica de governo assumida já se
constituía uma resposta a essa demanda primordial. Tratava-se de espaços para ocupação futura, lugares a serem
incorporados pelo processo de expansão territorial não interrompido pela emancipação política. Tanto que a nova
autoridade estatal vai se autodenominar como „império‟ do Brasil, designação que como visto denota a
motivação expansionista. O móvel da expansão repõe muitas determinações da conquista colonial na
organização social do novo país”. Cf. Antonio Carlos Robert Moraes. Ideologias Geográficas na história
brasileira. in Geografia histórica do Brasil: capitalismo, território e periferia. São Paulo: Annablume, 2011, p.
87.
61
população explicavam as diferenças de costumes, hábitos, práticas sociais e políticas. Com
efeito, as grandes distâncias, a deficiência nos meios de transporte e comunicação, o baixo
índice de migrações internas entre Norte e Sul, tudo isso, argumenta o autor, tornava “estes
espaços completamente desconhecidos entre si, verdadeiros mundos separados e diferentes
que se olhavam com o mesmo olhar de estranhamento com que nos olhavam da Europa” 160
.
Num segundo momento, a partir da década de 1920, desenvolveu-se um “novo
regionalismo”, mais atrelado ao discurso de caráter nacionalista que, também com
perspectivas de integração territorial, busca no “reconhecimento” das particularidades
regionais um meio de realização. É, efetivamente, neste segundo momento que se constituiu o
que Albuquerque Junior qualificou como a “invenção do Nordeste”, enquanto um espaço-
outro, particular – em uma palavra, um “outro geográfico”. Este autor observa que, a partir da
década de 1920, contexto de desenvolvimento da imprensa comercial, emerge a “curiosidade
nacionalista”. Relatos de viagem, presentes em jornais, descreviam os lugares visitados, seus
costumes, reconhecendo-se e demarcando-se suas diferenças e particularidades, referenciadas
nos grandes centros.
Esses relatos fundam uma tradição, que é tomar o espaço de onde se fala
como ponto de referência, como centro do país. Tomar seus “costumes”
como costumes nacionais e tomar os costumes das outras áreas como
regionais, como estranhos. São Paulo, Rio de Janeiro ou Recife se colocam
como centro distribuidor de sentido em nível nacional. As “diferenças” e
“bizarrias” das outras áreas são marcadas como o rótulo do atraso, do
arcaico, da imitação e da falta de raiz161
.
Ainda que discordemos do autor em relação ao seu argumento de que essa “tradição”
de tomar o espaço de onde se fala como ponto de referência seja uma fundação do referido
período162
, consideramos profícua a identificação desse discurso (que qualificamos
anteriormente como tautologia espacial) na relação estabelecida a partir de São Paulo, Rio de
Janeiro e Recife, desde meados da década de 1920, com áreas periféricas.
Com esse “novo regionalismo”, pós-anos 1920, a seca passa a ser incorporada como
elemento central da ideia de sertão. Neste caso, o sertão não seria, precisamente, o Nordeste
160
Durval Muniz de Albuquerque Junior. op. cit., p. 53. 161
Ibidem, p. 54. 162
Como pudemos argumentar anteriormente, defendemos que esse tipo de procedimento classificatório, que
hierarquiza e valora os espaços periféricos a partir de uma auto-referência do centro, apresenta-se como a base
do discurso colonialista europeu, justificando e legitimando a dominação das colônias, bem como prossegue
fomentando a constituição e afirmação dos estados nacionais periféricos, em sua relação com seus fundos
territoriais, como ocorreu no Brasil (com a ideia de sertão) e na Argentina (com a ideia de desierto), segundo os
exemplos mencionados.
62
(eventualmente chamado, numa classificação mais genérica, de “Norte”), mas, sobretudo, sua
porção seca, atingida pelas intempéries climáticas, entendidas como causadoras dos danos
sociais e do flagelo ali encontrados. Se, no contexto do Brasil imperial, o sertão qualificava,
de forma genérica, as áreas “vazias” do território nacional, isto é, os espaços a serem
ocupados – os fundos territoriais; no contexto nacionalista do “novo regionalismo”, o sertão
continua representando um espaço-outro, no entanto, a partir de um recorte mais preciso.
Trata-se, a partir de então, fundamentalmente, do Nordeste seco. Este Nordeste passa a
representar o novo sertão do Brasil.
1.2. Aspectos ambientais do Sertão nordestino
A delimitação geográfica da região Nordeste é perpassada por controvérsias
correspondentes aos diversos critérios adotados para sua definição. O geógrafo Manuel
Correia de Andrade observa que, se analisarmos as tentativas realizadas até então, no sentido
de particionar o país em regiões naturais, notaremos que, se alguns autores aceitam colocar no
Nordeste apenas os estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas,
outros incluem também o Piauí e o Maranhão, enquanto, por sua vez, outros adicionam ainda
o Sergipe e parte da Bahia, geralmente até a altura do Recôncavo. Segundo o autor, o
Conselho Nacional de Geografia (CNG), em 1941, classificou o Nordeste como a área que
abrange do Maranhão até Alagoas, não tendo sido esta classificação totalmente aceita, por sua
não incorporação pelas organizações governamentais. A Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) recorta, para seus fins de planejamento, uma área
que abarca o estado do Maranhão até o norte de Minas Gerais, enquanto o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), a partir de 1968, em sua regionalização, considerou como
parte do Nordeste os estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba,
Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia163
.
Os aspectos ambientais constituem, aqui, um importante critério para a definição dos
limites que qualificam o Nordeste, nas variadas regionalizações estabelecidas. Neste sentido,
Andrade destaca que, nesta região, o elemento que marca mais sensivelmente a paisagem e
mais preocupa o homem é o clima, em sua manifestação no regime pluvial e exteriorizado na
vegetação natural. Por isto é aceita uma distinção, desde o tempo colonial, entre a “Zona da
163
Manuel Correia de Andrade. A terra o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no
Nordeste. 7aed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 36.
63
Mata”, “com o seu clima quente e úmido e duas estações bem definidas – uma chuvosa e
outra seca –, do Sertão, também quente, porém, seco”. É nesta porção seca, semiárida, que,
como nota o autor, ocorrem as famosas “secas periódicas que matam a vegetação, destroçam
os animais e forçam os homens à migração”. A área de transição entre ambas, com trechos
quase tão úmidos como o da Mata e outros tão secos como o do Sertão, é denominada de
Agreste164
.
Província fitogeográfica das caatingas, onde dominam temperaturas médias anuais
muito elevadas, a porção seca do Nordeste brasileiro é identificada pelo geógrafo Aziz
Ab‟Saber como uma das três grandes áreas semiáridas da América do Sul. Além dela, o autor
menciona a região Guajira, na Venezuela e na Colômbia; e a diagonal seca do Cone Sul, que
envolve trechos de aridez na Argentina, Chile e Equador. Segundo o autor, os atributos que
dão similitude às regiões semiáridas são sempre de origem climática, hídrica e fitogeográfica:
baixos níveis de umidade, escassez de chuvas anuais, irregularidade no ritmo das
precipitações ao longo dos anos; prolongados períodos de carência hídrica; solos
problemáticos tanto do ponto de vista físico quanto do geoquímico e ausência de rios perenes,
sobretudo no que se refere às drenagens autóctones165
.
Tendo em foco essa porção seca do território nordestino, recentemente, em 2005, o
Ministério da Integração Nacional revisou os critérios que definiam oficialmente o semiárido
brasileiro. Antes, sob vigor da Lei no 7.827, de 27 de dezembro de 1989, o semiárido era
qualificado como “A região inserida na área de atuação da Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE, com precipitação pluviométrica média anual igual
ou inferior a 800 mm166
”. Na cartilha oficial do Ministério da Integração Nacional, se
apresenta como justificativa para a revisão “a insuficiência do índice pluviométrico como
critério exclusivo da seleção dos municípios”. Assume-se, oficialmente, a posição segundo a
qual não é a “falta de chuvas a responsável pela oferta insuficiente de água, mas sua má
distribuição, associada a uma alta taxa de evapotranspiração que resultam no fenômeno da
seca, a qual periodicamente assola a população da região” 167
.
Com efeito, adicionam-se mais dois critérios técnicos para a identificação dos
municípios enquanto integrantes do semiárido. Além da precipitação média anual inferior a
164
Manuel Correia de Andrade. op. cit., p. 37. 165
Aziz Ab‟Saber. Sertões e sertanejos: uma geografia humana sofrida. Estudos Avançados, 1999, p. 7. 166
BRASIL. “Nova Delimitação do Semiárido Brasileiro”, Ministério da Integração Nacional, disponível em:
http://www.integracao.gov.br/desenvolvimento regional/publicacoes/delimitacao.asp. Cf. Anexos - Mapas –
“Nova delimitação do semiárido”. 167
BRASIL. “Nova Delimitação do Semiárido Brasileiro”, Ministério da Integração Nacional, disponível em:
http://www.integracao.gov.br/desenvolvimento regional/publicacoes/delimitacao.asp
64
800 mm, antes exclusivo, consideram-se, agora, também o índice de aridez, calculado pelo
balanço hídrico que relaciona as precipitações e a evapotranspiração potencial, bem como o
risco de seca maior que 60%, tomando-se por base o período entre 1970 e 1990. Assim, além
dos 1031 municípios até então considerados parte do semiárido, são inseridos mais 102, em
razão da adoção dos novos critérios, passando o semiárido, segundo a classificação
atualmente vigente, a ser composto por 1.133 municípios de nove estados: Alagoas, Bahia,
Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe168
.
A área de abrangência do “novo” semiárido é de 969.589.4 km2, abrigando cerca de 22
milhões de pessoas, o que representa 11% da população brasileira169
. Nesta porção do
território nacional, as condições ambientais podem ser consideradas adversas. Ainda que
possa alcançar uma média pluviométrica relativamente alta em alguns municípios, de 800 mm
anual, a ocorrência das chuvas tende a estar concentrada em três ou quatro meses do ano, com
freqüentes precipitações de grande impacto, em um ou dois dias, causando enchentes,
erodindo os solos e comprometendo a produção agrícola.
Como observou Ghislaine Duque, é comum a ocorrência de longos períodos de
estiagem, uma sucessão de anos de pluviosidade fraca ou muito fraca, causando esgotamento
das reservas alimentares e de água, morte de animais, etc. Além disso, o volume hídrico
perdido pela evapotranspiração é três ou quatro vezes superior àquele fornecido pela chuva,
resultando, portanto, numa “perda considerável das reservas de água armazenadas a céu
aberto e um importante ressecamento da superfície dos solos não cobertos” 170
. Ab‟Sáber
destaca que, ali,
[...] o balanço da evapotranspiração é predominantemente negativo durante
um intervalo da ordem de seis a nove meses por ano. O excesso de calor
descompensa o nível e o volume das precipitações estacionais até fazer secar
os cursos d‟água à chegada da estação sem chuvas ou com muito pouca
chuva. À medida em que as chuvas cessam, os restos de água existentes no
solo se evaporam rápida e progressivamente. Os lençóis d‟água
subsuperficiais se aprofundam até que os próprios rios passam a alimentar os
lençóis mais próximos de seus leitos171
.
168
BRASIL. “Nova Delimitação do Semiárido Brasileiro”, Ministério da Integração Nacional, disponível em:
http://www.integracao.gov.br/desenvolvimento regional/publicacoes/delimitacao.asp 169
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2010. 170
Ghislaine Duque. A Articulação do Semi-Árido brasileiro: camponeses unidos em rede para defender a
convivência no Semi-Árido. in Bernardo Mançano Fernandes et. al., organizadores. Lutas camponesas
contemporâneas: condições, dilemas e conquistas. São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos
Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009, p. 304. 171
Aziz Ab‟Saber. op. cit., p. 14.
65
Essas condições ambientais respondem, assim, às características de uma região
subdesértica paradoxal, já que é extensivamente servida por redes hidrográficas
hierarquizadas, com drenagem aberta para o mar. Segundo o autor, por caminhos os mais
diversos, os rios regionais saem das bordas das chapadas ou dos castelos d‟água de velhos
maciços em abóbada (Borborema), percorrem as extensas depressões interplanáticas, quentes
e secas, e acabam chegando diretamente ao mar ou engrossando as águas do São Francisco ou
do Parnaíba, grandes rios perenes que cruzam ou tangenciam a região. No entanto, para a
infelicidade dos grupos humanos ali residentes, “o funcionamento hidrológico de todos os rios
que nascem e correm dentro dos limites da área nuclear do domínio dos sertões depende do
ritmo das estações seca e de chuvas, o que torna seus cursos d‟água intermitentes e
sazonais”172
.
Observa-se, no que se refere ao regime pluviométrico, a existência de duas estações
bem definidas, sendo uma chuvosa, compreendendo os meses de verão e outono, e outra seca,
mais longa, referente aos meses de inverno e primavera. Nilo Bernardes qualifica esse tempo
de estiagem como a “estação morta do sertão”, sendo esta marcada pelo momento em que
“mesmo os grandes rios já estão reduzidos a poças descontínuas, e os homens e os animais
lutam com a carência de água disponível” 173
. Este é o período triste do sertão, nas palavras do
autor, caracterizado pelo solo calcinado, a vegetação reduzida a uma “galharia ressequida e
acizentada, com a paisagem apenas salpicada pelo verde dos cactus e das bromélias ou, em
certos lugares, pelas copas espaçadas dos juazeiros” 174
.
Se não vem a seca, tudo ocorre normalmente, com uma estação de fartura (ali
conhecida como inverno) e outra de privações175
. Ilustrando com suas palavras o temor da
seca que aflige o sertanejo, Nilo Bernardes afirma, com certo tom poético, que, no final da
estação seca “até a própria natureza parece extremamente angustiada, contemplando o céu de
um azul luminoso, pontilhado por raras e esparsas nuvens” 176
. A incerteza da chegada da
chuva é um sentimento angustiante pelo qual frequentemente passa o homem sertanejo. A
possibilidade da estiagem “coloca em todas as mentes a grande pergunta, se realmente virá o
inverno daquele ano, se já não se prenuncia uma nova calamidade, como frequentemente se
registra no sertão” 177
.
172
Ibidem, p. 13. 173
Nilo Bernardes. As caatingas. Estudos Avançados. 1999, p. 74. 174
Idem. 175
Manuel Correia de Andrade. op. cit., p. 57-58. 176
Nilo Bernardes. op. cit., p. 74. 177
Nilo Bernardes. op. cit., p. 74.
66
Frente à estiagem possível, o sertanejo, previdente, guarda parte dos alimentos que
adquire durante a estação chuvosa e recorre como alimentação suplementar para o gado ao
restrolho das culturas de milho e do algodão, sobretudo, assim como utiliza também as
cactáceas nativas – o mandacarú, o facheiro, o xiquexique – e a macambira, na alimentação de
animais178
. O renascimento do verde, no sertão, ocorre rapidamente após a chegada das firmes
e regulares chuvas. Descrevendo essa transformação tão repentina, Bernardes afirma:
O panasco, o mimoso, ou outro capim, atapetam imediatamente os espaços
abertos, os arbustos como que milagrosamente se cobrem de folhas e as
árvores criam novas ramagens. Em breve, as flores mais variadas enfeitam o
sertão, num verdadeiro afã da natureza de fazer esquecer a quadra
mesquinha. Os rios e riachos passam a correr. Recrudescem as atividades
agrícolas e pastoris. Homens e mulheres que foram para outras regiões em
busca de trabalho, voltam para os seus roçados. Renascem, também, as
esperanças; e o apego do sertanejo pela terra áspera se torna ainda mais
arraigado179
.
Para além da própria questão da irregularidade pluviométrica, as atividades agrícolas
são desfavorecidas também pela presença, na maior parte do semiárido, do subsolo do tipo
cristalino, com camadas rasas de terra e baixa concentração de matéria orgânica. Estas
atividades, que só se acentuaram na região com o progressivo aumento populacional,
transformaram, por vezes completamente, a fisionomia original naqueles trechos onde as
condições de solo e água são mais favoráveis. Por sua vez, o sistema tradicional de criação foi
firmado nas áreas favoráveis ao pastoreio, os campos abertos, constituindo-se esta a principal
atividade associada à conquista do interior180
.
Predominantemente, o semiárido é caracterizado por uma vegetação de baixo porte,
com folhas caducas, muitas vezes reduzidas a espinhos, no caso das cactáceas, o que constitui
uma forma natural de proteção contra a transpiração181
. Este quadro, com baixa incidência de
cobertura vegetal depositada sobre o solo, não facilita sua fertilização, restando para a
atividade agrícola algumas áreas particulares, mais úmidas. Além das serras e encostas de
maciços, que captam umidade, identificam-se alguns pontos de exceção à aridez também nos
chamados baixios ou várzeas182
, como também são denominados. Trata-se, nas palavras de
178
Manuel Correia de Andrade. op. cit., p. 57. 179
Nilo Bernardes. op. cit., p. 74. 180
Idem. 181
Ghislaine Duque. op. cit., p. 304. 182
Como pudemos identificar em vários trabalhos de campo realizados em diversos municípios do semiárido
paraibano, a denominação “bage”, sendo uma variação lingüística de “várzea”, é também bastante utilizada pela
população sertaneja. Ab‟Sáber observa que, nos sertões mais interiores, em pleno domínio das caatingas, a
67
Ab‟Sáber, de um “enclave de tropicalidade no meio semiárido”. Neste enclave, encontra-se
uma “ilha de paisagens úmidas, quentes ou subquentes, com solos de matas e sinais de antigas
coberturas florestais, quebrando a continuidade dos sertões revestidos de caatingas” 183
. Sobre
essas porções úmidas, Bernardes observa:
Além da água, as margens dos rios e riachos ofereceram as terras de maior
valor agrícola. Correndo espraiados e abundantes durante a época das
chuvas, os cursos de água construíram largos baixios, em que o solo aluvial e
a maior umidade da terra, contrastando com os altos (ou centros) de solos
secos e pedregosos, favorecem os cultivos. Não raramente são os próprios
leitos arenosos que comportam as culturas de vazante, praticadas logo que o
fluxo diminui e, depois, corta. Quanto piores as condições do sertão, maior a
dependência dos habitantes com relação aos baixios, mais rígida é a
distribuição da população junto às ribeiras184
.
Em seu estudo sobre o modo de vida camponês sertanejo, Marta Inez Medeiros
Marques identifica diferentes usos da terra, que correspondem a distintas condições
ambientais do semiárido185
. A autora destaca que a terra geralmente utilizada para o gado
(terra de pasto) é coberta por uma capoeira muito rala, que se apresenta um pouco mais densa
somente nos pontos altos dos interflúvios, sendo este o local utilizado para retirada da madeira
útil a diversos fins, como a lenha, o carvão e a feitura das casas e cercas. Por sua vez, a terra
de agricultura ou terra de trabalho localiza-se nas várzeas, nas margens dos açudes e nos
solos de pedimento. A terra de lavoura restringe-se, mais precisamente, às pequenas manchas
de solo que apresentam relativa profundidade e por isso conservam melhor a umidade do
semiárido. A extensão da “terra boa” disponível é, segundo argumenta Marques, um dos
principais fatores determinantes das condições socioeconômicas da unidade camponesa186
.
Numa perspectiva semelhante, Josué de Castro argumenta:
O aproveitamento pelo sertanejo destas manchas de terra de melhores
condições edáficas, com maiores reservas de umidade e melhor riqueza
expressão várzea cedeu lugar para o termo vazante, que descrevia exatamente a faixa de terrenos ribeirinhos
abrangidos pela rápida ascensão das águas no período chuvoso do ano. Segundo o autor, “Trata-se de um termo
dotado de grande capacidade de evocação, aplicável à rotina da dinâmica hidrológica dos sertões secos”. Cf.
Aziz Ab‟Saber. op. cit., p. 18. 183
Ibidem, p. 17. 184
Nilo Bernardes. op. cit., p. 75-76. 185
Ainda que a autora, em seu estudo, tenha partido de uma realidade empírica mais específica – município de
Ribeira, situado na microrregião do Cariri Oriental paraibano –, consideramos profícua, aqui, sua classificação
sobre os distintos usos da terra, em particular, por tal classificação elucidar diferentes estratégias de produção
camponesa conforme condições ambientais típicas do semiárido como um todo. 186
Marta Inez Medeiros Marques. O modo de vida camponês sertanejo e sua territorialidade no tempo das
grandes fazendas e nos dias de hoje em Ribeira-PB [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo,
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 1994, p. 107.
68
humosa, para o seu roçado de subsistência, fez-se de maneira muito
semelhante ao aproveitamento do oásis e dos ueds secos, dos vales e das
estepes do Atlas e das bordas do Saara, por parte das populações serracenas
que aí se estabeleceram quando da expansão do império árabe por todo o
Norte da África. Tanto nos oásis africanos como nas vazantes nordestinas,
vamos encontrar a mesma textura de culturas variadas num aproveitamento
intensivo dessas limitadas zonas onde a água excepcionalmente se
apresenta187
.
Andrade nota, contudo, que nessa região “as áreas úmidas mais favoráveis à atividade
agrícola constituem uma pequena percentagem da superfície total (...). Por isso, é o sertão,
ainda hoje, uma área onde predomina o criatório extensivo” 188
. Este autor chama a atenção
para o fato de que, no processo de ocupação da região semiárida, a agricultura desenvolveu-se
ligada à pecuária, predominante, às sombras dos currais, devido à grande distância que
separava aquela zona do litoral e ao elevado preço que os gêneros atingiam após o transporte
por dezenas de léguas.
Ocupava a agricultura pequenas áreas, uma vez que era feita visando ao
abastecimento da população de cada “curral”, e nos locais mais úmidos, mais
favoráveis, onde os solos eram mais espessos, como os leitos dos rios e as
lagoas secas; cultivavam também o leito do Rio São Francisco e seus
afluentes, à proporção que o baixar das águas deixava descobertas as
“praias” e ilhas; eram, portanto, culturas de vazante189
.
Segundo Emilia Moreira e Ivan Targino, a necessidade de abastecimento dos
vaqueiros teria contribuído para o surgimento de uma produção alimentar baseada
principalmente nas culturas do feijão e do milho no interior das fazendas e currais, sobretudo
nas áreas de baixios, nos vales e leitos secos dos rios temporários que cortam a região. Para a
autora, apesar dos condicionamentos naturais restritivos, a presença desta agricultura no
interior semiárido pode ser explicada por alguns fatores: a) pelo isolamento geográfico do
sertão em relação às demais regiões com melhores condições para a produção de alimentos; b)
pela redução dos custos de reprodução de mão de obra; e c) pela complementaridade da
produção de subsistência com a pecuária através da utilização, pelo gado, do restolho que
ficava na terra após as colheitas das lavouras alimentares190
.
Esses pequenos roçados eram feitos, inicialmente, pelo próprio vaqueiro com a sua
família ou agregados, uma vez que os proprietários não tinham preocupação direta com o
187
Josué de Castro. Geografia da fome. 6a ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006, p. 174. 188
Manuel Correia de Andrade. op. cit., p. 197. 189
Ibidem, p. 191. 190
Emilia Moreira; Ivan Targino. Capítulos de Geografia Agrária da Paraíba. João Pessoa: Editora UFPB,
1997, p. 77.
69
abastecimento de seus trabalhadores, cabendo a estes prover sua alimentação, dentro das
condições que o meio natural lhes oferecia191
.
Os limites entre a porção das propriedades destinadas à agricultura e à criação se
definem a partir dos chamados “travessões” – formados por “cercas” de varas, espinhos ou
pedras – que separam as áreas de cultivo e da circulação do gado192
. Na perspectiva de
Manuel Diégues Junior, coexistindo, embora não se associando, a agricultura e a pecuária
estabeleceram um “sistema de viver” 193
. Nas zonas destinadas predominantemente à criação,
“o gado vive solto, enquanto a lavoura é cercada; de outro lado, nas zonas predominantemente
ou tipicamente de lavoura, o gado é que permanece cercado. A esta separação de atividades é
que se chama „travessão‟” 194
.
Este autor ressalta que os rebanhos tornaram-se responsáveis não apenas pela
ocupação humana da região, mas também por sua caracterização social. Segundo afirma, “a
pecuária dá fisionomia à região, quer marcando-lhe a vida econômica, quer norteando-lhe a
feição cultural. Em torno do gado criam-se as condições que normalizam e caracterizam a
vida regional”. Nesta perspectiva, a atividade da criação de gado influencia não apenas a
forma de organização do espaço das propriedades rurais, constituindo-se também uma
atividade relevante para a configuração de traços específicos de sociabilidade e organização
econômica, sendo as “fazendas de criação” os núcleos onde essa influência mais claramente
define a organização econômica e social.
A descrição geral, aqui realizada, sobre o semiárido brasileiro – ou, com certo grau de
generalização, do Nordeste – apresenta, em síntese, uma porção do território brasileiro que
tem o clima (e outros aspectos ambientais a este associados) como questão relevante para a
sua identificação. Por seus próprios atributos naturais, o clima semiárido pode trazer, como
vimos, certas condições adversas para a vida do homem sertanejo, sendo a mais conhecida
delas a estiagem ou a seca, que altera significativamente a dinâmica produtiva e a reprodução
social nas áreas por ela atingidas. Discutiremos, a seguir, o modo através do qual essas
condições ambientais foram, na prática, mobilizadas como justificativa para ações estatais de
intervenção, consolidando-se, a partir da imagem do flagelo e da miséria, um espaço para a
ação do poder estatal na porção do semiárido brasileiro.
191
Manuel Correia de Andrade. op. cit., p. 191. 192
Andrade constata que “Nos últimos cinquenta anos, o arame farpado vem sendo empregado neste mister e é
comum os grandes proprietários cercarem áreas de melhor pasto formando as „mangas‟ que reservam para o seu
gado”. Cf. Ibidem, p. 192. 193
Manuel Diegues Junior. Regiões culturais do Brasil. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Pesquisas
Educacionais, 1960, p. 179. 194
Ibidem, p. 150.
70
Desse fenômeno natural, típico do clima correspondente, resultam, evidentemente,
impactos produtivos e na reprodução das populações socialmente mais vulneráveis das áreas
mais atingidas. Os efeitos da carência hídrica são concretamente sentidos pelos homens e
mulheres que, além de terem comprometida sua produção agrícola e a própria criação do
gado, passam a depender de reservatórios com quantidade insuficiente água, ou com
qualidade imprópria para abastecimento doméstico.
Partindo desses efeitos concretos da estiagem, no semiárido brasileiro, se projetou a
imagem do Nordeste, referenciando-se em sua porção seca, como “região problema” do
Brasil. Enquanto sertão, sua incorporação ao território nacional aparecia como horizonte.
Neste caso, contudo, tal incorporação estava diretamente associada a um fenômeno natural e
dizia respeito, fundamentalmente, ao combate aos seus efeitos socialmente trágicos. A
intervenção pública é tida como a solução necessária para os problemas encontrados, cabendo
ao Estado trazer “soluções hídricas” ao Nordeste seco brasileiro. Assumiu-se, com efeito, a
açudagem como prática interventiva mais comum e considerada a mais eficiente para
solucionar os problemas dessa “região-problema”, prática esta alimentada e justificada, com
empenho, pelas “elites regionais” e pelos representantes governamentais do Nordeste nos
espaços público-institucionais do Estado.
Cabe, assim, problematizar os significados e efeitos dessa interpretação da seca,
fenômeno natural, na formulação de políticas interventivas para o semiárido. Veremos, no
próximo item, que a noção de sertão – espaço-outro, problemático – alimenta, também, os
propósitos subjacentes às justificações oficiais para as medidas interventivas, construindo-se a
região Nordeste a partir de um amplo repertório de ideologias geográficas, compondo uma
representação do espaço que traz a miséria como traço constitutivo. As determinações sociais
do processo são desconsideradas, sendo as calamidades consideradas um efeito do espaço,
isto é, um atributo natural da “região-problema” do Brasil.
1.3. O combate à seca e o discurso regionalista: intervenções governamentais na “região
problema”
Partindo dos aspectos naturais, até aqui discutidos, a geógrafa Iná Elias de Castro
observa que, por suas especificidades ambientais, o semiárido tem sido apresentado
historicamente pelo filtro de uma conscientização coletiva das dificuldades impostas por este
meio, que depende dos azares climáticos. Segundo afirma, a natureza é considerada quase um
ente metafísico, interpretada como um obstáculo intransponível a qualquer ideia de progresso
71
ou justiça social195
. Em outro trabalho, a autora argumenta que essa representação da região é
dependente de um conjunto de imagens: caatinga ressequida, a indefectível carcaça de um boi
e os retirantes, magros, com seus poucos pertences entrouxados e equilibrados sobre a cabeça.
Em tal interpretação, “A culpa da miséria era dos céus e não dos homens. A estes cabia tentar
minorar os seus efeitos com recursos técnicos e financeiros que, naturalmente, deveriam vir
de onde eles existissem” 196
.
Apesar de ser composta por zonas úmidas, particularmente no litoral, o Nordeste traz a
seca como imagem associada ao seu entendimento corrente enquanto um recorte geográfico,
constituindo-se esta sua marca essencial. Analisando relatos de viagem para a região, dos anos
1920, Albuquerque Junior nota que esse Nordeste seco é descrito de forma generalista,
empregando-se uma “impressão” sobre uma dada porção específica, conhecida pelos
viajantes, que passa a ser universalizada enquanto uma característica explicativa desse
“Norte”, ou “Nordeste” como um todo. Reforçando-se esse estigma, forjando-se, assim, os
supostos traços identitários da região, o que se descreve são aspectos, costumes encontrados
em um Estado ou uma área, que são apresentados e descritos como “costumes do Norte ou do
Nordeste” em oposição aos “costumes de São Paulo” 197
. Como exemplo, o autor menciona
uma nota de viagem ao Nordeste, em 1923, de um articulista do jornal O Estado de São
Paulo:
[...] algo sabíamos por leitura sobre a terra do sofrimento, que tem prados só
de urzes, tem montanhas de penhascos, habitações só de colmos, céu que
nunca se encobre... chão que nunca recebe orvalho, rios que não têm água. O
Nordeste brasileiro só foi divulgado com tal designação após a última
calamidade que assolou em 1919, determinado a fase decisiva das grandes
obras contra as secas. [...] quando levas de esquálidos retirantes vieram curtir
saudades infindas na operosidade do generoso seio sulino, quem sabe se
ainda em dúvida, entre a miséria de lá e a abundância daqui...198
.
A seca de 1919 é qualificada pelo articulista como o evento responsável pela
“divulgação” do Nordeste, sob tal designação. A “calamidade” é entendida, pois, como seu
traço inerente – a referência fundante de sua identidade regional. Esta condição, contudo, não
é vista como o efeito de processos históricos, sociais, mas como um resultado inevitável de
195
Iná Elias de Castro. Seca versus seca: novos interesses, novos territórios, novos discursos no Nordeste. in Iná
Elias de Castro et. al., organizadores. Brasil: questões atuais da reorganização do território. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1996, p. 297. 196
Iná Elias de Castro. O mito da necessidade: discurso e prática do regionalismo nordestino. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1992, p. 59. 197
Durval Muniz de Albuquerque Junior. op. cit., p. 55. 198
O Estado de São Paulo, 10/08/1923, p. 2, c. 2 apud. ibidem, p. 55, grifo nosso.
72
uma determinação natural. Seguindo tal perspectiva naturalista, se fortaleceu, do mesmo
modo, uma interpretação segundo a qual o “Norte” estava condenado pelo caráter mestiço de
suas raças e a tropicalidade de seu clima. Albuquerque Junior, constatando a presença dessa
interpretação naturalista, argumenta:
A questão da influência do meio era a grande arma política do discurso
regionalista nortista, desde que a seca foi descoberta em 1877, como um
tema que mobilizava, que emocionava, que podia servir de argumento para
exigir recursos financeiros, construção de obras, cargos no Estado etc. O
discurso da seca e sua “indústria” passam a ser a “atividade” mais constante
e lucrativa nas províncias e depois nos estados do Norte, diante da
decadência de suas atividades econômicas principais: a produção de açúcar e
algodão199
.
A imagem do horror acarretado pela seca alimenta, segundo o autor, a progressiva
unificação dos interesses regionais, convertendo-se em um detonador de práticas políticas e
econômicas que envolvem todos os Estados sujeitos a este fenômeno climático. Com a
descrição desse quadro miserável, estabelece-se a imagem de uma região abandonada pelos
poderes públicos, justificando, assim, a necessidade de inserção de suas demandas regionais
em âmbito nacional, para reverter sua condição marginalizada e abandonada.
Nas palavras de Castro, o Nordeste, por suas próprias condições naturais, converte-se,
assim, numa questão, o que significou sua legitimação, tanto em termos semânticos como em
termos objetivos, enquanto tema para reflexão e como um problema a ser resolvido, em escala
nacional. Segundo afirma, como elementos subjacentes à percepção dessa “questão”
encontram-se, entre outras coisas, a pobreza de sua população, os baixos rendimentos
agrícolas, pouca industrialização e poder da burguesia agrário-regional200
. É válido
considerar, como adverte a própria autora, que as imagens justificadoras do Nordeste
enquanto questão, isto é, a seca e as calamidades a ela associadas, são projetadas em paralelo
com a imagem de um outro Nordeste. Trata-se, aqui, daquele Nordeste litorâneo (não-
sertanejo) e, como tal, promissor, que está associado ao dinamismo da economia açucareira,
definindo-se como lócus primordial da cultura nacional.
Esse paralelismo não nos parece casual, nem uma decorrência óbvia da
segmentação do espaço regional em duas naturezas distintas, mas, pelo
contrário, é significativo da ambivalência da história política da região, cuja
199
Ibidem, p. 72. 200
Iná Elias de Castro. O mito da necessidade: discurso e prática do regionalismo nordestino. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1992, p. 57.
73
oligarquia, enquanto se apropriava da imagem da pobreza, participava
ativamente do bloco de poder do Estado201
.
Por este caminho, a seca é legitimada no cenário público como questão social,
mobilizando forças políticas e discursos justificadores de intervenções práticas direcionadas a
esta região que, por seus aspectos naturais constitutivos, consolida-se como uma “região-
problema”. As condições naturais instituem, aqui, o lugar político do Nordeste/Norte diante
do resto do país: a geografia dessa região-problema define, naturalmente, a situação miserável
de sua gente. Como resultado, esse discurso, que toma a seca como mote, traça um elo de
solidariedade entre os que se apresentam como porta-vozes desse “espaço sofredor”,
aproximando “os grandes proprietários de terra da Zona da Mata dos comerciantes das
cidades, e estes dos grandes produtores de algodão e criadores de gado” 202
. Deste modo, a
seca passa a ser propagada pelas elites regionais como uma questão a ser resolvida, em âmbito
nacional, instaurando-se a ideia de que a sua resolução se daria através do seu combate. Em
tal concepção, assume-se que enfrentando a seca o Estado atacaria o problema-raiz, causador
dos principais males que atingem essa região-problema.
As elites regionais se posicionam em vinculação direta ao poder central do Estado,
falando pela região, em nome dos interesses dessa “terra de sofrimentos”. Com efeito, essas
oligarquias agrárias consolidaram, mediante esse discurso, um canal de acesso a recursos
públicos através do alcance de espaços na estrutura central do Estado, mantendo seu poder,
legitimando-se como mediadores entre a escala local (e seus problemas) e a nacional (e seus
recursos).
Historicamente, como observou Iná Elias de Castro, o sucesso das estratégias de
preservação do peso político dessa elite agrário-regional resulta de suas alianças na República
Velha com as oligarquias do Centro-Sul e, posteriormente, com a burguesia industrial,
materializada nas decisões do Legislativo, especialmente na histórica derrota dos projetos
para superar a questão agrária, e na ocupação de postos na alta burguesia estatal203
.
Qualificando socialmente essa elite agrária, a autora afirma:
Estes atores tradicionais são tanto aqueles proprietários mais comprometidos
com o monopólio da terra do que com a sua utilização como base produtiva,
como aqueles cujas atividades econômicas são viabilizadas mais pela
201
Ibidem, p. 60. 202
Durval Muniz de Albuquerque Junior. op. cit., p. 73. 203
Iná Elias de Castro. Seca versus seca: novos interesses, novos territórios, novos discursos no Nordeste. in Iná
Elias de Castro et. al., organizadores. Brasil: questões atuais da reorganização do território. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1996, p. 303.
74
existência de recursos subsidiados do que pela inserção competitiva no
mercado, juntamente com o representante político de ambos, cujas decisões
e ações se fazem para evitar alterações de fundo nas relações de produção,
de poder e de disponibilidade de recursos financeiros204
.
As antigas “fazendas de criação” constituem-se um importante berço para a formação
das elites agrárias sertanejas. Sobre o tema, o importante estudo realizado por Marcus Vilaça
e Roberto Cavalcanti de Albuquerque, publicado inicialmente na década de 1960, contém
uma profícua reflexão. Os autores, analisando a realidade agrária do interior de Pernambuco,
notam que “se formou no bolsão nordestino um sistema econômico pulverizado em fazendas
mais ou menos autárquicas, descentrado de núcleos vigorosos de comando e decisão,
mantendo tênue, quase capilar, sua rede primitiva de intercomunicações” 205
. Cada vez mais
extensas, na medida em que a terra se torna rasa, dela emergindo o cascalho sertanejo,
algumas dessas fazendas, conforme argumentam os autores, tomam o aspecto de povoados,
que mais tarde se burocratizam em vilas e cidades.
Vilas e cidades que conservam o cheiro dos currais, a unidade de sua
destinação econômica primordial. E que se mantêm, sem maior estranheza
ou protesto, submissas ao senhor-patriarca, dono dos alpendres, das casas,
das terras que as circundam. É o coronel. Pela força de seus poderes e
domínios crescentes, ele se torna também senhor de povoados, de vilas, de
cidades e de municípios. Dono também da riqueza, das terras, das boiadas.
Dono até de gente. Essa situação como se prolonga no tempo, por força do
relativo imobilismo social e cultural, e da rigidez da estrutura econômica206
.
A influência política dos “coronéis” transcendia as dinâmicas locais, internas às
fazendas de criação, constituindo-se daí um fenômeno mais amplo, marcante no período da
Primeira República, estando suas raízes presentes no período imperial. Já neste período,
segundo argumenta Maria Isaura Pereira de Queiroz, os municípios se definiam como “feudos
políticos” que se transmitiam por herança – herança não configurada legalmente, mas que
existia de maneira informal207
.
204
Idem. 205
Marcus Vilaça; Roberto Cavalcanti de Albuquerque. Coronel, coronéis. 4a ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2003, p. 49. 206
Marcus Vilaça; Roberto Cavalcanti de Albuquerque. op. cit., p. 49. 207
Maria Isaura Pereira de Queiroz. O coronelismo numa interpretação sociológica. In Boris Fausto,
organizador. O Brasil republicano: Estrutura de poder e economia (1889-1930). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1997, p. 155.
75
Victor Nunes Leal, em seu clássico Coronelismo, Enxada e Voto, publicado pela
primeira vez em 1948, evidencia que a força eleitoral empresta ao “coronel” prestígio político,
natural coroamento de sua privilegiada situação econômica e social de dono de terras.
Dentro da esfera própria de influência, o “coronel” como que resume em sua
pessoa, sem substituí-las, importantes instituições sociais. Exerce, por
exemplo, uma ampla jurisdição sobre seus dependentes, compondo rixas e
desavenças e proferindo, às vezes, verdadeiros arbitramentos, que os
interessados respeitam. Também se enfeixam em suas mãos, com ou sem
caráter oficial, extensas funções policiais, de que frequentemente se
desincumbe com a sua pura ascendência social, mas que eventualmente pode
tornar efetivas com o auxílio de empregados, agregados ou capangas208
.
Analisando este quadro, Queiroz observa que a Constituição Brasileira de 1891
outorgou o direito de voto a todo o cidadão brasileiro ou naturalizado que fosse alfabetizado,
o que, supostamente, abriria a possibilidade de livre expressão dos cidadãos através das
eleições. Contudo, tal mudança não resultou em nada mais do que no aumento do número de
eleitores que continuavam obedecendo aos mandantes políticos já existentes209
.
Para José de Souza Martins, no plano político, a República concretizava a ampliação
da cidadania implícita na abolição da escravatura, em 1888, levantando a interdição de
direitos eleitorais para o liberto e ao mesmo tempo eliminava o preceito restritivo de renda
líquida mínima para os diferentes graus de participação política, tanto na definição da
elegibilidade quanto na de eleitor. Por outro lado, instituía a restrição do voto aos analfabetos.
Na prática,
Tais modificações, no entanto, não afetaram em absolutamente nada uma
velha instituição, caracteristicamente de classe, que desde a Colônia
arregimentava os grandes proprietários de terras e escravos, criando-lhes um
séquito de subalternos que os tinham como interpostas pessoas entre o poder
público e o poder privado dos poderosos210
.
Em argumento semelhante, Victor Nunes Leal afirma que, paradoxalmente, o
privatismo típico do coronelismo é alimentado pelo poder público, no regime representativo,
com sufrágio amplo, já que o governo não pode prescindir do eleitorado rural, cuja situação
de dependência ainda é incontestável. Para este autor, é fundamental considerar, como
208
Victor Nunes Leal. Coronelismo, enxada e voto: O município e o regime representativo no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002, p. 45-46. 209
Maria Isaura Pereira de Queiroz. op. cit., p. 155. 210
José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no
processo político. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 45.
76
elemento explicativo essencial dessa dependência, a questão da propriedade da terra. Segundo
afirma, “não é possível, pois, compreender o fenômeno sem referência à nossa estrutura
agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão
visíveis no interior do Brasil” 211
.
Ainda no que se refere às relações entre os “coronéis” e os camponeses, um elemento
importante identificado é a condição de “árbitros sociais” e “líderes políticos”, atribuída
àqueles. Para o exercício de sua liderança, contavam com o serviço de milícias de capangas
que, nas vastas extensões de suas terras, garantiam a ordem e domínio exercido. Os
“coronéis”, além de proprietários de numerosos rebanhos, tornaram-se chefes patriarcais de
famílias estendidas, englobando toda a parentela e inúmeros agregados, além de
constantemente ampliadas pelos afilhados gerados nos muitos compadrios212
. Tais figuras
comandaram o processo político pelo controle quase completo, em suas áreas de influência,
das eleições, consolidando-se, como o tempo, como “senhores absolutos”, incontestados,
donos também do comércio e da indústria local213
.
O sociólogo César Barreira argumenta que o coronel-proprietário de terra, como
“protetor”, “orientador” e “prestador de serviços”, exercia um tipo de dominação “natural,
familiar e eterna”, adjetivações que compõem a base do poder tradicional no sertão. Segundo
afirma o autor, como “peça” imemorial do jogo político do sertão, o coronel e a dominação
substantiva que ele encarna tendem a adquirir um caráter de eternidade e a oferecer um
modelo de “ordem social”, perpassada por traços de “mistério” e “desconhecimento”.
Explicando sua tese, o autor afirma:
O mundo é difuso e misterioso e nele avultam o coronel e suas leis, o que
facilita e torna também quase “natural” a reprodução da dominação. A
“roupagem familiar do poder” no sertão é que possibilita a sua manutenção
em cima de regras não conhecidas. A dominação não necessita nem se impõe
só pela força, mas pela aceitação e reconhecimento, através de mecanismos
ideológicos que tornam a realidade não perceptível por parte dos
dominados214
.
211
Victor Nunes Leal. op. cit., p. 44. 212
“O compadrio ou o afilhadismo foram forças que logo se implantaram e se desenvolveram no Brasil como
uma das nossas características culturais mais significativas. Tal como sucedeu em Portugal, também aqui no
Brasil o compadrismo criou uma larga rede de relações sociais, não apenas de utilidade, mas igualmente de
unidade. Daí a força que a família teve no Brasil e, no Brasil rural ainda tem. Só nos meios urbanos as
transformações sociais vão desagregando essa força”. Cf. Manuel Diegues Junior. op. cit, p. 59. 213
Marcus Vilaça; Roberto Cavalcanti de Albuquerque. op. cit., p. 26. 214
César Barreira. Trilhas e atalhos do poder: conflitos sociais no sertao. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora,
1992, p. 18.
77
Este espaço de mistério em que se reproduz o poder mediador do fazendeiro, afirma
o autor, é decorrente da ausência do Estado e das relações de dependência dos camponeses
sertanejos a esses proprietários de terra. Neste cenário, os coronéis passam a absorver várias
das funções que seriam estatais, mediante uma condição de legitimidade decorrente não
apenas da sua situação econômica, mas, sobretudo, pelo “prestígio” e “honra” reconhecidos
pelos camponeses. Com efeito, em certa medida, se projeta uma “aceitação social” em relação
ao domínio exercido215
.
Andrade, contudo, chama a atenção para o fato de que numa “sociedade rural em que
um pequeno grupo detinha o domínio da terra e explorava a grande maioria da população,
exercendo sobre a mesma um forte controle, não poderia ser uma sociedade calma, pacífica e
tranqüila” 216
. Sintetizando essa realidade, o autor argumenta:
Os proprietários mantinham em suas terras um certo número de moradores
que recebiam favores especiais e certos privilégios e que eram armados e
usados como capangas nas lutas com vizinhos ou com os dependentes, e como
eleitores nas ocasiões em que os cargos públicos eram disputados. Dispunham
assim de um sistema de poder que evitava, ou pelo menos atenuava os
choques violentos entre as classes e consolidava a sua influência, riqueza e
prestígio217
.
Deste modo, o estado de “aceitação social” era o resultado do exercício de um poder
de classe, um domínio praticado pela combinação entre força e consenso, coerção e
consentimento. Segundo argumenta César Barreira, a violência passa a fazer parte da história
do sertão e, nessa realidade, os “coronéis” representam a incorporação dessa violência218
. Para
o autor, a violência da classe dominante do sertão se torna mais forte na medida em que as
relações de trabalho sofrem alterações ou se modernizam e os camponeses tomam consciência
do seu “grau de dependência” e percebem que o seu “nível de miséria” é diretamente
proporcional ao “mando” do sertão219
.
Enquanto instrumentos mobilizados por essa elite agrária para o exercício do seu
poder, Iná Elias de Castro identifica: (1) a burocracia estatal, que gere e organiza decisões e
recursos nas escalas local, regional e nacional; (2) a propriedade fundiária, que, no Nordeste,
como em outras partes do país, mais do que recurso para a produção é aval para
financiamento, símbolo de status familiar, garantia de preservação na memória coletiva local
215
Ibidem, p. 20. 216
Manuel Correia de Andrade. Lutas camponesas no Nordeste. São Paulo: Ática, 1986, p. 19. 217
Manuel Correia de Andrade. op. cit., p. 19. 218
César Barreira. op. cit., p. 39. 219
Ibidem, p. 38.
78
e regional da posição no alto da hierarquia do poder local; (3) o mandonismo e a organização
oligárquica, que possibilitam a captura dos aparelhos formais do Estado, nas três esferas de
poder e da administração da Federação, viabilizando a permanência e a resistência as
mudanças institucionais220
.
Essa elite, operando com tais instrumentos, recorre à seca como imagem–força que
associa diretamente a miséria e a pobreza do camponês sertanejo à falta d‟água. A solução do
problema passa, pois, pelos investimentos públicos, oriundos da União, visando socorrer essa
região carente. Justificada por esse discurso, a açudagem passou a ser a estratégia central,
formulada e posta em prática, para combater os efeitos da estiagem.
Nesse contexto, tal como delimitou Roberto Marinho Alves da Silva, “A adoção de
tecnologias da engenharia hidráulica para armazenamento de água – a chamada solução
hídrica – catalisou a crença na possibilidade de combater a seca e aos seus efeitos” 221
.
Assim, “A tecnologia da irrigação passou então a ser vista e valorizada como um meio de
contornar a escassez de um fator de produção necessário ao desenvolvimento das culturas
agrícolas” 222
.
Como observaram João Medeiros Filho e Itamar de Souza, essa preocupação emergiu,
mais precisamente, após a seca de 1877, tendo adquirido forma e conquistado espaço nas
decisões governamentais somente nas primeiras décadas do século XX. Os autores
mencionam que, efetivamente, entre 1902 e 1906 que foram tomadas as primeiras
providências oficiais no sentido de dotar o semiárido nordestino de uma estrutura hidráulica
direcionada ao combate aos efeitos da seca. Para tal, no período, foram criadas três comissões:
(1) açudes e irrigação; (2) estudos e obras contra os efeitos das secas; e, por último, a (3)
comissão de perfuração de poços. Em 1909, diante do marasmo das iniciativas até então
postas, o governo de Nilo Peçanha criou a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), tendo
esta instituição atribuições bastante amplas, envolvendo estudos, construção de estradas,
conservação de florestas, perfuração de poços, estímulo à pequena açudagem, realização de
drenagem de vales úmidos e construção de açudes públicos com dinheiro da União223
.
