Trabalho Felipe

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1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS X - Transposição didática Conceito operativo é a transposição didática Durante as últimas décadas a transposição didática tem utilizado aportes de ciências como a sociologia e a psicologia para problematizar a aprendizagem e/ou desenvolvimento cognitivo. No entanto, esta produção intelectual dificilmente chega à escola onde o currículo de fato se faz. Os professores que não estão envolvidos com a pesquisa acadêmica ou em dia com os eventos e textos mais atuais, continuam a trabalhar dentro de noções de ensino que há muito tempo são consideradas ineficazes e dissociadas da realidade econômica-política-social. X - Discussão sobre o currículo Algumas discussões sobre o currículo propõe uma mudança na estruturação deste e da escola, propõe uma concepção de aprendizagem voltada para atender os interesses e necessidades dos alunos e que desaconselha a fragmentação em disciplinas. Embora isto implique em uma mudança na nossa cultura de aprendizagem e, em conseqüência, na cultura escolar demandando uma longa caminhada, é importante que se comece a buscar “caminhos” que explicitem as necessidades de reflexões sobre os tipos de cidadãos e sociedade que queremos construir. 8

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Tipos de curriculo

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1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

X - Transposição didática

Conceito operativo é a transposição didática

Durante as últimas décadas a transposição didática tem utilizado aportes de

ciências como a sociologia e a psicologia para problematizar a aprendizagem e/ou

desenvolvimento cognitivo. No entanto, esta produção intelectual dificilmente chega à

escola onde o currículo de fato se faz. Os professores que não estão envolvidos com a

pesquisa acadêmica ou em dia com os eventos e textos mais atuais, continuam a trabalhar

dentro de noções de ensino que há muito tempo são consideradas ineficazes e dissociadas

da realidade econômica-política-social.

X - Discussão sobre o currículo

Algumas discussões sobre o currículo propõe uma mudança na estruturação

deste e da escola, propõe uma concepção de aprendizagem voltada para atender os

interesses e necessidades dos alunos e que desaconselha a fragmentação em

disciplinas. Embora isto implique em uma mudança na nossa cultura de aprendizagem e,

em conseqüência, na cultura escolar demandando uma longa caminhada, é importante que

se comece a buscar “caminhos” que explicitem as necessidades de reflexões sobre os tipos

de cidadãos e sociedade que queremos construir.

x – Outras formas de se ver o currículo

É provável que algumas alterações nas concepções de currículo e política cultural

escolar não sejam suficientes para promover mudanças na escola. Este processo depende

de “vontades” políticas e econômicas que estão relacionadas com as ideologias e relações

de poder hegemônicas, sendo portanto um processo longo e demorado. É importante, a

meu ver, que mesmos em pequenas “doses” estas novas concepções cheguem à escola e

perpassem o currículo escolar vigente.

Este trabalho busca fazer uma reflexão participante na escola, trazendo para o

universo escolar os aportes das ciências envolvidas com a educação, propondo uma

construção curricular que corresponda aos interesses dos alunos e que faça uma abordagem

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diretiva a fim de valorizar os seus conhecimentos implícitos e promover aprendizagens

significativas. Partindo da consideração de que, como coloca

X - Visão currículo autor: Torres Santomé

1. Tudo o que se programe como tarefa escolar, como proposta de trabalho curricular,

tem de tornar visível suas conexões com as experiências cotidianas e significativas

para o coletivo estudantil ao qual é oferecido. É necessário que se permita que os

problemas, as preocupações, aspirações e interesses do alunado sejam acolhidos.

2. Toda a proposta curricular tem que estar apoiada na cultura de procedência do

alunado. (Torres Santomé, 1997, p. 13)

X – lócus escolar

Com esta intenção realizei a pesquisa dentro do locus escolar, vivenciando o dia a dia da

escola e as construções e limites que se impõe na realidade escolar, pois como coloca

Gimeno Sacristán (1998, ps. 166-167), o professor não decide sua ação no vazio, mas no

contexto da realidade de um local de trabalho, numa instituição que tem suas normas de

funcionamento marcadas às vezes pela administração, pela política curricular, pelos

órgãos de governo de uma escola”.

Neste trabalho examino na esfera escolar a compreensão dos alunos em alguns

conceitos básicos de ciências, em especial física e química, à luz de seus conhecimentos

implícitos e, da mesma forma, a motivação e aprendizagem oriunda de um trabalho voltado

para corresponder às suas necessidades e interesses. Este trabalho não se reduz a “traduzir”

para a escola versões simplificadas da realidade através de procedimentos metodológicos,

mas pesquisa a realidade escolar retornando para ela os frutos de uma reflexão.

X – Questões de pesquisa

Perpassado pela minha subjetividade, esta análise evidencia os pontos de contato

entre os saberes de referência e os saberes cotidianos, originando um currículo onde se

valoriza um saber escolar que, em última análise, é diferenciado e único no contexto em

que está inserido e deve, portanto, ser investigado e valorizado neste contexto.

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2. EVIDENCIANDO ALGUNS APORTES TEÓRICOS QUE

INFLUENCIARAM A CONSTRUÇÃO CURRICULAR

Considerações Gerais

x- Tipos de currículoHá muito tempo, os pesquisadores em educação abandonaram a noção de

currículo como sendo uma mera listagem de conteúdo. Apesar disto, essa noção

historicamente construída permanece até os dias de hoje. O currículo posto como

“naturalmente” gerado, na maioria das vezes, apresenta-se como uma ordenação e

seqüenciação de conteúdos, generalizada e legitimada pelo Estado para todas as escolas.

O termo currículo teve, ao longo do tempo, diferentes definições e diferentes

possíveis origens: temos currículo (1) como indicação do que se ensina, ou seja, uma

proposta direcionada para selecionar o que deve ser ensinado. Esta seleção, numa visão

disciplinar, pode ser para eleger quais as disciplinas que devem fazer parte do currículo ou

para eleger dentre os conteúdos de cada área os que merecem passar a outras gerações

como representativos da cultura universal; (2) como plano estruturado de estudos, isto é,

uma listagem de objetivos a ser cumpridos para um próximo nível de ensino; (3) como

ferramenta pedagógica da sociedade industrial, um instrumento de preparo de mão de obra

qualificada para uma sociedade tecnológica e industrial emergente. (Terige, 1996) Dentre

tantas outras, estas são formas de “ver” o currículo e demonstram os processos enfatizados

em cada concepção curricular.

X - Análise cultural: currículo como construção social (autor FORQUIN 1992)

Estas colocações não esgotam as conotações dadas ao currículo e, tampouco, ao

longo deste estudo existe esta pretensão. No entanto, cabe refletir, ainda, sobre a definição

de Forquin (1992), onde uma seleção realizada dentro da cultura a fim de definir o que é

relevante conhecer recebe o nome de currículo. Esta definição evidencia a eleição de

determinados aspectos da cultura em detrimento de outros, como em definições já citadas.

Porém, ao destacar que a seleção é realizada no interior da cultura permite a diferenciação

dos currículos e amplia as possibilidades de incluir as vozes normalmente ausentes na

construção curricular por questionar os critérios desta seleção.

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X - Campos de conhecimento curriculares

Há na construção curricular aportes de diferentes campos do conhecimento e

evidências e reflexos do predomínio de cada um deles. Influências políticas, como a

necessidade de estimular o conhecimento científico pós-Sputnik que surgiu nos currículos

institucionalizados; influências econômicas, como a prática da utilização dos livros

didáticos ou o estímulo à formação de técnicos de nível médio para trabalhar na indústria;

influências tecnológicas da mídia e da informática que mais recentemente estão presentes

na escola. Entre tantos outros, como os aportes sociais que implicam valores de

determinadas épocas e validam a cultura presente nos currículos e os oriundos de pesquisas

em psicologia, sociologia, educação, filosofia, etc.

X – FOUCAULT verdade

Dentro deste universo de campos de saberes que permeiam a construção curricular

pode-se dizer que alguns aportes são assumidos como “verdades” constituindo os

currículos e a prática pedagógica.

Com o intuito de discutir sucintamente sobre este assunto antes de apresentar as

investigações realizadas nesta dissertação e sua proposta curricular, proponho destacar

alguns aportes teóricos que foram importantes para a

X – tríade de análise:

construção deste currículo, a investigação em sala de aula e, por

conseqüência, a transposição didática.

Esta discussão curricular tem como um dos enfoques as contribuições

psicológicas e cognitivistas que se manifestaram desde o começo deste século e

influenciaram o currículo através da mudança do foco central da disciplina para o sujeito e

suas particularidades, procurando “ver” de que forma essas contribuições se manifestaram

e/ou se manifestam na construção curricular através de uma análise crítica.

As teorias psicológicas influenciaram a construção curricular com ênfase no

desenvolvimento de processos cognitivos, focalizando o refinamento de operações

intelectuais, o que transferiu a prioridade do quê ensinar para o como e quando ensinar. Os

currículos desenvolvidos com base nestas teorias propunham desenvolver através da

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aprendizagem as operações cognitivas e de acordo com o desenvolvimento do sujeito,

proporcionar aprendizagem, conferindo a estes condições para fazerem suas próprias

escolhas dentro e fora do contexto escolar. Os estudos acerca da cognição desenvolvidos

por Jean Piaget e Lev Vygotsky deram origem a diversas propostas pedagógicas que ao

longo do tempo disseminaram-se no contexto escolar, como é o caso do construtivismo e

do construtivismo mediatizado, e, mais recentemente, servem de base para estudos

diretivos, como os de

X - Autores POZO e CARRETERO

Ignacio Pozo (1997) e Carretero (1996) entre outros, que discutem a influência dos

conhecimentos implícitos na aprendizagem.

Um segundo enfoque são as contribuições da sociologia que ao surgir evidenciou

algumas influências que promoveram a construção curricular tal como se apresenta hoje e

colocou sobre o currículo um “olhar” que o situa histórica e socialmente. Esta forma de

repensar o currículo trouxe significativos questionamentos aos pesquisadores em educação.

X – novas maneiras de ver o currículo

Os estudos acerca do currículo e suas implicações na sociedade, bem como as implicações

da sociedade sobre o currículo, trouxeram à pauta discussões que desestabilizaram o que

estava posto como natural e proporcionaram uma nova maneira de “ver” o currículo.

X – Currículo OCULTO e REAL

O currículo entendido como a seleção cultural que ensina

através do que diz e do que omite, respectivamente

denominados real e oculto, introduzido pelos estudos de

Philip Jackson publicados, em 1968, no livro Life in Classroom, produziu uma

ruptura com a noção, até então praticamente contínua, de

currículo.(Moreira e Silva, 1995)

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Autor - MICHAEL YOUNG

Em 1971, Knowledge and Control de Michael Young e o nascimento da Nova

Sociologia da Educação Britânica contribuíram com os estudos no campo do currículo

introduzindo questionamentos à neutralidade e veracidade do currículo acadêmico e

evidenciaram a existência de relações de poder que legitimam o que deve ser o

conhecimento escolar. (Moreira e Silva, 1995)

X - INFERIR ensaios de Tomaz Tadeu da Silva (1995a, 1995b), voltados para a

análise do saber-poder, principalmente por meio dos artefatos, nos discursos

produzidos na contemporaneidade. Um deles, o currículo escolar.

Uma outra influência significativa nos estudos em educação é a discussão sobre

pesquisas qualitativas, seus aportes teóricos, as influências dos pesquisadores ou

observadores de campo, os estudos feministas, culturais e demais práticas investigativas

ricas em pormenores descritivos e que promovem este tipo de investigação no interior da

cultura em que esta se realiza.

A seguir passo a discutir primeiramente as influências dos estudos psicológicos na

construção curricular e, posteriormente, as influências da sociologia seguidas das

implicações da pesquisa qualitativa como forma de melhor organizar o texto ou de torná-lo

mais didático. A escolha por analisar o currículo utilizando esses aportes, dentre tantos

outros, justifica-se por serem precisamente estas linhas as fundamentadoras do processo

curricular investigado neste trabalho. A primeira por enfocar as formas como os alunos

aprendem, suas possibilidades cognitivas e a possível intervenção dos professores e do

currículo para promover a aprendizagem e/ou desenvolvimento cognitivo. A segunda por

trazer à teoria do currículo um cunho social, uma discussão sobre a necessidade de

perceber o currículo como uma construção cultural constituída por ideologias, assim como

a sala de aula, o que vai ao encontro das atividades e buscas realizadas no processo de

construção curricular que é objeto desta dissertação. E a terceira por ser a base de todo o

trabalho de investigação qualitativa realizado neste trabalho.

