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1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
X - Transposição didática
Conceito operativo é a transposição didática
Durante as últimas décadas a transposição didática tem utilizado aportes de
ciências como a sociologia e a psicologia para problematizar a aprendizagem e/ou
desenvolvimento cognitivo. No entanto, esta produção intelectual dificilmente chega à
escola onde o currículo de fato se faz. Os professores que não estão envolvidos com a
pesquisa acadêmica ou em dia com os eventos e textos mais atuais, continuam a trabalhar
dentro de noções de ensino que há muito tempo são consideradas ineficazes e dissociadas
da realidade econômica-política-social.
X - Discussão sobre o currículo
Algumas discussões sobre o currículo propõe uma mudança na estruturação
deste e da escola, propõe uma concepção de aprendizagem voltada para atender os
interesses e necessidades dos alunos e que desaconselha a fragmentação em
disciplinas. Embora isto implique em uma mudança na nossa cultura de aprendizagem e,
em conseqüência, na cultura escolar demandando uma longa caminhada, é importante que
se comece a buscar “caminhos” que explicitem as necessidades de reflexões sobre os tipos
de cidadãos e sociedade que queremos construir.
x – Outras formas de se ver o currículo
É provável que algumas alterações nas concepções de currículo e política cultural
escolar não sejam suficientes para promover mudanças na escola. Este processo depende
de “vontades” políticas e econômicas que estão relacionadas com as ideologias e relações
de poder hegemônicas, sendo portanto um processo longo e demorado. É importante, a
meu ver, que mesmos em pequenas “doses” estas novas concepções cheguem à escola e
perpassem o currículo escolar vigente.
Este trabalho busca fazer uma reflexão participante na escola, trazendo para o
universo escolar os aportes das ciências envolvidas com a educação, propondo uma
construção curricular que corresponda aos interesses dos alunos e que faça uma abordagem
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diretiva a fim de valorizar os seus conhecimentos implícitos e promover aprendizagens
significativas. Partindo da consideração de que, como coloca
X - Visão currículo autor: Torres Santomé
1. Tudo o que se programe como tarefa escolar, como proposta de trabalho curricular,
tem de tornar visível suas conexões com as experiências cotidianas e significativas
para o coletivo estudantil ao qual é oferecido. É necessário que se permita que os
problemas, as preocupações, aspirações e interesses do alunado sejam acolhidos.
2. Toda a proposta curricular tem que estar apoiada na cultura de procedência do
alunado. (Torres Santomé, 1997, p. 13)
X – lócus escolar
Com esta intenção realizei a pesquisa dentro do locus escolar, vivenciando o dia a dia da
escola e as construções e limites que se impõe na realidade escolar, pois como coloca
Gimeno Sacristán (1998, ps. 166-167), o professor não decide sua ação no vazio, mas no
contexto da realidade de um local de trabalho, numa instituição que tem suas normas de
funcionamento marcadas às vezes pela administração, pela política curricular, pelos
órgãos de governo de uma escola”.
Neste trabalho examino na esfera escolar a compreensão dos alunos em alguns
conceitos básicos de ciências, em especial física e química, à luz de seus conhecimentos
implícitos e, da mesma forma, a motivação e aprendizagem oriunda de um trabalho voltado
para corresponder às suas necessidades e interesses. Este trabalho não se reduz a “traduzir”
para a escola versões simplificadas da realidade através de procedimentos metodológicos,
mas pesquisa a realidade escolar retornando para ela os frutos de uma reflexão.
X – Questões de pesquisa
Perpassado pela minha subjetividade, esta análise evidencia os pontos de contato
entre os saberes de referência e os saberes cotidianos, originando um currículo onde se
valoriza um saber escolar que, em última análise, é diferenciado e único no contexto em
que está inserido e deve, portanto, ser investigado e valorizado neste contexto.
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2. EVIDENCIANDO ALGUNS APORTES TEÓRICOS QUE
INFLUENCIARAM A CONSTRUÇÃO CURRICULAR
Considerações Gerais
x- Tipos de currículoHá muito tempo, os pesquisadores em educação abandonaram a noção de
currículo como sendo uma mera listagem de conteúdo. Apesar disto, essa noção
historicamente construída permanece até os dias de hoje. O currículo posto como
“naturalmente” gerado, na maioria das vezes, apresenta-se como uma ordenação e
seqüenciação de conteúdos, generalizada e legitimada pelo Estado para todas as escolas.
O termo currículo teve, ao longo do tempo, diferentes definições e diferentes
possíveis origens: temos currículo (1) como indicação do que se ensina, ou seja, uma
proposta direcionada para selecionar o que deve ser ensinado. Esta seleção, numa visão
disciplinar, pode ser para eleger quais as disciplinas que devem fazer parte do currículo ou
para eleger dentre os conteúdos de cada área os que merecem passar a outras gerações
como representativos da cultura universal; (2) como plano estruturado de estudos, isto é,
uma listagem de objetivos a ser cumpridos para um próximo nível de ensino; (3) como
ferramenta pedagógica da sociedade industrial, um instrumento de preparo de mão de obra
qualificada para uma sociedade tecnológica e industrial emergente. (Terige, 1996) Dentre
tantas outras, estas são formas de “ver” o currículo e demonstram os processos enfatizados
em cada concepção curricular.
X - Análise cultural: currículo como construção social (autor FORQUIN 1992)
Estas colocações não esgotam as conotações dadas ao currículo e, tampouco, ao
longo deste estudo existe esta pretensão. No entanto, cabe refletir, ainda, sobre a definição
de Forquin (1992), onde uma seleção realizada dentro da cultura a fim de definir o que é
relevante conhecer recebe o nome de currículo. Esta definição evidencia a eleição de
determinados aspectos da cultura em detrimento de outros, como em definições já citadas.
Porém, ao destacar que a seleção é realizada no interior da cultura permite a diferenciação
dos currículos e amplia as possibilidades de incluir as vozes normalmente ausentes na
construção curricular por questionar os critérios desta seleção.
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X - Campos de conhecimento curriculares
Há na construção curricular aportes de diferentes campos do conhecimento e
evidências e reflexos do predomínio de cada um deles. Influências políticas, como a
necessidade de estimular o conhecimento científico pós-Sputnik que surgiu nos currículos
institucionalizados; influências econômicas, como a prática da utilização dos livros
didáticos ou o estímulo à formação de técnicos de nível médio para trabalhar na indústria;
influências tecnológicas da mídia e da informática que mais recentemente estão presentes
na escola. Entre tantos outros, como os aportes sociais que implicam valores de
determinadas épocas e validam a cultura presente nos currículos e os oriundos de pesquisas
em psicologia, sociologia, educação, filosofia, etc.
X – FOUCAULT verdade
Dentro deste universo de campos de saberes que permeiam a construção curricular
pode-se dizer que alguns aportes são assumidos como “verdades” constituindo os
currículos e a prática pedagógica.
Com o intuito de discutir sucintamente sobre este assunto antes de apresentar as
investigações realizadas nesta dissertação e sua proposta curricular, proponho destacar
alguns aportes teóricos que foram importantes para a
X – tríade de análise:
construção deste currículo, a investigação em sala de aula e, por
conseqüência, a transposição didática.
Esta discussão curricular tem como um dos enfoques as contribuições
psicológicas e cognitivistas que se manifestaram desde o começo deste século e
influenciaram o currículo através da mudança do foco central da disciplina para o sujeito e
suas particularidades, procurando “ver” de que forma essas contribuições se manifestaram
e/ou se manifestam na construção curricular através de uma análise crítica.
As teorias psicológicas influenciaram a construção curricular com ênfase no
desenvolvimento de processos cognitivos, focalizando o refinamento de operações
intelectuais, o que transferiu a prioridade do quê ensinar para o como e quando ensinar. Os
currículos desenvolvidos com base nestas teorias propunham desenvolver através da
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aprendizagem as operações cognitivas e de acordo com o desenvolvimento do sujeito,
proporcionar aprendizagem, conferindo a estes condições para fazerem suas próprias
escolhas dentro e fora do contexto escolar. Os estudos acerca da cognição desenvolvidos
por Jean Piaget e Lev Vygotsky deram origem a diversas propostas pedagógicas que ao
longo do tempo disseminaram-se no contexto escolar, como é o caso do construtivismo e
do construtivismo mediatizado, e, mais recentemente, servem de base para estudos
diretivos, como os de
X - Autores POZO e CARRETERO
Ignacio Pozo (1997) e Carretero (1996) entre outros, que discutem a influência dos
conhecimentos implícitos na aprendizagem.
Um segundo enfoque são as contribuições da sociologia que ao surgir evidenciou
algumas influências que promoveram a construção curricular tal como se apresenta hoje e
colocou sobre o currículo um “olhar” que o situa histórica e socialmente. Esta forma de
repensar o currículo trouxe significativos questionamentos aos pesquisadores em educação.
X – novas maneiras de ver o currículo
Os estudos acerca do currículo e suas implicações na sociedade, bem como as implicações
da sociedade sobre o currículo, trouxeram à pauta discussões que desestabilizaram o que
estava posto como natural e proporcionaram uma nova maneira de “ver” o currículo.
X – Currículo OCULTO e REAL
O currículo entendido como a seleção cultural que ensina
através do que diz e do que omite, respectivamente
denominados real e oculto, introduzido pelos estudos de
Philip Jackson publicados, em 1968, no livro Life in Classroom, produziu uma
ruptura com a noção, até então praticamente contínua, de
currículo.(Moreira e Silva, 1995)
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Autor - MICHAEL YOUNG
Em 1971, Knowledge and Control de Michael Young e o nascimento da Nova
Sociologia da Educação Britânica contribuíram com os estudos no campo do currículo
introduzindo questionamentos à neutralidade e veracidade do currículo acadêmico e
evidenciaram a existência de relações de poder que legitimam o que deve ser o
conhecimento escolar. (Moreira e Silva, 1995)
X - INFERIR ensaios de Tomaz Tadeu da Silva (1995a, 1995b), voltados para a
análise do saber-poder, principalmente por meio dos artefatos, nos discursos
produzidos na contemporaneidade. Um deles, o currículo escolar.
Uma outra influência significativa nos estudos em educação é a discussão sobre
pesquisas qualitativas, seus aportes teóricos, as influências dos pesquisadores ou
observadores de campo, os estudos feministas, culturais e demais práticas investigativas
ricas em pormenores descritivos e que promovem este tipo de investigação no interior da
cultura em que esta se realiza.
A seguir passo a discutir primeiramente as influências dos estudos psicológicos na
construção curricular e, posteriormente, as influências da sociologia seguidas das
implicações da pesquisa qualitativa como forma de melhor organizar o texto ou de torná-lo
mais didático. A escolha por analisar o currículo utilizando esses aportes, dentre tantos
outros, justifica-se por serem precisamente estas linhas as fundamentadoras do processo
curricular investigado neste trabalho. A primeira por enfocar as formas como os alunos
aprendem, suas possibilidades cognitivas e a possível intervenção dos professores e do
currículo para promover a aprendizagem e/ou desenvolvimento cognitivo. A segunda por
trazer à teoria do currículo um cunho social, uma discussão sobre a necessidade de
perceber o currículo como uma construção cultural constituída por ideologias, assim como
a sala de aula, o que vai ao encontro das atividades e buscas realizadas no processo de
construção curricular que é objeto desta dissertação. E a terceira por ser a base de todo o
trabalho de investigação qualitativa realizado neste trabalho.
2.2. Implicações da Psicologia
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O desenvolvimento de teorias psicológicas sobre o processo de conhecimento
trouxe para o currículo a discussão de quão efetiva deveria ser a prática pedagógica para
promover o desenvolvimento cognitivo e aprendizagens nos estudantes. Embora
inicialmente se possa pensar que a mudança seria de cunho metodológico, com o decorrer
dos estudos e seu aprofundamento percebeu-se que esta mudança atingia o currículo de
forma mais ampla, promovendo a reflexão acerca do que deveria ser estudado, como e
quando a aprendizagem aconteceria.
Um importante marco destas teorias são os trabalhos de Jean Piaget, que ao
propor a Epistemologia Genética possibilitou novas formas de se pensar a aprendizagem e
o desenvolvimento humano. Piaget estudou as mudanças cognitivas que ocorrem no
processo de aprendizagem das crianças e quais os mecanismos que as promovem.