Os esforços dos técnicos não foram suficientes para o estabelecimento de uma ação
efetiva do IOCS, tendo as ações deste sido reduzidas basicamente a construção de açudes
220
Iná Elias de Castro. op. cit., 304-305. 221
Roberto Marinho Alves da Silva. Entre o combate à seca e a convivência com o semiárido: transições
paradigmáticas e sustentabilidade do desenvolvimento [tese]. Brasília: Universidade de Brasília, Centro de
Desenvolvimento Sustentável, 2006, p. 183. 222
Idem. 223
João Medeiros Filho; Itamar de Souza. A seca no Nordeste: um falso problema: a política de combate às
secas antes e depois da SUDENE. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 31.
79
públicos ou particulares. Além disso, os recursos e obras passaram a ser apropriados para
atender interesses de caráter eleitoral por chefes políticos locais e regionais224
. Esta
perspectiva limitada da problemática da seca, que a reduz suas “soluções” à construção de
açudes e poços, segue alimentando o discurso dos políticos, embasando suas proposições e
projetos. Sobre esta permanência, os autores citados argumentam:
Ao longo da República Velha, a problemática da seca foi
predominantemente (não exclusivamente) reduzida à falta de reservatórios
para acumular água. Cristalizou-se, então, a mentalidade de que o problema
da seca é apenas falta de água. Ainda hoje, nos meios mais conservadores,
persiste esta mentalidade. Baseando-se neste pressuposto, as elites políticas e
intelectuais do Nordeste passaram a fazer a apologia da grande e média
açudagem225
.
Refletindo sobre o período em discussão, Ab‟Sáber adverte que, a partir de 1919, o
apelo à perfuração de poços para a obtenção de água subterrânea em terras sertanejas tem
longa e complicada história. Segundo afirma, ao longo do tempo, as solicitações para a
abertura de poços em áreas sertanejas aumentaram significativamente, com atendimento
relativamente protetivo e, muitas vezes, por influências políticas. O mesmo autor argumenta
que os poços estabelecidos em propriedades particulares, propiciados por instituições oficiais,
desde há muito foram considerados poços perfurados em regime de cooperação, o que acaba
por constituir uma “complicada história de atendimentos político-oligárquico execráveis” 226
.
Na década de 1940, o IOCS passou a se chamar Departamento Nacional de Obras
Contra as Secas (DNOCS), através do Decreto-Lei no 8.486, de 28 de dezembro de 1945. O
período posterior à criação do DNOCS foi marcado por novas secas, ocorridas em 1951, 1953
e em 1958, tendo sido esta última a mais severa. Diante deste quadro, Medeiros Filho e Souza
notam que, não obstante o Nordeste já possuir nesta última seca 6,7 milhões de metros
cúbicos de água reunidos em mais de 200 açudes e barragens públicas, “o que se presenciou
foi a repetição das tragédias anteriores: fome, miséria, morte dos rebanhos, invasão das
cidades e emigração em massa”227
. Os autores destacam que, no referido período, os açudes
públicos eram construídos predominantemente dentro das fazendas dos “coronéis” e a água
acumulada era destinada, prioritariamente, aos seus rebanhos e, só por um ato de
benevolência, servia aos camponeses necessitados.
224
Ibidem, p. 33. 225
João Medeiros Filho; Itamar de Souza. op. cit., p. 33. 226
Aziz Ab‟Saber. op. cit., p. 53. 227
João Medeiros Filho; Itamar de Souza. op. cit., p. 39.
80
Marcel Bursztyn ressalta que o DNOCS cumpria um importante papel na continuidade
das relações de reciprocidade características do “compromisso coronelista” entre o Estado e
as elites228
. O autor argumenta que, ao invés do poder oficialmente atribuído aos “coronéis”,
como ocorreu no período imperial (Guarda Nacional), é do ponto de vista econônico que o
Estado passa a assegurar a hegemonia desse grupo em escala local. Sendo tanto a pecuária
como o algodão vulneráveis aos efeitos da seca, o Estado assegurava, mediante a construção
de barragens, tanto a perenidade do gado dos latifundiários como a manutenção de um
estoque de mão-de-obra cativa, capaz de garantir o fornecimento local de alimentos mesmo
em épocas de estiagem através dos plantios de vazantes. Ao mesmo tempo, por intermédio da
rede de estradas secundárias, construídas de forma a servir aos beneficiários dos açudes, o
Estado sustentava a circulação da produção de mercado229
. Neste sentido,
Como a ação do Estado se intensificava a cada seca, esta passou a ser
desejável pelos políticos locais, já que, desta forma, poderiam obter os meios
materiais para comprar sua importância política (distribuição dos fundos
públicos condicionada à sua legitimação pela via eleitoral), além, é claro, de
tirar proveito, individualmente, enquanto produtores beneficiados230
.
Analisando esta realidade, Francisco de Oliveira também menciona que tais
reservatórios serviam, sobretudo, para sustentação do gado desses fazendeiros, e apenas
marginalmente para a implantação de pequenas “culturas de subsistência” de várzeas, assim
chamadas as ribeiras das barragens. Para o autor,
O investimento do DNOCS reforçava, num caso como noutro, a estrutura
arcaica: expandia a pecuária dos grandes e médios fazendeiros, e contribuía
para reforçar a existência do “fundo de acumulação” próprio dessa estrutura,
representado pelas “culturas de subsistência” dos moradores, meeiros,
parceiros e pequenos sitiantes. O caso da perfuração de poços é semelhante:
mediante acordos com os grandes proprietários, o DNOCS perfurou para
encontrar água, que se destinava sobretudo à sustentação dos rebanhos. Não
há, que a literatura registre, casos de poços públicos perfurados pelo DNOCS
em todo o sertão nordestino, a não ser em algumas cidades, para fins de
abastecimento de água potável231
.
228
Marcel Bursztyn. O poder dos donos: planejamento e clientelismo no Nordeste. 2a ed. Petrópolis: Vozes,
1985, p. 71. 229
Idem. 230
Marcel Bursztyn. op. cit., loc. cit., grifo do autor. 231
Francisco de Oliveira. Elegia para uma re(li)gião: SUDENE, Nordeste: planejamento e conflito de classes.
3a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 54.
81
Além do benefício direto dos grandes proprietários, como decorrência da construção
dessas obras hídricas, em suas fazendas, a intervenção público-estatal, no sertão/semiárido,
resultou na criação de condições para a subordinação camponesa a processos típicos de
acumulação primitiva, nos períodos das secas e das “emergências”, como eram denominadas
as épocas em que a intensidade da irregularidade se agravava. Deslindando esses processos,
Oliveira descreve que o recrutamento da mão-de-obra desocupada pela estiagem era feito
apenas depois que os magros recursos dos pequenos sitiantes, meeiros, parceiros, haviam se
esgotado em duas ou três semeaduras, à espera das chuvas, e empregava-se na construção das
barragens e das estradas. Os camponeses recebiam, pelo trabalho realizado, na maioria das
vezes, sob a forma de produtos, isto é, fornecendo-se os alimentos – farinha, feijão e a carne-
seca, esta nem sempre presente. Como um resultado do trabalho camponês, as barragens eram
construídas nas propriedades dos grandes fazendeiros e nas estradas, às vezes estradas
privadas no interior dos grandes latifúndios. Assim, mediante a utilização de recursos público-
estatais, foram implantadas benfeitorias nas grandes propriedades e sua forma de
financiamento chegou a se constituir em outro pilar da força e do poder político dos
“coronéis” 232
. Por isto,
[...] os períodos mais difíceis para a região tornavam-se os mais rentáveis
para os latifundiários, que passavam a ser alvo da assistência do Estado sob a
forma de obras públicas em suas terras. Os momentos em que o Estado
intervinha, assalariando a mão-de-obra desmobilizada pela seca, não
representava, no entanto, uma modificação nas relações de produção que
pudesse ameaçar a estrutura tradicional do binômio latifúndio-minifúndio.
Os trabalhadores engajados nas frentes recebiam, por seu trabalho, uma
porção de alimentos (farinha e rapadura) e, eventualmente, uma soma
insignificante em dinheiro. Após o final “institucional” da seca, os
trabalhadores das frentes eram desmobilizados, devendo permanecer
disponíveis, in loco, para o latifúndio233
.
É válido ressaltar que o recrutamento dos camponeses atingidos pela seca, para a
construção das obras hídricas, ocorre associado ao temor da ida, em massa, das multidões de
retirantes dos sertões para as cidades. A contenção dos flagelados respondia, assim, também a
uma preocupação urbana, revelando-se uma medida oficial para evitar a tomada das cidades
pelos camponeses que, por sua fragilidade social (e, em algumas interpretações, pelos
atributos próprios de sua raça), trariam a barbárie sertaneja ao litoral. Esta questão passou a
232
Ibidem, p. 54-55. 233
Marcel Bursztyn. op. cit., p. 72.
82
ser considerada um grave problema social a partir do final do século XIX, mobilizando
governantes, burgueses e a intelectualidade urbana na busca por soluções.
Frederico de Castro Neves, mencionando os efeitos da migração para Fortaleza, como
conseqüência da seca de 1877, afirma que a cidade foi “invadida e ocupada por sertanejos em
número quase quatro vezes maior que sua população”. Junto com os flagelados chegava, para
as elites urbanas, o temor de saques, doenças, assassinatos, além do ataque à recatada moral
das famílias provincianas. Segundo o autor, o problema, que já se apresentava naquela seca,
ganha contornos de solução institucional somente em 1915, materializando-se nos chamados
campos de concentração, abrigos destinados à recepção dos sertanejos-retirantes234
.
Tendo como justificativa os cuidados às vítimas da seca (sobretudo, no que se refere à
distribuição de alimentos e água), os campos de concentração aglutinavam, sob vigilância de
soldados, os sertanejos migrantes em áreas marginais das cidades, geralmente próximas às
estradas de ferro. Em espaços fechados, aos montes, os sertanejos morriam e padeciam de
doenças, pela insalubridade e precariedade dos locais de abrigo. Estes “currais de bárbaros”,
como qualificou Frederico de Castro Neves, recorrendo ao imaginário das elites do período,
concentravam os migrantes que, isolados, não poderiam comprometer a ordem e o bom
funcionamento das cidades, evitando-se, assim, que, com seus corpos, contaminassem física e
moralmente a urbe, já com aspirações modernistas e orientada por uma perspectiva
higienista235
.
Nos discursos da elite urbana, a civilização, a razão e a moral – elementos
constitutivos da cidade próspera e moderna – são confrontadas e ameaçadas pela barbárie,
irracionalidade e a imoralidade dos sertanejos, flagelados, que passaram a ocupar o espaço
urbano, em busca de socorros. A presença dos retirantes representava, assim, o contato
geográfico indesejável do sertão com o não sertão, dando forma, no universo das elites, a um
repertório de representações negativas sobre esse espaço-outro, atrasado e incivilizado. O
contato passava, assim, a conformar o imaginário das elites da cidade que reconheciam a
miséria do sertanejo como o resultado inevitável das condições naturais de seu local de
234
Frederico de Castro Neves. Curral dos bárbaros: os campos de concentração no Ceará (1915 e 1932). Rev.
Bras. Hist., 1995, p. 94. 235
Associando a existência dos campos de concentração, destinado aos retirantes da seca, ao higienismo
emergente, em Fortaleza, no final do século XIX, Lidiany Soares Mota Travassos afirma: “À medida que a vida
urbana tornava-se mais complexa e afeita às influências exteriores a exemplo das alterações feitas pelo governo
francês, com suas remodelações em busca do aformoseamento da cidade, maior era a exigência de implementar a
higiene dos espaços e a busca por uma higiene também para os corpos como uma norma de distinção social e
decência”. Cf. Lidiany Soares Mota Travassos. Uma história não contada: o campo de concentração para
flagelados de 1915 em Fortaleza-Ceará. Anais do V Colóquio de História “Perspectivas Históricas:
historiografia, pesquisa e patrimônio”, 2011, p. 719.
83
morada – por um lado, pelo clima; por outro, pelo seu distanciamento social e cultural da
modernidade européia.
Naturaliza-se, por meio desse imaginário, um entendimento politicamente
imobilizador, no que se refere ao campesinato, instituindo-se a ideia segundo a qual a miséria
e a pobreza são determinações naturais resultantes da seca, portanto, desvinculadas da própria
realidade social e das relações de classe em que os sertanejos estão historicamente enredados.
A propriedade da terra, os vínculos históricos de dependência aos latifundiários, e, neste
sentido, os processos sociais que configuraram a realidade da região são ignorados enquanto
elementos explicativos para o flagelo e a vulnerabilidade dos retirantes. Por isto, estamos de
acordo com Perruci, quando este afirma:
[...] a questão regional é uma construção ideológica da classe dominante
dentro do processo de realização do capitalismo no Brasil, isto é, dentro do
processo de exploração da força de trabalho pelo capital. Em outros termos,
a “Questão Nordeste” aparece como um dos mecanismos ideológicos que
funcionou como válvula justificadora da debilidade dos grupos dominantes
locais, ao mesmo tempo em que serve de instrumento de dominação e de
domesticação da força de trabalho, desviando-a ideologicamente da
contradição fundamental existente entre as classes sociais236
.
Por um lado, esse “regionalismo de dominação”, enquanto ideologia geográfica,
obscurece as contradições sociais intra-regionais, colocando na natureza a causa da miséria a
que estão submetidos os camponeses da região. Retirando da sociedade – e, em particular, da
própria contradição de classes – a fonte explicativa das mazelas do sertão, esse regionalismo
acaba por entificar a natureza, dotando-lhe de agência, retirando dos homens e mulheres a
capacidade de atuação frente ao ambiente em que vivem. Nas palavras de Iná Elias de Castro,
nessa visão regionalista, “a natureza semi-árida é o sujeito e a sociedade seu objeto,
instituindo a perspectiva de uma sociedade vitimizada pelo seu meio” 237
. A autora argumenta
que a seca como significante (expressão) adquire, assim, significado (conteúdo) no conjunto
das relações sociais, no território de sua ocorrência e fora dele, tornando-se um signo que só
poderá ser compreendido no contexto daquelas relações. Assim, na realidade em foco, o seu
significado objetivo de fenômeno natural foi substituído progressivamente pela significação
236
Gadiel Perruci. A formação histórica do Nordeste e a Questão Regional. in Silvio Maranhão, organizador. A
Questão Nordeste: estudos sobre formação histórica, desenvolvimento e processos políticos e ideológicos. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 26. 237
Iná Elias de Castro. Natureza, imaginário e a reinvenção do Nordeste. in Zeny Rosendahl e Roberto Lobato
Corrêa, organizadores. Paisagem, imaginário e espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001, p. 105.
84
simbólica: “o signo da natureza foi suplantado e obscurecido pelo signo da tragédia,
adquirindo um forte conteúdo social e político” 238
.
A incorporação da seca ao universo da política, no Brasil, estabelece, assim, a
convergência e a imbricação de três momentos centrais: (1) representação do espaço; (2)
representação social; e, por fim, (3) as práticas político-interventivas. Tal tríade se configura
dialeticamente mediante uma relação em que os seus termos são interdependentes, o que
exige, numa perspectiva analítica, a consideração das múltiplas determinações que os
mobilizam. Neste sentido, as relações de classe que, na realidade analisada, resultam na
afirmação de uma posição subordinada do campesinato, frente às oligarquias agrário-
regionais, estão associadas a expressões subjetivas sobre o espaço – o que se evidencia, no
caso em foco, na construção da ideia negativa de sertão e de Nordeste – como estratégia para
naturalizar tal subordinação e o domínio político exercido. Ao mesmo tempo, como
conseqüência da projeção dessa representação espacial negativa, na qual o sertão carrega o
peso da barbárie e da miséria, se alicerçam ações políticas de intervenção no espaço
considerado, constituindo-se o regionalismo enquanto estratégia legitimadora desse processo.
A identificação dessa tríade cumpre, para nós, um papel elucidativo dos processos
sociais em análise no nosso trabalho. Considerando o nosso propósito de compreender
algumas ações políticas de resistência camponesa, na porção semiárida do território brasileiro,
entendemos como relevante, senão fundamental, equacionar a realidade estudada mediante os
referidos momentos triádicos. A consideração das múltiplas relações entre os distintos
momentos da tríade revela, analiticamente, o espaço enquanto momento relevante do
conflituoso jogo que constitui a relação política do campesinato com classes sociais
antagônicas no semiárido. Neste sentido, o espaço aparece não apenas como elemento
objetivo de disputa (pela dimensão do monopólio da propriedade privada da terra e as
variadas determinações políticas dele decorrentes), passando a ser mobilizado, também
subjetivamente, como ideologia geográfica que institui uma posição subordinada do
campesinato, sendo operacional para conformar e naturalizar uma lógica de dominação
política de classe.
238
Ibidem, p. 119.
86
Todo paisaje de la Tierra está hecho a la medida del hombre,
puesto que el hombre habrá de servir siempre de módulo en
todo lo que concierne a la Tierra. Lo que debe saberse es
para qué hombres está hecho el paisaje, para qué ojos, para
qué sueños, para que empeños.
“Visión de América”, Alejo Carpentier.
Cuando vayas a los campos,
no te apartes del camino,
que puedes pisar el sueño
de los abuelos dormidos.
“Campesinos”, Atahualpa Yupanqui.
87
Argumentamos, até aqui, que o entendimento de importantes dimensões dos processos
sociais analisados em nosso trabalho – em particular, os antagonismos entre as ações de
combate à seca e aquelas de convivência com o semiárido – passa pela compreensão da
relação, dialeticamente configurada, entre os termos da tríade (1) representação do espaço;
(2) representação social; e (3) as práticas político-interventivas. Vimos, assim, que as ações
público-estatais dirigidas ao semiárido, tendo como enfoque as obras de combate à seca, são
referendadas e amparadas por um discurso regionalista - qualificado, nesta tese, enquanto uma
ideologia geográfica. Vimos que sua dimensão ideológica reside, concretamente, na
legitimação fomentada à posição mediadora das elites agrário-regionais, que, através da
obtenção e mobilização de recursos públicos, em nome da região-problema, se assumem
portadoras das “soluções hídricas” levadas à porção semiárida do território brasileiro.
Por meio de tal visão, os camponeses sertanejos são qualificados como vítimas do
ambiente em que vivem, consolidando-se a interpretação da miséria enquanto um efeito das
secas e, portanto, da natureza. Constituindo-se esse regionalismo uma ideologia geográfica,
dele resulta uma representação social que, no caso em questão, esvazia a agência do
campesinato, isto é, a sua capacidade de construir soluções aos problemas e adversidades por
que passa. Deste modo, em tal visão, nas situações-limite das ocorrências das secas, aos
camponeses resta nada mais do que uma posição subalterna de recebedores das assistências
trazidas pelos representantes oficiais da “região-problema”, as elites agrário-regionais. Por
esta razão, neste viés, os vínculos do campesinato com a política são, significativamente,
negativos, marcados pela presença do clientelismo paternalista (em que as “assistências” são,
com freqüência, associadas ao favor), obscurecendo os antagonismos de classe e
naturalizando os termos da dominação a eles subjacentes.
A visão negativa no que se refere à relação entre o campesinato e a política – como
aquela resultante dos processos sociais acima apontados – encontra, ademais, amplo
embasamento ou ressonância em posições consagradas no âmbito acadêmico, estando
presente também nas orientações teóricas e na prática política de organizações, movimentos e
partidos de esquerda. No presente capítulo, aprofundaremos alguns dos pressupostos de tais
posições, identificando manifestações histórico-concretas na realidade brasileira. Para a
defesa deste percurso analítico, partimos da tese do sociólogo José de Souza Martins, que
88
considera a existência, na história nacional, de um descompasso entre a concreta ação do
campesinato enquanto sujeito político e seu enquadramento teórico, assumindo-se, com efeito,
que a possibilidade da presença camponesa na política foi subestimada ou ignorada, tanto na
academia, quanto na prática das organizações e partidos políticos239
.
A discussão proposta será organizada em duas partes. Na primeira delas, seguiremos
um breve excurso teórico sobre a relação entre campesinato e a política, particularmente no
campo do pensamento marxista. Através desta reflexão, esperamos identificar os principais
pontos de tensão relativos ao tema, mapeando, assim, diversos posicionamentos sobre o lugar
social dos camponeses sob o capitalismo. O nosso foco sobre o pensamento marxista justifica-
se pela forte continuidade das polêmicas e divergências teóricas no campo político, isto é, no
universo da prática das organizações e partidos atuantes na realidade brasileira. Neste sentido,
a identificação, na teoria, dos pressupostos e argumentos assumidos, nas diferentes
interpretações, constitui-se um momento relevante para a apreensão da própria ação concreta
do campesinato, bem como das organizações e movimentos a ele relacionados.
Na segunda parte do capítulo, tendo traçado este percurso teórico, nos dedicaremos à
reflexão sobre a emergência de algumas expressões de luta e resistência política do
campesinato, na realidade brasileira, num contexto de amplas e significativas transformações
– seja na esfera econômica, seja no âmbito das organizações e agências de mediação política
(Igreja, partidos de esquerda, sindicatos, etc.). Esta reflexão nos permitirá identificar algumas
matrizes políticas do que, posteriormente, se constituirá como alicerce organizativo para as
ações de convivência com o semiárido, tema central desta tese.
2.1. Marxismo, campesinato e classe social: um percurso teórico
Uma polêmica de inegável alcance, dentro do marxismo, é aquela relativa às classes
sociais. Isto se deve, em grande medida, ao fato de que inexiste, na vasta e seminal obra de
Karl Marx, uma sistemática e acabada “teoria das classes sociais”. As poucas páginas escritas,
no capítulo de O Capital, livro terceiro, intitulado “classes sociais”, evidenciam este fato240
.
Entretanto, tendo como interesse o entendimento de processos sociais e econômicos, em
especial nas sociedades capitalistas, Marx utilizou inúmeras vezes, em seus trabalhos, os
239
Cf. José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no
processo político. 3a ed. Petrópolis: Vozes; 1981. 240
Cf. Karl Marx. O capital: crítica da economia política (livro III, v. 3, t.2). São Paulo: Nova Cultural, 1986, p.
317-318.
89
conceitos ou os termos “classe social” e “luta de classes”, remetendo a compreensões nem
sempre claramente similares e correspondentes. Isto resultou numa diversidade de
posicionamentos e formulações posteriores sobre o tema, por parte dos marxistas, tendo como
base esses trechos e fragmentos. Também a questão do campesinato, nas obras do filósofo
alemão, suscitou interpretações controversas, alimentando importantes debates e polêmicas
ainda hoje existentes.
Tendo como propósito evidenciar as nuances constitutivas das concepções de classe
presentes na obra de Marx, o historiador Oswaldo Coggiola considera importante, em
primeiro lugar, compreender o problema “como um aspecto de uma concepção de conjunto
materialista e dialética”. Materialista, “pois a base objetiva da existência das diversas classes é
a sua relação com os meios de produção numa determinada fase histórica do desenvolvimento
das forças produtivas sociais”; dialética, “pois só é possível considerar objetivamente as
classes sociais no seu devir histórico, determinado pelo seu antagonismo irreconciliável com
outras classes” 241
. Deste modo, para o autor, “A dialética da objetividade e da subjetividade,
sobre a base das suas condições materiais de existência, é o elemento central da história das
classes sociais” 242
.
Nas análises marxistas243
, de diversos modos, a objetividade e a subjetividade –
enquanto momentos definidores do lugar social das classes, no capitalismo – tiveram pesos
distintos, nem sempre respondendo a uma perspectiva dialética. A negligência em relação à
dimensão subjetiva – ao “momento da política” – alimenta, por vezes, compreensões segundo
as quais a classe é explicada, basicamente, pela posição ocupada pelos sujeitos na estrutura
das relações sociais de produção. Levada ao limite, esta perspectiva resultou em abordagens
estáticas dos processos sociais, encontrando sua forma mais elaborada no estruturalismo e no
marxismo de matiz positivista244
.
O historiador marxista Edward Palmer Thompson, profundo crítico a essa corrente,
ressalta seu caráter determinista e estático. Tal entendimento, afirma o autor, deriva de uma
tentação generalizada em se supor que a classe é uma coisa. Neste sentido, a classe “é tomada
como tendo uma existência real, capaz de ser definida quase matematicamente – uma
241
Oswaldo Coggiola. Marxismo e classe operária na atualidade. Revista do Centro de Estudos do Terceiro
Mundo, 1994, p. 143. 242
Idem. 243
O termo “marxista” será utilizado, aqui, não como menção a Karl Marx, mas aos autores que se embasaram
em suas teorias e abordagens. Para referências específicas ao próprio Marx e sua teoria, utilizaremos o termo
“marxiano”. 244
Para uma análise crítica à presença do positivismo no marxismo, cf. Michael Löwy. As aventuras de Karl
Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 8a ed. São
Paulo: Cortez, 2003.
90
quantidade de homens que se encontra numa certa proporção com os meios de produção” 245
.
Desta perspectiva deriva o entendimento de que da classe adviria um comportamento político
esperado, uma consciência correspondente à sua posição objetiva, manifestando seus
interesses reais – manifestação esta que nem sempre ocorre. Neste caso, a não
correspondência entre a posição determinada dos trabalhadores nas relações sociais de
produção e sua expressão consciente, no comportamento político dos homens e mulheres
reais, é definida como um problema de “falsa-consciência”, equacionando-se, assim, os
processos sociais não como eles realmente são, mas como eles deveriam ser246
. Analisando o
problema da “falsa consciência”, o autor argumenta:
En una de sus formas (generalmente leninista), bastante extendida, esto
proporciona una fácil justificación para la política de “sustitución”: es decir,
la “vanguardia” que sabe mejor que la clase misma cuáles deben ser los
verdaderos intereses (y consciencia) de ésta. Si ocurriera que “ésta” no
tuviera conciencia alguna, sea lo que fuere lo que tenga, es una “falsa
consciencia”.
Em contraposição a tal entendimento estático dos processos sociais, Thompson propõe
um enquadramento histórico do problema da classe, enfocando no papel da subjetividade
enquanto relevante referência analítica para sua definição e compreensão de suas expressões
políticas. Aqui, mais do que um lugar específico nas relações sociais de produção, interessa
saber como os sujeitos sociais agem diante de sua posição na realidade em que vivem. Em
outras palavras, cabe apreender e elucidar os antagonismos, os conflitos, bem como os valores
e tradições que definem a consciência de classe, sendo a própria dinâmica da luta de classes a
referência para sua definição.
Para o autor, as pessoas se encontram, na realidade, em uma sociedade estruturada de
modos determinados (crucialmente, mas não exclusivamente, em relações de produção),
experimentam a exploração, identificam pontos de interesses antagônicos, começam a lutar
por estas questões e, no próprio processo de luta, descobrem-se como classe, conhecendo tal
descoberta enquanto consciência de classe. Por esta razão, a classe e a consciência de classe
245
Edward Palmer Thompson. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2004, p. 10. 246
Para uma crítica à noção de falsa consciência, cf. Edward Palmer Thompson. Algumas observações sobre
classe e “falsa consciência”. in Thompson, Edward Palmer. A peculiaridade dos ingleses e outros artigos.
Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2001.
91
são sempre as últimas e não as primeiras fases do processo real histórico247
. Em outra obra, o
autor delimita:
As formações de classe [...] surgem no cruzamento da determinação e da
auto-atividade: a classe operária “se fez a si mesma tanto quanto foi feita”.
Não podemos colocar “classe” aqui e “consciência de classe” ali, como duas
entidades separadas uma vindo depois da outra, já que ambas devem ser
consideradas conjuntamente – a experiência da determinação e o
“tratamento” desta de maneiras conscientes. Nem podemos deduzir a classe
de uma “seção” estática (já que é um vir-a-ser no tempo), nem como uma
função de um modo de produção, já que as formações de classe e a
consciência de classe (embora sujeitas a determinadas pressões) se
desenvolvem num processo inacabado de relação – de luta com outras
classes – no tempo248
.
A crítica thompsoniana à perspectiva estática sobre as classes sociais não resulta,
parece-nos claro, em um subjetivismo – isto é, uma compreensão que abdica da relevância
ontológica do econômico como momento do processo de luta e de formação de classes. O
autor, reivindicando a dialética objetividade-subjetividade, a que temos feito referência, em
entrevista publicada em sua obra Tradición, revuelta y consciencia de clase, chega a afirmar:
“yo no soy de ningún modo un crítico total del marxismo estrutural. Ningún marxista puede
no ser estructuralista, en cierto sentido” 249
. Seu posicionamento situa-se numa compreensão
segundo a qual a relação entre o momento estrutural e o superestrutural deve ser equacionada
dialeticamente, apreendendo-se a luta de classes como referencial analítico fundante de sua
própria definição, isto é, como expressão política de uma experiência concreta de
exploração250
.
Entretanto, outra fonte teórica de críticas ao estruturalismo – o pós-modernismo – não
seguirá o mesmo caminho. A abdicação da dimensão estrutural, objetiva, pode ser encontrada
em vertentes pós-modernas que, em nome de uma negação ao estruturalismo-marxista – ao
qual, mesmo autores marxistas, como o próprio Thompson, dedicaram duras e incisivas
247
Edward Palmer Thompson. La sociedad inglesa Del siglo XVIII: ¿lucha de clases sin clases? in Edward
Palmer Thompson. Tradición, Revuelta y consciencia de clase: estudios sobre La crisis de la sociedad
preindustrial. 2a ed. Barcelona: Editorial Crítica, 1984, p. 37. 248
Edward Palmer Thompson. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de
Althusser. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1981, p. 121, grifos do autor. 249
Edward Palmer Thompson. Una entrevista. in Edward Palmer Thompson. Tradición, Revuelta y consciencia
de clase: estudios sobre La crisis de la sociedad preindustrial. 2a ed. Barcelona: Editorial Crítica, 1984, p. 310. 250
Sobre esta perspectiva na obra do historiador inglês, cf. Edward Palmer Thompson. Exploração. in Edward
Palmer Thompson. A formação da classe operária inglesa: a maldição de Adão. 4a ed. Rio de janeiro: Paz e
terra, 2002, p.11-38.
92
críticas251
– rejeitam a estrutura como momento relevante na análise dos processos sociais.
Neste caso, não se trata de um esforço analítico por um preciso equacionamento da relação
dialética estrutura-superestrutura, como um caminho para elucidar os processos sociais
analisados. Trata-se, isto sim, de abdicar dos termos de tal relação, por sua suposta
irrelevância na atualidade – tanto no plano ontológico, quanto epistemológico. A obra de
Marx e seu método materialista histórico-dialético, neste sentido, são entendidos como
obsoletos para a compreensão do mundo “pós-moderno”, na medida em que a solidez e a
radicalidade do capitalismo teriam ganhado ímpeto para “desfazer o marxismo no ar” 252
.
Para Sousa Santos, um dos autores que evocam tal perspectiva, a década de 1980
inaugura o cenário para a emergência de um pós-marxismo, parte de um movimento teórico
anti-reducionista, anti-determinista e processualista. Nas palavras do autor, com efeito, “a
atribuição da primazia explicativa dos fatores econômicos (a economia, as classes sociais), o
chamado reducionismo economicista, é fortemente criticada”, seja porque se considera o
determinismo em geral insustentável, seja porque se considera errada a versão marxista do
determinismo253
.
A associação imediata, estabelecida pelo autor, entre a chamada “primazia econômica”
e “determinismo” resulta de uma interpretação segundo a qual a consideração do primado
ontológico da estrutura implica, necessariamente, a negação do momento superestrutural. Um
anti-determinismo dessa natureza só pode ser levado adiante, neste sentido, através da
rejeição completa do papel da estrutura e da redefinição do plano analítico, abdicando-se dos
problemas teóricos e do temário nele contidos (classe social, exploração econômica,
consciência, ideologia, etc.), substituindo-os por questões situadas mais precisamente no
campo da subjetividade (identidade, discurso, imagem, etc.), remetendo, em grande medida, à
escala do indivíduo ou, no máximo, a identidades grupais motivadas por vinculações de
ordem cultural, incluindo-se, aqui, as estéticas254
.
251
Cabe ressaltar que o historiador inglês dedicou uma obra inteira a tal empreendimento: Cf. Edward Palmer
Thompson. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1981. 252
Boaventura de Sousa Santos. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 4 ed. São Paulo:
Cortez, 1995, p. 29. 253
Ibidem, p. 31. 254
Nas palavras de Michel Mafessoli, por exemplo, “[...] o que melhor poderia caracterizar a pós-modernidade
era o vínculo que estava sendo estabelecido entre a ética e a estética. O que pretendia dizer com isso é que eu via
o novo vínculo social (ethos) surgindo a partir da emoção compartilhada ou do sentimento coletivo. Portanto, em
vez de ver aí uma frivolidade qualquer à disposição de alguns, vanguarda, boêmia artística, talvez estivéssemos
mais inspirados se descobríssemos nessa coletivização dos sentimentos um dos fatores essenciais da vida social
que está em vias de (re)nascer nas sociedades contemporâneas”. Cf. Michel Maffesoli. O tempo das tribos: o
declínio do individualismo nas sociedades de massa. 3a ed. Rio de Janeiro: Forense Universitára, 2002, p, I.
Cabe mencionar que, para perspectiva qualificada por Sousa Santos como “pós-marxista”, estaríamos, na
93
Cabe identificar um aspecto, a nosso ver, questionável da abordagem de Sousa Santos
sobre o problema em foco. Trata-se da opção assumida pelo autor de enquadrar como
estruturalista, reducionista, etc. toda uma tradição de pensamento que tem, no seu interior,
pensadores dedicados à formulação de uma crítica teórica consistente a tais orientações, a
exemplo de E. P. Thompson (já citado), Antonio Gramsci e György Lukács. A razão disto,
como vimos, deriva da interpretação do materialismo histórico-dialético, in totum, como uma
teoria determinista da história. Citando este aspecto, em crítica ao autor português, José Paulo
Netto afirma:
[...] o que Sousa Santos não assinala concretamente é o conteúdo
antipositivista e anti-reducionista que especialmente Lukács, batendo forte
contra o marxismo vulgar da Segunda Internacional, introduz no debate; a
ausência dessa sinalização contribui para explicar por que Sousa Santos
parece ignorar que o combate aos vários reducionismos (de natureza
econômica, notadamente) surge precisamente nos anos 20, bem antes de
qualquer “pós-marxismo”; sua chave formulou-a Lukács na frase de abertura
do ensaio sobre Rosa Luxemburgo: “É o ponto de vista da totalidade e não a
predominância das causas econômicas na explicação da história o que
distingue de forma decisiva o marxismo da ciência burguesa”255
Se, como vimos, Thompson e Lukács seguem esse percurso, cabe mencionar que eles
não são os únicos. Antonio Gramsci se destaca como um profundo crítico antieconomicista,
voltando-se precisamente contra as concepções teóricas reducionistas que tratavam os homens
e mulheres reais como meros vetores da estrutura e a política como simples epifenômeno do
econômico. As críticas dedicadas nos Cadernos do Cárcere ao mecanicismo de Nicolai
Bukharin, no que se refere à questão da ideologia, demonstram, claramente, tal posição
gramsciana. O marxista sardo contrapõe-se, neste caso, à perspectiva do intelectual
bolchevique, que, em sua abordagem, estabelece uma relação mecânica entre a dimensão
propriamente técnica das forças produtivas e o desenvolvimento social. Sinteticamente, o
entendimento do autor russo é o de que a estrutura econômica determina diretamente a
realidade, diante de um novo sujeito – distinto daquele moderno, contemplado nas teorias inspiradas em Marx. O
fim do século XX nos apresenta um sujeito “descentrado”, “multifacetado”, “fragmentado”, “plural”. Nas
palavras de Stuart Hall, isto se deve às próprias transformações externas ao sujeito: “[...] as identidades, que
compunham as paisagens sociais „lá fora‟ e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as
„necessidades‟ objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e
institucionais”. Cf. Stuart Hall. A identidade cultural na pós-modernidade. 11a ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006,
p. 12. Na pós-modernidade, portanto, as pessoas não identificam mais seus interesses sociais exclusivamente em
termos de classe: “a classe não pode servir como um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora
através da qual todas as variadas identidades das pessoas possam ser reconciliadas e representadas”. Ibidem, p.
20-21. 255
José Paulo Netto. De como não ler Marx ou o Marx de Sousa Santos. in José Paulo Netto. Marxismo
impenitente: contribuição à história das ideias marxistas. São Paulo: Cortez, 2004, p. 229, grifo do autor.
94
estrutura político-social. Em oposição a tal perspectiva, Gramsci rejeita qualquer concepção
fenomenologista da ideologia, que a enquadraria como mero “aparecer” da estrutura, a
entendendo em sua realidade, concebida de modo não-mecânico em relação à esfera
econômica256
.
Michel Lowy, ainda sobre Gramsci, argumenta que, na sua tentativa de reconstrução
do marxismo e do comunismo, o autor dos Cadernos submete a uma crítica radical a doutrina
predominante na Terceira internacional, que tem como uma das manifestações justamente o
livro de Nikolai Bukharin dedicado ao materialismo histórico257
. Löwy observa que a crítica
de Gramsci incide sobre o caráter positivista da obra, inspirado num conceito de ciência
advindo das ciências naturais258
. Como resultado, a compreensão de Bukharin da história não
é dialética, estando aprisionada a uma visão meramente evolucionista e, portanto,
reducionista259
.
Como argumentamos na introdução desta tese, a filosofia da práxis gramsciana não
admite qualquer possibilidade de leitura mecanicista da relação entre estrutura e
superestrutura, enfatizando, isto sim, a passagem das determinações objetivas à subjetividade
criadora, ao momento originário de “novas iniciativas”. Articulando necessidade e liberdade,
causalidade e teleologia – portanto, sem negar a importância ontológica do momento da
objetividade – Gramsci “indica seu ineliminável vínculo com a iniciativa do(s) sujeito(s) e,
portanto, com a liberdade” 260
, escapando, pois, de tentações deterministas e reducionistas que
alcançou parte das fileiras marxistas.
É, por um lado, sobre este solo crítico ao estruturalismo (segundo o qual as classes são
equacionadas enquanto meras determinações mecânicas e estáticas das estruturas) e, por
outro, ao pós-modernismo (para quem a análise das identidades políticas fundadas na
256
Para uma análise sobre o conceito de ideologia, em Gramsci, frente aos embates teóricos, assumidos pelo
autor, ao idealismo e economicismo, cf. Nara Roberta. A ideologia na visão gramsciana em meio a dois
combates. Cadernos cemarx, 2009, p. 77-96. 257
Cf. Nicolai Ivanovich Bukharin. Teoria do materialismo histórico: manual popular de sociologia marxista.
São Paulo: Caramuru, 1933. 258
Uma discussão específica das críticas de Gramsci e Lukács dirigidas à Bukharin pode ser encontrada em
Álvaro Bianchi. Lukács, Gramsci e a crítica ao “Ensaio Popular” de Bukharin. Debates Contemporâneos. 2005,
p. 182-186. 259
Cf. Michel Löwy. O pensamento heterodoxo. Folha de São Paulo. 21 de novembro de 1999. Este autor
lembra ainda do fato de que a crítica empreendida por Gramsci era compartilhada por Lukács e Karl Korsch.
Segundo o autor, “Gramsci praticamente não conhecia os trabalhos de Lukács; e este último só descobriu o
marxista italiano a partir dos anos 60. Mas, numa entrevista de julho de 1971 – pouco antes de sua morte – para a
revista inglesa „New Left Review‟, o filósofo húngaro reconhece que ele, Karl Korsch e Antonio Gramsci
haviam tentado lutar, cada um à sua maneira, contra o positivismo e o mecanicismo que o movimento comunista
havia herdado da Segunda Internacional. Lukács acrescenta o seguinte comentário retrospectivo: „Gramsci era o
melhor entre nós‟”. 260
Carlos Nelson Coutinho. De Rousseau a Gramsci: ensaios de teoria política. São Paulo: Boitempo, 2011, p.
122.
95
experiência comum de exploração, subordinação econômica, etc. se constitui um esforço
teórico anacrônico, em tempos de sujeito “descentrado”) que discutiremos, de agora em
diante, a questão do campesinato como classe, numa perspectiva marxista.
Tendo em vista esse horizonte, cabe, em princípio, mencionar o capítulo de O Capital,
na seção sétima do Livro III, intitulado “classes sociais”. Neste breve esboço, de pouco mais
de uma página, sobre o problema das classes sociais, Marx elabora uma classificação que, a
nosso ver, pode ser o ponto de partida para problematizar sinteticamente o lugar social do
campesinato enquanto classe em sua obra. No fragmento em questão, enfocando a classe em
si, seu caráter fundamentalmente objetivo, Marx delimita as “três grandes classes” do
capitalismo:
Os proprietários de mera força de trabalho, os proprietários de capital e os
proprietários da terra, cujas respectivas fontes de rendimento são o salário, o
lucro e a renda fundiária, portanto, assalariados, capitalistas e proprietários
de terra, constituem as três grandes classes da sociedade moderna, que se
baseia no modo de produção capitalista261
.
Se situássemos o campesinato em tal classificação, não teríamos uma conformidade
precisa em quaisquer das três “grandes classes”. Apesar de trabalhadores, os camponeses não
recebem salário e não são desprovidos dos meios de produção, na medida em que detêm a
posse/propriedade da terra. Ainda que detenham seus meios de produção (terra, instrumentos
de trabalho, etc.) – o que lhes confere uma autonomia relativa frente às classes com as quais
se relacionam na esfera econômica –, os camponeses não se constituem parte da burguesia, na
medida em que não exploram o trabalho alheio, não extraem mais-valia. Restaria, neste caso,
posicionar os camponeses enquanto integrantes da classe dos proprietários de terras – opção
que, a nosso ver, também é carregada de problemas.
Parece-nos pertinente considerar que o enquadramento analítico das “três grandes
classes” define-se, nesta obra, como um momento da análise do processo global da produção
capitalista, respondendo, pois, ao específico nível de análise que confere inteligibilidade aos
problemas nele contidos. Sendo, por outro lado, o nosso enfoque analítico a relação entre o
campesinato e a política, numa perspectiva materialista-dialética, trata-se, esta, de uma
classificação pouco elucidativa. Isto porque a classe dos proprietários de terra incluiria,
necessariamente, grandes latifundiários com os quais, historicamente, os camponeses
estabelecem uma relação de subordinação econômica e de antagonismo no campo político,
261
Karl Marx.op. cit., p. 317.
96
obscurecendo-se, assim, em nome de critérios classificatórios “objetivos”, os limites que
definem os conflitos expressos no campo da superestrutura. Por esta razão, uma operação
analítica de classificação baseada, unicamente, “no rendimento e suas fontes” posicionaria o
campesinato como uma categoria social necessariamente deslocada ou, na melhor das
hipóteses, de identificação imprecisa.
Com efeito, para uma análise do “problema camponês”, numa orientação materialista-
dialética, consideramos que o campesinato se apresenta como classe, precisamente, no
cruzamento entre a determinação (objetiva) e a auto-atividade (subjetiva), isto é, na passagem
da necessidade para a liberdade, do econômico para o “momento ético-político”.
Reconhecendo a relação objetividade-subjetividade, como fundamento do
materialismo histórico-dialético, é possível encontrar, na obra do filósofo alemão, uma ênfase
variável entre ambos os pares, em distintas obras. Esta é a base, a nosso ver, para a existência
de sensíveis diferenças, em diferentes obras, na interpretação de Marx sobre os camponeses e
sua relação com a política.
No Manifesto Comunista, publicado em 1848, por exemplo, Marx menciona o
campesinato, qualificando-o como parte integrante potencial do proletariado262
, assumindo a
posição segundo a qual a sociedade capitalista “divide-se cada vez mais em dois campos
opostos, em duas grandes classes em confronto direto: a burguesia e o proletariado” 263
. A
relação com os meios de produção (sua posse ou não) demarca, aqui, o sentido predominante
de classe empregado, isto é, serve de referente fundamental para qualificar os sujeitos sociais,
seu papel na sociedade e seu lugar na história.
É, contudo, no 18 brumário, de 1852, que encontraremos, talvez, a referência mais
pertinente para uma reflexão materialista-dialética sobre o campesinato enquanto classe e sua
relação com a política. Neste trabalho, observa-se uma concepção mais enfocada no
“momento político”, isto é, no conflito enquanto referente definidor de classe – enquanto
movimento que ressalta seus traços constitutivos. Definindo-se como um dos principais
trabalhos históricos do filósofo alemão, o 18 brumário expressa o esforço analítico de Marx
pela compreensão da luta de classes em seu movimento e sua dinâmica. Mais precisamente,
262
“As camadas inferiores da classe média de outrora, os pequenos industriais, pequenos comerciantes os que
vivem de rendas [rentiers], artesãos e camponeses, caem nas fileiras do proletariado (...)”. Cf. Karl Marx e
Friedrich Engels. Manifesto comunista. Alvaro Pina, tradutor. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 47, grifo nosso. 263
Ibidem, p. 41. Em nota para a edição inglesa do Manifesto, de 1888, afirma: “Por burguesia entende-se a
classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social que empregam trabalho assalariado.
Por proletariado, a classe dos trabalhadores assalariados modernos, que, não tendo meios de produção próprios,
são obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver”. Cf. ibidem, p. 40, nota 1.
97
trata-se de uma análise do modo pelo qual a luta de classes na França criou circunstâncias e
condições para que Luís Bonaparte assumisse o poder em dezembro de 1851.
O historiador Lincoln Secco observa que, nesta obra, Marx pretende fazer uma história
das lutas de classes e suas representações, enfocando um evento histórico específico,
dedicando-se, por isto, à definição das classes que compõem o jogo da política: burguesia
financeira, burguesia industrial, campesinato, pequena burguesia, proletariado e
lumpemproletariado264
. O filósofo alemão enfatiza que Bonaparte encontrou o apoio
inesperado da “massa da nação: os camponeses e a pequena burguesia que se precipitaram de
golpe sobre a cena política” 265
. Bonaparte representou, pois, uma classe: “e justamente a
classe mais numerosa da sociedade francesa, os pequenos camponeses” 266
.
As incisivas e duras críticas, feitas por Marx, ao campesinato francês da segunda
metade do século XIX, são conhecidas. Para o autor, os camponeses eram, na realidade,
“incapazes de fazer valer seus interesses de classe em seu próprio nome, quer através de um
Parlamento, quer através de uma Convenção. Não podem representar-se, têm que ser
representados” 267
. O autor destaca que cada família camponesa é “quase auto-suficiente; ela
própria produz inteiramente a maior parte do que consome, adquirindo assim os meios de
subsistência mais através de trocas com a natureza do que do intercâmbio com a sociedade”
268. Encontram-se, pois, sob forte condição de isolamento: “Uma pequena propriedade, um
camponês e sua família; ao lado deles outra pequena propriedade, outro camponês e outra
família” 269
. Em outras palavras, “A grande massa da nação francesa é, assim, formada pela
simples adição de grandezas homólogas, da mesma maneira que batatas em um saco
constituem um saco de batatas” 270
.
Ao mesmo tempo, de maneira distinta ao Manifesto – no qual não há menção à
possibilidade de atuação política do campesinato e, ademais, não se encontra qualquer
referência aos camponeses como classe social –, no 18 brumário Marx considera a
possibilidade de atuação política dos camponeses. Nesta famosa passagem, o autor afirma:
Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições
econômicas que as separam umas das outras, e opõem o seu modo de vida, os
264
Lincoln Secco. O teatro da política (O 18 brumário de Luis Bonaparte). Revista Marxista – núcleo de estudos
d‟O Capital. 2013, p. 12-27. 265
Karl Marx. O 18 brumário de Luis Bonaparte e Cartas a Kugelmann. 6a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1997, p. 29. 266
Ibidem, p. 126. 267
Ibidem, p. 128. 268
Idem. 269
Idem. 270
Idem.
98
seus interesses e sua cultura aos das outras classes da sociedade, estes milhões
constituem uma classe. Mas na medida em que existe entre os pequenos
camponeses apenas uma ligação local e em que a similitude de seus interesses
não cria entre eles comunidade alguma, ligação nacional alguma, nem
organização política, nessa exata medida não constituem uma classe271
.
Ao eleger, aqui, como critério definidor de classe social a ação política fundamentada
na oposição ancorada no modo de vida, interesse e cultura, Marx reconhece a relevância da
subjetividade como referência para a definição da classe, atribuindo-lhe, em certo sentido, um
caráter histórico-político. Contudo, disto não resulta um entendimento subjetivista do
processo social investigado – uma rejeição da estrutura272
. As “condições econômicas” e o
“modo de vida” 273
, citados por Marx, remetem, claramente, ao momento estrutural – sendo
este, contudo, colocado em movimento na consciência dos homens e mulheres reais, mediante
suas próprias ações, configurando uma “comunidade”, estabelecendo uma “ligação nacional”
que os opõem a outras classes.