2.2. Implicações da Psicologia

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O desenvolvimento de teorias psicológicas sobre o processo de conhecimento

trouxe para o currículo a discussão de quão efetiva deveria ser a prática pedagógica para

promover o desenvolvimento cognitivo e aprendizagens nos estudantes. Embora

inicialmente se possa pensar que a mudança seria de cunho metodológico, com o decorrer

dos estudos e seu aprofundamento percebeu-se que esta mudança atingia o currículo de

forma mais ampla, promovendo a reflexão acerca do que deveria ser estudado, como e

quando a aprendizagem aconteceria.

Um importante marco destas teorias são os trabalhos de Jean Piaget, que ao

propor a Epistemologia Genética possibilitou novas formas de se pensar a aprendizagem e

o desenvolvimento humano. Piaget estudou as mudanças cognitivas que ocorrem no

processo de aprendizagem das crianças e quais os mecanismos que as promovem.

“Sua teoria diferencia três etapas no desenvolvimento cognitivo que rapidamente

é aceita e difundida:

1. A etapa sensório-motora (desde o momento do nascimento até os 2 anos).

Neste período, a atividade sensorial e motora domina os comportamentos infantis.

A maneira de relacionar-se com a realidade se dá mediante os sentidos e as ações físicas.

2. A etapa das operações concretas, com dois subperíodos, um pré-operatório (até

os 7 ou 8 anos) e outro, o das operações concretas propriamente (que finaliza por volta

dos 12 anos). Neste momento a linguagem vai possibilitar avanços decisivos na forma de

compreender e intervir sobre a realidade. As crianças podem realizar operações mentais

mesmo que sempre partindo do concreto.

3. A etapa das operações formais. A partir de agora os meninos e meninas

começam a operar com conceitos abstratos e a raciocinar de forma hipotético-dedutiva.

Esta é a última etapa do desenvolvimento intelectual e começa logo que for superada a

etapa anterior.” (traduzido de Torres Santomé, 1994, p. 40)

Jean Piaget estudou o processo de cognição sem ter a preocupação de propor uma

teoria educacional, no entanto seus trabalhos serviram de base para diversas alternativas

pedagógicas nos estudos educacionais.

Os planificadores curriculares utilizaram-se das teorias piagetianas de maneiras

diferentes. Houve consenso quanto à necessidade de trabalhar com as crianças

metodologias globalizadoras nas séries iniciais, pois as peculiaridades desta etapa exigem

tarefas com significados mais acessíveis, isto se deveu muito às interpretações sobre as

colocações de Piaget. No entanto, através de outras interpretações da obra de Piaget pôde-

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se depreender que a partir dos 10 ou 11 anos de idade o aluno seria capaz de estudar

disciplinarmente; dado que sua estrutura psicológica lhe permite entender e fazer as inter-

relações sozinho, o aluno já é capaz de formalizar.

Outras implicações curriculares, talvez mais amplas que as acima referidas,

decorreram das teorias piagetianas, como o surgimento do construtivismo (que é

considerado como o paradigma construtivista, por alguns autores, (Davis e cols., 1996).

Embora Piaget só recorra ao conceito “construção” a partir da década de setenta, o

construtivismo está baseado em seus pressupostos.

“O ponto de vista de Piaget é uma clara e explícita aposta de uma postura

epistemológica baseada na noção de que conhecer é construir. Esta construção é uma

modificação da relação entre o sujeito e o objeto de conhecimento (relativismo

interacionista); que se traduz por uma dupla construção (da estrutura interna e da

estrutura dos objetos externos) e que está baseada em última instância, em mecanismos

explicativos ligados a dinâmica das ações e sua coordenação (equilibração, tomada de

consciência, abstração, etc.).” (traduzido de Martí, 1997, p. 237)

Como coloca Juan Delval (traduzido de, 1997, p.1), o construtivismo se espalha

como uma mancha de óleo sobre todas as publicações pedagógicas. O grande alcance das

teorias construtivistas, que traduzem ou refletem uma concepção epistemológica do

conhecimento, atingiu a formulação curricular e deslocou o foco de o quê ensinar para o

como e quando se poderia fazê-lo.

Esta defesa de uma aprendizagem por descoberta presente na obra de Piaget, pode

propiciar um posicionamento a favor de um ensino sem fragmentações disciplinares,

contrariamente ao que os “metodólogos” haviam postulado sobre a disciplinarização

baseados em suas colocações, como foi discutido anteriormente. Como coloca Wortmann

(1996), muitas vezes os “metodólogos” da educação científica radicalizam e distorcem as

próprias fontes onde buscam suas referências. Ao enfatizar a presença da formalização a

partir dos 10 anos (reformulada mais tarde para cerca de 15 anos) Piaget não pretende

colocar que o estudante irá aprender tudo o que lhe for proposto, mas, sim, apenas o que

lhe promover conflitos cognitivos.

Segundo Torres Santomé (traduzido de, 1994, p. 42) é preciso destacar que a

medida em que Piaget aposta em um ensino por descobrimento está prestes a cair em um

novo individualismo rousseauniano, pois, muitas vezes, não considera a possível ajuda de

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uma outra pessoa e processos instrutivos adequados. Piaget, ao se dedicar ao estudo das

estruturas cognitivas, tem como sua principal preocupação os processos internos de

construção, por isso não enfatiza o entorno social. Embora Piaget não enfatize os aspectos

culturais que fazem parte das seleções curriculares, também não os despreza, pois

considera importante os conflitos cognitivos que surgem da interação com outros para

auxiliar a aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo, que concebe como uma forma de

adaptação do indivíduo ao meio em que vive. (traduzido de Moliné, 1996, p. 160)

Segundo Delval (traduzido de Delval, 1997, p. 31), a estratégia que Piaget

emprega com relação ao entorno social é semelhante as que são utilizadas por todas as

ciências: prescindir de fatores distorsionantes para se centrar nos que são essenciais. Esta é

uma outra forma de pensar o contexto e que pode ser amplamente discutível, pois, como o

próprio Delval coloca, o descobrimento das estruturas não é suficiente para explicar a

atuação do sujeito.

Outro importante marco nos estudos psicológicos foram os trabalhos de Lev

Vygotsky e sua teoria sobre o desenvolvimento social da mente. Para Vygotsky, existe um

nível de desenvolvimento efetivo e um outro nível de desenvolvimento potencial nos seres

humanos. A possibilidade de aproximação e desenvolvimento entre os dois níveis foi

denominada por ele Zona de Desenvolvimento Proximal (ou próximo-ZDP).

Esta zona é importante nos trabalhos de Vygotsky que ampliará os estudos das

relações entre aprendizagem, desenvolvimento e entorno social. Sua teoria sócio-histórica

destaca o decisivo papel que os adultos, o meio social e a instrução têm na aprendizagem e

no desenvolvimento humano. O foco da teoria vygotskiana está nas relações entre os

participantes do processo de aprendizagem, na ênfase no conhecimento como processo

histórico e social e, portanto, como construído dentro e fora das instituições escolares.

Assim como os estudos de Piaget, também Lev Vygotsky influenciou com sua

teoria as proposições e discussões acerca da estruturação curricular. No entanto,

diferentemente de Piaget, o foco do trabalho deste autor foram as condições que

proporcionam o desenvolvimento cognitivo, mais do que precisamente saber em que este

consiste.

Com a ênfase no contexto social onde se produz a estrutura do pensamento, a

mudança educacional passa a ter, nessa abordagem, importante significado metodológico e

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teórico, ou seja, a organização de um sistema social chave e dos modos de discurso a ele

associados, traz conseqüências potenciais de novas formas de pensamento. (Moll, 1996)

Os projetos educacionais baseados na obra de Vygotsky buscaram desenvolver e

amadurecer funções mentais, sendo que dos oito primeiros trabalhos, sete discutem

problemas educacionais. Apesar deste textos voltados para a educação, Moll (1996) não

descobriu nenhum trabalho contemporâneo que examinasse a sala de aula, ou aplicasse a

teoria deste a instrução.

Segundo Martí, Vygotsky é interessante para a teoria construtivista por duas

razões:

“Por um lado, resgata o papel das interações entre as pessoas, afirmando que as

pessoas aprendem mediante sua participação no funcionamento interpsicológico e, mais,

defendendo que entre o plano interpsicológico e intrapsicológico existe uma profunda

conexão. Por outro lado, o que explica este isomorfismo entre a organização

interpsicológica e intrapsicológica e o que explica a possibilidade de interiorização e a

natureza semiótica da atividade interpsicológica.” (traduzido de Martí, 1997, p. 224)

A incorporação das colocações de Vygotsky ao construtivismo são extremamente

discutidas,. Para Delval (traduzido de, 1997), as propostas de Vygotsky estão mais

próximas do empirismo e condutivismo que ao construtivismo. Porém, ressalta Delval, a

teoria construtivista elaborada a partir da obra de Piaget, pode incorporar as propostas de

Vygotsky acerca do papel da cultura. Essa postura de aceitação de Vygotsky ao

construtivismo promove uma nova denominação dita construtivismo mediacional.

Uma importante contribuição de Vygotsky para a educação é a sua crítica as

abordagens psicológicas, as que chamou de atomísticas.

Na explicação de Bakhurst (1986), havia três considerações básicas na crítica de

Vygotsky, enunciadas aqui por serem ainda válidas para a prática educacional

contemporânea:

“(1)Abordagens anteriores, em especial o modelo estímulo-resposta, concebiam

o comportamento humano como simplesmente reativo. (2) Tais abordagens aceitavam o

inatismo das faculdades psicológicas, ou seja, que as crianças já vem ao mundo

equipadas, e que o mundo social simplesmente extrai, não cria, o que já está presente. (3)

Essas abordagens representam concepções reducionistas da psicologia, adotando o ponto

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de vista de que a acumulação de mecanismos psicológicos primitivos eventualmente

constitui as funções mentais superiores.” (Bakhurst, 1986, citado por Moll, 1996, p.7)

As relações entre as teorias psicológicas, o construtivismo e a transposição

didática1, de forma alguma, são simples. A realidade escolar, com seu conhecimento

característico, cotidiano e necessidades específicas não está reduzida às adequações para a

transposição didática das teorias psicológicas. Aceitar uma teoria de desenvolvimento

como única e verdadeira implica em negar todas as críticas pertinentes às lacunas de cada

teoria em particular.

Apesar de todas as teorias e propostas para as transposições didáticas o que se

pode perceber do ensino, com raras exceções, é a continuidade de uma visão escolástica2

das disciplinas, segundo a qual o currículo de cada etapa em particular está posto para

atender as “necessidades” da etapa posterior da escola, e não os interesses dos estudantes e,

tampouco, promover a sua formação como agente de mudança, importante aspecto quando

se busca a formação do cidadão.

2.3. Implicações da Sociologia

A Teoria Curricular, após os trabalhos da Sociologia da Educação e da Teoria

Crítica, passou a discutir as questões curriculares buscando a consciência das implicações

sociais e ideológicas inegavelmente presente na construção curricular. Como salientam

Moreira e Silva (1995, p. 21), a Teoria Curricular não pode mais encarar de modo ingênuo

e não-problemático o conhecimento organizado.

A presença de ideologias, do poder, de culturas nas construções curriculares são

alguns dos aspectos evidenciados com a Teoria Crítica, bem como outros que se poderia

dizer estão implicados nos três primeiros, como a disciplinariedade, o currículo oculto, as

tecnologias, etc. Questionar quais foram as influências que constituíram o currículo como

está posto, buscando entender que ideologia(s) o legitimam, como o poder se manifesta e

que cultura ele representa é admitir que, sejam quais forem as construções curriculares,

1 A passagem de um conteúdo do saber de referência a uma versão didática denomina-se “transposição didática”. Este conceito foi introduzido pelo sociólogo M. Verret (1975) e, posteriormente, desenvolvido no campo da didática da matemática por Y. Chevallard (1985). (por Souza, 1996)2 Os escolásticos caracterizavam-se por um espírito de culto à antigüidade clássica e por preocuparem-se com a teologia e a filosofia teológica, atribuindo grande importância à razão. O escolasticismo foi animado por um espírito retrospectivo que buscava conservar o universalmente reconhecido e transmiti-lo aos demais.

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estes aspectos estão presentes como construções sócio-históricas e, portanto, passíveis de

mudança.

Alguns trabalhos “contra-hegemônicos” que se propõem a problematizar o que

está posto, já estão sendo realizados e são oriundos dos aportes da Teoria Crítica. Segundo

Apple, são motivos de otimismo, um otimismo sem ilusão, pois eles significam a

possibilidade de analisar o modo pelo qual operam poderosos interesses conservadores,

tanto ideológicos como materiais, e nos permitem compreender melhor tanto as condições

de atuação da educação, como as possibilidades de alteração destas condições. (Apple,

1995, p. 47).

