Post on 10-May-2022
unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
ldquoJUacuteLIO DE MESQUITA FILHOrdquo Faculdade de Ciecircncias e Letras
Cacircmpus de Araraquara - SP
Thalita Morato Ferreira
A Roda de Virgiacutelio um estudo da figuratividade
na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica
ARARAQUARA ndash SP 2020
Thalita Morato Ferreira
A Roda de Virgiacutelio um estudo da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras ndash UnespAraraquara como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Letras Linha de pesquisa Relaccedilotildees Intersemioacuteticas
Orientador Prof Dr Maacutercio N Thamos
ARARAQUARA ndash SP
2020
Ferreira Thalita Morato
A Roda de Virgiacutelio um estudo da figuratividade na
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Thalita Morato
Ferreira mdash 2020
168 f
Tese (Doutorado em Estudos Literaacuterios) mdash
Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita
Filho Faculdade de Ciecircncias e Letras (Campus
Araraquara)
Orientador Maacutercio Thamos
1 Virgiacutelio 2 Figuratividade 3 Semioacutetica
Literaacuteria I Tiacutetulo
Thalita Morato Ferreira
A RODA DE VIRGIacuteLIO um estudo da figuratividade na
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras ndash UNESPAraraquara como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Letras Linha de pesquisa Relaccedilotildees Intersemioacuteticas Orientador Prof Dr Maacutercio N Thamos
Data da defesa 30042020
MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA
Presidente e Orientador Prof Dr MAacuteRCIO THAMOS - Orientador Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias
e Letras de Araraquara
Membro Titular Prof Dr BRUNNO VINICIUS GONCcedilALVES VIEIRA Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias
e Letras de Araraquara
Membro Titular Prof Dr ALEXANDRE SILVEIRA CAMPOS Departamento de Letras Modernas UNESP - Faculdade de Ciecircncias e Letras de Araraquara
Membro Titular Profa Dra ELAINE CRISTINA PRADO DOS SANTOS Centro de Comunicaccedilatildeo e Letras Universidade Presbiteriana Mackenzie
Membro Titular Profa Dra PATRIacuteCIA PRATA Departamento de Linguiacutestica Universidade Estadual de Campinas Local Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciecircncias e Letras UNESP ndash Cacircmpus de Araraquara
Para Luis Carlos Dhara e Theo que me ensinam todos os dias que viver eacute ir
tecendo naturalmente a trama da nossa histoacuteria
AGRADECIMENTOS
ldquoUm galo sozinho natildeo tece uma manhatilderdquo
Ao meu orientador Prof Dr Maacutercio Thamos quem me ensinou que Virgiacutelio noacutes natildeo
o descobrimos noacutes o merecemos agradeccedilo por ter acompanhado minha pesquisa
desde a Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica pela amizade e minha formaccedilatildeo acadecircmica poeacutetica e
humana
Agrave Profa Dra Ude Baldan e ao Prof Dr Brunno Vieira agradeccedilo pela leitura generosa
do meu trabalho e pelas valiosas contribuiccedilotildees em minha banca de qualificaccedilatildeo bem
como pela minha formaccedilatildeo
Ao meu esposo Luis Carlos Malimpensa que me incentivou a cada momento
agradeccedilo pelo amor companheirismo e por ter me encorajado a natildeo desistir do
caminho
Agrave Dhara minha filha que nasceu em 2018 trazendo vida nova e sadia agradeccedilo pelo
despertar e pela poesia do maternar
Ao Theo meu novo bebecirc que estaacute a caminho e completaraacute a poesia da nossa famiacutelia
Agrave madrinha Edna Batistela que cuidou da minha famiacutelia enquanto eu natildeo podia todo
o meu carinho amor e o meu afeto constante
Aos meus pais Joseacute de Arauacutejo Ferreira e Antonieta Morato do Amaral Ferreira
agradeccedilo pela vida amor e sincero apoio e tambeacutem ao meu irmatildeo Carlos Eduardo
pelo apoio e amizade
Agrave Camila Sabino que me auxiliou na leitura de artigos em inglecircs agradeccedilo pela
amizade e carinho
Agrave Unesp pelo compromisso e por ter me dado a chance e todas as ferramentas que
me permitiram chegar hoje ao final desse ciclo de maneira satisfatoacuteria
E por fim mas natildeo menos importante aos Orixaacutes que clareiam nossos caminhos
A todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formaccedilatildeo o meu muito
obrigado
O primado da forma o que significa eacute que por exemplo a poesia de Virgiacutelio eacute a porccedilatildeo da substacircncia Roma que a forma de Virgiacutelio o seu hexacircmetro recorta e
exprime Sem o hexacircmetro de Virgiacutelio Roma eacute histoacuteria civilizaccedilatildeo liacutengua latina metrificaccedilatildeo ateacute mas natildeo poema pelo menos natildeo como o lemos nas Bucoacutelicas e
na Eneida Alceu Dias Lima (1992 p 14)
RESUMO
O presente trabalho procura investigar a manifestaccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs
obras de Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Pretende-se por meio da
Semioacutetica Literaacuteria analisar os excertos das obras do ponto de vista da expressatildeo
com destaque para a vocaccedilatildeo imageacutetica dos textos a sua figuratividade Aleacutem disso
o trabalho debruccedila-se sobre o conceito de estilo ao investigar na chamada Roda de
Virgiacutelio os trecircs tipos de estilo descritos pela Retoacuterica Antiga a saber o estilo singelo
o estilo meacutedio e o estilo grandiloquente Trata-se de um esquema circular tripartido do
seacuteculo XIII que apresenta as Bucoacutelicas no estilo singelo as Geoacutergicas no meacutedio e a
Eneida no grandiloquente Com isso o esquema da Roda compreende para cada
texto virgiliano um cenaacuterio representativo diferente com diferentes caracteres O
presente estudo procura assim ampliar a compreensatildeo acerca dos trecircs estilos ao
entendecirc-los como efeitos de sentido engendrados nos textos ou seja como
especiacuteficos efeitos sugestionados nas obras a partir da predominacircncia de um
tratamento temaacutetico seguido de sua isotopia figurativa Apresentamos ainda uma
traduccedilatildeo dos excertos virgilianos aqui destacados para anaacutelise A pesquisa eacute um
estudo sobre a estrutura poeacutetica das obras virgilianas com destaque portanto para
a presenccedila da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica
Palavras-chave Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida Figuratividade Semioacutetica
ABSTRACT
The present study seeks to investigate the figurative manifestation in excerpts of
Virgilrsquos three works the Eclogues the Georgics and the Aeneid It is intended through
Literary Semiotics to analyze the excerpts of the works from the point of view of
expression with emphasis on the imagery vocation of the texts their figurativity In
addition the work focuses on the concept of style by investigating in the so-called
Virgils Wheel the three types of style described by Ancient Rhetoric namely the
simple style the medium style and the grandiloquent style It is a circular tripartite
scheme from the 13th century that presents the Eclogues in simple style the Georgics
in the middle and the Aeneid in the grandiloquent Thus the scheme of the Wheel
comprises a different representative scenario for each Virgilian text with different
characters The present study thus seeks to increase the understanding of the three
styles to understand them as meaning effects engendered in the texts that is as
specific effects suggested in the works from the predominance of a thematic treatment
followed by their figurative isotopy We also present a translation of the Virgilian
excerpts highlighted here for analysis The research is a study on the poetic structure
of Virgilian works with emphasis therefore on the presence of figurativity in bucolic
didactic and epic poetry
Keywords Eclogues Georgics Aeneid Figurativity Semiotics
Lista de Figuras e Tabelas
Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo IIIp 10
Figura 2 ndash A Roda Virgiliana p 11
Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia p27
Figura 4 ndash A Roda de Virgiacuteliop30
Figura 5 ndash Mopso e Menalcasp 75
Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnusp 91
Tabela 1 ndash The spokes of Virgilrsquos Wheelp 44
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 13
1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica 22
2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente 33
3 A criacutetica virgiliana46
31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da
Eneida46
32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho 53
4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto57
41 Textos temaacuteticos e figurativos57
42 A figuratividade e a leitura do poeacutetico 69
5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises
51 BUCOacuteLICA V ndash Mopso e Menalcas os pastores cantadores75
52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo81
53 Figuratividade na Bucoacutelica V ndash anaacutelise do texto86
54 GEOacuteRGICAS Canto IV (1-115) ndash descriccedilatildeo do lugar adequado para as
abelhas 99
55 Geoacutergicas Canto IV (1-115) Traduccedilatildeo e notas104
56 Figuratividade no Canto IV (1-115) ndash anaacutelise do texto 108
57 ENEIDA Canto VIII (612-731) ndash Eneias e as armas de guerra 121
58 Traduccedilatildeo e notas do Canto VIII (612-731)125
59 Figuratividade no Canto VIII (612-731) ndash anaacutelise do texto 131
6 Consideraccedilotildees Finais 149
Bibliografia 156
Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III
Fonte PEREIRA Maria H da R 2002 p 247
Figura 2 - A Roda Virgiliana
Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p592
Um claacutessico eacute um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha
para dizer (2007 p11)
Os claacutessicos satildeo livros que quanto mais pensamos conhecer por
ouvir dizer quando satildeo lidos de fato mais se revelam novos inesperados
ineacuteditos (2007 p 12)
[] os claacutessicos natildeo satildeo lidos por dever ou por respeito mas soacute por
amor (2007 p 12-13)
Italo Calvino (2007)
13
Introduccedilatildeo
Publius Vergilius Maro nasceu no ano 70 aC em Andes aldeia proacutexima a
Macircntua sob o primeiro consulado de Liciacutenio Crasso e de Pompeu Magno O poeta
deixou-nos trecircs grandes obras as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Seus textos
estatildeo entre os manuscritos (seacutecs II-III dC) mais antigos que possuiacutemos em papiro na
corrente de difusatildeo da Cultura Claacutessica
As fontes baacutesicas para a biografia do poeta satildeo os comentaacuterios de Valeacuterio
Probo (seacutec I dC) Donato (seacutec IV dC) Seacutervio (seacutec IV dC) Juacutenio Filargiacuterio (seacutec V
dC) e a Vita em verso do gramaacutetico Focas mais tardia e incompleta (seacutec IX) No
livro De poetis Suetocircnio (seacutec I dC) menciona a biografia de Virgiacutelio (Vita Vergilii) que
foi conservada graccedilas a Donato que a reproduziu em seu Comentarium ad Vergilium
O poeta morreu em 19 aC em Brindisi e seu corpo foi transportado para
Naacutepoles sendo sepultado em uma gruta proacutexima agrave estrada de Puteacuteolos1 Todos os
bioacutegrafos citam um diacutestico que o poeta teria supostamente redigido a si proacuteprio
Mantua me genuit Calabri rapuere tenet nunc Parthenope cecini pascua rura duces2
Macircntua me gerou na Calaacutebria arrebataram-me agora me tem o Partecircnope3 cantei as pastagens os campos e os heroacuteis
Segundo Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 30) a veneraccedilatildeo ao poeta comeccedilou
logo apoacutes sua morte Siacutelio Itaacutelico (26-101 dC) por exemplo em seu poema eacutepico
acerca da segunda guerra puacutenica (Punica) imitou de Virgiacutelio o estilo os episoacutedios o
maravilhoso mitoloacutegico e ateacute os recursos do gecircnero Aleacutem disso Eacutelio Lampriacutedio (seacutec
IV dC) um dos escritores da Histoacuteria Augusta conta que Alexandre Severo4 tinha no
palaacutecio a imagem de Virgiacutelio a quem chamava de ldquoPlatatildeo dos poetasrdquo na mesma
1 Atualmente Pozzuoli proviacutencia de Napoacuteles Era conhecida como Puteacuteolos no Periacuteodo Romano 2O termo ldquopascuardquo pastagens refere-se agraves Bucoacutelicas ldquorurardquo campos cultivadosrdquo agraves Geoacutergicas ldquoducesrdquo chefes ou heroacuteis agrave Eneida 3 Partecircnope eacute o nome poeacutetico da cidade de Naacutepoles Na mitologia conta-se que Partecircnope lanccedilou-se
ao mar com suas irmatildes sereias e as ondas atiraram seu corpo para as margens de Naacutepoles onde lhe foi erigido um monumento (cf GRIMAL 2014 p 357) Nos versos finais das Geoacutergicas Canto IV (hex 563-564) Virgiacutelio assim afirma Illo Vergilium me tempore dulcis alebatParthenope studiis florentem ignobilis oti ldquoNaquele tempo a doce Partecircnope nutria a mim Virgiacutelio que nos esforccedilos de um obscuro oacutecio floresciardquo 4 Alexandre Severo (222-235 dC) uacuteltimo imperador da Dinastiacutea Severa em Roma
14
galeria de Aquiles Ciacutecero e outros nomes ilustres Vale ressaltar tambeacutem que as
escavaccedilotildees arqueoloacutegicas de Pompeia forneceram ateacute hoje cerca de sessenta
grafitos virgilianos e uma quinzena deles eacute de citaccedilotildees ou reminiscecircncias das
Bucoacutelicas Segundo Mendes (1997 p 43) as Bucoacutelicas faziam parte da vida dos
habitantes de Pompeia pois os grafitos aparecem nos peristilos poacuterticos e muros
Enrico Rostagni (1931 p 5) assim exprime a benignidade do tempo para com a obra
de Virgiacutelio
AL MASSIMO POETA della Romanitagrave il tempo egrave stato in certo qual modo benigno perchegrave del texto delle sue Opere permise che ci giungessero esemplari insigni per lrsquoantichitagrave veneranda della scritura la quale nella sua maestagrave riflette per cosigrave dire la maestagrave del Poeta e della Gente per cui egli aveva cantato
A vitalidade das obras de Virgiacutelio eacute patente pelo modo como os seus principais
temas e enredos inspiraram e ainda inspiram poetas e demais artistas Mendes (1997
p 42) questiona-se acerca do valor dessa obra de arte para assim perdurar na
memoacuteria e nas matildeos de geraccedilotildees Ele entatildeo afirma que ldquouma obra literaacuteria impotildee-se
e permanece por sua concepccedilatildeo e novidade de conteuacutedo aliadas ao primor de
execuccedilatildeordquo
Como bem aponta-nos Joseph Brodsky (1994 p 97) poeta e criacutetico russo ldquoA
biografia dos poetas estaacute em suas vogais e sibilantes em sua meacutetrica suas rimas e
metaacuteforasrdquo e assim acreditamos que Virgiacutelio revive sempre em cada leitor aacutevido e
maravilhado pelas paacuteginas de indefiniacutevel Beleza As Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a
Eneida renascem constantemente naquele que mergulha em suas linhas e entrelinhas
(SANTOS 2007 p73)
Das obras virgilianas sabemos que a coleccedilatildeo de dez poemas pastoris que a
tradiccedilatildeo de estudos claacutessicos conhece sob o tiacutetulo de Bucoacutelicas foi composta
aproximadamente entre 42 e 37 aC Nesta obra ao buscar motivos nos Idiacutelios de
Teoacutecrito (310 ndash 250 aC) poeta siracusano de destaque no Periacuteodo Heleniacutestico
Virgiacutelio cria cenaacuterios e personagens campestres valendo-se de uma linguagem
repleta de elementos figurativos
As Geoacutergicas foram escritas entre 37 e 29 aC logo apoacutes as Bucoacutelicas A obra
configura-se de acordo com a tradiccedilatildeo claacutessica como um poema didaacutetico e eacute
composta por quatro livros (ou cantos) A obra traz como tema a terra e os encantos
da vida rural apresentando uma seacuterie de ensinamentos relacionados aos trabalhos
15
no campo No primeiro livro apresenta-se a lavoura no segundo a arboricultura
sobretudo a viticultura no terceiro a pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no
quarto a apicultura
Escrita entre 29 e 19 aC a Eneida eacute a eacutepica virgiliana Com doze livros (ou
cantos) a obra eacute considerada pela tradiccedilatildeo como um poema histoacuterico e mitoloacutegico
Ao colocar em cena os feitos de Eneias o filho protegido da deusa Vecircnus e o
responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino Virgiacutelio
trama um conjunto de situaccedilotildees e narrativas que propiciaram a fundaccedilatildeo de Roma
Pensando-se nos versos de Virgiacutelio eacute oportuno afirmar que sua poesia teve a
virtude de perpetuar-se e de registrar um povo e um momento da fala desse povo Ao
reconhecer o poeacutetico presente em suas obras compreendemos um fato de linguagem
com valor humano e portanto universal
Virgiacutelio como se sabe valeu-se do hexacircmetro datiacutelico como molde em suas
composiccedilotildees Este tipo de verso jaacute havia sido utilizado por Homero na produccedilatildeo da
Iliacuteada e da Odisseia O emprego do hexacircmetro nos poemas eacutepicos estendeu-se
tambeacutem agrave poesia didaacutetica com Hesiacuteodo e tambeacutem agrave poesia pastoril com Teoacutecrito
Adaptado agrave Literatura Latina o hexacircmetro datiacutelico foi escolhido por Virgiacutelio no texto
das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida
Sendo o hexacircmetro datiacutelico o uacutenico metro usado por Virgiacutelio em suas
composiccedilotildees cabe-nos mencionar suas especificaccedilotildees Natildeo se trata de um verso
com um nuacutemero fixo de siacutelabas pois em certos pontos uma vogal longa pode
substituir duas breves Na formaccedilatildeo de versos latinos natildeo satildeo as siacutelabas que satildeo
submetidas agrave regularidade meacutetrica mas sim o tempo nelas incorporado Logo intui-
se que o ritmo eacute determinado por um arranjo preciso entre siacutelabas de diferente
duraccedilatildeo Os vinte e quatro tempos de um hexacircmetro estatildeo reagrupados em seis
subunidades de quatro tempos Cada uma delas chamadas peacutes estatildeo enfileiradas
uma apoacutes a outra do primeiro ao sexto peacute na linha do hexacircmetro Trecircs satildeo os tipos
de peacutes meacutetricos o daacutetilo o espondeu e o troqueu
O daacutetilo eacute formado de duas partes a primeira representa os dois primeiros
tempos do peacute realizados sobre uma uacutenica siacutelaba que eacute marcada pela vogal longa A
segunda parte traz os dois uacuteltimos tempos do peacute realizados cada um sobre uma
siacutelaba sendo cada siacutelaba marcada por uma vogal breve O daacutetilo eacute representado por
( ˉ ˘ ˘ )
16
O espondeu tambeacutem eacute formado por duas partes Cada parte diferentemente
do daacutetilo eacute formada por duas siacutelabas longas O espondeu eacute graficamente
representado por ( ˉ ˉ )
A segunda parte de um daacutetilo marcada por duas vogais breves ( ˘ ˘) pode ser
substituiacuteda no verso por uma vogal longa pois uma vogal longa equivale a duas
breves Mas na praacutetica soacute os primeiros quatro peacutes do hexacircmetro podem ser
substituiacutedos por equivalentes espondeus pois o quinto peacute eacute normalmente um daacutetilo
que garante a base para que o verso seja chamado datiacutelico Quanto ao uacuteltimo ou seja
o sexto peacute chamado troqueu eacute constituiacutedo de duas siacutelabas A primeira eacute longa e a
segunda pode ser longa ou breve O uacuteltimo peacute eacute representado por ( ˉ ˘_)
Segundo Joatildeo Batista Toledo Prado (2012 p 109)
Para a consecuccedilatildeo do ritmo verbal no verso por exemplo num hexacircmetro datiacutelico (um verso de seis peacutes meacutetricos compostos ao menos idealmente por seis daacutetilos ou seja por sequecircncias trissilaacutebicas em que a primeira siacutelaba eacute longa e as duas outras que se lhe seguem satildeo breves) um daacutetilo poderaacute ser substituiacutedo em certas posiccedilotildees por um espondeu (peacute dissilaacutebico com ambas as siacutelabas longas)
Aleacutem disso a siacutelaba final que atua como pontuaccedilatildeo do verso eacute
fonologicamente neutralizada de tal forma que como se sabe o uacuteltimo peacute de um
hexacircmetro seraacute sempre um dissiacutelabo espondaico (quatro tempos) ou trocaico (trecircs
tempos) (PRADO 1997 p 171-172)
Com isso resulta o esquema geral do hexacircmetro
ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘
1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm
ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˘ ˘ ˉ ˉ
1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm
Acrescentaram-se na Antiguidade agraves trecircs obras canocircnicas de Virgiacutelio alguns
textos que hoje satildeo em sua maioria tidos como apoacutecrifos e considerados de autoria
duvidosa ou controversa pelos estudiosos Foi feita uma compilaccedilatildeo desses textos no
17
ano de 1572 com o tiacutetulo de Appendix Vergiliana pelo humanista francecircs J J
Escaliacutegero (1540 ndash 1609) No seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX vaacuterios estudiosos tais
como Rand (1919) e Frank (1930) afirmavam que os textos presentes na Appendix
Vergiliana eram todos (ou quase todos) da autoria de Virgiacutelio e passaram a consideraacute-
los como parte de um processo poeacutetico que culminaria nas trecircs obras consagradas do
poeta Mas em contrapartida tambeacutem havia nessa mesma eacutepoca quem apresentasse
um ponto de vista que se aproxima mais do consenso atual sobre a questatildeo ou seja
o de negar a autoria virgiliana dos textos presentes na Appendix O que vale destacar
para aleacutem da autoria destes textos eacute que as obras presentes na Appendix Vergiliana
constituem um material vasto e ainda pouco explorado
O presente trabalho procura focar assim nas trecircs principais produccedilotildees de
Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Ao investigar a manifestaccedilatildeo figurativa
presente em excertos representativos das trecircs obras procuramos destacar alguns dos
recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico de cada texto Os
excertos escolhidos satildeo representativos na medida em que alicerccedilam as
caracteriacutesticas dominantes da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Ao observar quais
satildeo as caracteriacutesticas predominantes em cada excerto o trabalho debruccedila-se sobre
os trecircs tipos de estilos descritos pela antiga retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio
e o grandiloquente que foram difundidos atraveacutes da chamada Rota Vergilli Roda de
Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que apresenta os principais caracteres dos trecircs
cenaacuterios criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico e o eacutepico atrelando cada um deles
a um tipo de estilo Ao compreender cada estilo como um efeito de sentido
sugestionado por meio de uma predominacircncia figurativa e temaacutetica presente em cada
excerto passamos a entender os estilos singelo meacutedio e grandiloquente presentes
na Roda como especiacuteficas construccedilotildees figurativas Para este entendimento o
presente estudo apoia-se no arcabouccedilo teoacuterico da Semioacutetica Literaacuteria
Pensando portanto em estilo como um efeito de sentido depreensiacutevel a partir
de uma totalidade discursiva o trabalho propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo
que os tratados de retoacuterica distinguiam Procurar-se-aacute observar assim a tessitura