As breves referências que fizemos, até aqui, a algumas das obras de Marx – onde
consta a questão das classes e/ou o “problema camponês” – são suficientes para sustentar
nosso argumento segundo o qual não há na teoria marxiana um lugar rígido e definitivo para
os camponeses. Somando-se a isso, podemos considerar ainda outro elemento de ordem
histórica. Trata-se do intrigante contato tardio do filósofo alemão com a realidade agrária
russa pré-revolucionária, contato este que, sem dúvida, o levou a uma profunda reflexão sobre
271
Idem. 272
Evocando uma leitura dialético-materialista do 18 brumário, o sociólogo Adriano Codato chama a atenção
para a emergência de interpretações subjetivistas – e, inclusive, pós-modernas – desta obra, tendo como
pressuposta a ideia de que o filósofo alemão teria suprimido qualquer menção à “economia”, dotando a dimensão
política de total autonomia diante da estrutura. Este é o caso, citado pelo autor, de teóricos como Terrel Carver,
que estabeleceu uma análise da obra partindo da relação entre o estilo do texto e a visão política de Marx, e
James Martin, que enfocou na defesa de que Marx, no 18 brumário, trata a política como ação performativa,
como uma disputa sobre significados, e não apenas um duelo em torno de interesses materiais. Cf. Adriano
Nervo Codato. O 18 brumário, política e pós-modernismo. Lua Nova: revista de cultura e política. 2004, p. 85-
116. Para uma leitura dos argumentos de tais autores, citados por Codato, cf. Terrell Carver. Imagery/Writing,
imagination/politics: reading Marx through the eighteenh brumaire. in James Martin & Mark Cowling, editors.
Marx‟s Eighteenth Brumaire: (post)modern interpretation. London: Pluto Press, 2002; James Martin. Performing
politics: class, ideology and discourse in Marx‟s Eighteenth Brumaire. in James Martin & Mark Cowling,
editors. Marx‟s Eighteenth Brumaire: (post)modern interpretation. London: Pluto Press, 2002. 273
Cabe, aqui, ressaltar que o conceito de “modo de vida”, em Marx, está fortemente associado à atividade
produtiva, material. Na Ideologia Alemã, em passagem já citada nesta tese, os autores afirmam: “O modo pelo
qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da própria constituição dos meios de vida
já encontrados e que eles têm de reproduzir. Esse modo de produção não deve ser considerado meramente sob o
aspecto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é, muito mais, uma forma determinada de
exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses indivíduos. Tal como os indivíduos exteriorizam sua
vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem como também
com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua
produção”. Cf. Karl Marx e Friedrich Engels. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus
representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846).
São Paulo: Boitempo, 2007, p. 87, grifo dos autores.
99
as bases ocidentais de suas teorias e sobre o lugar político do campesinato no processo de
construção do socialismo.
As correspondências trocadas com uma militante russa, em 1881, expuseram questões
relevantes para a reflexão deste autor sobre o “destino do campesinato” no processo
revolucionário. Tendo como referência analítica fundamental os países centrais –
particularmente a Inglaterra –, fortemente industrializados e com um alto contingente de
proletários urbanos, Marx identificava nas cidades o lócus revolucionário por excelência. A
liberação dos camponeses da propriedade fundiária e sua consequente proletarização (a
“queda” nas fileiras do proletariado274
) definiam-se, para o autor, como momentos necessários
para processos de organização política e atuação coletiva dos trabalhadores frente à burguesia
industrial. A luta de classes, assim entendida, expressava a “missão histórica” do proletariado
no movimento de emancipação de toda a sociedade.
A Rússia, contudo, apresentava um cenário bastante distinto da realidade inglesa,
tendo uma população agrária bastante significativa e alocada em comunas rurais, os Mir, com
processos organizativos descentralizados, o que levou militantes socialistas a depositarem em
tais comunas a crença na possibilidade de uma transição direta para o socialismo – isto é, sem
a passagem pelo processo de industrialização que caracterizou os países centrais estudados
por Marx275
. Esta foi a questão central que motivou a carta escrita por Vera Sassoulitch,
dirigida ao filósofo alemão, em fevereiro de 1881: se, em O capital, Marx “dera a entender
que a Rússia agrária teria que atravessar todas as etapas da exploração industrial capitalista
para que pudesse vir a ter esperanças de uma revolução” 276
. Na prática, tratava-se, por parte
de Vera Sassoulitch, de descobrir se na concepção de Marx a desintegração da comuna russa
era ou não um requisito para o avanço do processo revolucionário naquele país, isto é, se o
desenvolvimento das forças produtivas e a consequente desestruturação do Mir era uma etapa
necessária sob o ponto de vista revolucionário na Rússia277
. Os diversos rascunhos que
274
Karl Marx e Friedrich Engels. Manifesto comunista. Alvaro Pina, tradutor. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 47. 275
O Dicionário do Pensamento Marxista apresenta a comuna russa ou Mir como “uma antiga comunidade de
camponeses russos na qual a terra era de propriedade inalienável da obshchina, ou comuna, e periodicamente
redistribuída em lotes às famílias pertencentes à comuna, em geral de acordo com o número de adultos do sexo
masculino existente em cada família”. Havia, naquele contexto, uma importante concepção segundo a qual a
comuna poderia ser a instituição embrionária de uma sociedade igualitária descentralizada, defendida
inicialmente por Alexander Herzen e, posteriormente, por teóricos articulados na famosa corrente de pensamento
que ficou conhecida como Populismo Revolucionário. Cf. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editores; 1988. Comuna Russa; p. 71. 276
Edmundo Wilson. Rumo à estação Finlândia: escritores e atores da história. São Paulo: Companhia das
Letras, 1986, p. 328. 277
Nas palavras de Malagodi, “A resposta a esta questão implicava uma decisão prática imediata, e esta era uma
questão crucial para aquele momento: saber se havia uma estratégia de transformação social a partir do próprio
campesinato, ou se a aposta de transformação social deveria toda ela estar concentrada a perspectiva do
100
restaram278
indicam a dificuldade que Marx teve para responder essa questão: “o próprio
Marx não tinha muita certeza a respeito dos rumos históricos de sociedades em que
prevaleciam ainda populações camponesas, como era o caso da Rússia de seu tempo” 279
.
Edgard Malagodi argumenta sobre essa questão que, em termos econômicos, o
campesinato russo encontrava-se ameaçado pelo avanço do capitalismo. Diante disso,
destacavam-se dois aspectos na preocupação de Sassoulitch, com conteúdos teóricos
diferentes: (1) de um lado, o desenvolvimento econômico da própria comuna camponesa russa
e sua resistência à desagregação em função dos efeitos do desenvolvimento capitalista; (2) de
outro lado, a perspectiva socialista, o desenvolvimento para o socialismo, através da
superação social e política da dominação capitalista280
. O autor afirma que estas duas questões
estão coladas, pelo próprio ponto de partida da autora, que sofrera já a influência do
pensamento de Marx, que naquela época influenciava todo o movimento de oposição na
Rússia. Duas marcas já haviam sido assentadas: o processo econômico em curso, tendente ao
capitalismo, e o futuro da sociedade, que deveria marchar inexoravelmente para o socialismo.
Deste modo,
Parecia, portanto, que a própria influência da leitura de Marx, e neste
momento é particularmente a obra maior de Marx, O Capital, cujo primeiro
tomo havia aparecido no início da década de 1870, na Rússia, estava
condicionando um tipo de resposta. Assim, a tendência do movimento
socialista russo seria aceitar a inexorabilidade do desenvolvimento
capitalista no campo, no estilo da Europa ocidental, e assumir as
conseqüências deste fato281
.
Assim, remetendo-se a duas citações d‟O Capital, Marx reafirma, respondendo Vera
Sassoulitch, que, em sua análise sobre a gênese da produção capitalista, ele aponta para a
separação radical do produtor de seus meios de produção, assumindo que a base de toda essa
evolução é a expropriação do campesinato. Por este caminho, o autor ratifica a tendencial
transformação da propriedade privada, fundada sobre o trabalho pessoal, em propriedade
capitalista, assentada na exploração do trabalho de outro, pela via do assalariamento282
.
desenvolvimento do capitalismo, da industrialização, seguida pela futura mobilização do proletariado”. Cf.
Edgard Malagodi. Marx e os camponeses russos. Raízes. 2005, p. 108. 278
Cf. Karl Marx. Rascunhos da carta à Vera Sassulitch de 1881. Edgard Malagodi e Rogério Silva Bezerra,
tradutores. Raízes. 2005, p. 110-123. 279
José de Souza Martins. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala.
São Paulo: Contexto, 2008, p. 152. 280
Edgard Malagodi. A correspondência de Marx com Vera Sassulitch. Raízes. 2003, p. 11. 281
Idem. 282
Cf. Carta de Marx à Vera Sassoulitch citada na íntegra em ibidem, p. 14.
101
Entretanto, ajustando sua teoria à realidade russa, Marx argumenta: “Neste movimento
ocidental trata-se da transformação de uma forma de propriedade privada em uma outra forma
de propriedade privada. Entre os camponeses russos teríamos, ao contrário, que transformar
sua propriedade comum em propriedade privada”283
. Deste modo, nas palavras de Marx:
A análise exposta no “Capital” não oferece, portanto, razões nem a favor,
nem contra a vitalidade da comuna rural, mas o estudo especial que dela
realizei, e cujos materiais busquei nas fontes originais, me convenceram que
esta comuna é o ponto de apoio da regeneração social na Rússia, mas que,
para que possa funcionar como tal, seria preciso eliminar primeiramente as
influências deletérias que a assaltam de todos os lados e, em seguida,
assegurar-lhe as condições normais de um desenvolvimento espontâneo284
.
Um ano mais tarde, em 1882, no prefácio da segunda edição russa do Manifesto
Comunista, traduzido pela própria Vera Sassoulitch, Marx expõe, para os leitores daquele
país, a pergunta para ele feita por Vera: poderá a comuna russa “transformar-se diretamente
na propriedade comunista? Ou, ao contrário, deveria primeiramente passar pelo mesmo
processo de dissolução que constitui a evolução histórica do Ocidente?” 285
. Assim, frente à
pergunta exposta, conclui afirmando que a única resposta a isto que é possível é esta: “se a
revolução russa constituir-se no sinal para a revolução proletária no Ocidente, de modo que
uma complemente a outra, a atual propriedade comum da terra na Rússia poderá servir de
ponto de partida para uma evolução comunista” 286
.
A digressão, aqui realizada, sobre o contato de Marx com a realidade agrária russa,
serve-nos como evidência de que, de fato, o campesinato, na teoria marxiana, não pode ser
entendido como um problema simples. Na mesma perspectiva, a referência aos distintos
modos de situar os camponeses na sociedade capitalista, em diferentes obras, demonstra que a
possibilidade de sua atuação política, sob o capitalismo, é igualmente controversa nos escritos
do autor.
É, com efeito, sobre este “solo movediço” que se desenvolverão importantes
polêmicas, nas fileiras marxistas, ao longo do final do século XIX e primeira metade do
século XX, destacando-se, entre elas, o embate entre os chamados “populistas russos”,
liderados por Alexander Chayanov e os “marxistas”, tendo Vladimir Ilitch Lênin e Karl
Kautsky como principais representantes. No centro das divergências entre as correntes estava
283
Edgard Malagodi op. cit., p. 14. 284
Idem. 285
Karl Marx e Friedrich Engels. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 73. 286
Idem.
102
o papel do campesinato na política, em particular na Rússia – país que, como vimos,
carregava fortes especificidades frente aos países ocidentais.
Lênin e Kautsky previam, como resultado do desenvolvimento capitalista na
agricultura, a natural desintegração social do campesinato sob o capitalismo. Lênin, em sua
obra O desenvolvimento do capitalismo na Rússia; e Kautsky, através de seu livro A questão
agrária, ambos publicados em 1889, compartilhavam o pressuposto segundo o qual o avanço
do capitalismo no campo se daria mediante o uso generalizado de relações especificamente
capitalistas de produção, o que geraria um processo de diferenciação interna no campesinato,
dando origem a duas classes sociais distintas: os pequenos capitalistas (camponeses
abastados), e os camponeses pobres, proletarizados. Esse processo teria, portanto, como ponto
de chegada a desintegração do campesinato através de dois caminhos: ou o camponês
transforma-se emcapitalista ou em assalariado.
Uma forte oposição às teses formuladas e defendidas por Lênin e Kautsky foi
desenvolvida por Chayanov. Este autor, membro da Escola de Organização da Produção,
trouxe uma importante contribuição ao debate teórico e político sobre o campesinato,
desvendando as especificidades de seu comportamento econômico e revelando os processos
internos de funcionamento das unidades familiares de produção na agricultura287
. Os seus
estudos sobre o campesinato acabaram por transcender, contudo, a dimensão puramente
técnico-agronômica, alcançando, por suas implicações, a esfera política. A partir de 1927,
Chayanov foi acusado pelos bolcheviques de defender a propriedade individual, sendo preso
em 1930 e, após um período de exílio na Ásia Central, voltou à prisão e foi condenado ao
fuzilamento em 1937288
.
Em seus estudos, dedicados à elucidação do funcionamento interno da unidade de
produção familiar camponesa, o autor chegou a uma importante formulação. Trata-se da
identificação de um balanço entre trabalho e consumo na unidade produtiva camponesa, isto
é, uma relação entre o esforço exigido para a realização de um trabalho e o grau de satisfação
das necessidades da família. Segundo Chayanov, à família camponesa interessa,
287
Explicitando seus propósitos, Chayanov afirmou: “Simplemente aspiramos a comprender que es la unidad
económica campesina desde un punto de vista organizativo. ¿Cuál es la morfología de este aparato productivo?
Nos interesa saber cómo se logra aquí la naturaleza proporcional de las partes, cómo se logra aquí el equilibrio
orgánico, cuáles son los mecanismos de la circulación y la recuperación del capital en el sentido de la economía
privada, cuáles son los métodos para determinar el grado de satisfacción y de provecho, y cómo reacciona frente
a las influencias de los factores externos, naturales y económicos que aceptamos como dados”. Cf. Alexander
Vasilevich Chayanov. La organización de la unidad económica campesina. Buenos Aires: Ediciones Nueva
Visión; 1974, p. 36. 288
Paulo Afonso Francisco de Carvalho. Biografia sumária de Chayanov. in Horacio Martins de Carvalho,
organizador. Chayanov e o campesinato. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2014, p. 37.
103
fundamentalmente, a busca pelo equilíbrio entre os dois elementos e, enquanto este não é
alcançado, prossegue-sea atividade econômica. Quando, por outro lado, a família “atinge este
ponto de equilíbrio, porém, não terá interesse em continuar trabalhando, já que todo dispêndio
adicional de trabalho torna-se mais difícil de suportar, pelo camponês ou artesão, do que a
renúncia dos seus efeitos econômicos” 289
. Deste modo, este ponto de equilíbrio entre a
satisfação da demanda familiar e a penosidade do trabalho familiar camponês é alcançado, de
um lado, pelas condições específicas reais de produção da unidade, sua situação de mercado, e
pela localização da unidade em relação aos mercados; e de outro, pelo tamanho e composição
da família e a premência de suas necessidades que determinam a avaliação do consumo. Deste
modo, todo acréscimo de produtividade do trabalho tem como conseqüência a obtenção da
mesma quantidade de produtos com menos trabalho290
.
Sinteticamente, o ponto central de divergência entre as teorias de Alexander Chayanov
e aquelas de Lênin e Kautsky é o fato de que o primeiro desenvolveu, como vimos, uma
análise voltada ao comportamento econômico da família camponesa, considerada, neste
sentido, como uma unidade de produção detentora de uma lógica própria, distinta daquela
capitalista. Por sua vez, os teóricos marxistas da Segunda Internacional, inspirados pelas
conclusões e pelos referenciais ocidentais d‟O Capital, não reconheciam uma “especificidade
camponesa” e tampouco consideravam sua potencialidade política, precisamente por seu
vínculo à propriedade e seu inevitável afastamento às relações de produção fabris.
Um importante avanço nos estudos sobre o campesinato ocorre, no século XX, a partir
dos trabalhos do sociólogo russo Theodor Shanin. Influenciado pela teoria chayanoviana e, ao
mesmo tempo, pelos escritos históricos de Marx, este autor contribuiu significativamente na
elucidação das especificidades e complexidades inerentes às “sociedades camponesas”, sem
perder de vista a consideração do seu comportamento político, que se mostrou bastante ativo
ao longo do século XX291
. Shanin destaca quatro características fundamentais do campesinato
que podem ser encontradas em diferentes contextos histórico-geográficos mundiais292
: o
289
Alexander Vasilevich Chayanov. Sobre a teoria dos sistemas econômicos não capitalistas. in Silva, José
Graziano da; Stolcke, Verena, organizadores. A questão agrária. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 193. 290
Ibidem, p. 138. 291
Basta mencionar a incontestável participação camponesa nas Revoluções Cubana (1959), Mexicana (1910),
Russa (1917), Chinesa (1945), Argelina (1962) e na própria Guerra do Vietnã (1955-1975). Para uma análise
específica sobre a atuação militar-camponesa em eventos insurrecionais e revolucionários, cf. Eric Wolf.
Guerras camponesas no século XX. São Paulo: Global, 1984. 292
Marta Inez Medeiros Marques evidencia que, em trabalho posterior, “Campesinos y sociedades campesinas”,
publicado em 1983, ao invés de quatro, Shanin menciona seis características fundamentais, desdobrando
algumas delas de modo a enfatizar seus vínculos e sua relação com a dinâmica e reprodução social camponesas,
bem como com a forma específica como o campesinato reage a mudanças estruturais. Cf. Marta Inez Medeiros
Marques. Agricultura e campesinato no mundo e no Brasil: um renovado desafio à reflexão teórica. in Paulino,
104
cultivo da terra; a unidade de produção familiar; a comunidade de aldeia como unidade básica
de organização social e sua posição como classe mais baixa da sociedade293
. Se a definição de
elementos específicos da estrutura social camponesa constituiu-se uma importante
contribuição teórica de Shanin, acreditamos que o seu esforço em prol do entendimento dos
traços políticos do campesinato revela-se ainda mais profícuo. Neste esforço, o autor associa a
participação ativa do campesinato na política às discussões marxistas sobre classe,
problematizando a validade das tendências teóricas que restringem suas análises à dimensão
estrutural dos processos sociais. Neste sentido, para o autor,
Si adoptamos el criterio de definir la clase en base a las relaciones con los
medios de producción, o a las situaciones de poder, o la capacidad de
organizar la producción, el campesinado caería, en una sociedad en proceso
de industrialización, o bien en un grupo enorme y amorfo de “los
gobernados”, o en un grupo de “clases medias” más amorfo aún. El
campesinado desaparece como entidad cualitativamente diferenciada. Esto
llevó a la mayoría de los científicos sociales marxistas a atacar el problema
del campesinado considerándole como un residuo de la sociedad
precapitalista en proceso de desaparición – “no existente, históricamente
hablando” –. Sin embargo, cuando una parte sustancial de la población se
mantiene al margen del concepto de sociedad como un todo, la definición en
uso parece ser tristemente inadecuada, aun ofreciendo a cambio el consuelo
de un vistazo al futuro. Las discrepancias entre predicciones y realizaciones
parecen ser el resultado inevitable de trabajar con un modelo así294
.
Assim, Shanin evoca a dimensão superestrutural como elemento relevante na
definição de classe e na apreensão analítica do campesinato. Esta posição, já presente em seus
escritos mais antigos295
, encontra-se fortalecida em exposições recentes do autor, como na
conferência proferida no Simpósio Internacional de Geografia Agrária (SINGA), realizado no
Brasil, em 2007. Neste evento, o autor apresenta uma definição de classe fortemente inspirada
no 18 Brumário: “as classes lutam entre si por objetivos específicos e assim se definem
enquanto tal” 296
, reconhecendo, então, que “a questão não é simplesmente uma questão da
posição da classe ou de sua situação objetiva em dada circunstância analítica, mas diz respeito
Eliane Tomiasi; Fabrini, João Edmilson, organizadores. Campesinato e territórios em disputa. São Paulo:
Expressão Popular; UNESP: Programa de Pós-Graduação em Geografia, 2008, p. 51. 293
Theodor Shanin. El campesinado como factor político. in Shanin, Theodor, organizador. Campesinos y
sociedades campesinas. México: Fondo de Cultura Económica, 1979, p. 11-12. 294
Ibidem, p. 288-289. 295
Cf. Ibidem e Theodor Shanin. La clase incómoda: sociología política del campesinado en una sociedad en
desarrollo (Russia 1990-1923). Madrid: Alianza Editorial, 1983. 296
Theodor Shanin. Lições camponesas. in Paulino, Eliane Tomiasi; Fabrini, João Edmilson, organizadores.
Campesinato e territórios em disputa. São Paulo: Expressão Popular; UNESP: Programa de Pós-Graduação em
Geografia, 2008, p. 36.
105
ao que as pessoas fazem” 297
. Sua resposta sobre se os camponeses constituem-se ou não
como uma classe depende, segundo afirma, de outra pergunta: “o que eles fazem? Não o que
eles são, mas o que eles fazem. Porque é no fazer que as classes são definidas”298
. Sendo este
o sentido definidor das classes, evidencia-se, com efeito, a posição segundo a qual:
A lo largo de la historia, el campesinado ha actuado políticamente muchas
veces como una entidad social de clase. Además, dentro de las sociedades
industriales, ha demostrado poseer cohesión en su acción política, y no sólo
en su enfrentamiento con los terratenientes tradicionales en combates
trasnochados de tipo precapitalista; los intereses comunes compartidos por
los campesinos los han impulsado también a sostener conflictos políticos con
los grandes terratenientes capitalistas, con varios de los diferentes grupos
urbanos y con el Estado moderno299
.
Parece-nos evidente, aqui, a aproximação de Shanin das formulações sobre classe do
historiador marxista inglês E. P. Thompson, já mencionado neste capítulo. Este autor, também
compartilhando com Shanin a influência do 18 Brumário, assume que a classe não se define
como uma “„estrutura‟, nem mesmo como uma „categoria‟, mas como algo que ocorre
efetivamente (e cuja ocorrência pode ser demonstrada) nas relações humanas” 300
. A classe
constitui-se, nesta perspectiva, uma formação social e cultural que não pode ser definida
abstrata ou isoladamente, de forma independente das relações com outras classes. Seu
enfoque recai, com efeito, sobre a dinâmica do conflito. Sinteticamente,
Quando falamos de uma classe estamos pensando em um corpo de pessoas,
definido sem grande precisão, compartilhando as mesmas categorias de
interesses, experiências sociais, tradição e sistemas de valores, que tem
disposição para se comportar como classe, para definir, a si próprio em suas
ações e em sua consciência em relação a outros grupos de pessoas, em
termos classistas. Mas classe, mesmo, não é uma coisa, é um
acontecimento301
.
A dialética objetividade-subjetividade é posta, pois, em movimento, numa
compreensão da ação política como uma expressão consciente, ativa, informada por uma
297
Idem. 298
Theodor Shanin. op. cit., p. 36, grifo nosso. 299
Theodor Shanin. La clase incómoda: sociología política del campesinado en una sociedad en desarrollo
(Russia 1990-1923). Madrid: Alianza Editorial; 1983, p. 289. 300
Edward Palmer Thompson. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2004, p. 9. 301
Edward Palmer Thompson. Algumas observações sobre classe e “falsa consciência”. In Thompson, Edward
Palmer. A peculiaridade dos ingleses e outros artigos. Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2001, p. 169.
106
experiência objetiva, o que permite a delimitação dos antagonismos, demarcando-se os
interesses e os posicionamentos no campo social.
Esta definição e os pressupostos nela contidos – assentados no ponto de vista do
materialismo histórico-dialético – constituem-se, neste sentido, um importante alicerce teórico
para o desenvolvimento de nossa análise de agora em diante. Tendo atravessado, pois, este
breve panorama teórico sobre o campesinato e seu lugar social sobre o capitalismo, nos
dedicaremos, a seguir, a uma discussão sobre a atuação política do campesinato na história
recente brasileira, considerando sua luta enquanto uma expressão de resistência a processos
múltiplos de subordinação econômica e política que marcaram, historicamente, a existência
dos camponeses na sociedade brasileira.
2.2. O campesinato e a política na realidade brasileira
As expressões políticas do campesinato e o seu lugar social sob o capitalismo,
particularmente no Brasil, constituem-se os temas centrais aos quais nos dedicaremos no
presente item. Abdicaremos do esforço de abarcar a diversidade de eventos e movimentos, na
história brasileira, relacionados direta ou indiretamente aos camponeses. Além de tal exercício
escapar aos nossos propósitos, as particularidades históricas e os traços constitutivos de cada
um dos eventos e movimentos exigiriam, naturalmente, um tipo de apreensão que não seria
possível empreender no espaço que aqui dispomos. Contudo, mobilizando alguns referenciais
históricos específicos, esperamos ressaltar um conjunto de transformações relativas à
realidade sociopolítica do campesinato, transformações estas observáveis, sobretudo, entre o
fim de século XIX e a segunda metade do século XX. Veremos que o período em destaque é
atravessado por importantes processos de ruptura de antigas relações de dominação e
dependência camponesa aos proprietários de terra, em várias dimensões, reestruturando-se,
consequentemente, o lugar dos camponeses na sociedade e suas formas de manifestação e
consciência política.
2.2.1. Expressões primordiais de resistência camponesa no sertão dos “coronéis”
O sociólogo Octávio Ianni, em sua obra Sociologia e sociedade no Brasil, observa a
presença de dois marcantes elementos que cruzam a “mentalidade do homem simples”: a
violência e o misticismo. Para o autor, estes aspectos são as duas tônicas e os dois pólos da
107
existência dos homens comuns, que vivem no campo e na cidade, na fazenda e na fábrica302
.
O autor argumenta que é sob a ingenuidade e como parte mesma dessa “consciência ingênua”
que perpassam os traços de misticismo e da violência e, como coordenadas do seu mundo,
estes elementos surgem e ressurgem nos instantes mais diversos, isolados ou em conjuntos,
constituindo-se os temas fundamentais da existência dos homens comuns.
Ao considerarmos a realidade sertaneja – aquela do coronelismo e das antigas
fazendas de criação; do cangaço e dos capangas; dos missionários andantes e dos profetas –
vemos que a violência e o misticismo são termos que costuram, de forma significativa, o
tecido de relações tradicionais tão historicamente marcantes no semiárido. A religiosidade
camponesa, em suas particularidades, é reveladora de parte deste universo, nem sempre se
ajustando de forma precisa àquele da institucionalidade oficial da Igreja, constituindo seus
próprios códigos e práticas.
O historiador Luiz Bernardo Pericás evidencia que o campo religioso, o meio
econômico e os aspectos culturais mais amplos definiram e moldaram, significativamente, os
principais traços das relações entre os distintos atores sociais no sertão nordestino. Neste
sentido, pode ser encontrada uma profunda influência mútua entre a estrutura social (e seus
conflitos intrínsecos) e a religião303
. Segundo o autor, a religião (seja a institucionalizada, seja
aquela de caráter popular) utiliza os instrumentos socialmente acessíveis do contexto em que
está situada, operando e realizando suas proposições dentro das limitações do contexto social
em questão. A religião popular, com efeito, pode operar numa sociedade já estruturada ou, por
outro lado, pode agir ao longo do processo, sendo ela própria parte da conformação de um
ambiente social mais complexo. Particularizando sua análise para a realidade sertaneja, o
autor afirma que o que se constatou foi uma religião vinda de fora, impondo-se
gradativamente e se modificando ao longo do tempo. Estamos tratando, neste caso, de uma
religião católica híbrida, “popular, milenarista, milagreira, messiânica, de santos cristãos e,
certamente, mutante, maleável, modificada e influenciada por signos e símbolos místicos
africanos e indígenas: constantes intercâmbios culturais” 304
. O autor destaca que a religião,
ademais,
[...] não atua de maneira estática dentro de uma sociedade de classes, mas,
pelo contrário, também se relaciona (muitas vezes promiscuamente) com
302
Octavio Ianni. Sociologia e sociedade no Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975, p. 88. 303
Luiz Bernardo Pericás. Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Boitempo, 2010, p.
167. 304
Ibidem, p. 168.
108
seus distintos graus de poder, de dominações e de interesses contraditórios.
Em outras palavras, ela se movimenta dentro de uma estrutura de dominação
social classista conflitiva, ainda que ela tenha, certamente, suas sutilezas e
seja heterogênea em muitos de seus aspectos305
.
No campo sertanejo, o caráter conflitivo ao qual se referiu o autor é bastante marcante.
O tradicional sertão do “coronelismo” e das fazendas de criação é, em sua história, fortemente
marcado pela existência de relações conflituosas, cimentadas por compromissos e contendas,
alianças e antagonismos, constituindo aquilo que o antropólogo John Comerford denominou
de sociabilidade agonística306
. O agônico – traço subjacente do conflito, estando este
manifesto ou em estado de latência – conforma os vínculos e rupturas sociais entre os
sertanejos. É neste ambiente que emergem as disputas entre famílias, resultando em ciclos de
assassinatos e vinganças, que prosseguem no tempo, desenhando um cenário por vezes
sangrento, frequentemente perpassado por certos traços místicos e misteriosos307
. Em sua obra
Os Sertões, publicada pela primeira vez em 1902, Euclides da Cunha observa que as lutas de
famílias são “uma variante apenas de tantas outras, que ali surgem, intermináveis,
comprometendo as próprias descendências que esposam as desavenças dos avós, criando uma
quase predisposição fisiológica e tornando hereditários os rancores e vinganças” 308
.
Em meio à realidade sertaneja de meados do século XIX, ganha relevo, entre tantos,
um conflito familiar no Ceará, iniciado em 1833. A disputa entre os Maciéis e os Araújos foi
marcada como “uma luta sem trégua nem quartel, em que todos os meios eram lícitos desde
que atingissem seu fim: o extermínio dos inimigos” 309
. Esta disputa teve como resultado o
massacre da família Maciel, ocorrido após a promessa não cumprida pelos Araújos, de que,
após um forte conflito armado, com a rendição daqueles, não haveria mortes. Neste massacre,
foi assassinado Miguel Mendes Maciel, avô daquele que se tornou o mais conhecido líder
messiânico brasileiro, Antônio Vicente Mendes Maciel, tornando-se popularmente conhecido
como Antônio Conselheiro.
305
Luiz Bernardo Pericás. op. cit., p. 168. 306
John Cunha Commerford. Como uma Família: sociabilidade, territórios de parentesco e sindicalismo rural.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, passim. 307
“Famosas são as disputas por terras, por domínio político ou até por motivos supostamente fúteis dos
Nogueiras, Carvalhos e Saturninos contra os Pereiras e Ferreiras; dos Morais contra os Cabral e Garanhuns; dos
Calheiros e Cavalcanti Lins contras os Omenas da Silva; dos Fortes Nunes contra os Malta em Alagoas; dos
Alencar contra os Sampaio, em Pernambuco; dos Limão contra os Calado; dos Montes contra os Feitosas; e dos
Ferraz contra os Novaes, entre outros”. Cf. Luiz Bernardo Pericás. op. cit., p. 28. Para uma análise antropológica
sobre o tema, cf. Ana Claudia Marques. Intrigas e questões: vingança de família e tramas sociais no sertão de
Pernambuco. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Núcleo de Antropologia da Política, 2002. 308
Euclides da Cunha. Os sertões: campanha de Canudos. São Paulo: Abril Cultural,1979, p. 117. 309
Edmundo Moniz. Canudos: a luta pela terra. 9a ed. São Paulo: Global; 2001, p. 21.
109
Em sua infância e juventude atribuladas, Antônio Maciel conviveu com uma
realidade tecida por violência e fé. A socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz afirma que
Antônio Maciel tornou-se a princípio um romeiro, sendo provável que então tenha
atravessado o Ceará, em direção à Bahia. Segundo menciona a autora, são escassas as notícias
sobre esse período de sua vida, que vai de 1867 até 1873. É, contudo, em 1873 que Antônio
Maciel aparece no norte da Bahia, município de Itapucuru, missionando por conta própria,
passando a ser documentado pela obra Os Sertões, de Euclides da Cunha310
.
Neste período, vivia de esmolas, possuindo o mínimo necessário para a
sobrevivência. Além de se dedicar às pregações, novenas e procissões, Antônio Maciel
construía capelas, reparava muros de cemitérios311
e queimava em autos-de-fé tudo aquilo que
lhe parecia não se conformar com sua perspectiva religiosa. Sua fama crescia pelos sertões e
sua presença, nos lugarejos, atraía a atenção da população, ansiosa por vê-lo e para ouvir suas
palavras. Assim, foi atraindo seguidores e, junto deles, buscou fixação na comarca de
Itapicuru, com a fundação do Arraial do Bom Jesus, que logo se tornou “quase uma cidade”,
tendo ali permanecido por cerca de doze anos312
. Queiroz afirma que sua fama de manso e
sereno pregador vai dando lugar, em certas situações, à imagem de agressividade, tendo
Antônio Maciel colecionado algumas desavenças tanto com as autoridades locais, quanto com
as eclesiásticas, muitas vezes por motivos banais. Diante de suas desavenças, os fiéis
seguidores o defendiam, estando estes sempre dispostos a resolver as questões, inclusive
belicosamente.
A proclamação da República fê-lo endurecer nesta fase; opondo-se-lhe,
abertamente, encarando-a como o prenúncio do fim do mundo, “deixou a
vila de Bom Jesus, quase por ele edificada”, enveredando um dia sertão
afora seguido dos fiéis, procurando no deserto dos chapadões desolados pela
seca um local propício para instalar a Nova Jerusalém, onde os privilegiados
pudessem esperar tranqüilos o anunciado Juízo Final, furtando-se ao
republicando governo do Anticristo313
.
Tais caminhadas levaram Antônio Conselheiro e seus fiéis a Canudos, velha fazenda
de gado abandonada nas margens do Vaza-Barris, onde se instalaram, dando-lhe o nome de
310
Maria Isaura Pereira de Queiroz. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Omega, 2003, p. 226. 311
Sobre isto, descreve Euclides da Cunha: “Coerente com a missão a que se devotara, ordenava, depois destas
homilias, penitências que de ordinário redundavam em benefício das localidades. Reconstruíam-se templos
abatidos; renovavam-se cemitérios em abandono; erigiam-se construções novas e elegantes. Os pedreiros e
carpinteiros trabalhavam de graça; os abastados forneciam, grátis, os materiais indispensáveis; o povo carregava
pedras. Durante dias seguidos, na azáfama piedosa, se agitavam os operários cujos salários se averbavam nos
céus”. Cf. op. cit., p. 130. 312
Maria Isaura Pereira de Queiroz. op. cit., p. 226. 313
Maria Isaura Pereira de Queiroz. op. cit., p. 226.
110
Arraial de Belo Monte. Em suas calorosas pregações, além de revelar e instigar esperanças
milenaristas em relação ao retorno de D. Sebastião314
, Conselheiro qualificava a República
como o reinado do Anticristo, como “indício seguro de que o fim do mundo não tardava e
contaminara já a própria Igreja Romana, que não escapava também de suas objurgatórias” 315
.
Com o retorno de Dom Sebastião, Canudos se converteria, então, num universo sagrado, na
nova terra de Canaã, no paraíso terrestre.
Como evidencia Martins, a nova monarquia de Canudos seria a monarquia dos
redimidos, instituída antes das trevas, com o retorno de Dom Sebastião. Conselheiro passou a
ser entendido, efetivamente, como uma ameaça no momento em que rasgou os editais da
Câmara de Bom Conselho que determinavam a cobrança de impostos. A partir deste
momento, “o quadro de interpretação da situação dos camponeses de Canudos terá muito
pouco a ver com Conselheiro e seus seguidores. O caso de Canudos foi reinterpretado à luz do
temor republicano, sobretudo militar, de restauração da monarquia” 316
. Nas palavras do autor,
Antônio Conselheiro e seus adeptos foram combatidos e praticamente
exterminados pelo Exército em 1896-1897, com base na acusação de que
eram monarquistas. Esse era na verdade o crime político maior que se podia
cometer então. O Exército sentia-se o guardião da República, que fora
proclamada pelo Marechal Deodoro em 1889, numa espécie de golpe não só
contra monarquia, mas basicamente contra os republicanos civis,
constituídos pela nova e próspera fração de classe dos fazendeiros de café de
São Paulo, que desde os últimos anos do Império vinha assumindo uma
participação cada vez maior no governo317
.
Ainda que tenham sido apresentadas e violentamente combatidas pelas forças
militares como se fossem tentativas de restauração monárquica, esse “monarquismo
sertanejo” não tinha nada a ver com a monarquia dos Braganças, extinta em 1889. Na
verdade, argumenta Martins, para os sertanejos, as grandes mudanças que alcançavam
radicalmente suas vidas pareciam decorrência da implantação da República, da instauração da
lei do cão, da desordem318
. Concretamente, “as mudanças que atingiam diretamente os
314
“O povo do interior nordestino achava que algum dia o rei de Portugal, D. Sebastião, sairia das ondas do mar
com todo o seu exército e entraria no Sertão para salvá-los das injustiças e da miséria. O sebastianismo sertanejo
– que misturava a história do monarca lusitano com São Sebastião, o santo católico, confundindo os dois
personagens num só homem –, portanto, unia, numa mesma figura mítica, o poder terreno e celestial. A salvação
estaria num indivíduo que ao mesmo tempo evocasse uma casta „superior‟ (a nobreza), com o poder invisível,
místico e sobrenatural da religião”. Cf. Luiz Bernardo Pericás. op. cit., p. 166. 315
Maria Isaura Pereira de Queiroz. op. cit., loc. cit. 316
José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no
processo político. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 53. 317
Ibidem, p. 52. 318
José de Souza Martins. op. cit., p. 41.
111
camponeses diziam respeito à posse da terra e essas mudanças de imediato tinham pouco a ver
com a alteração do regime político” 319
.
Duas são as transformações ocorridas, a que se refere o autor: de um lado, a abolição
da escravatura negra um ano antes do fim da República, em maio de 1888 e, por outro lado, a
transferência das terras devolutas do patrimônio da União para o patrimônio dos Estados.
Martins observa que, antevendo o fim da escravatura, que decorria necessariamente do fim do
tráfico negreiro da África para o Brasil, efetivado em 1850 devido a pressões do governo
inglês, as classes dominantes tomaram providências de ordem legal para encaminhar o
processo de substituição do escravo sem prejuízo para a economia da grande lavoura320
.
Tais medidas se concretizaram na Lei de Terras, não por coincidência
promulgada no mesmo ano de 1850. Tal lei instituía um novo regime
fundiário para substituir o regime de sesmarias suspenso em julho de 1822 e
não mais restaurado. Nesse meio tempo, ter-se-ia multiplicado o número de
posseiros em todo o país. A Lei de terras proibia a abertura de novas posses,
estabelecendo que ficavam proibidas as aquisições de terras devolutas por
outro título que não fosse o de compra. Essa proibição era dirigida contra
camponeses da época, aqueles que se deslocavam para áreas ainda não
concedidas em sesmarias aos fazendeiros e ali abriam suas posses321
.
Deste modo, conforme argumenta o autor, a República encontra alteradas as bases da
ordem social – o trabalho escravo extinto, a propriedade da terra modificada: a propriedade
fundiária constituída agora no principal instrumento de subjugação do trabalho, o oposto
exatamente do período escravista, em que a forma da propriedade, o regime das sesmarias, era
o produto da escravidão e do tráfico negreiro. O monopólio da classe sobre o trabalhador
escravo se transfigura no monopólio de classe sobre a terra. O senhor de escravos se
transforma em senhor de terras. Com efeito, o monopólio de classe sobre a terra define um
novo lugar social para o campesinato, libertando-o da grande propriedade, ao mesmo tempo
em que o subjuga a ela. Na prática,
[...] as modificações do regime fundiário abrem caminho para um novo
campesinato, que cada vez mais terá menos que ver com o velho
campesinato de posseiros e agregados. Trata-se de um campesinato de
pequenos proprietários, um campesinato moderno cada vez mais dependente
do mercado, um campesinato de homens livres, compradores de terra, cuja
existência é mediatizada por uma terra já convertida em mercadoria322
.
319
Idem. 320
Idem. 321
Ibidem, p. 41-42. 322
José de Souza Martins. op. cit., p. 43.
112
Neste contexto, o campo sertanejo era caracterizado pela existência de uma
considerável quantidade de pequenas propriedades espalhadas e pulverizadas. Diante disto,
como ressalta Pericás, uma atitude comum dos proprietários de terras mais poderosos era a
apropriação de terras e de pequenas fazendas pela força das armas e pela sua compra dos
sertanejos endividados. Assim, um pequeno número de latifundiários anexava as propriedades
que encontravam, configurando o espaço econômico regional ao seu favor e controlando,
política e economicamente, muitos camponeses que permaneciam em seu alcance. Neste
sentido, estabeleceram-se vínculos de dependência, relações fundadas na troca de favores e no
clientelismo entre os proprietários (“coronéis”) e seus agregados e dependentes323
. É sobre
este universo de relações que emerge outro fenômeno que, junto com o messianismo,
constitui-se uma importante expressão característica do conjunto de transformações históricas
ocorridas na passagem do século XIX para o século XX: o banditismo do cangaço.
A palavra “cangaço” deriva do termo “canga”, utensílio de madeira presente nos
carros de boi, cuja função é a de manter os animais emparelhados, lado a lado, viabilizando,
assim, a aração do solo. Pericás destaca que, frente a outros utensílios dos carros de boi,
como os cambões, chavelhas, tiradeiras, brochas, tamoeiras e correias de chifre, a canga se
destaca por seu tamanho, formato e função. É por esta razão que uma peça tão característica
de um elemento de tão grande importância econômica no interior nordestino torna-se
simbólico no imaginário popular sertanejo. Segundo o autor, há algumas alusões mais comuns
relacionadas de forma específica à canga. Na primeira, compara-se a subordinação dos
cangaceiros aos “coronéis”, que supostamente imporiam seu domínio sobre seus dependentes,
como se fosse um instrumento de prisão e tortura (uma cangalha sobre o lombo do boi). No
segundo sentido, estabelece-se a associação entre a canga e os apetrechos que os cangaceiros
traziam pendurado no corpo. Outra alusão, contudo, justifica mais claramente a relação do
termo “cangaço” com a “canga”: a função desta de aproximar os animais, que ficavam juntos
uns aos outros, unidos pelo instrumento de madeira324
.
De fato, a ideia de unidade que o termo remete parece elucidativa para qualificar o
banditismo sertanejo. Sendo este um fenômeno já existente nos tempos coloniais, não tendo
necessariamente relação com o jaguncismo e a atividade de guarda-costas, o banditismo
torna-se, efetivamente, significativo com o “coronelismo” da República. Os jagunços eram,
em grande parte, trabalhadores, moradores e agregados das fazendas, tendo eles como
obrigação a garantia da proteção ao fazendeiro e às terras sob seu domínio. Sob tal função,
323
Luiz Bernardo Pericás. op. cit., p. 27. 324
Ibidem, p. 16.
113
esses trabalhadores tornam-se importantes agentes tensionadores da agonística sociabilidade
sertaneja, conduzindo ativamente e levando adiante as memoráveis lutas entre famílias e entre
“coronéis”.
O jagunço rebelde ou independente também se fazia presente nesta realidade, seja
praticando serviços de aluguel (crimes de encomenda), seja atuando na proteção e nas lutas de
interesse direto dos fazendeiros. Martins argumenta que as fontes básicas desse banditismo
sertanejo estavam no conflito familiar, nas lutas pela terra, nos crimes de honra e na vingança.
O autor afirma que os sertanejos envolvidos com o banditismo geralmente eram sitiantes,
posseiros, pequenos lavradores e criadores, esbulhados em seus direitos, submetidos a
expulsões, violências diretas dos jagunços dos coronéis, bem como as violências da polícia
local comandada pelos “coronéis”. Lograda a vingança, era comum a entrada em bandos e a
própria conversão em cangaceiro325
.
O banditismo agrestino e sertanejo constitui-se, com efeito, um fenômeno complexo,
imbricado por influências não apenas de ordem econômica e política, sendo também
entrelaçado pela engrenagem policial e jurídica regional. Pericás argumenta que a estrutura
agrária sertaneja funciona como forte elo entre a base econômica mais ampla e a
superestrutura, encontrando-se nela uma série de variáveis que, postas em diálogo,
contribuem para a compreensão do banditismo rural nordestino. Para produzir um painel mais
rico sobre a questão, o autor sugere a consideração da influência das culturas endógena e
exógena (indígena, portuguesa, a elaborada dentro do ambiente sertanejo em evolução e a
trazida dos grandes centros do país, e até mesmo do exterior), bem como o ambiente político e
institucional, com as deliberações do Estado em nível estadual e nacional, durante o período
da República Velha326
.
Neste sentido, Martins vê no messianismo e no cangaço a própria definição dos
limites da rebeldia camponesa no âmbito do coronelismo, da forma peculiar de poder da
República Velha que se personificava diante do camponês rebelado. Para o autor, tanto o
messianismo quanto o cangaço indicam, na realidade, uma situação de desordem nos
tradicionais vínculos de dependência no sertão. Neste sentido, a apropriação da terra pelos
grandes fazendeiros passa a ser condição da sujeição do trabalho livre, isto é, instrumento
para a subordinação camponesa na forma de extração de mais trabalho327
. Diante disto, a
característica violência pessoal e direta, que confrontava os camponeses entre si e entre eles e
325
José de Souza Martins. op. cit., p. 59. 326
Luiz Bernardo Pericás. op. cit., p. 29-30. 327
José de Souza Martins. op. cit., p. 62.-63.
114
os fazendeiros, começa a se transformar numa resistência de classe. Por mais limitadas que
possam parecer, em razão de sua ocorrência sob os limites da dominação oligárquica, o autor
defende que o messianismo e o cangaço podem ser entendidos como manifestações
primordiais de libertação, no sentido da manifestação de uma vontade própria, isto é, o germe
de uma de uma expressão classista sob os sertões dos “coronéis”.
2.2.2. Expressões classistas nas lutas camponesas em um cenário de transformações
A vinculação entre campesinato e conservadorismo é, sem dúvida, bastante corrente.
Guardiões da tradição, sujeitos portadores de costumes e hábitos distintos daqueles urbanos,
os camponeses são interpretados, no limite, como o avesso da civilização, manifestação social
de seu outro; o passado, o resquício, o que está em vias de superação, o anacrônico na
modernidade. José de Souza Martins menciona que, na própria tradição antropológica e
sociológica, esses sujeitos quase sempre foram tratados como depositários e agentes de
culturas tradicionais, portadores irremediáveis do tradicionalismo conservador, sendo
concebidos, assim, como vítimas e patrocinadores do atraso328
. O autor identifica que essa
interpretação encontra-se presente tanto na direita, quanto na esquerda. Na direita, em sua
compreensão do campesinato como presumível aliado, base social da tradição conservadora e
da oposição ao liberalismo e ao racionalismo. Na esquerda, pela sua leitura dos camponeses
enquanto inimigos reais embutidos em aliados ocasionais, por sua suposta condição de
defensores da propriedade privada e, enquanto tais, inimigos da socialização da produção.
Contudo, a ideia da passividade e submissão do campesinato não encontra um
evidente respaldo na realidade histórica brasileira, podendo-se destacar, historicamente,
variadas e significativas formas e manifestações de luta e resistência política, em distintas
regiões do país. Sobre isto, em outra obra, Martins ressalta que a maior guerra popular da
história contemporânea do Brasil foi a Guerra do Contestado, uma guerra camponesa no sul
do país, nas regiões do Paraná e Santa Catariana, durando de 1912 a 1916. Contando com a
participação de 20 mil rebeldes, Contestado mobilizou metade do efetivo do Exército
brasileiro em 1914, tendo deixado um saldo de pelo menos três mil mortos. A Guerra de
Canudos, também camponesa, envolveu, entre 1896 e 1897, metade do exército e milhares de
camponeses, resultando na morte de cerca de cinco mil pessoas e em marcantes momentos de
derrota para as forças militares. Por sua vez, a Revolta de Trombas e Formoso, entre 1950 e
328
José de Souza Martins. Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos
sociais no campo. São Paulo: Hucitec, 1989, p. 17.
115
1957, implantou um território livre dominado por camponeses, no Estado de Goiás. Além
destas, podem ser elencadas como revoltas camponesas, em certa medida: a Cabanagem
(Pará), a Balaiada (no Maranhão e no Piauí), além da própria emergência das Ligas
Camponesas, no Nordeste brasileiro, nas décadas de 1950 e 1960329
.
Os traços insubordinados do campesinato são ressaltados também fora do Brasil,
visíveis em sua participação direta ou indireta em grandes revoluções sociais ocorridas ao
longo do século XX. Este é o caso das revoluções Mexicana, Russa, Chinesa, Vietnamita,
Cubana, além das guerras de libertação na África e na própria Revolução Francesa, no século
XVIII, que tece na base, destruindo a velha ordem política, uma revolução camponesa330
.