No Brasil, grande parte dos textos publicados vinculados com a corrente crítica do

currículo foram influenciados pelos de Michel Apple e Henry Giroux que fazem parte de

uma corrente fundamentada pelo neomarxismo, e profundamente influenciada pela Nova

Sociologia da Educação inglesa. No entanto, foi Paulo Freire que introduziu no Brasil estas

discussões e que é referência nos trabalhos de Apple e Giroux.

Segundo os autores que fazem parte do paradigma sócio-crítico o ensino deve

situar-se em contextos sócio-políticos, com interesses, valores e conflitos onde a realidade

social é o ponto de partida dos fenômenos educativos (Moreira e Silva, 1995). Investigar

essa realidade, dar-lhe espaço e voz nos currículos escolares é uma das metas dos estudos

sócio-críticos. Para tanto o envolvimento do professor é indispensável, pois como coloca

Forquin (1992), existe um currículo formal3, um currículo real4 e a percepção5 deste

currículo pelo aluno o que torna a escola um campo de produção e legitimação de saberes

muito particulares e típicos.

É neste campo de produções de saberes que a seleção cultural deveria ser melhor

definida, que as vozes ausentes nas produções curriculares até hoje existentes deveriam se

manifestar e legitimar. Entretanto o professor, historicamente desapropriado de um

saber que lhe permitiria gerar suas práticas pedagógicas, tem dificuldades para

identificar um “outro” entendimento das relações curriculares.

3 Os conteúdos prescritos pelas autoridades - o currículo formal - são o produto ao longo do tempo, de todo um trabalho de seleção no interior da cultura acumulada, um trabalho de reorganização4 Todo o capítulo de programas presta-se a muitas interpretações, por isso vemos os docentes, por sua vez, selecionar temas, enfatizar tal ou qual aspecto, apresentar os saberes sob diversos modos. Cada sala de aula segue assim um currículo real que, no limite, é diferente dos outros.5 Percepção do Currículo Real - aquilo que é realmente aprendido e retido pelos alunos não é necessariamente aquilo que os docentes ensinam ou crêem ensinar, na medida em que a relação das mensagens pedagógicas dependem também do contexto social cultural.

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Admitir incorporar a cultura popular6 à escola é dificultado pela escassa relação

que esta parece ter com a pedagogia. Giroux explicita algumas diferenças que envolvem

as questões culturais e a pedagogia aplicada:

“A primeira vista, pode parecer remota a relação entre a cultura popular e a

pedagogia aplicada à sala de aula. A cultura popular é organizada em torno do prazer e da

diversão, enquanto a pedagogia é definida principalmente em termos experimentais. A

cultura popular situa-se no terreno do cotidiano, ao passo que a pedagogia geralmente

legitima e transmite a linguagem, os códigos e os valores da cultura dominante. A cultura

popular é apropriada pelos alunos e ajuda a validar suas vozes e experiências, enquanto a

pedagogia valida as vozes do mundo adulto, bem como o mundo dos professores e

administradores de escola.” (Giroux, 1995, p. 96)

É, também, através de Giroux que se pode identificar as semelhanças e

necessidades de uma relação entre esta cultura popular e a pedagogia, pois ambas

aparecem como discursos subordinados. (...). No discurso dominante a pedagogia é

simplesmente a metodologia mensurável e justificada para transmitir o conteúdo de um

curso. (...) a cultura popular... é o que sobra após a subtração da alta cultura da

totalidade das práticas culturais. (Giroux, 1995, p. 97).

A tentativa de subverter essas noções e redefinir cultura e pedagogia como

critérios de escolhas e, portanto, a escola como campo de luta é uma tentativa, em última

análise, de valorizar as diferenças e diminuir, senão eliminar, a visão caricaturizada da

escola como transmissora dos únicos possíveis conhecimentos culturais válidos.

Colocações como as de Moreira e Silva esclarecem como é necessário evidenciar

esta nova postura, pois

“Na concepção crítica, não existe uma cultura da sociedade, unitária,

homogênea e socialmente aceita E PRATICADA e, por isso, digna de ser transmitida às

futuras gerações através do currículo. Em vez disso, a cultura é vista menos como uma

‘coisa’ e mais como um terreno de luta. Nessa visão: a cultura é o terreno em que se

enfrentam diferentes e conflitantes concepções de vida social, é aquilo pelo qual se luta e

não aquilo que recebemos.” (Moreira e Silva, 1995, p. 28)

Redefinir as bases orientadoras do currículo e redefinir o próprio currículo não é

tarefa simples. Existe uma cultura de dominação estabelecida há pelo menos um século em

6 Cultura produzida nas comunidades em que a escola está inserida e que se diferencia da cultura hegemônica.

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nosso país, que não permite ao professor tempo e espaço para discussões que possam levá-

los a repensar o currículo. Apesar de há quase três décadas a Teoria Crítica do Currículo

estar revisando as construções curriculares em busca de uma “liberdade” de pensamento e

de uma “valorização” de saberes e cultura populares, as propostas curriculares que surgem

como transformadoras, raramente fazem algo além de tímidos retoques no currículo

instituído, parecem mais com adequações metodológicas do que com renovação e

desestabilização do que está posto.

A valorização dos saberes dos alunos é estandartizada, o seu interesse também é

foco de estudo. No entanto, na maioria das vezes é colocado apenas como motivador e não

como conhecimento válido. As questões de gênero, classe social, raça, legitimação de

algumas drogas e ilegalização de outras são, ainda, temas tabus. A escola enquanto uma

das instituições transmissoras e legitimadora da racionalidade científica não evidencia

esses temas como relevantes para serem abordados em sala de aula.

A escola continua negando os conflitos, negando a historicidade do conhecimento,

só não é mais possível a ninguém negar o fracasso escolar. No entanto, admitir o fracasso

não significa mudar de ideologia ou transformar as relações de poder, existem diferentes

formas de encarar esse fracasso. Uma destas maneiras como fez Bennett, Secretário da

cultura de Reagan, é transferir a responsabilidade do fracasso ao aluno e apelar para o

elitismo ocidental para reconstruir uma “educação de qualidade”. (Giroux, 1995, p. 94).

Uma visão de escolarização de qualidade conservadora ou neo-conservadora o que é

praticamente o mesmo.

Os discursos, as relações de poder e até mesmo as ideologias que as permeiam

não são de maneira alguma facilmente identificáveis e não-problemáticos, por isso a Teoria

Crítica e a Sociologia do Currículo percorrem um longo caminho na busca de construções

curriculares mais legítimas. Tornar explícitas as redes que fazem a seleção cultural implica

refletir sobre o que está posto como natural e sua possível problematização a fim de que

esta seleção seja consciente e, portanto, mais criteriosa.

“Tornar o pedagógico mais político significa inserir a escolarização

diretamente na esfera política, argumentando-se que as escolas representam tanto um

esforço para definir-se o significado quanto uma luta em torno das relações de poder.

Tornar o político mais pedagógico significa utilizar formas de pedagogia que

incorporem interesses políticos que tenham natureza emancipadora; isto é, utilizar formas

21

Page 15: Trabalho Felipe

de pedagogia que tratem os estudantes como agentes críticos; tornar o conhecimento

problemático; utilizar o diálogo crítico e afirmativo; e argumentar em prol de um mundo

qualitativamente melhor para todas as pessoas.” (Giroux, 1997, p. 163)

Estas poucas considerações feitas sobre os aportes da sociologia na educação e na

construção curricular estão distantes de explicitar todo o trabalho que está sendo realizado.

Porém ao longo desta dissertação por várias vezes retomarei algumas discussões elencadas

aqui e possivelmente outras posturas e aprofundamentos serão evidenciados.

2.4. Implicações da Investigação Qualitativa

A expressão investigação qualitativa é um termo genérico que agrupa diversas

estratégias de investigação que partilham determinadas características. Os dados recolhidos

são designados por qualitativos, o que significa ricos em pormenores descritivos coletados

em locais específicos através de conversas e que por serem diversificados são de complexo

tratamento estatístico. Para o investigador, envolvido com dados qualitativos, divorciar o

ato à palavra ou o gesto de seu contexto é perder de vista o significado, como escreveu

determinado antropólogo. Se a interpretação antropológica consiste na construção de uma

leitura dos acontecimentos, então divorciá-la do que se passa, daquilo em que determinado

momento espaço temporal suas particularidades afirmam, fazem ou sofrem dentre a

vastidão de acontecimentos do mundo é o mesmo que divorciá-la das suas aplicações,

tornando-a única. Uma boa interpretação do que quer que sejam um poema, uma pessoa,

uma história, um ritual, uma instituição ou uma sociedade conduz-nos ao coração daquilo

que se pretende interpretar. (Bodgan, 1994)

Os processos de investigação nos locais acadêmicos podem ser definidos de duas

formas genéricas: um processo de investigação fundamental, normalmente mais abstrata e

menos acessível aos leitores comuns, e outro processo de investigação aplicada, onde se

visa a aplicação dos resultados diretamente na vida prática. É claro, no entanto, que

existem vários graus de investigação entre estes dois extremos. A pesquisa que realizei é

uma mediação entre estes extremos, pois buscou investigar conhecimentos implícitos e

interesses dos alunos como motivadores e promotores de aprendizagens, isto é,

pesquisando a organização do pensamento do alunado e suas caraterísticas, bem como a

utilização de estratégias para esta promoção que podem ser realizadas e aplicadas no

sistema escolar tal como está posto.

22

Page 16: Trabalho Felipe

Neste estudo foram utilizados procedimentos de investigação qualitativa como a

observação participante, a etnografia e a investigação aplicada, utilizados

simultaneamente durante o processo de pesquisa que compreendeu um ano escolar e foi

realizado em duas turmas de 8a série da escola básica da rede pública de ensino em Porto

Alegre/RS/Brasil.

A observação participante acontece em maior ou menor grau dependendo das

atividades realizadas pelo pesquisador, porém é improvável que alguma observação social

aconteça sem a participação deste. As variações desta participação podem ser colocadas,

segundo Atkinson e Hammersley (em Denzin e Lincoln, 1994), como aquelas em que o

investigador é conhecido por todos como um investigador, ou apenas por alguns, ou por

ninguém. A participação também está relacionado com o quanto e o que é conhecido sobre

a investigação, que tipos de atividades são ou não são engajadas pelo pesquisador no

campo e como está identificado o pesquisador em relação ao grupo e seus participantes.

Outro aspecto é relativo à orientação que a pesquisa tem e como o pesquisador

conscientemente adota dentro ou fora do locus as orientações do trabalho.

As diferentes formas de intervenção é que caracterizam o quanto a observação é

participante ou não. No meu caso, a participação foi total, pois todos estavam conscientes

do meu papel de professor-investigador, eu preparei cuidadosamente as intervenções no

locus, tanto para conseguir os dados de base para o trabalho quanto para verificar as

mudanças após a intervenção e os novos dados.

A etnografia, segundo Bogdan (1994), consiste numa descrição profunda quando

se examina a cultura. Com base nessa perspectiva, o etnográfo se depara com uma série de

interpretações da vida, interpretações do senso comum que se tornam difíceis de separar

uma das outras. Os objetivos do etnógrafo são os de apreender os significados que os

membros da cultura têm como dados adquiridos e posteriormente apresentar este

significado às pessoas exteriores à cultura pesquisada. O etnógrafo preocupa-se

essencialmente com as representações que cada cultura faz de cada evento. Esta foi uma

preocupação constante neste trabalho de pesquisa, compreender de que forma eram

entendidos cada aspecto das discussões em sala de aula, como a linguagem era traduzida

dentro da cultura dos alunos e como esta se refletia enquanto produção do conhecimento,

utilizando para tanto instrumentos de levantamento de dados como questionários,

gravações de opiniões em sala de aula e, anotações dos gestuais e ritos que podiam ser

23

Page 17: Trabalho Felipe

significativos para entender este processo de tradução da linguagem. No entanto, uma

diferença que me parece fundamental é a de que não só os dados adquiridos são passados a

culturas exteriores à estudada como, também, dados exteriores foram trazidos à cultura.

Em outras palavras, tanto houve uma investigação dentro da sala de aula que busca trazer

para a academia7 os acontecimentos e traduções que lá se fazem, como levar a cultura da

academia ao conhecimento da sala de aula.

