Um socialista que trocou a política pela literatura1].pdf · regime militar. Candidato à...

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DCIP O L Í T I C A | Sábado a quarta-feira, 1 a 5 de março de 2014A4

são paulo

Carioca nascido no bairro da Gló-ria,nacidadedo RiodeJaneiro,em1931, ele vem de uma tradicionalfamília da cidade de Campos dosGoytacazes. Seu trisavô, chegadoao Brasil ainda menino, vindo dePortugal, no século 19, estabele-ceu-se naquela cidade do norte flu-minense,aprimeira aterluzelétri-ca no Brasil. Casou-se lá, teve 12 fi-lhos efundou a família,sendo tam-bém grandeempreendedor dose-tor canavieiro e açucareiro, e im-plantou a primeira fábrica de teci-dos daregião. O avôRamiro Satur-nino Braga, médico de Campos, foideputado federal ligado ao líderfluminense e presidente da Repú-blica, Nilo Peçanha. Seu pai, Fran-cisco Saturnino Braga, tambémcampista, foi engenheiro, funda-dor do Departamento de Estradasde Rodagem do Estado do Rio nogoverno Amaral Peixoto, e depoistambém diretordo DepartamentoNacional de Estradas de Rodagem,e ainda foi deputado federal portrês mandatos.

Portanto, está no sangue.Presidente da CPI Time-Life,

que investigou denúncias de par-ticipação inconstitucional dogrupo americano na implanta-ção da Rede Globo de Televisão,ele conta que, na ocasião, seuscompanheiros de Câmara fugi-ram daraia, nãoqueriam assumira presidência da CPI. Saturninoimpôs uma condição, a de esco-lherorelator, queacabousendooDjalma Marinho (PMDB-RN).

Saturnino também foi relatorda CPI que investigou as ativida-des da mineradora americanaHanna, assunto muito debatidono Brasil de então. Saturnino foiintegranteda FrenteParlamentarNacionalista e líder do PSB em1964-65, figurando semprena lis-ta dos dez deputados mais atuan-tes escolhidos então pelos jorna-listas políticos.

Com a dissolução dos partidospelo AI-2, integrou o grupo fun-dador do MDB, em oposição aoregime militar. Candidato à ree-leição em 1966, Roberto Saturni-no foi vetado pelo Serviço Nacio-nal de Investigações (SNI), tendosua candidatura impugnada porpedido daquelaagência governa-mental da ditadura, sob a alega-ção de que pertencia ao PartidoComunista. Voltou-se, então, pa-ra o trabalho no Banco Nacionalde Desenvolvimento Econômico(BNDE), sem poder assumir re-gularmente nenhum cargo dechefia, em razão de sua ficha nosórgãos militares de informação.

Re t o r n oOretornode Saturninoàcenapo-lítica aconteceu oito anos maistarde, em 1974, pelo MDB, parti-dodo qualfoium dosfundadores.Candidato a senador pelo EstadodoRio, foivotadopormais dedoisterços do eleitorado, e desta-cou-se noSenado ao ladode Pau-lo Brossard, Franco Montoro,Marcos Freire, Itamar Franco e

çado candidato a governador, eentrou no PDT de Leonel Brizola.Candidato à reeleição na chapaBrizola-Darcy-Saturnino, saltoude 4% nas pesquisas em julho de1982 para uma vitória consagra-dora em novembro do mesmoano. Apresentou no Senado du-rante esse novo mandato proje-tos importantes, rejeitados pelamaioria governista, como o Pro-grama de Refeição Básica para oTrabalhador, o Estatuto das Em-presas Estatais e a tributação dosganhos de capital e teve transfor-mado em lei seu projeto de regu-lamentaçãoda engenhariadese-gurança no trabalho. Foi de suainiciativa também, em mandatoposterior e junto com RoseanaSarney, oprojeto queveio aser leiinstituindo o ensino de músicanas escolas públicas.

Depois de15 anosde mandatocomo deputado esenador, Satur-nino enfrentou suaprimeira elei-ção municipal, transforman-

nanceiro, ele recuperou as finan-ças do município e ainda cum-priu o compromissode dignifica-ção do servidor, com vários pla-nos de cargos e salários, a come-çar pelos professores.