Tudo isto, para Martins, sugere a necessidade de uma radical mudança de perspectiva
sobre o campesinato: a de pensá-lo como inovador, exatamente como o oposto do que tem
sido pensado, dentro e fora do Brasil. Diante disto, o autor argumenta que o caminho para
refletir sobre o tema é o de “examinar as transformações que modificam as velhas relações
sociais, que atenuam ou destroem a autoridade da cultura tradicional e que abrem espaço para
a invenção cultural” 331
. Por este argumento, um olhar histórico sobre as mudanças políticas
identificadas torna-se pertinente, de maneira que a inovação cultural apareça na sua natureza
política, como fonte de uma legitimidade alternativa. As mudanças às quais se refere o autor
estão situadas, segundo afirma, em três dimensões da realidade: econômica, política e
religiosa.
Martins argumenta que, no âmbito econômico, se evidencia uma mudança nas relações
de trabalho, resultando na expulsão dos trabalhadores residentes das grandes fazendas – de
café e de cana de açúcar, por exemplo – diminuindo-se, assim, a quantidade de trabalhadores
assalariados temporários. Tal fenômeno ocorre simultaneamente à transformação nas próprias
relações de propriedade, passando o latifúndio a atingir tamanhos descomunais, não
dependendo mais de concessões de uso da terra aos trabalhadores (como a parceria, o
arrendamento, o colonato, a moradia) e de relações clientelísticas para efetivar a posse. Na
esfera política, o esvaziamento dos currais eleitorais constituiu-se um fenômeno relevante,
tendo se reduzido significativamente o número de trabalhadores residentes, submetidos
diretamente aos vínculos de dependência pessoal e às relações de favor dos fazendeiros.
Como conseqüência, as antigas práticas do clientelismo político e a subjugação da consciência
329
José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no
processo político. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 26. 330
José de Souza Martins. Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos
sociais no campo. São Paulo: Hucitec, 1989, p. 17. 331
Ibidem, p. 18.
116
dos trabalhadores passam a ser redefinidas, em particular nas áreas de expansão da grande
propriedade. Nestas áreas, a expansão do latifúndio é acompanhada pela expulsão dos
camponeses, num processo de “ruptura dolorosa, mas libertadora” 332
.
No universo religioso, por sua vez, o catolicismo foi atravessado por intensas e
profundas transformações. Estas dizem respeito a uma mudança de orientação da Igreja de um
catolicismo cativo, instrumentalizado pela autoridade e pelos interesses dos grandes
proprietários de terras, para uma posição direcionada à mediação política da inovação cultural
emergente desse novo campesinato liberto. Explicando este processo de mudança institucional
da Igreja, Martins identifica a íntima relação desta instituição com os interesses dominantes
dos latifundiários, assumindo, ao mesmo tempo, uma posição de apêndice do Estado, mesmo
depois da proclamação da República, quando dele se separou legalmente. Na prática, no topo
da hierarquia institucional, os bispos encontravam-se cooptados pelo Estado; na base, os
padres foram cooptados pelos latifundiários333
. O autor argumenta que quando se abre o
conflito entre a Igreja e o Estado, nos anos 1960, aquela oscilou entre duas alternativas
desastrosas: por um lado, assumir a modernização proposta pelo Estado autoritário, que
incluía uma reforma agrária contra as oligarquias, priorizando a posição moderna e autoritária
contra a agrário-oligárquica; por outro lado, optar pelo oligarquismo localista e agrário,
reforçando a política arcaica dos latifundiários. Diante de tais caminhos, optou por um
terceiro, isto é, o encontro de uma fonte alternativa, que estava na massa dos excluídos,
posseiros, trabalhadores rurais, expulsos pela grande propriedade, migrantes moradores
pobres das periferias, quase sempre vindos do campo. É por este caminho que uma nova
tarefa se impõe à Igreja, “a de mediar a inovação cultural, as novas formas de consciência
resultantes da ruptura das velhas relações de dominação e exploração334
.
Em sua análise sobre a relação da Igreja Católica com movimentos camponeses do
Brasil e do Peru, entre 1964 e 1986, a historiadora Zilda Iokoi identifica no pós-guerra um
importante momento de ruptura da Igreja latino-americana com suas matrizes européias,
ruptura esta que a teria levado a um processo de auto-realização e crescente integração às
culturas locais, particularmente às classes subalternas335
. Tal mudança coincide,
historicamente, com o afastamento de parcelas significativas da população que não
encontravam motivação para suas necessidades religiosas nas cerimônias litúrgicas e, além
332
José de Souza Martins. op. cit., p. 18-19. 333
Ibidem, p. 20. 334
José de Souza Martins. op. cit., p. 21. 335
Zilda Márcia Grícoli Iokoi. Igreja e camponeses: teologia da libertação e movimentos sociais no campo.
Brasil e Peru, 1964-1986. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 22.
117
disso, na relação com os membros da hierarquia eclesiástica. Esta reconfiguração institucional
da Igreja manifestou-se claramente a partir do Concílio Vaticano II, que permitiu a
emergência de novas formas de expressão institucional, dentro da Igreja e em sua relação com
a sociedade. Segundo Mitidiero Junior, o Concílio Vaticano II pode ser compreendido como
um marco histórico da Igreja, porque foi o momento em que esta instituição teve sua maior
abertura para incorporar interpretações, análises e conceitos explicativos da realidade, abrindo
espaço para o surgimento da Teologia da Libertação e para formas de ação da Igreja junto à
população oprimida e aos movimentos sociais336
.
Iokoi argumenta que essa nova forma de olhar o mundo, um novo tomar partido da
Igreja, gerou uma importante tensão interna na instituição, tensão esta produzida pela
emergência de uma concepção que não separava a “Palavra de Deus” de sua relação com o
homem concreto e passava a analisar o desenvolvimento humano em seus múltiplos aspectos
– econômico, político, cultural e religioso. Neste sentido, a redefinição estabelecida amplia o
foco da Igreja de um olhar exclusivo para as classes dominantes para outros setores,
encontrando as classes subalternas em condições subumanas de vida337
.
Em síntese, a partir da reorientação da Igreja, sua postura institucional é redefinida
frente à sociedade, estabelecendo-se, neste movimento, um novo olhar sobre a relação entre a
teologia e a realidade. Na prática, consolida-se uma perspectiva voltada preferencialmente aos
pobres, interpretando-se a teologia cristã à luz das desigualdades sociais, buscando-se, no
mundo terreno, a superação das injustiças. Possuindo grande força na América Latina, essa
perspectiva teve alguns teólogos de destaque para a sua formulação, estando entre eles: o
peruano Gustavo Gutierrez; o salvadorenho Jon Sobrino; o uruguaio Juan Luis Segundo; e o
brasileiro Leonardo Boff.
Nas palavras de Mitidiero Junior, a utopia do Reino de Deus passa a ser pensada, por
esses e outros teólogos, como etapas de transformações sociais necessárias na realidade
terrena. Por esta razão, “A Teologia da Libertação nasce, portanto, da tentativa e do
engajamento de parte dos setores eclesiais para territorializar a Igreja, dando uma feição
mais real e objetiva à missão dessa instituição no mundo”338
. Segundo o autor,
A teologia tornou-se o discurso, e a ideia de libertação, a prática. No que diz
respeito a uma teoria da ação social, o binômio teologia versus prática
336
Marco Antonio Mitidiero Junior. A ação territorial de uma Igreja Radical: teologia da libertação, luta pela
terra e atuação da comissão pastoral da terra no Estado da Paraíba. Curitiba: Editora CRV, 2010, p. 61. 337
Zilda Márcia Grícoli Iokoi. op. cit., p. 22-23. 338
Marco Antonio Mitidiero Junior. op. cit., p. 53.
118
transformadora pretende-se realizar, ou seja, a teologia serve como
incentivadora das ações sociais transformadoras, serve como “fermento”
subjetivo, cultural e simbólico dos sujeitos na luta pela libertação. Na verdade,
esse discurso teológico produz manifestações de luta, ao contrapor a teologia
tradicional, centrada na salvação individual e no conformismo político, à ação
comunitária contestatória das condições sociais perversas. É, em primeira
instância, um discurso que se verbaliza, na mesma medida em que possui forte
referencial territorial339
.
Essa teologia libertadora encontrava, no campo, uma clientela ainda submetida a uma
estrutura tradicional de poder não calcada no reconhecimento das relações contratuais de
trabalho, de reconhecimento da individualidade civil do trabalhador. Martins destaca que
predominava, na verdade, uma estrutura de dependência pessoal, da relação patrão-cliente, do
favor e da autoridade, da anulação coercitiva da vontade pessoal do trabalhador rural.
Segundo o sociólogo, “O catolicismo do sertanejo e camponês ainda se apresentava como
lealdade ao padre e ao bispo, que eram para ele a Igreja, do mesmo modo que sua vontade
política derivava da lealdade ao patrão, ao fazendeiro” 340
.
O autor argumenta que a Declaração dos Bispos do Nordeste, publicada em 1956,
representou a confluência desses vários fatores históricos, que permitiam um salto na teoria e
na prática da pastoral social. Neste momento, o conceito de desenvolvimento passa a compor
o repertório do pensamento episcopal, considerando-se, a partir de então, que as relações de
trabalho no meio rural, a situação dos trabalhadores do campo, as más condições de vida,
começam a ser entendidas como resultantes da falta de desenvolvimento econômico. Sob este
prisma, o planejamento governamental adequado e a alocação eficiente de recursos públicos
são vistos como estratégias necessárias à superação dos problemas sociais. Com tal
orientação, a Declaração dos Bispos do Nordeste (1956), produto de estudos e reflexões
realizadas em conjunto com técnicos do governo, integra o processo que resultou na
Operação Nordeste e, posteriormente, na própria criação da Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), em 1959.
É com base nessa orientação que os bispos, em diferentes ocasiões,
denunciarão e combaterão a chamada “indústria da seca”. Esse foi o nome
que se deu, na época, aos procedimentos das oligarquias regionais, que
aproveitavam o drama da seca periódica para obter sempre mais recursos do
governo federal e que serviam basicamente para manutenção do clientelismo
político, nunca para atender as necessidades reais das vítimas341
.
339
Ibidem, p. 54. 340
José de Souza Martins. Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos
sociais no campo. São Paulo: Hucitec, 1989, p. 41-42. 341
Ibidem, p. 44.
119
A dominação clientelística e os vínculos de dependência entre os camponeses e os
fazendeiros, que resultavam em formas diversas de sujeição pessoal, definem-se como alvo
importante da ação pastoral da Igreja, que se dedica à promoção e reconhecimento dos
direitos dos trabalhadores, frequentemente ignorado nas tradicionais relações entre patrões e
empregados. Com efeito, é como resultado do rompimento dos vínculos de dependência que
esse campesinato liberto passa a incorporar uma “nova cultura”, nas palavras de Martins.
Nesta nova cultura camponesa, o centro está no trabalho e suas dificuldades e não mais na
propriedade, na liberdade de quem trabalha e na condenação do cativeiro, na concepção de
direitos produzidos pelo trabalho. Demarcando e aprofundando as diferenças, até aqui
mencionadas, o autor afirma:
Antes, o favor (e a retribuição do favor como agradecimento e obrigação
moral) aparecia como obrigação da propriedade, obrigação de quem tem em
relação a quem não tem. As transformações econômicas que levaram à
expropriação e à expulsão dos trabalhadores rurais, e ao fim das regras e
obrigações do favor, desmoralizaram a propriedade economicamente e o
proprietário politicamente. É nesse plano que a concepção de pobre ganhou
força e sentido novo: são pobres os excluídos do direito ao favor (e não
exclusivamente do direito à terra, como pressupõe um materialismo vulgar
nem sempre compreendido pelos trabalhadores342
.
Martins ressalta que, tanto na Igreja como fora dela, a década de 1950 anuncia para o
campesinato o que se poderia chamar de tutela esclarecida, com certo traço iluminista.
Tratava-se, argumenta o autor, de um amplo movimento, envolvendo diversos grupos e forças
sociais, dedicados à libertação do país da tutela das oligarquias e do atraso econômico, social
e político a ela diretamente associados. Simultaneamente, por outro lado, surgiram lutas
populares espontâneas, posteriormente dirigidas por grupos que lhes deram o
dimensionamento propriamente político e que representavam, do mesmo modo, o
rompimento, de baixo para cima, dos tradicionais vínculos clientelistas, das relações de
dominação e de propriedade343
.
A convergência de ambos os movimentos de negação ao tradicionalismo oligárquico,
no campo brasileiro, abre espaço para o aparecimento de novas demandas reivindicativas e
um novo horizonte de atuação política, que se manifesta através de novas expressões de luta e
estratégias organizativas. Até a década de 1940, período marcado pelo domínio clientelista e
342
José de Souza Martins. op. cit., p. 22. 343
Ibidem, p. 46.
120
oligárquico, predominavam o messianismo e o cangaço enquanto forma dominante de
organização e expressão de rebeldia camponesa. A partir dos anos 1950, por sua vez, o
sindicalismo rural se apresentará como importante forma de organização e luta política do
campesinato, ainda que em convivência com a persistência do messianismo e do banditismo e
com outras formas de luta e de resistência344
.
Em meio a esse processo, um marco de significativa relevância é a emergência das
Ligas Camponesas, a partir das décadas de 1950 e 1960, no Nordeste brasileiro,
particularmente na Zona da Mata. Constituindo-se como o epicentro político desse
movimento que acabou se expandindo por vários estados do país, o caso do Engenho Galiléia,
localizado no município pernambucano de Vitória de Santo Antão, merece destaque.
Analisando mais detidamente as relações de trabalho existentes na produção
canavieira no período das Ligas Camponesas, Fernando Azevedo explica que a relação de
trabalho então predominante, desde a abolição da escravatura, era a do “morador”, na qual o
trabalhador reside no engenho ou fazenda e tem direito a um sítio ou roçado, para montar uma
cultura de subsistência baseada na “lavoura branca” (geralmente, milho, mandioca e feijão),
como parte constitutiva da “morada”345
. O autor ressalta que o trabalhador tinha a obrigação
de prestar dois ou três dias de serviço por semana ao engenho ou fazenda (“condição”), sendo
remunerado abaixo da tabela vigente para os assalariados rurais permanentes (mas sem direito
à morada) ou temporários. Ao lado do morador de condição, existia a figura do foreiro, um
pequeno rendeiro que arrendava um lote, geralmente nas áreas mais distantes dos engenhos e
fazendas, pagando em dinheiro (foro) pela sua utilização. Tinha também a obrigação, tanto
como o morador, de conceder alguns dias de trabalho gratuito para o engenho, em torno de 10
a 20 dias por ano, podendo substituir a prestação desse serviço por uma terceira pessoa.
Tratava-se, neste caso, do cambão.
Manuel Correia de Andrade observa que o Engenho Galiléia, como outros engenhos
de cana-de-açúcar localizados em áreas marginais, distantes das usinas, ficou de “fogo morto”
no período de 1931-40, quando os preços de açúcar eram baixos. Neste momento, os
proprietários passaram a “forar” suas terras a pessoas que cultivavam frutas e cereais
destinados a abastecer Recife e demais centros nordestinos346
. O autor afirma que, neste
sentido, os proprietários passaram a viver na cidade, da renda da terra, sem trabalhar na
344
José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no
processo político. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 67. 345
Fernando Antônio Azevedo. As ligas camponesas. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1982, p. 44-45. 346
Manuel Correia de Andrade. A terra o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no
Nordeste. 7a ed. rev. ampl. São Paulo: Cortez, 2005, p. 306.
121
propriedade e, quando muito, visitando-a esporadicamente. Estes proprietários contavam com
o trabalho de um “feitor”, homem de sua confiança, que cobrava os “foros” anuais, fiscalizava
a prestação do “cambão” ou da “condição” e servia de intermediário entre o proprietário
ausente e os que lavravam a terra.
Com o fim da guerra de 1939-45, o preço do açúcar aumentou e a abertura de estradas
provocou a ampliação da capacidade das usinas que foram reequipadas e passaram a se
expandir para as terras marginais. Tal expansão foi efetivada à custa do desaparecimento dos
antigos bangüês – os senhores de engenho tornavam-se fornecedores de cana – e com o
sacrifício dos foreiros que eram expulsos dos seus sítios a fim de que os canaviais das usinas
se expandissem pelas terras que cultivavam, às vezes, há dezenas de anos347
.
Azevedo ressalta que esses contingentes expropriados ou se deslocaram para as terras
menos férteis e afastadas da Zona da Mata, nas linhas limítrofes com o Agreste, recriando
assim um campesinato marginal com a sua dupla função de produtor de alimentos e exército
agrário de reserva; ou se proletarizavam de maneira irreversível, migrando para as cidades e
vilas circunvizinhas aos engenhos e usinas, onde se tornaram trabalhadores volantes. Os
foreiros que não foram expulsos ou despejados tornaram-se moradores de condição, sujeitos
ao pagamento crescente na forma de dias de trabalho nos canaviais, com pagamento de salário
inferior ao dos trabalhadores externos à fazenda348
.
Andrade destaca que foi o agravamento desta situação que motivou a organização dos
arrendatários do Engenho de Galiléia, sob a direção do próprio feitor, Zezé da Galiléia, em
busca dos seus direitos. Receberam, pois, o apoio de um advogado, representante do Partido
Socialista na Câmara Estadual de Pernambuco: Francisco Julião. Este, utilizando do seu
mandato, dedicou-se a combater o cambão e o foro, estimulando a organização dos
camponeses e sua conscientização política. Além da legalização da Sociedade Agrícola e
Pecuária dos Plantadores de Pernambuco, em 1955, que ficou conhecida como Ligas
Camponesas, Julião viabilizou a desapropriação do engenho de Galiléia, evitando, assim, a
expulsão dos camponeses organizados349
.
O modelo organizativo das Ligas de Galiléia propagou-se pelo Nordeste brasileiro
onde os problemas eram similares, chegando, na década de 1960, a 26 municípios
pernambucanos da Mata, Sertão e Agreste. As Ligas Camponesas ganharam corpo
rapidamente também no vizinho estado da Paraíba, onde surgiram grandes núcleos nos
347
Manuel Correia de Andrade. op. cit., loc. cit. 348
Fernando Antônio Azevedo. op. cit., p. 51. 349
Manuel Correia de Andrade. op. cit., loc. cit.
122
municípios de Santa Rita, Sapé, Mamanguape, Guarabira, Pirpirituba, Cruz do Espírito Santo,
entre outros. Destaca-se, neste estado, o núcleo de Sapé, que contou com aproximadamente
7000 associados350
. Na Paraíba, assim como em Pernambuco, as transformações nas relações
de produção do sistema canavieiro também se fizeram presentes, tendo como fundamento –
assim como em outros estados, no mesmo período – a expropriação e expulsão dos
camponeses. Segundo Benevides, alteravam-se as relações de produção no mesmo instante
em que se agravava a exploração dos camponeses marginalizados perante as leis do trabalho.
Além disso, “À completa ausência da legislação trabalhista no campo paraibano aliou-se a
competição da produção de cana de açúcar de São Paulo, cujos índices de produtividade eram
muito superiores aos do Nordeste” 351
. Neste sentido,
Implantaram-se, no campo paraibano, novas relações de produção,
incluindo-se o início da mecanização da lavoura com base no trator e nos
implementos agrícolas, mas manteve-se o aumento horizontal do espaço
para a pecuária extensiva. Em qualquer dos casos ocorreria a expulsão do
morador e a expropriação do foreiro, com a substituição do trabalho
permanente pelo temporário352
.
Em outras palavras, “O setor agrícola aliou-se ao setor industrial da lavoura canavieira
[...], regularizando a acumulação do capital e contrapondo a terra para o trabalho com a terra
para o negócio” 353
. Com isto, ampliava-se a necessidade de organização entre os camponeses
e, ao mesmo tempo, estavam oferecidas as condições para o aumento da participação de
organizações sociais neste processo. Como ressalta Martins, antes, o fundamento da
dominação e da exploração era o escravo; agora, efetivamente, passa a ser a terra: “é a terra, a
disputa pela terra, que trazem para o confronto direto camponeses e fazendeiros” 354
. O
sociólogo argumenta que a mediação do escravismo disfarçava anteriormente esse confronto,
fazendo do mestiço livre um aliado da escravidão, um excluído da escravidão, um liberto.
Com o fim do trabalho escravo e os processos sociais subseqüentes, foi se revelando a
contradição que separava os exploradores dos explorados. Sendo a terra a mediação desse
antagonismo, em torno dela passa a girar o confronto e o conflito de fazendeiros e
camponeses. Evidencia-se, gradativamente, a oposição, identificada por Martins, entre terra
de trabalho e terra de negócio, revelando, de forma precisa, aspectos subjacentes aos
350
Ibidem, p. 307. 351
Cezar Benevides. Camponeses em marcha. Rio de janeiro: Paz e terra, 1985, p. 29. 352
Idem. 353
Ibidem, p. 91. 354
José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no
processo político. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 63.
123
antagonismos e conflitos entre camponeses e proprietários de terras/capitalistas, como aqueles
até aqui discutidos355
.
A partir de ampla pesquisa sobre conflitos de terra na Amazônia Legal, Martins
baseia-se no pressuposto de que temos no Brasil uma clara oposição entre regimes distintos de
propriedade: de um lado, o regime da propriedade capitalista; de outro, o da propriedade
familiar. O regime de propriedade capitalista tem como base a exploração que o capital exerce
sobre o trabalhador que já não possui os instrumentos e materiais de trabalho para trabalhar,
sob domínio do capitalista. A terra representa, nesta perspectiva, um instrumento de
dominação. Por outro lado, a propriedade familiar não é propriedade de quem explora o
trabalho alheio: não é propriedade capitalista, é propriedade do trabalhador. Para este, a
reprodução de suas condições de vida não é regulada pela necessidade de lucro do capital,
porque não se trata de capital no sentido capitalista da palavra: o trabalhador-lavrador não
recebe lucro. Os ganhos obtidos são, pois, fruto do seu trabalho e do trabalho de sua família e
não ganhos de capital, exatamente porque esses ganhos não provêm da exploração de um
capitalista sobre um trabalhador expropriado dos instrumentos de trabalho356
. Tal distinção
revela-se na duplicidade dos interesses acerca do domínio da terra, isto é, naquilo que motiva
a apropriação/posse sobre um bem natural, uma determinada fração do planeta:
Quando o capital se apropria da terra, esta se transforma em terra de
negócio, em terra de exploração do trabalho alheio; quando o trabalhador
se apossa da terra, ela se transforma em terra de trabalho. São regimes
distintos de propriedade, em aberto conflito um com o outro. Quando o
capitalista se apropria da terra, ele o faz com o intuito do lucro, direto ou
indireto. Ou a terra serve para explorar o trabalho de quem não tem terra; ou
a terra serve para ser vendida por um alto preço a quem dela precisa para
trabalhar e não a tem. Por isso, nem sempre a apropriação da terra pelo
capital se deve à vontade do capitalista de se dedicar à agricultura357
.
As distintas lógicas agrupadas em cada um dos pólos do par terra de negócio e terra
de trabalho manifestam-se nos termos “camponês” e “latifundiário”, servindo, ambos, para
representar a própria realidade objetiva, isto é, a lógica da produção, reprodução social e a
expressão política dos diferentes e antagônicos sujeitos aos quais se referem. O mesmo autor
identificou a emergência, de ambos os termos, no universo teórico e político brasileiro,
especialmente a partir da década de 1950, servindo, particularmente, para qualificar e definir
355
José de Souza Martins. Expropriação e violência: a questão política no campo. São Paulo: Hucitec, 1982, p.
58. 356
Ibidem, p. 59-60. 357
Ibidem, p. 60.
124
aspectos da realidade conflituosa que eclodia no campo naquele período. Ainda que seja
acompanhado por problemas358
, inegavelmente, os qualificadores “camponês” e
“campesinato”, correntes em outros países da América Latina, serviram, em certa medida,
para expressar uma perspectiva diferente daqueles trabalhadores do campo que, até então,
eram qualificados por termos geralmente depreciativos. Sobre este aspecto, Martins menciona
que as palavras que serviam para definir os homens e mulheres que viviam no campo, fora das
povoações e das cidades (caipira, caiçara, tabarel, caboclo, etc.), trazem um duplo sentido,
referindo-se “aos que vivem lá longe, no campo, fora das povoações e das cidades, e que, por
isso são também rústicos, atrasados ou, então, ingênuos. Às vezes querem dizer também
„preguiçoso‟, que não gosta do trabalho”. Por esta razão, a palavra “camponês” expressa não
apenas um novo nome, como argumenta o autor, mas também o seu lugar social, não apenas
no espaço geográfico, no campo em contraposição à cidade, mas na própria estrutura da
sociedade, qualificando também a designação de um novo destino histórico359
.
Como foi visto até aqui, a relação entre o campesinato e a política constitui um tema
carregado de controvérsias e polêmicas. No âmbito teórico, o tema é atravessado por distintas
e antagônicas posições, que, em tensão, problematizam tanto a validade do enquadramento
analítico desses sujeitos sociais, no campo científico, quanto a consideração de sua potência
política frente à realidade de subordinação em que estão envoltos. A esta “negação teórica” do
campesinato, soma-se a corrente representação do campo – e, particularmente, como
analisamos no primeiro capítulo, do sertão – enquanto espaço-problema, submetido à cidade,
ao centro. Vivendo em um espaço de barbárie, porção incivilizada no território nacional, os
camponeses daí oriundos são considerados, por sua natureza, como socialmente anacrônicos,
isto é, como resquício em vias de desaparecimento e, como tais, desprovidos de legitimidade
para o exercício autônomo da agência política. No presente capítulo, frente a esta “condição
subordinada”, buscamos ressaltar algumas expressões de resistência camponesa, situando-as
num contexto de amplas e significativas transformações na esfera econômica e no universo
político nacional. Nesta realidade, a atuação política do campesinato – revelada por suas lutas,
seus movimentos, os conflitos em que se envolve – passa ser redefinida, abrindo novos e
358
“O transplante da concepção de camponês de outras realidades históricas, particularmente da realidade russa
dos fins do século XIX e do começo do século XX, para enquadrar e explicar a situação e as lutas no meio rural
brasileiro, destes tempos recentes, é procedimento que apresenta suas dificuldades. O destino do camponês
brasileiro passa a ser concebido através de um entendimento estrangeiro de destino do camponês (como estranha
é a própria palavra nova que o designa) e que não corresponde à sua realidade, às contradições que vive, ao
destino real que nasce de fato dessas contradições e não da imaginação política”. Cf. José de Souza Martins. Os
camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 3a ed. Petrópolis:
Vozes, 1981, p. 23. 359
Ibidem, p. 22.
125
dinâmicos horizontes de atuação e demandando, por esta razão, renovados esforços para sua
apreensão analítica.
126
CAPÍTULO 3 - OS PASSOS DA ASA BRASIL SOBRE O CHÃO DO POVO: Os
horizontes da autonomia e a convivência com o semiárido
127
(...)
Quantos cabemos dentro de nós?
Ir é ser. Não parar é ter razão.
“Qualquer caminho leva a toda parte”, Fernando Pessoa.
128
As práticas político-interventivas, configuradas sob a perspectiva da convivência com
o semiárido, constituem-se o foco da análise a ser realizada neste capítulo. Partindo deste
panorama, discutiremos o processo de formação da ASA, considerando-o parte da
consolidação de um dinâmico enredamento das organizações e movimentos sociais, na
estrutura estatal, tendo em vista a materialização de um projeto político antagônico àquele
assentado na perspectiva de “combate à seca”. A execução de políticas públicas, assumida
pela ASA, responde às demandas concretas de acesso à água, por parte da população
economicamente carente do semiárido. Neste sentido, atuando na construção de cisternas de
placas e outras tecnologias de captação hídrica, a Articulação mobiliza um conjunto de
princípios e práticas movimentalistas, em suas ações cotidianas, cujas matrizes são
identificáveis, como procuraremos demonstrar, nos movimentos populares que ganharam
fôlego nos anos 1970 e 1980, no Brasil.
A emergência movimentalista deste período, qualificado por Francisco de Oliveira
como a “era das invenções”360
, resultou na configuração de um “campo ético-político” 361
que,
no contexto autoritário da ditadura militar, abriu espaços para novas iniciativas de
organização e participação política, por parte de uma população situada, até então, às margens
dos canais político-institucionais existentes. Com efeito, foram significativamente redefinidos
os padrões de ação e discursos das organizações e movimentos sociais, forjando-se um novo
quadro de referências, fundado, a partir de então, em princípios como o da autonomia,
buscados através da valorização dos conhecimentos próprios dos sujeitos sociais, bem como
mediante a negação de formas hierarquizadas e centralizadas de representação político-
institucional. Nos anos 1980 e 1990, com a abertura democrática, abre-se espaço para a
emergência de uma postura mais corporativo-integrativa na atuação de organizações
fortemente ativas no período anterior, o que leva à consolidação de toda uma estrutura
organizativa voltada à administração do fundo público e seu direcionamento às demandas
360
Cf. Francisco de Oliveira. O momento Lênin. Novos Estudos. 2006 e Francisco de Oliveira. Política numa era
de indeterminação: opacidade e reencantamento. in Francisco de Oliveira e Cibele Saliba Rizek, organizadores.
A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007, em particular p. 15-25. 361
Cf. Ana Maria Doimo. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-
1970. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: ANPOCS, 1995, p. 126.
129
populares. Sobre este solo, a ASA é formada como articulação política, estabelecendo, a partir
da década de 1990, uma relação dinâmica com o Estado, transitando entre momentos de
tensão e de pleno alinhamento. Tomando tal relação como referência analítica, considerando o
dinamismo que a constitui e as contradições que integram este processo, focalizaremos, em
nossa abordagem, a dimensão político-organizativa da Articulação, evidenciando suas ações
cotidianas em prol da construção e disseminação das tecnologias de captação hídrica às
populações sertanejas e, ademais, nas manifestações públicas (atos de protesto, campanhas,
etc.) organizadas, frente ao Estado, em defesa da convivência com o semiárido.
3.1. As bases movimentalistas da ASA: o campo ético-político dos movimentos populares
Vimos, no segundo capítulo, que o conjunto amplo e significativo de mudanças de
ordem econômica e política – ocorridas desde o final do século XIX, passando pela primeira
metade do século XX – redefiniu, a um só tempo, os traços das lutas camponesas e das
organizações dedicadas à sua mediação política (Igreja, partidos políticos, etc.). Por um lado,
para as agências de mediação, tratava-se de buscar uma adequação a um “novo campesinato”,
liberto da propriedade e dos seus rígidos vínculos de dependência clientelista, situando-se em
meio aos novos traços de suas reivindicações e demandas, mediando, assim, a emergência de
novas formas de consciência política e práticas organizativas. Por outro lado, essas novas
condições econômicas e sociais, resultantes da ruptura com antigas formas de dominação,
impuseram ao campesinato a adaptação ao contexto sociopolítico emergente, abrindo espaço
para a configuração de uma “nova cultura camponesa” que foi se sobrepondo à autoridade da
cultura tradicional e abrindo espaço para a invenção e inovação cultural362
.
Como parte deste processo, o antagonismo entre terra de trabalho e terra de negócio,
nas palavras de Martins363
, expressou, de forma significativa, os termos dos movimentos
camponeses das décadas de 1950 e 1960. A luta pela reforma agrária agrupou, no período em
destaque, um amplo leque de insatisfações acumuladas historicamente pelo campesinato,
resultando no fortalecimento do sindicalismo rural e na emergência de um vigoroso
movimento político de inegável alcance histórico – as ligas camponesas. Frente ao
362
Remetemos, mais uma vez, às palavras de Martins, para quem, nesta nova cultura camponesa, “o centro está
no trabalho e suas dificuldades e não mais na propriedade, na liberdade de quem trabalha e na condenação do
cativeiro, na concepção de direitos produzidos pelo trabalho”. Cf. José de Souza Martins. Caminhada no chão da
noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais no campo. São Paulo: Hucitec, 1989, p. 22. 363
José de Souza Martins. Expropriação e violência: a questão política no campo. São Paulo: Hucitec, 1982, p.
58.
130
tradicionalismo oligárquico, marcante nas relações de trabalho e nos vínculos sociais
pretéritos, expressivos no campo brasileiro, as ligas possibilitaram a configuração de uma
importante práxis de resistência política, definindo, explicitamente, as lógicas antagônicas em
torno do uso da propriedade da terra no país. Este movimento, na prática, situou os
camponeses numa escala política mais ampla, trazendo à luz as dimensões mais profundas da
expropriação, da exploração e da violência por eles sofridas sob a antiga tutela do
“coronel”364
.
O golpe de 1964, a despeito do seu caráter centralizador – em oposição, pois, aos
interesses oligárquicos das elites regionais365
–, impediu o crescimento das lutas sociais no
campo e o fortalecimento político dos camponeses e trabalhadores rurais, que ingressavam
maciçamente no cenário político nacional366
. Neste sentido, o governo dos militares atuou
com a perspectiva de atenuar os conflitos agrários, realizando desapropriações de terras
somente em casos de grande tensão, promovendo, ao mesmo tempo, o desenvolvimento
empresarial e capitalista da agricultura brasileira367
. Martins ressalta que, apesar da intensa
repressão e da censura, os conflitos multiplicaram-se rapidamente em todas as regiões do país,
envolvendo não apenas camponeses, mas também os povos indígenas, que tiveram suas terras
invadidas de modo alarmante368
.
Ao mesmo tempo, nas cidades, as contradições se avolumavam face à política estatal
centralizadora e adversa aos trabalhadores, particularmente no fim do chamado “milagre
econômico”, impulsionando a formação de movimentos sociais urbanos e o ressurgimento dos
movimentos operário e de bairro que, até o início da década de 1960, estavam
significativamente submetidos à tutela estatal e, consequentemente, imersos no clientelismo e
assistencialismo governamental369
. Como argumentou Ilse Scherer-Warren, os movimentos
364
José de Souza Martins. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no
processo político. 3a ed. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 82. 365
“A história política do Brasil republicano tem sido uma dramática história de oscilações entre a centralização
política e o fortalecimento do Estado, de um lado, e a descentralização política e o fortalecimento das
oligarquias, de outro. Na prática, esses têm sido períodos de ditadura (com domínio militar direto ou, ao menos,
franca dominação militar) sucedidos por períodos de abertura política e de governos civis fortemente
comprometidos ou mesmo dominados pelas oligarquias rurais. De um lado, as ditaduras e os governos fortes
apoiados no fortalecimento da unidade e do Estado nacional, centralizado. De outro lado, os governos civis
apoiados na descentralização política e no fortalecimento da federação, isto é, dos estados e dos municípios.
Esquematicamente, é como se a história fosse pendular, o pêndulo oscilando entre militares, de um lado, e
oligarquias, de outro: a nação, de um lado, e as províncias e municípios, de outro”. Cf. José de Souza Martins.
Não há terra para se plantar neste verão (O cerco das terras indígenas e das terras de trabalho no
renascimento político do campo). Petrópolis: Vozes, 1986, p. 72. 366
José de Souza Martins. A militarização da questão agrária no Brasil (Terra e poder: o problema da terra na
crise política). 2a ed. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 21. 367
Ibidem, p. 22. 368
Ibidem, p. 23-24. 369
Ana Maria Doimo. Movimento social urbano, Igreja e participação popular. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 29.
131
sociais urbanos, representados até 1964 pelas Associações de Amigos de Bairro e Sociedades
de Amigos de Bairro (as SABs), se caracterizavam, inicialmente, pelo seu recrutamento
clientelístico, pela cooptação de suas lideranças pelo Estado, pelo encaminhamento de
reivindicações segundo esquemas populistas e paternalistas. A partir de 1964, segundo a
autora, mesmo essas formas de organização viram seus canais de participação reprimidos. É,
enfim, na década de 1970 que novos movimentos de bairro começam a tomar força,
organizados em sua maioria como CEBs, sendo esta a única forma de organização possível
naquela conjuntura política que via com suspeita os antigos canais de mobilização370
.
Segundo Vinícius Brant, o bloqueio dos canais institucionais de representação popular
– como os partidos políticos, as câmaras legislativas, os sindicatos e associações de massas –
acabou estimulando o uso dos laços primários de solidariedade na sobrevivência diária da
população. Para o autor, as relações de vizinhança, parentesco, compadrio ou amizade,
permitiam a proteção imediata dos indivíduos diante de um clima social de medo. Com efeito,
os laços de solidariedade comunitária, tecidos em meio a este cenário repressivo, deram forma
a vários movimentos de base371. Como parte deste processo,
Associações comunitárias, grupos políticos de crescimento molecular,
comissões de fábrica, movimentos culturais, clubes de mães ou de jovens,
grupos de oposição sindical, tendências estudantis, enfim, uma variada gama
de movimentos localizados e dispersos fundamentava-se na confiança direta
entre os seus membros e na consciência de seu desamparo diante das
instituições mais vastas372
A luta pela autonomia e por direitos passa a se fortalecer, neste contexto, através de
estratégias renovadas de ação, rompendo-se com padrões clássicos de reivindicação, que
tinham como referência, unicamente, o operariado urbano-industrial. Neste momento, o “povo
como sujeito de sua própria história” emerge como importante horizonte de ação em um
momento de intensas redefinições, entre as quais a do lugar central da agência política,
deslocando-se da classe operária strictu sensu para um sujeito social difuso, ambíguo,
multifacetado373
. Categorias mais genéricas, descoladas dos esquemas teóricos clássicos do
370
Ilse Scherer-Warren. O caráter dos novos movimentos sociais. in Ilse Scherer-Warren e Paulo J. Krischke,
organizadores. Uma revolução no cotidiano? Os novos movimentos sociais na América do Sul. São Paulo:
Brasiliense, 1987, p. 41-42. 371
Brant, Vinícius Caldeira. Da resistência aos movimentos sociais: a emergência das classes populares em São
Paulo. in Paul Singer e Vinícius CaldeiraBrant. São Paulo: o povo em movimento. 3a ed. Petrópolis: Vozes,
1982, p. 13. 372
Ibidem, p. 13-14. 373
“(...) inaugura-se uma concepção centrada na capacidade ativa do povo, pela qual não havia mais lugar nem
para o culto do „Estado-nação‟, que prometia o desenvolvimento pela eficácia instrumental-administrativa do
132
marxismo, vão ganhando espaço no vocabulário da militância dos movimentos sociais do
período, entrando em cena, assim, um conjunto de problemáticas, demandas e questões
associadas à exclusão, marginalidade social, pobreza, etc.
Mitidiero Junior argumenta que as matrizes de inspiração teológico-libertadoras e os
grupos influenciados pelo marxismo entram em choque em razão da “insistência do marxismo
ortodoxo em reconhecer apenas no proletariado o sujeito capaz de adquirir uma „consciência
de classe‟, portanto de compreender a exploração da qual é vítima”374
. Se os esforços
marxistas estavam voltados basicamente ao proletariado, afirma o autor, para os “teólogos da
libertação”, “são os pobres, oprimidos de diferentes ordens e grupos socais, os sujeitos
históricos de mudanças na ordem social injusta, isto é, proletariados, camponeses, indigentes,
índios, negros, mulheres, enfim, todas as minorias” 375
. Nas palavras de Eder Sader, essas
minorias são pensadas não apenas como “gentis” que deveriam ser convertidos, mas
especialmente como encarnação do Espírito, cuja religiosidade espontânea é valorizada como
premissa para a atividade pastoral376
.
Se, por um lado, a rejeição aos particularismos, assumida pela alas progressistas da
Igreja, levava a uma ação voltada ao reconhecimento do Estado militar e do próprio
capitalismo como responsáveis pela desigualdade social e miséria de amplos setores da
sociedade; por outro lado, do ponto de vista teórico, inevitavelmente, a militância pastoral se
defrontava “com as limitações reconhecidas da categoria „pobre‟, e da generalidade de uma
concepção de pobre e de pobreza que era a herança conceitual nutriente da caridade cristã”377
.
Na prática, constituindo-se uma categoria vaga e genérica, aglutinava, em seus limites,
sujeitos socialmente diversos entre si, sendo, por isso, a imprecisão conceitual um risco
inevitável378
.
planejamento compreensivo, nem tampouco pela ação das “vanguardas”, que previam combate o imperialismo e
o latifúndio pela conscientização das massas amorfas, passivas e indiferentes”. Cf. Ana Maria Doimo. A vez e a
voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-1970. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará: ANPOCS, 1995, p. 75. 374
Mitidiero Junior, Marco Antônio. A ação territorial de uma Igreja Radical: teologia da libertação, luta pela
terra e atuação da comissão pastoral da terra no Estado da Paraíba. Curitiba: Editora CRV, 2010, p. 79. 375
Idem. 376
Eder Sader. Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da
Grande São Paulo (1970-80). 4a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 163. 377
José de Souza Martins. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais.
4a ed. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 53. 378
Exemplificando o problema, na realidade do trabalho pastoral na Amazônia, Martins relata: “Nas situações-
limite da pastoral da fronteira, „pobre‟ era uma categoria pobre, insuficiente, e disso os bispos estavam
conscientes. Porque ali havia uma diversidade de „pobres‟, que se encaixavam mal nessa categoria espremida:
havia os índios procedentes de tantos e diversificados universos culturais; havia posseiros retardatários de um
processo histórico residual e lento; havia os novos colonos dos núcleos de colonização públicos e privados. E
havia a sua contrapartida: havia o „novo‟ latifúndio das grandes empresas capitalistas que agregavam aos seus
133
Eder Sader, em seu importante estudo sobre a emergência desses “novos personagens”
no cenário político brasileiro, argumenta que a novidade destes sujeitos estaria, precisamente,
no seu caráter coletivo e descentralizado379
. Se, antes, os indivíduos encontravam-se dispersos
e privatizados, passaram eles, nos movimentos emergentes no período, a se identificarem
coletivamente. Ao mesmo tempo, ainda que expressando suas demandas e construindo suas
ações coletivamente, estes sujeitos políticos em ascensão não se assumiam portadores da
universalidade a partir de uma organização determinada e entendida como vetor único da
transformação política e da emancipação social. Tratava-se, fundamentalmente, de sujeitos
não claramente ajustados aos modelos “tradicionais” de institucionalidade política380
.
Com argumento similar, Hartmut Kärner identifica que a perda de confiança nas
organizações e nas formas de atuação política tradicionais teria resultado na substituição das
agências clássicas (em particular, partidos políticos e sindicatos) por formas de organização
que consideravam e davam um maior peso para a subjetividade, no sentido da autonomia dos
interesses parciais e dos grupos, em face da uniformidade e do formato coletivo de um sujeito
revolucionário clássico381
. Em outras palavras, estaríamos diante de transformações, na arena
política, caracterizadas pela emergência de novas demandas e formas de problematização da
ordem social, que passaram a configurar canais de expressão distintos daqueles até então
considerados os espaços legítimos de representação institucional.
Martins, alargando a escala de análise ao âmbito regional latino-americano, nota que
os golpes de Estado dos anos 1960 e 1970 evidenciaram o desencontro entre o
desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social. Como conseqüência, tornou-se claro
que o descompasso sugeria que a injustiça social do modelo de desenvolvimento econômico
globalizado, nos países pobres, só seria viável através de um sistema político repressivo, que
cerceasse as liberdades civis e contivesse o protesto social daqueles a quem restou a condição
de marginalidade382
. Por este caminho, intensificou-se, no caso brasileiro, o processo de
acumulação capitalista e inserção da economia brasileira ao mundo globalizado, ajustando-se
instrumentos de poder e riqueza a propriedade da terra; havia os pistoleiros; havia o Estado que patrocinava e
legitimava o matrimônio contraditório da terra com o capital”. Cf. José de Souza Martins. loc. cit. 379
Eder Sader. op. cit., p. 10. 380
Idem. 381
Hartmut Kärner. Movimentos sociais: revolução no cotidiano. in Ilse Scherer-Warren e Paulo J. Krischke,
organizadores. Uma revolução no cotidiano? Os novos movimentos sociais na América do Sul. São Paulo:
Brasiliense, 1987, p. 33-34. 382
Nas palavras de Paul Singer: “O processo político e o processo econômico sempre se condicionam
mutuamente, mas esse intercondicionamento foi particularmente intenso durante o regime militar por ser um
regime de força, que tornava o processo político opaco, com a imprensa sob censura, inclusive no terreno da
economia”. Cf. Paul Singer. O processo econômico. in Daniel Aarão Reis, coordenador. Modernização, ditadura
e democracia (1964-2010). Rio de Janeiro: Objetiva, 2014, p. 199.
134
o país às dinâmicas de um novo liberalismo econômico com amplas implicações sociais e
políticas, sendo a desvalorização do trabalho uma das mais graves383
. Na realidade,
Essa ampla desvalorização do trabalho foi o meio de tornar o Brasil
competitivo em face de economias mais modernas, desenvolvidas e
tecnificadas. Foi também o meio de desencadear mecanismos de mercado
como reguladores do protesto social. Portanto, um conjunto de fatores
econômicos e políticos engendrou a metamorfose de parte da classe
trabalhadora em excluídos. E, portanto, à diluição da identidade de
trabalhador na figura do trabalhador familiar ciclicamente excluído384
.
Analisando o período que foco, Ilse Scherer-Warrer menciona que a crise na
organização política, imediatamente após o golpe militar de 1964, pode representar, de forma
mais geral, o marco de separação entre o que comumente se denomina “movimentos sociais
tradicionais” e o surgimento de novas formas de organização ou o novo caráter de algumas
das antigas organizações populares385
. Aprofundando os termos da distinção, a autora
argumenta que, como característica desses “novos” movimentos, observa-se seu esforço para
romper com os esquemas populistas do passado, para a criação de formas comunitárias de
participação direta das bases no nível da reflexão, da decisão e da execução, estreitando,
assim, a distância entre a base dos movimentos e sua direção. Assim sendo, esses “novos”
movimentos reivindicam a autonomia frente ao Estado e partidos políticos, qualificando a
cidadania como um direito do povo, numa situação de um capitalismo particularmente
excludente386
.
A novidade, neste caso, expressa a diversificação da realidade social e experimentação
de formas degradadas de vida, resultado dos processos econômicos em cena no período pós-
1964. Como advertiu Martins, a mudança social acabou por sobrepor o excluído ao
trabalhador, trazendo para o primeiro plano a família, a desagregação familiar, o mendigo, a
criança de rua, o desempregado, o morador precário, o sem-terra387
. A particularidade social
dos “excluídos”, argumenta o autor, é o fato de não constituírem-se protagonistas e nem
realizadores de uma contradição interna no processo produtivo. Na realidade, encontram-se à
margem do processo de reprodução ampliada do capital, na medida em que a reprodução se
383
José de Souza Martins. op. cit., p. 33-34. 384
José de Souza Martins. op. cit., p. 34. 385
Ilse Scherer-Warrer. O caráter dos novos movimentos sociais. in Ilse Scherer-Warren e Paulo J. Krischke,
organizadores. Uma revolução no cotidiano? Os novos movimentos sociais na América do Sul. São Paulo:
Brasiliense, 1987, p. 42. 386
Idem. 387
José de Souza Martins. op. cit., loc. cit.
135
dá sem sua participação direta, distintamente do trabalhador, que integra, por dentro, tal
processo. Por esta razão, as ações reivindicatórias dos marginalizados, e em seu nome, são de
ordem integrativa, buscando sua inserção na sociedade que o marginalizou388
.
A dispersão e a volatilidade são características que qualificam esses sujeitos sociais,
segundo os argumentos apresentados por Ana Maria Doimo. A autora defende que,
constituindo uma base social dispersa, não vinculada a qualquer relação social fundamental,
os “excluídos” acabaram ocupando, por assim dizer, uma posição liminar entre o Estado, o
mercado e a cultura. Neste sentido, ao encontrarem-se desprendidos do processo produtivo e
do mercado de trabalho, eles caíram num universo pulverizado de carências – ora referidas ao
Estado, ora ao mercado e ora aos padrões culturais. Revela-se, como conseqüência, um estado
que a autora qualifica como de anomia ideológica, definido pela ambigüidade dos conflitos e
o seu caráter virtualmente pendular e volátil389
.