Uma definição importante dos estudos qualitativos: o objetivo dos investigadores

qualitativos é o de expandir e não o de limitar a compreensão; não se tenta resolver a

ambigüidade entendendo as diferenças como um erro que se tentam ultrapassar mediante a

elaboração de uma definição. Outrossim, tenta-se estudar os conceitos da forma como eles

são entendidos por todos que os utilizam. (Bogdan, 1994)

Uma das linhas de investigação qualitativa, a etnomedologia, sensibilizou os

investigadores de que a própria investigação não constitui exclusivamente o

empreendimento científico. Pode ser melhor entendida como uma realização prática,

sugerindo que é importante considerar os pressupostos de senso comum que subjazem a

atividade dos investigadores. Os etnometodólogos exortam os investigadores que

trabalham numa perspectiva qualitativa a serem mais sensíveis à necessidade de pôr entre

parênteses ou suspender seus pressupostos de senso comum, as suas visões do mundo, ao

invés de operarem sem consciência delas. (Bogdan, 1994)

O investigador qualitativo evita iniciar um estudo com hipóteses previamente

formuladas para testar, ou questões específicas para responder, defendendo que a

formulação das questões deve ser resultante da recolha de dados e não efetuada a priori. É

o próprio estudo que estrutura a investigação, não idéias pré- concebidas ou um plano

prévio detalhado. (Bogdan, 1994, p. 82.) As hipóteses formuladas têm um único objetivo

de serem modificadas e reformuladas à medida que vão avançando.

A investigação aplicada é o cerne deste trabalho. A pesquisa tem um objetivo

primeiro específico que é o de promover um currículo diferenciado na rede pública de

ensino. Para tanto, é, de acordo com o referencial teórico abordado, necessária uma

investigação constante e aplicada. Outro objetivo é a divulgação do conhecimento desta

investigação para a comunidade científica e escolar, que posteriormente poderá servir de

referência para outros estudos. Um exemplo deste tipo de investigação são os trabalhos de

7 O termo academia se refere aos grupos de pesquisa onde se realizam as discussões de ponta sobre educação, onde se produzem novos conhecimentos.

24

Page 18: Trabalho Felipe

Freire com alfabetização: ele nunca estudou os alunos por estar meramente interessado em

aumentar o seu repertório de conhecimento, mas por necessitar aprender sobre a

comunidade com o objetivo de direcionar os seus métodos de ensino nas suas turmas de

aluno.

A investigação na sala de aula ou no campo de trabalho objetiva entrar no campo

dos alunos, no território dos alunos. Nesse tipo de pesquisa “O objetivo do investigador é o

de aumentar o nível de vontade dos sujeitos, no meu caso dos alunos, encorajando-os a

falar sobre aquilo que costumam falar, acabando por lhe fazer confidencias. Este terá de

lhe dar provas de forma a merecer confiança que o sujeito deposita nele, tornando claro

que nunca irá utilizar o que descobrir para rebaixar ou magoar alguém. Se por um lado o

investigador entra num mundo sujeito por outro continua a estar do lado de fora”.

(Bogdan, 1994) Só que as dificuldades extras do professorado são as dificuldades da nota é

o poder na escola, o poder que te transforma num inimigo na trincheira. Esse investigador

trabalha para ganhar a aceitação do sujeito, não como um fim em si, mas por que isto abre

a possibilidade de prosseguir os objetivos da investigação. (Geertz, 1989)

Dentro destes aspectos relativos à confiança e integração necessária entre

professor-pesquisador-aluno surgem interferências como os sentimentos. Porém, a

investigação qualitativa procura trabalhar sentimentos de uma forma positiva, mostrando

que tal como acontece as pessoas, o observador também tem sentimentos e também se

sente perdido: a questão é saber como trabalhá-los. Segundo Rosaldo (1989), os

sentimentos são importantes veículos para estabelecer uma relação e para julgar as

perspectivas dos sujeitos. Não se podem reprimir sentimentos, pelo contrário, se tratados

devidamente podem constituir um importante auxiliar da investigação qualitativa.

No universo escolar, discute-se a validade dos trabalhos acadêmicos8 e os

discursos dos trabalhadores em educação estão centrados nos seus sentimentos primeiros,

isto é, salientam que alguém de fora nunca poderá vir a saber o que é de fato ser professor.

Este discurso pretende, antes de tudo, valorizar o trabalho docente e os saberes da prática.

Porém é importante perceber que os sentimentos do professorado que os faz assumirem ou

não a sua prática estão relacionados com as suas vivências. A incapacidade do observador

é, portanto, a de um estranho experimentar a frustração, a raiva, a alegria e o sentimento de

sucesso do professor.

8 Os motivos deste comportamento serão discutidos mais tarde no capítulo 3.

25

Page 19: Trabalho Felipe

As questões relativas aos sentimentos dos professores em suas turmas, são

importantíssimas neste trabalho, pois nesta pesquisa observadora e professora foram a

mesma pessoa e esta simultaneidade foi muito relevante. A questão de estar na escola, ser

parte da cultura escolar, ser membro de uma comunidade, agir como professora, encarar o

dia a dia de professor, trabalhar com mais de uma turma, organizar laboratórios e materiais

didáticos dentro do possível e, ainda, responder às instâncias internas e externas que

regulam a nossa prática, trazem à pesquisa a validação do próprio professor, pois passam a

ser mais consistentes o discurso acadêmico e a prática escolar.

Os investigadores qualitativos interessam-se mais pelo processo do que pelos

resultados ou produtos. Como as pessoas negociam o significado? Como começam a

utilizar certos temas e rótulos? Como determinadas noções começaram a fazer parte

daquilo que consideramos ser o senso comum? Qual a história natural da atividade ou

acontecimento que pretendemos estudar?

Sistematizando a análise, nesta pesquisa, os dados foram recolhidos na escola em

todos os seus espaços, analisando discussões e proposições feitas pelos professores e

diretores, tanto nos momentos oficiais quanto nos informais que constituem a visão de

escola e de aluno dos componentes da escola, investigando como estes discursos chegam

aos alunos e os constituem enquanto grupo e indivíduos. Por outro lado, verificando como

se deu a relação aluno-escola, aluno-professor, aluno-aluno, dentro das salas de aula em

que trabalhei. E, por fim, verificando como aconteceu a relação aluno-saber escolar, aluno-

interesse pessoal-interesse escolar, e a produção do conhecimento enquanto construção

subjetiva e única do contexto.

26

Page 20: Trabalho Felipe

3. O CURRÍCULO ESCOLAR VIGENTE

3.1. Considerações Gerais sobre o Currículo Vigente

A administração do currículo na escola é uma questão que envolve inúmeras

variáveis, dentre elas a localização da escola, o potencial humano docente e discente, a

linha pedagógica da escola e a comunidade em que está inserida. Apesar da massificação

curricular imposta pelos livros didáticos9 estas variáveis fazem diferença na hora de se

elaborar um projeto de pesquisa em termos de mudança curricular, dado que o currículo

real é constituído na prática escolar.

Esta pesquisa foi realizada em uma escola pública pertencente a rede estadual de

ensino do estado do Rio grande do Sul – Escola Estadual de 1o Grau Medianeira.

Localizada em um bairro de classe média baixa, em Porto Alegre, seu público alvo é,

porém, de classe baixa proveniente da periferia do bairro. A escolha da escola onde se

desenvolveu a pesquisa foi orientada por dois critérios fundamentais, ser uma escola da

rede estadual de ensino, para estar em consonância com meus trabalhos anteriores10, e estar

sem professor titular da disciplina de ciências, durante o ano de 1997, pois era meu

objetivo ser incorporada na escola como parte do corpo docente e não como uma

pesquisadora descompromissada com as questões da escola.

A infra-estrutura da escola foi, provavelmente, muito boa no passado, porém os

recursos tornaram-se bastante precários com o passar do tempo e com a falta de

investimento para a sua manutenção. A escola possui uma biblioteca completa, mas

desatualizada; o laboratório, da mesma forma, possui muitos materiais, mas os reagentes

estão vencidos, e os recursos audiovisuais, xerográficos e de informática são mínimos. As

possibilidades de reorganização e atualização dos materiais são escassas devido aos poucos

recursos destinados à educação.

9 Este tema será discutido à parte no decorrer do texto.10Durante a minha graduação em licenciatura em química, tive oportunidade de participar do Subprojeto - Redefinição de Bases Curriculares e Metodológicas para o Ensino de Química junto a Professores de Química vinculados a 28a Delegacia de Educação da SE/RS, onde apareceram discussões sobre o quanto o ensino fundamental em ciências afeta o ensino médio na medida em que antecipa conteúdos frente ao desenvolvimento cognitivo e frente ao próximo grau de ensino, dificultando a apropriação do conhecimento pelos/as estudantes. Ciente desta problemática procurei trabalhar em um novo projeto de pesquisa para o ensino de ciências na 8a série do ensino fundamental que foi inserido no projeto - Redefinição de Bases Curriculares e Metodológicas de Ensino de Ciências vinculado ao Projeto de Rede Fazendo Educação através da Química, que como o projeto anteriormente citado foi financiado pela CAPES/MEC/PADCT/SPEC .

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Page 21: Trabalho Felipe

O projeto desenvolveu-se em duas turmas de 8a série do ensino fundamental,

na disciplina de Ciências. A escolha desta série se deu por ser, na maioria das escolas

públicas, este o primeiro contato que os aluno têm com a sistematização dos conteúdos

típicos de química e física, o que me possibilita um melhor reconhecimento dos

conhecimentos implícitos dos alunos sobre estas ciências. Há, também, por parte dos

professores de nível médio um apelo por uma abordagem mais qualificada da ciência da 8a

série, dado que esta apenas antecipa conteúdos do 2o grau das disciplinas de química e

física (Loguercio, no prelo). Cabe definir e entender melhor o que é esta abordagem mais

qualificada, e dentro da escola estas questões podem ser melhor elucidadas, pois é possível

incorporar à discussão teórica a construção própria da escola enquanto produtora de

saberes oriundos da prática docente.

Nesta escola, como em muitas outras, a disciplina de ciências na 8 a série é

dividida em física e química e o livro didático escolhido pela professora do ano anterior,

que já estava aposentada, era um livro recomendado pelo MEC/FAE – Ministério da

Educação e Cultura/ Fundação de Assistência ao Educando - Aprendendo Ciências, de

Demétrio Gowdak e Neide S. de Mattos (1992). Esses livros são distribuídos gratuitamente

para os alunos e devem ser preservados para uso no ano seguinte pelo próximo grupo de

alunos que cursará a 8a série.

O trabalho se realizou em duas (82/83) das três turmas de 8a série da escola, sendo

que a turma 83 era dita como uma turma “difícil”, a turma dos repetentes e desmotivados.

A opção de trabalhar com duas turmas objetivou compreender melhor as vivências dos

professores que trabalham com turmas diferenciadas. Acredito que vivenciar a

heterogeneidade presente nas escolas enfatiza as concepções de construção curricular

direcionada para cada grupo específico e permite entender, na prática, os limites das teorias

e metodologias propostas pelos teóricos educacionais.

Após este panorama sobre a escola onde a pesquisa se realizou, acredito ser

pertinente refletir sobre a estrutura na qual ingressei.

28

Page 22: Trabalho Felipe

3.2. Escola e Gerência de Saberes

Observei a escola, inicialmente, identificando o público ao qual esta se destina,

arriscando-me a cair numa análise que concebe a escola como uma das instituições do

mercado, um espaço que deve atender ao cliente e satisfazê-lo. No entanto, isto acontece se

esta análise parte do pressuposto de que o conhecimento está empacotado, estático, sucinto

e pronto para o consumo. Desde que o conhecimento é “visto” por mim como uma

recriação e reinvenção diária de uma prática e de um contexto, creio que esta análise

evidenciará que este contexto é significativo e determinante do conhecimento construído.

A Escola Medianeira destina-se a classe de baixo poder aquisitivo, como já foi

colocado, e, portanto, segundo Freire (1987, por Bogdan, 1994), o trabalho escolar deveria

estar sendo construído com e para esta comunidade, não de uma maneira a transmitir uma

visão de mundo diferenciada para classes sociais dominantes e dominadas, mas para

trabalhar conhecimentos oriundos de cada classe e evidenciar as relações sociais, políticas

e culturais entre ambas e as ideologias que as permeiam.