poeacutetica de excertos das trecircs obras de Virgiacutelio valendo-se da caracterizaccedilatildeo figurativa
e da expressividade de cada estilo Ao descrever os procedimentos retoacutericos por meio
de princiacutepios mais amplos do que aqueles entatildeo utilizados pelos tratadistas antigos
pretendemos ampliar a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica a leitura do texto
claacutessico latino
18
O trabalho busca investigar a construccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs
principais produccedilotildees de Virgiacutelio e propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo
definidos pelos gramaacuteticos antigos ao entender cada estilo como parte da construccedilatildeo
figurativa presente nas trecircs obras O esquema da Roda de Virgiacutelio serviraacute assim
como base para os exemplos de figuras e temas encontrados nas Bucoacutelicas nas
Geoacutergicas e na Eneida e para o entendimento da construccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico
didaacutetico e eacutepico
Vale ressaltar que uma figura natildeo tem significado em si mesma Seu sentido
nasce do encadeamento com outras figuras presentes no discurso Se em um texto
tudo eacute relaccedilatildeo o que daraacute sentido a essas figuras eacute um tema Por isso para encontrar
o sentido de um conjunto de figuras que estatildeo encadeadas no discurso deve-se
perceber o tema subjacente a elas As figuras presentes em um texto formam uma
rede uma trama e por isso para depreendermos o tema de um texto figurativo eacute
preciso apreender primeiro as redes coerentes formadas pelas figuras No caso das
Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida eacute imprescindiacutevel que reconheccedilamos nos
excertos selecionados para anaacutelise o encadeamento e a rede de figuras Aliaacutes o que
garante a depreensatildeo dos temas por traacutes da rede de figuras eacute exatamente a coerecircncia
existente entre elas ou seja a predominacircncia figurativa afinal eacute a partir da coerecircncia
existente entre as figuras que podemos compreender a relaccedilatildeo solidaacuteria que elas
mantecircm entre si
Logo ao adentrarmos na dimensatildeo enunciativa e figurativa de cada excerto
virgiliano investigaremos a figuratividade que perpassa cada discurso destacando
como os estilos singelo meacutedio e grandiloquente satildeo expressos figurativamente nos
textos Pretendemos dessa maneira descrever cada estilo como um especiacutefico efeito
de sentido fruto da rede figurativa arquitetada pelo texto Assim procuramos
descrever os procedimentos retoacutericos atraveacutes de princiacutepios mais amplos para explicar
o fenocircmeno figurativo evidenciado na Roda Logo ao utilizarmos aqui o termo ldquofigurardquo
referimo-nos aos substantivos adjetivos e verbos de accedilatildeo presentes no texto e que
revestem uma ideia abstrata um tema A Retoacuterica seraacute lida entatildeo a partir de um olhar
Semioacutetico Apresentaremos ainda uma traduccedilatildeo dos excertos selecionados para
leitura e anaacutelise com as necessaacuterias notas de referecircncia (geograacuteficas mitoloacutegicas e
histoacutericas)
Os principais excertos selecionados para traduccedilatildeo e anaacutelise satildeo a Bucoacutelica V
a primeira parte do Canto IV das Geoacutergicas (hex 1-115) e o Canto VIII (hex 612-731)
19
da Eneida Estes excertos foram escolhidos pensando-se em seus esquemas
figurativos Satildeo trechos que alicerccedilam as caracteriacutesticas dominantes evidenciadas na
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica e que corroboram assim para o entendimento dos
estilos singelo meacutedio e grandiloquente descritos na Roda de Virgiacutelio Ao afirmarmos
com isso em nossas anaacutelises e comentaacuterios que determinado excerto eacute singelo
meacutedio ou grandiloquente o que se quer dizer eacute que estes trechos apresentam
predominantemente e natildeo exclusivamente caracteriacutesticas que alicerccedilam um
determinado efeito de sentido O que se observou nestes excertos escolhidos para
traduccedilatildeo e anaacutelise eacute que os efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente que
nos remetem respectivamente agrave poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica podem ser
depreendidos por uma rede coerente de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria
entre si
Aleacutem destes excertos outros apareceratildeo ao longo do trabalho para
complementarem o entendimento acerca dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente
e o modo como eles satildeo arquitetados por uma rede figurativa uma caracteriacutestica
dominante que alicerccedila o cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Vale ressaltar ainda que
todos os excertos traduzidos das obras virgilianas satildeo de autoria nossa assim como
os demais trechos em latim dos tratadistas antigos
O presente estudo procura portanto a partir de uma moderna anaacutelise
metodoloacutegica produzir um discurso metalinguiacutestico capaz de lanccedilar luz sobre os
recursos da figuratividade evidenciados na Roda de Virgiacutelio Com isso
compreendemos os trecircs estilos definidos pelos tratadistas antigos como efeitos de
sentido arquitetados por uma predominacircncia de figuras presente nos discursos
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
No primeiro capiacutetulo ldquoA Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela
Antiga Retoacutericardquo destacaremos brevemente o pensamento dos principais gramaacuteticos
latinos acerca da classificaccedilatildeo das obras de Virgiacutelio e com isso colocaremos em
relevo os trecircs tipos de estilo por eles descritos o singelo o meacutedio e o grandiloquente
Neste capiacutetulo ainda mencionaremos a Parisiana Poetria de Joatildeo de Garlacircndia e a
Rota Vergilii a Roda de Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que segue a doutrina dos
tratadistas antigos Procuraremos neste capiacutetulo esclarecer alguns pontos
importantes da doutrina dos genera dicendi os trecircs tipos de estilo descritos pelos
gramaacuteticos latinos e para isso faremos um levantamento dos pensamentos mais
relevantes para o tema Para esta etapa do trabalho utilizaremos como fonte os
20
gramaacuteticos latinos e outros estudiosos da aacuterea de estudos claacutessicos Dentre os
pensadores antigos destacamos Seacutervio Valeacuterio Probo Donato e Filargiacuterio
No segundo capiacutetulo ldquoUma leitura dos efeitos de sentido simples meacutedio e
grandiloquenterdquo procuramos analisar os trecircs estilos presentes da Roda de Virgiacutelio
como efeitos de sentido engendrados nos textos e que corroboram para o
entendimento dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico
e o eacutepico Busca-se entender dessa forma que cada estilo supotildee uma unidade de
interpretaccedilatildeo depreensiacutevel da recorrecircncia temaacutetica e figurativa presente em cada
discurso Para esse entendimento foram destacados os pensamentos de Antoine
Compagnon (2014) Norma Discini (2009) e Wilson-Okamura (2010) entre outros
No terceiro capiacutetulo ldquoA criacutetica virgilianardquo mencionamos as reflexotildees de
Katharina Volk (2008) que mapeia os principais criacuteticos da obra de Virgiacutelio a partir da
deacutecada de 70 sublinhando duas vertentes de leitura para a obra do poeta a ideoloacutegica
e a literaacuteria Mencionamos alguns comentaacuterios de Elaine C Prado dos Santos (2007)
Ruy Mayer (1948) entre outros Nesta etapa destacamos ainda o pensamento e
estudo de Andrew Laird (2010) sobre a recepccedilatildeo de Virgiacutelio
No quarto capiacutetulo ldquoA Figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um
textordquo falaremos de conceitos semioacuteticos como lsquotemarsquo lsquofigurarsquo e lsquofiguratividadersquo e
procuraremos demonstrar na leitura e anaacutelise de alguns excertos dos poemas de
Virgiacutelio como os temas e figuras participam da formaccedilatildeo textual Para esta reflexatildeo
teremos como respaldo os estudos de Poeacutetica e Semioacutetica Literaacuteria Destacam-se
nesta etapa as reflexotildees de Greimas (1975) (2011) Jakobson (1978) (1989) Barros
(2005) Fiorin (1995) (2011) e Bertrand (2003)
No quinto capiacutetulo ldquoTraduccedilotildees notas e anaacutelisesrdquo contaremos com os excertos
selecionados das trecircs obras virgilianas traduzidos e analisados O trabalho de
traduccedilatildeo seraacute acompanhado das necessaacuterias referecircncias culturais (geograacuteficas
mitoloacutegicas e histoacutericas) Neste capiacutetulo seraacute observada a dimensatildeo figurativa de cada
obra e para isso seratildeo destacadas as principais figuras e os temas recorrentes agrave
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Nas anaacutelises procuraremos abordar como as figuras
se organizam e asseguram um revestimento figurativo dos principais temas bucoacutelicos
didaacuteticos e eacutepicos Aleacutem disso tambeacutem levaremos em conta os estilos singelo meacutedio
e grandiloquente compreendendo-os como efeitos de sentido a partir principalmente
de sua estrutura figurativa Os textos latinos escolhidos para leitura traduccedilatildeo e
anaacutelise seratildeo os das ediccedilotildees Les Belles Lettres em cotejo com as ediccedilotildees
21
apresentadas por John Conington em The Works of Virgil e com as ediccedilotildees alematildes
da De Gruyter comentadas por Gian Biagio Conte
O presente estudo procura dessa forma analisar as obras de Virgiacutelio do ponto
de vista da expressatildeo procurando ampliar a percepccedilatildeo da leitura da poesia claacutessica
ao colocar em relevo os recursos da figuratividade do texto A anaacutelise dos elementos
de Retoacuterica a partir da Semioacutetica implica aqui em uma releitura ou seja em
descrever os procedimentos retoacutericos por meio de princiacutepios mais amplos do que
aqueles utilizados pelos gramaacuteticos antigos
22
1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga
Retoacuterica
Procurar entender um poema a partir de uma classificaccedilatildeo preacute-estabelecida
natildeo nos parece uma tarefa meritoacuteria pois ldquocada criaccedilatildeo poeacutetica eacute uma unidade
autossuficienterdquo e cada poema portanto ldquoeacute uacutenico irredutiacutevel e inigualaacutevelrdquo (PAZ
2012 p 23) Classificar catalogar reduzir a poesia a algumas poucas formas natildeo diz
nada sobre o poeacutetico em si nem sobre a expressividade do texto todavia buscar
compreender o porquecirc de uma classificaccedilatildeo e o modo como essa classificaccedilatildeo atua
pode nos auxiliar numa tarefa que vai aleacutem de uma mera ordenaccedilatildeo externa agrave obra
quando nos leva a entender alguns mecanismos de estruturaccedilatildeo poeacutetica Eacute oacutebvio que
apenas traccedilar as fronteiras de uma obra e descrevecirc-la levando em conta a
configuraccedilatildeo de um determinado estilo natildeo eacute capaz de esclarecer o poeacutetico que ali
atua Assim ao refletirmos sobre os trecircs estilos (singelo meacutedio e grandiloquente)
presentes nas obras de Virgiacutelio natildeo queremos com isso catalogaacute-las muito menos
hierarquizaacute-las mas sim adentrar o poeacutetico a expressividade do texto virgiliano a fim
de compreendermos natildeo apenas os assuntos tratados nos poemas mas sobretudo a
sua forma de expressatildeo
No iniacutecio da Bucoacutelica VI (hex 3-5) Virgiacutelio menciona as figuras representativas
do cenaacuterio bucoacutelico em contraponto agraves figuras eacutepicas
Cum canerem reges et proelia Cynthius aurem uellit et admonuit ltltPastorem Tityre pinguis pascere oportet ouis deductum dicere carmengtgt
Como eu cantasse reis e batalhas Ciacutentio5 puxou-me a orelha e advertiu-me ldquoAo pastor Tiacutetiro conveacutem apascentar gordas ovelhas e cantar um canto ruacutesticordquo
Haacute uma oposiccedilatildeo no excerto entre dois grupos de figuras De um lado lsquoreisrsquo e
lsquobatalhasrsquo e de outro lsquoo pastorrsquo as lsquogordas ovelhasrsquo e um lsquocanto ruacutesticorsquo Enquanto a
temaacutetica da eacutepica destina-se agrave narraccedilatildeo de grandes feitos de reis e batalhas a poesia
de gecircnero bucoacutelico eacute um canto de temaacutetica mais simples pois traz a figura do pastor
5 Ciacutentio outro nome para Apolo aqui citado como um deus pastoral identificado com agrave natureza
23
que apascenta as gordas ovelhas e canta um canto ruacutestico humilde singelo de
temaacutetica portanto diferente da eacutepica
Tambeacutem Camotildees no seacuteculo XVI na Invocaccedilatildeo drsquoOs Lusiacuteadas (I 5 v 1-4)
opocircs o cenaacuterio da eacutepica e da bucoacutelica
Dai-me uma fuacuteria grande e sonorosa E natildeo de agreste avena ou frauta ruda Mas de tuba canora e belicosa Que o peito acende e a cor ao gesto muda
A poesia bucoacutelica neste excerto eacute caracterizada pela ldquoagreste avenardquo ou
ldquofrauta rudardquo o instrumento do pastor-cantador protagonista do cenaacuterio bucoacutelico Jaacute
a poesia eacutepica aparece caracterizada pela lsquotuba canora e belicosarsquo Trata-se de uma
mudanccedila de cenaacuterio entre a bucoacutelica e a eacutepica muda-se o tema cantado e
consequentemente as figuras empregadas Entre os antigos a epopeia jaacute era descrita
por narrar os feitos de reis de chefes e as tristes guerras (cf Horaacutecio Arte Poeacutetica)
Augusto Epiphanio da Silva Dias (1910 p 6 nota 5) afirma que ldquoEm latim avena
lsquoaveiarsquo emprega-se tambeacutem por lsquocana de aveiarsquo e daiacute na poesia por lsquoflauta pastorilrsquo
A lsquoavenarsquo simboliza a poesia bucoacutelica assim como a lsquotubarsquo ou trombeta a poesia
eacutepicardquo
Enquanto as figuras representam no texto as coisas e os acontecimentos do
mundo natural os temas explicam os fatos que ocorrem Para criar determinado efeito
de sentido o autor de um texto escolhe figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria
entre si formando uma rede uma trama figurativa Ao identificarmos as figuras de um
texto devemos verificar portanto qual eacute a funccedilatildeo que elas desempenham no sentido
do texto Logo a depreensatildeo dos temas subjacentes a um texto figurativo soacute eacute
possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre figuras que se articulam e se encadeiam no
interior dele formando uma rede Como observamos nos exemplos acima o contraste
evidenciado entre a poesia bucoacutelica e eacutepica estaacute manifestado dessa maneira por
redes figurativas diferentes
Semelhante oposiccedilatildeo tambeacutem aparece com Antoacutenio Ferreira (2000 p 157) no
iniacutecio de sua ldquoEacutecloga Irdquo (v1-8)
No tempo qursquoo cruel e furioso Inimigo dos pastores e dos gados Da terra e das sementes belicoso
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Marte segundo contam por pecados Do mundo contra o mundo tatildeo iroso Desceu que teacute os lugares mais sagrados Assi com ferro e fogo cometeu Que tudo de ira cinza e sangue encheu
A guerra no seguinte excerto eacute figurativizada pelo ldquobelicoso Marterdquo que se
mostra inimigo dos pastores e de todo cenaacuterio bucoacutelico pois a guerra quebra
necessariamente com a paz ideal presente no mundo pastoril
Haacute portanto uma oposiccedilatildeo temaacutetica entre a poesia de gecircnero bucoacutelico e a
poesia eacutepica O contraste evidenciado nos dois discursos eacute marcado por redes
figurativas especiacuteficas que apontam para temas distintos O efeito de sentido singelo
humilde eacute proacuteprio da bucoacutelica jaacute que a recorrecircncia figurativa pressupotildee o universo
dos pastores inseridos em um locus amoenus Enquanto isso o efeito de sentido
grandiloquente eacute proacuteprio do cenaacuterio eacutepico em que figuram heroacuteis em contexto de
grandes aventuras e batalhas Entende-se por efeito de sentido a construccedilatildeo de
significados que pode ser depreensiacutevel de um discurso Essa construccedilatildeo eacute arquitetada
em um texto por uma rede de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre si Logo
ao falarmos em efeito de sentido referimo-nos agrave trama de figuras presente em cada
discurso e ao modo como essa rede figurativa manifesta-se predominantemente no
discurso ao tecer significados No que diz respeito agrave poesia de gecircnero bucoacutelico e
eacutepico evidenciamos redes figurativas distintas e portanto diferentes efeitos de
sentido
Assim a partir do tema da accedilatildeo e da caracterizaccedilatildeo presentes nas trecircs obras
de Virgiacutelio - as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida ndash o trabalho procura observar as
mudanccedilas nos efeitos de sentido em cada obra Os estilos singelo meacutedio e
grandiloquente apresentam-se em cada obra virgiliana como efeitos de identidade do
texto sendo arquitetados a partir de um conjunto de procedimentos recorrentes na
construccedilatildeo de um sentido Analisar os estilos portanto significa investigar os
diferentes efeitos de individualidade presentes em cada texto
Valeacuterio Probo gramaacutetico romano da segunda metade do seacuteculo I dC In Vergilii
Bucolica et Georgica commentarius ao comparar a eacutepica e a bucoacutelica virgiliana
afirma que o ldquosublime e grandiloquenterdquo pertencem agrave Eneida enquanto agraves Bucoacutelicas
pertencem o que eacute ldquohumilde e ruacutesticordquo Diz o gramaacutetico
25
Sunt quaedam propria heroico carmini sublimia sed in bucolico humilia quae apte diuisse Vergilius notatus est
Algumas coisas satildeo apropriadas as sublimes ao poema heroico mas as humildes no bucoacutelico notou-se que Virgiacutelio as separou adequadamente
Essa distinccedilatildeo feita entre as obras deixa entrever a possibilidade de figuras que
podemos encontrar em cada uma delas Para a Eneida uma rede figurativa que nos
remete a um tema de caraacuteter grandioso enquanto para as Bucoacutelicas uma trama
figurativa que nos remete a assuntos mais singelos
Eacutelio Donato gramaacutetico e retoacuterico latino do seacuteculo IV dC menciona as trecircs
obras de Virgiacutelio e designa o modo de elocuccedilatildeo de cada gecircnero Para ele satildeo trecircs os
modos de elocuccedilatildeo o tecircnue (tenuis) para o gecircnero bucoacutelico o moderado (moderatus)
para o gecircnero didaacutetico e o vigoroso (ualidus) para o gecircnero eacutepico A elocuccedilatildeo
segundo a Retoacuterica refere-se agrave escrita do discurso ao estilo agrave expressatildeo Refere-se
pois ao trabalho com a linguagem e abrange assim o bom uso do leacutexico
Juacutenio Filargiacuterio comentarista de Virgiacutelio do seacuteculo V dC em Explanatio in
Bucolica Vergilli ao comparar as trecircs obras virgilianas acaba relacionando-as aos trecircs
genera dicendi
Humile medium magnum physica ethica logica Bucolica Georgica Aeneades naturalis moralis rationalis pastor operator bellator Physica ethica logica propter naturam propter usum propter doctrinam
Humilde meacutedio grande fiacutesica eacutetica loacutegica Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida natural moral racional pastor operaacuterio guerreiro Fiacutesica eacutetica loacutegica por causa da natureza por causa do uso por causa da doutrina
Dos pensadores aqui mencionados todos subordinam as Bucoacutelicas ao estilo
humilde (singelo) as Geoacutergicas ao meacutedio e a Eneida ao sublime grandiloquente
Com o auxiacutelio da Semioacutetica Literaacuteria entendemos que os trecircs estilos descritos
pelos tratadistas antigos podem ser lidos como diferentes efeitos de sentido presentes
nas trecircs obras virgilianas Estes efeitos estatildeo alicerccedilados nas diferentes tramas
figurativas tecidas por Virgiacutelio Pretende-se entender com isso o modo como os
principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica atuam no discurso Ao
compreender os trecircs estilos como construccedilotildees figurativas como efeitos de sentido
arquitetados em cada obra destacaremos como a significaccedilatildeo de uma determinada
26
figura estaacute sob o controle de um contexto no qual se encaixa com coerecircncia Pretende-
se investigar portanto a relaccedilatildeo solidaacuteria existente entre as figuras em contexto
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
A subordinaccedilatildeo das trecircs obras de Virgiacutelio aos trecircs genera dicendi aos trecircs
estilos descritos pelos gramaacuteticos latinos tambeacutem encontramos na Parisiana Poetria
de Joatildeo de Garlacircndia A Parisiana Poetria eacute um tratado sobre gramaacutetica e retoacuterica
escrito por Garlacircndia por volta de 1231 e 1235 Trata-se de um trabalho que registra
tipos de composiccedilatildeo escrita e aponta os cacircnones da retoacuterica Garlacircndia dessa forma
descreve uma teoria abrangente do estilo e para isso vale-se das Bucoacutelicas das
Geoacutergicas e da Eneida para criar a Roda de Virgiacutelio esquema circular tripartido em
que as obras virgilianas aparecem para descrever diferentes personagens temas
caracterizaccedilotildees e niacuteveis de estilo Assim ao mapear os estilos singelo meacutedio e
grandiloquente o filologista chama-nos a atenccedilatildeo para o fato de que Virgiacutelio registrou
diferentes tipos de estilo fixando modelos
De acordo com a Encyclopaedia Britannica (2009) John of Garland ou como
se diz tradicionalmente em portuguecircs Joatildeo de Garlacircndia (1180-1252) foi um
gramaacutetico e poeta inglecircs do seacuteculo XIII Seus escritos foram importantes no
desenvolvimento do latim medieval Aleacutem da Parisiana Poetria entre seus trabalhos
gramaticais estatildeo Compendium Grammatice (Esboccedilo de Gramaacutetica) Liber de
Constructionibus (Livro sobre Construccedilotildees) e um vocabulaacuterio latino Dois de seus
poemas mais conhecidos satildeo De triumphis ecclesiae (Sobre os triunfos da igreja) e
Epithalamium beatae Mariae Virginis (Canccedilatildeo nupcial da bem aventurada Virgem
Maria)
Ao arquitetar a Rota Vergilii Roda de Virgiacutelio seguindo a doutrina dos
gramaacuteticos latinos jaacute citados Joatildeo de Garlacircndia apresenta-nos a funccedilatildeo social de
cada personagem de Virgiacutelio o pastor o agricultor e o guerreiro
Segue portanto o esquema circular tripartido das trecircs obras virgilianas Cada
um dos aros concecircntricos da roda deixa entrever o personagem emblemaacutetico o
vegetal tiacutepico o ambiente de atuaccedilatildeo das personagens os objetos e os animais
representativos
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Figura 3- A Roda Virgiliana de Garlacircndia
Fonte GARLAND John of 1974 p 40-41
Partindo desta divisatildeo entre as obras na Parisiana Poetria (1974 p38) Joatildeo
de Garlacircndia assim descreve
Item notandum quod in Rota Vergilii quam pre manibus habemus ordinantur tres columpne et in circuitu per multas circumferencias ordinantur tres stili In prima columpna comparationes continentur similitudines et nomina rerum ad humilem stilum pertinencium in secunda ad mediocrem in tercia ad grauem