“Sua teoria diferencia três etapas no desenvolvimento cognitivo que rapidamente
é aceita e difundida:
1. A etapa sensório-motora (desde o momento do nascimento até os 2 anos).
Neste período, a atividade sensorial e motora domina os comportamentos infantis.
A maneira de relacionar-se com a realidade se dá mediante os sentidos e as ações físicas.
2. A etapa das operações concretas, com dois subperíodos, um pré-operatório (até
os 7 ou 8 anos) e outro, o das operações concretas propriamente (que finaliza por volta
dos 12 anos). Neste momento a linguagem vai possibilitar avanços decisivos na forma de
compreender e intervir sobre a realidade. As crianças podem realizar operações mentais
mesmo que sempre partindo do concreto.
3. A etapa das operações formais. A partir de agora os meninos e meninas
começam a operar com conceitos abstratos e a raciocinar de forma hipotético-dedutiva.
Esta é a última etapa do desenvolvimento intelectual e começa logo que for superada a
etapa anterior.” (traduzido de Torres Santomé, 1994, p. 40)
Jean Piaget estudou o processo de cognição sem ter a preocupação de propor uma
teoria educacional, no entanto seus trabalhos serviram de base para diversas alternativas
pedagógicas nos estudos educacionais.
Os planificadores curriculares utilizaram-se das teorias piagetianas de maneiras
diferentes. Houve consenso quanto à necessidade de trabalhar com as crianças
metodologias globalizadoras nas séries iniciais, pois as peculiaridades desta etapa exigem
tarefas com significados mais acessíveis, isto se deveu muito às interpretações sobre as
colocações de Piaget. No entanto, através de outras interpretações da obra de Piaget pôde-
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se depreender que a partir dos 10 ou 11 anos de idade o aluno seria capaz de estudar
disciplinarmente; dado que sua estrutura psicológica lhe permite entender e fazer as inter-
relações sozinho, o aluno já é capaz de formalizar.
Outras implicações curriculares, talvez mais amplas que as acima referidas,
decorreram das teorias piagetianas, como o surgimento do construtivismo (que é
considerado como o paradigma construtivista, por alguns autores, (Davis e cols., 1996).
Embora Piaget só recorra ao conceito “construção” a partir da década de setenta, o
construtivismo está baseado em seus pressupostos.
“O ponto de vista de Piaget é uma clara e explícita aposta de uma postura
epistemológica baseada na noção de que conhecer é construir. Esta construção é uma
modificação da relação entre o sujeito e o objeto de conhecimento (relativismo
interacionista); que se traduz por uma dupla construção (da estrutura interna e da
estrutura dos objetos externos) e que está baseada em última instância, em mecanismos
explicativos ligados a dinâmica das ações e sua coordenação (equilibração, tomada de
consciência, abstração, etc.).” (traduzido de Martí, 1997, p. 237)
Como coloca Juan Delval (traduzido de, 1997, p.1), o construtivismo se espalha
como uma mancha de óleo sobre todas as publicações pedagógicas. O grande alcance das
teorias construtivistas, que traduzem ou refletem uma concepção epistemológica do
conhecimento, atingiu a formulação curricular e deslocou o foco de o quê ensinar para o
como e quando se poderia fazê-lo.
Esta defesa de uma aprendizagem por descoberta presente na obra de Piaget, pode
propiciar um posicionamento a favor de um ensino sem fragmentações disciplinares,
contrariamente ao que os “metodólogos” haviam postulado sobre a disciplinarização
baseados em suas colocações, como foi discutido anteriormente. Como coloca Wortmann
(1996), muitas vezes os “metodólogos” da educação científica radicalizam e distorcem as
próprias fontes onde buscam suas referências. Ao enfatizar a presença da formalização a
partir dos 10 anos (reformulada mais tarde para cerca de 15 anos) Piaget não pretende
colocar que o estudante irá aprender tudo o que lhe for proposto, mas, sim, apenas o que
lhe promover conflitos cognitivos.
Segundo Torres Santomé (traduzido de, 1994, p. 42) é preciso destacar que a
medida em que Piaget aposta em um ensino por descobrimento está prestes a cair em um
novo individualismo rousseauniano, pois, muitas vezes, não considera a possível ajuda de
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uma outra pessoa e processos instrutivos adequados. Piaget, ao se dedicar ao estudo das
estruturas cognitivas, tem como sua principal preocupação os processos internos de
construção, por isso não enfatiza o entorno social. Embora Piaget não enfatize os aspectos
culturais que fazem parte das seleções curriculares, também não os despreza, pois
considera importante os conflitos cognitivos que surgem da interação com outros para
auxiliar a aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo, que concebe como uma forma de
adaptação do indivíduo ao meio em que vive. (traduzido de Moliné, 1996, p. 160)
Segundo Delval (traduzido de Delval, 1997, p. 31), a estratégia que Piaget
emprega com relação ao entorno social é semelhante as que são utilizadas por todas as
ciências: prescindir de fatores distorsionantes para se centrar nos que são essenciais. Esta é
uma outra forma de pensar o contexto e que pode ser amplamente discutível, pois, como o
próprio Delval coloca, o descobrimento das estruturas não é suficiente para explicar a
atuação do sujeito.
Outro importante marco nos estudos psicológicos foram os trabalhos de Lev
Vygotsky e sua teoria sobre o desenvolvimento social da mente. Para Vygotsky, existe um
nível de desenvolvimento efetivo e um outro nível de desenvolvimento potencial nos seres
humanos. A possibilidade de aproximação e desenvolvimento entre os dois níveis foi
denominada por ele Zona de Desenvolvimento Proximal (ou próximo-ZDP).
Esta zona é importante nos trabalhos de Vygotsky que ampliará os estudos das
relações entre aprendizagem, desenvolvimento e entorno social. Sua teoria sócio-histórica
destaca o decisivo papel que os adultos, o meio social e a instrução têm na aprendizagem e
no desenvolvimento humano. O foco da teoria vygotskiana está nas relações entre os
participantes do processo de aprendizagem, na ênfase no conhecimento como processo
histórico e social e, portanto, como construído dentro e fora das instituições escolares.
Assim como os estudos de Piaget, também Lev Vygotsky influenciou com sua
teoria as proposições e discussões acerca da estruturação curricular. No entanto,
diferentemente de Piaget, o foco do trabalho deste autor foram as condições que
proporcionam o desenvolvimento cognitivo, mais do que precisamente saber em que este
consiste.
Com a ênfase no contexto social onde se produz a estrutura do pensamento, a
mudança educacional passa a ter, nessa abordagem, importante significado metodológico e
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teórico, ou seja, a organização de um sistema social chave e dos modos de discurso a ele
associados, traz conseqüências potenciais de novas formas de pensamento. (Moll, 1996)
Os projetos educacionais baseados na obra de Vygotsky buscaram desenvolver e
amadurecer funções mentais, sendo que dos oito primeiros trabalhos, sete discutem
problemas educacionais. Apesar deste textos voltados para a educação, Moll (1996) não
descobriu nenhum trabalho contemporâneo que examinasse a sala de aula, ou aplicasse a
teoria deste a instrução.
Segundo Martí, Vygotsky é interessante para a teoria construtivista por duas
razões:
“Por um lado, resgata o papel das interações entre as pessoas, afirmando que as
pessoas aprendem mediante sua participação no funcionamento interpsicológico e, mais,
defendendo que entre o plano interpsicológico e intrapsicológico existe uma profunda
conexão. Por outro lado, o que explica este isomorfismo entre a organização
interpsicológica e intrapsicológica e o que explica a possibilidade de interiorização e a
natureza semiótica da atividade interpsicológica.” (traduzido de Martí, 1997, p. 224)
A incorporação das colocações de Vygotsky ao construtivismo são extremamente
discutidas,. Para Delval (traduzido de, 1997), as propostas de Vygotsky estão mais
próximas do empirismo e condutivismo que ao construtivismo. Porém, ressalta Delval, a
teoria construtivista elaborada a partir da obra de Piaget, pode incorporar as propostas de
Vygotsky acerca do papel da cultura. Essa postura de aceitação de Vygotsky ao
construtivismo promove uma nova denominação dita construtivismo mediacional.
Uma importante contribuição de Vygotsky para a educação é a sua crítica as
abordagens psicológicas, as que chamou de atomísticas.
Na explicação de Bakhurst (1986), havia três considerações básicas na crítica de
Vygotsky, enunciadas aqui por serem ainda válidas para a prática educacional
contemporânea:
“(1)Abordagens anteriores, em especial o modelo estímulo-resposta, concebiam
o comportamento humano como simplesmente reativo. (2) Tais abordagens aceitavam o
inatismo das faculdades psicológicas, ou seja, que as crianças já vem ao mundo
equipadas, e que o mundo social simplesmente extrai, não cria, o que já está presente. (3)
Essas abordagens representam concepções reducionistas da psicologia, adotando o ponto
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de vista de que a acumulação de mecanismos psicológicos primitivos eventualmente
constitui as funções mentais superiores.” (Bakhurst, 1986, citado por Moll, 1996, p.7)
As relações entre as teorias psicológicas, o construtivismo e a transposição
didática1, de forma alguma, são simples. A realidade escolar, com seu conhecimento
característico, cotidiano e necessidades específicas não está reduzida às adequações para a
transposição didática das teorias psicológicas. Aceitar uma teoria de desenvolvimento
como única e verdadeira implica em negar todas as críticas pertinentes às lacunas de cada
teoria em particular.
Apesar de todas as teorias e propostas para as transposições didáticas o que se
pode perceber do ensino, com raras exceções, é a continuidade de uma visão escolástica2
das disciplinas, segundo a qual o currículo de cada etapa em particular está posto para
atender as “necessidades” da etapa posterior da escola, e não os interesses dos estudantes e,
tampouco, promover a sua formação como agente de mudança, importante aspecto quando
se busca a formação do cidadão.
2.3. Implicações da Sociologia
A Teoria Curricular, após os trabalhos da Sociologia da Educação e da Teoria
Crítica, passou a discutir as questões curriculares buscando a consciência das implicações
sociais e ideológicas inegavelmente presente na construção curricular. Como salientam
Moreira e Silva (1995, p. 21), a Teoria Curricular não pode mais encarar de modo ingênuo
e não-problemático o conhecimento organizado.
A presença de ideologias, do poder, de culturas nas construções curriculares são
alguns dos aspectos evidenciados com a Teoria Crítica, bem como outros que se poderia
dizer estão implicados nos três primeiros, como a disciplinariedade, o currículo oculto, as
tecnologias, etc. Questionar quais foram as influências que constituíram o currículo como
está posto, buscando entender que ideologia(s) o legitimam, como o poder se manifesta e
que cultura ele representa é admitir que, sejam quais forem as construções curriculares,
1 A passagem de um conteúdo do saber de referência a uma versão didática denomina-se “transposição didática”. Este conceito foi introduzido pelo sociólogo M. Verret (1975) e, posteriormente, desenvolvido no campo da didática da matemática por Y. Chevallard (1985). (por Souza, 1996)2 Os escolásticos caracterizavam-se por um espírito de culto à antigüidade clássica e por preocuparem-se com a teologia e a filosofia teológica, atribuindo grande importância à razão. O escolasticismo foi animado por um espírito retrospectivo que buscava conservar o universalmente reconhecido e transmiti-lo aos demais.
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estes aspectos estão presentes como construções sócio-históricas e, portanto, passíveis de
mudança.
Alguns trabalhos “contra-hegemônicos” que se propõem a problematizar o que
está posto, já estão sendo realizados e são oriundos dos aportes da Teoria Crítica. Segundo
Apple, são motivos de otimismo, um otimismo sem ilusão, pois eles significam a
possibilidade de analisar o modo pelo qual operam poderosos interesses conservadores,
tanto ideológicos como materiais, e nos permitem compreender melhor tanto as condições
de atuação da educação, como as possibilidades de alteração destas condições. (Apple,
1995, p. 47).
No Brasil, grande parte dos textos publicados vinculados com a corrente crítica do
currículo foram influenciados pelos de Michel Apple e Henry Giroux que fazem parte de
uma corrente fundamentada pelo neomarxismo, e profundamente influenciada pela Nova
Sociologia da Educação inglesa. No entanto, foi Paulo Freire que introduziu no Brasil estas
discussões e que é referência nos trabalhos de Apple e Giroux.
