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Cristina Botelho – TRAVESSIA – ANO X - LETRAS
A CRÍTICA ESCRITURA: UMA NOVA ABORDAGEM
DA LITERATURA
Cristina Botelho1*
Resumo: A crítica-escritura, abordagem teórica, motivo do presente artigo, refere-se
principalmente à relação íntima que se estabelece entre o fazer literário e o fazer
crítico. Este artigo versa sobre essa abordagem teórica da literatura, cujo princípio
básico é a comprovação de uma corrente crítica que defende a fusão do discurso
científico com o discurso artístico, isto é, parte do princípio de que criação literária e
a crítica dessa criação convivem num mesmo discurso. Tomaram-se as teorias de
Roland Barthes e de Leyla Perrone-Moisés como esteios para compreensão dessa
nova visão da literatura.
INTRODUÇÃO
O presente artigo, objetiva desenvolver um estudo realizado
sobre a crítica-escritura, abordagem teórica da Literatura cuja criação
coube ao teórico francês Roland Barthes e a divulgação e
desenvolvimento a sua seguidora brasileira Leyla Perrone-Moisés.
Assim, este é um trabalho que tem por base os livros dos autores
mencionados. Do primeiro O grau Zero da Escrita e do segundo, os
livros A falência da crítica e A Crítica-escritura.
A Crítica-escritura como herdeira da semiótica e, como parte
de um todo lingüístico-textual próprios de uma cultura abrangente, pode
enquanto atividade meta, ser denominada de crítica da crítica, pois tem
como objeto a si mesma, uma vez que é simultaneamente ficção e
comentário sobre a ficção.
Perrone-Moisés (1973, p. 77) distingue a crítica tradicional, da
crítica-escritura. A primeira, segundo a autora, visa “compreender,
comparar, classificar e avaliar [...] para auxiliar a leitura, a compreensão
e a apreciação de outros leitores”. Trata-se, no dizer da estudiosa, de
“um discurso deliberativo, judiciário e epidítico”. Quanto à segunda, é
“um discurso dúplice (duplo e ambíguo) que mantém em si o velho e o
*Professora de Teoria da Literatura e das Literaturas Portuguesa e Brasileira, na faculdade de
Ciências Humanas de Olinda e na Faculdade Frassinetti do Recife-FAFIRE, Doutora em
Literatura e Cultura. Email:acistinabotelho@terra.com.br
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novo como uma serpente em muda” (PERRONE-MOISÈS (1993,
p.130).
Segundo a mesma autora (1993, p. 56): “A crítica-escritura
seria o último passo da crítica em direção à escritura, não ainda o passo
decisivo e auto-anulador, mas aquele momento ambíguo em que as duas
práticas se superpõem”.
Seguindo o ponto de vista de Barthes, Leyla Perrone-Moisés
analisando a obra de Lautréamont, denomina os comentários críticos
contidos na escritura do autor francês de autocrítica. Distingue a
autocrítica da crítica convencional e apresenta as duas razões que a
determinam como objeto de análise: ela participar da própria obra,
(1973, p. 139) “constituindo o seu modo de existência, ou seja, como
processo de produção da obra” e simultaneamente, desempenhar o papel
de bula da obra, isto é, explicá-la, descrevê-la.
Essa ocorrência, segundo Perrone-Moisés, (1973) resulta, pelo
fato da crítica não só fazer parte da obra, mas principalmente porque,
como bula, dirige-lhe a leitura.
Acrescenta ainda Perrone-Moisés, (1973, p. 139):
Elemento constitutivo da obra, essa autocrítica não poder
ser negligenciada. Ela confere à obra uma iluminação
particular, porque afeta sua enunciação. Considerando a
enunciação como as circunstâncias de transmissão de um
enunciado, percebe-se que uma obra em que o processo é
ele–próprio - enunciado, redobram, de certa forma, os
problemas do crítico.
Assim, é possível afirmar a existência de autores cuja escritura
romanesca apresenta um duplo discurso: o literário e o crítico. Neste
sentido, o estudo da obra na perspectiva da crítica-escritura teria por
finalidade criar uma certa organização que conduz o receptor não só à
leitura do romanesco, como ao entendimento e à valoração da obra, já
que esta se compõe da simbiose do estético com o valorativo.
Delimitando a crítica como atividade naturalmente intertextual
e a intertextualidade como “esse imenso e incessante diálogo entre obras
que constituem a literatura”, Perrone-Moisés (1976) compreende a
intertextualidade como inerente à atividade crítica, pois, esta última para
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valorar, o faz exemplificando com citações, fragmentos e aspectos
estruturais do texto que é objeto de reflexão, além de ser a razão de sua
própria existência, pois a crítica só existe em função do objeto criticado.
Essa última característica do discurso crítico mais se acentua à
medida que este se distancia dos cânones científicos e se integra ao
discurso literário. Desse modo, a crítica-escritura é elemento
constitutivo do espaço romanesco, no qual o diálogo que se estabelece
entre a crítica e o discurso ficcional termina por fazê-lo falar de si
próprio, tornando-se, portanto objeto simultaneamente explicador e
explicado.