Nota-se que na Roda de Virgiacutelio que temos em matildeos ordenam-se trecircs colunas e os trecircs estilos no circuito por meio de muitas circunferecircncias Na primeira coluna estatildeo contidas as comparaccedilotildees as imagens e os nomes das coisas pertinentes ao estilo humilde na segunda ao meacutedio na terceira ao grave
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Vemos que o filologista segue a doutrina dos gramaacuteticos latinos apresentando-
nos em seu esquema tripartido as Bucoacutelicas na coluna do estilo singelo humilde as
Geoacutergicas na do meacutedio moderado e a Eneida na do grave grandiloquente
Na Enciclopedia Virgiliana organizada por Franceso della Corte (1996 p586)
encontramos um verbete para Rota Vergilii Neste verbete diz-se que as trecircs obras de
Virgiacutelio indicadas em uma figura circular satildeo exemplos dos trecircs estilos retoacutericos
(simples meacutedio e sublime) Menciona-se ali a documentaccedilatildeo da Poetria de Joatildeo de
Garlacircndia para quem Virgiacutelio apoacutes ter elegido sua mateacuteria poeacutetica tambeacutem elegeu
trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o guerreiro) a partir dos quais criou trecircs
cenaacuterios de atuaccedilatildeo
A Roda de Virgiacutelio segundo o verbete eacute uma emblemaacutetica correspondecircncia
dos trecircs genera dicendi os trecircs estilos defendidos pelos gramaacuteticos antigos e
configura-se como um esquema mnemocircnico que concentra a mateacuteria poeacutetica de cada
obra ou seja um breve panorama da criaccedilatildeo poeacutetica de Virgiacutelio A Roda eacute
interpretada assim como um cacircnone da arte retoacuterica
De acordo com Joatildeo Adolfo Hansen (2013 p26) ldquoStilus nome latino do estilete
com que se escrevia na tabuinha de cera passou a significar metaforicamente a
variaccedilatildeo da elocuccedilatildeo caracteriacutestica de um autor determinado proposto agrave emulaccedilatildeo
como auctoritasrdquo Segundo Hansen o termo lsquoestilorsquo refere-se agraves variaccedilotildees discursivas
das muitas elocuccedilotildees dos gecircneros Teofrasto disciacutepulo de Aristoacuteteles foi o primeiro
a fazer uma divisatildeo tripartida da elocuccedilatildeo dos estilos ndash simples temperado e nobre ndash
que corresponde na visatildeo de Hansen ao estilo humilde meacutedio e sublime
classificaccedilatildeo presente na chamada Rota Vergilii de Joatildeo de Garlacircndia como jaacute citado
anteriormente
Para Hansen (2013 p 26-27) a chamada Rota Vergilii do seacuteculo XIII
prescreve trecircs genera elocutionis que
satildeo exemplificados com as trecircs obras principais do poeta humilis ou humilde (Bucoacutelicas) mediocris ou meacutedio (Geoacutergicas) grauis ou alto (Eneida) Cada um deles corresponde agraves palavras especiacuteficas de lugares comuns as Bucoacutelicas o campo do pastor nomes proacuteprios de pastores as ovelhas as Geoacutergicas o campo do agricultor nomes proacuteprios de agricultores o boi a Eneida o campo do soldado nomes proacuteprios de soldados o cavalo e lugares comuns de objetos artificiais e coisas naturais ndash o cajado do pastor e a faia o arado do lavrador e a macieira a espada do soldado e o carvalho (ou loureiro) e na
29
elocuccedilatildeo palavras simples e humildes nas Bucoacutelicas meacutedias e com poucos ornamentos nas Geoacutergicas elevadas e sublimes na Eneida
Ao compreendermos com o auxiacutelio da Semioacutetica os trecircs estilos como efeitos
de sentido engendrados em cada obra pressupomos o nuacutecleo temaacutetico e figurativo
de cada texto e o modo como figuras e temas se encadeiam coerentemente
Pierre Guiraud em A Estiliacutestica (1970) segue o modelo de Garlacircndia ao citar
os trecircs estilos elementares descritos pela Antiga Retoacuterica descrevendo-os e
apresentando-os em cada aro concecircntrico de sua Roda
Assim o camponecircs chama-se Caelius lavra seu campo plantado de aacutervores frutiacuteferas com seu arado puxado por bois mas o capitatildeo chama-se Hector estaacute coroado de louros tem agrave cinta um glaacutedio e percorre o acampamento em seu cavalo A vida do labrego seraacute contada em estilo simples ao passo que se usaratildeo estilo grave ou nobre para contar as faccedilanhas de Heitor (GUIRAUD 1970 p 27 grifos do autor)
Ao retomar a Roda de Garlacircndia Guiraud descreve trecircs diferentes contextos
de atuaccedilatildeo destacando as principais caracteriacutesticas de cada um deles Pode-se
compreender que os elementos por ele citados apesar da oscilaccedilatildeo possiacutevel dos seus
significados estatildeo articuladas no interior de cada texto remetendo-nos a diferentes
efeitos de sentido seja o simples (o singelo) o meacutedio ou o grandiloquente
30
Figura 4 - A Roda de Virgiacutelio
Fonte GUIRAUD Pierre 1970 p 26
Como se lecirc no esquema circular tripartido para as Bucoacutelicas tem-se o Humilis
Stylus o estilo singelo e seu personagem representativo eacute o pastor otiosus o pastor
despreocupado Entre os nomes de pastores mais conhecidos estatildeo Tityrus e
Melibœus (cf Buc I) dos animais que figuram a ambientaccedilatildeo campestre destacam-
se as ovelhas (ovis) aleacutem disso como objetos representativos do pastor encontramos
o cajado (baculus) e a flauta Na descriccedilatildeo da espacialidade destacam-se os prados
(pascua) e a faia (fagus) com suas folhagens hospitaleiras que contribuem para a
descriccedilatildeo do locus amoenus ambientaccedilatildeo proacutepria ao universo bucoacutelico Os
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caracteres bucoacutelicos remetem-nos a assuntos tecircnues e por isso entendemos que
haja um efeito de sentido singelo que perpassa a obra
Para as Geoacutergicas temos o estilo meacutedio mediocrus stylus Como personagem
representativo encontramos o lavrador (agricola) e dentre os animais encontramos o
boi (bos) O arado (aratrum) serve para o cultivo do campo (ager) e na ambientaccedilatildeo
figuram aacutervores frutiacuteferas (pomus) Logo os assuntos satildeo moderados e destinam-se
agraves informaccedilotildees sobre a plantaccedilatildeo e a criaccedilatildeo de animais Entendemos com isso que
o cenaacuterio provoca um efeito de sentido mediano instrutivo
Para a Eneida destaca-se o estilo sublime (gravis stylus) Como personagem
tem-se o soldado vencedor (miles dominans) Entre os animais que aparecem estaacute o
cavalo (equus) A espada (gladius) figura como objeto representativo da personagem
e tanto a cidade (urbs) como a fortaleza de guerra ou o acampamento militar
(castrum) mapeiam o espaccedilo de atuaccedilatildeo Os caracteres eacutepicos destinam-se assim
aos assuntos grandiosos de reis e batalhas Logo pensando-se em termos
semioacuteticos cria-se um efeito de sentido grandiloquente
Eacute importante lembrar que a Roda natildeo esgota os elementos presentes nas
Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida ela apresenta apenas alguns dos aspectos gerais que
podem aparecer na caracterizaccedilatildeo de cada obra Eacute preciso que o leitor conheccedila o
texto de Virgiacutelio para depreender dessa forma as diferentes caracteriacutesticas bucoacutelicas
didaacuteticas e eacutepicas Entendemos neste trabalho que o esquema tripartido da Roda
serve para nortear a forma como Virgiacutelio valeu-se dos diferentes temas e como
conseguiu registraacute-los em suas obras
Na visatildeo de Guiraud (1970 p 27) ldquoas palavras guardam o reflexo das coisas
que designam ou dos ambientes em que satildeo empregadasrdquo Em se tratando das trecircs
obras de Virgiacutelio os cenaacuterios em contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico apresentam os
temas e figuras que lhe satildeo proacuteprios
As trecircs obras de Virgiacutelio dialogam com os trecircs tipos de estilo descritos pela
Antiga Retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Procuramos
entender esta divisatildeo como um esquema representativo das principais figuras e temas
presentes nas obras de Virgiacutelio Logo os trecircs estilos seratildeo aqui entendidos como
diferentes efeitos de sentido que aparecem na obra virgiliana Demonstraremos
atraveacutes de excertos do texto virgiliano como temas e figuras se comportam em
contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Compreendemos portanto o esquema tripartido
de Joatildeo de Garlacircndia com o auxiacutelio da moderna anaacutelise metodoloacutegica e com isso a
32
leitura que se seguiraacute das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida apresentaraacute o estilo
como um efeito de sentido que perpassa as obras
33
2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente
Estilo eacute efeito de individuaccedilatildeo dado por uma totalidade de discursos enunciados
Norma Discini 2009 p 27
Por meio da linguagem o emissor eacute capaz de expressar seus sentimentos
emoccedilotildees e modos de ser aleacutem de influenciar o seu receptor (o ouvinte ou leitor)
provocando assim uma determinada impressatildeo Foi pensando nisso que os gregos
antigos se valeram de diferentes loacutegicas argumentativas para convencer a plateia
sobre a veracidade de suas ideias Com isso a Greacutecia claacutessica levou a graus de
sutileza a preocupaccedilatildeo com a estrutura do discurso Entre os gregos inclusive foram
criadas disciplinas que melhor ensinassem as artes de domiacutenio da palavra tais como
a eloquecircncia a gramaacutetica e a retoacuterica (CITELLI 2002)
O surgimento da retoacuterica como disciplina especiacutefica contribuiu para uma
reflexatildeo sobre o aspecto discursivo da liacutengua bem como sobre o efeito que ela
provocava no receptor Na Idade Meacutedia a Retoacuterica apareceu no campo religioso pois
era comum os monges discutirem temas dogmaacuteticos com a finalidade de mostrar suas
habilidades argumentativas Na Idade Moderna com o advento do positivismo a
Retoacuterica foi deixada de lado jaacute que o importante passou a ser o conteuacutedo aquilo que
poderia ser comprovado e natildeo mais a expressividade Jaacute na Idade Contemporacircnea
a Retoacuterica retorna em duas grandes vertentes a teoria da argumentaccedilatildeo no discurso
cientiacutefico e a Estiliacutestica nos estudos linguiacutesticos (CITELLI 2002)
Levando em conta as dimensotildees da liacutengua e seu uso Mattoso Cacircmara (1978
p110) em seu Dicionaacuterio de Linguiacutestica e Gramaacutetica faz a seguinte afirmaccedilatildeo acerca
da Estiliacutestica ldquoDisciplina linguiacutestica que estuda a expressatildeo em seu sentido estrito de
expressividade da linguagem isto eacute a sua capacidade de emocionar e sugestionarrdquo
Pensando nessa capacidade de emocionar e sugerir Mattoso Cacircmara (1978
p 7 grifo nosso) define ldquoestilordquo nos seguintes termos
Em sentido lato estilo eacute a maneira tiacutepica pela qual nos exprimimos linguisticamente individualizando-nos em funccedilatildeo da nossa linguagem Para isso fazemos uma aplicaccedilatildeo metoacutedica dos elementos que a liacutengua ministra (Leo Spitzer) procedendo a uma escolha entre as possibilidades de expressatildeo que se apresentam na liacutengua (Marouzeau) Em sentido estrito no entanto essa caracteriacutestica decorre antes de tudo do nosso impulso emotivo e do propoacutesito claro ou subconsciente de sugestionar o proacuteximo
34
Com isso podemos pensar em estilo como a individualidade de um discurso
como uma escolha entre os recursos de expressatildeo presentes na liacutengua e como um
efeito de sentido que eacute capaz de sugestionar determinadas impressotildees
Ao entendermos que um efeito de sentido soacute pode ser depreendido a partir de
uma rede coerente de figuras no interior do discurso concluiacutemos que toda trama de
figuras presente em um texto alicerccedila os significados ali tecidos Para depreendermos
portanto o efeito sugerido por determinada obra literaacuteria por exemplo devemos
adentrar a sua dimensatildeo temaacutetica e figurativa a fim de compreendermos a dominacircncia
dos elementos abstratos e concretos presentes no discurso
Como afirma Compagnon (2014 p164) a palavra estilo natildeo tem origem em
vocabulaacuterio especializado Aleacutem disso natildeo eacute um termo reservado apenas agrave literatura
e agrave liacutengua A ideia de estilo para Compagnon abrange numerosas aacutereas da atividade
humana Estilo denota a individualidade a singularidade de uma obra a necessidade
de uma escritura um gecircnero um periacuteodo ou um arsenal de procedimentos
expressivos de recursos a escolher Logo os aspectos da noccedilatildeo de estilo tanto
verbal como natildeo verbal hoje satildeo muito numerosos O estilo eacute citado por Compagnon
como norma pensando-se que o bom estilo eacute aquele que deve ser imitado o cacircnone
Aleacutem disso o estilo frequentemente aparece segundo ele como ornamento Essa
concepccedilatildeo eacute evidente na retoacuterica em que existem duas partes relacionadas agraves ideias
(invenccedilatildeo e disposiccedilatildeo) e uma terceira relativa agrave expressatildeo atraveacutes das palavras
(elocuccedilatildeo) Compagnon tambeacutem menciona o estilo no sentido de desvio pensando-
se na variaccedilatildeo estiliacutestica no desvio da liacutengua em relaccedilatildeo ao seu uso corrente na
substituiccedilatildeo de uma palavra por outra que oferece agrave elocuccedilatildeo uma forma mais
elevada uma marca diferenciada Tem-se assim de um lado uma elocuccedilatildeo clara ou
baixa e de outro uma elocuccedilatildeo elegante
Para Compagnon (2014 p 166) o ornamento e o desvio satildeo inseparaacuteveis da
noccedilatildeo de estilo Desde Aristoacuteteles entende-se o estilo como um ornamento formal
definido pela sua marca diferenciada em relaccedilatildeo ao uso comum da linguagem
Compagnon traz ainda a noccedilatildeo de estilo atrelada agrave ideia de gecircnero ou tipo
Para o criacutetico segundo a antiga retoacuterica o estilo enquanto escolha entre meios
expressivos estava ligado a noccedilatildeo de conveniecircncia jaacute que natildeo bastava possuir a
mateacuteria do discurso era preciso aleacutem disso falar segundo a necessidade da situaccedilatildeo
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O estilo dessa forma designava a propriedade do discurso a adaptaccedilatildeo da
expressatildeo a seus fins
Compagnon (2014 p 167) diz que
Os tratados de retoacuterica distinguiam tradicionalmente nem mais nem menos trecircs tipos de estilo o stylus humilis (simples) o stylus mediocris (moderado) e o stylus grauis (elevado ou sublime) Ciacutecero no Orator associava esses trecircs estilos agraves trecircs escolas de eloquecircncia (o asiatismo que se caracterizava pela abundacircncia ou empolaccedilatildeo o aticismo pelo gosto seguro e o gecircnero roacutedio gecircnero intermediaacuterio) Na Idade Meacutedia Diomedes identificou esses trecircs estilos aos grandes gecircneros depois Donato em seu comentaacuterio de Virgiacutelio relacionou-os aos temas das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida isto eacute agrave poesia pastoril agrave poesia didaacutetica e agrave epopeia Essa tipologia dos trecircs tipos de estilo difundida desde entatildeo com o nome Rota Vergilii ldquoRoda de Virgiacuteliordquo gozou de uma estabilidade de mais de mil anos Ela corresponde a uma hierarquia (familiar meacutedia nobre) que engloba o fundo a expressatildeo e a composiccedilatildeo Montaigne vai transgredi-la deliberadamente escrevendo sobre assuntos ldquomediacuteocresrdquo e eventualmente ldquosublimesrdquo no estilo ldquococircmico e privadordquo das letras e da conversaccedilatildeo Ora os trecircs tipos de estilo satildeo igualmente conhecidos sob o nome de genera dicendi assim eacute a noccedilatildeo de estilo que se acha na origem da noccedilatildeo de gecircnero ou mais exatamente eacute atraveacutes da noccedilatildeo de estilo (e a teoria dos trecircs estilos classifica os discursos e os textos) que as diferenccedilas geneacutericas foram tratadas por muito tempo
Pensando em estilo por meio da narratividade e do discurso Norma Discini em
sua obra O estilo nos textos (2009 p29) afirma
O estilo tambeacutem decorre de uma leitura homogeneizadora do mundo inerente ao efeito de individuaccedilatildeo de uma totalidade de discursos enunciados Tal leitura eacute identificaacutevel na anaacutelise de um estilo por meio da observaccedilatildeo do modo recorrente da referencializaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo no enunciado o que por sua vez supotildee uma unidade de avaliaccedilotildees e interpretaccedilotildees
Logo a leitura de um determinado estilo deve ser buscada na totalidade
enunciada da qual se depreende o ator da enunciaccedilatildeo o espaccedilo de atuaccedilatildeo e
consequentemente o efeito engendrado Para Discini (2009 p 30) ldquoestilo eacute corpo eacute
voz eacute caraacuteter de uma totalidaderdquo e portanto traz consigo um efeito de individualidade
que permite a construccedilatildeo de um cenaacuterio representativo em que figuram o ator a accedilatildeo
e o espaccedilo de atuaccedilatildeo Discini (2009) assim parte do princiacutepio de que o estilo eacute efeito
de sentido e portanto uma construccedilatildeo do discurso Segundo o pensamento da
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semioticista o efeito eacute determinado pela recorrecircncia de procedimentos na construccedilatildeo
do sentido o que deixa entrever do ponto de vista da produccedilatildeo do discurso como o
ator a accedilatildeo e o espaccedilo de atuaccedilatildeo satildeo tematizados e figurativizados
Os efeitos de sentido satildeo reveladores das intencionalidades presentes no
discurso Em virtude da presenccedila de determinados efeitos de sentido as figuras
presentes em um texto coadunam-se para concretizar sentidos especiacuteficos O efeito
de sentido portanto pode ser obtido atraveacutes de estrateacutegias discursivas como por
exemplo a referecircncia a pessoas a objetos a lugares e a caracteriacutesticas individuais
das personagens Estas estrateacutegias contribuem para a construccedilatildeo de diferentes
cenaacuterios que sugestionam efeitos especiacuteficos
Pensando-se nas trecircs obras de Virgiacutelio coacuterpus do nosso trabalho acreditamos
que a Roda de Virgiacutelio apresenta a partir dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente
os toacutepicos caracteriacutesticos de cada obra ou em termos semioacuteticos as principais
figuras e temas que caracterizam os trecircs cenaacuterios criados por Virgiacutelio
Ao entendermos o estilo como um fato diferencial e como um efeito de
individualidade que daacute voz e imprime uma singularidade ao discurso enunciado
podemos compreender como os diferentes estilos expostos pelos tratadistas antigos
podem ser lidos hoje a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica Para relembrar
dentre os antigos as obras eram classificadas a partir de trecircs tipos de elocuccedilatildeo a
tecircnue a moderada e a vigorosa que definiam respectivamente trecircs tipos de estilo o
singelo o meacutedio e o grandiloquente Virgiacutelio eacute conhecido por compor todos os trecircs
Nas Bucoacutelicas encontramos o humilde (singelo) nas Geoacutergicas o meacutedio e na Eneida
o grandiloquente A Roda de Virgiacutelio como jaacute citamos anteriormente eacute uma
classificaccedilatildeo medieval que mapeia portanto os trecircs tipos de estilo da Antiga Retoacuterica
deixando entrever os principais elementos dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por
Virgiacutelio Cabe-nos aqui avaliar como esses estilos satildeo engendrados em cada obra
deixando entrever efeitos de individuaccedilatildeo que lhe satildeo proacuteprios
No iniacutecio da primeira Bucoacutelica de Virgiacutelio Melibeu um pastor de gado fala a
Tiacutetiro outro pastor sobre o confisco de suas terras e sobre o fato de o amigo que
descansa agrave sombra de uma faia ter conseguido conservar as suas por ajuda de um
benfeitor
(Buc I hex 1-10) Meliboeus
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Tityre tu patulae recubans sub tegmine fagi siluestrem tenui Musam meditaris auena nos patriae finis et dulcia linquimus arua nos patriam fugimus tu Tityre lentus in umbra formosam resonare doces Amaryllida siluas
Tityrus
O Meliboee deus nobis haec otia fecit namque erit ille mihi semper deus illius aram saepe tener nostris ab ouilibus imbuet agnus ille meas errare boues ut cernis et ipsum ludere quae uellem calamo permisit agresti
Melibeu
Oacute Tiacutetiro tu reclinado agrave sombra de uma copada faia contemplas a musa silvestre na tecircnue flauta noacutes deixamos os limites da paacutetria e os doces campos da paacutetria noacutes fugimos tu oacute Tiacutetiro deitado agrave sombra ensinas os bosques a ressoar o nome da formosa Amariacutelis
Tiacutetiro
Oacute Melibeu um deus nos proporcionou este oacutecio De fato ele seraacute sempre um deus para mim seu altar sempre embeberaacute um tenro cordeiro de nossos apriscos Ele permitiu como vecircs que minhas vacas vagueassem e que eu tocasse na flauta agreste o que quisesse
A palavra bucoacutelica etimologicamente vem de boukolikaacute que em grego quer
dizer ldquocantos de boiadeirosrdquo Este era o nome dado agraves composiccedilotildees em que o
protagonista era o boieiro ou o vaqueiro A princiacutepio a composiccedilatildeo bucoacutelica
compreenderia como adverte Manuel de Paiva Boleacuteo (1936 p 16) uma forma de
poesia em que o boieiro ou vaqueiro seria o protagonista Nesse gecircnero figuram os
guardadores de gado os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas
sempre inseridos em um cenaacuterio ruacutestico campesino Fraguier (apud BOLEacuteO 1936 p
17) um dos teoacutericos sobre a poesia pastoril declara que os pastores satildeo homens do
campo que vivem singelamente que estatildeo sempre acompanhados de seus cajados e
rebanhos e que no momento de oacutecio ocupam-se de cantigas inocentes Com o
tempo os termos pastoral e pastoralismo tambeacutem passaram a designar as
composiccedilotildees que retratavam o pastor de cabras ou de ovelhas e por isso os termos
satildeo vistos como sinocircnimos de bucolismo O principal como menciona Boleacuteo (1936 p
18) eacute que esse tipo de composiccedilatildeo tenha uma essecircncia ou expressatildeo pastoril A
escolha do pastor como protagonista da cena bucoacutelica se deve ao fato de que cabe
ao pastor em seu momento de oacutecio os cantares singelos que expressam uma vida
essencialmente campestre
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O efeito de sentido singelo humilde estaacute presente neste excerto da primeira
bucoacutelica Vale destacar do seguinte excerto a expressatildeo ldquosub tegmine fagirdquo (agrave sombra
de uma copada faia) pois se refere ao costume que os pastores tecircm de nas eacutepocas
quentes protegerem-se do sol debaixo das aacutervores junto com os rebanhos O estilo
singelo eacute marcado dessa forma pela presenccedila dos pastores Tiacutetiro e Melibeu bem
como pela accedilatildeo de Tiacutetiro que se encontra deitado sob agrave sombra de uma frondosa
aacutervore enquanto toca na singela flauta uma muacutesica agreste Em resposta ao amigo