Segundo os autores que fazem parte do paradigma sócio-crítico o ensino deve
situar-se em contextos sócio-políticos, com interesses, valores e conflitos onde a realidade
social é o ponto de partida dos fenômenos educativos (Moreira e Silva, 1995). Investigar
essa realidade, dar-lhe espaço e voz nos currículos escolares é uma das metas dos estudos
sócio-críticos. Para tanto o envolvimento do professor é indispensável, pois como coloca
Forquin (1992), existe um currículo formal3, um currículo real4 e a percepção5 deste
currículo pelo aluno o que torna a escola um campo de produção e legitimação de saberes
muito particulares e típicos.
É neste campo de produções de saberes que a seleção cultural deveria ser melhor
definida, que as vozes ausentes nas produções curriculares até hoje existentes deveriam se
manifestar e legitimar. Entretanto o professor, historicamente desapropriado de um
saber que lhe permitiria gerar suas práticas pedagógicas, tem dificuldades para
identificar um “outro” entendimento das relações curriculares.
3 Os conteúdos prescritos pelas autoridades - o currículo formal - são o produto ao longo do tempo, de todo um trabalho de seleção no interior da cultura acumulada, um trabalho de reorganização4 Todo o capítulo de programas presta-se a muitas interpretações, por isso vemos os docentes, por sua vez, selecionar temas, enfatizar tal ou qual aspecto, apresentar os saberes sob diversos modos. Cada sala de aula segue assim um currículo real que, no limite, é diferente dos outros.5 Percepção do Currículo Real - aquilo que é realmente aprendido e retido pelos alunos não é necessariamente aquilo que os docentes ensinam ou crêem ensinar, na medida em que a relação das mensagens pedagógicas dependem também do contexto social cultural.
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Admitir incorporar a cultura popular6 à escola é dificultado pela escassa relação
que esta parece ter com a pedagogia. Giroux explicita algumas diferenças que envolvem
as questões culturais e a pedagogia aplicada:
“A primeira vista, pode parecer remota a relação entre a cultura popular e a
pedagogia aplicada à sala de aula. A cultura popular é organizada em torno do prazer e da
diversão, enquanto a pedagogia é definida principalmente em termos experimentais. A
cultura popular situa-se no terreno do cotidiano, ao passo que a pedagogia geralmente
legitima e transmite a linguagem, os códigos e os valores da cultura dominante. A cultura
popular é apropriada pelos alunos e ajuda a validar suas vozes e experiências, enquanto a
pedagogia valida as vozes do mundo adulto, bem como o mundo dos professores e
administradores de escola.” (Giroux, 1995, p. 96)
É, também, através de Giroux que se pode identificar as semelhanças e
necessidades de uma relação entre esta cultura popular e a pedagogia, pois ambas
aparecem como discursos subordinados. (...). No discurso dominante a pedagogia é
simplesmente a metodologia mensurável e justificada para transmitir o conteúdo de um
curso. (...) a cultura popular... é o que sobra após a subtração da alta cultura da
totalidade das práticas culturais. (Giroux, 1995, p. 97).
A tentativa de subverter essas noções e redefinir cultura e pedagogia como
critérios de escolhas e, portanto, a escola como campo de luta é uma tentativa, em última
análise, de valorizar as diferenças e diminuir, senão eliminar, a visão caricaturizada da
escola como transmissora dos únicos possíveis conhecimentos culturais válidos.
Colocações como as de Moreira e Silva esclarecem como é necessário evidenciar
esta nova postura, pois
“Na concepção crítica, não existe uma cultura da sociedade, unitária,
homogênea e socialmente aceita E PRATICADA e, por isso, digna de ser transmitida às
futuras gerações através do currículo. Em vez disso, a cultura é vista menos como uma
‘coisa’ e mais como um terreno de luta. Nessa visão: a cultura é o terreno em que se
enfrentam diferentes e conflitantes concepções de vida social, é aquilo pelo qual se luta e
não aquilo que recebemos.” (Moreira e Silva, 1995, p. 28)
Redefinir as bases orientadoras do currículo e redefinir o próprio currículo não é
tarefa simples. Existe uma cultura de dominação estabelecida há pelo menos um século em
6 Cultura produzida nas comunidades em que a escola está inserida e que se diferencia da cultura hegemônica.
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nosso país, que não permite ao professor tempo e espaço para discussões que possam levá-
los a repensar o currículo. Apesar de há quase três décadas a Teoria Crítica do Currículo
estar revisando as construções curriculares em busca de uma “liberdade” de pensamento e
de uma “valorização” de saberes e cultura populares, as propostas curriculares que surgem
como transformadoras, raramente fazem algo além de tímidos retoques no currículo
instituído, parecem mais com adequações metodológicas do que com renovação e
desestabilização do que está posto.
A valorização dos saberes dos alunos é estandartizada, o seu interesse também é
foco de estudo. No entanto, na maioria das vezes é colocado apenas como motivador e não
como conhecimento válido. As questões de gênero, classe social, raça, legitimação de
algumas drogas e ilegalização de outras são, ainda, temas tabus. A escola enquanto uma
das instituições transmissoras e legitimadora da racionalidade científica não evidencia
esses temas como relevantes para serem abordados em sala de aula.
A escola continua negando os conflitos, negando a historicidade do conhecimento,
só não é mais possível a ninguém negar o fracasso escolar. No entanto, admitir o fracasso
não significa mudar de ideologia ou transformar as relações de poder, existem diferentes
formas de encarar esse fracasso. Uma destas maneiras como fez Bennett, Secretário da
cultura de Reagan, é transferir a responsabilidade do fracasso ao aluno e apelar para o
elitismo ocidental para reconstruir uma “educação de qualidade”. (Giroux, 1995, p. 94).
Uma visão de escolarização de qualidade conservadora ou neo-conservadora o que é
praticamente o mesmo.
Os discursos, as relações de poder e até mesmo as ideologias que as permeiam
não são de maneira alguma facilmente identificáveis e não-problemáticos, por isso a Teoria
Crítica e a Sociologia do Currículo percorrem um longo caminho na busca de construções
curriculares mais legítimas. Tornar explícitas as redes que fazem a seleção cultural implica
refletir sobre o que está posto como natural e sua possível problematização a fim de que
esta seleção seja consciente e, portanto, mais criteriosa.
“Tornar o pedagógico mais político significa inserir a escolarização
diretamente na esfera política, argumentando-se que as escolas representam tanto um
esforço para definir-se o significado quanto uma luta em torno das relações de poder.
Tornar o político mais pedagógico significa utilizar formas de pedagogia que
incorporem interesses políticos que tenham natureza emancipadora; isto é, utilizar formas
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de pedagogia que tratem os estudantes como agentes críticos; tornar o conhecimento
problemático; utilizar o diálogo crítico e afirmativo; e argumentar em prol de um mundo
qualitativamente melhor para todas as pessoas.” (Giroux, 1997, p. 163)
Estas poucas considerações feitas sobre os aportes da sociologia na educação e na
construção curricular estão distantes de explicitar todo o trabalho que está sendo realizado.
Porém ao longo desta dissertação por várias vezes retomarei algumas discussões elencadas
aqui e possivelmente outras posturas e aprofundamentos serão evidenciados.
2.4. Implicações da Investigação Qualitativa
A expressão investigação qualitativa é um termo genérico que agrupa diversas
estratégias de investigação que partilham determinadas características. Os dados recolhidos
são designados por qualitativos, o que significa ricos em pormenores descritivos coletados
em locais específicos através de conversas e que por serem diversificados são de complexo
tratamento estatístico. Para o investigador, envolvido com dados qualitativos, divorciar o
ato à palavra ou o gesto de seu contexto é perder de vista o significado, como escreveu
determinado antropólogo. Se a interpretação antropológica consiste na construção de uma
leitura dos acontecimentos, então divorciá-la do que se passa, daquilo em que determinado
momento espaço temporal suas particularidades afirmam, fazem ou sofrem dentre a
vastidão de acontecimentos do mundo é o mesmo que divorciá-la das suas aplicações,
tornando-a única. Uma boa interpretação do que quer que sejam um poema, uma pessoa,
uma história, um ritual, uma instituição ou uma sociedade conduz-nos ao coração daquilo
que se pretende interpretar. (Bodgan, 1994)
Os processos de investigação nos locais acadêmicos podem ser definidos de duas
formas genéricas: um processo de investigação fundamental, normalmente mais abstrata e
menos acessível aos leitores comuns, e outro processo de investigação aplicada, onde se
visa a aplicação dos resultados diretamente na vida prática. É claro, no entanto, que
existem vários graus de investigação entre estes dois extremos. A pesquisa que realizei é
uma mediação entre estes extremos, pois buscou investigar conhecimentos implícitos e
interesses dos alunos como motivadores e promotores de aprendizagens, isto é,
pesquisando a organização do pensamento do alunado e suas caraterísticas, bem como a
utilização de estratégias para esta promoção que podem ser realizadas e aplicadas no
sistema escolar tal como está posto.
22
Neste estudo foram utilizados procedimentos de investigação qualitativa como a
observação participante, a etnografia e a investigação aplicada, utilizados
simultaneamente durante o processo de pesquisa que compreendeu um ano escolar e foi
realizado em duas turmas de 8a série da escola básica da rede pública de ensino em Porto
Alegre/RS/Brasil.
A observação participante acontece em maior ou menor grau dependendo das
atividades realizadas pelo pesquisador, porém é improvável que alguma observação social
aconteça sem a participação deste. As variações desta participação podem ser colocadas,
segundo Atkinson e Hammersley (em Denzin e Lincoln, 1994), como aquelas em que o
investigador é conhecido por todos como um investigador, ou apenas por alguns, ou por
ninguém. A participação também está relacionado com o quanto e o que é conhecido sobre
a investigação, que tipos de atividades são ou não são engajadas pelo pesquisador no
campo e como está identificado o pesquisador em relação ao grupo e seus participantes.
Outro aspecto é relativo à orientação que a pesquisa tem e como o pesquisador
conscientemente adota dentro ou fora do locus as orientações do trabalho.
As diferentes formas de intervenção é que caracterizam o quanto a observação é
participante ou não. No meu caso, a participação foi total, pois todos estavam conscientes
do meu papel de professor-investigador, eu preparei cuidadosamente as intervenções no
locus, tanto para conseguir os dados de base para o trabalho quanto para verificar as
mudanças após a intervenção e os novos dados.
A etnografia, segundo Bogdan (1994), consiste numa descrição profunda quando
se examina a cultura. Com base nessa perspectiva, o etnográfo se depara com uma série de
interpretações da vida, interpretações do senso comum que se tornam difíceis de separar
uma das outras. Os objetivos do etnógrafo são os de apreender os significados que os
membros da cultura têm como dados adquiridos e posteriormente apresentar este
significado às pessoas exteriores à cultura pesquisada. O etnógrafo preocupa-se
essencialmente com as representações que cada cultura faz de cada evento. Esta foi uma
preocupação constante neste trabalho de pesquisa, compreender de que forma eram
entendidos cada aspecto das discussões em sala de aula, como a linguagem era traduzida
dentro da cultura dos alunos e como esta se refletia enquanto produção do conhecimento,
utilizando para tanto instrumentos de levantamento de dados como questionários,
gravações de opiniões em sala de aula e, anotações dos gestuais e ritos que podiam ser
23
significativos para entender este processo de tradução da linguagem. No entanto, uma
diferença que me parece fundamental é a de que não só os dados adquiridos são passados a
culturas exteriores à estudada como, também, dados exteriores foram trazidos à cultura.
Em outras palavras, tanto houve uma investigação dentro da sala de aula que busca trazer
para a academia7 os acontecimentos e traduções que lá se fazem, como levar a cultura da
academia ao conhecimento da sala de aula.