Com argumento semelhante, Martins afirma que o “excluído” é duplamente capturado
pela sociedade que o rejeita. Por um lado, como consumidor, ainda que marginal, já que suas
necessidades estão limitadas ao que pode ser satisfeito pelos resíduos do sistema. Por esta
razão, suas necessidades não o lançam para além do atual, resultando na afirmação da
sociedade de consumo, seus valores e ideais. Por outro lado, é capturado porque, segundo
compreende o autor, de seu imaginário includente e cúmplice decorrem formas de protesto
social que se pautam pela demanda de realização dos valores e possibilidades reprodutivos da
sociedade que o marginaliza390
. Com efeito, neste universo sociopolítico ideologicamente
anômico,
a) Ora o Estado é contestado em razão das dificuldades de acesso ao
sistema de decisões, ora é legitimado porque dele se espera função
provedora; b) ora a acumulação privada e o mercado são contestados por seu
perfil excludente, ora são requeridos para que irriguem o fundo público, do
qual dependem para o atendimento de suas carências. Ademais, por estar
sujeita a agenciamentos de toda ordem, inclusive por instituições que se
estruturam por valores morais ou mesmo privatistas, ora pode integrar
movimentos virtuosos, estabelecidos pelo diálogo com a cultura da
igualdade e dos direitos de cidadania, ora pode dar origem a organizações
perversas que se estabelecem na interação com o mundo da violência e da
intolerância391
.
388
Ibidem, p. 38. 389
Ana Maria Doimo. op. cit., p. 62. 390
José de Souza Martins. op. cit., p. 34. 391
Ana Maria Doimo. op. cit., loc. cit.
136
Por sua complexidade e aspectos correspondentes, as reivindicações políticas desses
“sujeitos difusos” chamaram a atenção da intelectualidade acadêmica, que desenvolveu toda
uma produção teórica enfocada no desvendamento dos novos traços das ações que emergiam.
Com o seu olhar voltado para os trabalhos sobre os movimentos urbanos, Vera da Silva Telles
aponta alguns elementos socialmente relevantes que surpreenderam os intelectuais
acadêmicos e estimulou análises científicas: (1) uma “sociedade civil” que se movimentava,
inesperadamente, num contexto caracterizado pela normatividade tecnocrática e repressora
que despolitizava e privatizava a vida social; (2) a emergência de novos atores quando isso
parecia pouco provável de acontecer; (3) práticas político-organizativas que se desdobravam
em espaços inusitados, à margem dos canais tidos como próprios para sua articulação. Por
tudo isso, e em meio a esse processo, os trabalhadores e marginalizados pareciam demonstrar
uma considerável capacidade de auto-organização e autodeterminação, surpreendentemente,
diante do Estado repressor, que surgia em 1964392
.
Ana Maria Doimo argumenta que os militantes envolvidos nos movimentos populares
do período em foco, ao interpretar as coordenadas estruturais do seu tempo, ao processar as
novas influências intelectuais e correntes européias de pensamento, ao estabelecer um diálogo
crítico com a tradicional cultura autoritária brasileira, bem como ao resgatar e re-valorizar
outros traços da tradição cultural (comunidade, relações interpressoais, etc.), esses atores
“recuperaram de tal sorte a capacidade ativa do „povo‟ que conseguiram não só colocá-lo no
centro da elaboração teórica como promovê-lo a personagem central da vida política” 393
.
Assim, segundo a autora, diante do Estado, das instituições de representação política, das
vanguardas e de qualquer controle centralizado, a voz do “povo” começa paradoxalmente a
ser ouvida ainda no início da década de 70, “durante o período mais recrudescido do regime
militar – o mesmo que havia, desde 1964, subordinado a nação à coerção do Estado e
eliminado o povo em nome de outra ideologia, a da „segurança nacional‟” 394
.
Em seu diagnóstico, Doimo observa que, processando a emergente crise do marxismo
frente às derrotas impostas pela repressão, segmentos da intelectualidade se debruçam sobre a
obra de Gramsci e descobrem o conceito de sociedade civil e o valor político do senso
comum395
. Ao mesmo tempo, segmentos da esquerda incorporam a “filosofia da práxis”
392
Vera da Silva Telles. Movimentos sociais: reflexões sobre a experiência dos anos 70. in Ilse Scherer-Warren e
Paulo J. Krischke, organizadores. Uma revolução no cotidiano? Os novos movimentos sociais na América do
Sul. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 55. 393
Ibidem, p. 79. 394
Ibidem, p. 76. 395
Essa “reaparição da sociedade civil”, nas palavras de Vera Telles, se dá não mais como tradicionalmente
ocorreu na prática e no pensamento político brasileiro, isto é, enquanto evidência de sua impotência, por onde se
137
gramsciana e saem a campo para construir “trincheiras” para a “guerra de posições”. Cabe
destacar também a influência exercida pela obra do pedagogo Paulo Freire, promovendo-se,
através de seus métodos de “educação popular”, estratégias de aproximação com as
populações das periferias urbanas e do campo, agregando “novos valores ético-políticos como
a „democracia de base‟ e a „autonomia‟, dentro da metáfora do „povo como sujeito da própria
história‟” 396
. Neste mesmo momento, a Igreja Católica, apoiada nas reformas internas
decorrentes do Concílio Vaticano II, abre-se, concretamente, para novas experiências
organizativas e teológicas, posicionando-se em prol da autonomia das organizações de base
contra o avanço da racionalidade estatal. Como consequência, surge um ecumenismo de perfil
secularizado, de abrangência nacional e internacional, disposto a dar sua contribuição para
experiências de “desenvolvimento participativo” no âmbito da sociedade civil, dando origem,
com efeito, às chamadas organizações não-governamentais, amplamente estimuladas, a partir
de então, como um novo formato de participação sócio-política397
.
Eder Sader identifica o conjunto de transformações na postura militante dos
movimentos populares das décadas de 1970/80 como parte de redefinições institucionais
internas às próprias agências de mediação dedicadas à significação e orientação dos processos
sociais em curso no período. Essas agências conformam o que o autor qualificou como
“matrizes discursivas” e vivenciaram, no período em destaque, uma realidade de crise
institucional que abria caminho para um conjunto de novas elaborações e relações com os
sujeitos para os quais se voltavam. Sader assume a ideia de que os sujeitos não produzem
livremente seus discursos, recorrendo, por isso, a matrizes discursivas constituídas e, em
primeiro lugar, à matriz da própria cultura, reproduzida através de uma pluralidade de
agências sociais. Inseridas neste universo, embora participando da cultura instituída, tais
agências expressam práticas de resistência e elaboram projetos de ruptura, abrindo espaço
para a constituição de experiências até então silenciadas ou interpretadas de outro modo398
.
Com efeito,
As matrizes discursivas devem ser, pois, entendidas como modos de
abordagem da realidade, que implicam diversas atribuições de significado.
Implicam também, em decorrência, o uso de determinadas categorias de
nomeação e interpretação (da situação, dos temas, dos atores) como na
referência a determinados valores e objetivos. Mas não são simples ideias:
justificava e se exigia a ação de um “Estado protagônico”, sujeito exclusivo de uma ação capaz de eficácia
histórica: “A sociedade reaparece como lugar da política, ou melhor, como alternativa política frente ao Estado”.
Cf. Vera da Silva Telles. op. cit., p. 60. 396
Ana Maria Doimo. op. cit., p. 129-130. 397
Ibidem, p. 76. 398
Eder Sader. op. cit, p. 142.
138
sua produção e reprodução dependem de lugares e práticas materiais de onde
são emitidas as falas399
.
Este autor identifica, para o período em questão, três “matrizes discursivas” centrais,
elaboradoras de sentido e significação para as ações dos movimentos sociais: a Igreja, os
sindicatos e as esquerdas seculares de influência marxista. Como resultado da crise,
mencionada pelo autor, da Igreja Católica, que perdia influência junto ao povo, surgiam as
CEBs. De grupos de esquerda desarticulados politicamente pela ditadura, surgiam “novas
formas de integração com os trabalhadores”. Da estrutura sindical esvaziada por falta de
função, surgia um “novo sindicalismo”. Comparando as três “matrizes discursivas”, Sader
argumenta que tanto a sua incidência social quanto a consistência argumentativa são
significativamente desiguais. Neste sentido, a “matriz discursiva” da Teologia da Libertação,
presente nas CEBs, tem suas raízes mais profundas na cultura popular, beneficiando-se do
“reconhecimento imediato” através da religiosidade do povo. Por sua vez, a matriz marxista,
não dispondo da mesma base, enfrentava uma significativa crise, resultado de uma
desarticulação política, trazendo, por outro lado, um consistente aporte teórico sobre o tema
da exploração e da luta anticapitalista. Enquanto isso, a matriz sindicalista retira sua força do
seu lugar institucional, isto é, do seio dos conflitos trabalhistas onde estabelece seu
agenciamento político. Com efeito, os movimentos sociais “se constituem recorrendo a tais
matrizes, que são adaptadas a cada situação e mescladas também entre si na produção das
falas, personagens e horizontes que se mostraram no final dos anos 70” 400
.
Fazendo parte deste corpo de movimentos que emergia a partir dos anos de 1970, as
ONGs cumpriram um importante papel na organização e fortalecimento dos movimentos
populares brasileiros, projetando-se, de forma significativa, para as décadas seguintes. Sua
atuação se confundia, em certa medida, com o trabalho exercido pelos movimentos sociais –
seja por seus propósitos, seja pelas estratégias voltadas à mobilização e organização das
camadas populares. Mostrava-se evidente, no período citado, o caráter movimentalista de
grande parte dessas organizações, tendo elas atuado na luta contra o regime militar e em prol
da democratização do país. Assim como os movimentos populares, as ONGs também
atuavam por fora dos canais convencionais de participação política, não se pautando por
critérios tradicionais de representação, direcionando suas ações, ao mesmo tempo, sobre uma
base social dispersa e indefinida401
.
399
Ibidem, p. 143. 400
Eder Sader. op. cit., p. 145. 401
Ana Maria Doimo. op. cit., p. 152.
139
Com base no breve panorama, aqui apresentado, sobre a emergência movimentalista
dos anos 1970/80, parece-nos profícuo situar o conjunto de ações, discursos e práticas sociais,
engendradas sob a perspectiva do “povo como sujeito de sua própria história”, enquanto
iniciativas constitutivas de um “campo ético-político”, seguindo a proposta de Ana Maria
Doimo402
. Este campo, como vimos, fundamenta-se na redefinição de padrões de ação e
discursos que orientavam, até então, as práticas sociais das organizações e movimentos,
forjando-se, neste sentido, um novo quadro de referências, isto é, um conjunto de códigos
ético-políticos alicerçados em princípios como o da autonomia, buscados através da
valorização dos conhecimentos próprios dos sujeitos sociais, bem como a negação de formas
hierarquizadas e centralizadas de representação político-institucional.
Os códigos ético-políticos desenvolvidos como parte do referido campo passam a
informar as práticas dos movimentos sociais e organizações, instituindo-se, como
consequência, discursos e estratégias organizativas adequadas aos princípios democrático-
populares assumidos. Neste sentido, na prática, são desenvolvidas e estimuladas iniciativas
como a organização de espaços coletivos de deliberação (assembléias, encontros, fóruns, etc.),
disseminação de dinâmicas voltadas à troca de experiências e divulgação dos “saberes
populares”, elaboração de meios alternativos de comunicação (boletins, cartilhas, etc.), entre
outras formas descentralizadas de articulação política e difusão de conhecimentos.
O esforço de identificação e caracterização deste campo ético-político movimentalista,
que temos empreendido, justifica-se, nesta tese, pela presença de alguns de seus traços
fundamentais no discurso e na prática cotidiana dos integrantes da ASA Brasil, como
buscaremos demonstrar no próximo item. Problematizando esta hipótese, identificaremos
estes traços e discorreremos sobre algumas possíveis causas e implicações resultantes dessa
presença na configuração das estratégias voltadas à construção da convivência com o
semiárido.
3.2. O processo de formação da ASA e os horizontes da autonomia
402
Ana Maria Doimo. op. cit., p. 123-150. Segundo a autora, “Perceber o MP (Movimento Popular) como um
campo ético-político significa, pois, captar a recorrência de uma linguagem comum, seu ethos: uma espécie de
simbolismo verbal provedor do sentimento de pertença a um mesmo espaço compartilhado, ainda que diverso
quanto à base social e quanto às demandas formuladas. Saber „quem sou eu‟, num campo de múltiplos
movimentos dispersos no tempo e no espaço, significa, enfim, reconhecer-se como parte de um conjunto
igualmente compartilhado de valores que indicam „como devo agir‟ e „para onde vou‟”. Cf. Ibidem, p, 126.
140
Partimos, neste item, do argumento segundo o qual o processo de formação da ASA se
dá mediante a incorporação de um quadro de referências forjado ao longo das décadas de
1970/1980, num contexto de redefinições institucionais no âmbito de organizações e
movimentos sociais brasileiros em sua relação com o Estado. Naquele momento, como vimos,
tratava-se de construir canais descentralizados e alternativos de representação política
direcionados à mobilização de um “novo” sujeito social emergente, sujeito este informado por
experiências concretas de exclusão, violência, pobreza e miséria – seja no campo, seja na
cidade. Com efeito, definindo-se este sujeito como o protagonista de um potencial projeto
político disruptivo, num contexto autoritário, as agências de mediação, dedicadas à
organização das camadas populares, bem como ao direcionamento de suas demandas para
canais de expressão político-movimentalistas, buscaram desenvolver formas de aproximação
com o “povo”, instituindo um conjunto de “códigos ético-políticos” adequados às condições
então vigentes.
É como parte deste processo que emergiu, no período em destaque, um conjunto
amplo e diverso de movimentos populares que expressaram reivindicações apontando para a
autonomia enquanto um horizonte fundamental. Por um lado, autonomia referida ao Estado –
marcado tanto pelo histórico clientelismo paternalista do período pré-1964, quanto pelo
autoritarismo centralizador do regime ditatorial. Por outro, a autonomia almejada defrontava-
se com os tradicionais canais de representação política e à institucionalidade associada aos
partidos, ao sindicalismo e à Igreja católica tradicional. Por estes caminhos, e como parte de
um conjunto de reformas internas às “matrizes discursivas” do sindicalismo, catolicismo, bem
como de setores mais ortodoxos ligados ao marxismo, a busca pelo desenvolvimento de
formas organizativas voltadas à aproximação com o “povo” acabaram por configurar um
campo ético-político inovador, encontrando na dimensão da vida cotidiana do “excluído” um
referencial fundamental para a luta desenvolvida nos anos 1970 e 1980. Naquele momento, o
horizonte político da autonomia mobilizava o campo ético-político movimentalista
fundamentalmente pelas “bases”, definindo, assim, um posicionamento politicamente
descentralizador que levava ao acirramento das tensões entre sociedade civil e Estado, já
postas pelo próprio regime autoritário.
Christian Mirza, em seu estudo dedicado ao entendimento da relação entre
movimentos sociais e Estado na América Latina, observa que as democracias restauradas após
os períodos autoritários, sobretudo na etapa imediatamente posterior ao fim das ditaduras, se
associaram à emergência de novos atores sociais e ao ressurgimento simultâneo dos
141
movimentos sociais “tradicionais”, que passaram a assumir papeis mais ativos e
protagônicos403
. Pouco tempo depois, no início dos anos 1980, em vários países latino-
americanos se assistiu ao gradativo refluxo da ação social coletiva, o retrocesso de
mobilizações e protestos, bem como a redução da centralidade do movimento social a favor
do retorno ao primeiro plano dos partidos políticos, absorvendo os núcleos mais militantes e
ativos dos setores sociais, deslocando, assim, o eixo da ação coletiva, subordinando as lógicas
e estratégias dos movimentos sociais àquelas emanadas da matriz político-institucional do
Estado404
.
A partir dos anos 1990, segundo o autor, a ação social coletiva adquiriu uma natureza
mais sociopolítica, ocupando o espaço da política institucional de modo muito mais forte do
que nas décadas anteriores. A partir de então, as instituições democráticas, recentemente
restabelecidas, foram submetidas a uma interpelação mais direta, voltada não apenas para
apaziguar as demandas por salário, terra, emprego, etc., mas, sobretudo, pelo intento de
restabelecer e questionar certa ordem definida na esfera do poder político. Por isto, para
Mirza, entre outras razões, torna-se mais explícita a correlação entre ação social coletiva e
sistemas políticos, estreitando-se as relações entre movimentos sociais e Estado. Neste
sentido, configura-se uma intersecção de ambos os espaços do público, que são redefinidos
pela emergência do que o autor qualificou como uma “cidadania organizada”, formal ou
informalmente, que passa a re-significar o valor da participação na democracia405
.
É como parte deste processo que se deu, a partir dos anos 1990, a disseminação de
ONGs, no Brasil, voltadas ao direcionamento dos fundos estatais para demandas sociais das
camadas populares, resultando no estreitamento de vínculos com o Estado para mediar a
execução de políticas públicas. Ao mesmo tempo, esta tendência responde também às novas
orientações voltadas para a desregulamentação do papel do Estado na economia e na
sociedade como um todo, transferindo responsabilidades do Estado para as “comunidades”
organizadas, com a intermediação dessas organizações, em trabalhos de parceria entre o
público estatal e o público não-estatal e, às vezes, também se contando com a própria
403
Christian Adel Mirza. Movimientos sociales y sistemas políticos en América Latina: la construcción de
nuevas democracias. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO, 2006, p. 41. 404
No caso brasileiro, a consolidação do Partido dos Trabalhadores (PT) parece-nos um exemplo elucidativo.
Sobre a formação deste partido e suas relações com os movimentos populares e sindicatos que o precederam, cf.
Pedro Floriano Ribeiro. Dos sindicatos ao governo: a organização nacional do PT de 1980 a 2005. São Carlos:
Edufscar, 2010 e Lincoln Secco. História do PT: 1978-2010. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012. 405
Cf. Christian Adel Mirza. op. cit., p. 42-43.
142
iniciativa privada406
. É, precisamente, neste contexto e sobre estas bases que surge a ASA
Brasil.
Discutindo, a seguir, o processo de formação da ASA, argumentaremos que sua
trajetória política é perpassada por momentos de tensão e alinhamento em relação ao Estado.
Veremos que as transições entre os distintos pólos (tensão/alinhamento) alimentam a
reivindicação por autonomia, por parte dos integrantes da Articulação, sob uma dupla
perspectiva. Por um lado, naqueles momentos de pleno funcionamento da parceria entre ASA
e Estado, na execução das políticas públicas para a convivência com o semiárido, evidencia-
se, predominantemente, a autonomia conquistada pelos camponeses, como resultado das
ações estabelecidas, isto é, como um efeito da implantação das políticas de convivência com o
semiárido. A quebra de antigas relações clientelistas de dependência política do campesinato
frente às oligarquias locais e regionais, como decorrência da construção das cisternas e outras
alternativas de captação de água, é ressaltada, valorizando-se as conquistas obtidas pelas
políticas públicas realizadas. Neste caso, os traços movimentalistas da Articulação
manifestam-se, predominantemente, num âmbito interno, isto é, no trabalho cotidiano dos
seus membros junto aos camponeses do semiárido. Deste modo, em tempos de pleno
alinhamento da ASA com o Estado, as expressões político-movimentalistas são identificáveis
na estrutura e dinâmicas organizativas assumidas pela Articulação, no vocabulário do quadro
técnico e de militância, nas estratégias de transmissão de conhecimentos e informações, nas
orientações voltadas à viabilização de “trocas de experiências” e aproximação com o “povo”,
etc. Veremos ainda que esta perspectiva se evidenciou, em particular, nos dois mandatos da
gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT),
manifestando uma maior coesão entre o discurso governamental oficial e o dos integrantes da
Articulação.
Por outro lado, nos momentos de relativa tensão com o Estado – expressos, sobretudo,
na forma de atos de protesto, textos publicados em boletins, além de campanhas
informativas407
– a militância e o quadro técnico da ASA manifestam uma perspectiva da
autonomia referida à própria Articulação frente ao Estado, num viés que qualificamos como
“autonomia de movimento”. Neste caso, sobretudo quando as políticas de convivência com o
406
Maria da Glória Marcondes Gohn. Os sem-terra, ONGs e cidadania: a sociedade civil brasileira na era da
globalização. 3a ed. São Paulo: Cortez, 2003, p. 34. 407
Podemos mencionar dois exemplos: (1) a campanha “Não troque seu voto por água”, lançada em 2012, com o
propósito de valorizar a autonomia dos camponeses sobre o voto; e (2) “Cisternas de Plástico: somos contra!”,
tendo esta como objetivo alertar a sociedade para os riscos e problemas decorrentes da incorporação das
cisternas de polietileno no âmbito das políticas de convivência com o semiárido, medida realizada sob a gestão
da presidenta Dilma Rousseff.
143
semiárido estão sob ameaça, no universo político institucional, como ocorreu em alguns
momentos do primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff (PT), os traços
movimentalistas da Articulação se expressam publicamente, ressaltando-se, nos discursos e
práticas do quadro da ASA, a capacidade de mobilizar e organizar politicamente o
campesinato do semiárido para pressionar e enfrentar o Estado como meio de garantia das
políticas de convivência com o semiárido.
3.2.1. Das articulações à institucionalização da ASA
A ASA constitui-se um momento particular de um processo político-organizativo mais
antigo, processo este perpassado pelo amplo acúmulo de experiências e conhecimentos sobre
a realidade do semiárido. Pelo menos desde os anos 1980, como forma de resistir às políticas
oficiais de “combate à seca”, assentadas nas grandes intervenções hídricas, um conjunto de
ONGs, grupos de assessoria técnica, movimentos sociais, coletivos, associações, sindicatos e
grupos religiosos atuavam em prol da criação e disseminação de tecnologias e práticas
alternativas para lidar, de forma descentralizada, com a problemática da seca. Estas
experiências, mediante uma perspectiva que valorizava os “saberes locais”, passaram, aos
poucos, a se constituir um referencial concreto que apontava para a possibilidade de redefinir,
efetivamente, as políticas públicas dirigidas aos sertanejos nos adversos períodos de estiagem.
As calamidades resultantes da seca ocorrida entre 1991-1993 – marcada por saques,
perdas irreparáveis nas lavouras, bem como a morte de animais e pela migração de
camponeses408
– expressaram as insuficiências das políticas públicas oficiais de “combate à
seca”, então vigentes, e abriu espaço para a mobilização política das organizações e
movimentos que já atuavam em escala local ou regional pela construção da convivência com
o semiárido. Diante do quadro preocupante, fruto de um período de três anos seguidos de
estiagem, a articulação das organizações existentes e a troca de conhecimentos sobre as
experiências acumuladas localmente foram o caminho encontrado para uma busca efetiva por
soluções.
Em 1991, foi realizado o Fórum Pernambucano de Enfrentamento à Problemática da
Seca, o Fórum Seca, constituindo-se este uma importante iniciativapara articular estratégias
408
Roberto Marinho da Silva et. al., citando dados da Sudene, afirmam que “[...] em setembro de 1993, a seca
atingia 70% da região Nordeste, com uma área de 1.162.603 km2, abrangendo 1611 municípios, com uma
população rural de 11.027.703 habitantes”. Cf. Roberto Marinho da Silva; Maria Célia de Carvalho Formiga;
Maria Helena Spyrides Cunha. Trabalhadores rurais na seca de 1992-1993 no RN: políticas públicas e luta pela
sobrevivência. X Encontro Nacional de Estudos Populacionais; 1996: Anais Eletrônicos; 2011. p. 337-362.
144
de convivência com a seca e fomentar a mobilização política das organizações atuantes no
semiárido na busca coletiva por políticas públicas409
. Ao mesmo tempo, no início da década
de 1990, a Paraíba já era um importante lócus de delineamento de estratégias e ações de
convivência com o semiárido. Neste estado, o importante trabalho empreendido pela
Comissão Pastoral da Terra (CPT)410
, em especial nas mesorregiões da Mata Paraibana e
Sertão, somava-se à ativa militância dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs)
articulados no Pólo Sindical da Borborema e de ONGs como a Assessoria de Projetos em
Agricultura Alternativa (AS-PTA), atuantes na mesorregião do Agreste.
Agravando-se o quadro da estiagem iniciada em 1991, centenas de camponeses do
semiárido, articulados por 112 organizações e movimentos, ocuparam, em 1993, a sede da
Sudene, em Recife-PE. O objetivo da ocupação era, fundamentalmente, pressionar o Estado
para a obtenção de soluções definitivas às dificuldades de abastecimento e acesso à água.
Como conseqüência, a articulação dessas entidades possibilitou a realização de um seminário,
em maio de 1993, criando-se, assim, o Fórum Nordeste – um espaço destinado à elaboração
conjunta de um “programa de ações permanentes, apontando medidas a serem executadas
pelo governo para garantir o „desenvolvimento sustentável‟ do semiárido” 411
.
No mesmo ano, em 1993, foi realizado um seminário sobre a convivência com a seca
em Campina Grande-PB, contando com a participação das seguintes entidades: Departamento
Nacional de Trabalhadores Rurais (DNTR)/Central Única dos Trabalhadores (CUT-PB);
Centro de Ação Cultural (CENTRAC); Centro de Educação Popular e Formação Social
409
Em boletim de divulgação da ASA, ressalta-se, a partir de entrevistas com lideranças da própria organização,
a relevância o Fórum Seca no processo de configuração da articulação: “„As articulações em Pernambuco se
iniciam antes da existência da ASA, no início dos anos 1990, com a necessidade de se discutir políticas públicas
para o Semiárido‟, explica um dos coordenadores da Articulação do Semiárido Pernambucano (ASA/PE),
Reginaldo Alves. „As mobilizações em Pernambuco como o Fórum Seca foram muito importantes para a
formação da ASA. Foi nesse tempo que a semente foi plantada‟, conta José Patriota, secretário da Articulação
Regional do Estado de Pernambuco”. Cf. ASA Pernambuco. Começo de Conversa(Boletim). Jan./2010. Ano 01,
n. 1. 410
A CPT Nacional foi criada em 1975, no Encontro da Pastoral da Amazônia, em Goiânia-GO, tendo este
evento sido organizado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Na Paraíba, em 1976, foi
criada a Pastoral Rural, que, em 1988, neste estado, transformou-se em Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Refletindo sobre a particularidade da ação desta entidade, na Paraíba, Moreira e Targino afirmam: “A postura da
CPT na Paraíba tem-se pautado na defesa intransigente dos pobres da terra. Seu trabalho não se resume ao
simples „apoio à luta‟. Ele é bem mais amplo e embute: a prestação de serviço de assessoria jurídica; a denúncia
de violência; o acompanhamento quase diário dos trabalhadores em conflito; a divulgação dos fatos em nível
local, nacional e internacional; a organização das romarias da terra; o trabalho de formação da consciência
política dos trabalhadores e uma assistência infraestrutural (alimentação, transporte, colchões, lonas) por ocasião
dos acampamentos, além de assistência médica e cobertura financeira quando se faz necessário”. Cf. Emilia
Moreira e Ivan Targino. Capítulos de Geografia Agrária da Paraíba. João Pessoa: Editora UFPB, 1997, p. 306. 411
Ghislaine Duque. “Conviver com a seca”: contribuição da Articulação do Semi-Árido/ASA para o
desenvolvimento sustentável. Desenvolvimento e meio ambiente (UFPR). 2008, p. 136.
145
(CEPFS); Programa de Aplicação de Tecnologias Apropriadas às Comunidades (PATAC);
Programa de Promoção e Ação Comunitária (PROPAC)412
.
Foi a partir deste seminário que surgiu, já em 1993, a Articulação no Semiárido
Paraibano (ASA Paraíba). A primeira coordenação da ASA-PB foi integrada pela CPT-Sertão,
Departamento Estadual de Trabalhadores Rurais (DETR/CUT), Pólo Sindical do Agreste e do
Brejo, PATAC, CENTRAC, Serviço de Educação Popular (SEDUP) e o Movimento de
Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR) 413
.
Neste cenário, o antagonismo de perspectivas entre as organizações que atuavam no
semiárido e as políticas oficiais de “combate à seca” vai se tornando mais evidente. A
“indústria da seca”, a troca de água por voto, a reprodução de uma imagem fatalista sobre a
realidade do semiárido, entre outros aspectos que definiam o quadro político dessa porção do
país, particularmente nos períodos de estiagem, passaram a ser duramente criticados pelas
organizações e movimentos sociais. Com efeito, frente às políticas governamentais
estabelecidas até a década de 1990, que consistiam em ações paliativas e de “caráter
emergencial”, os camponeses e suas organizações criavam meios de estabelecer estratégias
permanentes. Neste sentido, as mobilizações políticas, sobretudo em 1993, somadas às
diversas lutas populares e estratégias mais localizadas, “apontaram para a necessidade de
mudanças profundas da política agrária e agrícola da região, bem como nas estruturas de
dominação que são reforçadas nas épocas de estiagem” 414
. Analisando os efeitos políticos das
alternativas de convivência com o semiárido, Waldir Carneiro, integrante do PATAC e
membro da coordenação estadual da ASA Paraíba, afirma:
E aí a perspectiva é sempre de quebrar essa lógica da concentração. Então,
água no semiárido é poder econômico e poder político. Quem tinha água, a
SUDENE financiava, o cara fazia, você ia pegar a água, “então é o
seguinte... a troca é do voto”. Eu me deparei, nessa seca aí de 1993, o
vereador era dono de carro pipa e esse carro pipa ganhava do governo do
Estado para botar água e o motorista ia lá levando a água, com o caminhão
dele locado, mas ele ia na porta do carona. Ou seja, quando chega para botar
para a família, mesmo que ele nem abra a boca, todo mundo sabe que o
caminhão é dele e ele está ali. Então, o poder político de coronelismo se
firmou também nesse domínio da água na região, muito fortemente. Então,
distribuir a água de forma que cada família tenha a sua é uma questão de
você trabalhar a democratização do acesso. [...] Ontem as pessoas estavam
412
Flávio Lyra de Andrade e Paula Vanessa Mesquita Queiroz. Articulação no semiárido Brasileiro – ASA e o
seu Programa de Formação e Mobilização para a Convivência com o Semiárido: a influência da ASA na
Construção de Políticas Públicas. in Ângela Küster e Jaime Ferre Marti, organizadores. Políticas públicas para o
semiárido: experiências e conquistas no nordeste no Brasil. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer, 2009, p. 34. 413
Idem. 414
Roberto Marinho da Silva et. al. op. cit., p. 339.
146
muito atreladas, não podiam nem dizer em quem votavam, senão não tinham
água, senão não tinha emergência415
.
Neste sentido, na medida em que reivindicavam e formulavam soluções mais eficazes
às dificuldades enfrentadas, os camponeses e suas organizações passavam a questionar uma
lógica de desenvolvimento econômico e social alicerçada na grande propriedade e na
concentração de poder nas mãos dos latifundiários. Ao configurar alternativas que apontavam
para a desconcentração hídrica, mediante a construção de estratégias políticas e tecnologias
alternativas, as organizações e movimentos sociais desenhavam, efetivamente, uma forma
distinta de lidar com a problemática da seca, deslocando o lugar de sua “solução” das elites
agrário-regionais para os próprios camponeses. Se as políticas de “combate à seca”, como
vimos no primeiro capítulo desta tese, apoiavam-se numa representação social dos sertanejos
enquanto vítimas da natureza, sob a construção da “convivência com o semiárido”, por sua
vez, a potencialidade social dos camponeses era evidenciada, entendendo-se, neste sentido,
que através de sua organização política e de práticas sociais inspiradas pelos seus “saberes
tradicionais”, estes sujeitos poderiam, enfim, se afirmar como “sujeitos de sua própria
história”.
Por este caminho, a explicitação dos dois pólos referidos à problemática da seca –
combate versus convivência – passou a expressar, no início da década de 1990,
posicionamentos sociais antagônicos, tendo a água (sua concentração ou desconcentração)
como a base de sua definição. Neste sentido, a luta pela desconcentração hídrica implicava a
redefinição das relações de poder entre os camponeses e as elites agrárias locais e regionais, o
que exigia para as organizações e movimentos sociais a construção de uma agenda concreta
de alternativas a serem implantadas e disseminadas no semiárido. Diante disto, o propósito
assumido foi o de construir um projeto coletivo de base camponesa, mobilizando ações e
construindo tecnologias, respeitando as especificidades de ordem ambiental que constituem o
semiárido brasileiro, articulando-se a ideia da “convivência entre o homem e o meio ambiente
árido, com o desenvolvimento de novas tecnologias de captação e armazenamento de água de
chuva, o manejo sustentado da caatinga, as tecnologias alternativas de produção, a educação
contextualizada, entre outros” 416
.
415
Waldir Cordeiro. PATAC e Coordenação Estadual ASA Paraíba, em entrevista concedida ao autor em
abr./2014. 416
Mariana Moreira Neto. Outro Sertão: fronteiras da convivência com o Semiárido. Recife: Fundação Joaquim
Nabuco; Editora Massangana, 2013, p. 116.
147
Um salto importante para o fortalecimento da articulação do conjunto de organizações
que promoviam estratégias de convivência com o semiárido ocorre durante a realização da 3ª
Conferência das Partes da Convenção de Combate à Desertificação e à Seca – COP 3,
organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU), realizada no ano de 1999, em
Recife-PE. Foi no âmbito deste evento que as organizações existentes, em cada estado da
federação, se articularam, dando origem à ASA Brasil.
Na verdade, quando a gente fala “se criou a ASA” é “se institucionalizou”.
Porque, na verdade, as organizações que estavam ali já trabalhavam com
cisternas e com convivência com o semiárido há pelo menos dez, vinte anos.
E qual era a grande questão? Como é que essas organizações que
trabalhavam com o mesmo foco poderiam se unir para que juntas elas
tivessem mais força para, junto ao poder público, ter outros poderes para
poder desencadear os processos que achavam interessantes.417
Neste sentido, mobilizando experiências acumuladas de entidades e organizações dos
diversos estados atingidos pelos efeitos da estiagem, camponeses e organizações integraram-
se à COP 3 e promoveram o Fórum Paralelo da Sociedade Civil. Na ocasião, foi escrito o
documento intitulado Declaração do Semiárido, que passou a representar a síntese das
propostas e concepções em relação aos problemas encontrados, apontando algumas
perspectivas de soluções418
. Dois elementos foram considerados essenciais para as
transformações almejadas: “A conservação, uso sustentável e recomposição ambiental dos
recursos naturais do semiárido” e “a quebra do monopólio de acesso à terra, água e outros
meios de produção” 419.
Além disso, o documento apresenta seis princípios fundamentais que
passariam a servir, a partir de então, como balizadores das ações dos integrantes da ASA:
“conviver com as secas, orientar os investimentos, fortalecer a sociedade, incluir mulheres e
jovens, cuidar dos recursos naturais e buscar meios de financiamentos adequados” 420
.
O Fórum Paralelo da Sociedade Civil foi formado por organizações, entidades e
órgãos de diversos tipos, tendo em comum o esforço compartilhado para o desenvolvimento
de ações direcionadas ao fortalecimento da convivência com o semiárido. Participaram deste
evento grupos ligados a Igrejas Católicas e Evangélicas, ONGs de desenvolvimento e
ambientalistas, Sindicatos de Trabalhadores Rurais, movimentos sociais rurais e urbanos,
Agências de Cooperação nacionais e internacionais, Fundo das Nações Unidas para a Infância
417
Fernanda Cruz, Assessoria de Comunicação, ASA Brasil, em entrevista concedida ao autor em ago./2011. 418
Cf. Anexos – Documentos – “Declaração do Semiárido”. 419
Idem. 420
Idem.
148
(Unicef), Comitê de Oxford de Combate à Fome (Oxfam) e Serviço Alemão de Cooperação
Técnica e Social (DED). Segundo Rodrigo de Paula Assis, percebe-se, a partir deste
momento, “uma publicização da convivência com o semiárido, fazendo com que esse tema
passe da esfera particular para a esfera pública” 421
.
Na COP 3, a publicização da problemática da convivência com o semiárido se
estabelece mediante o resgate do acúmulo de experiências desenvolvidas por cada uma das
organizações e entidades participantes do Fórum Paralelo da Sociedade Civil. Essas
organizações elegeram, pois, as cisternas de placas como a ação mais importante para
alicerçar as discussões e proposições para o estabelecimento de estratégias de convivência
com o semiárido. Possuindo um baixo custo para sua construção e manutenção, a cisterna de
placas possibilita a captação de água dos telhados das casas, em épocas de chuva, a partir da
instalação de canos e de um reservatório com capacidade de armazenamento de 16 mil litros
de água (ver Foto 1, Foto 2, Foto 3 e Foto 4). Esta tecnologia possibilitava às famílias
beneficiárias o acesso, em períodos de estiagem, à água limpa e de boa qualidade para o
abastecimento doméstico, superando a necessidade das longas caminhadas para a busca desse
bem natural. Apoiando-se no baixo custo de sua reprodução e dos benefícios resultantes desta
tecnologia, as organizações articuladas na ASA delinearam uma proposta concreta, assumindo
o propósito de construir um milhão de cisternas no semiárido brasileiro.
Diante do propósito assumido, tornou-se necessário fortalecer a articulação das
entidades que integraram o Fórum Paralelo da Sociedade Civil. Com este objetivo, tais
organizações realizaram um encontro, em fevereiro de 2000, em Igarassu-PE, onde redigiram
a Carta de Princípios da articulação que estava se formando e discutiram aspectos
organizativos e políticos da ASA422
. Neste momento, formou-se um Grupo de Trabalho (GT)
para a elaboração de um Programa para a construção de um milhão de cisternas, atendendo,
assim, aos encaminhamentos definidos no Fórum Paralelo. Deste modo, surge o Programa
Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC).
421
Thiago Rodrigo de Paula Assis. Sociedade civil e institucionalização de políticas públicas: o caso do P1MC.
48º Congresso da Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural – SOBER; 25-28 julho
2010; Campo Grande; BR. Campo Grande: Anais Eletrônicos; 2010, p. 7. 422
Cf. Anexos – Documentos – “Carta de princípios da ASA”.
149
Foto 1– Processo de construção da cisterna – a base e as paredes. Foto: ASA Brasil.
Foto 2 – Processo de construção da cisterna – a estrutura de apoio da parte superior. Foto: ASA Brasil.
150
Foto 3 – O processo de construção da cisterna – disposição das placas e acabamento. Foto: ASA Brasil.
Foto 4 – A entrega da cisterna para a família beneficiada. Foto: ASA Brasil.
151
A construção das primeiras cisternas, através do P1MC, se deu como resultado de um
convênio junto ao Ministério do Meio Ambiente, ainda sob gestão do ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso, em 2000, para o atendimento a 500 famílias. Em 2001, outro convênio foi
firmado, desta vez com a Agência Nacional de Águas (ANA), para atender 12.400 famílias423
.
Como a ASA não possuía formalização jurídica, tendo se constituído, até então, como uma
articulação política, os convênios foram assinados pela Diaconia, uma ONG ligada às igrejas
evangélicas, sediada em Pernambuco. Rodrigo de Paula Assis observa que, até aquele
momento,
[...] a Articulação ainda era formada por um número reduzido de organizações,
não possuindo maior aproximação com estados como Minas Gerais, Espírito
Santo e Maranhão [...]. Mesmo nos estados do Nordeste a organização ainda
não era expressiva, com estados como Sergipe ainda não integrando a ASA.
Conforme declaração de um dos entrevistados, articulações estaduais só
existiam no Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará, com configurações e
número de organizações diferenciados424
.
Um passo importante foi, então, fortalecer as articulações políticas, em cada um dos
estados do semiárido brasileiro, canalizando as experiências existentes de convivência com o
semiárido para o interior da ASA. Como resultado desse esforço, o trabalho executado pela
ASA, a partir dos primeiros convênios, foi bem sucedido e resultou no fortalecimento da
Articulação e no reconhecimento público de sua capacidade para a execução de um programa
de grande alcance como o P1MC. Fomentando a construção de cisternas de placas, de
forma eficiente, num contexto de seca aguda, no semiárido brasileiro, a ASA obteve
rapidamente o reconhecimento da relevância social de seu trabalho, ganhando prêmios e
firmando novas parcerias425
. Entre estas novas parcerias, a Articulação estreitou laços com
órgãos como a Organização das Nações Unidas (ONU), Banco Mundial (BM), Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) – parcerias estas intermediadas pela Unicef.
A transição do governo de Fernando Henrique Cardoso para o de Luiz Inácio Lula da
Silva foi marcada pela consolidação da ASA enquanto organização política, estruturada de
forma a possibilitar a expansão do alcance de suas ações. As experiências iniciais com os
convênios realizados junto ao Ministério do Meio Ambiente ratificaram a viabilidade do
P1MC, em particular pelo baixo custo de implantação das cisternas, o equivalente a R$
423
Informação obtida a partir do Contrato de Parceria entre a ASA e a FEBRABAN, disponível em:
http://www.febraban.org.br/Arquivo/Servicos/RespSocial/Acordo.pdf (Acesso em ago./2015). 424
Thiago Rodrigo de Paula Assis. op. cit., p. 14. 425
A lista de prêmios obtidos pela ASA pode ser consultada em http://www.asabrasil.org.br/sobre-
nos/premios#categoria_img (Acesso em ago./2015).
152
2.080,00 por cada cisterna construída, incluindo-se, aqui, as diversas despesas com programa
(construção dos reservatórios, capacitação, comunicação, mobilização social, etc.).
A chegada de Lula na presidência da república, em 2003, intensificou ainda mais a
relação da ASA com o Estado. Estabeleceu-se, a partir de então, uma parceria direta da
Articulação com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS),
inicialmente através do Programa Fome Zero, prevendo-se o repasse inicial de 32 milhões de
reais, para a construção de 22.040 cisternas de placas no semiárido426
. Com o propósito de
viabilizar, juridicamente, a assinatura do termo de parceria junto ao Governo Federal, a ASA
criou uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), a Associação
Programa Um Milhão de Cisternas (AP1MC), com sede em Recife-PE.
A experiência anterior, dos convênios com a ANA e com o Ministério do Meio
Ambiente, havia mostrado aos integrantes da ASA que era preciso fortalecer, em termos de
infraestrutura, as Unidades de Gestão Microrregionais (UGMs), como são chamadas as
organizações que compõem a ASA, atuantes na construção das cisternas em escala
microrregional. Cabia, mais especificamente, dotar as UGMs de uma infraestrutura física e
logística capaz de viabilizar o alargamento do campo de ação da ASA no âmbito do P1MC.
Diante da impossibilidade do apoio do Estado para um financiamento desta natureza, em
razão de um impedimento legal, a ASA recorreu ao apoio da Federação Brasileira de Bancos
(FEBRABAN). Deste modo, tal como observou Rodrigo de Paula Assis, esse contexto de
negociação do P1MC junto ao governo Lula “marca uma diferente institucionalização do
programa, que deixa de ser uma ação isolada apoiada pela Agência Nacional de Águas, para
figurar como um programa no âmbito da política de maior destaque desse governo” 427
.
Por este caminho, a ASA se consolidou enquanto uma articulação política direcionada
à promoção de experiências de convivência com o semiárido brasileiro. Mediante um lento e
gradativo processo de articulação, perpassado por momentos de pressão política (sendo a
ocupação do prédio da Sudene, em 1993, um importante exemplo), as centenas de
organizações, com suas experiências particulares, configuraram um espaço de convergência,
por meio do qual compartilharam estratégias e unificaram suas metodologias de trabalho. Isso
resultou na redefinição do campo de ação política das organizações, expandindo o alcance das
experiências existentes e viabilizando o significativo aumento no número de camponeses
envolvidos. Tal expansão resulta do estabelecimento de vínculos diretos com o Estado
brasileiro, transformando a ASA numa articulação política com uma institucionalidade
426
Thiago Rodrigo de Paula Assis. op. cit., p. 18. 427
Ibidem, p. 19.
153
própria, contando com uma estrutura organizativa adequada à execução direta de políticas
públicas428
.
3.2.2. A estrutura organizativa da ASA e seus códigos ético-políticos
A estrutura e a dinâmica organizativa da ASA são o resultado do acúmulo de
experiências das organizações que a constituem. Cada uma delas, atuando a partir de
demandas específicas, desenvolveu, ao longo de sua própria história, instrumentos e
estratégias organizativas como forma de viabilizar a construção de meios para a convivência
com o semiárido. O esforço para o estabelecimento da Articulação trouxe, para o conjunto das
organizações, a necessidade da coexistência de demandas diversas que integram a realidade
do campesinato do semiárido. Assim, as organizações e movimentos sociais que já atuavam
em diversas áreas (educação popular/contextualizada, extensão rural, estocagem de sementes,
apicultura, captação hídrica, feiras agroecológicas, saúde e alimentação, etc.) conceberam a
ASA enquanto um espaço de convergência, isto é, como meio de potencializar as ações
particulares desenvolvidas mediante o reconhecimento de seu solo comum: a própria
realidade do semiárido.
Com efeito, a criação da ASA enquanto um fórum mais amplo não poderia prescindir
os espaços específicos, referentes às demandas particulares. Por esta razão, as redes temáticas
adquiriram, no processo organizativo da ASA, uma relevância significativa429
. Diante da
diversidade de demandas em que atuam as organizações e movimentos sociais que compõem
a ASA, as redes temáticas aglutinam camponeses a partir de grupos de interesse, formando-se,
assim, comissões organizadas em torno de cada eixo-temático que o grupo deve dedicar-se
prioritariamente. Neste processo, cada comissão se encarrega da realização das práticas
relacionadas ao seu grupo, fomentando seu desenvolvimento, desprendendo esforços no
428
É importante destacar que isto não implica a aceitação integral do “modelo” de política pública, proposta pela
ASA, por parte do Governo Lula. A perspectiva das grandes obras, que orientou os projetos desenvolvimentistas
da segunda metade do século XX, fortemente criticados pela ASA, está representada na gestão de Lula a partir
do ambicioso projeto de transposição das águas de Rio São Francisco, empreendido pelo Ministério da
Integração Nacional, projeto ao qual a ASA se opõe fortemente. Sobre oposição da ASA ao projeto de
transposição do Rio São Francisco, cf. “O abastecimento da população do Semiárido brasileiro: uma chance
perdida”, João Suassuna, disponível em: http://www.asabrasil.org.br/portal/informacoes.asp?cod_clipping=1562
(Acesso em Set./2013). 429
Na Paraíba, as redes possuem uma relevância ainda maior. Neste estado, essa forma de organização remonta à
década de 1990, emergindo simultaneamente à organização dos primeiros assentamentos rurais na mesorregião
do Alto Sertão Paraibano. Neste cenário, a rede água é a mais antiga na região, tendo surgido entre 1996 e 1997.
Na Mesorregião do Agreste Paraibano, simultaneamente, se desenvolveu o trabalho com as redes temáticas a
partir de organizações como a AS-PTA e Pólo Sindical da Borborema.
154
sentido de dar visibilidade aos problemas encontrados, viabilizando a construção de
estratégias para superá-los. Cada rede temática possui, assim, sua própria dinâmica, com
oficinas, reuniões, atividades técnicas e encontros próprios. Ao mesmo tempo, no âmbito mais
amplo da ASA, cada rede temática encontrará um espaço institucional importante para
viabilizar a projeção de suas demandas específicas para o conjunto da Articulação, sendo,
para isto, um espaço fundamental os encontros, realizados nas escalas microrregional,
estadual e nacional430
.
Sendo um meio de articulação do conjunto das experiências desenvolvidas, os
encontros criam condições para a definição de posturas, orientação de práticas, delineamento
de estratégias e afirmação de uma coesão coletiva em torno de interesses compartilhados.
Nesta perspectiva, estes eventos são carregados de conteúdo político, representando um
momento chave na configuração de oposições ao agronegócio, aos transgênicos, aos
agrotóxicos, à “indústria da seca”, às grandes obras de intervenção hídricas, etc. Sobre os
encontros, Cynthia de Carvalho, referenciando-se na Festa da Semente da Paixão431
,
organizada pela ASA, destaca estes eventos como espaços sociais de diálogo, mas também de
fortalecimento cultural e das redes sociais que estão sendo construídas432
. Ademais, segundo a
autora, esses eventos têm propiciado um debate crítico e participativo dos agricultores de
diversas regiões, com a crescente participação das mulheres e dos jovens, na formulação de
propostas de políticas públicas433
.
Um elemento de grande importância nas ações da ASA – e, inclusive, nos encontros–
é o fato de que os instrumentos pedagógicos que as sustentam estão fundamentados no
incentivo a processos participativos de trocas de experiências, construção coletiva do
430
São diversos os encontros organizados pela ASA. O principal deles é o Encontro Nacional da ASA -
Enconasa, realizado a cada dois anos, tendo como propósito promover a discussão e avaliação das políticas
públicas voltadas para o semiárido e o fortalecimento das experiências e práticas alternativas empreendidas pela
Articulação. Além do Enconasa, são realizados encontros mais específicos e em âmbito estadual ou regional,
como a Festa da Semente da Paixão, realizada na Paraíba, articulando camponeses e fomentando a valorização e
sistematização de experiências de conservação de sementes crioulas. A ASA também participa diretamente da
organização do Encontro Nacional de Agroecologia - ENA, importante evento de abrangência nacional, que se
constitui um momento político fundamental de organização das experiências e práticas agroecológicas
brasileiras. 431
A Festa das Sementes da Paixão, promovida pela rede sementes, da ASA Paraíba, é um evento que tem como
propósito promover o encontro dos “guardiões das sementes”, camponeses dedicados ao armazenamento,
seleção e multiplicação das “sementes crioulas”, ambientalmente adaptadas às condições locais, através dos
Bancos de Sementes Comunitários (BSCs). No encontro, os camponeses têm a oportunidade de trocar
experiências e posicionarem-se politicamente em defesa da produção agroecológica e reprodução de sementes
crioulas, entendidas como um “patrimônio genético”. 432
Cynthia Xavier de Carvalho. Agroecologia, movimento social e campesinato no Agreste da Paraíba [tese].