Melibeu Tiacutetiro afirma que pode desfrutar da sombra e do oacutecio enquanto suas vacas
vagueiam graccedilas a um deus que lhe proporcionou essa tranquilidade A temaacutetica
recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico diz respeito ao oacutecio dos pastores e estaacute
atrelada ao prazer do canto e ao locus amoenus lugar apraziacutevel em que figuram o
som da flauta as ovelhas cabras e aacutervores com sombras hospitaleiras
Eacute interessante que neste excerto da primeira bucoacutelica apareccedila na fala do
pastor Melibeu uma temaacutetica aparentemente contraacuteria agrave ideia de um lugar apraziacutevel
que eacute proposto pela poesia bucoacutelica Enquanto o pastor Tiacutetiro desfruta de um cenaacuterio
ameno Melibeu afirma que deixou os limites da paacutetria e os doces campos deixando
entrever que natildeo teve a mesma sorte que o feliz amigo Embora apareccedila uma temaacutetica
um pouco contraacuteria ao contexto singelo proposto pela poesia bucoacutelica devemos levar
em conta que toda depreensatildeo temaacutetica soacute eacute possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre as
figuras que se articulam e se encadeiam no interior do discurso formando uma rede
Com isso se pensarmos na trama figurativa de todo o poema bem como na
dominacircncia dos elementos notadamente bucoacutelicos podemos afirmar que o efeito
sugerido pelo contexto eacute predominantemente singelo
Logo observa-se que em um texto as muacuteltiplas significaccedilotildees de uma
determinada figura estatildeo sob o controle de um contexto em que se encaixam com
coerecircncia apenas algumas dessas possibilidades significativas
Pensando-se na totalidade discursiva foram destacados aqui os elementos que
datildeo corporalidade agrave voz simples do discurso bucoacutelico e que satildeo capazes de engendrar
a accedilatildeo dos atores bem como caracterizar o espaccedilo de atuaccedilatildeo das personagens O
efeito de individuaccedilatildeo pretendido eacute o humilde que se corporifica nas falas das
personagens bem como na espacialidade descrita
Com efeito o cenaacuterio presente na poesia pastoril difere do cenaacuterio encontrado
na poesia eacutepica Como observa Legrand (apud BOLEacuteO 1936 p 54-55) o ambiente
campestre pode contemplar um rochedo a espessura verde de um pequeno bosque
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uma fonte pinheiros olmos choupos carvalhos aves insetos etc Estas seratildeo
portanto figuras recorrentes na poesia de temaacutetica pastoril Mas eacute importante destacar
o modo como essas figuras se organizam e o modo como particularizam os temas que
abrangem a simplicidade e o viver ruacutestico do campo
Apoacutes a coleccedilatildeo de dez poemas de temaacutetica bucoacutelica Virgiacutelio compocircs as
Geoacutergicas obra classificada tradicionalmente como didaacutetica Mas ao compor um
poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo quis transmitir apenas conhecimentos
teacutecnicos sobre os trabalhos do campo tais como o tempo propiacutecio para realizar o
plantio e a colheita ou os procedimentos adequados para se castrar as colmeias Aliaacutes
se os criacuteticos da obra virgiliana se fixassem apenas nesse aspecto temaacutetico a obra
seria classificada como um tratado teacutecnico de agronomia todavia as Geoacutergicas
representam muito mais do que um simples compecircndio de aplicaccedilatildeo praacutetica sobre
meacutetodos a serem seguidos na agricultura jaacute que da totalidade de preceitos uacuteteis e
praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas aqueles que convecircm
agrave finalidade artiacutestica e poeacutetica
De acordo com Trevisam (2014 p 30) a palavra ldquodidaacuteticordquo remonta ao verbo
grego didaacutesco (lat doceo de mesma raiz indo-europeia) cujos sentidos oferecidos
em dicionaacuterio especializado incluem ldquoensinarrdquo e ldquoinstruirrdquo Assim de iniacutecio podemos
dizer que todo poema didaacutetico se compromete essencialmente com a instruccedilatildeo do
seu puacuteblico Os quatro cantos das Geoacutergicas satildeo organizados a partir de diferentes
temaacuteticas No primeiro livro fala-se da lavoura no segundo da arboricultura
sobretudo a viticultura no terceiro da pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no
quarto da apicultura como assim descreve Virgiacutelio no iniacutecio do Canto I
(Geo Canto I hex 1-5)
Quid faciat laetas segetes quo sidere terram uertere Maecenas ulmisque adiungere uitis conueniat quae cura boum qui cultus habendo sit pecori apibus quanta experientia parcis hinc canere incipiam
Agora comeccedilarei a celebrar o que faz as colheitas feacuterteis com que astros Mecenas conveacutem arar a terra e unir as videiras aos olmeiros que cuidados aos bois que conduta seguir para que seja mantido o rebanho quanta experiecircncia para as parcas abelhas
As Geoacutergicas apresentam um caraacuteter instrutivo proacuteprio do gecircnero da poesia
didaacutetica e empregam uma gama variada de modos discursivos tais como exposiccedilatildeo
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descriccedilatildeo narraccedilatildeo inserccedilatildeo de episoacutedios mitoloacutegicos faacutebulas etc aleacutem de contar
com a presenccedila de uma voz didaacutetica que se coloca como magister para ditar os
conhecimentos relativos agrave agricultura (TREVISAM 2014)
Pensando-se nessa temaacutetica de caraacuteter instrutivo os tratadistas antigos
nomearam para as Geoacutergicas o estilo meacutedio que eacute destinado a assuntos moderados
Logo o efeito de sentido mediano apoia-se dessa forma no conjunto de temas e
figuras utilizados Destacam-se alguns exemplos
(Geo I 176-177)
Possum multa tibi ueterum praecepta referre ni refugis tenuisque piget cognoscere curas
Posso contar-te muitos preceitos dos antigos se natildeo te esquivas nem te daacute fastio em conhecer pequenos cuidados
Nestes dois hexacircmetros antes de introduzir o tema dos cereais a voz poeacutetica
pede licenccedila para tratar de assuntos considerados menores e ainda no mesmo canto
essa voz continua a prever que se poderaacute achar despreziacutevel o toacutepico do cultivo da
lentilha da Peluacutesia
(Geo I 227-230)
Si uero uiciamque seres uilemque phaselum nec Pelusiacae curam aspernabere lentis haud obscura cadens mittet tibi signa Bootes incipe et ad medias sementem extende pruinas
Se plantares a ervilha e o humilde feijatildeo e natildeo desprezares cuidar da lentilha da Peluacutesia6 o Boieiro7 ao se pocircr dar-te-aacute sinais bem claros
comeccedila e prolonga a semeadura ateacute o meio das geadas Sobre o Canto I das Geoacutergicas aliaacutes vale destacar as palavras de Trevisam
(2014 p 190-191)
O livro I das Geoacutergicas virgilianas descortina ao leitor o espetaacuteculo da luta humana pela sobrevivecircncia diaacuteria fruto do trabalho de nossas matildeos segundo descrito pelo poeta eacute essa a parcela da obra em que se concentram preceitos didaacuteticos em nexo com o plantio dos campos cerealistas donde nos vem o patildeo siacutembolo por excelecircncia da vida material civilizada Nesse contexto como muitas e por vezes
6 Peluacutesio ou Boca Peluacutesia cidade antiga do baixo Egito 7 Boieiro uma constelaccedilatildeo do hemisfeacuterio celestial norte
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penosas satildeo descritas as vaacuterias operaccedilotildees de cultivo necessaacuterias a exemplo da primeira arada do solo (v 43-46) da escolha das sementes (v 197-200) da feitura de uma eira para debulha das espigas (v 176-186) e da adubaccedilatildeo (v 80)
Com efeito o cenaacuterio presente no Canto I das Geoacutergicas deixa entrever
sobretudo a importacircncia do trabalho e as teacutecnicas de cultivo desde o preparo do solo
ateacute sua adubaccedilatildeo e o iniacutecio do plantio A voz didaacutetica presente no texto coloca-se na
posiccedilatildeo de um magister que presta orientaccedilotildees sobre esse tema O efeito de sentido
engendrado eacute de caraacuteter instrutivo e os assuntos tratados satildeo considerados triviais O
estilo mediano portanto constroacutei-se a partir dessa recorrecircncia temaacutetica e das figuras
que lhe datildeo corporalidade no enunciado
Como marco da literatura latina a Eneida foi escrita a pedido do imperador
Otaviano8 Assim a epopeia de Virgiacutelio busca enaltecer Roma senhora do mundo e
consequentemente engrandecer a figura de Otaviano como princeps O estilo
reconheciacutevel eacute o sublime devido a recorrecircncia de temas e figuras que datildeo ao discurso
o efeito de sentido grandiloquente proacuteprio da eacutepica
(Eneida Canto I ndash hex 1- 11)
Arma uirumque cano Troiae qui primus ab oris Italiam fato profugus Lauinaque uenit litora ndash multum ille et terris iactatus et alto ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram multa quoque et bello passus dum conderet urbem inferretque deos Latio genus unde Latinum Albanique patres atque altae moenia Romae Musa mihi causas memora quo numine laeso quidue dolens regina deum tot uoluere casus insignem pietate uirum tot adire labores impulerit Tantaene animis caelestibus irae
Canto as armas e o varatildeo que impelido pelo destino primeiro veio das praias de Troia ateacute agrave Itaacutelia e ao litoral Laviacutenio ele foi muito perseguido tanto em terra como no mar e pela forccedila dos deuses e pela ira lembrada da cruel Juno ele sofreu muito na guerra ateacute que natildeo fundasse uma cidade e introduzisse os deuses no Laacutecio onde surgiriam a raccedila latina e os chefes Albanos e as muralhas da soberba Roma Oacute musa recorda-me as causas por que a divindade ofendida ou por qual maacutegoa a rainha dos deuses obrigou um varatildeo notaacutevel por
8 Caio Otaacutevio filho de famiacutelia senatorial tornou-se Caio Juacutelio Ceacutesar Otaviano herdeiro legal e poliacutetico de Ceacutesar em 27 aC jaacute firmemente estabelecido como senhor do mundo tornou-se Ceacutesar Augusto (BOWDER 1980 p42)
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sua piedade a correr tantos perigos e a enfrentar tantos trabalhos Por que tanta ira nos espiacuteritos celestes
A eacutepica eacute marcada como se vecirc no pequeno excerto pela figura do heroacutei e suas
aventuras Eneias o ilustre varatildeo cumpre seu destino ao sair das praias de Troia e
chegar ao litoral Laviacutenio na Itaacutelia onde se construiratildeo as muralhas da soberba Roma
A musa a ser lembrada eacute a da poesia eacutepica que inspira temas grandiosos sobre as
aventuras do heroacutei O efeito de individuaccedilatildeo apoia-se dessa forma na recorrecircncia de
figuras que contribuem para a corporalidade do eacutepico Depreende-se o estilo
grandiloquente a partir da imagem construiacuteda do heroacutei bem como por suas accedilotildees
desde que saiu das praias de Troia e deu iniacutecio agrave sua empreitada O estilo marca um
efeito de individualidade que pode ser captado pela recorrecircncia temaacutetica e figurativa
presente no discurso O efeito grandiloquente emerge portanto de um contexto que
lhe daacute corporalidade para existir
Ao falar em estilo falamos portanto em unidade pensando-se na recorrecircncia
temaacutetica e figurativa predominante nos discursos bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Para cada
estilo singelo meacutedio e grandiloquente haacute um efeito de individuaccedilatildeo marcado pela
recorrecircncia de temas e figuras e pelas relaccedilotildees de sentido detectadas que
permanecem no discurso e deixam entrever uma unidade A recorrecircncia de temas e
figuras engendram assim uma previsibilidade e um modo de ser dos textos
Nosso objetivo eacute enfim demonstrar que eacute possiacutevel descrever os trecircs estilos
singelo meacutedio e grandiloquente tendo como apoio teoacuterico a Semioacutetica Greimasiana
Para tanto buscaremos em excertos representativos das trecircs obras de Virgiacutelio a
recorrecircncia temaacutetica e figurativa que imprime assim um modo proacuteprio de dizer
configurando o efeito de individuaccedilatildeo de cada estilo
Em Virgil in the Renaissance Wilson-Okamura (2010 p 90) fala-nos sobre o
mito que cerca a Roda de Virgiacutelio O criacutetico menciona que a Roda tem origem
medieval pois sua expressatildeo se origina no iniacutecio do seacuteculo XIII com Joatildeo de
Garlacircndia mas para o criacutetico embora o termo ldquoRoda de Virgiacuteliordquo seja mencionado em
alguns estudos do Renascimento o uso ou a menccedilatildeo que se faz agrave Roda carece de
precisatildeo sobre o termo Segundo Wilson-Okamura muitos estudiosos escrevem
sobre a Roda como se ela fosse uma progressatildeo de gecircneros comeccedilando com o
gecircnero pastoral (Bucoacutelicas) passando pelo gecircnero didaacutetico (Geoacutergicas) e terminando
com o eacutepico (Eneida) Na opiniatildeo do criacutetico isso faz tanto sentido quanto dizer que
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uma roda de cores comeccedila com o vermelho e termina com o violeta jaacute que por
definiccedilatildeo as rodas natildeo tecircm pontos finais pois trazem uma ideia de continuidade de
um movimento circular ao redor de um eixo Wilson-Okamura (2010 p 91) esclarece-
nos assim que a Roda natildeo diz nada sobre gecircneros nem sobre uma progressatildeo entre
eles Os aros concecircntricos presentes na Roda satildeo organizados de acordo com os
estilos e natildeo de acordo com os gecircneros Aleacutem disso o objetivo da Roda para Wilson-
Okamura natildeo eacute ditar qual gecircnero deve aparecer primeiro mas sim mostrar como os
caracteres satildeo dispostos em diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo por exemplo os poemas
no estilo mediano natildeo devem apresentar espadas ou pastores porque espadas
pertencem ao contexto do estilo grave enquanto os pastores satildeo parte de um cenaacuterio
que eacute proacuteprio do estilo humilde
De acordo com Wilson-Okamura (2010) a Roda de Virgiacutelio natildeo eacute um termo
usado pelos autores no Renascimento pois se trata de uma concepccedilatildeo acerca da
carreira de Virgiacutelio como extensatildeo de todos os niacuteveis de estilo que ecoaram nos
comentaacuterios do Renascimento
Segundo o criacutetico Virgiacutelio criou os seus trecircs trabalhos em um triacuteplice estilo
Para as Bucoacutelicas ele caracteriza as coisas em um estilo delicado registrando o
cenaacuterio com caracteres amenos Nas Geoacutergicas o poeta vale-se de um estilo
mediano utilizando caracteres que registram um cenaacuterio moderado e na Eneida lanccedila
matildeo de caracteres graves para registrar o cenaacuterio das guerras e batalhas O que
define a carreira de Virgiacutelio para Wilson-Okamura (2010) eacute o domiacutenio dos trecircs estilos
pois o que define o sucesso de Virgiacutelio natildeo eacute a sequecircncia de gecircneros mas sim a
representaccedilatildeo que o poeta fez de cada estilo sendo por fim esta forma de
representaccedilatildeo e natildeo os gecircneros o que os poetas e criacuteticos modernos devem apreciar
na carreira de Virgiacutelio
Embora Wilson-Okamura fale de caracteres proacuteprios a cada estilo e natildeo
mencione termos semioacuteticos tais como recorrecircncia temaacutetica e figurativa o que ele
pretendeu destacar sobre os trecircs tipos de estilo vai ao encontro daquilo que
acreditamos o de que satildeo elementos engendrados no discurso e que mantecircm um
caraacuteter de individuaccedilatildeo Quando Wilson-Okamura muito bem destaca os diferentes
contextos de atuaccedilatildeo das personagens ele quer com isso mostrar a coerecircncia de
figuras que satildeo proacuteprias a cada discurso O criacutetico mostra ainda o conteuacutedo da Roda
arranjado verticalmente
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Tabela 1- The spokes of Virgilrsquos Wheel
Lowly (humilis) style Middle (mediocris) style Weighty (grauis) style
Shepherd at ease Farmer Soldier ruler
Tityrus Meliboeus Triptolemus Coelius Hector Ajax
Sheep Cow Horse
Crool Plow Sword
Pasture Field city camp
Beech apple pear Laurel cedar
Fonte Extraiacutedo de Wilson-Okamura 2010 p 91
Com isso Wilson-Okamura demonstra que as colunas da Roda satildeo
organizadas de acordo com os estilos e natildeo de acordo com os gecircneros jaacute que o
objetivo da roda natildeo eacute ditar qual gecircnero deve ser apresentado primeiro mas sim
ensinar o que eacute proacuteprio de cada cenaacuterio de atuaccedilatildeo
Concordamos portanto com o pensamento do criacutetico e destacamos ainda
que os caracteres por ele mencionados devem ser entendidos a partir da Semioacutetica
como figuras que se coadunam para atuaccedilatildeo em cenaacuterios especiacuteficos seja bucoacutelico
didaacutetico ou eacutepico
Embora o esquema circular tripartido de Joatildeo de Garlacircndia tenha recebido o
nome de A Roda de Virgiacutelio muito se tem discutido acerca dos elementos colocados
em seus trecircs aros concecircntricos
Em Literary Names Personal Names in English Literature Alastair Fowler
(2012 p29) discorre acerca dos nomes proacuteprios presentes na Roda de Virgiacutelio Os
nomes citados no estilo grave por exemplo satildeo Hector e Ajax personagens de
Homero (seacutec VIII aC) pois neste estilo cabem nomes lendaacuterios e histoacutericos Por isso
a Eneida a eacutepica virgiliana eacute associada a este estilo9 Enquanto isso Triptolemus e
Coelius (agraves vezes Caelius) nomes referenciados no estilo mediano satildeo nomes
comuns e que portanto de acordo com Fowler assemelham-se ao contexto de um
estilo moderado ainda que os nomes tenham alguma alusatildeo lendaacuteria como no caso
de Triptolemus heroacutei de Elecircusis - regiatildeo da Aacutetica Ocidental na Greacutecia - que foi
9 Aleacutem disso em Virgiacutelio haacute menccedilatildeo a Ajax no Canto I hex 41 e Canto II hex 414 A figura de Heitor (Hector) jaacute aparece em vaacuterios contextos Canto I- hex 99 483 750 Canto II ndash hex 270 275 282 522 Canto III- hex 312 319 343 Canto V- hex 371 Canto VI- hex 166 Canto IX- hex 155 Canto XI- hex 289 Canto XII- hex 440 Aleacutem de Hectoreus em Canto I ndash hex 273 Canto II- hex 543 Canto III- hex 304 488 Canto V- hex 190 634
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agraciado com o dom da agricultura no Hino Homeacuterico a Demeacuteter I10 Diz-se que em
Elecircusis aliaacutes era comum o culto agrave deusa agriacutecola Demeacuteter Triptolemus eacute um nome
portanto relacionado ao contexto da agricultura presente nas Geoacutergicas ainda que
natildeo seja necessariamente uma personagem de Virgiacutelio Em se tratando do estilo
simples seguindo o pensamento de Fowler Tiacutetiro e Melibeu satildeo nomes comuns de
pastores presentes tanto em Teoacutecrito (300-260 aC) poeta grego do Periacuteodo
Heleniacutestico como em Virgiacutelio Fowler aponta assim para o tipo de nomeaccedilatildeo
especiacutefica a partir de cada estilo e seu contexto correspondente o que vai ao encontro
da ideia exposta por Wilson-Okamura a de que os caracteres se moldam a partir de
seu contexto de atuaccedilatildeo
Podemos observar que as obras de Virgiacutelio foram identificadas com os trecircs
tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica A Roda de Virgiacutelio no seacuteculo XIII
mapeando essa identificaccedilatildeo aponta em cada um de seus aros concecircntricos os
caracteres coerentes para cada contexto de atuaccedilatildeo seja ele singelo meacutedio ou
grandiloquente o que deixa entrever que para cada cenaacuterio construiacutedo haacute figuras
especiacuteficas que lhe datildeo corporalidade Com isso entendemos cada estilo como um
efeito de individuaccedilatildeo como uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa depreensiacutevel do
discurso
10 Este eacute um dos quatro hinos homeacutericos mais extensos Satildeo chamados homeacutericos porque pertencem ao gecircnero eacutepico e por apresentarem uma teacutecnica de composiccedilatildeo anaacuteloga agrave obra homeacuterica Na realidade sua autoria eacute desconhecida
46
3 A criacutetica virgiliana
31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida
Na introduccedilatildeo dos seus dois conjuntos de ensaios Vergilrsquos Eclogues e Vergilrsquos
Georgics publicados em 2008 Katharina Volk discorre sobre as diferentes
abordagens acadecircmicas acerca da vida e obra de Virgiacutelio Procuramos destacar aqui
os comentaacuterios que julgamos mais relevantes
Volk (2008) afirma assim que haacute leituras divergentes em relaccedilatildeo agraves trecircs obras
virgilianas e que realizar um panorama geral dos estudos virgilianos eacute uma tarefa
assustadora devido agraves inuacutemeras interpretaccedilotildees No entanto segundo a estudiosa a
discussatildeo da criacutetica virgiliana apesar de divergente e ampla merece destaque Ela
enfatiza entatildeo as abordagens acadecircmicas a partir da deacutecada de 70
Segundo Volk o estudo das Bucoacutelicas e das Geoacutergicas de Virgiacutelio ficaram um
bom tempo agrave margem dos estudos sobre Eneida pois eram obras citadas como
exemplo de menor gecircnero e fruto do trabalho de um poeta jovem As Bucoacutelicas
frequentemente eram citadas como um livro de preparaccedilatildeo para a grande eacutepica a
obra-prima em que a vida e o trabalho de Virgiacutelio alcanccedilaram segundo a criacutetica
tradicional o seu aacutepice Embora o gecircnero bucoacutelico tenha usufruiacutedo de acordo com
Volk periacuteodos de grande popularidade em vaacuterios pontos da histoacuteria da literatura
ocidental os poemas pastoris de Virgiacutelio eram estudados menos frequentemente que
a Eneida e segundo a especialista as publicaccedilotildees sobre a eacutepica virgiliana
ultrapassavam de longe os primeiros poemas Para Volk isso natildeo quer dizer no
entanto que natildeo se tenha nas Bucoacutelicas e Geoacutergicas um trabalho consideraacutevel Ela
destaca portanto os uacuteltimos trinta anos ou mais que foram contemplados com
publicaccedilotildees de grande criacutetica Dentre as publicaccedilotildees de destaque Volk menciona
Coleman (1977) Clausen (1994) e numerosos livros e artigos representativos de
ambas as obras virgilianas
O aumento de publicaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves duas obras consideradas ldquomenoresrdquo
de Virgiacutelio deve-se de acordo com Volk ao desenvolvimento e avanccedilo dos estudos
da Literatura Latina no final do seacuteculo XX e iniacutecio do seacuteculo XXI Hoje apesar da
multiplicidade de abordagens dificultar uma visatildeo geral acerca da obra virgiliana
parece possiacutevel segundo a especialista discernir ao menos duas principais vertentes
criacuteticas na obra do poeta mantuano
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A primeira vertente envolve as leituras que para Volk podem ser chamadas de
ldquoideoloacutegicasrdquo Satildeo as abordagens acadecircmicas baseadas na ideia de que os poemas
de Virgiacutelio foram concebidos para transmitir uma mensagem que o criacutetico de uma
certa forma esforccedila-se para descobrir Nesta mensagem subliminar pode-se
considerar a situaccedilatildeo social e poliacutetica em que a obra foi concebida ou avaliaccedilotildees