Sua gestão na prefeitura foimarcadapor inovaçõesecriaçõesde grande alcance para a cidadedo Rio de Janeiro. Realizou a pri-meira experiência no Brasil degestão participativa, com a im-plantação dos Conselhos Gover-no-Comunidade, que reuniam,em sessões mensais, represen-tantes dos vários setores da admi-nistração municipal com repre-sentantes das Associações deMoradores e de Empresários decada regiãoda cidade,para discu-tira gestãodaprefeiturae asprio-ridades de cada bairro. Serviu deexemplo, anos mais tarde, paraLuiza Erundina, em São Paulo.

Profissional do desenvolvi-mentismo, criou a Secretaria deDesenvolvimento Econômico,que efetuou o estudo das voca-çõesdacidadedo RiodeJaneiroedeu início à implantação do pro-grama dos polos de desenvolvi-mento de indústrias de tecnolo-gia avançada. Infelizmente essasduas iniciativas, absolutamenteinovadoras e altamente promis-soras,foram dissolvidaspelopre-feito seguinte. Criou ainda a Se-cretaria de Cultura, antes inexis-tente, a Secretaria de Transportescoma CET-Rio,assimcomo oIns-tituto de Previdência, o Previ-Rio,e os Conselhos de Defesa dos Di-reitos do Negro e dos Deficientes.No plano da saúde, construiu epôs em funcionamento 24 novospostos de saúde, de grande reso-lutividade, sendo 20 na zona oes-te da capital, mais carente dessesa t e n d i m e n t o s.

Em meados de 1987, teve di-vergências políticas com o líderLeonel Brizola e rompeu comPDT,quetinha metadedabanca-da dos vereadores e recebeu or-dens de fazer oposição cerrada aoprefeito. Saturnino retornou en-tão ao seu antigo partido, o PSB,que tinha somente um vereadorna Câmara.

No final do mesmo ano o PlanoCruzado naufragou e a inflaçãomal contida reacendeu-se com

ceu a eleição com mais de doismilhões e trezentos mil votos,derrotando Roberto Campos,apósuma memorávelcampanhadesenvolvida no mais alto nívelde mútuo respeito e seriedade.

No seuterceiro mandatocomosenador destacou-se comomembro do Conselho de Ética erelator do rumoroso caso da vio-lação do painel do Senado, pro-cesso que culminou com a re-núncia para evitar a cassação dedois importantes senadores: opresidente da casa, Antonio Car-los Magalhães, e o então líder doPSDB, José Roberto Arruda. Emmarço de 2002, desfiliou-se doPSB pornão concordarcom ade-cisão do partido de lançar candi-dato próprioà Presidênciada Re-pública, Anthony Garotinho, e fi-liou-se ao PT, defendendo umaaliança entre todos os partidos deesquerda em apoio a Lula, apon-tandoomomento deentãocomo“cr ucial” para uma verdadeiramudança na história do Brasil.Foi ainda presidente da Comis-são de Relações Exteriores do Se-nado e das subcomissões deCiênciae Tecnologiae deCinemae Teatro,como membrotitular daComissão de Educação.

ESPECIAL ENTREVISTA Roberto Saturnino Braga, depois da política, finalmente na idade da razão

Agên

cia

Sena

do

“A política é excitante, fasci-nante,demanda vocêporinteiro,mas a literatura é mais saudável,compatível com a felicidade. Essaé que é a verdade:a política suga afelicidade. Você está sendo sem-pre observado, fotografado, co-mentado, julgado.Não desenvol-ve seu próprio ser”, assinala o ago-ra escritor.

A uma pergunta do repórter,ele esclarece que até podia escre-ver memórias.Mas elegosta maisde inventar do que de contar.

D e p re s s ã oAderrocadado socialismofoicau-sa de depressão para sua geração?