Campina Grande: Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, Departamento de Sociologia, 2008, p.
153. 433
Idem.
155
conhecimento, promoção de intercâmbios434
, bem como a processos horizontalizados de
sistematização e divulgação de experiências exitosas de convivência com semiárido435
. Nesta
perspectiva,
O que faz a diferença no caso da ASA é que, graças a uma ampla
articulação, estas tecnologias e outras são difundidas em todo o semiárido
brasileiro, obedecendo a um processo pedagógico que transforma os
(as)produtores (as) em experimentadores (as) e divulgadores (as),
despertando sua autonomia e autoestima, suscitando sua iniciativa,
libertando as famílias camponesas da velha dependência do assistencialismo,
ou seja, criando as condições da sustentabilidade do processo de criação,
experimentação e replicação de tecnologias436
.
A existência desses espaços de interação e intercâmbio, que possibilitam a troca de
experiências entre os integrantes das redes temáticas, indica que os limites que separam os
grupos que constituem as redes são maleáveis. Tais limites se reconfiguram temporariamente
no momento dos encontros, permitindo a “troca de saberes” entre os envolvidos com as
diversas redes, favorecendo a construção de uma “visão de conjunto” das questões que
integram os debates e apresentações de experiências, por parte dos participantes, bem como o
planejamento de atividades integradas. Ao mesmo tempo, na medida em que algumas redes
são de âmbito regional e mesmo nacional, é possível discutir e tomar conhecimento acerca de
questões relacionadas aos diversos níveis de abrangência de cada grupo, o que leva os
camponeses a transitarem por problemáticas que vão além daquelas eminentemente locais.
Neste processo, as próprias práticas dos camponeses são re-significadas, entendidas não como
simples atividades pontuais e localizadas, mas enquanto uma manifestação de um amplo
processo que ocorre sob formas distintas – formas estas que definem as especificidades de
cada rede – e em escalas espaciais diversas e articuladas. Tudo isto contribui
significativamente para o fortalecimento das atividades realizadas em cada uma das redes, em
particular; e, ao mesmo tempo, de todas elas, em conjunto.
Analisando essa forma de organização, tomando como referência a mesorregião do
Alto Sertão Paraibano, Valéria de Marcos observa que “cada uma destas redes possui
434
Como parte desse processo, as visitas de intercâmbio constituem-se uma importante estratégia de transmissão
de conhecimentos e experiências entre os camponeses vinculados à ASA. Estas possibilitam o contato, in loco,
com práticas agrícolas ou experiências alternativas. Tais visitas são realizadas, sobretudo, em áreas de produção
de assentamentos ou comunidades rurais, feiras, sedes de associações e cooperativas, universidades e centros
educacionais relacionados à agricultura. 435
Ghislaine Duque. “Conviver com a seca”: contribuição da Articulação do Semi-Árido/ASA para o
desenvolvimento sustentável. Desenvolvimento e meio ambiente (UFPR), 2008, p. 139. 436
Idem.
156
composição, área de abrangência, princípios, missão e atividades determinadas, mas todas têm
como função principal a implementação de atividades que visam a auto-sustentabilidade
camponesa no semiárido” 437
. Na Paraíba, por exemplo, tais atividades são gestadas a partir de
diversas redes, tais como: rede abelha (apicultura), redes de cultivos agroecológicos
(produção e comercialização agroecológica a partir de feiras e outros canais alternativos),
redes sementes (estocagem e distribuição de sementes crioulas), rede saúde e alimentação
(produção de plantas medicinais e remédios caseiros) e rede água (estratégias de captação
hídrica e desenvolvimento de tecnologias alternativas).
A rede água adquiriu, na história da ASA, uma importância singular. Articulando
experiências diversas de convivência com a seca, mediante o uso e desenvolvimento de
tecnologias alternativas, esta rede constituiu um amplo repertório de tecnologias de captação
de água da chuva voltada para consumo doméstico (bombas artesanais, cisterna de placa
calçadão438
, cisterna de placas439
, etc.) e, ao mesmo tempo, para a produção de alimentos
(barragens subterrâneas440
, barragens sucessivas441
, barreiro de salvação442
, etc.) 443
. Tal
repertório passou a adquirir maior centralidade ao longo da história da ASA, em particular a
partir da relação estabelecida com o Estado, mediante criação de dois programas: o P1MC, já
citado, e o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) 444
, sendo o primeiro, criado em 2003,
destinado a aglutinar as ações e tecnologias alternativas relacionadas à captação de água para
uso doméstico e o segundo, lançado em 2007, dirigido à promoção daquelas alternativas de
captação de água para produção de alimentos.
Os elementos até aqui expostos indicam que as ações da ASA são orientadas por um
esforço dirigido à materialização de um projeto político alicerçado no modo de vida e na
437
Valéria de Marcos. Solidariedade que tece redes: as estratégias de reprodução e recriação camponesa nos
assentamentos do Alto Sertão Paraibano. XIV Encontro Nacional de Geógrafos – ENG; 16-21 julho 2006; Rio
Branco; BR. Rio Branco: Anais Eletrônicos; 2006, p. 2, grifo da autora. 438
Consiste em uma calçada de cimento, inclinada, com uma área de 110m2, próximo à residência, com uma
cerca ao redor para evitar a entrada de animais, servindo para captar a água da chuva que cai sobre a mesma. 439
Possibilita a captação de água dos telhados das casas, em épocas de chuva, a partir da instalação de canos e de
um reservatório. 440
Tecnologia alternativa que permite a captação e armazenamento das águas pluviais, para uso produtivo, sem
inundar as áreas de plantio. 441
São formadas a partir de paredes de alvenaria construídas no leito dos rios temporários, com o propósito de
perenizá-los em épocas de seca. 442
Pequenas barragens utilizadas para a captação e armazenamento de água de chuva, que passa a ser destinada a
pequenos cultivos. 443
Para informações mais detalhadas sobre essas e outras tecnologias alternativas em desenvolvimento no
semiárido, cf.: Roberto Marinho Alves da Silva. Entre o combate à seca e a convivência com o semiárido:
transições paradigmáticas e sustentabilidade do desenvolvimento [tese]. Brasília: Universidade de Brasília,
Centro de Desenvolvimento Sustentável; 2006, p. 230 e Roberto Malvezzi. Semi-árido – uma visão holística.
Brasília: Confea, 2007, p. 107-119. 444
O número “1” representa a terra a ser utilizada no processo produtivo em bases “sustentáveis” e o “2” indica
as duas formas de uso da água que o programa contempla: abastecimento doméstico e produção agropecuária.
157
cultura camponesa. Para isso, a ASA delineia estratégias de ação que viabilizam a reprodução
social dos camponeses sob melhores condições, levando em conta as características
ambientais e as dinâmicas sociais do semiárido brasileiro. Nesta perspectiva, mostra-se
favorável ao fortalecimento de uma lógica específica de relacionamento com o ambiente e, ao
mesmo tempo, de uma condição de classe, por seus específicos traços econômicos e culturais.
Esta lógica de reprodução social, apoiada pela ASA, passa a ser afirmada, como vimos, com
vistas à superação de mecanismos de dependência e subordinação aos quais os camponeses
são frequentemente submetidos, alimentando alternativas dirigidas ao alcance de sua
autonomia.
Desde a criação do P1MC – o que implicou o estabelecimento de uma parceria
formalizada com o Estado brasileiro, sob gestão do então presidente Lula – a grande demanda
pela construção de cisternas, pela ASA, exigiu uma significativa reestruturação organizativa
desta entidade. Transformada em política pública, a distribuição das cisternas de placas exigiu
um considerável alargamento da abrangência espacial dessa Articulação, de modo a garantir o
alcance de todos os 1133 municípios do semiárido brasileiro. Isto se deu, por um lado,
mediante o estabelecimento de articulações políticas com movimentos sociais, associações,
Igrejas, sindicatos e coletivos que atuavam em escala local e regional, e, por outro, através do
aprimoramento da estrutura organizativa da ASA, forjando-se novos mecanismos para a
gestão dos recursos, execução dos projetos e articulação política.
Tal redefinição ocorre a partir da criação da Associação Programa Um Milhão de
Cisternas (AP1MC), Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP)
responsável pela gestão dos recursos e efetivação do P1MC. Contando com recursos não
apenas do Governo Federal, mas também da iniciativa privada, a AP1MC é composta por
uma sede, localizada em Recife-PE, de onde são distribuídos os recursos direcionados à
execução do Programa. A sede da AP1MC é também utilizada para realização de reuniões de
lideranças da ASA, constituindo-se, pois, como um espaço de deliberação política entre
lideranças da Articulação.
Tendo a sede da AP1MC como núcleo central, a construção das cisternas, pela ASA,
se estabelece a partir de arranjo político bastante específico. Para viabilizar a realização do
Programa, a ASA criou comissões municipais compostas de no mínimo três organizações
(igrejas, clube de mães, associações, sindicatos, etc.) que atuam, mais diretamente, em escala
local. Tais comissões são o “braço” da ASA, em escala local, compostas pelos camponeses
beneficiários dos Programas da ASA (P1MC e P1+2), organizados nessas pequenas
158
associações, igrejas, sindicatos, etc. Em especial nos casos em que os municípios não
possuem organizações dispostas a integrar a ASA, nas áreas a serem beneficiárias, a
Articulação estimula a sua formação, de modo a garantir a execução dos programas. Assim,
como resultado, pode-se observar a criação de inúmeras organizações e coletivos de
camponeses, em locais antes desprovidos de qualquer processo organizativo-institucional
(Foto 5).
Foto 5- Integrantes do Coletivo ASA Cariri Oriental Paraibano (CASACO), criado com parte do P1MC. Na ocasião, os
membros do Casaco participavam de um ato em defesa às políticas de convivência com o semiárido, realizado na cidade de
Campina Grande-PB. Foto: Thiago A. Santos. Mar./2014.
Essas organizações e coletivos, no nível comunitário, são denominadas Unidades
Executoras Locais (UEL). Tais unidades são articuladas, em escala regional, pelas chamadas
Unidades de Gestão Microrregionais (UGMs), sendo estas compostas por organizações de
maior abrangência espacial (ONGs, movimentos, pastorais rurais, grupos organizados de
sindicatos e associações, etc.). As organizações que fazem parte das UGMs, em cada estado
da federação, estabelecem elos, entre si, em reuniões, nas quais são debatidas e encaminhadas
questões relativas aos programas executados pela ASA. Além disso, nos fóruns comuns das
UGMs podem ser organizados e articulados atos políticos, manifestações, campanhas, entre
outras ações de abrangência estadual ou nacional.
159
Em escala estadual, são eleitos, por estado, um coordenador executivo e um
coordenador executivo suplente, com mandato de dois anos, sendo estes representantes
oriundos das organizações e movimentos sociais que compõem as UGMs. Os coordenadores
executivos estaduais reúnem-se, periodicamente, na sede da ASA Brasil, em Recife-PE. Aos
coordenadores executivos cabe também a função de dirigir a AP1MC nos estados que os
mesmos representam.
A construção das cisternas, empreendida pelas UELs, articuladas pelas UGMs, é
acompanhada por uma ampla capacitação que abrange os diversos envolvidos com o P1MC,
atendendo às demandas de informações nas diversas etapas do processo. Estão previstos os
seguintes treinamentos: Capacitação das Equipes das Unidades Gestoras; Multiplicadores em
Gerenciamento de Recursos Hídricos (GRH); Capacitação em Gestão Administrativo-
Financeira; Capacitação dos Pedreiros Instrutores; Capacitação de Pedreiros; e Capacitação
em Gerenciamento de Recursos Hídricos, Cidadania e Convivência com o Semiárido
(GRH)445
.
O curso de Gerenciamento de Recursos Hídricos, Cidadania e Convivência com o
Semiárido (GRH) constitui-se uma das principais capacitações, entre as previstas. Trata-se,
sem dúvida, de um importante momento de formação política dos beneficiários do P1MC,
ressaltando-se questões relativas à cidadania e à conquista de direitos. O curso de GRH é
realizado após um primeiro contato da equipe da ASA na comunidade a ser atendida pelo
Programa, algo que dura cerca de uma semana. Este primeiro contato envolve a articulação
dos membros da comunidade, transmissão das primeiras informações sobre as cisternas,
estabelecimento de um cadastro de interessados, análise da demanda por cisternas, etc..
Aqueles que se adequarem aos critérios e tiverem interesse são convidados para o curso de
GRH, com duração de dois dias. Sobre o processo de formação que constitui o curso,
Francineide Barbosa de Oliveira, integrante do Coletivo ASA Cariri Oriental (Casaco),
afirma:
Eu sou apaixonada pela hora de fazer as primeiras mobilizações. Você
chegar na comunidade, você marca uma reunião, para tal comunidade...
agora tudo está sendo ainda através do P1MC e P1+2, que são os dois
programas que estão fixos, a gente trabalhando. Mas a gente avisa, chega
aquele dia, e está o pessoal lá. Faz a explanação todinha, faz uma reunião
bem feita... o que é o projeto de convivência com o semiárido, de onde vem,
445
Informação obtida a partir de Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU). Cf. Brasil. Tribunal de
Contas da União. Avaliação da Ação Construção de Cisternas para Armazenamento de Água / Tribunal de
Contas da União; Relator Ministro Guilherme Palmeira. – Brasília: TCU, Secretaria de Fiscalização e Avaliação
de Programas de Governo, 2006.
160
tudo. Isso é que faz com que o povo acredite no seu pedaço de chão, acredite
em você mesmo, tire aquela ilusão de cidade, de que quem vive bem é quem
vive engravatado, essas coisas. A gente tem que valorizar o homem do
campo, a mulher do campo, o trabalho do campo... e dar confiança. E,
assim, é uma das coisas mais gostosas que eu faço, que eu gosto, é de estar
com o povo. Eu adoro446
.
“Estar com o povo” é aproximar-se de suas carências, qualificá-las como demandas e
traduzi-las no campo da cidadania e dos direitos. O trabalho realizado, com efeito, dá
confiança, faz o povo “acreditar no seu pedaço de chão”, em si mesmo – em uma palavra: em
sua própria potencialidade. O curso de GRH é realizado por uma equipe da UGM e possui
uma dinâmica que mescla a dimensão política com uma formação técnica e pedagógica sobre
a convivência com o semiárido e questões referidas à cidadania e direitos.
As místicas, muito presentes nas ações de formação política de vários movimentos
sociais brasileiros (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST, Via Campesina,
etc.), são amplamente utilizadas nos cursos de GRH realizados pela ASA. O modo de vida
camponês, sua cultura e especificidades sociais são referenciais para leituras bíblicas
realizadas com esforços de contextualização à realidade do campo e às dificuldades
enfrentadas pelos camponeses447
. As dinâmicas de grupo, também mobilizadas, trazem, por
sua vez, um clima de descontração que estabelece ou fortalece os laços entre os camponeses
presentes (ver Foto 6 e Foto 7). Pequenos filmes e vídeos de curta duração atraem a atenção
dos participantes da capacitação, gerando debates sobre temas como agrotóxico, agroecologia,
uso adequado da água, agricultura camponesa, entre outros. Cruzam-se, aqui, referências
pessoais, exemplos, relatos e opiniões sobre cada um dos eixos temáticos abordados, criando-
se, assim, o espaço de convergência política e de identificação, por parte dos camponeses,
com as problemáticas discutidas. Ao mesmo tempo, informações técnicas sobre a construção
446
Francineide Barbosa de Oliveira, Coletivo ASA Cariri Oriental Paraibano (CASACO), em entrevista
concedida ao autor em fev./2013, grifo nosso. 447
O antropólogo John Cunha Commerford, em seu estudo sobre dinâmicas organizativas camponesas, apresenta
uma descrição profícua sobre as reuniões, identificando o forte cruzamento entre as dimensões religiosa e
política: “Para que haja um engajamento coletivo (que se reflete na intensidade das vozes e na coordenação dos
movimentos), é necessário ter orações e canções conhecidas e com carga emocional, além de alguém (da
coordenação) que „puxe‟, mas que não se destaque a ponto de descaracterizar o caráter coletivo do procedimento
em questão. Essas etapas podem implicar uma movimentação do conjunto dos participantes, como levantar-se
juntos ou bater palmas no mesmo ritmo. As canções costumam ser „canções da luta‟, com letras que se referem
por exemplo à luta pela terra e pela reforma agrária, à vida difícil do trabalhador rural, à busca de um mundo
mais justo etc.”. Cf. John Cunha Commerford. Reunindo: as reuniões de trabalhadores rurais como formas de
sociabilidade. in Fazendo a luta: sociabilidade, falas e rituais na construção de organizações camponesas. Rio
de Janeiro: Relume Dumará: Núcleo de Antropologia da Política, 1999, p. 55.
161
Foto 6 – Momento de oração no início do Curso de Gerenciamento de Recursos Hídricos (GRH) - Comunidade Malhadinha,
Jericó-PB. Foto: Thiago A. Santos. Mar./2013.
Foto 7 - Roteiro de apresentação dos integrantes da ASA sobre o P1MC, no Curso de Gerenciamento de Recursos Hídricos
(GRH) - Comunidade Malhadinha, Jericó-PB. Foto: Thiago A. Santos. Mar./2013.
162
das cisternas e sobre os cuidados necessários à sua manutenção são transmitidas aos
presentes448
.
A estrutura organizativa da ASA e as metodologias de inserção nas comunidades
camponesas do semiárido, até aqui mencionadas, parecem abrir, efetivamente, um espaço de
ação de largo alcance, especialmente através do estabelecimento do P1MC, a partir do
primeiro mandato do governo Lula. Ao mesmo tempo, cabe considerar que a
profissionalização no processo de construção das cisternas, viabilizada pela transferência de
recursos para a execução de políticas públicas de convivência com o semiárido, cria as
condições logísticas necessárias para uma rápida e efetiva expansão do campo de ação das
organizações e movimentos que a integram, possibilitando o contato com comunidades
camponesas situadas em localidades distantes das cidades, comunidades estas frequentemente
enredadas nas estruturas clientelistas dos poderes locais. Tratados sempre com esforço de
contextualização, os temas e problemáticas que justificam o contato das equipes da ASA com
os camponeses, somados com a própria materialidade das cisternas, atraem os integrantes das
comunidades para os cursos, formalizando-se, como consequência, uma perspectiva
institucional da política, perspectiva esta que destitui as elites locais da condição de
portadoras das “soluções”, tradicionalmente oferecidas nas comunidades enquanto um favor
pessoal.
Como resultado das ações desenvolvidas pela ASA, desde o período de gestão do ex-
presidente Lula, foram construídas, até o momento, 578.336 cisternas de placas para
armazenamento de água voltada ao consumo doméstico, 87.881 cisternas para captação de
água para produção de alimentos, além de 1.542 reservatórios para coleta de água da chuva
em escolas do semiárido449
. Só na Paraíba, até agora, foram construídas mais de cinco mil
cisternas, atendendo a uma parcela bastante significativa da população rural deste estado450
.
448
As informações sobre a dinâmica dos cursos de GRH, acima citadas, foram adquiridas através de entrevistas e
trabalho de campo realizado em março de 2013, na Comunidade Malhadinha, localizada na zona rural do
município de Jericó-PB. Neste trabalho de campo, tivemos a oportunidade de participar de uma mobilização para
a construção de cisternas do P1MC, realizada pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Aparecida (STR
Aparecida). 449
A construção dos reservatórios para captação de água em escolas integra o Projeto Cisternas nas Escolas,
gestado pela ASA desde 2009, através de parceria com o MDS, tendo como objetivo levar água para as escolas
rurais do Semiárido, utilizando a cisterna de 52 mil litros como tecnologia social para armazenamento da água de
chuva. Este projeto abrange escolas distribuídas nos nove estados do semiárido, alcançando também aldeias
indígenas e comunidades quilombolas. A construção das cisternas nas escolas possui grande relevância social,
particularmente por garantir o pleno funcionamento deste espaço de aprendizagem mesmo nos períodos mais
secos do ano. Informações disponíveis em: http://www.asabrasil.org.br/acoes/cisternas-nas-escolas (Acesso em
Set./2015). Os dados numéricos sobre a construção de cisternas no semiárido encontram-se disponíveis em:
http://www.asabrasil.org.br/ (Acesso em Set./2015). 450
Cf. Anexo – Mapas – “Distribuição das tecnologias sociais hídricas no semiárido do estado da Paraíba” e
“Percentual da população rural atendida por cisternas de placa nos municípios do semiárido paraibano”.
163
Além de terem participado de todo o processo de formação que integra a construção
das cisternas, quase três milhões de pessoas do semiárido brasileiro451
, em condição de
vulnerabilidade socioeconômica, passaram a ter acesso à água de qualidade, como decorrência
das ações de convivência com o semiárido, desvinculando-se daquelas formas precárias de
coleta de água de que dependiam. Sobre este aspecto, os depoimentos que obtivemos, através
de entrevistas realizadas em comunidades rurais e assentamentos do semiárido paraibano,
demonstram grande satisfação dos camponeses com a aquisição destes reservatórios,
particularmente no que se refere à qualidade da água armazenada, em comparação com os
açudes, rios e barreiros, antes utilizados como fonte de abastecimento hídrico.
Segundo Antonio Lucas, residente no Assentamento Acauã, Aparecida-PB, “Era
sofrimento. A gente tomava água ali do rio, de cacimba. Botava num galão. Era ruim, água
velha salobra” 452
. Francisca Lourenço, do mesmo assentamento, ressalta: “A gente cavava na
areia, fazia a cacimba. Todo dia que a gente ia, cavava uma cacimba, pra num beber a água
que tinha do outro dia” 453
. Os camponeses entrevistados demonstraram consciência dos riscos
aos quais estavam submetidos nos tempos de dependência às águas de açudes, rios e barreiros,
associando, com frequência, o consumo da água dessas fontes à incidência de doenças:
Era ruim. A gente bebia água velha sebosa de rio. Principalmente esse rio
que pega aí, Rio Piranhas, Rio do Peixe. E tudo pega esgoto, né? E hoje a
gente bebe água limpa, tratada. Da cisterna é limpa... quando a telha ta
lavadinha, você põe os canos, põe uma peneira pra água já sair limpinha...
bebe até o fim limpa. [...] De primeiro só via gente com dor de barriga, com
diarréia. E hoje é difícil gente com diarréia aqui454
.
Ademais, as dificuldades relativas ao transporte da água dessas fontes foram
destacadas em vários depoimentos que obtivemos. As longas caminhadas, sob o sol
escaldante do semiárido, faziam parte da rotina dos sertanejos, constituindo-se a coleta da
água um processo penoso, sofrido. Nas palavras de um dos nossos entrevistados:
Antes das cisternas eu pegava (a água) de animal, no jumento. Levava o
jumento, ia pro açude, enchia lá, trazia pra casa e de tarde fazia outro
caminho... o sofrimento era esse. Às vezes pegava aqui no rio também,
cavava aquelas cacimbas, esperava criar água. E trazia pro consumo da casa,
pra lavar um prato. Não era pra gente beber, mas tinha muitos que bebiam
451
Se considerarmos uma média de quatro pessoas por família beneficiada. 452
Antonio Lucas, Assentamento Acauã, Aparecida-PB, em entrevista concedida ao autor em Mar./2013. 453
Francisca Lourenço, Asssentamento Acauã, Aparecida-PB, em entrevista concedida ao autor em Mar./2013. 454
Antonino Pereira da Silva, Assentamento Acauã, Aparecida-PB, em entrevista concedida ao autor em
Mar./2013.
164
essa água desse rio aí. Muitos traziam nessas garrafas de coca, não tem? Era
em fileira de cabra aqui nesse meio do mundo, atrás de água. Quem tinha
animal, carregava em animal, quem não tinha, carregava no galão. Não sei se
você já viu o cabra carregando água no galão... Dois baldes e um pau no
ombro, puxando água de lá pra cá. Eu fiz isso muito, do açude pra casa. [...]
E tem mais! Tinha que fazer economia pra não gastar essa água todinha,
porque é longe! Daqui no açude é quase uma légua, né? Só as ladeiras que
têm pro cabra subir! Era sofrimento, menino!455
Com a disseminação das tecnologias de captação hídrica nas comunidades rurais e
assentamentos do semiárido, fomentada pela ASA, tornou-se uma prática comum a
distribuição de água das cisternas entre os membros das próprias comunidades, estreitando-se
laços comunitários de solidariedade entre aqueles já beneficiados pelas tecnologias
construídas e os camponeses até então desprovidos destes reservatórios. Segundo um dos
nossos entrevistados, residente no sítio Curral do Meio, município de São João do Cariri-PB,
Nós tínhamos água aqui nesse rio Taperoá, mas é água pesada, grossa. O
cabra consegue tomar, mas é complicado. Depois dessa cisterna... a
derradeira chuva que deu foi em 2011, logo no começo... eu fui segurando,
segurando, segurando e nunca faltou! E eu dei água muita. Tinha cabra aqui
que não tinha e hoje tem a cisterna. Eu dei muita lata de água pra esse povo,
pros vizinhos aí. Esse povo aí mesmo não tinha. Mas fizeram. Agora nós
temos água boa, graças a deus!456
.
Atestando a existência de tais laços de solidariedade comunitária, tendo a água como
elo, um entrevistado de outra comunidade nos afirmou: “Antigamente nós bebíamos do rio,
mas depois a água foi ficando ruim, não presta mais pra beber, aí teve uns que fizeram a
cisterna primeiro, sabe? Antes de sair essa minha, eu pegava na cisterna do meu vizinho
ali”457
. A prática de distribuição de água das cisternas, em tempos de seca, demonstra a clara
preferência dos camponeses por esta fonte de abastecimento frente às outras formas de coleta
(rios, açudes e barreiros). Neste caso, é possível observar que as cisternas inserem-se na
dinâmica de sociabilidade comunitária como um recurso a ser mobilizado, em tempos críticos,
diminuindo, assim, a necessidade dos camponeses de se recorrer às ajudas externas,
particularmente àquelas oferecidas pelos políticos locais.
Cabe enfatizar que a ASA, em seu processo de organização, buscou configurar meios
de fortalecer os vínculos de sociabilidade nas comunidades em que atua, incentivando práticas
solidárias e criando mecanismos de proteção social fundados em princípios e estratégias
455
José Ivan do Santos, Assentamento Acauã, Aparecida-PB, em entrevista concedida ao autor em Mar./2013. 456
Adelson, Sítio Curral do Meio, São João do Cariri-PB, em entrevista concedida ao autor em Fev./2014. 457
Virgilio Bezerra de Araújo, Sítio Poço das Pedras, São João do Cariri-PB, em entrevista concedida ao autor
em Fev./2014.
165
orientados à valorização da autonomia camponesa. Um exemplo desta perspectiva é a
promoção dos fundos rotativos solidários (FRS), constituindo-se este um mecanismo
alternativo de financiamento, gestado por grupos temáticos, redes e associações comunitárias.
Quando a demanda dos camponeses pelas cisternas era maior do que a oferta disponível, no
nível comunitário, a ASA organizava grupos de interesse, sorteava as cisternas a serem
construídas e incentivava a contribuição financeira mensal dos demais interessados, de modo
a garantir que, gradativamente, todos os camponeses dispusessem de suas próprias cisternas.
Segundo Duque, como resultado, além da aprendizagem adquirida pelos camponeses, no que
se refere à gestão coletiva de recursos, evidencia-se ainda o incentivo à organização da
comunidade, à autonomia e cidadania de seus membros458
. Nas palavras da autora, os
camponeses passam a descobrir “sua capacidade de decidir seu próprio destino e,
abandonando a atitude dependente dos tempos do clientelismo, se tornam protagonistas,
inclusive na formulação de políticas públicas mais adaptadas” 459
. Segundo Waldir Cordeiro,
membro do PATAC e integrante da coordenação estadual da ASA Paraíba,
A lógica é a seguinte: é considerando que o fundo rotativo não é uma
penalidade para a família, mas é uma motivação a mais para a organização...
as pessoas, onde nunca teve reuniões, passa a ter para discutir como e que
vai arrecadar recurso para o fundo rotativo, para onde é que ele vai, qual o
critério para ser apoiado, para o que ele vai servir... então, ele cria uma
dinâmica local460
.
Apesar de reconhecer a relevância dessa forma de gestão de recursos, na escala
comunitária, o Estado, contudo, passou a bloquear oficialmente este tipo de contribuição a
partir de 2006, com a publicação de um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU).
Neste documento, constatando-se “a vinculação do recebimento da cisterna à participação do
beneficiário em fundos rotativos” 461
, se considerou que estes “não se compatibilizam com as
características do público-alvo definido e podem representar um obstáculo para que as
famílias mais necessitadas tenham acesso aos benefícios dessa política pública” 462
. No
entendimento de Waldir Carneiro, integrante da ASA, na compreensão do TCU, “você corria
458
Ghislaine Duque. Da abertura democrática à democratização efetiva: a experiência da Articulação do Semi-
Árido na Paraíba. VII Simpósio Observanordeste – 1985-2006: maioridade democrática?; 03-04 maio 2006;
Recife; BR. Recife: Anais Eletrônicos; 2007, p. 5. 459
Idem. 460
Waldir Cordeiro. PATAC e Coordenação Estadual ASA Paraíba, em entrevista concedida ao autor em
abr./2014. 461
Brasil. Tribunal de Contas da União. Avaliação da Ação Construção de Cisternas para Armazenamento de
Água / Tribunal de Contas da União; Relator Ministro Guilherme Palmeira. – Brasília: TCU, Secretaria de
Fiscalização e Avaliação de Programas de Governo, 2006, p. 22. 462
Idem.
166
o risco de, exigindo o fundo rotativo, alguma família dizer, „não, eu não quero participar do
fundo rotativo‟, então vai ficar de fora. Então, isso aí é legítimo” 463
. No entanto, diante desta
posição, o membro da coordenação estadual da ASA Paraíba argumenta: “só que a dinâmica
já era exatamente essa: nenhuma família que não queria entrar no fundo rotativo deixou de
receber, mas [o fundo servia] para uma compreensão política mais ampla” 464
. Frente ao
impasse colocado pela posição oficial do TCU, as organizações integrantes da ASA
interromperam os trabalhos com os Fundos Rotativos com recursos oriundos do governo,
mantendo-os, contudo, através das verbas de cooperação com entidades privadas (ONGs,
organizações religiosas, etc.), deslocando-os para outras atividades distintas daquelas
diretamente abarcadas pelos programas executados pela ASA465
. O estreitamento da relação
com o Estado, neste caso, evidenciou uma contradição entre uma perspectiva movimentalista
de condução dos recursos obtidos e a racionalidade estatal, resultando na imposição de
limitações à reprodução de uma prática tradicionalmente utilizada por organizações e
movimentos atuantes em comunidades rurais brasileiras466
.
Com base no que foi até aqui discutido, consideramos que a ASA desenvolve-se, pois,
estabelecendo uma intrínseca relação entre a dimensão político-organizativa e a própria
realidade concreta em que atua. A sua configuração como um “espaço de convergência” –
seja a partir das redes, seja por meio da formação de uma institucionalidade apropriada à
execução de políticas públicas, pela construção das comissões municipais, UGMs, UELs, etc.
– responde, claramente, às demandas objetivas que os integrantes da Articulação buscaram, a
cada momento, solucionar. Por esta razão, observa-se um forte dinamismo na estrutura de
organização desta entidade, tendo como efeito uma considerável adaptabilidade às mudanças
conjunturais nas relações estabelecidas com o Estado.
463
Waldir Cordeiro. PATAC e Coordenação Estadual ASA Paraíba, em entrevista concedida ao autor em
abr./2014. 464
Waldir Cordeiro. PATAC e Coordenação Estadual ASA Paraíba, em entrevista concedida ao autor em
abr./2014 465
Em trabalhado de campo realizado no município de Soledade-PB, identificamos, por exemplo, o uso dos
fundos rotativos solidários para aquisição de materiais de construção, fogões artesanais, além de compra de telas
de proteção para canteiros de produção agrícola. 466
No Brasil, os fundos rotativos solidários, na forma atualmente conhecida, têm uma história que se remete aos
1970 e 1980, assumindo uma dimensão mais concreta junto aos movimentos sociais em parceria com entidades
de apoio a atividades comunitárias em geral. Nos anos 1990, esta forma de organização ganha impulso a partir
do incentivo de entidades como a Misereor, Cáritas e outras, que começaram a exigir que projetos por elas
financiados tivessem um retorno de recursos. No que se refere à ASA, particularmente, a mobilização dos fundos
rotativos se dá a partir de 1993, quando os mesmos são direcionados à reprodução de cisternas no semiárido
brasileiro. As primeiras experiências com os fundos rotativos, pelas mãos da ASA, foram desenvolvidas no
município de Soledade-PB. Informações disponíveis na Cartilha dos Fundos Rotativos Solidários: contribuição
sobre histórico, construção e gestão, disponível em http://camp.org.br/files/2014/07/Cartilha-Fundos-Solidarios-
Reg-Sul.pdf (Acesso em Ago./2015).
167
Ao mesmo tempo em que demonstrou, ao longo de sua história, uma forte capacidade
de adequação à racionalidade estatal, na condição de executora de políticas públicas, a ASA
manteve, como vimos, importantes traços movimentalistas em suas ações em prol da
convivência com o semiárido, tanto pelas formas de organização adotadas (redes, fundos
rotativos solidários, encontros, etc.), quanto pelos valores ético-políticos assumidos –
destacando-se, entre estes, a busca pela construção de formas de autonomia camponesa, o
esforço pela valorização dos conhecimentos populares e o incentivo às práticas associativas.
Se, como vimos até aqui, ao longo dos dois mandatos do ex-presidente Lula, os traços
movimentalistas da ASA são evidenciados nas ações cotidianas de seus integrantes,
concentrando-se nas formas de organização e nas estratégias adotadas para a execução dos
seus programas, a sucessão presidencial, ocorrida em 2011, demandará a expressão pública
mais marcada do seu caráter movimentalista, através de ações de protesto, campanhas,
declarações, etc. Isto porque, como discutiremos no próximo item, a relação estabelecida
entre a ASA e o governo Dilma será marcada por momentos mais ou menos recorrentes de
tensão, exigindo posicionamentos públicos mais incisivos, por parte da Articulação, como
condição para manter as conquistas obtidas e seguir fortalecendo suas ações de convivência
com o semiárido.
3.2.3. A relação ASA-Estado e o horizonte da autonomia de movimento
A chegada de Dilma Rousseff (PT) à presidência da república, como sucessora de
Lula, em 2011, trouxe consigo um conjunto de desafios a serem enfrentados por aqueles que,
como parte da ASA, dedicavam-se às ações de convivência com o semiárido. Como resultado
da consistente relação de parceria estabelecida entre a ASA e o Governo Lula, entre 2003 e
2010, a posse da presidenta foi recebida com otimismo pelos integrantes da Articulação, que
esperavam a manutenção da relação de proximidade com o Estado. Por ocasião do segundo
turno das eleições presidenciais, quando Dilma disputava o pleito com o candidato José Serra,
do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), a ASA divulgou uma Carta Aberta à
População Brasileira declarando, explicitamente, apoio à Dilma, tendo em vista que sua
candidatura apontava, mais fortemente, para a possibilidade de assegurar os “espaços de
diálogo construídos à luz dos esforços de diversas organizações, movimentos sociais e
famílias agricultoras, que permanentemente lutam por uma vida digna no semiárido” 467
.
467
Cf. Anexos – Documentos – “Carta aberta à população brasileira – ASA Brasil”, 16/10/2010.
168
Uma primeira medida importante de Dilma foi, em Julho de 2011, a criação do
Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Água, mais conhecido
como “Água para Todos”, destinado a promover a “universalização do acesso à água para
consumo humano em áreas rurais do semiárido, visando ao pleno desenvolvimento humano e
à segurança alimentar e nutricional de famílias em situação de vulnerabilidade
social”468
. Além disso, o Programa tem como propósito levar água para a produção agrícola e
alimentar. O “Água para Todos” faz parte das ações do Plano “Brasil Sem Miséria” e atende
prioritariamente as famílias sem acesso à água que estejam cadastradas no Cadastro Único
para Programas Sociais do Governo Federal (Cadastro Único).
Entretanto, em menos de um ano de mandato, a relação da ASA com o Governo Dilma
já foi atravessada por uma importante tensão. Após denúncias de desvio de dinheiro destinado
a ONGs, envolvendo um de seus ministros, a presidenta decidiu aumentar a rigidez no repasse
de recursos públicos para as organizações da sociedade civil. Para tal, rompeu parcerias
estabelecidas e estimulou o fortalecimento dos vínculos com estados e prefeituras na
execução das políticas públicas469
. Embora não estivesse envolvida com os supostos casos de
corrupção que motivaram a quebra da parceria entre governo e organizações da sociedade
civil, a ASA sofreu diretamente o impacto da decisão, sendo informada que seus programas
(P1MC e P1+2) haviam sido interrompidos.
A informação da quebra da parceria com a Articulação veio em uma reunião, realizada
com participação de lideranças da ASA e de representantes do governo, no dia 8 de Dezembro
de 2011. Na ocasião, além da quebra da parceria, o governo anunciou a adoção de um novo
padrão de cisternas, feitas de polietileno, a serem distribuídas por estados e prefeituras, com
recursos do Ministério da Integração Nacional (MIN), ficando a fabricação sob
responsabilidade da empresa Acqualimp, filial brasileira da empresa mexicana Dalka.
Na prática, essa decisão implicava, diretamente, a interrupção do repasse de recursos
para a execução dos programas da ASA e, deste modo, o próprio desmantelamento das ações
que estavam em andamento, pelas mãos da Articulação, no semiárido brasileiro. A adoção das
cisternas de polietileno, mais frequentemente chamadas de “cisternas de plástico”, indicava,
ao mesmo tempo, uma mudança clara de postura do governo diante das organizações que
atuavam com experiências de convivência com o semiárido, na medida em que, diante de todo
468
Informação disponível em: http://www.mds.gov.br/falemds/perguntas-frequentes/superacao-da-extrema-
pobreza%20/inclusao-produtiva-rural/agua-para-todos (Acesso em Set./2013). 469
Sobre o caso, cf. “Varredura do Governo derruba 13% dos convênios com ONGs”, Portal Terra, 07/02/2012,
disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/varredura-do-governo-derruba-13-dos-convenios-com-
ongs,54090a43aa1da310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html (Acesso em set./2013).
169
o processo organizativo e de formação que caracteriza a instalação das cisternas de placas,
pela ASA, optava-se por uma solução exógena que abria, novamente, a possibilidade de
apropriação, por parte das tradicionais oligarquias locais, das políticas públicas dirigidas ao
semiárido. Isto porque a própria fabricação da cisterna de polietileno ficaria, a partir de então,
sob responsabilidade empresarial, cabendo aos camponeses a posição de recebedores passivos
do reservatório, retirando-se de cena as organizações e movimentos sociais e,
consequentemente, suas metodologias de ação voltadas ao fortalecimento da autonomia e a
promoção da cidadania entre os beneficiários.
A reação a essas medidas, pela ASA, foi imediata. No dia seguinte, em carta divulgada
no site da Articulação, a informação da quebra da parceria entre a ASA e o Governo foi
transmitida como um chamado à mobilização:
[...] O que o governo Dilma está propondo é apagar uma das mais belas e
exitosas experiências de participação social e construção de cidadania pelos
os [sic] que sempre foram marginalizados, mas, tomaram a história em suas
mãos e trouxeram para o centro do debate, o conceito e as iniciativas de
convivência com o Semiárido. [...] Enquanto rede,precisamos nos articular
nos estados e municípios num movimento que dê conta de visibilizar para o
governo a estratégia errônea, injusta e desrespeitosa que vem tratando a
ASA, a sociedade civil organizada do Semiárido brasileiro [...]. Precisamos,
cada organização, entrar em contato com as famílias, comissões municipais,
lideranças, parlamentares, governadores e demais parceiros que acreditam
e reconhecem a ação da ASA na construção de um semiárido mais justo
para as famílias470
.
O conteúdo da carta revela, claramente, um apelo movimentalista, expressando a
consciência da potencialidade política da Articulação. O chamado para cada organização
“entrar em contato com as famílias, comissões municipais, lideranças, parlamentares,
governadores e demais parceiros” coloca em movimento uma estrutura político-organizativa
desenvolvida ao longo da trajetória de luta e organização anterior aos anos 1990, bem como
dos momentos de positiva relação com o Estado, como ocorreu nas duas gestões do governo
Lula. O novo contexto exigia a expressão pública da insatisfação, por parte da ASA, frente ao
rompimento da parceria, estabelecido por Dilma, demandando capacidade de organizar os
camponeses e de manifestar suas insatisfações por canais político-movimentalistas. Neste
sentido, a perspectiva da mobilização e a própria consciência da significativa potencialidade
políticada ASA para tal empreendimento foram expostas, com tom irônico, por uma
470
“Governo Federal rompe com a ASA Brasil, com o P1MC e com o P1+2”, Carta divulgada pela ASA,
disponível em:http://www.abong.org.br/noticias.php?id=4672 (Acesso em Set./2013), grifo nosso.
170
importante liderança da Articulação, Roberto Malvezzi, quando afirmou, naquele contexto de
crise:
Vamos conversar com os milhões de beneficiados envolvidos na convivência
com o semiárido. Eles vão entender as razões da presidente e da ministra e
vão retribuir com a generosidade que lhes é peculiar. O povo do semiárido
jamais esquecerá que, no Natal de 2011, ganhou como presente da presidente
Dilma Rousseff, uma cisterna de plástico471
.
Iniciou-se, assim, um intenso processo de articulação com o propósito de mobilizar
integrantes das organizações que compunham a ASA e os camponeses beneficiados por seus
programas para que, juntos, realizassem um grande ato de protesto, marcado para o dia 20 de
Dezembro de 2011, na cidade de Petrolina-PE. Neste sentido, integrantes das organizações,
sindicatos e movimentos que atuavam como UGMs e as comissões municipais, criadas
inicialmente com a perspectiva de viabilizar a execução dos programas da ASA,
encarregaram-se de organizar e articular os camponeses, inseridos em suas áreas de atuação,
para reivindicar nas ruas o retorno da parceria entre a ASA e o Governo Federal. A
articulação se deu mediante a realização de visitas a comunidades e ligações telefônicas para
representantes e membros das associações, sindicatos, grupos de mulheres, lideres
comunitários, coletivos, grupos de jovens, padres e outros agentes de atuação mais local.
Descrevendo este processo e a preocupação com o ataque aos programas da ASA, Maria A. F.
de Sousa, integrante do STR Aparecida-PB, nos afirmou:
Acho que foi um momento difícil pra todo mundo, foi um momento muito
triste, porque por alguns minutos, por alguns dias, a gente pensou que tudo
fosse pelo ralo, e que toda aquela bandeira de luta que a ASA defende, ela
estaria ali se acabando por causa de uma decisão que não tinha a ver com a
situação, e a gente tentou, a gente fez mobilizações, reuniões nas
comunidades, fazendo uma relação de comunicação com os municípios, às
comissões municipais, para se reunir a aí planejar essa mobilização que foi
em Petrolina472
.
Como encaminhamento para o ato, foi solicitado aos camponeses participantes que
escrevessem cartas dirigidas diretamente à presidenta Dilma, ressaltando os benefícios
decorrentes da construção das cisternas de placas, solicitando a renovação da parceria entre
ASA e Governo Federal. Essas cartas, entregues à presidenta, serviriam como recurso
471
“Dilma: presente natalino aos Nordestinos”, Roberto Malvezzi (CPT/ASA), Adital, Dez./2013. Disponível
em: http://site.adital.com.br/site/noticia.php?lang=PT&cod=63437 (Acesso em Set./2013). 472
Maria A. F. de Sousa, STR Aparecida-PB, em entrevista concedida ao autor em Mar./2013.
171
adicional de pressão que se somaria a própria manifestação nas ruas de Petrolina-PE. Um dos
camponeses participantes do protesto, Geraldo Gabriel da Silva, relatou-nos, em entrevista,
como recebeu o chamado à mobilização:
Eu recebi o convite da irmã Natália, que faz tempo que ela trabalha com esse
negócio das cisternas, sabe? Mandaram convite pra mim, pra várias
comunidades. [...] Saiu dois ônibus de Aparecida (PB) com o pessoal pra lá.
A gente saiu de madrugada e viajamos a noite quase toda... Chegamos lá o
dia já tinha amanhecido. Aí depois desse protesto foi que a presidente
resolveu continuar com esse programa das cisternas de placas473
O resultado da mobilização e do intenso processo de articulação foi um ato, com cerca
de 15 mil pessoas de diversos municípios do semiárido brasileiro que, em marcha,
atravessaram os municípios de Juazeiro-BA e Petrolina-PE474
. Três dias depois do ato, foi
realizada uma reunião em Brasília contando com a presença de lideranças da ASA e
representantes do Governo Federal. Nesta reunião, ficou encaminhada a assinatura de um
aditivo que garantia a permanência do repasse de recursos para as políticas de convivência
com o semiárido, executadas pela Articulação, e foi agendada uma nova reunião para discutir
a elaboração de um novo termo de parceria, garantindo-se, assim, a continuidade no repasse
de recursos públicos para, através da ASA, ser aplicados nas ações de convivência com o
semiárido475
. Sobre o protesto, Neilda Pereira, então integrante da coordenação nacional da
ASA, avaliou:
Pra mim foi um momento onde reafirmamos e mostramos que a nossa
capacidade de mobilização vai muito além do que a gente imagina, no
sentido de que a manifestação em Petrolina não só reafirmou como mostrou
claramente que a ASA é forte porque é formada por agricultores e
agricultoras, organizações locais e, principalmente, por pessoas que
acreditam na força do Semiárido. Além disso, representou um momento de
união e de construção coletiva. As pessoas estavam ali sabendo da
importância daquele momento e lutando para que essa ação aconteça no
Semiárido. Então o meu sentimento é de que conseguimos reafirmar [a
importância da nossa ação] e, sobretudo, dizer à sociedade que acreditamos
num outro Semiárido, que estamos construindo um semiárido digno, justo e
sustentável com as famílias agricultoras dessa região476
.
473
Geraldo Gabriel da Silva, Comunidade Malhadinha, Jericó-PB, em entrevista concedida ao autor em
Mar./2013. 474
Cf. “Quinze mil pessoas unidas pela continuidade das ações da ASA”, ASA Brasil. Disponível em:
http://www.asabrasil.org.br/Portal/Informacoes.asp?COD_NOTICIA=7165 (Acesso em Set./2013). 475
Cf. “Assinatura de aditivo com o MDS garante execuçao dos programas da ASA”, ASA Brasil. Disponível
em: http://www.asabrasil.org.br/Portal/Informacoes.asp?COD_NOTICIA=7168 (Acesso em Set./2013). 476
Cf. “„Petrolina foi apenas o começo‟, diz coordenadora da ASA”, ASA Brasil. Disponível em:
http://www.asabrasil.org.br/Portal/Informacoes.asp?COD_NOTICIA=7164 (Acesso em Set./2013), grifo nosso.
172
Evidencia-se, neste sentido, a perspectiva segundo a qual o ato de protesto mostrou a
força da ASA, resultado de sua própria formação, isto é, de sua base camponesa e suas
organizações locais. Representando um momento de união e construção coletiva, o ato de
Petrolina foi formado por pessoas que “estavam ali sabendo da importância daquele momento
e lutando para que essa ação (os programas da ASA) aconteça no semiárido”. A dimensão
pública, neste caso, foi considerada fundamental, na medida em que, com o protesto, foi
possível, além de mostrar a força da ASA, também “reafirmar e, sobretudo, dizer à sociedade
que acreditamos num outro semiárido”.
O recuo do governo e a retomada da parceria com a ASA não implicaram, contudo,
numa revisão das decisões tomadas em relação às cisternas de plástico. A posição oficial
assumida era, pois, ambivalente. Por um lado, através do Ministério da Integração Nacional
(MIN), reafirmavam-se aproximações com estados e municípios para a distribuição das
cisternas de plástico, a despeito das manifestações contrárias da ASA. Por outro lado, com
recursos do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), renovavam-se
os laços com a Articulação para que, simultaneamente à instalação das cisternas de plástico,
fossem construídas as cisternas de placas.