Uma definição importante dos estudos qualitativos: o objetivo dos investigadores
qualitativos é o de expandir e não o de limitar a compreensão; não se tenta resolver a
ambigüidade entendendo as diferenças como um erro que se tentam ultrapassar mediante a
elaboração de uma definição. Outrossim, tenta-se estudar os conceitos da forma como eles
são entendidos por todos que os utilizam. (Bogdan, 1994)
Uma das linhas de investigação qualitativa, a etnomedologia, sensibilizou os
investigadores de que a própria investigação não constitui exclusivamente o
empreendimento científico. Pode ser melhor entendida como uma realização prática,
sugerindo que é importante considerar os pressupostos de senso comum que subjazem a
atividade dos investigadores. Os etnometodólogos exortam os investigadores que
trabalham numa perspectiva qualitativa a serem mais sensíveis à necessidade de pôr entre
parênteses ou suspender seus pressupostos de senso comum, as suas visões do mundo, ao
invés de operarem sem consciência delas. (Bogdan, 1994)
O investigador qualitativo evita iniciar um estudo com hipóteses previamente
formuladas para testar, ou questões específicas para responder, defendendo que a
formulação das questões deve ser resultante da recolha de dados e não efetuada a priori. É
o próprio estudo que estrutura a investigação, não idéias pré- concebidas ou um plano
prévio detalhado. (Bogdan, 1994, p. 82.) As hipóteses formuladas têm um único objetivo
de serem modificadas e reformuladas à medida que vão avançando.
A investigação aplicada é o cerne deste trabalho. A pesquisa tem um objetivo
primeiro específico que é o de promover um currículo diferenciado na rede pública de
ensino. Para tanto, é, de acordo com o referencial teórico abordado, necessária uma
investigação constante e aplicada. Outro objetivo é a divulgação do conhecimento desta
investigação para a comunidade científica e escolar, que posteriormente poderá servir de
referência para outros estudos. Um exemplo deste tipo de investigação são os trabalhos de
7 O termo academia se refere aos grupos de pesquisa onde se realizam as discussões de ponta sobre educação, onde se produzem novos conhecimentos.
24
Freire com alfabetização: ele nunca estudou os alunos por estar meramente interessado em
aumentar o seu repertório de conhecimento, mas por necessitar aprender sobre a
comunidade com o objetivo de direcionar os seus métodos de ensino nas suas turmas de
aluno.
A investigação na sala de aula ou no campo de trabalho objetiva entrar no campo
dos alunos, no território dos alunos. Nesse tipo de pesquisa “O objetivo do investigador é o
de aumentar o nível de vontade dos sujeitos, no meu caso dos alunos, encorajando-os a
falar sobre aquilo que costumam falar, acabando por lhe fazer confidencias. Este terá de
lhe dar provas de forma a merecer confiança que o sujeito deposita nele, tornando claro
que nunca irá utilizar o que descobrir para rebaixar ou magoar alguém. Se por um lado o
investigador entra num mundo sujeito por outro continua a estar do lado de fora”.
(Bogdan, 1994) Só que as dificuldades extras do professorado são as dificuldades da nota é
o poder na escola, o poder que te transforma num inimigo na trincheira. Esse investigador
trabalha para ganhar a aceitação do sujeito, não como um fim em si, mas por que isto abre
a possibilidade de prosseguir os objetivos da investigação. (Geertz, 1989)
Dentro destes aspectos relativos à confiança e integração necessária entre
professor-pesquisador-aluno surgem interferências como os sentimentos. Porém, a
investigação qualitativa procura trabalhar sentimentos de uma forma positiva, mostrando
que tal como acontece as pessoas, o observador também tem sentimentos e também se
sente perdido: a questão é saber como trabalhá-los. Segundo Rosaldo (1989), os
sentimentos são importantes veículos para estabelecer uma relação e para julgar as
perspectivas dos sujeitos. Não se podem reprimir sentimentos, pelo contrário, se tratados
devidamente podem constituir um importante auxiliar da investigação qualitativa.
No universo escolar, discute-se a validade dos trabalhos acadêmicos8 e os
discursos dos trabalhadores em educação estão centrados nos seus sentimentos primeiros,
isto é, salientam que alguém de fora nunca poderá vir a saber o que é de fato ser professor.
Este discurso pretende, antes de tudo, valorizar o trabalho docente e os saberes da prática.
Porém é importante perceber que os sentimentos do professorado que os faz assumirem ou
não a sua prática estão relacionados com as suas vivências. A incapacidade do observador
é, portanto, a de um estranho experimentar a frustração, a raiva, a alegria e o sentimento de
sucesso do professor.
8 Os motivos deste comportamento serão discutidos mais tarde no capítulo 3.
25
As questões relativas aos sentimentos dos professores em suas turmas, são
importantíssimas neste trabalho, pois nesta pesquisa observadora e professora foram a
mesma pessoa e esta simultaneidade foi muito relevante. A questão de estar na escola, ser
parte da cultura escolar, ser membro de uma comunidade, agir como professora, encarar o
dia a dia de professor, trabalhar com mais de uma turma, organizar laboratórios e materiais
didáticos dentro do possível e, ainda, responder às instâncias internas e externas que
regulam a nossa prática, trazem à pesquisa a validação do próprio professor, pois passam a
ser mais consistentes o discurso acadêmico e a prática escolar.
Os investigadores qualitativos interessam-se mais pelo processo do que pelos
resultados ou produtos. Como as pessoas negociam o significado? Como começam a
utilizar certos temas e rótulos? Como determinadas noções começaram a fazer parte
daquilo que consideramos ser o senso comum? Qual a história natural da atividade ou
acontecimento que pretendemos estudar?
Sistematizando a análise, nesta pesquisa, os dados foram recolhidos na escola em
todos os seus espaços, analisando discussões e proposições feitas pelos professores e
diretores, tanto nos momentos oficiais quanto nos informais que constituem a visão de
escola e de aluno dos componentes da escola, investigando como estes discursos chegam
aos alunos e os constituem enquanto grupo e indivíduos. Por outro lado, verificando como
se deu a relação aluno-escola, aluno-professor, aluno-aluno, dentro das salas de aula em
que trabalhei. E, por fim, verificando como aconteceu a relação aluno-saber escolar, aluno-
interesse pessoal-interesse escolar, e a produção do conhecimento enquanto construção
subjetiva e única do contexto.
26
3. O CURRÍCULO ESCOLAR VIGENTE
3.1. Considerações Gerais sobre o Currículo Vigente
A administração do currículo na escola é uma questão que envolve inúmeras
variáveis, dentre elas a localização da escola, o potencial humano docente e discente, a
linha pedagógica da escola e a comunidade em que está inserida. Apesar da massificação
curricular imposta pelos livros didáticos9 estas variáveis fazem diferença na hora de se
elaborar um projeto de pesquisa em termos de mudança curricular, dado que o currículo
real é constituído na prática escolar.
Esta pesquisa foi realizada em uma escola pública pertencente a rede estadual de
ensino do estado do Rio grande do Sul – Escola Estadual de 1o Grau Medianeira.
Localizada em um bairro de classe média baixa, em Porto Alegre, seu público alvo é,
porém, de classe baixa proveniente da periferia do bairro. A escolha da escola onde se
desenvolveu a pesquisa foi orientada por dois critérios fundamentais, ser uma escola da
rede estadual de ensino, para estar em consonância com meus trabalhos anteriores10, e estar
sem professor titular da disciplina de ciências, durante o ano de 1997, pois era meu
objetivo ser incorporada na escola como parte do corpo docente e não como uma
pesquisadora descompromissada com as questões da escola.
A infra-estrutura da escola foi, provavelmente, muito boa no passado, porém os
recursos tornaram-se bastante precários com o passar do tempo e com a falta de
investimento para a sua manutenção. A escola possui uma biblioteca completa, mas
desatualizada; o laboratório, da mesma forma, possui muitos materiais, mas os reagentes
estão vencidos, e os recursos audiovisuais, xerográficos e de informática são mínimos. As
possibilidades de reorganização e atualização dos materiais são escassas devido aos poucos
recursos destinados à educação.
9 Este tema será discutido à parte no decorrer do texto.10Durante a minha graduação em licenciatura em química, tive oportunidade de participar do Subprojeto - Redefinição de Bases Curriculares e Metodológicas para o Ensino de Química junto a Professores de Química vinculados a 28a Delegacia de Educação da SE/RS, onde apareceram discussões sobre o quanto o ensino fundamental em ciências afeta o ensino médio na medida em que antecipa conteúdos frente ao desenvolvimento cognitivo e frente ao próximo grau de ensino, dificultando a apropriação do conhecimento pelos/as estudantes. Ciente desta problemática procurei trabalhar em um novo projeto de pesquisa para o ensino de ciências na 8a série do ensino fundamental que foi inserido no projeto - Redefinição de Bases Curriculares e Metodológicas de Ensino de Ciências vinculado ao Projeto de Rede Fazendo Educação através da Química, que como o projeto anteriormente citado foi financiado pela CAPES/MEC/PADCT/SPEC .
27
O projeto desenvolveu-se em duas turmas de 8a série do ensino fundamental,
na disciplina de Ciências. A escolha desta série se deu por ser, na maioria das escolas
públicas, este o primeiro contato que os aluno têm com a sistematização dos conteúdos
típicos de química e física, o que me possibilita um melhor reconhecimento dos
conhecimentos implícitos dos alunos sobre estas ciências. Há, também, por parte dos
professores de nível médio um apelo por uma abordagem mais qualificada da ciência da 8a
série, dado que esta apenas antecipa conteúdos do 2o grau das disciplinas de química e
física (Loguercio, no prelo). Cabe definir e entender melhor o que é esta abordagem mais
qualificada, e dentro da escola estas questões podem ser melhor elucidadas, pois é possível
incorporar à discussão teórica a construção própria da escola enquanto produtora de
saberes oriundos da prática docente.
Nesta escola, como em muitas outras, a disciplina de ciências na 8 a série é
dividida em física e química e o livro didático escolhido pela professora do ano anterior,
que já estava aposentada, era um livro recomendado pelo MEC/FAE – Ministério da
Educação e Cultura/ Fundação de Assistência ao Educando - Aprendendo Ciências, de
Demétrio Gowdak e Neide S. de Mattos (1992). Esses livros são distribuídos gratuitamente
para os alunos e devem ser preservados para uso no ano seguinte pelo próximo grupo de
alunos que cursará a 8a série.
O trabalho se realizou em duas (82/83) das três turmas de 8a série da escola, sendo
que a turma 83 era dita como uma turma “difícil”, a turma dos repetentes e desmotivados.
A opção de trabalhar com duas turmas objetivou compreender melhor as vivências dos
professores que trabalham com turmas diferenciadas. Acredito que vivenciar a
heterogeneidade presente nas escolas enfatiza as concepções de construção curricular
direcionada para cada grupo específico e permite entender, na prática, os limites das teorias
e metodologias propostas pelos teóricos educacionais.
Após este panorama sobre a escola onde a pesquisa se realizou, acredito ser
pertinente refletir sobre a estrutura na qual ingressei.
28
3.2. Escola e Gerência de Saberes
Observei a escola, inicialmente, identificando o público ao qual esta se destina,
arriscando-me a cair numa análise que concebe a escola como uma das instituições do
mercado, um espaço que deve atender ao cliente e satisfazê-lo. No entanto, isto acontece se
esta análise parte do pressuposto de que o conhecimento está empacotado, estático, sucinto
e pronto para o consumo. Desde que o conhecimento é “visto” por mim como uma
recriação e reinvenção diária de uma prática e de um contexto, creio que esta análise
evidenciará que este contexto é significativo e determinante do conhecimento construído.
A Escola Medianeira destina-se a classe de baixo poder aquisitivo, como já foi
colocado, e, portanto, segundo Freire (1987, por Bogdan, 1994), o trabalho escolar deveria
estar sendo construído com e para esta comunidade, não de uma maneira a transmitir uma
visão de mundo diferenciada para classes sociais dominantes e dominadas, mas para
trabalhar conhecimentos oriundos de cada classe e evidenciar as relações sociais, políticas
e culturais entre ambas e as ideologias que as permeiam.
Na escola há consciência de que a comunidade que a rodeia é carente, pobre,
culturalmente diferente de outras classes sociais, inclusive a dos professores. Percebe-se
um interesse para compreender as diferenças entre os valores dos professores e os valores
da comunidade, às vezes extremamente conflitantes, porém estas atitudes estão presentes
na tolerância e na “boa vontade” dos professores ou nos locais específicos de se tratar as
diferenças e inadaptações: a Secretaria (da escola) e o Serviço de Orientação Educacional -
SOE. A questão do porquê destas diferenças, da validação e do respeito a elas, de como
trabalhá-las (não para compreendê-las melhor, mas para questioná-las) não aparece na sala
dos professores e tão pouco na sala de aula. Inúmeros fatores estão implicados nestas
ausências, muitos devido aos professores e suas vivências e muitos devido a histórias de
fracassos e vitórias das tentativas de mudança dentro de lutas de classe, gênero e raça, e,
ainda, pela legitimação de espaços extra-classe, como o SOE, cabendo à sala de aula o
conteúdo.