“Minhageração, najuventude,foi fascinada pela União Soviéti-ca. Era a novidade no mundo, ti-nha resolvido problemas mate-riais fundamentais do ser huma-no. Um país de mujiques analfa-betos se transformou numa po-tência e ainda teve força para pa-rar a maior máquina de guerraque tinhasido montada,a dosna-zistas. Também foi o momentoem que li O Capital. Para um en-genheiro como eu ler O Capitalfoi como um míope que colocas-se óculos. Quem não era comu-nistana minhageração nãotinha

intensidade incontrolável. Satur-nino pediu à Câmara Municipalrevisão para o IPTU e reajustemensal da unidade fiscal, nega-dos sucessivamentepela maioriatotalmente adversa. A inflação jáatingiao patamarde20% aomês.Erao garroteamentopropositadodas magras receitas da prefeiturae a condenação àfalência do mu-n i c í p i o.

Usando seu prestígio no Con-gresso Constituinte, Saturnino,junto a outros prefeitos de capi-tais,lutou pelamelhoriasubstan-cial das receitas municipais, queacabousendo aprovadanaCons-tituição de 1988, com um novosistema tributário bem mais fa-vorável aos municípios, a entrarem vigor em janeiro do ano se-guinte. Pediu então autorizaçãopara lançar novos títulos da dívi-da pública do município porquesabia que, com as novas receitasque entrariam a partir de 1989, aprefeitura teria condições de res-gatá-las.Maso BancoCentralne-gou o pedido e comunicou a to-dos os bancos do País que estavaproibindo até mesmo a rolagemdos empréstimos à Prefeitura doRio. Era a decretação da falênciado Rio pelo Banco Central.

Saturnino resolveu então de-clarar honestamente a falência daprefeitura, numa tentativa demobilizar a opinião pública paraa necessidadede conseguirnovasreceitas. Depois de três meses deluta, os resultadosacabaram apa-recendo: a Câmara aprovou nofim do ano de 1988 tudo aquiloque havia rejeitado em1987, a re-visão do IPTU e a atualizaçãomensal da Unif. Aprovou, porém,para o prefeito seguinte, para en-trar em vigor apartir de janeiro de1989, juntamente com a nova re-ceita tributária aprovada pelaCo n s t i t u i n t e.

Saturnino sofreuum profundoisolamentoe umenormedesgas-te político, mas ficou definitiva-mente reconhecido como políti-co honrado,coerente edemocra-ta. Depois de quatro anos voltou,com seriedade e humildade, aservir o Rio de Janeiro e ao seupartido PSB, elegendo-se verea-dor em 1992. Candidato nova-mente ao Senado em 1998, ven-

Um socialista quetrocou a políticapela literatura

k CO M U N I S M O

«Quem não eracomunista na minhageração, nos anos 1945,definitivamente nãotinha sensibilidademoral, política, social»

k L I T E R AT U R A

«A partir de 2004, nãoaguentava maisaquelas sessões doSenado. Eramextremamente chatas,idiotas.»

Roberto Saturnino Braga iniciou suatrajetória política em 1962, quandosaiu candidato a deputado federalpelo PSB. Eleito, destacou-se como

presidente da CPI Time-Life. “A par-tir de 2004, não aguentava maisaquelas sessões do Senado”, contaSaturnino Braga, que virou escritor.

do-se noprimeiro prefeitodo Riode Janeiro eleito pelo voto diretodo povo, numa eleição em quederrotou 18 outros candidatos,obtendo 40% dos votos válidos.

Uma prefeitura falidaEncontrou a prefeitura em janei-ro de 1986 praticamente falida,com a conta bancária bloqueadaporfaltade pagamentodadívida,os salários dos servidores com-pletamente defasados e o 13º sa-lário por pagar, além de dívidasenormes. A situação pré-fali-mentar era de quasetodas as pre-feituras do País, em decorrênciada reforma constitucional de1966,feitapelos militares,quees-vaziou enormemente as receitasdos municípios. Com um impor-tante trabalho de saneamento fi-

Casado há mais de 50 anoscomEliana,Saturnino temtrêsfi-lhos e seis netos.