Diante desta posição ambivalente, a ASA – mantendo-se no interior do campo
institucional da parceria estabelecida – passa a fortalecer, paralelamente, a campanha política,
iniciada em novembro de 2011, denominada “Cisternas de Plástico PVC: Somos Contra!” 477
.
Esta campanha, demarcando um claro antagonismo frente à opção governamental pelas
cisternas de plástico, assume como propósito “alertar a sociedade brasileira sobre o impacto e
efeitos negativos da disseminação dessas cisternas para o fortalecimento da estratégia de
convivência com o Semiárido, no qual temos investido nossos esforços nos últimos anos” 478
.
Deste modo, os integrantes da Articulação iniciaram um grande esforço para a divulgação
(por meio de panfletos, eventos, publicações em redes sociais e participação em programas de
rádio) dos problemas associados às cisternas de plástico, entre os quais se evidenciando: (1)
ausência de qualquer processo organizativo/educativo no recebimento dos reservatórios pelas
famílias, na medida em que as mesmas são entregues prontas; (2) as empresas passam a
substituir a sociedade civil no processo de fabricação das cisternas; (3) todo recurso será
477
Para mais informações sobre esta campanha, cf. ASA. “Acervo - Cisternas de plástico/PVC – Somos
Contra!”, em http://www.asabrasil.org.br/acervo/campanhas?artigo_id=288 (Acesso em Ago./2015). 478
Cf. Anexos – Documentos – “Carta de Orientação aos Estados”.
173
repassado às mãos de poucos empresários, não sendo investidos diretamente na região; (4)
custo superior das cisternas de plástico em relação às cisternas de placas479
.
Com base em tal posição crítica, diversas manifestações contra as cisternas de plástico
foram realizadas, desde então, por organizações ligadas à ASA, constituindo-se esta, até o
momento, uma fonte clara de tensão entre a Articulação e o Governo Federal. Como uma
expressão dessas ações de resistência às cisternas de plástico pode ser mencionada a
mobilização que resultou no bloqueio da implantação destes reservatórios no município de
Soledade-PB. Em 24 de maio de 2013, numa audiência pública realizada na Câmara dos
Vereadores do município, contando com a participação de representantes do DNOCS e da
empresa vencedora da licitação para a distribuição de cisternas de polietileno (JM Engenharia
e Construtores), camponeses vinculados ao Coletivo Regional das Organizações da
Agricultura Familiar do Cariri, Curimataú e Seridó Paraibano, grupo formado a partir da
atuação da ASA, organizaram-se e conseguiram barrar a chegada de 94 cisternas de
polietileno no município480
.
Na audiência pública, os camponeses argumentaram que, ao contrário das cisternas de
polietileno, o processo de implantação das cisternas de placas gerava renda no próprio
município (por meio da aquisição de materiais de construção, pela formação de pedreiros,
etc.), melhor se adaptando à realidade do semiárido por sua estrutura de concreto e pela
facilidade de manutenção. Diante das manifestações dos presentes, e suas posições críticas às
cisternas de plástico, o então prefeito José Bento (PT) solicitou que a ASA Paraíba entregasse
um documento formalizando a sua negativa e se comprometendo a buscar parcerias para
garantir, por suas próprias mãos, a construção de cisternas de placas, atendendo à demanda do
município. Sobre o evento, José Bento, que possui uma trajetória pessoal ligada às ações de
convivência com o semiárido, nos afirmou:
No dia da audiência pública eu fui para lá e fiquei só ouvindo. Eu queria
ouvir a posição do pessoal. Estava lá o DNOCS, trouxeram uma assessoria
para comentar a importância da cisterna [de plástico], essa coisa toda, e no
final a gente deu o veredicto junto com a comunidade. Eu disse: “olhe, eu
estou de acordo com a sociedade, com todo esse trabalho, com todos os
argumentos possíveis e não podemos aceitar essas cisternas de plástico aqui
no município”. [...] Por que a gente ia substituir [as cisternas de placas] por
cisternas de plástico? E, depois, seria uma incoerência muito grande. A gente
começou as cisternas de placas e você vai agora implantar cisternas de
479
Cf. Anexos – Documentos – “Cisternas de plástico PVC: somos contra! Solução ou armadilha?”. 480
Cf. “Pressao popular barra construçao de Cisternas de Plástico em Soledade na Paraíba”, IRPAA
Convivência com o Semiárido, 27/05/2013, disponível em: http://www.irpaa.org/noticias/701/pressao-popular-
barra-construcao-de-cisternas-de-plastico-em-soledade-na-paraiba (Acesso em Ago./2015).
174
plástico, desconstruindo todo esse trabalho que vem nessa direção? E não é a
cisterna em si. É o processo de mobilização que é o mais importante desse
contexto, dessa luta toda, porque não é simplesmente construir uma cisterna
e deixar. Fica ali, junto com a cisterna, todo um processo de mobilização e
de novo entendimento sobre a cisterna, que a cisterna é um instrumento
pedagógico de trabalho que redunda no beneficiamento, mas, acima de tudo,
no fortalecimento do processo organizativo, porque lá continua a
discussão481
.
O processo de mobilização e as ações que resultaram na suspensão da distribuição das
cisternas de plástico, em Soledade, se constituíram uma referência na luta pela defesa das
políticas de convivência com o semiárido, frente às ações operadas pelo DNOCS, com
recursos do Ministério da Integração Nacional (MIN).
Com a mesma perspectiva crítica à distribuição das cisternas de plástico, outra ação de
destaque foi realizada, desta vez no município de Juazeiro-BA. Em Outubro de 2013, cerca de
quatro mil camponeses ocuparam a sede da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São
Francisco e Parnaíba – Codevasp, órgão responsável pela distribuição de cisternas de
polietileno no semiárido. A ocupação foi feita por militantes do Movimento dos Pequenos
Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra (MST), bem como sindicatos e redes de organizações, incluindo-se
a própria ASA. Além de evidenciar a importância dos programas gestados pela Articulação, o
ato deu visibilidade à insatisfação coletiva em relação à continuidade da difusão das cisternas
de polietileno, feita pela CODEVASP. Na ocasião do protesto, em ato simbólico, os
camponeses, utilizando-se de ferramentas de trabalho, destruíram uma cisterna de polietileno
(Foto 8) 482
.
A continuidade da distribuição das cisternas de plástico também foi criticada em um
protesto realizado em Campina Grande-PB, em 28 de Março de 2014483
. Realizado em alusão
ao Dia da Água (22 de Março), o evento teve início no período da manhã, em um teatro da
cidade, com a explanação de uma liderança da ASA, que situou as ações de convivência com
o semiárido no contexto de domínio político das oligarquias promotoras da “indústria da
seca”. O caráter político das ações da Articulação foi valorizado, também, numa encenação
realizada pelos próprios camponeses e militantes. Os atores da peça, reproduzindo situações 481
José Bento, ex-prefeito do município de Soledade-PB, em entrevista concedida ao autor em Ago./2014. 482
“Em protesto, cisterna de plástico é destruída na sede da Codevasf, em Juazeiro (BA)”, IRPAA Convivência
com o Semiárido, 16/10/2013, disponível em: http://www.irpaa.org/noticias/811/em-protesto-cisterna-de-
plastico-e-destruida-na-sede-da-codevasf-em-juazeiro-ba- (Acesso em Ago./2015). 483
Além de participarmos do protesto, tivemos a oportunidade de fazer parte de uma reunião de preparação do
ato, realizada na manhã do dia 23 de Março de 2014, na sede do PATAC, em Campina Grande-PB. Nesta
reunião, contando com a presença de lideranças de organizações da ASA, foram encaminhas as últimas questões
de planejamento, além de divididas algumas funções e distribuídas tarefas entre os presentes.
175
típicas do seu próprio cotidiano, representaram o processo de mobilização de uma família
camponesa a ser beneficiada pelo P1MC, expondo situações cômicas e problematizando as
posteriores conquistas decorrentes da aquisição da cisterna por parte da família beneficiada484
.
Em seguida, no fim da manhã, centenas de camponeses e militantes das organizações da ASA
ocuparam as ruas de Campina Grande, com cartazes e carros de som, alertando a população
sobre os problemas que acompanham a distribuição das cisternas de polietileno e suas
implicações políticas para o semiárido. Como parte do protesto, os manifestantes simularam
um cortejo fúnebre de uma cisterna de plástico (Foto 10), cujo enterro simbólico foi
representado pela cobertura da mesma com uma lona preta, no fim do ato, seguida de uma
comemoração dos presentes com uma ciranda, ao redor do “defunto” 485
.
Os atos e manifestações em questão, ao expressar um conjunto de insatisfações
coletivas com certas medidas e decisões adotadas pelo Governo Dilma, projetam para a esfera
pública um posicionamento político da Articulação. Por um lado, parece-nos claro que a
estrutura organizativa da Articulação – em UGMs, organizações locais, redes, etc. –
possibilita uma rápida e eficiente mobilização dos camponeses do semiárido, através de uma
consistente articulação de múltiplas escalas. Por outro, a própria existência concreta das
tecnologias de captação hídrica, desenvolvidas pela ASA, constitui-se uma suficiente
justificativa para a participação dos camponeses em atos de protesto e ações de reivindicação
organizadas pela Articulação. Disto resulta, a nosso ver, a considerável capacidade de
mobilização política da ASA, revelando-se esta organização um corpo institucional de
evidente potência movimentalista.
484
A utilização da linguagem teatral como forma de representação da realidade camponesa e de abordar
determinadas problemáticas de interesse às organizações e movimentos sociais (combate ao machismo, relações
clientelistas com proprietários de terra, violência, falta d‟água, etc.) é uma prática comum nos eventos
organizados pela ASA. Pudemos observar, em trabalhos de campo, o recurso a tal metodologia de ação, por
exemplo, nos momentos que antecederam a IV e V Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia,
realizadas, respectivamente, em Solânea-PB (08/03/2013) e Massaranduba-PB (14/03/2014). Nestas marchas,
sobre um palco, temas de interesse foram problematizados, em forma teatral, constituindo-se momentos
descontraídos e divertidos. Como parte da dinâmica dos referidos atos, após o “momento teatral”, as camponesas
saíram em marcha, portando bandeiras cor lilás (em referência à luta feminista), denunciando a violência contra
a mulher e relembrando, com cartazes e imagens, importantes personagens da luta pela terra no Brasil, como a
sindicalista Margarida Maria Alves, assassinada em Alagoa Grande-PB, em 1983. A Marcha pela Vida das
Mulheres e pela Agroecologia é realizada anualmente, em geral na semana de comemoração do Dia da Mulher
(8 de Março), mobilizando milhares de camponesas de diversos municípios do semiárido. 485
Para uma referência a esta manifestação, cf. “Mobilizaçao alusiva ao Dia Mundial da Água celebra
conquistas dos 21 anos da Articulaçao do Semiárido Paraibano”, AS-PTA, 31/03/2014, disponível em:
http://aspta.org.br/2014/03/mobilizacao-alusiva-ao-dia-mundial-da-agua-celebra-conquistas-dos-21-anos-da-
articulacao-do-semiarido-paraibano/
176
Foto 8 – Destruição de cisterna de plástico em ocupação da Codevasp. Juazeiro-BA. Foto: IRPAA/ASA. Out./2013.
Foto 9 – Cisterna de plástico transportada em caminhão do Ministério da Integração Nacional (MIN). Cacimba de Dentro-
PB. Foto: Thiago A. Santos. Mar./2014.
177
Foto 10 – Simulação de um cortejo fúnebre de uma cisterna de plástico. Ato de protesto realizado em Campina Grande-PB.
Foto: Thiago A. Santos. Mar./2014.
Foto 11 – Cartaz destacando a rejeição às cisternas de plástico por camponeses do município de Aroeiras-PB. Ato de protesto
realizado em Campina Grande-PB. Foto: Thiago A. Santos. Mar./2014.
178
Ainda que algumas posições adotadas pela presidenta Dilma Rousseff, em seu
primeiro mandato presidencial, tenham motivado importantes ações críticas, de protesto, por
parte da ASA, o cenário eleitoral de 2014 redefiniu as relações entre a candidata petista e a
Articulação. Na ocasião, diante da possibilidade de vitória do candidato Aécio Neves (PSDB),
os integrantes da ASA se posicionaram publicamente favoráveis à reeleição de Dilma,
temendo o fim das políticas de convivência com o semiárido, em caso de vitória do psdbista.
A primeira exposição da ASA se deu através de uma Carta, publicada em 10/10/2014,
intitulada “Pelas vidas e pela dignidade do semiárido, apoiamos Dilma”. A carta se inicia com
uma breve apresentação da história da Articulação, situando sua formação num contexto
político e social de grande estiagem, em que as soluções eram trazidas sob a perspectiva de
“combate à seca”. Naquele período, segundo o documento, as ações oficiais “desconheciam o
protagonismo dos agricultores e das agricultoras, sua capacidade de produzir conhecimentos e
de tomar a frente dos seus destinos” 486
. Ao mesmo tempo, as ações de “combate à seca”
eram, na prática, ineficientes, na medida em que, em decorrência das secas, “a morte era
comum na região, especialmente a morte de crianças” 487
. Diante daquele quadro, as
organizações da sociedade civil no semiárido, articuladas na ASA, tiveram a coragem de
lançar ao Brasil “uma crítica severa e forte ao modelo de „combate à seca‟ montado no tripé
„coronelismo, enxada e voto‟488
, e propor ações simples, de baixos custos e eficientes para
uma política pública na perspectiva da convivência com o Semiárido” 489
. Neste sentido, o
documento afirma que “foi nestes últimos 12 anos, nos governos Lula e Dilma [...], que a
ASA e suas organizações tiveram a oportunidade de propor várias ações que, assumidas hoje
como políticas de governo e até mesmo como Políticas Públicas, transformam a realidade na
região” 490
. Um dos resultados da parceria estabelecida é evidenciado no documento: a
perspectiva do alcance da marca histórica de um milhão de cisternas construídas até o fim do
ano (2014), o que equivale ao acúmulo de dezesseis bilhões de litros de água potável,
disponível para cerca de cinco milhões de pessoas. Com efeito,
É isso que explica o fato de – entre 2010 até o final de 2013 – o Semiárido
ter atravessado a maior estiagem dos últimos 30 anos, e em alguns lugares,
dos últimos 60 anos, e não ter tido nem uma só morte humana decorrente da
seca, embora tenhamos nos deparado com morte de animais, dizimação de
486
Cf. Anexos – Documentos – Pelas vidas e dignidade no Semiárido, apoiamos Dilma, 10/10/2014. 487
Idem. 488
Nota-se, aqui, a referência à importante obra de Victor Nunes Leal. Coronelismo, enxada e voto: O município
e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 489
Cf. Anexos – Documentos – Pelas vidas e dignidade no Semiárido, apoiamos Dilma, 10/10/2014. 490
Idem.
179
sementes e outros problemas. Esse resultado, a ASA credita à sua própria
ação e aos programas e políticas governamentais dirigidos ao Semiárido,
entre os quais se pode enumerar: Bolsa Família, Bolsa Estiagem, Seguro
Safra, Cisternas de Consumo Humano, Cisternas e Tecnologias Sociais para
captação de água para produção, ações na perspectiva da agroecologia,
assistência técnica, crédito adequado, início da política de sementes crioulas,
eletrificação rural, Minha Casa Minha Vida Rural, aumento real no valor do
salário mínimo, Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, Programa
Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, abertura de escolas, Institutos
Federais e campi de universidades públicas nos municípios rurais, entre
muitos outros491
.
É, neste sentido, “pela continuidade do projeto que aí está sendo construído” 492
que a
Articulação se manifesta, através do documento, em favor da reeleição de Dilma Rousseff.
Após a exposição dos referidos argumentos, apresentando-se algumas razões ao
posicionamento político adotado, inicia-se, na carta, uma reflexão crítica às opiniões
xenófobas que se tornaram recorrentes naquele contexto de disputa eleitoral, sobretudo em
redes sociais, muitas das quais associando a preferência por Dilma, no Nordeste, à ignorância
de sua população. No mesmo período, uma declaração proferida por Fernando Henrique
Cardoso (FHC), ex-presidente da República (PSDB), gerou polêmica, por seu suposto
conteúdo preconceituoso. Em entrevista à imprensa, FHC afirmou: “O PT está fincado nos
menos informados, que coincide de ser os mais pobres. Não é porque são pobres que apóiam
o PT, é porque são menos informados” 493
. Em seguida, completou: “Essa caminhada do PT
dos centros urbanos para os grotões é um sinal preocupante do ponto de vista do PT porque é
um sinal de perda de seiva ele estar apoiado em setores da sociedade que são, sobretudo,
menos informados” 494
.
Em provável alusão à declaração de FHC, emitida quatro dias antes da publicação da
carta, a ASA manifesta repúdio às “afirmações de todos aqueles e aquelas que caracterizam o
Semiárido e o Nordeste como lugar de povo desinformado e incapaz, desmerecem nosso voto
e expressam por meios de comunicação seus preconceitos e desconhecimento da realidade”
495. Além disso, no documento, se lamenta que “quem traz tamanha carga de preconceito
491
Cf. Anexos – Documentos – “Pelas vidas e dignidade no Semiárido, apoiamos Dilma”, 10/10/2014. 492
Idem. 493
“PT cresceu nos grotões porque tem voto dos menos informados, diz FHC”, Portal UOL, 06/10/2014,
disponível em: http://eleicoes.uol.com.br/2014/noticias/2014/10/06/fhc-pt-cresceu-nos-grotoes-porque-tem-voto-
dos-pobres-menos-informados.htm (Acesso em Ago./2015). 494
Idem. 495
Cf. Anexos – Documentos – “Pelas vidas e dignidade no Semiárido, apoiamos Dilma”, 10/10/2014.
180
contra nossa região, seja justamente quem teve a oportunidade fazer diferente e preferiu
apostar na velha política do „combate à seca‟” 496
.
Na conclusão do documento, algumas reivindicações são dirigidas à Dilma. Após se
afirmar que o “voto do povo do Semiárido é um voto inteligente, que expressa sua vontade,
sua história e seus processos de convivência com a região” 497
, na carta se evidencia que
“ampliar e consolidar significa também que o processo de convivência ainda exige muitas
outras ações e políticas que precisam ser assumidas pela Presidenta Dilma” 498
, incluindo-se,
aqui, a Reforma Agrária, democratização dos meios de comunicação, controle no uso de
agrotóxicos, entre outras ações que deveriam ser incorporadas, segundo a ASA, no programa
de governo da candidata do PT. Por fim, manifestadas as demandas consideradas relevantes
pela a Articulação, o documento é finalizado com um chamado para que “todas as
organizações, famílias e pessoas que aqui vivem, e que tiveram suas trajetórias mudadas nos
últimos anos, a ocupar as ruas e as urnas por mais vida e mais dignidade no Semiárido” 499
.
No dia 21 de outubro, a ASA materializou seu chamado às ruas, em apoio à Dilma,
através de mais um grande ato público, realizado novamente nas ruas das cidades de
Petrolina-PE e Juazeiro-BA. Contudo, se aquele de 2011, diante da ameaça de quebra de
parceria entre a ASA e o governo, era um ato crítico à Dilma; este, por outro lado, expressava
apoio à sua candidatura, valorizando-se as conquistas para o semiárido, advindas do seu
primeiro mandato500
.
Este ato teve início pela manhã, em Juazeiro-BA, de onde os cerca de 30 mil
camponeses saíram em marcha, portando bandeiras e cartazes, evidenciando, em seus
discursos e escritos, a importância das políticas públicas de convivência com o semiárido,
gestadas pela ASA (Foto 12). Após uma caminhada pela cidade, os participantes
concentraram-se na área central de Petrolina, diante de um grande palco montado
exclusivamente para o ato. Ali, discursaram lideranças de movimentos sociais ligados à
Articulação, além de alguns políticos dedicados, direta ou indiretamente, à problemática da
convivência com o semiárido.
496
Idem, grifo nosso. 497
Cf. Anexos – Documentos – “Pelas vidas e dignidade no Semiárido, apoiamos Dilma”, 10/10/2014. 498
Idem. 499
Idem. 500
As informações referentes a este ato, aqui contidas, além das fontes secundárias (publicações da imprensa e
da própria ASA), foram obtidas através de trabalho de campo, realizado em Petrolina-PE/Juazeiro-BA, em
21/10/2014. Neste, além da observação direta e de conversas informais com participantes do ato, pudemos fazer
registros fotográficos e gravar os discursos de Dilma Rousseff, da ministra do MDS, Tereza Campello, bem
como de militantes e representantes de organizações e movimentos que integram a ASA.
181
Foto 12 – Segurando um cartaz com a frase “Somos nordestinos de Coração Valente”, em referência a um slogan de
campanha da candidata Dilma Rousseff, milhares de camponeses marchando sobre a ponte de Juazeiro-BA/Petrolina-PE.
Foto: Thiago A. Santos. Out./2014.
Foto 13– Saudação de Dilma Rousseff aos milhares de camponeses presentes no ato em seu apoio. Petrolina-PE. Foto Thiago
A. Santos.Out./2014.
182
Discursaram no ato a então ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(MDS), Tereza Campello, além da própria Dilma Rousseff (Foto 13). Na cerimônia,
representantes da ASA entregaram um presente à candidata e, em seguida, uma carta
contendo alguns “pontos de exigência”, que foram lidos diante de Dilma e da platéia. O clima
era de homenagens e pleno apoio. Os “pontos de exigência” foram aqueles já anteriormente
assumidos pela própria Carta de Apoio, publicada pela ASA cerca de uma semana antes do
ato501
.
Tereza Campello, anunciada pelos militantes presentes como “a ministra dos
movimentos sociais”, evidenciou, em seu discurso, a existência de dois projetos para o
semiárido, representado pelas duas candidaturas em disputa: o primeiro deles, assentado na
perspectiva de “combate à seca”, é, em suas palavras, liderado por Aécio Neves e FHC, tendo
se concretizado na estiagem dos anos 2000, 2001 e 2002. Este projeto resultou em êxodo,
saques, sofrimento e desesperança, segundo a ministra. Por outro lado, para Campello, o
projeto representado por Lula e Dilma, em vigor no presente, é aquele da “convivência com o
semiárido”:
[...] nós não queremos lutar contra a seca, não tem como lutar contra a seca,
mas tem como construir cisternas, sim, para conviver com a seca; tem como
fazer parceria com as entidades aqui do Nordeste, como é a ASA, como é a
Contag, como é Fetraf, como são os movimentos sindicais, tem como estar
com vocês construindo um novo projeto de desenvolvimento502
.
A demarcação das opostas posições, entre os dois projetos voltados ao semiárido,
também marcou o discurso de Dilma Rousseff. Neste caso, além das contradições
programáticas entre os dois projetos, a candidata evidenciou, em suas palavras, uma distinção
quanto ao modo de lidar com o semiárido e com o Nordeste, ratificando, em seu discurso, o
acirramento da polaridade regional. Em sua fala, Dilma recorreu aos sentimentos regionalistas
dos presentes, valorizando a “identidade do semiárido”, estabelecendo uma oposição entre a
região e os “tucanos”, qualificados como alheios àquela realidade503
. Isto se torna evidente já
na abertura de seu discurso:
Bom dia e boa tarde, semiárido! Bom dia pra todos vocês aqui! Pra mim é
mais do que uma honra, é um imenso orgulho estar aqui com vocês do
semiárido. É um imenso orgulho porque nós, juntos, estamos mudando a
501
Cf. Anexos – Documentos – “Pelas vidas e dignidade no Semiárido, apoiamos Dilma”, 10/10/2014. 502
Discurso da ministra do MDS, Tereza Campello, em ato organizado pela ASA, em apoio à reeleição da
presidenta Dilma Rousseff. Petrolina-PE, 21/10/2014, grifo nosso. 503
Cabe mencionar que o slogan do evento foi “Dilma pelo semiárido”.
183
realidade do semiárido. Então, eu quero dizer pra vocês, um “viva” aqui
para esta região, que é uma das regiões mais importantes deste país, apesar
do que acham os tucanos! Porque os tucanos falaram que os meus votos, os
votos que eu recebi no semiárido, no Nordeste [...] eram de pessoas
ignorantes. Nós somos ignorantes, porque nós ignoramos os tucanos! Nós
não reconhecemos nos tucanos alguém que fez uma política a favor de
nenhum estado brasileiro, muito menos do Nordeste504
.
Situando-se como parte da região, “porque nós, juntos, estamos mudando a realidade
do semiárido”, Dilma ratifica os limites que definem sua posição e aquela dos “tucanos”, em
referência aos psdbistas, operando uma distinção entre um lado, que desenvolveu políticas
pela região, e outro, que não é reconhecido como realizador de “uma política a favor de
nenhum estado brasileiro, muito menos do Nordeste” 505
. A candidata prossegue sua
explanação afirmando que eles, que têm uma visão ultrapassada do Brasil, “não sabem que o
Brasil e esta região do Brasil estão mudando pelo braço, a garra, o esforço de seu próprio
povo e pelas oportunidades que os governos do presidente Lula e o meu governo fizeram aqui
no semiárido” 506
. Após discorrer sobre algumas conquistas e políticas surgidas ou
fortalecidas em seu primeiro mandato presidencial, a candidata concluiu sua fala fazendo uma
referência à relação estabelecida entre seu governo e a ASA. Sobre isto, afirmou:
Eu tenho muito orgulho dessa parceria que nós fizemos aqui com todos os
movimentos sociais que estão aqui representados. Tenho orgulho do um
milhão de cisternas que nós construímos com a ASA, que nós construímos
aqui. É uma realização e eu sei que vocês sempre tiveram garra, sempre
lutaram, sempre defenderam uma vida melhor para suas famílias507
.
Contando com forte aclamação dos presentes, a candidata petista se despediu de
Petrolina, seguindo sua programação de campanha, em viagem a outras cidades508
. Enquanto
isto, dezenas de ônibus retornaram aos diversos municípios do semiárido, repletos de
504
Discurso da então candidata à presidência da República (Brasil), Dilma Rousseff, em ato organizado pela
ASA, em apoio à sua reeleição. Petrolina-PE, 21/10/2014. 505
O discurso de Dilma Rousseff, em Petrolina, teve considerável repercussão na imprensa brasileira. Cf., por
exemplo: “„Somos ignorantes porque ignoramos os tucanos‟, diz Dilma no Nordeste”, Folha de São Paulo,
21/10/2014, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/10/1535877-somos-ignorantes-porque-
ignoramos-os-tucanos-diz-dilma-no-nordeste.shtml (Acesso em Ago./2015); “ONGs parceiras reforçam eventos
de Dilma em Pernambuco”, O Globo, 22/10/2014, disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/ongs-parceiras-
reforcam-eventos-de-dilma-em-pernambuco-14320551 (Acesso Ago./2015). 506
Idem. 507
Discurso da então candidata à presidência da República (Brasil), Dilma Rousseff, em ato organizado pela
ASA, em apoio à sua reeleição. Petrolina-PE, 21/10/2014, grifo nosso. 508
Ainda no mesmo dia, Dilma se dirigiu a uma fábrica da Jeep, empresa automobilística do grupo Fiat, em
Goiania-PE, onde dividiu o palanque com o ex-presidente Lula.
184
camponeses, vestidos de vermelho, portando bandeiras de suas organizações e movimentos,
além de adesivos e demais materiais de campanha509
.
A considerável adesão dos camponeses ao ato, somada à própria presença de Dilma
Rousseff e da ministra Tereza Campello, em Petrolina, representou um importante momento
de manifestação pública de apoio ao governo petista, por parte dos movimentos sociais
atuantes no semiárido510
. Tal como nos demais atos, organizados pela ASA, foi colocada em
movimento a estrutura organizativa da Articulação, servindo esta a uma rápida e efetiva
mobilização de camponeses oriundos de diversos municípios. Ademais, como parte deste
processo, recorreu-se, como importante justificativa de mobilização, às conquistas concretas
distribuídas pela porção mais seca do território nacional, que materializaram, nas
comunidades, alternativas eficazes à convivência com o semiárido nos adversos tempos de
estiagem.
Por fim, parece-nos relevante considerar que, neste contexto, a atuação da ASA – sua
imersão em um complexo e contraditório jogo relacional com o Estado e com agentes
privados – transcende os limites desta relação em particular. Como vimos neste capítulo, os
enredamentos institucionais da ASA comos governos petistas ocorrem, mais fortemente, em
um cenário de adensamento dos vínculos entre sociedade civil e Estado, sob uma perspectiva
de abertura das instituições democráticas à participação popular em ações político-
propositivas, configurando-se, como consequência, aquilo que Adel Mirza qualificou como
“cidadania organizada” 511
.
O Governo Lula (PT) – que demarca o momento a partir do qual os programas da
ASA são convertidos em políticas públicas – representa um referencial importante na
montagem deste cenário, ainda presente sob a gestão de Dilma Rousseff. Marcado pela
redefinição dos termos da relação dos movimentos sociais com a institucionalidade estatal, o
quadro em foco suscita interpretações diversas e contraditórias quanto aos limites ou
potencialidades advindas do contexto político-integrativo aos movimentos sociais. Neste
contexto, o problema da autonomia dos movimentos sociais, de grande impulso nos anos
1970/1980, volta a alimentar amplas controvérsias político-teóricas no campo das ciências
sociais.
509
Segundo informações obtidas através de lideranças da ASA, só da Paraíba dirigiram-se à Petrolina-PE 25
ônibus, transportando 1050 pessoas. 510
No dia 26/10/2014, a candidata Dilma Rousseff foi reeleita presidenta do Brasil, tendo obtido 51,64% dos
votos válidos contra 48,36% do seu oponente, Aécio Neves, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE). 511
Christian Adel Mirza. op. cit., p. 34.
185
Em famoso ensaio sobre o tema, referenciando-se nos dois mandatos do Governo
Lula, o sociólogo Francisco de Oliveira elabora uma frutífera reflexão, apoiando-se no aporte
teórico gramsciano, como recurso interpretativo ao desvendamento da “esfinge lulista” 512
. A
tese do autor é a de que estamos diante de uma “hegemonia às avessas”, típica da era da
globalização. Esta hegemonia sui generis se caracterizaria pela concessão, por parte das
classes dominantes, da “direção moral” da sociedade para as classes dominadas, mantendo o
“mito da capacidade popular para vencer seu temível adversário, enquanto legitima a
desenfreada exploração pelo capitalismo mais impiedoso” 513
. Segundo Oliveira, a longa “era
da invenção” – período de emergência movimentalista dos anos 1970 e 1980 – forneceu “a
direção moral da sociedade brasileira na resistência à ditadura e alçou a questão da pobreza e
da desigualdade ao primeiro plano da política” 514
. Sob os governos petistas515
, por outro lado,
ocorre a “despolitização da gestão da pobreza e desigualdade” 516
, que passam a ser tratadas
como “problemas de administração” 517
. Com efeito,
Parece que os dominados dominam, pois fornecem a “direção moral” e,
fisicamente até, estão à testa de organizações do Estado, de modo direto ou
indireto, e das grandes empresas estatais. Parece que eles são os próprios
capitalistas, pois os grandes fundos de pensão das estatais são o coração do
novo sistema financeiro brasileiro e financiam pesadamente a dívida interna
pública. Parece que eles comandam a política, pois dispõem de poderosas
bancadas na Câmara dos Deputados e no Senado. Parece que a economia
está finalmente estabilizada, que se dispõe de uma sólida moeda e que tal
façanha se deveu à política governamental, principalmente no primeiro
mandato de Lula518
.
512
A parte do livro que contém seu ensaio foi intitulada “Hegemonia às avessas: decifra-me ou te devoro!”, em
referência ao famoso enigma da esfinge, descrito mitologicamente como um monstro com cabeça de mulher,
peito e patas de leão, com asas como uma ave de rapina. Segundo a mitologia, este monstro “foi enviado por
Hera contra Tebas para castigar a cidade pelo crime de Laio, que amara o filho de Pélops, Crisipo, em amores
culpados. Estabeleceu-se numa montanha situada a oeste de Tebas, nas proximidades da cidade. Daí, assolava a
região devorando os seres humanos que lhe passavam ao alcance. Sobretudo, apresentava enigmas aos viajantes,
que não os conseguiam decifrar. Então, matava-os. Somente Édipo conseguiu responder-lhe. Desesperado, o
monstro atirou-se de um rochedo e matou-se” Cf. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. 5a ed. Rio de
Janeiro; 2005. Esfinge; p. 149. 513
Francisco de Oliveira. Hegemonia às avessas. in Francisco de Oliveira, Ruy Braga e Cibeke Rizek,
organizadores. Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo:
Boitempo, 2010, p. 24. 514
Idem. 515
O autor circunscreve sua análise aos dois mandatos do ex-presidente Lula. Contudo, parece-nos válido
extrapolar sua tese também para o primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, tendo em vista a manutenção
dos vínculos estabelecidos pelo seu antecessor entre as organizações da sociedade civil e a institucionalidade
estatal. 516
Francisco de Oliveira. op. cit., loc. cit. 517
Idem. 518
Ibidem, p. 26.
186
O sociólogo argumenta que, escondida sob “conjunto de aparências” subjaz outra
coisa “para a qual ainda não temos nome nem, talvez, conceito” 519
. Reivindicando a
elaboração de Marx e Engels em A Ideologia Alemã520
, Oliveira explica que o consentimento
sempre foi “o produto de um conflito de classes em que os dominantes, ao elaborarem sua
ideologia, que se converte em ideologia dominante, trabalham a construção das classes
dominadas a sua imagem e semelhança” 521
. Sob o arranjo político-institucional analisado
pelo autor, estamos em face de uma nova dominação: “os dominados realizam a „revolução
moral‟ [...] que se transforma, e se deforma, em capitulação ante a exploração desenfreada”
522. Neste sentido, Oliveira conclui, definindo o caráter “avesso” da hegemonia em foco:
Nos termos de Marx e Engels, da equação “força + consentimento” que
forma a hegemonia desaparece o elemento “força”. E o consentimento se
transforma em seu avesso: não são mais os dominados que consentem em
sua própria exploração; são os dominantes – os capitalistas e o capital,
explicite-se – que consentem em ser politicamente conduzidos pelos
dominados, com a condição de que a “direção moral” não questione a forma
da exploração capitalista523
.
Compartilhando com Oliveira o esforço de compreensão dessa realidade, o cientista
político André Singer apresenta importantes contribuições à problemática em análise. Este
autor, qualificando o fenômeno do “lulismo”, observa que emerge no cenário brasileiro uma
nova orientação ideológica, antes ausente do tabuleiro político nacional. Nas palavras de
Singer, “o lulismo, ao executar o programa de combate à desigualdade dentro da ordem,
confeccionou uma nova via ideológica, com a união de bandeiras que não pareciam
combinar” 524
. Segundo o autor, aprofundando sua hipótese, os mandatos de FHC deixaram
como legado um pacto com a burguesia que envolvia juros altos, liberdade de movimento dos
capitais e contenção dos gastos públicos. Diante disto, “a continuidade [no Governo Lula] do
pacote „FHC‟ foi posta pela burguesia como condição de não haver „guerra‟ de classes e
conseqüente risco de o governo ser acusado de destruir o Real525
” 526
. Incorporando tal
legado, assumindo o pacto político nele contido, o ex-presidente petista “vocalizou, então, o
519
Francisco de Oliveira. op. cit., loc. cit.. 520
Karl Marx e Friedrich Engels. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus
representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846).
São Paulo: Boitempo, 2007. 521
Francisco de Oliveira. op. cit., loc. cit. 522
Idem. 523
Idem. 524
André Singer. Raízes sociais e ideológicas do lulismo. Novos Estudos. 2009, p. 96, grifo do autor. 525
Neste ponto, Singer faz referência ao Plano Real – programa criado em 1994, por FHC, com o propósito de
estabilizar a economia e controlar a inflação. 526
Ibidem, p. 97.
187
discurso conservador de que o seu governo não adotaria qualquer plano que pusesse em risco
a estabilidade, preferindo administrar a economia com a „prudência de uma dona de casa‟” 527
.
Contudo, nas palavras do autor, o “pulo do gato de Lula”, distinguindo-o de FHC, foi, sobre o
pano de fundo da ortodoxia econômica, “construir uma substantiva política de promoção do
mercado interno voltado aos menos favorecidos, a qual, somada à manutenção da
estabilidade, corresponde nada mais nada menos que à realização de um completo programa
de classe” 528
. Neste sentido, o cientista político observa que, além de medidas de alcance
geral,
[...] que propiciaram a ativação de setores antes inexistentes na economia
(por exemplo, clínicas dentárias para a baixa renda), uma série de programas
focalizados, como o Luz para todos (de eletrificação rural), regularização
das propriedades quilombolas, construção de cisternas no semiárido etc.
favoreceram o setor de baixíssima renda529
.
O sociólogo Ruy Braga, por sua vez, problematizando os efeitos politicamente
regressivos da hegemonia lulista, efeitos estes decorrentes da absorção de forças sociais
antagônicas no aparato estatal, apresenta uma hipótese segundo a qual estaríamos diante de
uma “revolução passiva à brasileira”, recorrendo, pois, ao conceito gramsciano elaborado a
partir da análise do Risorgimento italiano530
. Para tal, Braga delimita a particularidade do
Governo Lula, distinguindo-o, em certa medida, do matiz neoliberal de seu antecessor (FHC),
“exatamente porque, no intuito de constituir certas margens de consentimento popular, ele
[Lula] deveria responder a determinadas demandas represadas dos movimentos sociais” 531
.
Para o autor,
527
Idem. 528
André Singer. op. cit., p. 98, grifo do autor. 529
Ibidem, p. 93, grifo nosso. 530
Em artigo onde discute o conceito de “revolução passiva”, Alvaro Bianchi sintetiza seus fundamentos na
elaboração de Gramsci: “No centro da análise é colocada a ascensão da burguesia ao poder em aliança com
aquelas classes que, na França, haviam sido deslocadas pela revolução. Era retomado, assim, um tema caro à
tradição marxista, tema esse que aparecia em A luta de Classes na França e O 18 Brumário de Luis Bonaparte,
de Karl Marx e em Revolução e Contra-revolução na Alemanha, de Friedrich Engels. A pergunta-chave é: pode
a burguesia ascender ao poder sem passar pelo calvário da revolução? É esse material histórico e são essas
análises de Marx e Engels, que Gramsci tem em mente quando procura nas fórmulas de revolução passiva e
restauração-revolução a chave explicativa para o processo de ascensão da burguesia italiana. A comparação com
o caso francês é, aqui, fundamental. Seu espectro rondava a Europa. Ela fornecia o exemplo daquilo que as
classes dominantes queriam evitar. Era a revolução clássica”. Cf. Alvaro Bianchi. Revolução passiva: o pretérito
do futuro. Crítica Marxista. 2006, p. 44. 531
Ruy Braga. Hegemonia às avessas: apresentação. in Francisco de Oliveira, Ruy Braga e Cibeke Rizek,
organizadores. Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo:
Boitempo, 2010, p. 10.
188
[...] a hegemonia lulista satisfaz, se não completamente, em grande medida,
as premissas gramscianas a respeito tanto da “conservação”, isto é, a reação
“dos de cima” ao subversivismo inorgânico das massas, quanto à
“inovação”, ou seja, a incorporaçao de parte das exigências “dos de baixo”.
Trata-se naturalmente de uma dialética multifacetada e tensa
(“inovação/conservação”, “revolução/restauração”) que catalisa um
reformismo “pelo alto”, conservador, é verdade, porém dinâmico o
suficiente para não simplesmente reproduzir o existente, mas capaz de abrir
caminhos para novas mudanças – progressistas (no caso do fordismo,
analisado pelo genial sardo no Caderno 22) ou regressivas (no caso do
fascismo) 532
.
A perspectiva apresentada pelo autor demanda a consideração da “dialética
multifacetada e tensa”, constitutiva dos processos sociais em curso, exigindo a rejeição às
categorizações antitéticas – portanto, não dialéticas – que reduzem os processos sociais ao par
autonomia versus cooptação. Este, a nosso ver, é o grande desafio colocado para o
equacionamento analítico da relação movimento social-Estado na contemporaneidade,
particularmente sob as contradições engendradas nos governos petistas, problematizadas neste
capítulo.
Diante deste quadro contraditório, com base nos argumentos acima elencados,
consideramos pertinente apresentar duas questões fundamentais para esboçar algumas
considerações conclusivas, neste capítulo, em nossa abordagem sobre a ASA: (1) seria a
prática movimentalista (assumida pelos integrantes da Articulação, em diversos momentos de
sua atuação, como mencionamos anteriormente), uma mera forma (ou, como delimitou Marx,
uma “aparência necessária”, ideológica, portanto) da presença do Estado que, em seu
conteúdo, absorveria os movimentos, neutralizando-os em seu campo? Ou, ao contrário, (2)
estaríamos diante de uma apropriação efetiva, por parte dos camponeses articulados pela
ASA, de um novo espaço de luta (o Estado), sendo a conquista de recursos financeiros para a
execução de projetos um ganho político concreto, ainda que parcial, podendo este ser
convertido em potencial de transformação social e emancipação política?
A resposta a tal questionamento requer algumas considerações. Em primeiro lugar,
cabe reiterar que o processo de enredamento das organizações e movimentos à racionalidade
estatal, para a execução das políticas públicas, impôs ao seu quadro a inserção num novo
campo de atuação, engendrando-se, como parte do processo emergente, amplas mudanças
institucionais no seio da Articulação, tornando-se esta uma organização plenamente adaptada
ao pragmático contexto de execução de políticas públicas. A nosso ver, a partir dos dados e
referenciais analisados neste trabalho, os compromissos institucionais que advêm deste
532
Ibidem, p. 11, grifo nosso.
189
movimento integrativo não anulam a reprodução dos códigos ético-políticos movimentalistas,
nas ações cotidianas dos integrantes da ASA, mantendo-se, por isto, uma potencialidade
política, ao menos formal (organizativa), para reivindicações emancipatórias mais amplas.
Neste sentido, não nos parece temerário concluir que tal estrutura organizativa e os códigos
ético-políticos nela reproduzidos criam condições objetivas para mobilizações políticas que
transcendam os limites geográficos do semiárido, criando meios para urdir futuras
articulações de classe em âmbito nacional ou supranacional, motivadas por contextos políticos
adversos às organizações e movimentos que a constituem. Por isto, o categórico argumento de
que a relação integrativa implica per si no “seqüestro” dos movimentos, constituindo-se,
como tal, uma relação essencialmente negativa, parece-nos insuficiente, se referida a uma
organização como a ASA, na medida em que desconsidera eventuais potencialidades e
implicações político-organizativas decorrentes dos vínculos estabelecidos.
Ao mesmo tempo, com base nas evidências aqui discutidas e problematizadas,
estamos convencidos de que o reformismo “pelo alto”, levado adiante nos governos petistas,
resultou, concretamente, na incorporação de parte das exigências dos “de baixo”. Por um lado,
tendo em foco a realidade do semiárido, pudemos demonstrar a importância social das
políticas executadas para populações economicamente carentes, particularmente como
resultado da disseminação das tecnologias de captação hídrica (cisternas de produção de
alimentos, cisterna de abastecimento doméstico e outras tecnologias). Ao viabilizar, até o
momento, a reprodução de cisternas para quase 3 milhões de pessoas, antes dependentes de
fontes precárias de abastecimento, em reservatórios que, somados, acumulam cerca de 9
bilhões de litros de água limpa, as ações de convivência com o semiárido municiam os
camponeses para o enfrentamento do “drama da seca” de uma forma diametralmente distinta
daquela que, até então, orientava as políticas oficiais dirigidas ao semiárido. Sob as ações de
“convivência”, o acesso descentralizado à água potável, nos quintais das casas dos
camponeses, através das cisternas e demais tecnologias, garante a sobrevivência da população
sertaneja nos adversos tempos de estiagem, redesenhando-se, como consequência, a própria
imagem da região, tão marcada pela calamidade e miséria do seu povo. Diante disto, a nosso
ver, considerar a incorporação pelo Estado de soluções concretas, voltadas ao suprimento de
demandas sociais, na realidade em questão, enquanto uma ação política unilateral, isto é,
como operação instrumental de cooptação de movimentos, pelo Estado, implica abdicar da
190
própria realidade social, vivenciada pelos homens e mulheres reais, enquanto referencia
analítica, negando a própria dialética constitutiva dos processos em curso533
.
Por outro lado, vimos ainda que, em seu processo de constituição, através da
mobilização de estratégias político-organizativas “herdadas” da “era da invenção”, nos anos
1970-1980, as organizações e movimentos sociais criam meios de reproduzir, no conteúdo de
suas práticas, um conjunto de valores ético-políticos como aquele da autonomia – traduzidos
em termos de conquista de direitos, alcance da cidadania, acesso a políticas públicas, etc. –
operando-se, com efeito, nos interstícios da institucionalidade estatal. Como consequência,
consideramos que, em meio a esta realidade prenhe de contradições, as organizações e
movimentos sociais integrantes da ASA, forjando suas ações de convivência com o semiárido,
estão promovendo formas de “socialização da política”, entre os camponeses, abrindo, mesmo
que limitadamente, descontínuas brechas – espaços que podem ser ocupados pela
subjetividade criadora, germe de novas iniciativas.
O Estado, figurado na contemporaneidade por traços confusos, seguramente assustaria
a Édipo. Diante da nova esfinge, aquele que salvou Tebas provavelmente reconheceria, nas
feições estatais, esboçadas neste capítulo, outro mito: o deus romano Jano, associado pelo
poeta Ovídio ao caos primordial, dada a aparência indistinta que o seu duplo aspecto
denota534
. Suas duas faces, com miradas aparentemente em sentidos opostos, tornam a
assimilação de suas expressões algo difícil. O deus romano das mudanças e das transições
olha, a um só tempo, ao passado e ao futuro. Acreditamos que o novo desafio – teórico e
político – inscreve-se, diante do abstruso semblante, na identificação do devir.
533
Identificamo-nos, aqui, com o posicionamento adotado por E. P. Thompson: “a história não pode ser
comparada a um túnel por onde um trem expresso corre até levar sua carga de passageiros em direção a planícies
ensolaradas. Ou então, caso o seja, geração após geração de passageiros nasceram, vivem na escuridão e,
enquanto o trem ainda está no interior do túnel, aí também morreram. Um historiador deve estar decididamente
interessado, muito além do permitido pelos teleologistas, na qualidade de vida, nos sofrimentos e satisfações
daqueles que vivem e morrem em tempo não redimido”. Edward Palmer Thompson. Folclore, antropologia e
história social. in Luigi Antonio Negro e Sergio Silva, organizadores. As peculiaridades dos ingleses e outros
artigos. Campinas: Ed. Unicamp, 2001. 534
“El fuego, el agua, y la tierra era un montón./Pero luego que esta masa se apartó con la contrariedad de sus
qualidades/ Y desatada se fue a nuevos lugares,/La llama subió al Cielo, el aire ocupó el inmediato lugar,/ La
tierra, y el mar tomaron el lugar del medio./ Entonces yo, que había sido Globo, y pero sin forma, / Me volví à
imagen, y à miembros dignos de un Dios./Ahora también, porque una pequeña señal tengo de la confusa figura,/
Parece lo mismo en mi lo que está delante, y atrás”. Cf. Publio Ovidio Nasón. Fastos. Madrid: Imprenta de los
herderos de francisco del hierro, 1737 (Libro I), p. 9.
191
CONSIDERAÇÕES FINAIS – CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO: ideologia geográfica
de um regionalismo de resistência
192
“Este ato é importante para fortalecer nossa identidade”, afirmou uma liderança da
ASA, na manifestação de apoio à reeleição de Dilma Rousseff à presidência do Brasil, em
outubro de 2014. “Dilma pelo semiárido!” era o slogan que explicitava o apoio assumido
pelos cerca de 30 mil camponeses, vestidos de vermelho, que ocupavam as ruas e a praça
principal de Petrolina. Sustentando imagens da então candidata e do ex-presidente Lula, em
tonalidade rubra, nos moldes das fotografias de Lênin, na Rússia revolucionária, os
camponeses erguiam seus cartazes e bandeiras com mensagens assinadas por organizações,
associações, ONGs e movimentos sociais atuantes no semiárido brasileiro. A preocupação dos
camponeses e lideranças dos movimentos e organizações que integravam o ato era, naquela
ocasião, a possível vitória eleitoral do oponente político de Dilma, Aécio Neves (PSDB).
“Fortalecer nossa identidade”, vencendo o candidato psdbista, “pelo semiárido”, mostrava-se
como a principal bandeira de luta erguida no ato público que mobilizou homens e mulheres
dos sertões do Brasil, no “outubro vermelho” de Petrolina.