Um dos meus primeiros contatos na Escola foi mediado por uma ex-professora
que me informou que a escola tem o hábito de aceitar estagiários, pois segundo a vice-
diretora “eles não costumam dar trabalho”. Após alguns dias de negociações junto a
Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul11, retornei a escola e ao conversar
11 As negociações para autorização de minha entrada na escola demoraram alguns dias por entraves burocráticos de assinatura desta. Ao contrário do que eu esperava ninguém questionou o projeto proposto,
29
com a vice-diretora e principal responsável pela escola, fui questionada a respeito dos
meus propósitos: que tipo de pesquisa, quanto tempo duraria, etc., ao que respondi que era
uma pesquisa sobre mudança conceitual e construção curricular12. Foi então colocado que
eu poderia fazer o trabalho desde que não deixasse de “ensinar tudo o que era preciso na 8a
série”. A vice-diretora entregou-me o livro didático escolhido pela professora anterior e a
lista de conteúdos que esta havia estipulado dizendo que eu poderia “copiar a listagem para
o caderno de chamada”.
“ensinar tudo o que era preciso na 8a série”
“copiar a listagem para o caderno de chamada”
“estagiários sem problemas”
Analisando este primeiro momento e retomando o que já foi colocado, percebe-se
que a construção curricular e as mudanças podem acontecer ao nível das metodologias
desde que não alterem a listagem de conteúdos, herança provável das diferentes
alternativas pedagógicas que centralizaram os problemas escolares em questões didáticas e
deixaram de considerar como, quando e por que desenvolver tais conteúdos e a dinâmica
social, o caráter instável e político da prática educacional.
As propostas pedagógicas que chegam às escolas propõem mudanças
metodológicas diferenciadas, mas discussões epistemológicas deste conhecimento não se
efetivam, dificultando os questionamentos das discussões positivistas e racionalistas
presentes nestas construções que conferem ao currículo uma noção do conhecimento como
uma forma de descrever a realidade, talvez porque não se vislumbra o quanto estas
concepções são parte de nossas escolas.
Assim, a frase da vice-diretora não é absurda no meio escolar tanto quanto parece
ao deslocá-la deste meio, pois os aportes pedagógicos ao longo do tempo que descuidaram
ou não prestaram atenção ás questões epistemológicas, traduziram visões reducionistas que
ainda permeiam o ensino, em particular o ensino das ciências da natureza (química, física,
biologia, ...). Uma das intervenções reducionistas está na própria utilização das pesquisas
psicológicas que, segundo Apple (1995), ao monopolizarem o discurso educacional
apenas fui solicitada a deixar uma cópia deste e explicar quanto tempo eu precisaria da escola e qual a escola eu gostaria. Isto é uma evidência das dificuldades que o Estado tem para organizar as colaborações das pesquisas universitárias em educação nas suas escolas, não dispõe de mecanismos para usufruir das pesquisas realizadas e chega a desconhecer o teor destas e seus resultados.12 Fui bastante lacônica, pois pretendia evitar num primeiro momento um confronto e/ou controle por parte da direção.
30
enfraqueceram a capacidade para responder à crise como algo que é de suma importância
para a educação. É claro, como também afirma Apple, que existem outras pesquisas que
não pretendem fazer soar apenas as suas vozes como sabedoras das questões educacionais.
A Psicologia tem o seu papel, saber como, quando e por que se ensina, também é
importante, e reconhecer o caráter relacional da educação é fundamental. Reconhecer o
currículo como “um terreno de produção e de política cultural, no qual os materiais
existentes funcionam como matéria-prima de criação, recriação e, sobretudo, de
contestação e transgressão” (Moreira e Silva, 1995, p. 28) é conferir à escola o papel de
produtora de saberes e de mediadora de um aprendizado para a libertação, mesmo que
parcial, e não apenas para o reconhecimento de saberes produzidos em outras instâncias.
Um aspecto evidenciado na fala da vice-diretora, quando diz que aceita estagiários
sem problemas e que eu teria uma certa autonomia, denota, a meu ver, o entendimento que
pouco pode mudar na estrutura escolar com a minha presença, e, também, a falta de
perspectiva para pensar o “novo”, já identificada antes durante a consulta à Secretaria de
Educação - RS. A escola está aberta, é bom ter professores pesquisadores na escola, mas
não é tão importante saber o que é a pesquisa, como este estudo pode contribuir à vida
escolar, se as professoras terão acesso ao trabalho. A maneira comum de pensar é que as
escolhas são sobretudo pessoais, cada disciplina e sua estrutura são de conhecimento
exclusivo de seu sabedor oficial – o professor – é muito difícil à direção associar-se a uma
discussão disciplinar, porque, novamente, o que está posto é “verdadeiro” e a cada um
compete um papel particular na divisão do trabalho escolar.
Uma das maneiras de explicar a “inércia” da escola e de grupos de professores é,
segundo Apple (1995), o que ele chama de intensificação13, a sobrecarga de trabalho que
atinge o tempo livre das pessoas tanto para viver quanto para conhecer. O
desconhecimento dificulta os questionamentos e ao não questionar, não se reflete, não se
reavalia e não se muda. A intensificação na escola faz parte de uma dinâmica de
desqualificação intelectual, tornando o professor mais dependente da opinião de
especialistas na realização do seu trabalho.
Os professores não ignoram os problemas vigentes como a falta de tempo, o baixo
aproveitamento dos alunos, a evasão, a repetência, entre outros. Diversas vezes estes
assuntos estão presentes nos domínios escolares próprios do corpo docente e da
13 A intensificação representa uma das formas pelas quais os privilégios dos trabalhadores/as são degradados. (Apple, 1995, p. 39)
31
administração da escola, como na sala dos professores, porém as causas são reduzidas a
questões pessoais14, o aluno é o responsável pelo seu desenvolvimento, o contexto em que
está inserido pode explicar algumas situações, mas não justifica o seu “fracasso”. O
“fracasso” é pessoal, intransferível. A visão individualista está presente em todos os
momentos da escola, da sala de aula ao recreio, alunos, professores e funcionários se auto-
responsabilizam pelos “fracassos” sem perceber as intrincadas relações sócio-político-
econômicas que os fazem “fracassar”.
Além da cultura do individualismo, um outro fator a que se atribui o “fracasso”
escolar é a percepção da cultura da juventude, que é cada vez mais foco de repúdio no
contexto social. O cinema americano, como coloca Giroux (1996), vem fazendo uma
“demonização” da juventude, negando sua sexualidade, sua cultura, seus valores. A escola
não está distante deste discurso, pois é formada por pessoas perpassadas pela mídia e seus
modos de subjetivação. A presença desta “demonização” está na constante relação que os
professores estabelecem entre exercício da sexualidade e baixo desempenho escolar. Por
exemplo, a psicóloga da escola ao comentar sobre os alunos coloca que “as meninas são
piores do que os meninos, só pensam em sexo”, “é muito difícil trabalhar, eles não ligam
para nada, só para sexo, no meu tempo não era assim”. Estas frases são comuns no meio
escolar e ajudam a legitimar uma imagem estereotipada da juventude, negando espaço para
uma reflexão do papel da escola como formadora desta juventude. Os alunos, segundo esta
maneira de ver, já estão formados15 e é impossível para a escola “reformá-los”, isto é, a
escola não tem influência sobre a formação social dos alunos. O seu papel, portanto, é o de
zelar para que os “conhecimentos mínimos” sejam transmitidos.
Analiso estas falas da equipe de psicólogas (que representa outras que não estão
literalmente descritas aqui) de duas maneiras. Uma devida ao poder dos discursos
circulantes sobre o quanto os jovens estão degenerando e levando com eles o futuro
promissor prometido pela evolução tecnológica e pela concepção de ciência existente.
Estes discursos que se entrecruzam se manifestam em diversos momentos e em todos os
setores socioculturais, proporcionando uma intensificação de críticas aos jovens, podendo
dificultar, para a sociedade e para os agentes da escola, os questionamentos destes modos
de “ver” a cultura juvenil.
14 A crença no poder individual é herança provável da filosofia hedonista na qual o bem verdadeiro e a dignidade do homem seriam encontrados na felicidade individual. (Kaufman, 1993, p. 87)15 O que coloca aqui como formação é a construção de uma identidade social dos alunos.
32
A outra refere-se à forma de ver os conhecimentos mínimos exigidos em cada
disciplina; estes são claros, lógicos e definidos para os professores. Uma ocasião, durante o
trabalho com os alunos, questionei uma das professoras sobre o que os alunos estavam
trabalhando e se era possível a ela incorporar um determinado conteúdo para facilitar o
entendimento dos alunos. A resposta foi que “este assunto eu já trabalhei na 6a série, eles
não aprenderam lá, não vão aprender nunca. A gente tem que repetir sempre a mesma
coisa. Eu não posso ajudar por que o meu tempo está contado”.
É inconsistente esta afirmação, pois se seguir o currículo no “tempo certo” é tão
importante, por que, então, os alunos continuam sem aprender, como foi colocado. Desta
frase se pode perceber que se o tempo está contado para retomar um conteúdo será muito
difícil falar do que está acontecendo fora dos “limites” da matemática, por exemplo. Ou
melhor, não é possível relacionar a matemática à cultura dos alunos, pois isto implica em
ocupar tempo. A escola não propicia interação entre a cultura de alunos e professores, ela
propicia uma cultura elitizada e pronta sem se questionar o quanto a aceitação ou não desta
cultura pelos alunos pode influenciar as suas vidas. Os professores e a escola têm
consciência das dificuldades que enfrentam, porém mudar o que está estabelecido demanda
tempo para estudar, vontade para isso, estímulo dos mais variados, desde a construção de
um grupo até e, principalmente, uma valorização econômica e social dos profissionais da
educação.
A escola está no centro das atenções de pais e comunidade em geral, transfere-se
para ela a responsabilidade por “fracassos” e por “sucessos”. Ela por sua vez transfere esta
responsabilidade de volta ao governo e seu mau gerenciamento da educação. Muitos os
culpados, poucos os responsáveis, mínimas as atitudes de reflexão, mínimos os interesses
em promover esta reflexão.
A visão da escola como um local de produção intelectual, de gestão e transmissão
de saberes e de símbolos (Forquin, 1992) não está, ainda, incorporada por ela própria e por
seus membros. O saber está posto e cabe a escola transmiti-lo da maneira mais neutra e
desinteressada possível, esta herança positivista é ainda a visão escolar dominante. Os
estudos sociológicos em educação procuram desfazer as redes relacionais que compõem
esta visão e explicitar um pouco das políticas de legitimação dos quadros escolares atuais,
identificando as relações de poder, as ideologias, a cultura, a tecnologia, etc. No entanto, a
33
intensificação aparece como um dos fatores principais que dificulta o acesso do professor à
análise crítica e à reflexão de sua prática.
Embora o reconhecimento do poder, da ideologia e da cultura como permeadoras
dos currículos escolares e da vida escolar não seja suficiente para uma reflexão sobre a
prática, esse reconhecimento é de suma importância nesta reflexão. É necessário
reconhecer a existência destes aspectos para identificá-los quando possível, e na maioria
das vezes não é possível, pois as relações de poder e ideologia estão implicadas desde o
macrosistema até as relações cotidianas de sala de aula e de convivência no grupo (Moreira
e Silva, 1995).
A Escola Medianeira se organiza para levar aos alunos um ensino de qualidade,
preocupa-se com o quadro de professores, com as horas aulas, com a merenda, com as
Jornadas Pedagógicas16, mas não se questiona os porquês e o significado da chamada
“educação de qualidade” a que se propõe gerenciar.