Na escola há consciência de que a comunidade que a rodeia é carente, pobre,

culturalmente diferente de outras classes sociais, inclusive a dos professores. Percebe-se

um interesse para compreender as diferenças entre os valores dos professores e os valores

da comunidade, às vezes extremamente conflitantes, porém estas atitudes estão presentes

na tolerância e na “boa vontade” dos professores ou nos locais específicos de se tratar as

diferenças e inadaptações: a Secretaria (da escola) e o Serviço de Orientação Educacional -

SOE. A questão do porquê destas diferenças, da validação e do respeito a elas, de como

trabalhá-las (não para compreendê-las melhor, mas para questioná-las) não aparece na sala

dos professores e tão pouco na sala de aula. Inúmeros fatores estão implicados nestas

ausências, muitos devido aos professores e suas vivências e muitos devido a histórias de

fracassos e vitórias das tentativas de mudança dentro de lutas de classe, gênero e raça, e,

ainda, pela legitimação de espaços extra-classe, como o SOE, cabendo à sala de aula o

conteúdo.

Um dos meus primeiros contatos na Escola foi mediado por uma ex-professora

que me informou que a escola tem o hábito de aceitar estagiários, pois segundo a vice-

diretora “eles não costumam dar trabalho”. Após alguns dias de negociações junto a

Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul11, retornei a escola e ao conversar

11 As negociações para autorização de minha entrada na escola demoraram alguns dias por entraves burocráticos de assinatura desta. Ao contrário do que eu esperava ninguém questionou o projeto proposto,

29

Page 23: Trabalho Felipe

com a vice-diretora e principal responsável pela escola, fui questionada a respeito dos

meus propósitos: que tipo de pesquisa, quanto tempo duraria, etc., ao que respondi que era

uma pesquisa sobre mudança conceitual e construção curricular12. Foi então colocado que

eu poderia fazer o trabalho desde que não deixasse de “ensinar tudo o que era preciso na 8a

série”. A vice-diretora entregou-me o livro didático escolhido pela professora anterior e a

lista de conteúdos que esta havia estipulado dizendo que eu poderia “copiar a listagem para

o caderno de chamada”.

“ensinar tudo o que era preciso na 8a série”

“copiar a listagem para o caderno de chamada”

“estagiários sem problemas”

Analisando este primeiro momento e retomando o que já foi colocado, percebe-se

que a construção curricular e as mudanças podem acontecer ao nível das metodologias

desde que não alterem a listagem de conteúdos, herança provável das diferentes

alternativas pedagógicas que centralizaram os problemas escolares em questões didáticas e

deixaram de considerar como, quando e por que desenvolver tais conteúdos e a dinâmica

social, o caráter instável e político da prática educacional.

As propostas pedagógicas que chegam às escolas propõem mudanças

metodológicas diferenciadas, mas discussões epistemológicas deste conhecimento não se

efetivam, dificultando os questionamentos das discussões positivistas e racionalistas

presentes nestas construções que conferem ao currículo uma noção do conhecimento como

uma forma de descrever a realidade, talvez porque não se vislumbra o quanto estas

concepções são parte de nossas escolas.

Assim, a frase da vice-diretora não é absurda no meio escolar tanto quanto parece

ao deslocá-la deste meio, pois os aportes pedagógicos ao longo do tempo que descuidaram

ou não prestaram atenção ás questões epistemológicas, traduziram visões reducionistas que

ainda permeiam o ensino, em particular o ensino das ciências da natureza (química, física,

biologia, ...). Uma das intervenções reducionistas está na própria utilização das pesquisas

psicológicas que, segundo Apple (1995), ao monopolizarem o discurso educacional

apenas fui solicitada a deixar uma cópia deste e explicar quanto tempo eu precisaria da escola e qual a escola eu gostaria. Isto é uma evidência das dificuldades que o Estado tem para organizar as colaborações das pesquisas universitárias em educação nas suas escolas, não dispõe de mecanismos para usufruir das pesquisas realizadas e chega a desconhecer o teor destas e seus resultados.12 Fui bastante lacônica, pois pretendia evitar num primeiro momento um confronto e/ou controle por parte da direção.

30

Page 24: Trabalho Felipe

enfraqueceram a capacidade para responder à crise como algo que é de suma importância

para a educação. É claro, como também afirma Apple, que existem outras pesquisas que

não pretendem fazer soar apenas as suas vozes como sabedoras das questões educacionais.

A Psicologia tem o seu papel, saber como, quando e por que se ensina, também é

importante, e reconhecer o caráter relacional da educação é fundamental. Reconhecer o

currículo como “um terreno de produção e de política cultural, no qual os materiais

existentes funcionam como matéria-prima de criação, recriação e, sobretudo, de

contestação e transgressão” (Moreira e Silva, 1995, p. 28) é conferir à escola o papel de

produtora de saberes e de mediadora de um aprendizado para a libertação, mesmo que

parcial, e não apenas para o reconhecimento de saberes produzidos em outras instâncias.

Um aspecto evidenciado na fala da vice-diretora, quando diz que aceita estagiários

sem problemas e que eu teria uma certa autonomia, denota, a meu ver, o entendimento que

pouco pode mudar na estrutura escolar com a minha presença, e, também, a falta de

perspectiva para pensar o “novo”, já identificada antes durante a consulta à Secretaria de

Educação - RS. A escola está aberta, é bom ter professores pesquisadores na escola, mas

não é tão importante saber o que é a pesquisa, como este estudo pode contribuir à vida

escolar, se as professoras terão acesso ao trabalho. A maneira comum de pensar é que as

escolhas são sobretudo pessoais, cada disciplina e sua estrutura são de conhecimento

exclusivo de seu sabedor oficial – o professor – é muito difícil à direção associar-se a uma

discussão disciplinar, porque, novamente, o que está posto é “verdadeiro” e a cada um

compete um papel particular na divisão do trabalho escolar.

Uma das maneiras de explicar a “inércia” da escola e de grupos de professores é,

segundo Apple (1995), o que ele chama de intensificação13, a sobrecarga de trabalho que

atinge o tempo livre das pessoas tanto para viver quanto para conhecer. O

desconhecimento dificulta os questionamentos e ao não questionar, não se reflete, não se

reavalia e não se muda. A intensificação na escola faz parte de uma dinâmica de

desqualificação intelectual, tornando o professor mais dependente da opinião de

especialistas na realização do seu trabalho.

Os professores não ignoram os problemas vigentes como a falta de tempo, o baixo

aproveitamento dos alunos, a evasão, a repetência, entre outros. Diversas vezes estes

assuntos estão presentes nos domínios escolares próprios do corpo docente e da

13 A intensificação representa uma das formas pelas quais os privilégios dos trabalhadores/as são degradados. (Apple, 1995, p. 39)

31

Page 25: Trabalho Felipe

administração da escola, como na sala dos professores, porém as causas são reduzidas a

questões pessoais14, o aluno é o responsável pelo seu desenvolvimento, o contexto em que

está inserido pode explicar algumas situações, mas não justifica o seu “fracasso”. O

“fracasso” é pessoal, intransferível. A visão individualista está presente em todos os

momentos da escola, da sala de aula ao recreio, alunos, professores e funcionários se auto-

responsabilizam pelos “fracassos” sem perceber as intrincadas relações sócio-político-

econômicas que os fazem “fracassar”.

Além da cultura do individualismo, um outro fator a que se atribui o “fracasso”

escolar é a percepção da cultura da juventude, que é cada vez mais foco de repúdio no

contexto social. O cinema americano, como coloca Giroux (1996), vem fazendo uma

“demonização” da juventude, negando sua sexualidade, sua cultura, seus valores. A escola

não está distante deste discurso, pois é formada por pessoas perpassadas pela mídia e seus

modos de subjetivação. A presença desta “demonização” está na constante relação que os

professores estabelecem entre exercício da sexualidade e baixo desempenho escolar. Por

exemplo, a psicóloga da escola ao comentar sobre os alunos coloca que “as meninas são

piores do que os meninos, só pensam em sexo”, “é muito difícil trabalhar, eles não ligam

para nada, só para sexo, no meu tempo não era assim”. Estas frases são comuns no meio

escolar e ajudam a legitimar uma imagem estereotipada da juventude, negando espaço para

uma reflexão do papel da escola como formadora desta juventude. Os alunos, segundo esta

maneira de ver, já estão formados15 e é impossível para a escola “reformá-los”, isto é, a

escola não tem influência sobre a formação social dos alunos. O seu papel, portanto, é o de

zelar para que os “conhecimentos mínimos” sejam transmitidos.

Analiso estas falas da equipe de psicólogas (que representa outras que não estão

literalmente descritas aqui) de duas maneiras. Uma devida ao poder dos discursos

circulantes sobre o quanto os jovens estão degenerando e levando com eles o futuro

promissor prometido pela evolução tecnológica e pela concepção de ciência existente.

Estes discursos que se entrecruzam se manifestam em diversos momentos e em todos os

setores socioculturais, proporcionando uma intensificação de críticas aos jovens, podendo

dificultar, para a sociedade e para os agentes da escola, os questionamentos destes modos

de “ver” a cultura juvenil.

14 A crença no poder individual é herança provável da filosofia hedonista na qual o bem verdadeiro e a dignidade do homem seriam encontrados na felicidade individual. (Kaufman, 1993, p. 87)15 O que coloca aqui como formação é a construção de uma identidade social dos alunos.

32

Page 26: Trabalho Felipe

A outra refere-se à forma de ver os conhecimentos mínimos exigidos em cada

disciplina; estes são claros, lógicos e definidos para os professores. Uma ocasião, durante o

trabalho com os alunos, questionei uma das professoras sobre o que os alunos estavam

trabalhando e se era possível a ela incorporar um determinado conteúdo para facilitar o

entendimento dos alunos. A resposta foi que “este assunto eu já trabalhei na 6a série, eles

não aprenderam lá, não vão aprender nunca. A gente tem que repetir sempre a mesma

coisa. Eu não posso ajudar por que o meu tempo está contado”.

É inconsistente esta afirmação, pois se seguir o currículo no “tempo certo” é tão

importante, por que, então, os alunos continuam sem aprender, como foi colocado. Desta

frase se pode perceber que se o tempo está contado para retomar um conteúdo será muito

difícil falar do que está acontecendo fora dos “limites” da matemática, por exemplo. Ou

melhor, não é possível relacionar a matemática à cultura dos alunos, pois isto implica em

ocupar tempo. A escola não propicia interação entre a cultura de alunos e professores, ela

propicia uma cultura elitizada e pronta sem se questionar o quanto a aceitação ou não desta

cultura pelos alunos pode influenciar as suas vidas. Os professores e a escola têm

consciência das dificuldades que enfrentam, porém mudar o que está estabelecido demanda

tempo para estudar, vontade para isso, estímulo dos mais variados, desde a construção de

um grupo até e, principalmente, uma valorização econômica e social dos profissionais da

educação.

A escola está no centro das atenções de pais e comunidade em geral, transfere-se

para ela a responsabilidade por “fracassos” e por “sucessos”. Ela por sua vez transfere esta

responsabilidade de volta ao governo e seu mau gerenciamento da educação. Muitos os

culpados, poucos os responsáveis, mínimas as atitudes de reflexão, mínimos os interesses

em promover esta reflexão.

A visão da escola como um local de produção intelectual, de gestão e transmissão

de saberes e de símbolos (Forquin, 1992) não está, ainda, incorporada por ela própria e por

seus membros. O saber está posto e cabe a escola transmiti-lo da maneira mais neutra e

desinteressada possível, esta herança positivista é ainda a visão escolar dominante. Os

estudos sociológicos em educação procuram desfazer as redes relacionais que compõem

esta visão e explicitar um pouco das políticas de legitimação dos quadros escolares atuais,

identificando as relações de poder, as ideologias, a cultura, a tecnologia, etc. No entanto, a

33

Page 27: Trabalho Felipe

intensificação aparece como um dos fatores principais que dificulta o acesso do professor à

análise crítica e à reflexão de sua prática.

Embora o reconhecimento do poder, da ideologia e da cultura como permeadoras

dos currículos escolares e da vida escolar não seja suficiente para uma reflexão sobre a

prática, esse reconhecimento é de suma importância nesta reflexão. É necessário

reconhecer a existência destes aspectos para identificá-los quando possível, e na maioria

das vezes não é possível, pois as relações de poder e ideologia estão implicadas desde o

macrosistema até as relações cotidianas de sala de aula e de convivência no grupo (Moreira

e Silva, 1995).

A Escola Medianeira se organiza para levar aos alunos um ensino de qualidade,

preocupa-se com o quadro de professores, com as horas aulas, com a merenda, com as

Jornadas Pedagógicas16, mas não se questiona os porquês e o significado da chamada

“educação de qualidade” a que se propõe gerenciar.