Perrone-Moisés, ao trabalhar o conceito de crítica, enxerga nela
duas possibilidades: a crítica científica e a crítica escritura.
A respeito da crítica científica assim se exprime:
Armada com o aparato conceitual e metodológico da
semiologia, a crítica pode descrever os textos. Ela
constituirá modelos ou grilles que permitirão uma ou mais
leituras de um texto, graças ao esclarecimento de seu
código das leis de seu funcionamento. Teremos então uma
metalinguagem cada vez mais formalizada, cada vez
menos verbal e discursiva. (Perrone-Moisés 1993, p. 29)
Já a crítica-escritura, na opinião da mesma autora:
privilegiará a produção de novos sentidos sobre a
reprodução de sentidos prévios que, ao invés de apenas
ajudar a ler (a decifrar), dar-se-á a leitura como um novo
ciframento. Esse discurso, constituído não como uma
utilização instrumental da linguagem verbal, mas como
uma aventura no verbo, não será uma metalinguagem, mas
entrará em pé de igualdade com o discurso poético, “na
circularidade infinita da linguagem.” (Perrone-Moisés
1993, p. 29)
Estamos conscientes de que há duas possibilidades para que a
crítica se realize, como método e como escritura e que esta última
resulta da diluição de ambos os discursos, conforme o ponto de vista de
Leyla Perrone-Moisés em Texto, Crítica e Escritura. Embora
entendamos que a autora busca mais a problematização de uma teoria
do que o estabelecimento de pressupostos explicitados de modo fechado
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e conclusivo (fato que, se ocorresse, contrariaria os próprios princípios
da teoria da escritura), parece-nos válido utilizar o conceito de crítica-
escritura para caracterizar a realização da atividade crítica do texto
literário, no interior desse mesmo texto, isto é, como elementos
constitutivos do discurso literário.
O conceito de Crítica-escritura não é exatamente o mesmo de
autocrítica ou de crítica dos autores, mas envolve a ambos e é a
designação dada por Leyla Perrone-Moisés a uma abordagem teórica,
desenvolvida na segunda metade do século XX por Roland Barthes,
seguido de perto por Maurice Blanchot e Michel Butor.
Nela os autores defendem a diluição das diferenças entre o
discurso científico e o discurso artístico, isto é, entre o discurso literário
e o crítico, uma vez que ambos são escrituras. Assim, faz-se necessário
retomar os trabalhos teóricos que têm por objeto a crítica literária como
possibilidade de escritura tal como proposto por Leyla Perrone-Moisés,
na esteira de Roland Barthes, Michel Butor e Maurice Blanchot. Discute
a autora a falência da crítica sistemática e defende o princípio de que a
crítica começa a diluir-se, caminhando para a perda da autonomia, não
havendo, nesse caso, lugar para o estabelecimento das dicotomias
discurso científico e discurso literário, texto crítico e texto ficcional.
Perrone-Moisés (1973), na análise da poética de Lautréamont,
redefine os caminhos da crítica e, ao mesmo tempo, expõe os novos
rumos dessa atividade, a partir da perspectiva da crítica como escritura,
numa linha puramente barthesiana.
Em La Révolution du Langage Poétique e em a Falência da
crítica, respectivamente Julia Kristeva e Leyla Perrone-Moisés
denominam os comentários críticos contidos na obra do autor francês de
autocrítica.
Perrone-Moisés (1973, p.166) conclui o trabalho afirmando
que a crítica semiológica está fadada ao desaparecimento e que os novos
rumos da crítica seriam o da escritura, na qual:
Liberado como todo escritor, de um sistema de sentidos
plenos emanados de um centro (origem, presença,
verdade), o crítico pode finalmente lançar-se no jogo livre
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da linguagem, onde o conhecimento e o valor (do mundo,
do texto) não dependerão do Criador ou do criador, mas
serão o fruto da invenção crítica.
À medida que a crítica se torna escritura, o texto criticado
se torna pré-texto para uma aventura na linguagem [...] Ao
mesmo tempo, à medida que a literatura faz de sua
especificidade seu referente e seu objetivo, ela se torna
exploração crítica da linguagem.
Assim, o distanciamento entre a crítica e a literatura
neutralizar-se-ia, eliminar-se-ia, criando-se um novo paradigma em que
crítica e escritura romanesca fundir-se-iam de tal modo que não mais
haveria lugar para dicotomias, pois a noção de escritura traz no seu
cerne, não só conceitos que dessacralizam a idéia de gênio criador, mas
que ao mesmo tempo nivelam o fazer crítico ao fazer literário, unindo-
os de tal maneira que tanto a crítica como o literário desapareceriam,
surgindo algo novo, resultante do diálogo de ambos.
A mesma autora em Texto, Crítica e Escritura (1993, p. 21) dá
continuidade às reflexões sobre a crítica no interior do texto literário,
aprofundando alguns conceitos que são apenas introduzidos em Falência
da Crítica. Dentre eles, destacam-se os de crítico, de escritor, de crítica e
de crítica-escritura.