Fa s t i o“A partir de 2004, não aguentavamais aquelas sessões do Senado”,conta SaturninoBraga. “Eram ex-tremamente chatas,idiotas. Oní-vel baixou muito.Da primeira vezque fui senador, entraram tam-bém o Paulo Brossard, o MarcosFreire, o Itamar Franco. Era umageração de senadores novos, in-teressantes, porque foi a primeiraeleiçãoem quea sociedadebrasi-leira mostrou que queria praticarpolítica outra vez. Dos 22 estadosque havia, o candidato do MDB,da oposição, ganhou em 16. Mi-nha melhor lembrança do Sena-do são aqueles anos.”

sensibilidade moral, política, so-cial. Na primeira eleição no Rio,depois de 1946, a maior bancadade vereadores era doPCB, o sena-dor eleito era Luiz Carlos Prestes.Estava todo mundo fascinado pe-lo comunismo. Depois veio a de-silusão. Stalin era louco, um neu-rótico. Mas a desilusão com ele,apesar de grande, foi digerível.Pensávamos que Stalin podia serruim, mas o sistema era o melhordo mundo. Quando o sistemaruiu pela incompetência, fica-mos perdidos: não há o que colo-car no lugar. Digo-me socialistaainda,esigo dizendoqueaevolu-ção políticavai chegarao socialis-mo, mas não pela visão do mar-xismo-leninismo da conquistapela luta armada”.

henrique veltman

Nelson Carneiro, sendo conside-rado o porta-voz da oposição nosassuntos econômicos. A expe-riência do mandato de deputadoedo trabalhoem umórgão daad-ministraçãopública voltadoparao desenvolvimento fez dele umsenador atuante, de formaçãoeconômica e especialização emeconomia latino-americana,sendo umdos maiorescríticos do“milagre brasileiro” de Delfim eda ditadura. Foi ainda vice-presi-dente nacional do MDB.

Os anos1980 trariam parao se-nador nova mudança de partido.Discordando do ingresso do go-vernador Chagas Freitas e seugrupo, em 1982, altamente com-prometidos com o jogodo bicho eoutras ilegalidades, desligou-sedo PMDB,no qual haviasido lan-

Um grande retrato sem retoques

“É tudo invenção, com poucav e rd a d e ”. Com essa frase, Ro-berto Saturnino Braga abreuma obra que questiona os li-mites entre ficção e biografia.Internado em um hospitalapós sofrer um atentado, oprotagonista-autor escreveum livro refletindo sobre a vi-da que levou. Em suas lem-branças – reais ou inventadas– surgem amores, arrependi-mentos e acertos do perso-nagem, que, nas entrelinhasde sua história, constrói umpossível retrato do ser.

Retrato revelado no meninoque colecionava selos e cres-ceu ouvindo notícias da Segun-da Guerra, vibrando com a vi-tória dos russos em Stalingra-do – que criou nele uma afei-ção mais tarde aprofundada emseus estudos sobre Marx. Nohomem que fala com respeito eamor de seus antepassados eda sua família, sempre envol-vida na política do País. No in-divíduo que traz em si umagrande religiosidade e respeitoa Deus.

Entre o filosófico e o co-loquial, Saturnino Braga nosenvolve numa narrativa quetraz ao leitor um pouco de umRio de Janeiro antigo, comsua Copacabana quase into-cada e partidas de futebol debotão. Fala também do rapazfascinado por física que setornou engenheiro e estudouno Instituto Superior de Es-tudos Brasileiros, o Iseb, cen-

tro de formação e debate dosrumos do País, fechado apóso golpe militar de 1964. Econta, acima de tudo, sobreum homem que vive buscan-do nas paixões da vida a forçapara tomar as decisões cor-re t a s .

Este livro é mais do queum exercício literário ou bio-gráfico. Ao mesclar reflexãoe narrativa, história e fabu-lação, Retrato do Ser valorizae celebra o prazer da exis-tência.

Roberto Saturnino Bragavenceu o Prêmio Malba Tahanem 2000, é autor de 15 livrospublicados, entre eles: Os qua-tro contos do mundo, Contosdo Rio, Contos de Reis e Quar -teto, lançados pela Editora Re-c o rd .

Retrato do Ser será lançadoem São Paulo neste mês demarço, na Casa do Saber.

Lançamento na Casa do Saber

Divu

gaçã

o

Saturnino Braga foi o primeiro prefeito do Rio eleito pelo voto direto do povo, com 40% dos votos válidos