criacuteticas acerca da posiccedilatildeo social e poliacutetica de Virgiacutelio Ao poeta assim eacute creditada
uma visatildeo positiva ou otimista natildeo soacute para a vida pastoril apresentada em seu poema
como tambeacutem para a ascendecircncia de Otaviano
A partir da deacutecada de 70 os criacuteticos passaram a ver certa ambivalecircncia e ateacute
certo pessimismo nas Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida demonstrando que o poeta natildeo
era totalmente a favor da poliacutetica de Otaviano Segundo Virgiacutenia Soares (1984 p 173)
A criacutetica respeitante agrave obra de Virgiacutelio conta cerca de dois mil anos Cada eacutepoca procurou na Eneida o poema que se ajustava agraves suas vivecircncias Por isso tecircm sido tantas e tatildeo diferentes contraditoacuterias mesmo as abordagens interpretativas do poema Eacutepocas houve confiantes no futuro e na funccedilatildeo regeneradora de um estado providencial e organizado que na Eneida viram o poema da glorificaccedilatildeo de Augusto e da missatildeo civilizadora de Roma
Assim as leituras de vertente ldquoideoloacutegicardquo concentraram-se em determinar as
nuances ldquootimistasrdquo ou ldquopessimistasrdquo das obras de Virgiacutelio demonstrando se os
escritos do poeta eram coerentes ou natildeo com o programa poliacutetico de Otaviano No
entanto segundo Volk houve uma reavaliaccedilatildeo dos estudos virgilianos nos uacuteltimos
anos e os especialistas inclinaram-se mais a uma interpretaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a
Virgiacutelio e a poliacutetica de sua eacutepoca
A segunda vertente por fim envolve as ldquoleituras literaacuteriasrdquo das obras virgilianas
Finalmente para Volk as criacuteticas mais atuais passaram a dar enfoque agraves questotildees
de poeacutetica ou seja em como Virgiacutelio compromete-se a inscrever seus proacuteprios
esforccedilos dentro de uma particular tradiccedilatildeo literaacuteria Nesta abordagem estatildeo presentes
as discussotildees sobre os gecircneros dos poemas a intertextualidade e as diferentes
formas como cada obra se realiza
No entendimento de Volk as duas vertentes podem se complementar Enquanto
as leituras ideoloacutegicas preocupam-se com o papel do poeta e sua visatildeo poliacutetica a
vertente literaacuteria tem muito a dizer sobre os poemas em si Mas segundo ela muito
se tem a dizer ainda sobre a poesia de Virgiacutelio
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Nos anos 70 houve um suacutebito florescimento dos estudos das Bucoacutelicas de
Virgiacutelio especialmente no mundo da Liacutengua Inglesa em que Putnam (1970) publicou
a primeira monografia e logo foi seguido por Berg (1974) Leach (1974) Van Sickle
(1978) e Alpers (1979) assim como a criacutetica de Coleman em 1977 Alguns fatores
contribuiacuteram segundo Volk para esse florescimento primeiro os estudos literaacuterios
assistiram a um aumento consideraacutevel de novas composiccedilotildees da poesia pastoril
(bucoacutelica) o que fez Eleanor W Leach a proclamar no prefaacutecio do seu livro em 1974
uma nova idade de ouro da criacutetica da poesia bucoacutelica segundo inspirados pelo New
Criticism os estudiosos encontraram nos enigmaacuteticos e complexos poemas pastoris
de Virgiacutelio um terreno feacutertil para interpretaccedilotildees simboacutelicas terceiro a leitura
pessimista que se fez da eacutepica virgiliana em relaccedilatildeo agrave poliacutetica de Otaviano na deacutecada
de 60 ampliou o interesse dos estudiosos pelas outras duas obras
Volk cita algumas leituras pessimistas das Bucoacutelicas e entre elas estatildeo
Putnam (1970) Leach (1974) e Segal (1981) com uma coleccedilatildeo de artigos bucoacutelicos
de Teoacutecrito e Virgiacutelio publicados originalmente entre 1965 e 1977 aleacutem de Boyle
(1986) e MOLee (1989) entre outros Estas obras segundo a especialista refletem
uma visatildeo das obras pastoris em geral e das Bucoacutelicas de Virgiacutelio trazem a ideia de
uma fantasia evasiva rural
A ideia de que Virgiacutelio nas Bucoacutelicas tenha criado uma espeacutecie de ldquopaisagem
espiritualrdquo que ele chamou de Arcaacutedia foi formulada por Bruno Snell em 1945 o que
influenciou muitos estudos Entre os pesquisadores representativos desse tipo de
visatildeo utoacutepica das Bucoacutelicas estaacute Friedrick Klinger que em 1967 publicou uma
monografia com seus estudos e reflexotildees acerca da obra de Virgiacutelio
Nas interpretaccedilotildees pessimistas no entanto as Bucoacutelicas nunca apresentam
um mundo bucoacutelico ideal mas sempre um que estaacute em perigo foi perdido ou estaacute
sendo abandonado Os criacuteticos aos poucos foram desconstruindo a visatildeo de Snell
chamando a atenccedilatildeo para contradiccedilotildees poliacuteticas apresentadas nos poemas pastoris
de Virgiacutelio Um latinista alematildeo Ernst Schmidit todavia ataca a Arcaacutedia por um
acircngulo diferente Na visatildeo de Schmidit qualquer leitura ideoloacutegica dos poemas de
Virgiacutelio baseava-se em mal-entendidos As Bucoacutelicas segundo ele natildeo satildeo
panegiacutericos poliacuteticos louvor do campo ou algum estado ideal de vida humana tal
como a Idade de Ouro ou a Arcaacutedia para Schmidit os poemas satildeo sobre a proacutepria
poesia
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Muitas das publicaccedilotildees acadecircmicas das uacuteltimas deacutecadas segundo Volk
preocupavam-se mais com as Bucoacutelicas como poesia ou com o que a obra tem a dizer
sobre poesia do que o posicionamento poliacutetico do poeta Dentre as anaacutelises
formalistas sobre o estilo e a linguagem nas bucoacutelicas de Virgiacutelio incluem-se Lipka
(2001) os ensaios de RGNisbet (1991) e Rumpf (1999) Sobre o jogo etimoloacutegico
das Bucoacutelicas destaca-se ainda o trabalho de OrsquoHara (1996) Para Volk questotildees
acerca do gecircnero bucoacutelico tecircm sido sempre um foco de reflexatildeo nos estudos das
Bucoacutelicas Hubbard (1998 p18) insistindo na construccedilatildeo intertextual do poema
pastoril propocircs que o gecircnero bucoacutelico fosse constituiacutedo pelo posicionamento de cada
poeta diante de seu antecessor Aleacutem disso Volk tambeacutem destaca o estudo de Breed
(2006) que examina nas Bucoacutelicas a suposta cultura da oralidade dos seus pastores
protagonistas Dentre as obras de criacutetica sobre o gecircnero bucoacutelico tambeacutem
sublinhamos o estudo de Joatildeo Pedro Mendes em Construccedilatildeo e arte nas Bucoacutelicas de
Virgiacutelio assim como o trabalho de Alexandre Hasegawa em Os limites do gecircnero
bucoacutelico em Vergiacutelio
No que diz respeito agrave criacutetica das Geoacutergicas destacamos o pensamento de Ruy
Mayer (1948 p 15) que afirma que a exaltaccedilatildeo do trabalho e da prece eacute a essecircncia
filosoacutefica das Geoacutergicas jaacute que a obra
relaciona-se com um objetivo social ou antes poliacutetico restaurar o prestiacutegio da vida agriacutecola um dos pilares da ordem nova que Augusto se propunha a instituir e com um objetivo teacutecnico ensinar os bons preceitos agronocircmicos os meacutetodos racionais da cultura e da exploraccedilatildeo pecuaacuteria envolvendo a doutrina na delicada trama da poesia o meio de transmissatildeo mais apropriado para o gosto e para os usos da eacutepoca
Sublinha-se tambeacutem o pensamento de Santos (2007 p 17) que atesta que ao
cantar a terra e os encantos da vida rural Virgiacutelio talvez pudesse incentivar a volta ao
campo de milhares de camponeses que estavam desempregados na cidade e
consequentemente poder-se-ia ldquorestaurar a agricultura itaacutelica que se encontrava em
plano inferior devido agraves guerras civisrdquo
Mecenas o patrono das letras foi um auxiliar uacutetil e leal de Otaviano Atuando
como intermediaacuterio em vaacuterios assuntos ele foi encarregado da administraccedilatildeo de
Roma Segundo a tradiccedilatildeo foi ele quem sugeriu o poema das Geoacutergicas a Virgiacutelio
pois como afirma-nos Santos (2007 p18) isso corresponderia ao programa poliacutetico
50
de Otaviano o retorno agrave agricultura Na eacutepoca a celebraccedilatildeo do trabalho agriacutecola e do
ofiacutecio do lavrador eram bastante significativos jaacute que a agricultura era uma das bases
da grandeza de Roma pois ocupava importante posiccedilatildeo na economia do Oriente e
era uma fonte de riqueza importante para os conquistadores
Para La Penna (1988 p71-72 apud Santos 2007 p18) seria um erro supor
que a obra de Virgiacutelio serviria como guia para os agricultores da Itaacutelia pois o que se
desejava na verdade era um impulso ideal que favorecesse um retorno agrave terra com
confianccedila no trabalho e no Estado romano-itaacutelico Grimal (1992 p123) afirma ainda
que Mecenas eacute apenas o vento que empurra a embarcaccedilatildeo natildeo sendo portanto seu
piloto nem comandante O patrono das letras assim eacute destacado neste pequeno
excerto das Geoacutergicas (Canto II 39-41)
Tuque ades inceptumque una decurre laborem o decus o famae merito pars maxima nostrae Maecenas pelagoque uolans da uela patenti
E tu estaacutes presente e percorre o trabalho empreendido oacute honra Mecenas a melhor parte da minha fama com justiccedila voando daacute velas ao extenso mar
Segundo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos Mecenas mobilizava talentos como
Virgiacutelio e Horaacutecio a serviccedilo do regime propondo-lhes alguns temas Para Santos
(2007 p 21) talvez estes poetas ldquotivessem se agrupado ao redor de Mecenas por
encontrarem nele uma concepccedilatildeo de vida e de arte Provavelmente o novo regime
correspondesse agraves suas aspiraccedilotildeesrdquo
Na visatildeo de Ruy Mayer (1948 p19-20) em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo das
Geoacutergicas
eacute provaacutevel que o Poeta independente de qualquer incitamento sentisse a gravidade da decadecircncia agriacutecola da Itaacutelia e considerasse obra de utilidade nacional atrair agrave atividade agraacuteria muitos dos que a haviam deixado Mas como opina Skrine nem os propoacutesitos poliacuteticos de Augusto nem a intenccedilatildeo da iniciativa de Virgiacutelio de acudir ao agricultor romano explicam as Geoacutergicas O que explica esta incomparaacutevel obra de arte eacute o amor de Virgiacutelio pelo seu assunto o seu encanto pela Natureza a sua afeiccedilatildeo pelas fainas do campo a sua ternura pelos animais e pelas plantas tudo enfim quanto Saint-Beauve definiu magistralmente no capiacutetulo do seu ceacutelebre estudo que se intitula De quoi se compose le geacutenie et lrsquoart drsquoum Virgile
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No que concerne agrave Eneida a eacutepica virgiliana tem sido considerada pela tradiccedilatildeo
como um canto aos novos tempos do Impeacuterio jaacute que desde o anuacutencio de sua
concepccedilatildeo Otaviano colocava grandes esperanccedilas em seu projeto
Foi na eacutepoca em que Otaviano foi nomeado Ceacutesar Augusto portanto que os
escritores encontraram o que Leoni (1969 p 65) chama de completa harmonia pois
com Otaviano ao poder Roma entrou numa eacutepoca de paz tatildeo almejada depois das
tormentas das guerras civis Os feitos do imperador bem como sua poliacutetica
equilibrada e pacificadora exerceram influecircncia nas artes e literatura Deve-se
destacar que
A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)
Segundo Funari (2001 p 100)
Virgiacutelio foi o grande poeta eacutepico latino tendo composto na eacutepoca do
imperador Augusto (seacuteculo I aC) a Eneida um poema que contava
as origens heroicas do povo romano descendente dos troianos Na
mesma eacutepoca Tito Liacutevio escrevia uma monumental Histoacuteria de Roma
desde a fundaccedilatildeo ateacute Augusto Em ambos os casos as obras
representavam bem os planos de Augusto para glorificar as origens e
a histoacuteria de expansatildeo e domiacutenio romano do mundo
Virgiacutelio trama portanto em sua eacutepica um conjunto de situaccedilotildees e histoacuterias
remetendo-nos agrave nostalgia de tempos lendaacuterios em Roma Narram-se assim as
aventuras de Eneias heroacutei que possui aleacutem da sua origem humana uma linhagem
divina pois sua matildee eacute Vecircnus a deusa do amor O heroacutei em suas aventuras eacute guiado
pelo fatum (destino) que o leva a experimentar e a enfrentar o que lhe eacute apresentado
ao longo do caminho Sabe-se por fim que
A fundaccedilatildeo da nova estirpe que daraacute origem a Roma e ao Impeacuterio eacute uma missatildeo querida pela providecircncia divina reservada a um heroacutei perfeito ao heroacutei piedoso e paciente que se resigna a perder a esposa na ruiacutena de Troia a renunciar ao amor de Dido a obedecer ponto por
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ponto agraves ordens divinas a fim de ser porta-voz da vontade celeste (PARATORE 1983 p 402)
Desde a saiacuteda de Troia incendiada Eneias jaacute sabe que estaacute destinado a fundar
uma ldquoNova Troiardquo Ele seraacute o responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses
do lar em solo latino Portanto ao longo da narraccedilatildeo o heroacutei tenta fazer cumprir o
seu destino
Dividida em doze cantos a epopeia virgiliana segue o modelo da Iliacuteada e a
Odisseia de Homero Segundo Antonio Medina Rodrigues (2005 p13) embora
Homero tenha sido o modelo os guerreiros da Iliacuteada adotam uma postura narciacutesica
enquanto os guerreiros da Eneida satildeo marcados pela pietas de Eneias
Sobre isso vale aqui destacar o seguinte comentaacuterio de Andreacute Bellesort (1949
p 261 apud THAMOS 2011 p 49 nota 16)
A Eneida natildeo seria o grande poema de Roma e da civilizaccedilatildeo latina se natildeo tivesse um interesse universal Natildeo lhe compreendemos todas as belezas e toda a majestade que nos reportam agraves Antiguidades romanas e ao Impeacuterio mas afora circunstacircncias histoacutericas que poderiacuteamos desconhecer ela eacute uma dessas poucas obras nas quais a menos que a si mesma se renegue a humanidade se reconhece junto com a natureza e em que experimentamos um maravilhoso prazer contemplando o espetaacuteculo de nossas proacuteprias miseacuterias Ela nos oferece com os encantos da mais fina e vigorosa arte emoccedilotildees profundamente humanas
Assim a Eneida eacute ao lado da Iliacuteada e da Odisseia de Homero um dos maiores
eacutepicos da Literatura Universal Soares (1984) nomeia alguns dos estudos sobre a
Eneida The two voices of Virgils Aeneid (A PARRY) Linspiration tragique de
lEneacuteide (W S MAGUINNESS) The pessimism of the eighth Aeneid (CD S
WIESEN) An interpretation of the Aeneid (W CLAUSEN visatildeo pessimista) A study
of Vergils Aeneid (W R JOHNSON) Le poegraveme de linquieacutetude historique (J-P
BRISSON) A outra face de Eneias (W S MEDEIROS) Aeneas desairing (W W
DE GRUMMOND) Para a criacutetica a lista poderia se alongar e ainda assim os criacuteticos
natildeo esgotariam os temas presentes na epopeia latina Segundo a tradiccedilatildeo a eacutepica
virgiliana assim que foi publicada afirmou-se como a mais alta expressatildeo artiacutestica e
cultural que o mundo romano jamais produzira Sobre a poeacutetica de Virgiacutelio na Eneida
destacamos o estudo de Thamos As armas e o varatildeo (2011) Valendo-se dos
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recursos da Poeacutetica o criacutetico analisa a obra de Virgiacutelio do ponto de vista da expressatildeo
buscando o entendimento acerca da vocaccedilatildeo imageacutetica do texto latino
O que pensar portanto desta rede de informaccedilotildees que os bioacutegrafos e
estudiosos de Virgiacutelio reuniram Apesar da curiosidade que a vida e o posicionamento
poliacutetico do poeta possam despertar acreditamos que um estudo sobre a obra de
Virgiacutelio contemplando-se a sua poeacutetica a construccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico
dos textos possa render discussotildees para aleacutem de enigmas e posicionamentos que
satildeo externos ao texto Embora natildeo desmereccedilamos os estudos da vertente ideoloacutegica
valemo-nos daqueles que nos auxiliam a pensar o texto claacutessico do ponto de vista da
expressatildeo contribuindo assim para a nossa leitura semioacutetica das obras virgilianas
32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho
Segundo Andrew Laird (2010 p 138) a partir de meados de 1600 a palavra
italiana para carreira carriera havia se associado a uma vida de trabalho muito antes
do seu equivalente em inglecircs adquirir o mesmo sentido no iniacutecio do seacuteculo XIX De
fato o primeiro uso atestado de carriera estava relacionado agrave carreira literaacuteria No
prefaacutecio do seu Trattato dellarte e dello stile del dialogo (1662) o historiador e poeta
Pietro Sforza Pallavicino expressou os seus agradecimentos ao Bispo de Fermo por
ter encorajado a sua infacircncia na carreira das letras (la mia puerizia nella carriera
delle lettere)
Carriera como o latim via carraria da qual deriva originalmente denotava uma
estrada de carruagem ou faixa para um veiacuteculo com rodas (carrus) Para Laird (2010
p138) este significado acaba por ter uma ligaccedilatildeo feliz com a ideia de carreira literaacuteria
e segundo o criacutetico eacute improvaacutevel que isso seja coincidecircncia jaacute que na Idade Meacutedia
a mais influente carreira literaacuteria de todas foi visualizada como uma roda - a Rota
Vergilii ou Rota Vergiliana (a Roda de Virgiacutelio) Como jaacute mencionado aqui trata-se
de um arranjo das obras de Virgiacutelio pensando-se em seus respectivos temas e estilos
em um diagrama circular que parece ter se desenvolvido a partir do uso de rota como
sineacutedoque para a imagem claacutessica da carruagem das Musas uma imagem mediada
pelos professores da antiguidade tardia Segundo a tradiccedilatildeo quando Virgiacutelio concebe
seu cursus poeacutetico como um triunfo militar na abertura do Canto III das Geoacutergicas ele
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se vecirc como um vencedor coroado com palmas que vai colocar cem carruagens em
movimento Trata-se de uma passagem em que Virgiacutelio reconhece a importacircncia da
cultura grega para a elevaccedilatildeo literaacuteria latina e tambeacutem anuncia a construccedilatildeo de um
templo para Ceacutesar Augusto
(Geo Canto III hex 10-18) primus ego in patriam mecum modo uita supersit Aonio rediens deducam uertice Musas primus Idumaeas referam tibi Mantua palmas et uiridi in campo templum de marmore ponam propter aquam tardis ingens ubi flexibus errat Mincius et tenera praetexit harundine ripas In medio mihi Caesar erit templumque tenebit illi uictor ego et Tyrio conspectus in ostro centum quadriiugos agitabo ad flumina currus
Serei eu o primeiro se a vida me restar a trazer para a minha paacutetria as musas dos cumes Aocircnios11 O primeiro a trazer para ti oacute Macircntua12 as palmas de Idumea13 Em um campo verdejante edificarei um templo de maacutermore proacuteximo agraves aacuteguas na ribeira onde o majestoso Miacutencio14 vagueia em vagarosas curvas e [que ele] adorna com a delicada cana No meio do meu templo estaraacute Ceacutesar o vencedor e eu revestido da puacuterpura de Tiro15 farei correr cem quadrigas pela margem do rio
Essa passagem foi retomada pela criacutetica como uma sugestatildeo de uma eacutepica
futura Como um todo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos tem apontado em suas
composiccedilotildees uma progressatildeo da poesia bucoacutelica para a didaacutetica e depois da didaacutetica
para a eacutepica Como jaacute pontuamos aqui por meio das palavras de Wilson-Okamura
(2010) embora seja apontada na Roda uma ideia de progressatildeo entre os gecircneros
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico a Roda aponta para uma sequecircncia de diferentes estilos
que configuram cenaacuterios particulares a partir de efeitos de individuaccedilatildeo especiacuteficos
que nos remetem portanto ao cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
Segundo Laird (2010 p139) os leitores medievais prontamente assumiram
como haviam feito os antigos bioacutegrafos de Virgiacutelio que o elevado gecircnero poeacutetico da
11 Referente agrave Aocircnia regiatildeo da Beoacutecia na Antiga Greacutecia Virgiacutelio aqui reconhece a importacircncia da cultura grega para a cultura latina 12 Proviacutencia romana da regiatildeo da Lombardia Cidade natal de Virgiacutelio 13 Regiatildeo entre o mar Morto e o golfo de Aqaba 14 Rio da Itaacutelia com 73 km de extensatildeo 15 Diz-se que a puacuterpura de Tiro da regiatildeo feniacutecia era uma tinta natural de coloraccedilatildeo vermelho-puacuterpura extraiacuteda dos caramujos
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epopeia representava o aacutepice da carreira do poeta Essa interpretaccedilatildeo se deve ao fato
de que o estilo grandiloquente presente na eacutepica deixa entrever imagens de um
cenaacuterio em que figuram temas sublimes e com personagens ilustres Todavia vale
destacar que em termos de expressatildeo as trecircs obras virgilianas estatildeo em peacute de
igualdade O que muda eacute o tratamento temaacutetico presente em cada obra e com isso
os efeitos de individuaccedilatildeo de cada discurso que configuram cenaacuterios especiacuteficos de
atuaccedilatildeo
Para Laird (2010 p 146) os antigos podiam perceber uma progressatildeo nas
obras de Virgiacutelio - ou pelo menos um aumento em sua importacircncia - das Bucoacutelicas
para as Geoacutergicas das Geoacutergicas para a Eneida Como jaacute mencionado aqui essa
progressatildeo na verdade pode ser lida como uma continuidade temaacutetica do curso
poeacutetico de Virgiacutelio se pensarmos na Roda como um diagrama circular em que estatildeo
dispostos os diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo nomeados por Virgiacutelio e que sugestionam
diferentes efeitos de sentido seja o singelo o meacutedio e o grandiloquente
Pensando-se na ideia de continuidade temaacutetica no lugar da ideia de
progressatildeo Laird (2010 p 158-159) afirma que considerar todas as composiccedilotildees de
Virgiacutelio como parte de um uacutenico livro eacute audacioso pois equivale a considerar toda a
sua obra como um texto uacutenico16 Mas isso pode natildeo ser injustificado se pensarmos no
sentido esteacutetico e poeacutetico dos textos a sua forma de expressatildeo Haacute nas trecircs obras
uma diferenccedila temaacutetica e notadamente diferentes efeitos de individuaccedilatildeo que
sugerem cenaacuterios especiacuteficos Todavia se considerarmos os termos da expressatildeo
presentes nas trecircs obras podemos afirmar que as Bucoacutelicas Georgicas e Eneida
constituem uma unidade Aleacutem disso a representaccedilatildeo na Rota Virgiliana de cada um
dos poemas de Virgiacutelio como uma parte de um ciacuterculo inteiro trecircs em um poderia ser
um reflexo da ideia de totalidade17
A Rota Virgiliana serviu portanto como ferramenta para retoacutericos e poetas que
procuraram lembrar e replicar os trecircs estilos virgilianos ao mesmo tempo em que