Pondera a autora que a crítica, obedecendo às exigências
contemporâneas, já não pode se configurar como no passado. Defende a
crítica e a criação artística como simulacros. Ao colocar tanto a crítica
como a literatura na condição de simulacros, Perrone-Moisés (1993, p.
21) afirma que não existem mais fronteiras entre ambas, pois “a
reprodução cede passo à produção, e a produção crítica não se encontra
mais submissa a algo anterior e superior; ela pode tornar-se ela própria
produção poética”.
Prosseguindo os comentários sobre a crítica no século XX, a
autora, seguindo a perspectiva de Barthes (1974), fala sobre a
existência, na atualidade, de duas críticas: a semiológica e a crítica-
escritura. Para Perrone-Moisés (1993, p. 33) em ambos os casos, perde-
se a noção de sujeito, mas de maneira diferente, pois na semiologia “o
sujeito se oculta sob uma pretensa objetividade”, e na crítica-escritura
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“ele se subverte e se coloca em questão”.
Distinguindo a crítica e a escritura Perrone-Moisés (1993, p.
54) afirma:
O objetivo da crítica é a explicação e a avaliação de outros
textos (atividade transitiva, comunicativa, imbuzal); o
objetivo do texto é sua própria produção (atividade
intransitiva, significante, paradoxal). Enquanto a escritura
abre a linguagem à infinidade, a crítica supõe um texto
como circunscrito, finito; ela o fecha, na medida em que
faz dele um objeto, um corpus de estudo.
A crítica se encontra, diante dos textos poéticos, numa
posição mediana entre o distanciamento e a dependência.
Como explicação, ela exige o distanciamento, como
compreensão, ela pressupõe a dependência. Esta posição
mediana é a da metalinguagem.
Afirma ainda a escritora que a crítica, como atividade
avaliativa, „depende de valores prévios‟ (referências culturais),
enquanto na produção textual o sistema de valores é peculiar ao próprio
texto. As posições distintivas barthesianas são retomadas por Perrone-
Moisés (1993) que caminha, na seqüência do trabalho, em defesa da
possibilidade de uma crítica-escritura. Nesta defesa da crítica-escritura,
Leyla Perrone-Moisés redimensiona conceitos que eram tidos, na teoria
de Barthes (1974), como distintos, tais como avaliação e explicação.
Para Perrone-Moisés (1993, p. 55-56), “a práxis da escritura,
tendo outro texto como instigação, já é uma valoração desse texto”, ou
seja, o fato de toda crítica constituir-se da discussão de outro texto,
permitiria a dissolução de um dos traços distintivos existentes, segundo
Barthes, entre crítica e escritura. No que diz respeito à função
explicativa, afirma a estudiosa que pode “transmudar-se em re-
apresentação, presentificação dos sentidos, liberação da significância,
teatralização".
Segundo Perrone-Moisés (1993, p. 56) a crítica-escritura seria
“aquele momento ambíguo em que as duas práticas se superpõem”.
Momento em que linguagem e metalinguagem se fundem, criando
novas possibilidades, em que a crítica,
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dando-se a ler como texto, desse também a ler outro texto,
de modo mais novo e mais rico do que aquele como
líamos antes; que fosse só como linguagem, conservando
uma função de metalinguagem; que inventasse, no outro
texto, novos valores; (...).
Prosseguindo com a defesa da possibilidade de uma crítica-
escritura, Perrone-Moisés (1993, p. 56) posiciona-se ainda sobre a
metalinguagem e a intertextualidade, presentes nessa nova perspectiva
teórica, na qual haveria realmente um diálogo entre obras, pois,
a nova fala se colocará em condições de igualdade com
aquela que lhe serve de pré-texto. O crítico não se porá
diante dela como um explicador de ambigüidades, mas
como um desenvolvedor de ambigüidades, isto é, como
um escritor.
Assim, quanto mais a crítica e o texto literário se unirem,
formando um todo uno e inseparável, quando já não se puder realmente
falar em metalinguagem, mas da união, ou diluição dos dois discursos
formando um terceiro, mais próximo se estará da instalação, de acordo
com Perrone-Moisés (1993), da crítica-escritura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, parece-nos claro, que a crítica-escritura é
uma das abordagens do texto literário que se aplica prioritariamente aos
textos literários modernos, pois é neles que a simbiose entre a criação
artística e a avaliação dessa mesma criação se apresenta de modo
explícito. Assim, como a análise literária deve seguir a abordagem que
mais se adequar à realidade do texto objeto de avaliação e julgamento,
obviamente a Crítica-escritura deverá contemplar as exigências dos
textos literários que conseguem, como indica a síntese ora realizada,
fundir em um só discurso o literário e a análise desse mesmo literário,
constituindo-se em um discurso auto-reflexivo e autocrítico.
REFERÊNCIAS
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_______________ Crítica e Verdade. Lisboa: Edições 70, 1966.
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_______________. S/Z. São Paulo: Cultrix, 1974.
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