A defesa da reeleição de Dilma Rousseff expressava, naquele ato público, a luta pela
continuidade de um projeto: o de convivência com o semiárido. A manutenção das políticas
desenvolvidas pela ASA foi assumida como demanda urgente, no cenário de indeterminações
que ora se apresentava. No ponto de vista das organizações e movimentos, tratava-se, na
prática, de reeleger Dilma e manter a parceria estabelecida desde 2003, com Lula, que alçou
centenas de ONGs, sindicatos, movimentos sociais e coletivos, que já atuavam em prol do
desenvolvimento de estratégias, tecnologias e ações alternativas, no semiárido, para o campo
da política institucional.
Com a emergência do governo Lula (2003), a luta contra a perspectiva de combate à
seca foi projetada, pelas mãos da ASA, enquanto ação política propositiva, resultando nos
programas voltados à convivência com o semiárido, adotados num contexto contraditório de
um Estado – em sua mitológica feição multifacetada – que absorvia forças políticas
antagônicas sob seus limites. Diante da dupla face de Jano535
, a ASA foi constituída como
espaço de convergência política, configurando uma complexa estrutura organizativa que
535
Cf. Capítulo 3.
193
permitia a execução dos programas assumidos através da articulação de organizações e
movimentos de vários estados que compõem o semiárido brasileiro.
As ações em rede, as comissões temáticas, as tecnologias e experiências desenvolvidas
no campo da agroecologia, educação contextualizada, captação hídrica, fundos rotativos,
acesso à terra, conservação de sementes, entre outras, coexistiram à redefinições no plano
institucional da Articulação. Neste sentido, ao mesmo tempo em que mantinham e fortaleciam
suas ações multitemáticas, “nas bases”, as organizações e movimentos, adequando-se aos
padrões institucionais da política estatal, criavam a AP1MC – OSCIP voltada à administração
técnica e gestão dos recursos financeiros obtidos, sendo esta associação conduzida por
representantes dos movimentos e organizações ligadas à ASA. Assim, a constituição das
Unidades de Gestão Microrregionais (UGMs), Unidades Executoras Locais (UELs), bem
como as comissões municipais, representadas por associações e coletivos locais, configurou
uma estrutura organizativa que abria a possibilidade de uma melhor atuação em distintas
escalas geográficas, possibilitando a rápida comunicação entre organizações/movimentos,
bem como o alargamento da capilaridade política da ASA, nos municípios que fazem parte do
semiárido brasileiro. Esta reconfiguração político-organizativa se apresentou como condição
importante para viabilizar a execução dos programas assumidos pela Articulação e alargar o
alcance de suas ações.
A internalização dos movimentos e organizações na esfera do Estado seguramente
impôs importantes mudanças na prática cotidiana dos quadros que integram a Articulação.
Ainda que membros da ASA – particularmente aqueles ligados a ONGs de assessoria técnica
– já estivessem habituados às burocracias demandadas pela gestão de recursos financeiros, na
execução dos seus projetos junto às comunidades, o cenário de inserção dos movimentos
sociais no “plano cinzento da política dos gabinetes” 536
, a partir de 2003, implicou novos
ajustes. Os frequentes relatórios, prestações de conta, reuniões de planejamento para a
execução de atividades ligadas aos programas assumidos, entre outras atividades burocráticas,
passaram a fazer parte da dinâmica de trabalho no interior nas sedes e secretarias dos
Sindicatos, ONGs e movimentos. Ao mesmo tempo, a “correria” para o cumprimento das
metas estabelecidas para a construção de cisternas e outras tecnologias, somada às
preocupações de integrar uma organização que mobiliza um significativo aporte de recursos
financeiros, se expressam na conformação dos quadros da Articulação às funções técnicas e
536
Ruy Braga. Apresentação. in Francisco de Oliveira, Ruy Braga e Cibeke Rizek, organizadores. Hegemonia às
avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 9.
194
administrativas exigidas, resultando na aderência à lógica institucional do Estado, reprodução
de sua linguagem e execução de atividades correspondentes.
O ajuste das organizações e movimentos aos padrões institucionais exigidos pelo
Estado é acompanhado pelo inevitável risco do “transformismo”, apontado por Francisco de
Oliveira, em sua análise inspirada no conceito desenvolvido por Gramsci para a compreensão
do Risorgimento italiano. Neste sentido, enquanto um aspecto da função de domínio, pelas
elites, o transformismo implicaria na decaptação dos grupos inimigos e “sua aniquilação por
um período frequentemente muito longo” 537
. Assim, segundo a posição de Oliveira, ao
absorver no Estado as esquerdas que, na longa “era da invenção” dos anos 1970/1980,
alçaram a questão da pobreza e da desigualdade ao primeiro plano da política, a hegemonia
lulista teria funcionalizado tais problemáticas, despolitizando-as e transformando-as numa
questão administrativa, o que teria resultado no “seqüestro” das centrais sindicais e
movimentos sociais e no seu desaparecimento da agenda política538
. A leitura do autor, se
direcionada à realidade em estudo, levaria à hipótese de uma sobreposição das funções
técnicas e administrativas à tradicional feição movimentalista que definia as organizações e
movimentos sociais antes do estabelecimento das relações de parceria com o Estado,
esvaziando-se, assim, seu potencial disruptivo e sua capacidade de inovação política. Deste
modo, como consequência, o ato de Petrolina, em apoio à reeleição de Dilma, em outubro de
2014, expressaria o “consentimento ativo” das massas à hegemonia dos governos petistas.
Nesta tese, entretanto, ao focarmos na dimensão política das ações da ASA, notamos
não a mera substituição do caráter “militante” das organizações e movimentos pelas funções
técnicas e administrativas. Identificamos, isto sim, um cruzamento dialético entre as duas
“feições”, emergindo, em meio às atividades cotidianas dos quadros da organização, um
conjunto de expressões que evidenciam a persistência de uma “herança movimentalista” –
acumulada em décadas anteriores – nos interstícios das atividades realizadas. Com isto,
estamos afirmando que os enredamentos político-institucionais resultantes da função
assumida de “administradores do fundo público” – na “tradução” e “articulação” das
demandas populares539
– não implicaram per si a abdicação dos objetivos historicamente
537
Antonio Gramsci. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 63. 538
Francisco de Oliveira. Hegemonia às avessas. in Francisco de Oliveira, Ruy Braga e Cibeke Rizek,
organizadores. Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo:
Boitempo, 2010, p. 25. Neste sentido, nas palavras de Ruy Braga: “O fato é que o subversivismo inorgânico
transformou-se em consentimento ativo para muitos militantes sociais, que passaram a investir esforços
desmedidos na conservação das posições adquiridas no aparato estatal”. Cf. Ruy Braga. op. cit., p. 13. 539
“Além da função de „classe ponte‟, [...] as novas classes médias têm, agora, as funções de tradutor e
articulador das demandas particulares, privadas, na operação de confluência, negociação e viabilização de
interesses, antagônicos ou não. Principalmente no acesso às diversas formas de fundo público que regulam a
195
assumidos pelas organizações e movimentos, mas na sua adaptação a uma arena distinta, com
seus correspondentes limites e potencialidades particulares. Por um lado, como buscamos
demonstrar, isto resultou no atendimento de parte importante das “exigências dos de baixo”,
através dos programas executados pela ASA (P1MC e P1+2), respondendo-se, pois, aos
interesses dos camponeses e dos movimentos/organizações. Por outro lado, ao sustentar
processos organizativos assentados em princípios como o da autonomia, na perspectiva do
“povo como sujeito da própria história”, a Articulação vem promovendo formas de
socialização da política, entre os camponeses, abrindo espaço para potenciais horizontes de
reivindicação mais amplos (espacial e socialmente).
Cabe, ademais, problematizar o cruzamento entre a dimensão política – até aqui
discutida – com a espacialidade da atuação da ASA, em sua dialética relação com o Estado.
Os elos estabelecidos entre organizações, sindicatos, movimentos sociais, coletivos e grupos
locais, como parte da configuração da Articulação, apontam para a operacionalização de
estratégias que cruzam distintas escalas geográficas, tendo como efeito o questionamento dos
limites definidos pelo jogo político que conformavam, até então, os vínculos de dependência
dos camponeses às elites locais e regionais. Por um lado, isto se dá através das ações e
estratégias empreendidas no campo público-estatal, resultando nos programas executados
pela ASA sob a forma de política pública. Neste sentido, o Estado passa a ser mobilizado
como referente fundamental, orientando o sentido das ações realizadas nas demais escalas sob
seus limites – neste caso, em favor dos programas de convivência com o semiárido. Por outro
lado, para além dos domínios institucionais do Estado, a ASA atua, simultaneamente, através
de processos horizontalizados de organização política e associativa, mobilização em redes
temáticas, realização de encontros, incentivo à construção de fundos rotativos, visitas de
intercâmbio, organização em redes, campanhas políticas, entre outras formas de mobilização.
Por este caminho, como vimos, a Articulação favorece o estreitamento de vínculos entre os
camponeses, em diversas escalas, constituindo “comunidades de interesse” que transcendem a
realidade local, projetando as demandas comunitárias para fora dos seus limites, dotando-lhes,
assim, de um significado político mais amplo. Deste modo, combinando a execução de
políticas públicas (referenciadas no Estado) com práticas movimentalistas (inspiradas no
reprodução dos capitais privados, assim como a reprodução da força de trabalho, e de outros interesses mais
difusos ao nível da totalidade da sociedade. No caso dos chamados „movimentos sociais‟, tão explorados nas
literaturas sociológica e antropológica, a função dos assessores, do lado dos próprios movimentos sociais, e dos
técnicos, do lado do Estado, revela a proeminência das funções de traduzir e articular, de modo exemplar” Cf.
Francisco de Oliveira. Medusa ou as classes médias e a consolidação democrática. in Fábio Wanderley Reis e
Guillermo O‟Donnell, organizadores. A democracia no Brasil: dilemas e perspectivas. São Paulo: Vértice,
Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 286.
196
acúmulo das organizações e movimentos que a compõem), a ASA constrói um “horizonte
espacial coletivo” distinto para o semiárido, produzindo uma ideologia geográfica antagônica
àquela do combate à seca.
A região é, neste processo, constituída como o campo de disputa a partir do qual os
posicionamentos antagônicos são revelados na forma de discursos, estratégias, representações
e ações políticas. No primeiro capítulo, vimos que a seca demarcou, historicamente, os traços
de uma região que teve a negatividade como elemento constitutivo. A representação
dominante, instaurada a partir do final do século XIX e consolidada em meados dos anos
1920, trazia a miséria e a pobreza como imagens identificadoras da “região-problema” do
país. Deste modo, o Nordeste foi “produzido” como uma região carente de verbas e
intervenções públicas, assumindo suas elites a função social de intermediação entre o Estado
(e seus recursos) e seus próprios domínios locais, justificando, assim, a execução de políticas
de combate à seca como forma de “socorrer” a população vitimizada por seus efeitos.
Neste caso, o “corporativismo espacial” criado através desse regionalismo dominante
se constituiu como uma eficiente ideologia geográfica voltada à manutenção das assimetrias
econômicas e políticas nas relações estabelecidas em escala local. Em outras palavras, a
defesa do regionalismo, enquanto ideologia geográfica, através da afirmação da “região-
problema”, assegurava o domínio de classe num contexto adverso de centralização política,
em escala nacional, e de simultâneo deslocamento da centralidade econômica do “Norte” para
o Centro-Sul. A manutenção das estruturas locais e regionais de poder passava, pois, pela
constituição da região como um problema nacional, sendo a seca o atributo essencial
utilizado para tal operação.
Diante deste cenário, a inversão da imagem negativa da região (enquanto espaço
marcado pelas calamidades da seca) e de sua população (enquanto vítima da natureza)
apresenta-se como propósito das ações agrupadas sob a perspectiva de convivência com o
semiárido, assumida pelas organizações e movimentos sociais que atuam através da ASA.
Deste modo, como forma de questionar os arranjos políticos associados à ideologia geográfica
regionalista, produzidos sob a perspectiva de combate à seca, a ASA problematizou as
representações negativas que alimentam tal projeto e desenvolveu, na prática, alternativas às
suas ações político-interventivas. Diante da representação social do sertanejo como vítima, as
organizações e movimentos buscam valorizar seu caráter inventivo e sua capacidade de
superação das adversidades. Frente à imagem de uma região inviável, marcada pela seca e
pela miséria, a ASA projeta uma representação do semiárido como espaço possível, lócus de
197
uma relação positiva entre o homem e o ambiente. Perante as grandes obras hídricas de
açudagem e ações emergenciais, desenvolvidas em tempos de estiagem, a ASA atua através
da reprodução de tecnologias alternativas, de baixo custo, voltadas à descentralização do
acesso à água, construídas por meio de processos participativos focados na autonomia dos
camponeses e na disseminação de formas horizontalizadas de organização política. Desta
maneira, as estratégias, representações e ações políticas desenvolvidas na perspectiva do
combate à seca e da convivência com o semiárido manifestam sua polaridade.
Entretanto, cabe evidenciar que, em tal polaridade, a região enquanto forma espacial
de organização política é reconhecida e assumida por ambas as perspectivas, constituindo-se
como objeto de disputa não a sua existência enquanto tal, mas as representações que a
demarcam e as ações político-interventivas materializadas em seu nome. Reconhece-se,
assim, que o discurso performativo que produz a região traz implicações de ordem social e
política, definindo-se o regionalismo – seja de dominação (combate à seca), seja de
resistência (convivência com o semiárido) – enquanto expressão de uma luta que vincula
política e espaço como parte de um mesmo processo social.
Diante desta consideração, as reflexões do geógrafo Neil Smith sobre “política
espacial” e, em particular, sobre processos de “produção de escala geográfica” constituem-se,
a nosso ver, um referencial importante. Para este autor, a escala se define como uma resolução
geográfica de processos sociais contraditórios, podendo ser, pois, produzida ativamente:
A construção da escala não é apenas uma solidificação ou materialização
espacial de forças e processos sociais contestados; o corolário também é
válido. A escala é um progenitor ativo de processos sociais específicos. De um
modo tanto literal quanto metafórico, a escala contém a atividade social e, ao
mesmo tempo, proporciona uma geografia já dividida em compartimentos, na
qual a atividade social tem lugar. A escala demarca o sítio da disputa social,
tanto o objeto quanto a resolução dessa disputa. Vista dessa forma, a
produção de escala pode começar a fornecer a linguagem que torna possível
uma política espacial mais substantiva e tangível540
.
A perspectiva de Smith convida a uma desconstrução das reificações escalares, isto é,
à superação da leitura das escalas como algo dado. Ao assim proceder, o autor redefine, na
análise, os termos das relações de poder, distanciando-se das abordagens que estabelecem
uma leitura hierárquica e reificada das escalas, em que o poder estaria cristalizado nos
diferentes níveis, do “local” (seu nível inferior) ao global (o nível mais elevado). Ao mesmo
540
Neil Smith. Contornos de uma política espacializada: veículos dos sem-teto e produção de escala geográfica.
in Antonio A. Arantes, organizador. O espaço da Diferença. Campinas: Papirus, 2000, p. 143-144, grifo nosso.
198
tempo, o monopólio do poder pelo Estado é questionado, negando-se, assim, a ideia de que
seu exercício se reduz aos níveis institucionais a ele associados, em particular, em sua forma
federalista: nacional, estadual e municipal541
. Abre-se, pois, a possibilidade de uma
compreensão da escala enquanto resultado contraditório de um processo social de disputa em
que as “escalas hegemônicas” de poder do Estado (em seus diversos níveis hierárquicos)
podem ser questionadas, subvertidas e, eventualmente, apropriadas no jogo político. Renato
dos Santos, em sua análise sobre o tema, ressalta:
As noções (de níveis) tradicionalmente associadas à ideia de escala (tanto as já
consagradas e não raro cristalizadas por reificações, como a local, regional,
nacional e global, quanto àquelas vinculadas à ordem estatal federalista) são
então transformadas em marcos referenciais que alicerçam complexos jogos e
processos que fundam novas escalas, ao mesmo tempo em que ressignificam,
refuncionalizam, anulam ou ignoram essas “antigas” 542
.
Este autor observa que os ordenamentos espaciais constituídos pelas geometrias
institucionais organizadas em escala revelam uma perspectiva clara de “encapsulamento do
poder”, assumindo-se, muitas vezes, como o único espaço legítimo de sua realização o
Estado. Com efeito, a escala, enquanto arena ou esfera de regulação da sociedade é
instrumento de poder e de manutenção de posições e de dominações, mas é também “um
instrumento de identificações de posições no mundo, servindo assim também como referência
de compreensão do poder e instrumento também de perturbação e transformação da
ordem”543
. Neste quadro, Carlos Walter Porto-Gonçalves ressalta que os movimentos sociais
são relevantes precisamente por trazerem à luz, “com sua própria existência, não só as
contradições inscritas no espaço-tempo, como, também, os possíveis inscritos nessa própria
541
Claude Raffestin, estabelecendo uma crítica ao pensamento do geógrafo alemão Friedrich Ratzel, argumenta
que, na abordagem deste autor, só existe o poder do Estado, sendo, pois, esta geografia unidimensional: “Para
começar, se considerarmos apenas o Estado, como é o caso na geografia política geral, só se dispõe de um nível
de análise espacial, aquele que é limitado pelas fronteiras. Sem dúvida, pode-se também dispor de uma
hierarquia de níveis, os mesmos que o Estado criou para organizar, controlar e gerenciar seu território e sua
população. Porém, com o caráter cada vez mais integrador e globalizante do Estado, tais níveis aparecem
sobretudo como marcos espaciais para difundir o poder estatal em vez de níveis articulados do exercício de
poderes inferiores. Isto é, a escala é dada pelo Estado. De certa forma, trata-se de uma geografia unidimensional,
o que não é aceitável na medida em que existem múltiplos poderes que se manifestam nas estratégias regionais
ou locais. Além disso, o poder estatal é tratado como um fato evidente que não precisa de explicação, uma vez
que se encontra nas cristalizações espaciais que manifestam suficientemente a sua ação”. Cf. Claude Raffestin.
Por uma Geografia do poder. São Paulo: Editora Ática, 1993, p. 16-17. 542
Renato Emerson Nascimento dos Santos. Movimentos sociais e Geografia: sobre a(s) espacialidade(s) da
ação social. Rio de Janeiro: Consequência, 2011, p. 124. 543
Renato Emerson Nascimento dos Santos. op. cit., p. 133.
199
realidade” 544
. As ações, estratégias e objetivos dos movimentos sociais guardam, nesta
perspectiva, potencialidades de contestação da realidade social vigente e, simultaneamente,
das limitações e constrangimentos associados às manifestações espaciais dos poderes
hegemônicos instituídos.
Ao situarmos as ações da ASA sob a perspectiva da “produção de escalas”, tomamos
suas práticas como manifestação particular de uma totalidade dialeticamente configurada por
processos sociais mais amplos, processos estes forjados em meio à conflituosidade
característica das relações de classe sob o capitalismo. Neste sentido, operando através do
questionamento de discursos, representações e ações políticas materializadas em nome da
região-problema, evidenciando sua função de ideologia geográfica de dominação, a ASA
colocou o problema da região sob outros termos. Diante do discurso dominante que atribuía a
miséria e a pobreza do sertanejo à seca (portanto, à natureza), os movimentos e organizações
identificaram as oligarquias agrárias e a expressão tradicional do seu poder, em escala local,
como fonte do flagelo do povo do semiárido. Deste modo, a autonomia camponesa se impôs
como bandeira relevante numa região marcada pelo tradicionalismo oligárquico, constituindo-
se a quebra das relações clientelistas um momento necessário da construção de um “outro
semiárido”.
Vinculando a reconstrução do semiárido com a redefinição das relações de poder
entre os camponeses e os proprietários de terra, a ASA desencadeou a produção de escalas,
numa perspectiva contra-hegemônica, em diversos níveis. Em primeiro lugar, a própria escala
regional foi questionada enquanto domínio ideológico-geográfico exclusivo das elites
tradicionais, desenvolvendo-se um regionalismo de resistência assentado na perspectiva de
um semiárido construído pelas mãos dos camponeses, organizações e movimentos sociais.
Disto resulta a “re-produção”, “re-definição” e “re-significação” de outras escalas
geográficas. Neste processo, o Estado, fonte das verbas dirigidas ao combate à seca, passou a
ser mobilizado, pelos movimentos sociais e organizações, como canal para obtenção de
recursos financeiros para a execução dos programas voltados à convivência com o semiárido,
inserindo-se, assim, as demandas camponesas na esfera pública, em escala nacional. Por sua
vez, abre-se, na escala local, espaço à inovação política através da configuração de laços de
solidariedade comunitária, valorização dos “saberes locais”, intercâmbio de experiências,
criação de associações e grupos de interesse. Assim, são consolidadas alternativas político-
544
Carlos Walter Porto-Gonçalves. A geograficidade do social: uma contribuição para o debate metodológico
para os estudos de conflitos e movimentos sociais na América Latina. Revista Eletrônica da Associação de
Geógrafos Brasileiros – Seção Três Lagoas-MS. 2006, p. 16.
200
organizativas que redefinem a posição relativa do campesinato frente aos poderes
hegemônicos instituídos, valorizando-se sua autonomia e sua capacidade de atuação política.
A análise das contrapostas perspectivas de combate à seca e convivência com o
semiárido – considerando a relação dialética entre as representações (social e espacial)
constituídas em seu nome e as ações político-interventivas correspondentes – teve como
motivação, nesta tese, a busca pelo reconhecimento, em uma realidade particular, da
dimensão e do fundamento geográficos da luta de classes sob o capitalismo545
. Afirmado
enquanto uma urgência pelo geógrafo David Harvey, este reconhecimento impõe, a nosso ver,
como tarefa fundamental a problematização das ideologias geográficas, que integram e
sedimentam os processos de dominação de classe, desvendando-se, neste sentido, as escalas
produzidas, suas hierarquias, sua suposta naturalidade, os veículos de sua disseminação e os
interesses políticos a que servem. Neste sentido, situar a produção do espaço como momento
constitutivo da dinâmica do capital e da luta de classes é um primeiro passo para permitir a
libertação dos “grilhões que nos prendem a uma espacialidade oculta que tem tido o poder
opaco de dominar (e por vezes confundir) a lógica tanto de nosso pensamento como de nossa
política” 546
. Se, como afirmou Neil Smith, é a escala que delimita as paredes da prisão547
,
cabe, em primeiro lugar, identificá-la, questioná-la e, em meio às contradições, reconhecer os
horizontes possíveis de emancipação que emergem em seus limites.
545
David Harvey. Espaços de esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 82. 546
Ibidem, p. 85. 547
Neil Smith. Geografia, diferencia y políticas de escalas. Terra Livre. 2002, p. 143.
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DECLARAÇÃO DO SEMIÁRIDO
PROPOSTAS DA ARTICULAÇÃO NO SEMI-ÁRIDO BRASILEIRO PARA A CONVIVÊNCIA
COM O SEMI-ÁRIDO E COMBATE À DESERTIFICAÇÃO
Recife, 26 de novembro de 1999
O SEMI-ÁRIDO TEM DIREITO A UMA POLÍTICA ADEQUADA!
Depois da Conferência da ONU, a seca continua
O Brasil teve o privilégio de acolher a COP-3 – a terceira sessão da Conferência das Partes das Nações
Unidas da Convenção de Combate à Desertificação. Esse não foi apenas um momento raro de
discussão sobre as regiões áridas e semi-áridas do planeta, com interlocutores do mundo inteiro. Foi,
também, uma oportunidade ímpar para divulgar, junto à população brasileira, a amplidão de um
fenômeno mundial – a desertificação – do qual o homem é, por boa parte, responsável e ao qual o
desenvolvimento humano pode remediar. Os números impressionam: há um bilhão de pessoas
morando em áreas do planeta susceptíveis à desertificação. Entre elas, a maioria dos 25 milhões de
habitantes do semi-árido brasileiro.
A bem da verdade, a não ser em momentos excepcionais como a Conferência da ONU, pouca gente se
interessa pelas centenas de milhares de famílias, social e economicamente vulneráveis, do semi-árido.
Por isso, o momento presente parece-nos duplamente importante. Neste dia 26 de novembro de 1999,
no Centro de Convenções de Pernambuco, a COP-3 está encerrando seus trabalhos e registrando
alguns avanços no âmbito do combate à desertificação. Porém, no mesmo momento em que as portas
da Conferência estão se fechando em Recife, uma grande seca, iniciada em 1998, continua vigorando a
menos de 100 quilômetros do litoral.
É disso que nós, da Articulação no Semi-Árido brasileiro, queremos tratar agora. Queremos falar dessa
parte do Brasil de cerca de 900 mil km2, imensa porém invisível, a não ser quando a seca castiga a
região e as câmeras começam a mostrar as eternas imagens de chão rachado, água turva e crianças
passando fome. São imagens verdadeiras, enquanto sinais de alerta para uma situação de emergência.
Mas são, também, imagens redutoras, caricaturas de um povo que é dono de uma cultura riquíssima,
capaz de inspirar movimentos sociais do porte de Canudos e obras de arte de dimensão universal – do
clássico Grande Sertão, do escritor Guimarães Rosa, até o recente Central do Brasil, do cineasta
Walter Salles.
As medidas emergenciais devem ser imediatamente reforçadas
Nós da sociedade civil, mobilizada desde o mês de agosto através da Articulação no Semi-Árido; nós
que, nos últimos meses, reunimos centenas de entidades para discutir propostas de desenvolvimento
sustentável para o semi-árido; nós dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, das Entidades
Ambientalistas, das Organizações Não-Governamentais, das Igrejas Cristãs, das Agências de
Cooperação Internacional, das Associações e Cooperativas, dos Movimentos de Mulheres, das
Universidades; nós que vivemos e trabalhamos no semi-árido; nós que pesquisamos, apoiamos e
financiamos projetos no Sertão e no Agreste nordestinos, queremos, antes de mais nada, lançar um
grito que não temos sequer o direito de reprimir: QUEREMOS UMA POLÍTICA ADEQUADA AO
SEMI-ÁRIDO!
Neste exato momento, a seca está aí, a nossa porta. Hoje, infelizmente, o sertão já conhece a fome
crônica, como o mostram os casos de pelagra encontrados entre os trabalhadores das frentes de
emergência. Em muitos municípios está faltando água, terra e trabalho, e medidas de emergência
devem ser tomadas imediatamente, reforçando a intervenção em todos os níveis: dos conselhos locais
até a Sudene e os diversos ministérios afetos.
Sabemos muito bem que o caminhão-pipa e a distribuição de cestas básicas não são medidas ideais.
Mas ainda precisamos delas. Por quanto tempo? Até quando a sociedade vai ser obrigada a bancar
medidas emergenciais, anti-econômicas e que geram dependência? Essas são perguntas para todos nós.
A Articulação, por sua vez, afirma que, sendo o Semi-Árido um bioma específico, seus habitantes têm
direito a uma verdadeira política de desenvolvimento econômico e humano, ambiental e cultural,
científico e tecnológico. Implementando essa política, em pouco tempo não precisaremos continuar
distribuindo água e pão.
Nossa experiência mostra que o semi-árido é viável
A convivência com as condições do semi-árido brasileiro e, em particular, com as secas é possível. É o
que as experiências pioneiras que lançamos há mais de dez anos permitem afirmar hoje. No Sertão
pernambucano do Araripe, no Agreste paraíbano, no Carirí cearense ou no Seridó potiguar; em
Palmeira dos Índios (AL), Araci (BA), Tauá (CE), Mirandiba (PE) ou Mossoró (RN), em muitas
outras regiões e municípios, aprendemos:
Que a caatinga e os demais ecossistemas do semi-árido – sua flora, fauna, paisagens, pinturas
rupestres, céus deslumbrantes – formam um ambiente único no mundo e representam
potenciais extremamente promissores;
Que homens e mulheres, adultos e jovens podem muito bem tomar seu destino em mãos,
abalando as estruturas tradicionais de dominação política, hídrica e agrária;
Que toda família pode, sem grande custo, dispor de água limpa para beber e cozinhar e,
também, com um mínimo de assistência técnica e crédito, viver dignamente, plantando,
criando cabras, abelhas e galinhas;
Enfim, que o semi-árido é perfeitamente viável quando existe vontade individual, coletiva e
política nesse sentido.
É preciso levar em consideração a grande diversidade da região
Aprendemos, também, que a água é um elemento indispensável, longe, porém, de ser o único fator
determinante no semi-árido. Sabemos agora que não há como simplificar, reduzindo as respostas a
chavões como “irrigação”, “açudagem” ou “adutoras”. Além do mais, os megaprojetos de transposição
de bacias, em particular a do São Franscisco, são soluções de altíssimo risco ambiental e social. Vale
lembrar que este ano, em Petrolina, durante a Nona Conferência Internacional de Sistemas de
Captação de Água de Chuva, especialistas do mundo inteiro concluíram, na base da sua experiência
internacional, que a captação da água de chuva no Semi-Árido Brasileiro seria uma fonte hídrica
suficiente para as necessidades produtivas e sociais da região.
O semi-árido brasileiro é um território imenso, com duas vezes mais habitantes que Portugal, um
território no qual caberiam a França e a Alemanha reunidas. Essa imensidão não é unifome: trata-se de
um verdadeiro mosaico de ambientes naturais e grupos humanos. Dentro desse quadro bastante
diversificado, vamos encontrar problemáticas próprias à região (o acesso à água, por exemplo) e,
outras, universais (a desigualdade entre homens e mulheres). Vamos ser confrontados com o
esvaziamento de espaços rurais e à ocupação desordenada do espaço urbano nas cidades de médio
porte. Encontraremos, ainda, agricultores familiares que plantam no sequeiro, colonos e grandes
empresas de agricultura irrigada, famílias sem terra, famílias assentadas, muita gente com pouca terra,
pouca gente com muita terra, assalariados, parceiros, meeiros, extrativistas, comunidades indígenas,
remanescentes de quilombos, comerciantes, funcionários públicos, professores, agentes de saúde... O
que pretendemos com essa longa lista, é deixar claro que a problemática é intrincada e que uma visão
sistêmica, que leve em consideração os mais diversos aspectos e suas interrelações, impõe-se mais que
nunca.
Dito isto, podemos apresentar a nossa contribuição – fruto de longos anos de trabalho no semi-árido,
destacando algumas das propostas que vêm sendo discutidas pela sociedade civil nas duas últimas
décadas.
PROPOSTAS PARA UM PROGRAMA DE CONVIVÊNCIA COM O SEMI-ÁRIDO
Este programa está fundamentado em duas premissas:
A conservação, uso sustentável e recomposição ambiental dos recursos naturais do semi-árido.
A quebra do monopólio de acesso à terra, água e outros meios de produção.
O Programa constitui-se, também, de seis pontos principais: conviver com as secas, orientar os
investimentos, fortalecer a sociedade, incluir mulheres e jovens, cuidar dos recursos naturais e buscar
meios de financiamentos adequados.
CONVIVER COM AS SECAS
O semi-árido brasileiro caracteriza-se, no aspecto sócio-econômico, por milhões de famílias que
cultivam a terra, delas ou de terceiros. Para elas, mais da metade do ano é seco e a água tem um valor
todo especial. Além disso, as secas são fenômenos naturais periódicos que não podemos combater,
mas com os quais podemos conviver.
Vale lembrar, também, que o Brasil assinou a Convenção das Nãçoes Unidas de Combate à
Desertificação, comprometendo-se a “atacar as causas profundas da desertificação”, bem como
“integrar as estratégias de erradicação da pobreza nos esforços de combate à desertificação e de
mitigação dos efeitos da seca”. Partindo dessas reflexões, nosso Programa de convivência com o
Semi-Árido incluí:
O fortalecimento da agricultura familiar, como eixo central da estratégia de convivência com o
semi-árido, em módulos fundiários compatíveis com as condições ambientais.
A garantia da segurança alimentar da região, como um objetivo a ser alcançado a curtíssimo
prazo.
O uso de tecnologias e metodologias adaptadas ao semi-árido e à sua população, como
ferramentas básicas para a convivência com as condições da região.
A universalização do abastecimento em água para beber e cozinhar, como um caso exemplar,
que demonstra como tecnologias simples e baratas como a cisterna de placas de cimento,
podem se tornar o elemento central de políticas públicas de convivência com as secas.
A articulação entre produção, extensão, pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico
adaptado às realidades locais, como uma necessidade.
O acesso ao crédito e aos canais de comercialização, como meios indispensáveis para
ultrapassar o estágio da mera subsistência.
ORIENTAR OS INVESTIMENTOS NO SENTIDO DA SUSTENTABILIDADE
O semi-árido brasileiro não é uma região apenas rural. É também formado por um grande número de
pequenos e médios centros urbanos, a maioria em péssima situação financeira e com infra-estruturas
deficientes. Pior ainda: as políticas macro-econômicas e os investimentos públicos e privados têm tido,
muitas vezes, efeitos perversos. Terminaram por gerar novas pressões, que contribuíram aos processos
de desertificação e reforçaram as desigualdades econômicas e sociais.
Por isso, o Programa de Convivência com o Semi-Árido compreende, entre outras medidas:
A descentralização das políticas e dos investimentos, de modo a permitir a interiorização do
desenvolvimento, em prol dos municípios do semi-árido.
A priorização de investimentos em infra-estrutura social (saúde, educação, saneamento,
habitação, lazer), particularmente nos municípios de pequeno porte.
Maiores investimentos em infra-estrutura econômica (transporte, comunicação e energia), de
modo a permitir o acesso da região aos mercados.
Estímulos à instalação de unidades de beneficiamento da produção e empreendimentos não
agrícolas.
A regulação dos investimentos públicos e privados, com base no princípio da harmonização
entre eficiência econômica e sustentabilidade ambiental e social.
FORTALECER A SOCIEDADE CIVIL
Esquemas de dominação política quase hereditários, bem como a falta de formação e informação
representam fortes entraves ao processo de desenvolvimento do semi-árido. Sabendo que a Convenção
das Nações Unidas de Combate à Desertificação insiste bastante sobre a obrigatoriedade da
participação da sociedade civil em todas as etapas da implementação dessa Convenção, a Articulação
está propondo, para vigência desse direito:
O reforço do processo de organização dos atores sociais, visando sua intervenção qualificada
nas políticas públicas.
Importantes mudanças educacionais, prioritariamente no meio rural, a fim de ampliar o capital
humano. Em particular:
A erradicação do analfabetismo no prazo de 10 anos
A garantia do ensino básico para jovens e adultos, com currículos elaborados a partir
da realidade local.
A articulação entre ensino básico, formação profissional e assistência
técnica.
A valorização dos conhecimentos tradicionais.
A criação de um programa de geração e difusão de informações e conhecimentos, que facilite
a compreensão sobre o semi-árido e atravesse toda a sociedade brasileira.
INCLUIR MULHERES E JOVENS NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO
As mulheres representam 40% da força de trabalho no campo e mais da metade começam a trabalhar
com 10 anos de idade. No Sertão são, muitas vezes, elas que são responsáveis pela água da casa e dos
pequenos animais, ajudadas nessa tarefa pelos(as) jovens.
Apesar de cumprir jornadas de trabalho extenuantes, de mais de 18 horas, as mulheres rurais
permanecem invisíveis. Não existe reconhecimento público da sua importância no processo produtivo.
Pior ainda: muitas delas nem sequer existem para o estado civil. Sem certidão de nascimento, carteira
de identidade, CPF ou título de eleitor, sub-representadas nos sindicatos e nos conselhos, as mulheres
rurais não podem exercer sua cidadania.
Partindo dessas considerações e do Artigo 5 da Convenção de Combate à Desertificação, pelo qual o
Brasil se comprometeu a “promover a sensibilização e facilitar a participação das populações locais,
especialmente das mulheres e dos jovens”, a Articulação no Semi-Árido reivindica, entre outras
medidas:
Que seja cumprida a Convenção 100 da OIT, que determina a igualdade de
remuneração para a mesma função produtiva;
Que as mulheres sejam elegíveis como beneficiárias diretas das ações de Reforma Agrária e
titularidade de terra.
Que as mulheres tenham acesso aos programas de crédito agrícola e pecuário;
Que mais mulheres e jovens sejam capacitados para participar em conselhos de políticas
públicas;
Que mais mulheres adultas tenham acesso à escola, com horários e currículo apropriados.
PRESERVAR, REABILITAR E MANEJAR OS RECURSOS NATURAIS
A Convenção da ONU entende por combate à desertificação “as atividades que... têm por objetivo: I -
a prevenção e/ou redução da degradação das terras, II - a reabilitação de terras parcialmente
degradadas e, III – a recuperação de terras degradadas.”
A caatinga é a formação vegetal predominante na região semi-árida nordestina. Apesar do clima
adverso, ela constituí ainda, em certos locais, uma verdadeira mata tropical seca. Haveria mais de 20
mil espécies vegetais no semi-árido brasileiro, 60% das quais endêmicas.
Contudo, a distribuição dessa riqueza natural não é uniforme e sua preservação requer a manutenção
de múltiplas áreas, espalhadas por todo o território da região. A reabilitação de certos perímetros
também é possível, se conseguirmos controlar os grandes fatores de destruição (pastoreio excessivo,
uso do fogo, extração de lenha, entre outros). Mas podemos fazer melhor ainda: além da simples
preservação e da reabilitação, o manejo racional dos recursos naturais permitiria multiplicar suas
funções econômicas sem destruí-los.
Entre as medidas preconizadas pela Articulação, figuram:
A realização de um zoneamento sócio-ambiental preciso.
A implementação de um programa de reflorestamento.
A criação de um Plano de Gestão das Águas para o Semi-Árido.
O combate à desertificação e a divulgação de formas de convivência com o semi-árido através
de campanhas de educação e mobilização ambiental.
O incentivo à agropecuária que demonstre sustentabilidade ambiental.
A proteção e ampliação de unidades de conservação e a recuperação de mananciais e áreas
degradadas.
A fiscalização rigorosa do desmatamento, extração de terra e areias, e do uso de agrotóxicos.
FINANCIAR O PROGRAMA DE CONVIVÊNCIA COM O SEMI-ÁRIDO
Os países afetados pela desertificação e que assinaram a Convenção da ONU, como é o caso do Brasil,
se comprometeram a “dar a devida prioridade ao combate à desertificação e à mitigação dos efeitos da
seca, alocando recursos adequados de acordo com as suas circunstâncias e capacidades”.
Nossa proposta é de que o Programa de Convivência com o Semi-Árido seja financiado através de
quatro mecanismos básicos.
A captação de recursos a fundos perdidos, a serem gerenciados pelas Organizações da
Sociedade Civil.
A reorientação das linhas de crédito e incentivo já existentes, de modo a compatibilizá-las com
o conjunto destas propostas.
Um fundo específico para todas as atividades que não são passíveis de financiamento através
das linhas de crédito existentes.
Uma linha de crédito especial, a ser operacionalizada através do FNE (Fundo Constitucional
de Financiamento ao Desenvolvimento do Nordeste).
Vale lembrar que os gastos federais com as ações de “combate aos efeitos da seca”, iniciadas em junho
de 1998, vão custar aos cofres públicos cerca de 2 bilhões de reais até dezembro de 1999. A maior
parte desses gastos se refere ao pagamento das frentes produtivas e à distribuição de cestas – isto é, ao
pagamento de uma renda miserável (48 reais por família e por mês) e à tentativa de garantir a mera
sobrevivência alimentar.
Ou seja, o assistencialismo custa caro, vicia, enriquece um punhado de gente e humilha a todos. A
título de comparação, estima-se em um milhão o número de famílias que vivem em condições
extremamente precárias no semi-árido. Equipá-las com cisternas de placas custaria menos de 500
milhões de reais (um quarto dos 2 bilhões que foram liberados recentemente em caráter emergencial) e
traria uma solucão definitiva ao abastecimento em água de beber e de cozinhar para 6 milhões de
pessoas.
O semi-árido que a Articulação está querendo construir é aquele em que os recursos seriam investidos
nos anos “normais”, de maneira constante e planejada, em educação, água, terra, produção,
informação... para que expressões como “frente de emergência”, “carro-pipa” e “indústria da seca” se
tornem rapidamente obsoletas, de modo que nossos filhos pudessem trocá-las por outras, como
“convivência”, “autonomia” e “justiça”.
CARTA DE PRINCÍPIOS DA ASA
1. A Articulação no Semiárido - ASA - é o espaço de articulação politica regional da
sociedade civil organizada, no semiárido brasileiro;
2. São membros ou parceiros da ASA todas as entidades ou organizações da sociedade civil
que aderem à "Declaração do Semiárido"(Recife 1999) e à presente carta de Princípios;
3. A ASA é apartidária e sem personalidade jurídica, e rege-se por mandato próprio; respeita
totalmente a individualidade e identidade de seus membros e estimula o fortalecimento ou
surgimento de outras redes de nível estadual, local ou temático, adotando o princípio de
liderança compartilhada;
4. A ASA se fundamenta no compromisso com as necessidades, potencialidades e interesses
das populações locais, em especial os/as agricultores/as familiares, baseado em: a) a
conservação, uso sustentável e recomposição ambiental dos recursos naturais do semiárido;b)
a quebra do monopólio de acesso à terra, água e outros meios de produção - de forma que
esses elementos, juntos, promovam o desenvolvimento humano sustentável do semiárido;
5. A ASA busca contribuir para a implementação de ações integradas para o semiárido,
fortalecendo inserções de natureza política, técnica e organizacional, demandadas das
entidades que atuam nos níveis locais; apoia a difusão de métodos, técnicas e procedimentos
que contribuam para a convivência com semiárido;
6. A ASA se propõe a sensibilizar a sociedade civil, os formadores de opinião e os decisores
políticos para uma ação articulada em prol do desenvolvimento sustentável, dando
visibilidade às potencialidades do semiárido;
7. A ASA busca contribuir para a formulação do políticas estruturadoras para o
desenvolvimento do semiárido, bem como monitorar a execução das políticas públicas;8. A
ASA se propõe a influenciar os processos decisórios das COPs - Conferências das Partes da
Convenção de Combate à Desertificação, das Nações Unidas, para fortalecer a implementação
das propostas da Sociedade Civil para o Semiárido, e busca articular-se aos outros Fóruns
Internacionais de luta contra a desertificação.
Igarassú(PE), 15 de fevereiro de 2000.
CARTA ABERTA À POPULAÇÃO BRASILEIRA - ASA BRASIL -16/10/2010
CARTA ABERTA À POPULAÇÃO BRASILEIRA. PARA O FORTALECIMENTO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O SEMIÁRIDO DILMA ROUSSEFF, PRESIDENTE DO BRASIL
A Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA BRASIL) é uma rede que congrega entidades da
sociedade civil de toda a região semiárida do País.
Nascida em 1999, a ASA surge a partir da iniciativa dessas organizações que há anos já trabalhavam
na perspectiva da convivência com o Semiárido. Suas práticas significaram uma ruptura com a
indústria da seca e com uma tradicional política coronelista, atrasada e cruel, liderada pelas oligarquias
locais, que encontram hoje, nos partidos de direita, uma nova roupagem para as mesmas velhas
práticas de manutenção do poder à custa da miséria do povo e da região semiárida.
Quebrando essa lógica, a ASA inaugurou uma nova concepção de convivência com a região. Como
resultado de longos anos de luta, de educação, mobilização social, implementação de programas de
acesso à água, resgatamos a possibilidade real de se viver com qualidade e dignidade nesta bonita e
rica região, antes tida como inóspita. Mais do que simples práticas alternativas, a ASA trabalha com
uma nova concepção de desenvolvimento, cujos pilares são a valorização da cultura local e do saber
popular; a organização popular; o protagonismo de agricultores e agricultoras; o respeito à
biodiversidade; o equilíbrio nas relações de gênero; a garantia dos direitos; a democratização do
acesso à terra, à água e à educação contextualizada; a segurança e a soberania alimentar.
Com o início do Governo Lula, a partir dos espaços de diálogo entre governo e sociedade civil, a ASA
teve a oportunidade de ampliar a sua ação e fortalecer sua luta. Chegamos hoje ao estágio em que
muitos municípios do Semiárido brasileiro se encontram em vias de universalização do acesso à água
pelas famílias da zona rural. Somente através dos programas da ASA, Um Milhão de Cisternas
(P1MC) e Uma Terra e Duas Águas (P1+2), são mais de um milhão e meio de pessoas que têm
garantido o acesso à água de qualidade. Ainda temos um caminho a percorrer no intuito de tornar esses
programas políticas públicas assumidas e apoiadas pelo Estado.
Para que isso aconteça, a ASA defende a ampliação da relação Estado e sociedade civil, que,
esperamos, possa se consolidar no próximo governo. O contexto político que envolve o segundo turno
dessas eleições presidenciais coloca a necessidade urgente de nos expressarmos na defesa de um
projeto político pautado na valorização da democracia participativa, da vida e da ética na política. Traz
também para a sociedade brasileira a oportunidade de ampliar o debate em torno das propostas
apresentadas pelas candidaturas Dilma Rousseff e José Serra.
No entanto, não podemos permitir que este segundo turno se torne numa ameaça de retrocesso no
campo do diálogo entre governo e sociedade, no controle social das políticas públicas e especialmente
no que se refere às políticas de convivência com o Semiárido. Reconhecemos que, apesar dos avanços
do Governo Lula, ainda temos muito que conquistar. Mas acreditamos que tais conquistas somente
serão possíveis se tivermos um governo que nos assegure estes espaços de diálogo construídos à luz
dos esforços de diversas organizações, movimentos sociais e famílias agricultoras, que
permanentemente lutam por uma vida digna no Semiárido brasileiro.
A ASA acredita que estas condições serão continuadas e ampliadas a partir da eleição de Dilma
Rousseff para a Presidência do Brasil, ao mesmo tempo em que acredita serem necessários esforços no
sentido de assegurar a continuidade dos processos de ruptura com as velhas oligarquias de direita que,
com suas manobras, querem manter e ampliar o seu poder em função de interesses escusos, em
detrimento dos interesses do povo.
Coordenação Executiva da ASA,
Recife, outubro de 2010.
CARTA DE ORIENTAÇÃO AOS ESTADOS
Companheiros e Companheiras,
É de conhecimento de todos e todas que lançamos a campanha Cisterna de Plástico/PVC – Somos
Contra! em Salvador (BA), durante a IV Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional,
entre os dias 7 a 10 de novembro. Nosso objetivo é alertar a sociedade brasileira sobre o impacto e
efeitos negativos da disseminação dessas cisternas para o fortalecimento da estratégia de convivência
com o Semiárido, no qual temos investido nossos esforços nos últimos anos.
Partir para esse enfrentamento exige que levemos essa discussão às bases, bem como o debate que
vem pautando o governo e a mídia nacional, sobre a criminalização das ONGs. O sucesso dessa
campanha depende, efetivamente, da participação de todos e todas que fazemos a ASA, em especial
das famílias que vem protagonizando essa história marcada por mudanças no Semiárido.
Para que a nossa voz ecoe e a campanha Cisternas de Plástico/PVC – Somos Contra! ganhe a
repercussão que queremos, precisamos trabalhar juntos! Para isso, a coordenação executiva da ASA,
reunida no último dia 24, durante sua reunião ampliada, elaborou esse documento, que aponta um
conjunto de ações para serem desencadeadas em cada território, microrregião e município onde
atuamos:
1. Replicar e distribuir os panfletos já produzidos pela ASA, intitulados: ASA – Semeando Cidadania
no Semiárido e Cisternas de Plástico/PVC – Solução ou Armadilha junto a outros movimentos,
comissões municipais e famílias;
2. Informar e instrumentalizar as comissões municipais sobre a instalação iminente das cisternas de
plástico, para que elas possam sensibilizar as famílias;
3. Reproduzir nas rádios locais, sejam elas comunitárias ou não, os spots sobre a campanha.
4. Registrar todas as atividades desenvolvidas nos municípios em relação à campanha e compartilhar
nas listas da ASA, com os comunicadores/as estaduais e também com a Assessoria de Comunicação
da ASA – ASACom, através do e-mail asacom@asabrasil.org.br.
5. Reunir depoimentos (em áudio, vídeo ou por escrito) de famílias e pedreiros/as dando a opinião
sobre as cisternas de plástico.
6. Inserir nos blogs das ASAs estaduais e sites institucionais a marca da campanha.
7. Ocupar as rádios locais, no dia 15 de dezembro, para falar sobre a campanha.
8. Mobilizar a sociedade e os movimentos sociais que atuam na região para reafirmar o projeto de
convivência com o Semiárido que estamos construindo.
9. Todos os materiais da campanha estão disponíveis no endereço:
http://www.asabrasil.org.br/Portal/Informacoes.asp?COD_MENU=5635
É fundamental o envolvimento de todas as organizações da ASA para fazer acontecer uma ampla e
permanente mobilização em defesa das ações e politicas públicas que, de fato, representam e efetivam
a convivência com o Semiárido. Durante toda a nossa história, a mobilização tem sido nossa forte
marca. Vamos mais uma vez fazê-la ecoar em todos os cantos e recantos na defesa da convivência
com o Semiárido.
24 de novembro de 2011,
Coordenação Executiva da ASA.