16 Theodorakopoulos (1997) oferece uma leitura do livro de Virgiacutelio como um texto uacutenico William Dominik tambeacutem discute essa ideia no artigo ldquoNatureza escuridatildeo e sombras no supertexto de Virgiacuteliordquo Phaos 9 17 Carruthers (2008) afirma que a lsquoRoda de Virgiacutelio era claramente um diagrama mnemocircnico que se mantinha desde John of Garland aquiacute referenciado como Joatildeo de Garlacircndia sendo provaacutevel que possa ser fisicamente manipulada como sugerem seus ciacuterculos concecircntricos Para Laird (2010 p 158) a figura da retoacuterica rota Virgili pode fornecer a conexatildeo entre a palavra latina rota roda e a frase em inglecircs pela rotardquo
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contribuiu para transmitir uma identidade subjacente agraves obras de Virgiacutelio Mas para
Laird (2010 p 159) a forma circular da Roda natildeo pocircde linearizar as Bucoacutelicas
Geoacutergicas e Eneida em uma sequecircncia temporal
A Roda de Virgiacutelio dessa forma colocou em movimento a carreira literaacuteria do
poeta do Seacuteculo de Ouro da Literatura Latina servindo como veiacuteculo para o
entendimento de suas obras
57
4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto
41 Textos temaacuteticos e figurativos
Temos por enquanto de trabalhar no sentido de ver como eacute que essa estruturaccedilatildeo atua () organizando o substrato figurativo a partir do qual o texto entrama molda enforma o
tema ou temas que o discurso potildee em andamento [] Ignaacutecio Assis Silva 1995 p 12
Ao colocar em relevo o texto como um objeto de significaccedilatildeo considerando-o
como um todo de sentido dotado de uma estrutura especiacutefica deve-se colocar em
destaque os procedimentos e mecanismos que satildeo responsaacuteveis por sua organizaccedilatildeo
e tessitura
Embora a Semioacutetica Francesa natildeo ignore que o texto seja um objeto histoacuterico
ela procura estudaacute-lo como objeto de significaccedilatildeo e por isso preocupa-se em estudar
os mecanismos e procedimentos que o estruturam e o tramam como uma totalidade
de sentido
De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (1995 p 165-166)
a palavra texto proveacutem do verbo latino texo is texui textum texere que quer dizer tecer Logo da mesma maneira que um tecido natildeo eacute um amontoado desorganizado de fios o texto natildeo eacute um amontoado de frases nem uma grande frase Tem ele uma estrutura que garante que o sentido seja apreendido em sua globalidade que o significado de cada uma de suas partes dependa do todo
A Semioacutetica Francesa concebe o processo de formaccedilatildeo de um texto como um
percurso gerativo que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto
em um processo de enriquecimento semacircntico Em um primeiro momento a
Semioacutetica examina o plano do conteuacutedo e soacute depois vai destacar as especificidades
da expressatildeo e sua relaccedilatildeo com o significado
Dois satildeo os tipos de texto temaacuteticos e figurativos Os primeiros satildeo compostos
predominantemente de temas termos abstratos enquanto os segundos apresentam
preponderantemente figuras ou seja termos concretos
Entende-se tema e figura como dois mecanismos de atuaccedilatildeo do discurso O
tema que eacute abstrato revela um discurso predominantemente natildeo-figurativo como
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satildeo os textos jornaliacutesticos dissertaccedilotildees etc O objetivo destes textos eacute o de informar
explicar ou ainda catalogar A figura por outro lado parte de um tema abstrato para
concretizaacute-lo e com isso produz um discurso predominantemente figurativo Exemplo
disso satildeo os textos literaacuterios e histoacutericos Tema remete-nos portanto ao que eacute da
ordem do abstrato e figura remete-nos agravequilo que eacute concreto
Os textos predominantemente temaacuteticos (textos jornaliacutesticos acadecircmicos)
procuram explicar classificar e ordenar enquanto os textos predominantemente
figurativos (literaacuterios histoacutericos) tecircm uma funccedilatildeo descritiva narrativa poeacutetica O tema
abstrato eacute um investimento semacircntico de ordem conceitual enquanto a figura
corresponde a tudo que eacute perceptiacutevel no mundo natural
Assim a Semioacutetica Greimasiana oferece modelos para a anaacutelise da
significaccedilatildeo na dimensatildeo do discurso procurando demonstrar como os percursos da
significaccedilatildeo se organizam e se combinam a partir de regras sintaacutexicas e semacircnticas
responsaacuteveis pela coerecircncia de um texto Agrave Semioacutetica cabe avaliar como um texto vai
se tornando mais concreto a partir da instalaccedilatildeo de personagens e a introduccedilatildeo de
iacutendices espaccedilotemporais O conteuacutedo de um texto eacute engendrado por um percurso que
vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto manifestando-se assim
por meio de um plano da expressatildeo
Os textos com funccedilatildeo utilitaacuteria informam convencem explicam e documentam
eles tecircm um compromisso com o conteuacutedo e a informaccedilatildeo Enquanto isso os textos
com funccedilatildeo esteacutetica comprometem-se com a expressatildeo
De acordo com Ignaacutecio Assis Silva (1995 p 44)
a semioacutetica natildeo estaacute preocupada com o sentido que eacute da ordem da evidecircncia com o sentido que estaacute aiacute e que natildeo eacute senatildeo efeito de sentido produto em suma A fim de poder passaacute-lo adiante de poder falar dele eacute preciso ver a produccedilatildeo que engendrou esse efeito de sentido ou o processo criador como prefere dizer Cassirer
Ao leitor atento cabe portanto notar que eacute na relaccedilatildeo entre conteuacutedo e
expressatildeo que satildeo gerados os efeitos estiliacutesticos que determinam os elementos
essenciais de um texto
Procuremos entender no pequeno excerto das Geoacutergicas de Virgiacutelio ldquoCanto IIrdquo
hexacircmetros 315 a 345 os procedimentos de figuraccedilatildeo
59
Nec tibi tam prudens quisquam persuadeat auctor tellurem Borea rigidam spirante mouere rura gelu tum claudit hiems nec semine iacto concretam patitur radicem adfigere terrae optima uinetis satio cum uere rubenti candida uenit auis longis inuisa colubris prima uel autumni sub frigora cum rapidus Sol nondum hiemem contingit equis iam praeterit aestas uer adeo frondi nemorum uer utile siluis uere tument terrae et genitalia semina poscunt tum pater omnipotens fecundis imbribus Aether coniugis in gremium laetae descendit et omnis magnus alit magno commixtus corpore fetus auia tum resonant auibus uirgulta canoris et Venerem certis repetunt armenta diebus parturit almus ager Zephyrique tepentibus auris laxant arua sinus superat tener omnibus umor inque nouos soles audent se gramina tuto credere nec metuit surgentis pampinus Austros aut actum caelo magnis Aquilonibus imbrem sed trudit gemmas et frondes explicat omnis non alios prima crescentis origine mundi inluxisse dies aliumue habuisse tenorem
crediderim uer illud erat uer magnus agebat orbis et hibernis parcebant flatibus Euri cum primae lucem pecudes hausere uirumque terrea progenies duris caput extulit aruis immissaeque ferae siluis et sidera caelo nec res hunc tenerae possent perferre laborem si non tanta quies iret frigusque caloremque inter et exciperet caeli indulgentia terras
Que nenhum mestre tatildeo prudente te convenccedila a cavar a riacutegida Terra quando Boacutereas sopra18 Depois o inverno aperta os campos com a geada e nem com a semente lanccedilada permite que a espessa raiz se prenda agrave terra O melhor plantio para as vinhas eacute quando na roacutesea primavera chega a candida ave odiada pelas grandes serpentes sob os primeiros frios do outono quando o impetuoso sol com seus cavalos19 natildeo atingiu o inverno e jaacute o veratildeo ficou para traacutes Sobretudo a primavera uacutetil agrave folhagem dos bosques a primavera uacutetil agraves florestas na primavera as terras se intumescem e exigem as fecundas sementes20
18Ruy Mayer (1948 p 305) destaca em nota ao texto Prudens auctor eacute como se chama o sabichatildeo que sobre todos os assuntos daacute opiniatildeo Fazer a mobilizaccedilatildeo do solo quando sopra o vento Norte (Boacutereas) seria desastroso na Campacircnia onde esse vento eacute frio e violento e onde em terrenos soltos a aacutegua congela por camadas sucessivas tornando impossiacutevel semear ou plantar 19 Personificaccedilatildeo do sol que conduz seus cavalos luminosos para trazer o dia 20Para Ruy Mayer (1948 p 306) o presente excerto do Canto II das Geoacutergicas eacute um hino de maravilhosa perfeiccedilatildeo artiacutestica agraves energias criadoras da primavera apresentando uma elegacircncia e riqueza de formas incomparaacuteveis
60
Entatildeo o pai onipotente Eacuteter21 com chuvas fecundas desce sob o colo da feacutertil esposa22 e unindo-se a esse grande corpo alimenta todos os filhos Entatildeo as ramagens dos lugares afastados ressoam com as melodiosas aves e os rebanhos reivindicam Vecircnus23 em dias certos O nutriz campo daacute agrave luz por causa da brisa morna de Zeacutefiro24 as pastagens relaxam os seios um liacutequido suave ultrapassa todas as coisas e com confianccedila as ervas ousam entregar-se aos novos soacuteis e nem o pacircmpano teme os Austros25 que surgem ou a chuva impelida do ceacuteu pelos fortes Aquilotildees26 mas faz brotar os rebentos e estende todas as folhagens Natildeo acreditei que outros dias tenham iluminado na primeira origem do mundo nascente ou que tenham tido outro curso aquilo era primavera no grande orbe vivia a primavera e os Euros27 cessavam os invernosos ventos quando os primeiros animais viram a luz e a teacuterrea progecircnie do homem ergueu a cabeccedila das duras terras as feras foram enviadas para as florestas e os astros para o ceacuteu
Os delicados seres natildeo podiam sofrer esta opressatildeo se tanta tranquilidade natildeo se refugiasse entre o frio e o calor e se a indulgecircncia do ceacuteu natildeo acolhesse as terras
Neste pequeno excerto Virgiacutelio abandona as recomendaccedilotildees acerca das
teacutecnicas de plantaccedilatildeo da vinha para cantar sobre a primavera a estaccedilatildeo do ano em
que a natureza se encontra apta a germinar Trata-se de uma das digressotildees
presentes no texto das Geoacutergicas As terras assim como eacute descrito pelo poeta longe
do frio do inverno e dos impetuosos raios do sol incham-se e preparam-se para
receber as fecundas sementes com a chegada da nova estaccedilatildeo
Ao referir-se agrave primavera o poeta atesta que ela eacute uacutetil agraves aacutervores agraves florestas
aos bosques Ela eacute a proacutepria reproduccedilatildeo o periacuteodo feacutertil da terra e de toda a natureza
A figura da primavera marca um tempo de prosperidade fecundidade e germinaccedilatildeo
Com a chegada da primavera ocorre a uniatildeo entre o Ceacuteu e a Terra e daiacute
nascem todos os seres vivos Nesta estaccedilatildeo ainda o Pai onipotente Eacuteter desce sob
a forma de chuvas fecundas Eacuteter nesta passagem associa-se a Juacutepiter jaacute que
ambos representam o ceacuteu superior assumindo a paternidade de todas as coisas
Podem-se destacar deste excerto algumas figuras que remetem ao tema do
amor da uniatildeo dos seres da fecundidade e a procriaccedilatildeo tais como genitalia semina
21 Eacuteter a personificaccedilatildeo do ceacuteu profundo 22 A terra 23 Vecircnus deusa do amor e da beleza 24 Zeacutefiro o vento da Primavera 25 Austros os ventos 26 Aquilotildees Ventos frios tempestuosos 27 Euro vento leste criador de tempestades
61
- hex 324 (sementes fecundas) fecundis imbribus ndash hex 325 (chuvas fecundas)
coniugis laetae - hex 326 (esposa feacutertil)
Atraveacutes destas figuras tem-se a concretizaccedilatildeo de uma ideia abstrata o tema
da fertilidade e prosperidade da natureza No pequeno excerto a Terra e o Eacuteter satildeo
representados como dois amantes em uma relaccedilatildeo amorosa Unem-se para
produzirem a vida
Eacuteter eacute quem alimenta (alit ndash hex 327) ou seja impulsiona a vida e modela os
seres dando-lhes forma e a feacutertil esposa assim o recebe em um grande abraccedilo O
discurso figurativo aponta com isso para a imagem da Terra sendo fecundada
A partir daiacute as melodiosas aves cantam em celebraccedilatildeo a todos os elementos
da natureza e a terra que daacute agrave luz (Parturit ndash hex 330) relaxa com a brisa de Zeacutefiro
o vento da Primavera
Os rebanhos tambeacutem buscam Vecircnus a deusa do amor e da beleza nos dias
certos (Venerem certis repetunt armenta diebus ndash hex329) A figura de Vecircnus
representa aqui a ideia de uniatildeo o periacuteodo propiacutecio para a procriaccedilatildeo dos animais
Os brotos natildeo temem as chuvas nem as tempestades pois estatildeo acolhidos
crescem em seguranccedila e desabrocham A vida portanto eacute criada surgindo novos
ramos novas folhagens e novos seres O mundo nasce e se organiza graccedilas agrave
primavera Menciona-se ainda que na ldquoprimeira origem do mundo nascenterdquo (prima
crescentis origine mundi ndash hex 336) era a primavera que imperava Os primeiros
animais com isso viram a luz as feras povoaram as florestas e os astros o ceacuteu
Deixa-se entrever neste excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas o tema da
fertilidade e prosperidade da natureza pois o arranjo de figuras tais como
ldquoprimaverardquo ldquofecundas sementesrdquo ldquonutriz campordquo ldquoesposa feacutertilrdquo ldquochuvas fecundasrdquo
entre outras concretizam essa ideia A figura da primavera em especial torna o
cenaacuterio propiacutecio ao plantio e agrave procriaccedilatildeo dos animais destacando com isso a forma
como todo o cenaacuterio se modifica com a chegada da nova estaccedilatildeo
Logo as figuras satildeo os elementos concretos de um texto jaacute aos elementos
abstratos chamamos de temas Figura eacute o termo com que podemos designar algo
existente no mundo tais como ldquoprimaverardquo ldquovinhardquo ldquoflorestasrdquo ldquobosquesrdquo sementesrdquo
De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (2011 p 91) ldquoa figura eacute todo conteuacutedo de qualquer
liacutengua natural ou de qualquer sistema de representaccedilatildeo que tem um correspondente
perceptiacutevel no mundo naturalrdquo Mas o mundo natural e perceptiacutevel natildeo se refere
apenas ao mundo real mas tambeacutem aos ldquomundos fictiacutecios criados pela imaginaccedilatildeo
62
humanardquo As figuras podem ser dessa forma substantivos concretos verbos que
indicam accedilatildeo ou adjetivos que expressam um atributo fiacutesico das coisas e pessoas do
mundo percebido No que diz respeito ao Tema destaca-se que eacute o termo com que
designamos as palavras e expressotildees que satildeo responsaacuteveis pela explicaccedilatildeo de um
dado ou fato do mundo natural Trata-se de um ldquoinvestimento semacircntico de natureza
puramente conceptual que natildeo remete ao mundo naturalrdquo (FIORIN 2011 p 91) No
pequeno excerto a ideia de fertilidade prosperidade e germinaccedilatildeo da natureza eacute
depreendida pela cadeia de figuras que corroboram para este tema
Os textos figurativos como assinala Fiorin (2011 p 91) ldquocriam um efeito de
realidade jaacute que constroem um simulacro da realidade representando dessa forma
o mundordquo enquanto os textos temaacuteticos ldquoprocuram explicar a realidaderdquo Os discursos
figurativos satildeo eminentemente descritivos e narrativos enquanto os temaacuteticos satildeo
caracterizados pela explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do mundo perceptiacutevel
De acordo com Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 147-149) um texto
literaacuterio
tende a ser predominantemente descritivo ou narrativo afastando-se sponte sua do gecircnero dissertativo pois narraccedilatildeo e descriccedilatildeo pressupotildeem o desenvolvimento de um tema qualquer atraveacutes do recurso baacutesico da figuratividade enquanto a dissertaccedilatildeo procura ao contraacuterio o despojamento figurativo do enunciado a fim de dar relevo ao tema em si mesmo considerado Em outras palavras os gecircneros narrativo e descritivo exigem a manipulaccedilatildeo preponderante de termos concretos e particularizantes ao passo que o gecircnero dissertativo requer principalmente a adoccedilatildeo de conceitos abstratos e generalizantes na composiccedilatildeo do enunciado
Em um texto figurativo como o excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas que aqui
selecionamos encontramos sempre um tema que eacute subjacente agraves figuras instaladas
no discurso Toda figura eacute portanto a concretizaccedilatildeo de um determinado tema
abstrato No exemplo aqui citado todas as figuras coadunam-se com a ideia de
prosperidade e fertilidade da natureza remetendo-nos a este tema
Segundo Fiorin (2011 p 92) eacute o niacutevel temaacutetico que daacute sentido ao figurativo
Sobre isso Bertrand (2003 p 215) adverte que ldquoa significaccedilatildeo figurativa ultrapassa
com folga seus significados literais dotando-se de significaccedilotildees abstratas[]rdquo
Os textos que circulam em nossa sociedade satildeo temaacuteticos com algum recurso
figurativo esporaacutedico (discursos poliacuteticos textos filosoacuteficos) ou figurativos recobertos
assim em sua totalidade por figuras (textos literaacuterios e histoacutericos)
Greimas amp Courteacutes (2011 p 210) observam que
63
Quando se tenta classificar o conjunto de discursos em duas grandes classes discursos figurativos e natildeo-figurativos (ou abstratos) percebe-se que a quase totalidade dos textos ditos literaacuterios e histoacutericos pertencem agrave classe dos discursos figurativos Fica entendido entretanto que tal distinccedilatildeo eacute de certa forma ldquoidealrdquo que ela procura classificar as formas (figurativas e natildeo-figurativas) e natildeo os discursos-ocorrecircncias que natildeo apresentam praticamente nunca uma forma em estado puro
Enquanto os textos figurativos assim como vimos no exemplo do excerto das
Geoacutergicas aqui citado constroem cenaacuterios reais com a presenccedila de pessoas animais
cores etc os textos temaacuteticos ao explicarem os fatos do mundo visam agrave
interpretaccedilatildeo de uma dada realidade
De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros em Teoria Semioacutetica do Texto
(2005 p 69) ldquoAos textos de figuraccedilatildeo esporaacutedica opotildeem-se aqueles em que ocorrem
percursos figurativos duradouros que se espalham pelo discurso inteiro e recobrem
totalmente os percursos temaacuteticosrdquo
Em Elementos de Anaacutelise do Discurso Fiorin (2011 p 92) assinala que
ldquoquando se fala em textos figurativos ou temaacuteticos fala-se respectivamente em
textos predominantemente e natildeo exclusivamente figurativos e temaacuteticosrdquo
Ao lermos um texto figurativo observamos portanto que eacute um tema abstrato
que imprime sentido agraves figuras daiacute a necessidade de se encontrar o sentido de um
conjunto de figuras uma vez que estariacuteamos depreendendo o tema subjacente a elas
Com isso todo texto figurativo apresenta dados concretos que veiculam significados
mais abstratos Aleacutem disso uma figura sempre estaraacute relacionada a outras pois juntas
elas criaratildeo um percurso figurativo Logo uma figura por si soacute natildeo tem significado
definido uma vez tomada isoladamente pode sugerir diversas ideias O seu sentido
soacute aparece quando ela eacute combinada a outras figuras visto que em um texto tudo eacute
relaccedilatildeo
Logo para compreendermos o tema de um texto figurativo precisamos
perceber as redes coerentes formadas pelas figuras (isotopia) jaacute que eacute a coerecircncia
entre elas que permite a depreensatildeo do sentido A quebra do encadeamento entre as
figuras pode tornar o texto inverossiacutemil jaacute que seria uma quebra no efeito de sentido
construiacutedo no discurso a menos que o inverossiacutemil apareccedila como um dos efeitos de
sentido a ser suscitado no leitor
64
Na anaacutelise de um texto um tema ou uma figura isolados de nada servem
Torna-se preciso assim que haja um conjunto ou encadeamento de figuras e temas
Dessa forma uma isotopia ou seja a recorrecircncia de temas e figuras na cadeia do
discurso eacute capaz de assegurar a coerecircncia de um texto oferecendo ao leitor um
projeto de leitura
Tendo em vista o excerto do Canto II da Eneida hexacircmetros 707-720
podemos depreender o tema do heroacutei piedoso A Eneida inicia-se in medias res e
Eneias encontra-se com suas naus em pleno Mediterracircneo sete anos apoacutes a queda
de Troia (Canto I) posteriormente eacute lanccedilado agraves costas africanas onde eacute recebido pela
rainha Dido (Canto II) Num banquete ofertado ao heroacutei a rainha pede que Eneias
narre os acontecimentos sobre a destruiccedilatildeo de Troia Tem-se a partir daiacute uma
recordaccedilatildeo de eventos jaacute passados Destacamos entatildeo do Canto II os hexacircmetros
em que o caraacuteter de Eneias aparece em relevo
ergo age care pater ceruici imponere nostrae ipse subibo umeris nec me labor iste quo rescumque cadente unum et commune una salus ambobus erit mihi paruus Iulus sit comes et longe seruet uestigia coniunx uos famuli quae dicam animus est urbe egressis tumulus templumque uestutum desertae Cereris iuxtaque antiqua cipressus religione patrum multos seruata per anos hanc ex diuerso sedem ueniemus in unam Tu genitor cape sacra manu patriosque penatis me bello e tanto digressum et caede recenti attrectare nefas donec me flumine uiuo abluero Agora querido pai vem se colocar em meu pescoccedilo Eu proacuteprio te alccedilarei sobre os ombros e este trabalho natildeo me afetaraacute Onde quer que a sorte caia um soacute e comum perigo uma salvaccedilatildeo haveraacute para ambos a mim o pequeno Iuacutelo28 acompanhe e ao longe a esposa29 siga os passos Voacutes servos com vossas almas atentai no que vou dizer saindo da cidade haacute um tuacutemulo e um velho templo de Ceres30 abandonado e junto um antigo cipreste A religiatildeo dos antepassados preservada por muitos anos Chegaremos neste ponto vindos de diferentes lugares Tu oacute pai carrega os objetos sagrados com a matildeo e os Paacutetrios Penates31 A mim saiacutedo de tatildeo dura guerra e de recente massacre natildeo eacute permitido tocar ateacute que num rio corrente me lave
28 Iuacutelo (Ascacircnio) filho de Eneias e Creuacutesa 29 Creuacutesa esposa de Eneias 30 Ceres deusa da vegetaccedilatildeo e da colheita 31 Paacutetrios Penates os deuses do lar
65
Tem-se assim um pequeno trecho do relato eacutepico da tomada de Troia a partir
da narraccedilatildeo de Eneias A perspectiva do heroacutei intensifica as accedilotildees que se passaram
jaacute que se trata da visatildeo daquele que foi vencido O testemunho de Eneias divide-se
em trecircs partes comeccedila-se pela descriccedilatildeo do cavalo de madeira que eacute levado para