Procurei, até aqui, evidenciar as visões que perpassam na Escola Medianeira através
das falas de membros da equipe diretiva da escola. Nelas pude perceber a visão do
conhecimento como estático e imutável, bem como a noção de que o espaço de sala de aula
é de responsabilidade de cada professor, as metodologias e as práticas pedagógicas são
pessoais. Com a fala de um membro do quadro pedagógico e de psicologia e de alguns
membros do professorado, pude, a meu ver, identificar a forte presença dos discursos de
desqualificação da cultura e da figura do jovem na escola. Estas professoras
responsabilizam-se pela estrutura e funcionamento da escola e suas colocações permitem
entender um pouco de como são trabalhadas as questões na macro-estrutura, como se
efetivam as ações da escola dentro do espaço de liberdade que esta têm na estrutura do
controle educacional constante realizado por instituições externas, como por exemplo a
Secretaria de Educação - RS, as famílias, as editoras, etc.
Proponho-me, a seguir, discutir alguns aspectos das dificuldades dos professores para
questionarem e repensarem o currículo e as visões em que estão implicados.
3.3. Os Saberes dos Professores
16 Essas jornadas são momentos em que os professores são compelidos a se reunir e discutir a educação. No caso da Escola Medianeira, e em muitas outras, o palestrante foi determinado pelo Governo do Estado e a temática das reuniões organizadas a revelia dos interesses dos professores, o que representava para eles um “sacrifício a mais” da sua escolha profissional.
34
As falas dos professores que estão em sala de aula e seus saberes podem propiciar
um entendimento da relação escola-professor, professor-aluno e parte da dinâmica em que
o professor se envolve para exercer a sua cota de liberdade dentro do currículo imposto.
Segundo Tardif e cols., o professor é antes de tudo alguém que sabe alguma
coisa e cuja função é transmitir esse saber, embora, não se reduza a isto, e esse conhecer
não seja uma questão banal como se pode pensar inicialmente. O saber do professor é um
saber plural, composto de tantos outros, que de forma ampla poderia ser dito como os
saberes de sua formação (profissionais, disciplinar, curricular) e o saber da experiência, da
prática de sala de aula. Assim, “o professor padrão é alguém que deve conhecer sua
matéria, sua disciplina e seu programa, que deve possuir certos conhecimentos das
ciências da educação e da pedagogia, sem deixar de desenvolver um saber prático
fundado em sua experiência cotidiana com os alunos.” (Tardif, 1991, p. 221).
Os saberes da formação são exteriores aos professores; são constituídos em
instâncias as que os professores não têm acesso como produtores, portanto são
conhecimentos impostos por seus produtores como os cientistas, os pedagogos, os
governos e as culturas dominantes. Os professores são desautorizados, neste sistema, para
selecionar os saberes, agindo como meros transmissores.
Na sala de aula, onde o currículo de fato se faz, o professor utiliza-se da sua cota
de liberdade enfatizando alguns tópicos em detrimento de outros. Esta prática está
essencialmente vinculada aos saberes da experiência e pouco tem relação com os saberes
de formação ou com referências teóricas. Os saberes de formação quando frente aos
saberes da experiência são questionados. Os professores, de posse dos saberes da prática,
refletem sobre os seus cursos de formação como podemos ver na fala de alguns professores
presente no trabalho de Roque Moraes sobre os cursos de licenciatura:
“No decorrer do curso, poucas vezes tive a atenção despertada pelos
professores de disciplinas técnicas de que estava sendo preparado para ser professor. Não
lembro de aulas em que o conteúdo tenha sido desenvolvido com o objetivo voltado para
o magistério”.
“Avaliando estes anos de minha formação senti que durante o curso não fui
preparado para ser professor, ou melhor, não me preparei para lecionar” (Moraes, 1994).
A descoberta dos limites dos saberes é para o professor uma rejeição de sua
formação anterior e a certeza de que o sucesso só depende dele, professor (Tardif, 1991).
35
Resulta, de alguma maneira, na negação de qualquer saber externo ao da prática, ou que
não esteja de alguma maneira vinculado a ela. Esta, juntamente com a intensificação e
baixa valorização econômica e social do trabalho dos professores, pode ser uma das
prováveis razões pelas quais a pesquisa que realizei na escola não tenha suscitado o
interesse dos professores.
Apesar da minha tentativa de ser considerada pelo corpo docente como professora
titular, ficou claro que a minha docência era incomum, tanto pelo tipo de trabalho quanto
pelo tempo de permanência na escola. Em vista dessa diferença as professoras
autorizavam-se a fazer críticas e colocações, por diversas vezes e sempre que possível,
sobre o que aconteceria quando eu tivesse mais turmas, mais tempo de trabalho, mais
prática:
“tu te envolve tanto porque é novinha, eles vão te enlouquecer”
(professora responsável pela biblioteca, sobre as minhas idas com os alunos para a
biblioteca)
“não existe método capaz de fazer os alunos participarem, eles não
ligam pra nada”(professora de educação física, durante o conselho de classe,
sobre as turmas)
“tu é muito paciente, mas com o tempo vai ver que nada adianta”
(professora de história falando sobre um material de vídeo que eu estava
preparando)
“os alunos estão me enlouquecendo desde que tu entrou, querem sair,
fazer coisas diferentes. Eu não posso fazer isso porque eu tenho várias turmas e
um programa para cumprir” (professora de matemática, sobre as solicitações dos
alunos).
As falas das professoras são autorizadas por suas vivências. São estas vivências
que fazem com que elas provem a si mesmas e aos outros seu conhecimento, seu valor.
Contestar as diferenças talvez seja uma forma de reafirmar seu valor, do “alto” dos seus
longos anos de magistério. Os professores, ao falarem do meu trabalho, questionam as
diferenças e postulam seus saberes, acredito que sem perceberem o quanto esses saberes
são importantes na constituição do currículo, seja para preservá-lo ou para questioná-lo.
Os professores usam a sua prática, a meu ver, para valorizar o seu trabalho, mas
não para validá-lo frente aos saberes estabelecidos. Isto é, parecem não perceber que o
36
trabalho desenvolvido com os alunos dentro de uma instituição escolar é gerador de
saberes específicos, que constituirão a sociedade. Como coloca Ignacio Pozo:
“Cada sociedade, cada cultura gera suas próprias formas de aprendizagem, sua
cultura de aprendizagem. Desta forma a aprendizagem da cultura acaba por conduzir a
uma cultura de aprendizagem determinada. As atividades de aprendizagem devem
entender-se no contexto das demandas sociais que as geram. Não é só que em distintas
culturas se aprendem coisas diferentes, é que as formas ou os processos de aprendizagem
culturalmente relevantes variam”. (Ignacio Pozo, 1996, p. 30 )
Esse modo de intervenção e produção do professor afeta a cultura de
aprendizagem, mas não é legitimado frente a outras instâncias autorizadas a interferir na
cultura escolar. Tem-se, então um ciclo, onde o professor é desautorizado pelos saberes
produzidos externamente à escola, os desautoriza pela sua prática, mas não rompe com eles
ao não expor o saber construído na escola; isentando-se da responsabilidade de lutar pela
legitimação dos seus saberes autoriza o saber instituído e o ciclo recomeça. Talvez, romper
este ciclo seja parte fundamental para os trabalhos de formação continuada de professores
e uma saída para a valorização das culturas que circulam na escola.
A mudança de perspectiva dos professores não é simples, dado que implica numa
mudança na sua formação; nesta os professores universitários sofrem os mesmos
problemas e submetem-se, com pouco ou nenhum questionamento, aos mesmos sistemas
de controle. Como coloca Gimeno Sacristán (1998), o nível e a qualidade das reflexões dos
professores é que permite a possibilidade de que esses intervenham em uns temas ou
outros, uma vez que existam canais de participação. No entanto, são processos de
legitimação historicamente construídos que determinam explícita e implicitamente o papel
passivo do professorado.
No caso do ensino científico, quer na graduação quer na escola básica, o conteúdo
está perpassado pela mesma visão que se tem da própria ciência, vista como “constituída
de verdades científicas que é necessário que as novas gerações assimilem, ou por
transmissão ou por descoberta ou por qualquer outro modelo, para continuarem o
processo” e que “as verdades científicas são independentes da ação do homem, são leis
preexistentes, as quais coube aos cientistas descobrir por sua genialidade e esforço e,
jamais, por interesses internos e externos” (Maldaner, 1996, p. 6).
37
A visão de ciência de senso comum (quase Aristotélica), como coloca e critica
Maldaner, é a ciência que está posta como neutra e descompromissada. Uma implicação
desta noção é a aceitação da neutralidade dos conteúdos que chegam à sala de aula. O
professor acredita que o seu trabalho, por estar vinculado a conceitos cientificamente
aceitos, não sofre influências políticas, econômicas, sociais, culturais, etc.
Por exemplo, ao discutir sobre o que e como trabalhar em função das diferenças
entre os alunos, posso perceber que a noção dos professores de público diferenciado e de
necessidades diferenciadas se dá ao nível de diminuir as exigências. Isto é, o nível de
exigência em testes deve ser menor para que os alunos possam passar ao próximo nível,
mas o conteúdo deve ser o mesmo pois a escola não pode diferenciar-se das outras onde a
“clientela” é diferente, supre-se a “carência intelectual” com a facilitação dos exames e
supre-se a lacuna social oferecendo-se conteúdos equivalentes.
Um professora das turmas onde se realizou a pesquisa ao opinar sobre este
assunto coloca que “os alunos são burrinhos, por isso eu não cobro muito deles” e ao ser
questionada sobre o conteúdo diz que “o conteúdo é o mesmo, eles têm direito de saber o
mesmo que os meus alunos do município sabem”. Embora este seja apenas um depoimento
entre tantos outros, exemplifica claramente a visão de diferenciação e de neutralidade que
os professores têm com relação ao conteúdo e à função escolar e a ciência em última
análise. Uma visão que compromete a autonomia do professor e sua colaboração em
termos de tornar efetivamente mais ativa e mais democrática sua intervenção social.
O professor envolvido em tantos saberes tornou-se um técnico que procura
desempenhar da melhor maneira possível o seu papel de transmissor; mas a compreensão
desta posição pode auxiliá-lo a passar a gerar a sua prática. Giroux ao discutir o papel do
professor, coloca que:
“É importante enfatizar que os professores devem assumir responsabilidade
ativa pelo levantamento de questões sérias acerca do que ensinam, como devem ensinar, e
quais são as metas mais amplas pelas quais estão lutando. Isto significa que eles devem
assumir um papel responsável na formação dos propósitos e condições de escolarização.
... Se acreditarmos que o papel do ensino não pode ser reduzido ao simples
treinamento de habilidades práticas, mas que, em vez disso, envolve a educação de uma
classe de intelectuais vital para o desenvolvimento de uma sociedade livre, então a
categoria de intelectual torna-se uma maneira de unir a finalidade da educação de
professores, escolarização pública e treinamento profissional aos próprios princípios
38
necessários para o desenvolvimento de uma ordem e sociedade democráticas.” (Giroux,
1997, ps.161-162 )
Assumir-se como intelectual é, em última análise, exercer a sua docência de modo
mais efetivo e decisório, posicionar-se em relação ao saber, contextualizando e
direcionando esses saberes em função de sua escola. É, em sua disciplina, procurar tornar
os conteúdos significantes e significativos, buscando conhecer e reconhecer estes em
relação ao todo histórico e social. É pouco provável haver uma mudança sem um profundo
conhecimento que a autorize e esta é mais uma problemática na formação do professor,
que ao não refletir sobre a sua disciplina não “vê” as inter-relações que esta tem com o
todo e não a reestrutura por não pensá-la como passível de mudança.
3.4. O Livro Didático Eleito
O livro didático é um produto de mercado com características muito especiais,
pois diferentemente de outros produtos, antes de chegar a seu público último (o aluno) é
validado e escolhido por outras instâncias (governo, professores) tornando-se, na maioria
dos casos, distante do contexto escolar ao qual irá se destinar. Esse recurso didático
historicamente vêm tendo uma significativa influência nas construções curriculares, ou
melhor, na produção do currículo real e sua percepção na escola. Como já foi colocado,
anteriormente, com a intensificação do trabalho do professor e com as dificuldades que
tornam os saberes de sua prática difíceis de serem gerenciados, os recursos literários são os
refúgios que acabam por definir o trabalho docente.