Procurei, até aqui, evidenciar as visões que perpassam na Escola Medianeira através

das falas de membros da equipe diretiva da escola. Nelas pude perceber a visão do

conhecimento como estático e imutável, bem como a noção de que o espaço de sala de aula

é de responsabilidade de cada professor, as metodologias e as práticas pedagógicas são

pessoais. Com a fala de um membro do quadro pedagógico e de psicologia e de alguns

membros do professorado, pude, a meu ver, identificar a forte presença dos discursos de

desqualificação da cultura e da figura do jovem na escola. Estas professoras

responsabilizam-se pela estrutura e funcionamento da escola e suas colocações permitem

entender um pouco de como são trabalhadas as questões na macro-estrutura, como se

efetivam as ações da escola dentro do espaço de liberdade que esta têm na estrutura do

controle educacional constante realizado por instituições externas, como por exemplo a

Secretaria de Educação - RS, as famílias, as editoras, etc.

Proponho-me, a seguir, discutir alguns aspectos das dificuldades dos professores para

questionarem e repensarem o currículo e as visões em que estão implicados.

3.3. Os Saberes dos Professores

16 Essas jornadas são momentos em que os professores são compelidos a se reunir e discutir a educação. No caso da Escola Medianeira, e em muitas outras, o palestrante foi determinado pelo Governo do Estado e a temática das reuniões organizadas a revelia dos interesses dos professores, o que representava para eles um “sacrifício a mais” da sua escolha profissional.

34

Page 28: Trabalho Felipe

As falas dos professores que estão em sala de aula e seus saberes podem propiciar

um entendimento da relação escola-professor, professor-aluno e parte da dinâmica em que

o professor se envolve para exercer a sua cota de liberdade dentro do currículo imposto.

Segundo Tardif e cols., o professor é antes de tudo alguém que sabe alguma

coisa e cuja função é transmitir esse saber, embora, não se reduza a isto, e esse conhecer

não seja uma questão banal como se pode pensar inicialmente. O saber do professor é um

saber plural, composto de tantos outros, que de forma ampla poderia ser dito como os

saberes de sua formação (profissionais, disciplinar, curricular) e o saber da experiência, da

prática de sala de aula. Assim, “o professor padrão é alguém que deve conhecer sua

matéria, sua disciplina e seu programa, que deve possuir certos conhecimentos das

ciências da educação e da pedagogia, sem deixar de desenvolver um saber prático

fundado em sua experiência cotidiana com os alunos.” (Tardif, 1991, p. 221).

Os saberes da formação são exteriores aos professores; são constituídos em

instâncias as que os professores não têm acesso como produtores, portanto são

conhecimentos impostos por seus produtores como os cientistas, os pedagogos, os

governos e as culturas dominantes. Os professores são desautorizados, neste sistema, para

selecionar os saberes, agindo como meros transmissores.

Na sala de aula, onde o currículo de fato se faz, o professor utiliza-se da sua cota

de liberdade enfatizando alguns tópicos em detrimento de outros. Esta prática está

essencialmente vinculada aos saberes da experiência e pouco tem relação com os saberes

de formação ou com referências teóricas. Os saberes de formação quando frente aos

saberes da experiência são questionados. Os professores, de posse dos saberes da prática,

refletem sobre os seus cursos de formação como podemos ver na fala de alguns professores

presente no trabalho de Roque Moraes sobre os cursos de licenciatura:

“No decorrer do curso, poucas vezes tive a atenção despertada pelos

professores de disciplinas técnicas de que estava sendo preparado para ser professor. Não

lembro de aulas em que o conteúdo tenha sido desenvolvido com o objetivo voltado para

o magistério”.

“Avaliando estes anos de minha formação senti que durante o curso não fui

preparado para ser professor, ou melhor, não me preparei para lecionar” (Moraes, 1994).

A descoberta dos limites dos saberes é para o professor uma rejeição de sua

formação anterior e a certeza de que o sucesso só depende dele, professor (Tardif, 1991).

35

Page 29: Trabalho Felipe

Resulta, de alguma maneira, na negação de qualquer saber externo ao da prática, ou que

não esteja de alguma maneira vinculado a ela. Esta, juntamente com a intensificação e

baixa valorização econômica e social do trabalho dos professores, pode ser uma das

prováveis razões pelas quais a pesquisa que realizei na escola não tenha suscitado o

interesse dos professores.

Apesar da minha tentativa de ser considerada pelo corpo docente como professora

titular, ficou claro que a minha docência era incomum, tanto pelo tipo de trabalho quanto

pelo tempo de permanência na escola. Em vista dessa diferença as professoras

autorizavam-se a fazer críticas e colocações, por diversas vezes e sempre que possível,

sobre o que aconteceria quando eu tivesse mais turmas, mais tempo de trabalho, mais

prática:

“tu te envolve tanto porque é novinha, eles vão te enlouquecer”

(professora responsável pela biblioteca, sobre as minhas idas com os alunos para a

biblioteca)

“não existe método capaz de fazer os alunos participarem, eles não

ligam pra nada”(professora de educação física, durante o conselho de classe,

sobre as turmas)

“tu é muito paciente, mas com o tempo vai ver que nada adianta”

(professora de história falando sobre um material de vídeo que eu estava

preparando)

“os alunos estão me enlouquecendo desde que tu entrou, querem sair,

fazer coisas diferentes. Eu não posso fazer isso porque eu tenho várias turmas e

um programa para cumprir” (professora de matemática, sobre as solicitações dos

alunos).

As falas das professoras são autorizadas por suas vivências. São estas vivências

que fazem com que elas provem a si mesmas e aos outros seu conhecimento, seu valor.

Contestar as diferenças talvez seja uma forma de reafirmar seu valor, do “alto” dos seus

longos anos de magistério. Os professores, ao falarem do meu trabalho, questionam as

diferenças e postulam seus saberes, acredito que sem perceberem o quanto esses saberes

são importantes na constituição do currículo, seja para preservá-lo ou para questioná-lo.

Os professores usam a sua prática, a meu ver, para valorizar o seu trabalho, mas

não para validá-lo frente aos saberes estabelecidos. Isto é, parecem não perceber que o

36

Page 30: Trabalho Felipe

trabalho desenvolvido com os alunos dentro de uma instituição escolar é gerador de

saberes específicos, que constituirão a sociedade. Como coloca Ignacio Pozo:

“Cada sociedade, cada cultura gera suas próprias formas de aprendizagem, sua

cultura de aprendizagem. Desta forma a aprendizagem da cultura acaba por conduzir a

uma cultura de aprendizagem determinada. As atividades de aprendizagem devem

entender-se no contexto das demandas sociais que as geram. Não é só que em distintas

culturas se aprendem coisas diferentes, é que as formas ou os processos de aprendizagem

culturalmente relevantes variam”. (Ignacio Pozo, 1996, p. 30 )

Esse modo de intervenção e produção do professor afeta a cultura de

aprendizagem, mas não é legitimado frente a outras instâncias autorizadas a interferir na

cultura escolar. Tem-se, então um ciclo, onde o professor é desautorizado pelos saberes

produzidos externamente à escola, os desautoriza pela sua prática, mas não rompe com eles

ao não expor o saber construído na escola; isentando-se da responsabilidade de lutar pela

legitimação dos seus saberes autoriza o saber instituído e o ciclo recomeça. Talvez, romper

este ciclo seja parte fundamental para os trabalhos de formação continuada de professores

e uma saída para a valorização das culturas que circulam na escola.

A mudança de perspectiva dos professores não é simples, dado que implica numa

mudança na sua formação; nesta os professores universitários sofrem os mesmos

problemas e submetem-se, com pouco ou nenhum questionamento, aos mesmos sistemas

de controle. Como coloca Gimeno Sacristán (1998), o nível e a qualidade das reflexões dos

professores é que permite a possibilidade de que esses intervenham em uns temas ou

outros, uma vez que existam canais de participação. No entanto, são processos de

legitimação historicamente construídos que determinam explícita e implicitamente o papel

passivo do professorado.

No caso do ensino científico, quer na graduação quer na escola básica, o conteúdo

está perpassado pela mesma visão que se tem da própria ciência, vista como “constituída

de verdades científicas que é necessário que as novas gerações assimilem, ou por

transmissão ou por descoberta ou por qualquer outro modelo, para continuarem o

processo” e que “as verdades científicas são independentes da ação do homem, são leis

preexistentes, as quais coube aos cientistas descobrir por sua genialidade e esforço e,

jamais, por interesses internos e externos” (Maldaner, 1996, p. 6).

37

Page 31: Trabalho Felipe

A visão de ciência de senso comum (quase Aristotélica), como coloca e critica

Maldaner, é a ciência que está posta como neutra e descompromissada. Uma implicação

desta noção é a aceitação da neutralidade dos conteúdos que chegam à sala de aula. O

professor acredita que o seu trabalho, por estar vinculado a conceitos cientificamente

aceitos, não sofre influências políticas, econômicas, sociais, culturais, etc.

Por exemplo, ao discutir sobre o que e como trabalhar em função das diferenças

entre os alunos, posso perceber que a noção dos professores de público diferenciado e de

necessidades diferenciadas se dá ao nível de diminuir as exigências. Isto é, o nível de

exigência em testes deve ser menor para que os alunos possam passar ao próximo nível,

mas o conteúdo deve ser o mesmo pois a escola não pode diferenciar-se das outras onde a

“clientela” é diferente, supre-se a “carência intelectual” com a facilitação dos exames e

supre-se a lacuna social oferecendo-se conteúdos equivalentes.

Um professora das turmas onde se realizou a pesquisa ao opinar sobre este

assunto coloca que “os alunos são burrinhos, por isso eu não cobro muito deles” e ao ser

questionada sobre o conteúdo diz que “o conteúdo é o mesmo, eles têm direito de saber o

mesmo que os meus alunos do município sabem”. Embora este seja apenas um depoimento

entre tantos outros, exemplifica claramente a visão de diferenciação e de neutralidade que

os professores têm com relação ao conteúdo e à função escolar e a ciência em última

análise. Uma visão que compromete a autonomia do professor e sua colaboração em

termos de tornar efetivamente mais ativa e mais democrática sua intervenção social.

O professor envolvido em tantos saberes tornou-se um técnico que procura

desempenhar da melhor maneira possível o seu papel de transmissor; mas a compreensão

desta posição pode auxiliá-lo a passar a gerar a sua prática. Giroux ao discutir o papel do

professor, coloca que:

“É importante enfatizar que os professores devem assumir responsabilidade

ativa pelo levantamento de questões sérias acerca do que ensinam, como devem ensinar, e

quais são as metas mais amplas pelas quais estão lutando. Isto significa que eles devem

assumir um papel responsável na formação dos propósitos e condições de escolarização.

... Se acreditarmos que o papel do ensino não pode ser reduzido ao simples

treinamento de habilidades práticas, mas que, em vez disso, envolve a educação de uma

classe de intelectuais vital para o desenvolvimento de uma sociedade livre, então a

categoria de intelectual torna-se uma maneira de unir a finalidade da educação de

professores, escolarização pública e treinamento profissional aos próprios princípios

38

Page 32: Trabalho Felipe

necessários para o desenvolvimento de uma ordem e sociedade democráticas.” (Giroux,

1997, ps.161-162 )

Assumir-se como intelectual é, em última análise, exercer a sua docência de modo

mais efetivo e decisório, posicionar-se em relação ao saber, contextualizando e

direcionando esses saberes em função de sua escola. É, em sua disciplina, procurar tornar

os conteúdos significantes e significativos, buscando conhecer e reconhecer estes em

relação ao todo histórico e social. É pouco provável haver uma mudança sem um profundo

conhecimento que a autorize e esta é mais uma problemática na formação do professor,

que ao não refletir sobre a sua disciplina não “vê” as inter-relações que esta tem com o

todo e não a reestrutura por não pensá-la como passível de mudança.

3.4. O Livro Didático Eleito

O livro didático é um produto de mercado com características muito especiais,

pois diferentemente de outros produtos, antes de chegar a seu público último (o aluno) é

validado e escolhido por outras instâncias (governo, professores) tornando-se, na maioria

dos casos, distante do contexto escolar ao qual irá se destinar. Esse recurso didático

historicamente vêm tendo uma significativa influência nas construções curriculares, ou

melhor, na produção do currículo real e sua percepção na escola. Como já foi colocado,

anteriormente, com a intensificação do trabalho do professor e com as dificuldades que

tornam os saberes de sua prática difíceis de serem gerenciados, os recursos literários são os

refúgios que acabam por definir o trabalho docente.