dentro da cidade (hex 13- 249) fala-se da batalha noturna (hex 250-558) e
posteriormente da fuga da cidade de Troia (hex 559-803) O relato do heroacutei ao longo
da narrativa destaca o seu comprometimento com a paacutetria a famiacutelia e seu caraacuteter
piedoso No pequeno excerto que aqui mencionamos tem-se a fuga de Eneias
acompanhado do pai Anquises do filho Iuacutelo (Ascacircnio) e da esposa Creuacutesa Todo o
conjunto de figuras deste excerto figurativiza valores de piedade Aleacutem do cuidado
para com o pai carregando-o sobre os ombros pode-se ver a preocupaccedilatildeo com o
filho esposa e outras pessoas do grupo o que indica a dimensatildeo ciacutevica de sua
piedade que abarca tambeacutem os objetos sagrados e os Paacutetrios Penates com o respeito
de natildeo os tocar com a matildeo ensanguentada A presente cena que destacamos (hex
707-720) sintetiza as virtudes que o caraacuteter do heroacutei engloba A tradiccedilatildeo sobre Eneias
aponta que ldquoele era notaacutevel por sua devoccedilatildeo filialrdquo (PEREIRA 2009 p 261) e o
pequeno excerto apresenta figuras que contribuem para a compreensatildeo deste tema
A accedilatildeo de colocar o pai sobre os ombros a preocupaccedilatildeo com as pessoas de seu
grupo esposa e filho bem como o respeito para com os Paacutetrios Penates figurativizam
o caraacuteter do heroacutei que pode ser depreendido no excerto
Diana Luz Pessoa de Barros (2005 p 69) menciona as diferentes etapas da
estruturaccedilatildeo de um texto a figuraccedilatildeo responsaacutevel pela instalaccedilatildeo das figuras eacute o
primeiro niacutevel de especificaccedilatildeo figurativa do tema em que uma ideia abstrata recebe
um investimento figurativo A iconizaccedilatildeo nomeada como ldquoinvestimento figurativo
exaustivo finalrdquo seria a uacuteltima etapa da estruturaccedilatildeo textual e tem o objetivo de
produzir uma ilusatildeo referencial Nessa etapa de acordo com Maacutercio Thamos (2003
p 114) haacute uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem na qual ldquorelacionando o som
com o sentido o poeta procura colocar em relevo aquilo de que fala manifestando o
desejo de fazer que o poema se identifique concretamente com o proacuteprio referenterdquo
Vale ressaltar ainda que essas duas etapas (figuraccedilatildeo rarriconizaccedilatildeo) satildeo fases
da construccedilatildeo figurativa de um texto e que nem todo texto figurativo apresentaraacute esse
investimento particularizante suscetiacutevel de produzir uma ilusatildeo referencial
Para Barros (2005 p 70)
66
Na iconizaccedilatildeo mas tambeacutem nas demais etapas da figurativizaccedilatildeo o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciataacuterio a reconhecer ldquoimagens do mundordquo e a partir daiacute a acreditar na ldquoverdaderdquo do discurso O enunciataacuterio por sua vez crecirc ou natildeo no discurso graccedilas em grande parte ao reconhecimento de figuras do mundo O fazer-crer e o crer dependem de um contrato de veridicccedilatildeo que se estabelece entre enunciador e enunciataacuterio e que regulamenta entre outras coisas o reconhecimento das figuras
Cabe ao leitor atento depreender assim os efeitos de sentido de um texto
Para Fiorin (1995 p 175)
Quem ler os seguintes versos de Os Lusiacuteadas ldquoEm tempo de tormenta e vento esquivordquo ldquoDe tempestade escura e triste prantordquo (V 18 3-4) sem perceber a aliteraccedilatildeo de oclusivas e principalmente do ldquotrdquo teraacute perdido um elemento essencial do texto que eacute o efeito de sentido de fuacuteria da tormenta dado pela articulaccedilatildeo entre a aliteraccedilatildeo no plano da expressatildeo e o conteuacutedo manifestado
O texto literaacuterio apresenta dessa forma uma funccedilatildeo esteacutetica e sua
compreensatildeo exige que se entenda natildeo somente o conteuacutedo mas especialmente os
significados dos seus elementos de expressatildeo
Thamos (2011 p 150) ao mencionar as especificidades do texto figurativo
afirma
A vocaccedilatildeo imageacutetica do texto literaacuterio encontra pois as condiccedilotildees naturais para a sua realizaccedilatildeo quer na narraccedilatildeo quer na descriccedilatildeo que lhe oferecem sempre possibilidades conotativas a partir da figuratividade enquanto por outro lado a dissertaccedilatildeo se constitui na maneira ideal de desenvolvimento do discurso cientiacutefico no qual imperam necessidades denotativas na expressatildeo de um tema
Na leitura de um texto literaacuterio adentramos de imediato em sua figuratividade
pois nele delineiam-se figuras como personagens espaccedilo objetos valores Por meio
da figuratividade assim podemos depreender as dimensotildees figurativas do discurso e
o modo como satildeo engendrados os efeitos de sentido
Bertrand (2003 p 156) referindo-se agrave figuratividade assim esclarece-nos
Qualificaremos de figurativo todo significado todo conteuacutedo de uma liacutengua natural e de maneira mais abrangente de qualquer sistema de representaccedilatildeo (visual por exemplo) que tenha um correspondente no plano do significante (ou da expressatildeo) do mundo natural da realidade perceptiacutevel
67
Com vistas portanto aos recursos da figuratividade presentes na poesia
bucoacutelica didaacutetica e eacutepica procuramos investigar nas trecircs obras de Virgiacutelio o percurso
figurativo e a atuaccedilatildeo dos trecircs tipos de estilo descritos pelos tratadistas antigos o
estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Na Roda esquema circular tripartido das
obras virgilianas satildeo apresentadas as principais figuras que compotildeem o cenaacuterio da
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Logo procuramos entender como os diferentes
estilos atuam em cada poema e como eles podem ser depreendidos a partir da
recorrecircncia figurativa presente em cada obra deixando entrever um efeito particular
de individuaccedilatildeo Para isso na anaacutelise das obras virgilianas destacamos a presenccedila
de uma rede de figuras que sugerem um modo proacuteprio de ser e fazer de especiacuteficos
cenaacuterios de atuaccedilatildeo para as Bucoacutelicas o efeito tecircnue que configura um estilo singelo
para as Geoacutergicas o efeito moderado que configura um estilo meacutedio e para a Eneida
um efeito vigoroso que corrobora para a construccedilatildeo do estilo sublime grandiloquente
Assim nosso intento eacute o de compreender na dimensatildeo figurativa de cada excerto
selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise a atuaccedilatildeo dos estilos singelo meacutedio e
grandiloquente Virgiacutelio construiu segundo a tradiccedilatildeo trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo a partir
de trecircs estilos Cabe-nos aqui depreender a caracterizaccedilatildeo presente em cada obra
e com isso depreender os principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e
eacutepica
Entendemos que em termos de expressatildeo as trecircs obras apresentam um rico
trabalho com a linguagem Pensando-se primeiramente na caracterizaccedilatildeo presente
nas trecircs obras personagens accedilotildees e ambientaccedilatildeo destacaremos os principais temas
e figuras proacuteprios agraves Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Com isso procuramos
entender cada estilo como uma construccedilatildeo sistemaacutetica que deixa entrever um efeito
particular de sentido Natildeo perderemos de vista contudo o arranjo particular da
linguagem poeacutetica e portanto tambeacutem procuraremos analisar as obras a partir do seu
plano da expressatildeo
Os temas presentes na poesia eacutepica coadunam-se com um tom elevado
grandiloquente com figuras que deixam entrever um efeito de sentido grandiloquente
Alteram-se os temas altera-se o cenaacuterio e consequentemente o efeito de sentido
sugestionado o estilo Primeiro escolhe-se o tema a ser cantado e soacute entatildeo eacute definido
o cenaacuterio ldquoconvenienterdquo a esse tema O ambiente descrito na poesia eacutepica difere
68
portanto daquele que eacute apresentado em um tom mais singelo como eacute o caso da
poesia de gecircnero bucoacutelico Da Eneida selecionamos um excerto do ldquoVIII Cantordquo (612-
731) em que depreendemos o tema do heroacutei e suas armas de guerra atrelado ao
tema da fundaccedilatildeo e gloacuteria de Roma As figuras utilizadas neste fragmento tramam
cenaacuterios tipicamente eacutepicos em um tom solene
Na poesia bucoacutelica o tema muda e as figuras se alteram Logo altera-se o
efeito pretendido que seraacute tecircnue O locus amoenus pode aparecer na figura de um
rochedo na espessura verde de um pequeno bosque em uma fonte pinheiros olmos
choupos carvalhos cabras ovelhas etc Estas figuras recorrentes na poesia
bucoacutelica virgiliana organizam-se de modo expressivo e particularizam os temas que
abrangem a simplicidade o viver ruacutestico do campo e o oacutecio criativo dos pastores O
estilo singelo aparece portanto subjacente a esse arranjo de figuras A ldquoBucoacutelica Vrdquo
aqui selecionada para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise apresenta um cenaacuterio apraziacutevel para
que os pastores-cantadores Mopso e Menalcas possam cantar seus louvores a
Daacutefnis
Na poesia didaacutetica os temas abrangem um conteuacutedo instrucional e assumem
um tom e um contexto de atuaccedilatildeo moderados No excerto do ldquoIV Cantordquo (1-115) das
Geoacutergicas colocaremos em relevo portanto a ldquodescriccedilatildeo do lugar apraziacutevel para as
abelhasrdquo e o modo como as figuras selecionadas pelo poeta particularizam este tema
no contexto da poesia didaacutetica
Na anaacutelise dos poemas de Virgiacutelio seratildeo destacadas as principais figuras e
temas recorrentes agraves Bucoacutelicas agraves Geoacutergicas e agrave Eneida Aleacutem disso pretende-se
demonstrar o modo como essas figuras se organizam e asseguram um revestimento
figurativo e abstrato dos principais temas bucoacutelicos didaacuteticos e eacutepicos levando em
conta a formaccedilatildeo do sentido poeacutetico e esteacutetico de cada texto e os niacuteveis de estilo
definidos pelos tratadistas antigos pensando-os como efeitos de individuaccedilatildeo
engendrados em cada texto
69
42 A Figuratividade a leitura do poeacutetico
Com os poetas a escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo
que elas contamrdquo
(BRODSKY 1994 p 97)
O poeta e criacutetico russo Joseph Brodsky acredita que natildeo eacute do ofiacutecio do poeta
informar algo mas sim por meio de um arranjo expressivo da linguagem artiacutestica
suscitar no leitor um determinado efeito de sentido A poesia revela-se dessa forma
como ldquouma arte de referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo
(BRODSKY 1994 p 74) Roman Jakobson ao questionar-se sobre a expressividade
poeacutetica vai ao encontro desse raciociacutenio Assim a sua ceacutelebre pergunta ldquoQue eacute que
faz de uma mensagem verbal uma obra de arterdquo (JAKOBSON 1989 p 118-119)
leva-nos a acreditar que toda criaccedilatildeo poeacutetica apresenta um trabalho artiacutestico com a
linguagem jaacute que a palavra artiacutestica ultrapassa o uso comum e ganha um efeito
esteacutetico pois o poeta agrega valor agrave palavra seu elemento material concreto
Cabe-nos a partir disso avaliar quais satildeo os recursos expressivos
evidenciados na leitura de um texto e de que forma os procedimentos da figuraccedilatildeo e
iconizaccedilatildeo aliados a outros expedientes expressivos participam da formaccedilatildeo do
sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto
Para a Semioacutetica Greimasiana o sentido aparece intimamente relacionado com
a linguagem que o estrutura e eacute a partir do reconhecimento das formas presentes em
um texto que apreendemos o arranjo expressivo da linguagem Logo eacute o trabalho
artiacutestico com o plano da expressatildeo que particulariza um texto poeacutetico contrapondo-o
portanto aos outros discursos que possivelmente podem apresentar temas
semelhantes
O arranjo da linguagem poeacutetica longe de transmitir apenas ideias apresenta
recursos expressivos capazes de suscitar um determinado efeito esteacutetico no leitor
Em Linguiacutestica e Comunicaccedilatildeo Jakobson (1989 p 130) declara que ldquoA funccedilatildeo
poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de
combinaccedilatildeordquo Fica evidente portanto o destaque do linguista para a construccedilatildeo do
sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto Em que medida as figuras instaladas em um
discurso satildeo combinadas e revestidas de expressividade Aleacutem disso natildeo podemos
esquecer de que o poeacutetico se enquadra na esfera luacutedica em que o poeta modela as
palavras em uma espeacutecie de brincadeira artiacutestica para assim conferir-lhes um
sentido poeacutetico Para Huizinga (2007 p 133) a poesia
70
[] estaacute para aleacutem da seriedade naquele plano mais primitivo e originaacuterio a que pertencem a crianccedila o animal o selvagem e o visionaacuterio na regiatildeo do sonho do encantamento do ecircxtase do riso Para compreender a poesia precisamos ser capazes de envergar a alma da crianccedila como se fosse uma capa maacutegica e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto
Logo o arranjo das palavras quando manipuladas pelo artista pode suscitar
um determinado efeito de sentido no leitor Trata-se de uma brincadeira uma espeacutecie
de jogo com a palavra que em acircmbito poeacutetico pode metamorfosear-se em imagens
do mundo
Ao focalizar o processo de criaccedilatildeo de um texto artiacutestico e ressaltar o modo
como a palavra eacute trabalhada pelo artista deve-se compreender que a palavra poeacutetica
porta sempre um encantamento imageacutetico Acredita-se com isso que o poeta
encontra na palavra o elemento material concreto de que necessita para a criaccedilatildeo
de imagens
Como bem observa Thamos (2003 p 109)
Na busca de expressatildeo para determinado tema o poeta bem como o pintor constroacutei um texto em que a primazia da figura eacute bastante evidente o que potildee em relevo o seu desejo de concretude sua necessidade de procurar dar contorno plasticidade palpabilidade a sua criaccedilatildeo
Como ilustraccedilatildeo desses procedimentos vale destacar a ldquoBucoacutelica IVrdquo de
Virgiacutelio poema em que eacute celebrado o nascimento de uma crianccedila que seraacute o fator
determinante da renovaccedilatildeo dos tempos No poema a natureza alegra-se com esse
nascimento e o proacutespero ambiente campestre assim responde agrave chegada da crianccedila
(Buc IV 23-25)
Ipsae lacte domum referent distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores As cabritinhas por si mesmas levaratildeo agrave casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti oacute crianccedila o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores
71
Nesse exemplo observa-se que a disposiccedilatildeo dos sintagmas no hexacircmetro 25
Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores favorece de algum modo a figuratividade
da cena que estaacute sendo descrita uma vez que o termo ldquocunabulardquo (berccedilo) eacute
circundado por ldquoblandosrdquo e ldquofloresrdquo (delicadas flores) ilustrando portanto a ideia
expressa no verso a de que o berccedilo da crianccedila encontra-se ornado por delicadas
flores que nesse contexto podem ser vistas como sinocircnimo de encanto e beleza do
novo mundo que ressurge em consonacircncia ao nascimento dessa crianccedila O verso
destacado favorece agrave representaccedilatildeo icocircnica deixando entrever pelo arranjo particular
da linguagem a imagem de um berccedilo florido pela distribuiccedilatildeo dos termos no verso
Para Greimas (1975 p 12) podemos afirmar que
[] o significante sonoro ndash e graacutefico em menor proporccedilatildeo ndash entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a assumir como verdadeiras as proposiccedilotildees emitidas pelo discurso poeacutetico []
Lembra-nos Octavio Paz que ldquoo poema natildeo explica nem representa apresenta
Natildeo alude agrave realidade pretende ndash e agraves vezes consegue ndash recriaacute-la Portanto a poesia
eacute um penetrar um estar ou ser na realidaderdquo (2012 p 118)
A ilusatildeo ou impressatildeo referencial eacute o termo com que designamos a segunda
etapa dos procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto literaacuterio conhecida por
iconizaccedilatildeo Nesta etapa haacute uma espeacutecie de ecircnfase figurativa do discurso com vistas
a um expediente de criaccedilatildeo de imagens anaacutelogas agrave realidade
Pensando ainda na ldquoBucoacutelica IVrdquo e na exortaccedilatildeo ao nascimento da crianccedila
destacamos os seguintes versos
(Buc IV 60-63) Incipe parue puer risu cognoscere matrem (matri longa decem tulerunt fastidia menses) Incipe parue puer qui non risere parenti Nec deus hunc mensa dea nec dignata cubili est Comeccedila pequeno menino a conhecer a matildee com um sorriso Agrave ela dez meses causaram longos enjoos comeccedila pequeno menino aquele que natildeo sorriu para a matildee nem um deus o julgou digno da sua
mesa e nem uma deusa de seu leito
Os hexacircmetros 60 e 62 relacionam-se expressivamente pelo emprego do
paralelismo ou seja pela repeticcedilatildeo de incipe parue puer que reforccedila assim a
72
homenagem agrave crianccedila Aleacutem disso a aliteraccedilatildeo da oclusiva p em ldquoincipe parue
puerrdquo eacute um fato do plano da expressatildeo que associado ao paralelismo sugere uma
ideia de repeticcedilatildeo e balbucio da matildee para seu filho passando-nos a ideia de uma
cantiga de ninar um acalanto Esses versos pelo arranjo particular da linguagem
criam um efeito de sentido ldquorealidaderdquo ao sugerirem a cena familiar que estaacute sendo
descrita em um tom de ludismo e serenidade
Neste fragmento ao relacionar o som ao sentido o poeta pretende manipular
a linguagem para colocar em destaque aquilo de que fala de modo que a palavra
artiacutestica coincida concretamente com o proacuteprio referente Adverte Thamos (2003 p
114) que ldquoA iconizaccedilatildeo se dirige mais diretamente aos sentidos e estaacute assentada num
pressuposto de representaccedilatildeo realista assumido tanto pelo produtor quanto pelo
receptor do discurso figurativordquo Na ilusatildeo referencial destaca-se portanto a
apresentaccedilatildeo de um efeito esteacutetico evidenciado no texto em que neste caso ldquotoda a
massa sonora do poema eacute viva do ponto de vista criativordquo (LIMA apud THAMOS
2003 p115)
O poeta aacutercade Tomaacutes Antocircnio Gonzaga (2006 p 43 grifos nossos) em uma
evidente alusatildeo ao texto de Virgiacutelio compocircs
Que gosto natildeo teraacute a matildee que toca Quando o tem nos seus braccedilos crsquoo dedinho Nas faces graciosas e na boca Do inocente filhinho Quando Mariacutelia bela O tenro infante jaacute com risos mudos Comeccedila a conhececirc-la
Nesse pequeno trecho de Mariacutelia de Dirceu Parte I Lira XIX nota-se que o
ambiente familiar descrito por Virgiacutelio eacute aludido na liacuterica de Gonzaga que resgatou
algo da sugestatildeo do acalanto do poeta claacutessico
A repeticcedilatildeo quase seguida da oclusiva t nos dois primeiros versos do excerto
acompanhada das nasais n e m deixam entrever uma fala manhosa linguagem
inicial dos pais para com a crianccedila sempre carregada de afetuosidade Aleacutem disso
destaca-se a presenccedila de dois diminutivos que reforccedilam a ideia de uma fala mais
amorosa dentro deste contexto No poema de Gonzaga o jogo sonoro remete-nos agrave
cena que estaacute sendo descrita agrave imagem da matildee conversando com seu filho
A figuratividade eacute portanto uma categoria descritiva que ligada agrave teoria
esteacutetica abarca o figurativo e o natildeo-figurativo (ou abstrato) este uacuteltimo sempre
73
apareceraacute revestido por figuras que o particularizam Nesse sentido no processo de
estruturaccedilatildeo de um texto encontramos o niacutevel da figuraccedilatildeo em que um tema ou seja
um discurso abstrato eacute convertido em figuras e tambeacutem o niacutevel da iconizaccedilatildeo em
que as figuras utilizadas no discurso teriam o poder de se transformar em imagens do
mundo provocando uma ilusatildeo ou impressatildeo referencial que eacute definida como sendo
ldquo[] o resultado de um conjunto de procedimentos mobilizados para produzir efeito de
sentido ldquorealidade []rdquo (GREIMAS COURTEacuteS 2011 p 251)
Como observa Bertrand (2003 p 154) a figuratividade ldquosugere
espontaneamente a semelhanccedila a representaccedilatildeo a imitaccedilatildeo do mundo pela
disposiccedilatildeo das formas numa superfiacutecierdquo Assim um texto classificado como figurativo
vale-se de figuras capazes de representar verbal ou visualmente uma figura do
mundo natural O efeito sugerido por essa representaccedilatildeo pode transmitir ao leitor a
ideia de ldquorealidaderdquo ldquoirrealidaderdquo ou ateacute mesmo ldquosurrealidaderdquo - efeitos especiacuteficos
gerados pelo texto por meio de estrateacutegias discursivas e que satildeo capazes de criar
impressotildees referenciais
Sobre isso Bertrand (2003 p 157) afirma que
A figuratividade se define como todo conteuacutedo de um sistema de
representaccedilatildeo verbal visual auditivo ou misto que entra em
correlaccedilatildeo com uma figura significante do mundo percebido quando
ocorre sua assunccedilatildeo pelo discurso
Logo eacute pertinente observar o modo como as figuras presentes em um texto
podem gerar ilusotildees da realidade produzindo imagens capazes de representar o
mundo natural concreto
De acordo com o conceito de representaccedilatildeo aqui sugerido a figuratividade
incorporaria a criaccedilatildeo de um simulacro com a aparecircncia de verdadeiro estabelecendo
uma noccedilatildeo interdiscursiva entre a realidade e o texto literaacuterio Com vistas agrave dimensatildeo
enunciativa e figurativa da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica em Virgiacutelio foram
selecionados trechos representativos das trecircs obras em que o revestimento particular
da linguagem poeacutetica ganha relevo em que a funccedilatildeo poeacutetica portanto eacute dominante
Ao colocar em destaque a vocaccedilatildeo imageacutetica a poeticidade dos textos o
trabalho apoia-se portanto na noccedilatildeo de figuratividade e procura avaliar o modo como
as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida apresentam e combinam temas e figuras
Busca-se entender portanto os estilos (singelo meacutedio e grandiloquente) como efeitos
de sentido que configuram cenaacuterios de atuaccedilatildeo especiacuteficos
74
ldquoEnquanto manifestaccedilatildeo privilegiada do mais alto poder expressivo que
uma liacutengua pode alcanccedilar versos satildeo o testemunho irretorquiacutevel seja de
soacutelidas construccedilotildees neles plasmadas seja do proacuteprio sistema virtual
que as trouxe agrave vida Este fica por tal modo igualmente imortalizado
graccedilas agrave realizaccedilatildeo plaacutestica e riacutetmica que faculta ao sistema virtualrdquo
(Lima 2003 p100)