Ao falar de definição do trabalho do professor mediante o uso do livro didático,
estou colocando que mesmo nos pequenos espaços onde professor pode exercitar uma
liberdade podem ser regulados por materiais como os livros didáticos. O modo como se
estruturam esses livros e como influenciam as salas de aula são parte de uma intrincada
rede de relações entre setores sociais, políticos, econômicos e, é claro, culturais. Com a
finalidade de salientar alguns pontos relativos a esta rede e sistematizar esta discussão,
distingui três momentos: a) como o livro é produzido enquanto produto comercial e como
se dá a sua entrada em sala de aula; b) como é possível controlar a construção curricular
através destes textos, e c) como o conhecimento é trabalhado nos livros didáticos, com
atenção especial ao livro adotado na escola onde se realizou este trabalho.
39
3.4.1. Livro Didático: produto comercial
O livro didático não é apenas um instrumento auxiliar na prática do professor, ele
é um produto comercial que tem, portanto, uma intenção de lucro no seu fabrico. A
trajetória desde a produção até o uso pelo aluno passa pela comercialização, aceitação e
escolha destes livros pelos professores.
Em termos de Brasil, onde a diversidade cultural é enorme, produzir livros
didáticos capazes de assistirem a todas as culturas implica em pesquisar estas culturas e
torná-las evidentes. A realização de pesquisas exige maiores gastos, conseqüentemente é
uma atividade de pouco interesse para o mercado, além disso, evidenciar a cultura implica
em trazer à tona diferenças sociais e raciais, que esbarram em ideologias e interesses que
vão além dos fins lucrativos das relações comerciais. Investir em livros que abordam o
conteúdo “científico” distanciado das realidades locais e que fragmentam essa realidade e a
própria visão de ciência é uma forma de esquivar-se de maiores custos e questões
ideológicas.
Os livros didáticos são responsáveis por um determinado ganho das editoras, para
as quais manter um texto padronizado, com poucas revisões e diferenciações, significa
lucratividade fácil e segura. O processo de padronização dos livros didáticos não é, em
absoluto, apenas uma restrição imposta por sua comercialização: é também um processo
histórico que teve como um dos passos restritivos na produção brasileira os programas
curriculares organizados pelas instituições governamentais. A partir da Lei 5692/71
criaram-se os Guias Curriculares, onde não havia um detalhamento dos conceitos como
nos antigos programas curriculares17, o caráter vago e apenas sugestivo destes Guias,
segundo Franco (1983), representou uma inversão no processo de adoção do livro. Isto é,
após esta legislação os professores passaram a sentir necessidades de materiais mais
diretivos para a estruturação dos seus planos de aula, esta lacuna foi preenchida pelos
editores através dos livros didáticos que estavam de “acordo com os Guias Curriculares”,
mas traziam uma listagem de conteúdos que poderiam ser adotados em cada etapa escolar.
Os livros passam então de auxiliares dos professores a programadores do ensino. Gimeno
Sacristán, explicita muito bem essa questão:
17 Os livros didáticos anteriores a esta lei traziam antes do índice do livro os programas curriculares organizados pelas instituições governamentais com os conteúdos e conceitos que deveriam ser abordados durante cada etapa escolar. Quando da Lei 5692/71, este detalhamento de conceitos foi substituído por sugestões com menor grau de especificidade.
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“A competência profissional de desenvolver o currículo, em princípio uma das
atribuições verdadeiras do professor, é compartilhada, quando não monopolizada, pelos
mecanismos de produção de materiais que há por trás de um número reduzido de firmas
comerciais. A elaboração do currículo fica assim repartida dentro do sistema educativo
entre diferentes agentes, inclusive nos aspectos estritamente técnico-profissionais. O
caráter inoperante das prescrições curriculares na definição da prática e a debilidade
profissional dos professores farão com que essa distribuição seja desigual e favorável aos
meios tradutores do currículo. Nesse sentido, a desprofissionalização dos docentes é
inevitável nas atuais condições atuais de formação e de trabalho.” (Gimeno Sacristán,
1998, p. 154)
A produção destes livros tem um outro caráter pouco discutido, mas
extremamente importante: a identificação dos organizadores do material e dos textos que
serão veiculados. Quem são os autores destes livros, quais as editoras que dominam este
mercado, quem são os editores e planejadores brasileiros? Apple coloca que a maioria dos
editores americanos começaram o seu trabalho na área de vendas o que enfatiza o quanto
este é um produto de mercado, e note-se que a maioria dos profissionais desta área são
homens18. No Brasil, poucas pesquisas estão direcionadas para a identificação e análise das
relações editoriais internas da produção de livros didáticos. Esta análise engloba mais do
que a classificação em termos da “qualidade do livro didático” e da identificação dos seus
autores, pois aprofunda as ligações entre produto, política de produção e história destas
produções.
Em determinados momentos esta análise das questões de produção que acontecem
internamente parece não ter relação com o conhecimento legitimado nos livros didáticos.
No entanto, muitas idéias que aparecem nestes livros tratam a realidade de maneira
fragmentária, reproduzindo os valores dominantes e consagrados pela sociedade, onde o
macho, adulto, branco são padrões referencial de idealidade.
A discussão do livro como produto de mercado propicia o entendimento do
quanto nossas “escolhas” e decisões estão envolvidas diretamente com a política e a
economia, por mais que os discursos dominantes veiculem a idéia de que esta é uma
18 As questões relativas ao gênero são enfatizadas nos trabalhos de Apple, que identifica diversas características da educação e do trabalho feminino que é representativo desta. Para Apple, a presença masculina nas editoras é responsável pela passagem de diversas formas de dominação e discriminação da mulher presente em alguns textos.
41
questão para especialistas, distanciando a nossa prática econômica diária das ações dos
economistas. Como aponta Apple :
“As pressões econômicas e políticas externas não são alguma coisa que está “lá
fora”, localizada em alguma parte de uma vaga abstração denominada economia.
...as relações dominantes são continuamente reconstituídas pelas ações que
empreendemos e pelas decisões que tomamos em nossas próprias e pequenas áreas de
vida locais.” (Apple, 1995, p. 98-99)
No Brasil, com a crescente expansão da rede de ensino básico, principalmente a
partir de 1971, a atenção governamental voltou-se para a criação de programas que
possibilitassem, também, um aumento de oportunidades de acesso ao livro didático,
principalmente por parte de alunos com menor poder aquisitivo (Franco, 1983). Cria-se,
assim, um mercado seguro para editores e autores, onde todos procuram seguir os padrões
de livros aceitos e validados pelo governo. Esse mercado foi, novamente, reforçado pela
criação, em 1984, do Plano Nacional do Livro Didático-PNLD, campanha que destacava
pontos como a possibilidade de indicação pelos docentes de textos a serem adotados e
financiados pela Fundação de Assistência ao Educando-FAE... No entanto, podem ser
questionadas a abrangência e efetividade deste Programa. (Wortmann, 1987, p. 65)
Os livros didáticos deixam de ser adotados e passam a adotar os professores com
poucas alternativas diferenciadas para ampliar as possibilidades de escolhas ou para gerar
questionamentos quanto à possibilidade de fazer diferente.
Na Escola Medianeira, a decisão de escolher o livro didático para utilização em
sala de aula não é exclusiva do professor, faz parte de negociações internas na escola, com
seus colegas, com os supervisores, entre outros.
A “escolha” está limitada entre os livros analisados e aprovados pelo MEC/FAE,
e que fazem parte do PNLD. De posse destas listas e dos exemplares distribuídos
gratuitamente pelas editoras, os professores discutem e argumentam sobre a “qualidade”
dos livros didáticos, usando critérios como textos, ilustrações e exercícios. O conteúdo e a
proposta pedagógica dos materiais não são discutidos, provavelmente por estas questões
estarem asseguradas pela análise do governo e por sua historicidade aceita e estável.
Desta forma, a “escolha” dos professores está subordinada a uma avaliação feita
pelo governo que torna o livro aceitável ou não para pertencer à sala de aula. Cabe-lhe,
42
então, os critérios mais estéticos ao qual as editoras dedicam uma tecnologia responsável
pelas atrações que estes livros podem e devem conter.
Como coloca Apple (1995), “o simples fato de conseguir a inclusão do livro em
uma lista dessas (de aprovação governamental) pode decidir se esse volume vai dar lucro
ou prejuízo”. Sendo assim, é importante em primeiro lugar ser aprovado pelo governo e
depois trazer inovações e qualidade gráfica para concorrer no mercado. Enfatizo a questão
da qualidade gráfica porque os livros didáticos em seu conjunto se parecem muito, são
seleções de conteúdos amplas e abrangentes, com pouca variabilidade para poder atingir
todas as unidades da federação.
3.4.2. O controle através dos textos
Analisar os livros didáticos somente do ponto de vista mercantilista não abrange
outros aspectos da sua influência em sala de aula. Neste sentido é importante entender
como os textos, as gravuras, as noções e conceitos presentes ou ausentes nestas edições são
constituidoras de valores culturais.
O controle dos conteúdos e metodologias realizados por recursos mediadores
como os livros didáticos, se deve, provavelmente, a intensificação e a sistemática
desqualificação dos professores para gerirem sua própria prática e autorizarem-se a escolha
de materiais mais diversificados, como tantos outros textos com informações mais
aprofundadas sobre assuntos que estão presentes no dia a dia dos alunos e que, portanto,
são interessantes para eles. Porém, como os professores estão distantes dos centros de
pesquisa e não existem investimentos contínuos para sua formação após a universidade,
suas aulas seguem os assuntos esquematizados nos livros didáticos, sem um
questionamento crítico de sua contextualização e validade.
Proponho, agora, analisar o livro didático eleito pela escola utilizando alguns
critérios que estão em consonância com o referencial teórico sócio-psicológico abordado
anteriormente e aos quais os professores raramente ou nunca utilizam, provavelmente por
não serem do seu conhecimento19, como os analisados por Alice Lopes(1990) em sua
dissertação de mestrado.
19 Alguns professores de química do Rio Grande do Sul, tiveram oportunidade de discutir esses critérios e utilizá-los para analisar os livros de química para o ensino médio, porém este é um trabalho inovador da Área de Educação Química/UFRGS.
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O livro escolhido pela professora de Ciências, da Escola Medianeira, responsável
pela disciplina no ano anterior foi o “Aprendendo Ciências”, de Demétrio Gowdak e Neide
S. de Mattos, da Editora FTD de São Paulo editado em 1992. Este livro faz parte da lista
do Ministério de Educação e Cultura – MEC, e da Fundação de Assistência ao Educando –
FAE. Ou seja, é um livro considerado bom por estes órgãos.
Numa análise mais geral identifico o que os professores comumente criticam: a
antecipação de conteúdos do ensino médio (Loguercio, 1996). O livro didático em questão
(e grande parte dos demais) apresenta uma abordagem resumida e esquemática de todo o
conteúdo de química e física abordado no primeiro ano do ensino médio. Devido a esse
caráter, não aborda os conceitos de forma ampla e não utiliza recursos diversificados para
auxiliar na aprendizagem dos alunos nestes conceitos. Os exercícios que visam
complementar o entendimento dos conceitos têm relação apenas com o texto
imediatamente anterior, sem considerar os outros conteúdos abordados anteriormente no
próprio livro, reduzindo-se a exercícios essencialmente de memorização ou de
operacionalização.
Com relação ao conteúdo não são comuns erros conceituais, os problemas são as
antecipações e a superficialidade de cada tópico, bem como a linguagem técnica sem uma
referência à origem e o significado dos termos. A partir dos estudos educacionais que têm
por base os trabalhos de Piaget, que propõe uma adequação dos conteúdos à capacidade
cognitiva do aluno, percebe-se que o livro privilegia uma abordagem dos conteúdos
essencialmente formal, desconsiderando as necessidades dos alunos de uma adequação
destes conceitos à sua estrutura cognitiva.
Os conhecimentos implícitos dos alunos não são considerados e não aparecem no
texto sugestões de atividades que possam evidenciá-los e validá-los. Essa perspectiva ao
considerar o aluno “vazio” intelectualmente, invalida seus processos de produção de
conceitos e a possibilidade da existência de uma zona de trabalho onde o professor
considere o conhecimento atual e as possibilidades de aprofundamento deste conhecimento
para auxiliar no entendimento e na avaliação dos alunos, como propõe os estudos de
Vygotsky.
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No livro didático, adotado pela escola, aparecem experiências que ilustram os
fenômenos, algumas potencialmente perigosas sem uma discussão dos seus riscos e dos
cuidados que devem ser tomados quando da realização destas atividades experimentais.