Ao falar de definição do trabalho do professor mediante o uso do livro didático,

estou colocando que mesmo nos pequenos espaços onde professor pode exercitar uma

liberdade podem ser regulados por materiais como os livros didáticos. O modo como se

estruturam esses livros e como influenciam as salas de aula são parte de uma intrincada

rede de relações entre setores sociais, políticos, econômicos e, é claro, culturais. Com a

finalidade de salientar alguns pontos relativos a esta rede e sistematizar esta discussão,

distingui três momentos: a) como o livro é produzido enquanto produto comercial e como

se dá a sua entrada em sala de aula; b) como é possível controlar a construção curricular

através destes textos, e c) como o conhecimento é trabalhado nos livros didáticos, com

atenção especial ao livro adotado na escola onde se realizou este trabalho.

39

Page 33: Trabalho Felipe

3.4.1. Livro Didático: produto comercial

O livro didático não é apenas um instrumento auxiliar na prática do professor, ele

é um produto comercial que tem, portanto, uma intenção de lucro no seu fabrico. A

trajetória desde a produção até o uso pelo aluno passa pela comercialização, aceitação e

escolha destes livros pelos professores.

Em termos de Brasil, onde a diversidade cultural é enorme, produzir livros

didáticos capazes de assistirem a todas as culturas implica em pesquisar estas culturas e

torná-las evidentes. A realização de pesquisas exige maiores gastos, conseqüentemente é

uma atividade de pouco interesse para o mercado, além disso, evidenciar a cultura implica

em trazer à tona diferenças sociais e raciais, que esbarram em ideologias e interesses que

vão além dos fins lucrativos das relações comerciais. Investir em livros que abordam o

conteúdo “científico” distanciado das realidades locais e que fragmentam essa realidade e a

própria visão de ciência é uma forma de esquivar-se de maiores custos e questões

ideológicas.

Os livros didáticos são responsáveis por um determinado ganho das editoras, para

as quais manter um texto padronizado, com poucas revisões e diferenciações, significa

lucratividade fácil e segura. O processo de padronização dos livros didáticos não é, em

absoluto, apenas uma restrição imposta por sua comercialização: é também um processo

histórico que teve como um dos passos restritivos na produção brasileira os programas

curriculares organizados pelas instituições governamentais. A partir da Lei 5692/71

criaram-se os Guias Curriculares, onde não havia um detalhamento dos conceitos como

nos antigos programas curriculares17, o caráter vago e apenas sugestivo destes Guias,

segundo Franco (1983), representou uma inversão no processo de adoção do livro. Isto é,

após esta legislação os professores passaram a sentir necessidades de materiais mais

diretivos para a estruturação dos seus planos de aula, esta lacuna foi preenchida pelos

editores através dos livros didáticos que estavam de “acordo com os Guias Curriculares”,

mas traziam uma listagem de conteúdos que poderiam ser adotados em cada etapa escolar.

Os livros passam então de auxiliares dos professores a programadores do ensino. Gimeno

Sacristán, explicita muito bem essa questão:

17 Os livros didáticos anteriores a esta lei traziam antes do índice do livro os programas curriculares organizados pelas instituições governamentais com os conteúdos e conceitos que deveriam ser abordados durante cada etapa escolar. Quando da Lei 5692/71, este detalhamento de conceitos foi substituído por sugestões com menor grau de especificidade.

40

Page 34: Trabalho Felipe

“A competência profissional de desenvolver o currículo, em princípio uma das

atribuições verdadeiras do professor, é compartilhada, quando não monopolizada, pelos

mecanismos de produção de materiais que há por trás de um número reduzido de firmas

comerciais. A elaboração do currículo fica assim repartida dentro do sistema educativo

entre diferentes agentes, inclusive nos aspectos estritamente técnico-profissionais. O

caráter inoperante das prescrições curriculares na definição da prática e a debilidade

profissional dos professores farão com que essa distribuição seja desigual e favorável aos

meios tradutores do currículo. Nesse sentido, a desprofissionalização dos docentes é

inevitável nas atuais condições atuais de formação e de trabalho.” (Gimeno Sacristán,

1998, p. 154)

A produção destes livros tem um outro caráter pouco discutido, mas

extremamente importante: a identificação dos organizadores do material e dos textos que

serão veiculados. Quem são os autores destes livros, quais as editoras que dominam este

mercado, quem são os editores e planejadores brasileiros? Apple coloca que a maioria dos

editores americanos começaram o seu trabalho na área de vendas o que enfatiza o quanto

este é um produto de mercado, e note-se que a maioria dos profissionais desta área são

homens18. No Brasil, poucas pesquisas estão direcionadas para a identificação e análise das

relações editoriais internas da produção de livros didáticos. Esta análise engloba mais do

que a classificação em termos da “qualidade do livro didático” e da identificação dos seus

autores, pois aprofunda as ligações entre produto, política de produção e história destas

produções.

Em determinados momentos esta análise das questões de produção que acontecem

internamente parece não ter relação com o conhecimento legitimado nos livros didáticos.

No entanto, muitas idéias que aparecem nestes livros tratam a realidade de maneira

fragmentária, reproduzindo os valores dominantes e consagrados pela sociedade, onde o

macho, adulto, branco são padrões referencial de idealidade.

A discussão do livro como produto de mercado propicia o entendimento do

quanto nossas “escolhas” e decisões estão envolvidas diretamente com a política e a

economia, por mais que os discursos dominantes veiculem a idéia de que esta é uma

18 As questões relativas ao gênero são enfatizadas nos trabalhos de Apple, que identifica diversas características da educação e do trabalho feminino que é representativo desta. Para Apple, a presença masculina nas editoras é responsável pela passagem de diversas formas de dominação e discriminação da mulher presente em alguns textos.

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Page 35: Trabalho Felipe

questão para especialistas, distanciando a nossa prática econômica diária das ações dos

economistas. Como aponta Apple :

“As pressões econômicas e políticas externas não são alguma coisa que está “lá

fora”, localizada em alguma parte de uma vaga abstração denominada economia.

...as relações dominantes são continuamente reconstituídas pelas ações que

empreendemos e pelas decisões que tomamos em nossas próprias e pequenas áreas de

vida locais.” (Apple, 1995, p. 98-99)

No Brasil, com a crescente expansão da rede de ensino básico, principalmente a

partir de 1971, a atenção governamental voltou-se para a criação de programas que

possibilitassem, também, um aumento de oportunidades de acesso ao livro didático,

principalmente por parte de alunos com menor poder aquisitivo (Franco, 1983). Cria-se,

assim, um mercado seguro para editores e autores, onde todos procuram seguir os padrões

de livros aceitos e validados pelo governo. Esse mercado foi, novamente, reforçado pela

criação, em 1984, do Plano Nacional do Livro Didático-PNLD, campanha que destacava

pontos como a possibilidade de indicação pelos docentes de textos a serem adotados e

financiados pela Fundação de Assistência ao Educando-FAE... No entanto, podem ser

questionadas a abrangência e efetividade deste Programa. (Wortmann, 1987, p. 65)

Os livros didáticos deixam de ser adotados e passam a adotar os professores com

poucas alternativas diferenciadas para ampliar as possibilidades de escolhas ou para gerar

questionamentos quanto à possibilidade de fazer diferente.

Na Escola Medianeira, a decisão de escolher o livro didático para utilização em

sala de aula não é exclusiva do professor, faz parte de negociações internas na escola, com

seus colegas, com os supervisores, entre outros.

A “escolha” está limitada entre os livros analisados e aprovados pelo MEC/FAE,

e que fazem parte do PNLD. De posse destas listas e dos exemplares distribuídos

gratuitamente pelas editoras, os professores discutem e argumentam sobre a “qualidade”

dos livros didáticos, usando critérios como textos, ilustrações e exercícios. O conteúdo e a

proposta pedagógica dos materiais não são discutidos, provavelmente por estas questões

estarem asseguradas pela análise do governo e por sua historicidade aceita e estável.

Desta forma, a “escolha” dos professores está subordinada a uma avaliação feita

pelo governo que torna o livro aceitável ou não para pertencer à sala de aula. Cabe-lhe,

42

Page 36: Trabalho Felipe

então, os critérios mais estéticos ao qual as editoras dedicam uma tecnologia responsável

pelas atrações que estes livros podem e devem conter.

Como coloca Apple (1995), “o simples fato de conseguir a inclusão do livro em

uma lista dessas (de aprovação governamental) pode decidir se esse volume vai dar lucro

ou prejuízo”. Sendo assim, é importante em primeiro lugar ser aprovado pelo governo e

depois trazer inovações e qualidade gráfica para concorrer no mercado. Enfatizo a questão

da qualidade gráfica porque os livros didáticos em seu conjunto se parecem muito, são

seleções de conteúdos amplas e abrangentes, com pouca variabilidade para poder atingir

todas as unidades da federação.

3.4.2. O controle através dos textos

Analisar os livros didáticos somente do ponto de vista mercantilista não abrange

outros aspectos da sua influência em sala de aula. Neste sentido é importante entender

como os textos, as gravuras, as noções e conceitos presentes ou ausentes nestas edições são

constituidoras de valores culturais.

O controle dos conteúdos e metodologias realizados por recursos mediadores

como os livros didáticos, se deve, provavelmente, a intensificação e a sistemática

desqualificação dos professores para gerirem sua própria prática e autorizarem-se a escolha

de materiais mais diversificados, como tantos outros textos com informações mais

aprofundadas sobre assuntos que estão presentes no dia a dia dos alunos e que, portanto,

são interessantes para eles. Porém, como os professores estão distantes dos centros de

pesquisa e não existem investimentos contínuos para sua formação após a universidade,

suas aulas seguem os assuntos esquematizados nos livros didáticos, sem um

questionamento crítico de sua contextualização e validade.

Proponho, agora, analisar o livro didático eleito pela escola utilizando alguns

critérios que estão em consonância com o referencial teórico sócio-psicológico abordado

anteriormente e aos quais os professores raramente ou nunca utilizam, provavelmente por

não serem do seu conhecimento19, como os analisados por Alice Lopes(1990) em sua

dissertação de mestrado.

19 Alguns professores de química do Rio Grande do Sul, tiveram oportunidade de discutir esses critérios e utilizá-los para analisar os livros de química para o ensino médio, porém este é um trabalho inovador da Área de Educação Química/UFRGS.

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Page 37: Trabalho Felipe

O livro escolhido pela professora de Ciências, da Escola Medianeira, responsável

pela disciplina no ano anterior foi o “Aprendendo Ciências”, de Demétrio Gowdak e Neide

S. de Mattos, da Editora FTD de São Paulo editado em 1992. Este livro faz parte da lista

do Ministério de Educação e Cultura – MEC, e da Fundação de Assistência ao Educando –

FAE. Ou seja, é um livro considerado bom por estes órgãos.

Numa análise mais geral identifico o que os professores comumente criticam: a

antecipação de conteúdos do ensino médio (Loguercio, 1996). O livro didático em questão

(e grande parte dos demais) apresenta uma abordagem resumida e esquemática de todo o

conteúdo de química e física abordado no primeiro ano do ensino médio. Devido a esse

caráter, não aborda os conceitos de forma ampla e não utiliza recursos diversificados para

auxiliar na aprendizagem dos alunos nestes conceitos. Os exercícios que visam

complementar o entendimento dos conceitos têm relação apenas com o texto

imediatamente anterior, sem considerar os outros conteúdos abordados anteriormente no

próprio livro, reduzindo-se a exercícios essencialmente de memorização ou de

operacionalização.

Com relação ao conteúdo não são comuns erros conceituais, os problemas são as

antecipações e a superficialidade de cada tópico, bem como a linguagem técnica sem uma

referência à origem e o significado dos termos. A partir dos estudos educacionais que têm

por base os trabalhos de Piaget, que propõe uma adequação dos conteúdos à capacidade

cognitiva do aluno, percebe-se que o livro privilegia uma abordagem dos conteúdos

essencialmente formal, desconsiderando as necessidades dos alunos de uma adequação

destes conceitos à sua estrutura cognitiva.

Os conhecimentos implícitos dos alunos não são considerados e não aparecem no

texto sugestões de atividades que possam evidenciá-los e validá-los. Essa perspectiva ao

considerar o aluno “vazio” intelectualmente, invalida seus processos de produção de

conceitos e a possibilidade da existência de uma zona de trabalho onde o professor

considere o conhecimento atual e as possibilidades de aprofundamento deste conhecimento

para auxiliar no entendimento e na avaliação dos alunos, como propõe os estudos de

Vygotsky.

44

Page 38: Trabalho Felipe

No livro didático, adotado pela escola, aparecem experiências que ilustram os

fenômenos, algumas potencialmente perigosas sem uma discussão dos seus riscos e dos

cuidados que devem ser tomados quando da realização destas atividades experimentais.

(Figura 1)

Figura 1: Exemplo de uma experiência potencialmente perigosa (Gowdak, 1992, p. 51)

Neste livro são utilizados recursos que evidenciam o que é “importante” em cada

tópico através de caixas de textos. Nestas são colocados resumos e fórmulas suficientes

para resolver os exercícios propostos. Este tipo de recurso pedagógico ao invés de enfatizar

as relações que são necessárias entre os conteúdos e o cotidiano do aluno enfatiza, na

maioria das vezes, os produtos de teorias, como as fórmulas. (Figura 2)

Um outro tipo de análise refere-se a existência de obstáculos epistemológicos

presentes nos textos, Alice Lopes(1990) utiliza algumas categorias de obstáculos

epistemológicos de concepção bachelariana para analisar recursos utilizados nos livros

didáticos e demonstra algumas construções que podem estar relacionadas a esses

obstáculos. Neste livro em particular, é possível identificar obstáculos realistas, quando o

ato de conhecer se confunde ao de descrever propriedades (Figura 3). Este tipo de recurso

realista aparece principalmente nas questões relativas à estrutura atômica, onde se tenta

tornar visível o que só é compreendido dentro do racionalismo aplicado (Lopes, 1990).

Como coloca Bachelard, o conhecimento não está no objeto, mas exige consecutivas

A decomposição do óxido de mercúrio (HgO) sob ação:

2 HgO calor 2 Hg + O2

óxido de mercúrio mercúrio gás oxigênio

O óxido de mercúrio, quando aquecido, libera oxigênio e deposita mercúrio na parede do tubo, que aparece sob a forma de gotículas cinzentas de brilho metálico

45

óxido de mercúrio

mercúrio

oxigênio

água

Page 39: Trabalho Felipe

ratificações dos dados primeiros sendo o vetor epistemológico dirigido do racional ao real

(por Lopes, 1990).

Figura 2: Exemplo de caixas de texto presentes no livro

Outro aspecto são as relações sociais que aparecem no livro didático, por mim

analisadas através das figuras, pois uma análise do texto seria mais demorada e para o que

me proponho não é extremamente relevante.

Existem 69 figuras humanas no texto, destas apenas uma é de uma pessoa que não

é branca e que está sendo nocauteada por um homem branco (Figura 4). Em quatro figuras

aparecem mulheres que estão empurrando carrinhos de compra, pintando as unhas,

passando roupa e catando lixo. Os trabalhos realizados fora de casa são feito por homens e

não são trabalhos intelectuais. Os homens sempre trabalham em construção civil. Os

Da análise da tabela, conclui-se que não se pode usar o número de nêutrons para dar nome a um átomo, visto que átomos de mesmo nome pode ter número de nêutrons diferente e átomos de nome diferentes podem ter número de nêutrons igual.

Para identificar um tipo de átomo, o número de neutrons não é importante; eles só contribuem para a massa do átomo. São os própons que dão a identidade do átomo.

A quantidade de prótons do átomo é o número atômico, simbolizado pela letra Z. Todos os átomos de um mesmo tipo têm número atômico igual.

Átomos de mesmo número atômico designam um mesmo elemento químico. Portanto, cada tipo diferente de átomo é um elemento químico.

Os elementos químicos encontrados na natureza têm Z variando de 1 a 92. Artificialmente, a partir de 1942, foram obtidos elementos com Z maior que 92. Atualmente o elemento de maior número atômico é o de Z = 110, designado Uun (Un-un-nilium).

O número de massa de um átomo corresponde à soma de prótons e nêutrons, pois a massa dos elétrons é desprezível. O número de massa é representado pela letra A

46

Número atômico (Z) = número de prótons

Número de massa (A) = soma dos prótons e nêutrons

Page 40: Trabalho Felipe

esportes nas ilustrações são praticados por pessoas jovens e alguns são esportes típicos de

pessoas com maior poder aquisitivo, como o esqui na neve e as regatas. Não existem

figuras esportivas de mulheres, mas uma destas figuras mostra uma menina jogando tênis

de praia. Uma fotografia, que cabe destacar, aparecem mulheres e negros numa usina de

reciclagem de lixo

Figura 3: Figura do livro texto onde são descritas propriedades dos indicadores e das funções.

Estas observações constituem uma visão estereotipada das relações sociais e

culturais, onde as mulheres ocupam, apenas,

a posição de consumidoras no mercado de

trabalho e os não brancos são discriminados,

seja pelo tipo de atividade que aparecem

realizando, seja por sua situação frente ao

branco - nocaute. Num país com tamanha

diversidade racial, aparecer apenas uma

ilustração de pessoa não branca é no mínimo

divorciada da realidade. Figura 4: Pessoa em nocaute

Estes recursos visuais existentes nos textos, posso dizer que são

caracteristicamente os que demonstram as noções de cultura e sociedade dos autores e

produtores dos livros. Algumas figuras são colocadas somente com fins ilustrativos e

Substâncias indicadoras mudam de cor em presença de uma base. Um exemplo de indicador é a fenolftaleína, que fica incolor na presença de ácidos e vermelha na presença de bases.

Outro indicador muito usado é o papel de tornassol. Os ácidos mudam o papel de tornassol de azul para vermelho. As bases mudam o papel de tornassol de vermelho para azul.

47

Page 41: Trabalho Felipe

outras com a intenção de salientar os ‘aspectos fundamentais’ de cada conceito. Essas

figuras são em sua maioria simplificações e reduções dos conceitos trabalhados e

descontextualizadas da realidade brasileira e da Escola Medianeira onde o livro deveria ter

sido trabalhado. Como é o caso das figuras que mostram esportes, em uma delas pode-se

ver esquiadores do gelo, o que denota a força da cultura européia na nossa tradição escolar.

Cabe perguntar onde está o futebol, o vôlei, a bocha? As culturas locais, o nativismo, os

pampas, os rios gaúchos e a diversidade cultural do nosso povo, como os imigrantes e seus

descendentes? Se este livro está sendo utilizado por adolescentes gaúchos, por que a

discussão sobre a poluição dos rios só discute o rio Tietê e não o Guaíba, o Lami, etc.

De forma pouco contestada, estes “pacotes” da realidade são apresentados a

professores e alunos perpetuando noções próprias das culturas dominantes em detrimento

das demais culturas locais.

Uma outra questão é a visão de ciência e de cientista divulgada pelos livros

didáticos, onde o cientista é um ser genial que interroga a realidade e constrói leis e teorias

a seu respeito. Os textos históricos, raros nos livros didáticos, quando estão presentes

centralizam a figura de uma única pessoa desconsiderando todo o processo de produção e

validação das teorias, bem como os interesses que as autorizam ou não em determinados

períodos. Proporcionam uma noção de que caso os planos sejam seguidos a risca será

impossível não desvendar a “verdade” da natureza, veiculando uma noção da ciência que

faz professores e alunos acreditarem numa realidade exterior ao homem e que está pronta

para ser descoberta. Não está presente nos textos a historicidade das construções científicas

e a subjetividade que permeia as suas construções, dado que são construções humanas.

Embora neste livro não apareça os já comuns desenhos de cientistas malucos com aventais

brancos e cabelos em desalinho, a falta de textos (característica do currículo oculto) que

historiciem e relativizem os conhecimentos científicos pode passar essa idéia de verdade

que é conferida às colocações científicas.

Os projetos escolares que enfatizam a experimentação seguem o mesmo princípio

positivista que é apregoado nestes textos, e dificilmente são acompanhados de reflexões

sobre como estas práticas podem ser interpretadas de maneiras diferentes em função dos

conhecimentos prévios a elas. Segundo Maldaner (1996), em nenhum momento os livros

didáticos analisados põem o aluno na situação de, frente a um conjunto de informações,

relacioná-las e produzir um conhecimento novo. Isso, que é básico nas ciências, está

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impossibilitado de se realizar. São dadas informações prontas, fechadas, sem relação com o

processo histórico em que surgiram e de uma forma dogmática.

O distanciamento deste estereótipo de cientista da realidade das pessoas comuns,

entre elas as que freqüentam a escola, é suficiente para tornar a ciência própria dos

“sabedores”, afastando o interesse dos alunos na busca de suas próprias abstrações e

teorias. Como salienta Hodson (1994), é pouco provável que os estudantes aceitem

favoravelmente o distanciamento da vida real e a aparente supressão da individualidade

ressaltada pelo ideal estereotipado das atitudes científicas.

Embora se possa argumentar que grande parte do corpo docente não adota livro

texto como obrigatório para a utilização dos alunos, é inegável que estes estão presentes

em sala de aula, pois são utilizados como organizadores da prática e do currículo

estruturado. A influência destes textos é tão significativa que, segundo Apple:

“Estima-se, por exemplo, que 75% do tempo dos estudantes de escolas

elementares e secundárias em sala de aula, além de 90% do tempo dedicado ao estudo em

casa, é gasto com os materiais apresentados pelos livros didáticos. Entretanto, apesar do

caráter ubíquo (onipresente) dos livros didáticos, eles constituem uma das coisas sobre as

quais menos sabemos. Embora os textos dominem os currículos nos níveis elementar,

Secundário e até mesmo superior, muita pouca atenção crítica vem sendo dada às fontes

ideológicas, políticas e econômicas de sua produção, distribuição e recepção.

Enquanto os textos dominarem os currículos, ignorá-los como não sendo dignos

de uma séria atenção ou de uma luta política é viver em um mundo divorciado da

realidade” (Apple, 1995, p. 85).

As críticas contundentes ao livro didático não ignoram o seu papel com objeto de

consulta em sala de aula, mas enquanto não houver vontade política que incentive os

professores a continuarem a sua formação e a analisarem mais criteriosamente as suas

escolhas é importante o papel que fazem materiais e os livros didáticos alternativos20

produzidos em pequenas quantidades e que, em sua maioria, estão baseados em projetos de

pesquisa ou nas realidades locais. Estes recursos, como coloca Gimeno Sacristán (1998),

quebram o monopólio dos livros-textos padrão; não eliminam a dependência, mas esta

dependência já está em outro nível de qualidade.

20 Livros didáticos alternativos são definidos aqui como àqueles produzidos em pequenas editoras ou por grupos de pesquisa e que não atingem o mercado editorial em grande escala.

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Uma política comum entre os produtores de livros didáticos é a de incorporar aos

seus livros padrões as inovações realizadas por pesquisas e mudanças na sociedade. Isto se

deve a fatores de ordem econômica e de ordem de controle curricular. Enquanto

importância econômica, é interessante que se coloque no mercado livros com novidades,

isto valoriza os livros didáticos e faz com que aqueles utilizados anteriormente se tornem

fora de “moda’, aumentando o consumo. Enquanto controle do currículo, é importante que

se incorpore noções mais atualizadas em termos pedagógicos, pois a negação destas noções

pode abrir espaço para uma liberdade maior de pensamento dos professores e a busca de

materiais que preencham a lacuna deixada pelos livros didáticos.

Um exemplo recente destas inovações são as incorporações de assuntos do dia a

dia nos livros didáticos, como forma de contextualização dos conteúdos escolares com a

vida “fora da escola”. A maioria destes assuntos são apenas ilustrativos, não possibilitam

um questionamento mais aprofundado e, tampouco, estão diretamente implicados na

construção dos conceitos aos quais se relacionam. São ilustrações, que tornam o produto

mais caro, com um aspecto inovador, mas continuam trazendo o mesmo tratamento do

conhecimento trabalhado nos textos anteriores.

No sentido de mudanças radicais não se pode esquecer que, como coloca Gimeno

Sacristán:

“Um livro texto que se estendesse no desenvolvimento dos tópicos que abrange

com informações diversas, abordando os temas de diferentes pontos de vista,

contextualizando os conhecimentos, estendendo-se no desenvolvimentos dos mesmos,

analisando aplicações e conseqüências, exemplificando conceitos, fatos princípios e

teorias que aborda, ilustrando-os graficamente, etc., trabalhando-os através de atividades

muito diversificadas, formaria um volume inabarcável e caro. Algo impossível para um

livro de custo moderado e caducidade anual.” (Gimeno Sacristán, 1998, p. 152)

Uma alternativa mais interessante é justamente a diversidade de textos que estão

disponíveis no mercado comum21 e que, às vezes, trazem o conhecimento de forma mais

dinâmica e atualizada e que por não pertencerem a lista dos eleitos os professores não

costumam adotar.

21 Refiro-me a mercado comum, como sendo o que se destina ao público não exclusivamente escolar, como é o caso dos textos produzidos por revistas, ONGs, fitas de vídeo, etc.

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