(Figura 1)
Figura 1: Exemplo de uma experiência potencialmente perigosa (Gowdak, 1992, p. 51)
Neste livro são utilizados recursos que evidenciam o que é “importante” em cada
tópico através de caixas de textos. Nestas são colocados resumos e fórmulas suficientes
para resolver os exercícios propostos. Este tipo de recurso pedagógico ao invés de enfatizar
as relações que são necessárias entre os conteúdos e o cotidiano do aluno enfatiza, na
maioria das vezes, os produtos de teorias, como as fórmulas. (Figura 2)
Um outro tipo de análise refere-se a existência de obstáculos epistemológicos
presentes nos textos, Alice Lopes(1990) utiliza algumas categorias de obstáculos
epistemológicos de concepção bachelariana para analisar recursos utilizados nos livros
didáticos e demonstra algumas construções que podem estar relacionadas a esses
obstáculos. Neste livro em particular, é possível identificar obstáculos realistas, quando o
ato de conhecer se confunde ao de descrever propriedades (Figura 3). Este tipo de recurso
realista aparece principalmente nas questões relativas à estrutura atômica, onde se tenta
tornar visível o que só é compreendido dentro do racionalismo aplicado (Lopes, 1990).
Como coloca Bachelard, o conhecimento não está no objeto, mas exige consecutivas
A decomposição do óxido de mercúrio (HgO) sob ação:
2 HgO calor 2 Hg + O2
óxido de mercúrio mercúrio gás oxigênio
O óxido de mercúrio, quando aquecido, libera oxigênio e deposita mercúrio na parede do tubo, que aparece sob a forma de gotículas cinzentas de brilho metálico
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óxido de mercúrio
mercúrio
oxigênio
água
ratificações dos dados primeiros sendo o vetor epistemológico dirigido do racional ao real
(por Lopes, 1990).
Figura 2: Exemplo de caixas de texto presentes no livro
Outro aspecto são as relações sociais que aparecem no livro didático, por mim
analisadas através das figuras, pois uma análise do texto seria mais demorada e para o que
me proponho não é extremamente relevante.
Existem 69 figuras humanas no texto, destas apenas uma é de uma pessoa que não
é branca e que está sendo nocauteada por um homem branco (Figura 4). Em quatro figuras
aparecem mulheres que estão empurrando carrinhos de compra, pintando as unhas,
passando roupa e catando lixo. Os trabalhos realizados fora de casa são feito por homens e
não são trabalhos intelectuais. Os homens sempre trabalham em construção civil. Os
Da análise da tabela, conclui-se que não se pode usar o número de nêutrons para dar nome a um átomo, visto que átomos de mesmo nome pode ter número de nêutrons diferente e átomos de nome diferentes podem ter número de nêutrons igual.
Para identificar um tipo de átomo, o número de neutrons não é importante; eles só contribuem para a massa do átomo. São os própons que dão a identidade do átomo.
A quantidade de prótons do átomo é o número atômico, simbolizado pela letra Z. Todos os átomos de um mesmo tipo têm número atômico igual.
Átomos de mesmo número atômico designam um mesmo elemento químico. Portanto, cada tipo diferente de átomo é um elemento químico.
Os elementos químicos encontrados na natureza têm Z variando de 1 a 92. Artificialmente, a partir de 1942, foram obtidos elementos com Z maior que 92. Atualmente o elemento de maior número atômico é o de Z = 110, designado Uun (Un-un-nilium).
O número de massa de um átomo corresponde à soma de prótons e nêutrons, pois a massa dos elétrons é desprezível. O número de massa é representado pela letra A
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Número atômico (Z) = número de prótons
Número de massa (A) = soma dos prótons e nêutrons
esportes nas ilustrações são praticados por pessoas jovens e alguns são esportes típicos de
pessoas com maior poder aquisitivo, como o esqui na neve e as regatas. Não existem
figuras esportivas de mulheres, mas uma destas figuras mostra uma menina jogando tênis
de praia. Uma fotografia, que cabe destacar, aparecem mulheres e negros numa usina de
reciclagem de lixo
Figura 3: Figura do livro texto onde são descritas propriedades dos indicadores e das funções.
Estas observações constituem uma visão estereotipada das relações sociais e
culturais, onde as mulheres ocupam, apenas,
a posição de consumidoras no mercado de
trabalho e os não brancos são discriminados,
seja pelo tipo de atividade que aparecem
realizando, seja por sua situação frente ao
branco - nocaute. Num país com tamanha
diversidade racial, aparecer apenas uma
ilustração de pessoa não branca é no mínimo
divorciada da realidade. Figura 4: Pessoa em nocaute
Estes recursos visuais existentes nos textos, posso dizer que são
caracteristicamente os que demonstram as noções de cultura e sociedade dos autores e
produtores dos livros. Algumas figuras são colocadas somente com fins ilustrativos e
Substâncias indicadoras mudam de cor em presença de uma base. Um exemplo de indicador é a fenolftaleína, que fica incolor na presença de ácidos e vermelha na presença de bases.
Outro indicador muito usado é o papel de tornassol. Os ácidos mudam o papel de tornassol de azul para vermelho. As bases mudam o papel de tornassol de vermelho para azul.
47
outras com a intenção de salientar os ‘aspectos fundamentais’ de cada conceito. Essas
figuras são em sua maioria simplificações e reduções dos conceitos trabalhados e
descontextualizadas da realidade brasileira e da Escola Medianeira onde o livro deveria ter
sido trabalhado. Como é o caso das figuras que mostram esportes, em uma delas pode-se
ver esquiadores do gelo, o que denota a força da cultura européia na nossa tradição escolar.
Cabe perguntar onde está o futebol, o vôlei, a bocha? As culturas locais, o nativismo, os
pampas, os rios gaúchos e a diversidade cultural do nosso povo, como os imigrantes e seus
descendentes? Se este livro está sendo utilizado por adolescentes gaúchos, por que a
discussão sobre a poluição dos rios só discute o rio Tietê e não o Guaíba, o Lami, etc.
De forma pouco contestada, estes “pacotes” da realidade são apresentados a
professores e alunos perpetuando noções próprias das culturas dominantes em detrimento
das demais culturas locais.
Uma outra questão é a visão de ciência e de cientista divulgada pelos livros
didáticos, onde o cientista é um ser genial que interroga a realidade e constrói leis e teorias
a seu respeito. Os textos históricos, raros nos livros didáticos, quando estão presentes
centralizam a figura de uma única pessoa desconsiderando todo o processo de produção e
validação das teorias, bem como os interesses que as autorizam ou não em determinados
períodos. Proporcionam uma noção de que caso os planos sejam seguidos a risca será
impossível não desvendar a “verdade” da natureza, veiculando uma noção da ciência que
faz professores e alunos acreditarem numa realidade exterior ao homem e que está pronta
para ser descoberta. Não está presente nos textos a historicidade das construções científicas
e a subjetividade que permeia as suas construções, dado que são construções humanas.
Embora neste livro não apareça os já comuns desenhos de cientistas malucos com aventais
brancos e cabelos em desalinho, a falta de textos (característica do currículo oculto) que
historiciem e relativizem os conhecimentos científicos pode passar essa idéia de verdade
que é conferida às colocações científicas.
Os projetos escolares que enfatizam a experimentação seguem o mesmo princípio
positivista que é apregoado nestes textos, e dificilmente são acompanhados de reflexões
sobre como estas práticas podem ser interpretadas de maneiras diferentes em função dos
conhecimentos prévios a elas. Segundo Maldaner (1996), em nenhum momento os livros
didáticos analisados põem o aluno na situação de, frente a um conjunto de informações,
relacioná-las e produzir um conhecimento novo. Isso, que é básico nas ciências, está
48
impossibilitado de se realizar. São dadas informações prontas, fechadas, sem relação com o
processo histórico em que surgiram e de uma forma dogmática.
O distanciamento deste estereótipo de cientista da realidade das pessoas comuns,
entre elas as que freqüentam a escola, é suficiente para tornar a ciência própria dos
“sabedores”, afastando o interesse dos alunos na busca de suas próprias abstrações e
teorias. Como salienta Hodson (1994), é pouco provável que os estudantes aceitem
favoravelmente o distanciamento da vida real e a aparente supressão da individualidade
ressaltada pelo ideal estereotipado das atitudes científicas.
Embora se possa argumentar que grande parte do corpo docente não adota livro
texto como obrigatório para a utilização dos alunos, é inegável que estes estão presentes
em sala de aula, pois são utilizados como organizadores da prática e do currículo
estruturado. A influência destes textos é tão significativa que, segundo Apple:
“Estima-se, por exemplo, que 75% do tempo dos estudantes de escolas
elementares e secundárias em sala de aula, além de 90% do tempo dedicado ao estudo em
casa, é gasto com os materiais apresentados pelos livros didáticos. Entretanto, apesar do
caráter ubíquo (onipresente) dos livros didáticos, eles constituem uma das coisas sobre as
quais menos sabemos. Embora os textos dominem os currículos nos níveis elementar,
Secundário e até mesmo superior, muita pouca atenção crítica vem sendo dada às fontes
ideológicas, políticas e econômicas de sua produção, distribuição e recepção.
Enquanto os textos dominarem os currículos, ignorá-los como não sendo dignos
de uma séria atenção ou de uma luta política é viver em um mundo divorciado da
realidade” (Apple, 1995, p. 85).
As críticas contundentes ao livro didático não ignoram o seu papel com objeto de
consulta em sala de aula, mas enquanto não houver vontade política que incentive os
professores a continuarem a sua formação e a analisarem mais criteriosamente as suas
escolhas é importante o papel que fazem materiais e os livros didáticos alternativos20
produzidos em pequenas quantidades e que, em sua maioria, estão baseados em projetos de
pesquisa ou nas realidades locais. Estes recursos, como coloca Gimeno Sacristán (1998),
quebram o monopólio dos livros-textos padrão; não eliminam a dependência, mas esta
dependência já está em outro nível de qualidade.
20 Livros didáticos alternativos são definidos aqui como àqueles produzidos em pequenas editoras ou por grupos de pesquisa e que não atingem o mercado editorial em grande escala.
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Uma política comum entre os produtores de livros didáticos é a de incorporar aos
seus livros padrões as inovações realizadas por pesquisas e mudanças na sociedade. Isto se
deve a fatores de ordem econômica e de ordem de controle curricular. Enquanto
importância econômica, é interessante que se coloque no mercado livros com novidades,
isto valoriza os livros didáticos e faz com que aqueles utilizados anteriormente se tornem
fora de “moda’, aumentando o consumo. Enquanto controle do currículo, é importante que
se incorpore noções mais atualizadas em termos pedagógicos, pois a negação destas noções
pode abrir espaço para uma liberdade maior de pensamento dos professores e a busca de
materiais que preencham a lacuna deixada pelos livros didáticos.
Um exemplo recente destas inovações são as incorporações de assuntos do dia a
dia nos livros didáticos, como forma de contextualização dos conteúdos escolares com a
vida “fora da escola”. A maioria destes assuntos são apenas ilustrativos, não possibilitam
um questionamento mais aprofundado e, tampouco, estão diretamente implicados na
construção dos conceitos aos quais se relacionam. São ilustrações, que tornam o produto
mais caro, com um aspecto inovador, mas continuam trazendo o mesmo tratamento do
conhecimento trabalhado nos textos anteriores.
No sentido de mudanças radicais não se pode esquecer que, como coloca Gimeno
Sacristán:
“Um livro texto que se estendesse no desenvolvimento dos tópicos que abrange
com informações diversas, abordando os temas de diferentes pontos de vista,
contextualizando os conhecimentos, estendendo-se no desenvolvimentos dos mesmos,
analisando aplicações e conseqüências, exemplificando conceitos, fatos princípios e
teorias que aborda, ilustrando-os graficamente, etc., trabalhando-os através de atividades
muito diversificadas, formaria um volume inabarcável e caro. Algo impossível para um
livro de custo moderado e caducidade anual.” (Gimeno Sacristán, 1998, p. 152)
Uma alternativa mais interessante é justamente a diversidade de textos que estão
disponíveis no mercado comum21 e que, às vezes, trazem o conhecimento de forma mais
dinâmica e atualizada e que por não pertencerem a lista dos eleitos os professores não
costumam adotar.
21 Refiro-me a mercado comum, como sendo o que se destina ao público não exclusivamente escolar, como é o caso dos textos produzidos por revistas, ONGs, fitas de vídeo, etc.
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