ldquoO poema sem deixar de ser palavra e histoacuteria transcende a histoacuteriardquo
(Octavio Paz 2012 p 31)
75
5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises
51 BUCOacuteLICA V ldquoMOPSO E MENALCAS OS PASTORES
CANTADORESrdquo
Figura 5 ndash Mopso e Menalcas
Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p 465
76
MENALCAS
Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo
tu calamos inflare leuis ego dicere uersus
hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
MOPSVS
Tu maior tibi me est aequom32 parere Menalca
siue sub incertas Zephyris motantibus umbras
siue antro potius succedimus Aspice ut antrum 5
siluestris raris sparsit labrusca racemis
MENALCAS
Montibus in nostris solus tibi certat Amyntas
MOPSVS
Quid si idem certet Phoebum superare canendo
MENALCAS
Incipe Mopse prior si quos aut Phyllidis ignis 10
aut Alconis habes laudes aut iurgia Codri
incipe pascentis seruabit Tityrus haedos
MOPSVS
32 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aequum Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1967
77
Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi
carmina descripsi et modulans alterna notaui
experiar tu deinde iubeto certet Amyntas 15
MENALCAS
Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae
puniceis humilis quantum saliunca rosetis
iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas
Sed tu desine plura puer successimus antro
MOPSVS
Exstinctum Nymphae crudeli funere Daphnim33 20
flebant (uos coryli testes et flumina Nymphis)
cum complexa sui corpus miserabile nati
atque deos atque astra uocat crudelia mater
Non ulli pastos illis egere diebus
frigida Daphni boues ad flumina nulla neque34 amnem 25
libauit quadrupes nec graminis attigit herbam
Daphni 35tuom Poenos etiam ingemuisse leones
interitum montesque feri siluaeque loquontur36
Daphnis et Armenias curru subiungere tigris
instituit Daphnis thiasos inducere37 Bacchi 30
et foliis lentas intexere mollibus hastas
Vitis ut arboribus decori est ut uitibus uuae
33 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin 34 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nec 35 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 36 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se loquuntur 37 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se et ducere
78
ut gregibus tauri segetes ut pinguibus aruis
tu decus omne tuis Postquam te fata tulerunt
ipsa Pales agros atque ipse reliquit Apollo 35
Grandia saepe quibus mandauimus hordea sulcis
infelix lolium et steriles nascuntur auenae
pro molli uiola pro purpureo narcisso
carduos38 et spinis surgit paliurus acutis
Spargite humum foliis inducite fontibus umbras 40
pastores (mandat fieri sibi talia Daphnis)
et tumulum facite et tumulo superaddite Carmen
DAPHNIS EGO IN SILVIS HINC VSQUE AD SIDERA NOTVS
FORMOSI PECORIS CVSTOS FORMOSIOR IPSE
MENALCAS
Tale tuom carmen nobis39 diuine poeta 45
quale sopor fessis in gramine quale per aestum
dulcis aquae saliente sitim restinguere riuo
Nec calamis solum aequiperas sed uoce magistrum
fortunate puer tu nunc eris alter ab illo
Nos tamen haec quocumque modo tibi nostra uicissim 50
dicemus Daphnim40que tuom41 tollemus ad Astra
Daphnim42 ad Astra feremus amauit nos quoque Daphnis
MOPSVS
An quicquam nobis tali sit munere maius
38 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se carduus 39 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se ldquoTale tuum nobis carmenrdquo 40 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphin 41 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 42 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin
79
Et puer ipse fuit cantari dignus et ista
iam pridem Stimichon laudauit carmina nobis 55
MENALCAS
Candidus insuetum miratur limen Olympi
sub pedibusque uidet nubes et sidera Daphnis
Ergo alacris siluas et cetera rura uoluptas
Panaque pastoresque tenet Dryadasque puellas
Nec lupus insidias pecori nec retia ceruis 60
ulla dolum meditantur amat bonus otia Daphnis
Ipsi laetitia uoces ad sidera iactant
intonsi montes ipsae iam carmina rupes
ipsa sonant arbusta laquo Deus deus ille Menalca raquo
Sis bonus o felixque tuis En quattuor aras 65
ecce duas tibi Daphni duas altaria Phoebo
Pocula bina nouo spumantia lacte quotannis
craterasque duo statuam tibi pinguis oliui
et multo in primis hilarans conuiuia Baccho
ante focum si frigus erit si messis in umbra 70
uina nouom43 fundam calathis Ariusia nectar
Cantabunt mihi Damoetas et Lyctius Aegon
saltantis Satyros imitabitur Alphesiboeus
Haec tibi semper erunt et cum sollemnia uota
reddemus Nymphis et cum lustrabimus agros 75
Dum iuga montis aper fluuios dum piscis amabit
dumque thymo pascentur apes dum rore cicadae
semper honos nomenque tuom44 laudesque manebunt
43 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nouum 44 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum
80
Vt Baccho Cererique tibi sic uota quotannis
agricolae facient damnabis tu quoque uotis 80
MOPSVS
Quae tibi quae tali reddam pro carmine dona
Nam neque me tantum uenientis sibilus Austri
nec percussa iuuant fluctu tam litora nec quae
saxosas inter decurrunt flumina uallis
MENALCAS
Hac te nos fragili donabimus ante cicuta 85
haec nos laquo Formosum Corydon ardebat Alexim45 raquo
haec eadem docuit laquo Cuium pecus an Meliboei raquo
MOPSVS
At tu sume pedum quod me cum saepe rogaret
non tulit Antigenes (et erat tum dignus amari)
formosum paribus nodis atque aere Menalca 90
45 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Alexin
81
52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo
V
Menalcas
Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar
os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre
os olmeiros46 misturados agraves aveleiras47
Mopso
Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo das
sombras incertas dos Zeacutefiros48 agitados ou melhor em uma gruta sigamos Vecirc como
a videira49 silvestre cobriu-a com cachos raros
Menalcas
Em nossos montes soacute Amintas50 disputa contigo
Mopso
Quecirc se o proacuteprio Amintas cantando se esforccedilaria para superar Febo51
46Olmeiro (ou Ulmeiro) aacutervore de grande porte que pode alcanccedilar ateacute 30m de altura sendo portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra 47 Aveleira aacutervore mediterracircnica 48Zeacutefiro Vento oeste responsaacutevel pela brisa suave 49Videira silvestre alusatildeo a Baco o deus do vinho Composiccedilatildeo do locus amoenus 50Amintas pastor e haacutebil muacutesico assim como Mopso e Menalcas 51Febo epiacuteteto para Apolo o deus-sol Filho de Juacutepiter e Latona eacute irmatildeo gecircmeo de Diana a deusa da caccedila Costuma ser lembrado como protetor das artes
82
Menalcas
Comeccedila Mopso primeiro jaacute que tens aquelas chamas de Fiacutelis52 os louvores
de Alcatildeo53 e as disputas de Codro54 Comeccedila Tiacutetiro55 guardaraacute os cabritos que
pastam
Mopso
Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na
casca verde de uma faia56 tu em seguida mandai que Amintas dispute comigo
Menalcas
Assim como o flexiacutevel salgueiro57 cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo
ceacuteltico58 cede agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti
Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta
Mopso
52 Fiacutelis princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado (Demoofonte rei dos atenienses) enforcou-se e foi transformada em amendoeira Conta-se que quando o esposo retornou e soube do ocorrido abraccedilou-se agrave aacutervore que ao perceber o retorno do amado passou a produzir folhas Fiacutelis tambeacutem eacute um nome de pastora que aparece como amada de Dametas e Menalcas na Eacutegloga III bem como de Tiacutersis na Eacutegloga VII 53Alcatildeo companheiro de Heacutercules haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu filho sem o ferir O louvor a Alcatildeo deixa entrever os elogios aos seus feitos natildeo sendo estranho ao gecircnero bucoacutelico pois tambeacutem se cantaraacute posteriormente os feitos do pastor Daacutefnis 54Codro rei ateniense que humildemente sacrificou-se pela paacutetria 55Tiacutetiro pastor 56A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos 57Salgueiro aacutervore de folhas longas 58 Nardo ceacuteltico espeacutecie de planta aromaacutetica conhecida como ldquovaleriana ceacutelticardquo
83
Morto Dafnis59 as Ninfas60 choravam com a cruel morte (voacutes aveleiras e rios
sois testemunhas das Ninfas) quando miseravelmente a matildee abraccedilada ao corpo do
filho chama de crueacuteis os deuses e os astros
Naqueles dias ningueacutem levou os bois para os pastos e para as frescas correntes
oacute Daacutefnis nenhum cavalo provou a aacutegua nem tocou as ervas do pasto
Os montes bravios e os bosques dizem que ateacute os leotildees cartagineses61 choraram
a tua morte Daacutefnis
Daacutefnis foi quem ensinou prender os tigres armecircnios62 no carro Daacutefnis conduziu
as danccedilas de Baco63 e cobriu as maleaacuteveis lanccedilas64 com delicadas folhas
Como as videiras satildeo as gloacuterias para as aacutervores como as uvas satildeo para as
videiras como os touros satildeo para os rebanhos como as searas satildeo para os feacuterteis
campos tu Daacutefnis eacutes a gloacuteria para todos os teus A proacutepria Pales65 e o proacuteprio Apolo66
deixaram os campos depois que os fados te levaram
Nos sulcos em que jogamos tantas vezes a cevada as aveias esteacutereis e o joio
improdutivo nascem Em lugar da delicada violeta e do purpuacutereo narciso67 surge o
paliuacutero pontiagudo68 os cardos e os espinheiros
Espalhai folhas ao chatildeo levai sombras agraves fontes pastores (Daacutefnis manda fazer
isto para si) e fazei um tuacutemulo e no tuacutemulo gravai os versos
Eu sou Daacutefnis conhecido nos bosques daqui ateacute aos astros Guardiatildeo de
formoso rebanho mais formoso sou
Menalcas
Os teus versos admiraacutevel poeta satildeo para noacutes tal como eacute o sono na relva aos
cansados tal como eacute pelo calor extinguir a sede no regato de aacutegua doce Natildeo soacute
59Daacutefnis pastor por excelecircncia e ceacutelebre inventor do gecircnero bucoacutelico Filho de Mercuacuterio e de uma Ninfa da Siciacutelia nasceu em um bosque de loureiros Mopso apresenta um lsquoelogio fuacutenebrersquo ao inventor da poesia pastoril 60 Ninfas divindades que habitam os bosques campos e aacuteguas figurativizam os elementos da natureza que compotildeem o cenaacuterio bucoacutelico 61Leotildees cartagineses leotildees africanos 62Tigres armecircnios o pastor Daacutefnis aparece como espeacutecie de lsquoheroacuteirsquo civilizador 63Baco filho de Semele e Juacutepiter eacute o deus do vinho do oacutecio e do prazer 64Maleaacuteveis lanccedilas lanccedilas enfeitadas com folhas de hera usadas pelas bacantes 65Pales deusa pastoral dos campos cultivados 66Apolo deus das pastagens eacute retomado como na figura de pastor quando apascentou os rebanhos do rei Admeto 67Purpuacutereo narciso planta de flores perfumadas 68Paliuacutero pontiagudo planta espinhosa
84
igualas o mestre69 na flauta mas na voz oacute afortunado rapaz agora seraacutes um outro
como ele Mas por nossa vez cantaremos e elevaremos o teu Daacutefnis aos astros aos
astros levaremos Daacutefnis Daacutefnis tambeacutem nos amou
Mopso
Acaso haveraacute para noacutes algo maior do que semelhante daacutediva E o proacuteprio rapaz
foi digno de ser cantado e estes versos jaacute haacute muito tempo Estimicatildeo70 nos louvou
Menalcas
O cacircndido Daacutefnis admira o desconhecido limiar do Olimpo71 vecirc as nuvens e as
estrelas sob seus peacutes Por isso alegre prazer domina as florestas os campos
restantes Patilde72 os pastores e as jovens Driacuteades73 O lobo natildeo prepara ardis ao
rebanho nem as redes preparam algum engano aos cervos O bom Daacutefnis ama os
oacutecios Os proacuteprios montes agrestes com alegria proferem gritos para os astros As
proacuteprias pedras os proacuteprios bosques entoam versos Um deus ele eacute um deus
Menalcas Oacute que tu sejas bom e favoraacutevel para os teus Eis aqui quatro altares Dois
para ti oacute Daacutefnis dois mais altos para Febo Todo ano ofertarei para ti duas taccedilas
espumantes com leite fresco e duas tigelas com azeite abundante74 Sobretudo
alegrando os festins com transbordante Baco75 ante o fogo se frio estiver agrave sombra
durante colheitas Derramarei nos copos os vinhos ariuacutesos76 um fresco neacutectar
Cantaratildeo para mim Dametas77 e Eacutegatildeo de Licto78 Alfesibeu79 imitaraacute os saacutetiros80
saltitantes Estes ritos para ti sempre existiratildeo seja quando fizermos votos solenes agraves
69Mestre alusatildeo a Daacutefnis pastor e cantor por excelecircncia 70Estimicatildeo pastor 71Olimpo Monte entre a Tessaacutelia e a Macedocircnia onde se acreditava residirem os deuses oliacutempicos 72Patilde deus dos pastores da Arcaacutedia 73Driacuteades ninfas dos bosques 74Azeite abundante oferendas agrave nova entidade rural Daacutefnis aparece como mortal divinizado 75Baco vinho por metoniacutemia 76Vinho ariuacuteso vinho de um promontoacuterio em Quios ilha das Ciacuteclades 77Dametas pastor 78Eacutegatildeo pastor da ilha de Creta 79Alfesibeu pastor 80 Saacutetiros saltitantes entidades hiacutebridas figuras humanas com chifres e patas de bode Personificam a natureza selvagem e os instintos primitivos Acompanham Baco Patilde e as Ninfas
85
Ninfas seja quando purificarmos81 os campos Enquanto o javali amar os cimos do
monte enquanto o peixe amar os rios enquanto as abelhas alimentarem-se de
tomilho e as cigarras de orvalho a honra e o teu nome e os louvores sempre
permaneceratildeo Assim como a Baco e agrave Ceres82 todo ano os agricultores prestaratildeo
votos para ti Tu mesmo solicitaraacutes os votos
Mopso
O que oferecerei a ti que presente por tal canto Pois natildeo me agrada tanto o
silvo que vem do Austro83 nem as praias atingidas pela onda nem os rios que correm
entre vales pedregosos
Menalcas
Primeiro noacutes te presentearemos com esta fraacutegil flauta que nos ensinou que
ldquoCoacuteridon ardia pelo formoso Aleacutexis84rdquo bem como ldquoDe quem pertence o rebanho
Acaso eacute de Melibeu85rdquo
Mopso
E tu Menalcas recebe o cajado que eacute formoso com noacutes iguais e com bronze
o qual embora frequentemente me rogasse Antiacutegenes natildeo levou (e era entatildeo digno
de ser amado)
81 Purificaccedilatildeo dos campos celebraccedilotildees em honra de Ceres 82Ceres deusa protetora das colheitas 83Austro vento teacutepido do sul 84Aleacutexis objeto do desejo do pastor Coacuteridon (alusatildeo agrave Bucoacutelica II) 85Melibeu pastor (alusatildeo ao iniacutecio da Bucoacutelica III)
86
53 FIGURATIVIDADE NA BUCOacuteLICA V ndash anaacutelise do texto
A poesia de gecircnero bucoacutelico destina-se aos assuntos da vida campestre em
que estatildeo presentes a natureza os animais e o pastor de cabras ou ovelhas figura
recorrente e que estaacute em simbiose com o oacutecio e os prazeres do viver ruacutestico do campo
O termo boukolikaacute ldquobucoacutelicardquo em grego refere-se a cantos de boiadeiros No que diz
respeito ao termo έχλογή (eacutecloga ou eacutegloga) trata-se de um adjetivo substantivado
que significa laquoescolharaquo laquopoesia ou trecho escolhidoraquo Soacute na linguagem moderna eacute
que se comeccedilou a empregar este termo como sinocircnimo de idiacutelio isto eacute de composiccedilatildeo
pastoril (BOLEacuteO 1936 p 15) Para Boleacuteo isso se deve a uma influecircncia antiga de
uma etimologia errocircnea segundo a qual laquoeacuteclogaraquo viria de αίξ αιγός cabra e
significaria portanto qualquer coisa como laquocanto ou poema em que entram cabrasraquo
(quando eacute sabido que laquoeacuteclogaraquo vem do verbo έχ-λέγειν escolher) Hoje os dicionaacuterios
modernos referem-se ao vocaacutebulo eacutecloga como sinocircnimo de cantos dialogados entre
pastores
Seacutervio gramaacutetico latino do seacuteculo IV dC em seu In Vergilii Carmina
Commentarii tambeacutem discorre acerca da origem do poema bucoacutelico Para ele as
bucoacutelicas foram assim chamadas a partir dos guardadores de bois Seacutervio entatildeo
menciona que a origem deste tipo de poema estaacute atrelada aos hinos em louvor a Diana
e Apolo Nocircmio no tempo em que o deus apascentou os rebanhos de Admeto Seacutervio
afirma ainda que o poema bucoacutelico foi dedicado pelos pastores aos numes ruacutesticos
tais como Patilde faunos ninfas e saacutetiros
Assim na composiccedilatildeo bucoacutelica geralmente figuram os guardadores de gado
os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas que estatildeo sempre
inseridos em um cenaacuterio campesino Os pastores satildeo representados como homens
do campo que vivem singelamente e que estatildeo sempre acompanhados de seus
cajados e rebanhos Aleacutem disso no momento de oacutecio entoam cantigas inocentes na
singela flauta
Em Roma coube a Virgiacutelio as primeiras composiccedilotildees pastoris Nas Bucoacutelicas
coleccedilatildeo de poemas publicados entre 42 e 37 aC ao buscar motivos nos Idiacutelios de
Teoacutecrito poeta siracusano do Periacuteodo Heleniacutestico (seacutec III aC) tambeacutem conhecido
87
tradicionalmente como o fundador do gecircnero bucoacutelico Virgiacutelio criou ambientaccedilotildees e
personagens valendo-se de uma linguagem repleta de elementos figurativos
A tradiccedilatildeo claacutessica atribui ao siracusano Teoacutecrito a origem do poema bucoacutelico
Girard (apud BOLEacuteO 1936 p 21) ao referir-se agrave poesia pastoril grega menciona o
nome de Teoacutecrito como criador de modelos Mas nos estudos de Boleacuteo afirma-se
que seria errocircneo pensar em Teoacutecrito como uacutenico criador da poesia de gecircnero
bucoacutelico jaacute que o poeta tal como Homero vale-se de uma reminiscecircncia literaacuteria
praticada na Greacutecia Com isso ao mencionar as origens remotas da poesia bucoacutelica
Boleacuteo (1936 p 33) lembra sobre a praacutetica da agricultura (referindo-se assim ao
campo e agrave natureza em geral) e da pastoriacutecia (referindo-se agrave simpatia pelo pastor)
como elemento fundamental para a caracterizaccedilatildeo do povo siciliano e da Siciacutelia tida
pelo criacutetico como a paacutetria por excelecircncia do gecircnero da poesia pastoril Somando-se a
isso Boacuteleo menciona que a poesia bucoacutelica teve na mitologia agreste especialmente
no mito de Daacutefnis sua principal fonte
Os poemas bucoacutelicos de Virgiacutelio apresentam um cenaacuterio em que estatildeo
presentes figuras coerentes ao contexto pastoril Mas Zeacutelia de Almeida Cardoso
(1989 p 66) afirma que ldquoApesar da simplicidade dos temas a linguagem de Virgiacutelio
nas Bucoacutelicas eacute bastante rica em figuras de estilo e elementos ornamentaisrdquo Isso
mostra que a expressatildeo tradicional ldquoestilo simplesrdquo para caracterizar o gecircnero bucoacutelico
pode induzir a conclusotildees precipitadas do ponto de vista da sofisticaccedilatildeo da linguagem
empregada nos poemas Ao nos referirmos ao estilo simples em relaccedilatildeo agrave poesia
bucoacutelica de Virgiacutelio queremos com isso destacar o efeito de sentido depreendido a
partir de uma coerecircncia discursiva O estilo simples se verifica dessa forma na
expectativa gerada pela rede de figuras que eacute recorrente no discurso sendo capaz de
construir um especiacutefico efeito de sentido partindo da caracterizaccedilatildeo do tipo de
personagens e ambientaccedilatildeo proacuteprios da poesia bucoacutelica
O pastor o protagonista do cenaacuterio bucoacutelico aleacutem de se deleitar com a vida
ruacutestica do campo desfrutando do oacutecio tambeacutem participa com seu engenho e arte da
composiccedilatildeo da cena pastoril Fontenelle (apud BOLEacuteO 1936 p 59) revela assim
que o poema bucoacutelico traz um elemento muito importante o aspecto musical
O costume de fazer acompanhar a poesia de muacutesica ou melhor o haacutebito de
compor versos para serem cantados e acompanhados de um instrumento musical
natildeo era soacute peculiar agrave poesia liacuterica mas agrave poesia em geral de tal forma que antes de
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Hesiacuteodo e Piacutendaro a palavra ldquocriadorrdquo ou ldquopoetardquo era sinocircnimo de cantor de aedo []
(BOLEacuteO 1936 p 59)
Com isso os pastores na poesia de gecircnero bucoacutelico estatildeo ligados agrave terra e agrave
arte de bem dizer e portanto frequentemente aparecem como cantores Sabe-se que
o canto bucoacutelico eacute um dos elementos essenciais nos Idiacutelios pastoris de Teoacutecrito
servindo de modelo a Virgiacutelio na composiccedilatildeo das Bucoacutelicas de nuacutemero I III V VII e
IX
As bucoacutelicas iacutempares apresentam diaacutelogos de pastores com tonalidade
dramaacutetica A seacutetima bucoacutelica por exemplo vale-se de proacutelogos dirigidos ao auditoacuterio
assemelhando-se agraves comeacutedias de Plauto Assim como esta os outros poemas
tambeacutem trabalham com o apelo cecircnico revelando-se fortemente dramaacuteticas
E de Saint-Denis (apud MENDES 1997 p 144) cita algumas dessas
caracteriacutesticas e questiona a investigaccedilatildeo das Bucoacutelicas a partir da encenaccedilatildeo e da
muacutesica Com base em dados cecircnico-musicais o criacutetico procura elementos que
revelem a progressatildeo dramaacutetica que se desenvolve no cenaacuterio bucoacutelico
Para Joatildeo Pedro Mendes (1997 p144)
A muacutesica acompanha sempre a encenaccedilatildeo quer executada pela flauta dos pastores quer murmurada em surdina pela natureza envolvente quer ainda pelos recursos teacutecnicos do verso (anaacuteforas ecos ressonacircncias aliteraccedilotildees e assonacircncias no final do verso ou do hemistiacutequio)
O desafio poeacutetico de motivo liacuterico era praticado entre dois pastores O canto
dialogado constituiacutea o chamado canto amebeu ldquoque significa tomar uma coisa em
troca doutrardquo (BOLEacuteO 1936 p 61) Com o teacutermino dos cantos o pastor vitorioso
recebia um precircmio uma flauta pastoril ou um cajado por exemplo
Ao definir os antecedentes do desafio poeacutetico Luiacutes da Cacircmara Cascudo (2005)
tambeacutem menciona os versos improvisados que os romanos chamaram de
amoeboeum carmen ou seja canto amebeu que ldquoera alternado e os interlocutores
deviam responder com igual nuacutemero de versosrdquo (2005 p 185-186)
Em seu ensaio Virgiacutelio e os cantadores (2005) Mauro Mendes apresenta-nos
uma definiccedilatildeo para o concurso ou desafio poeacutetico entre pastores
Enquanto cuidavam dos rebanhos os pastores costumavam promover disputas entre si para ver quem era o melhor na arte de cantar e fazer versos Plessis sem nenhum preconceito chama a este tipo de
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disputa de ldquoconcurso poeacuteticordquo (concours poeacutetique) o qual se realizava sob a observaccedilatildeo de um juiz Iniciada a disputa os dois rivais se alternavam cantando estrofes que deviam ter o mesmo nuacutemero de versos tendo o segundo improvisador a obrigaccedilatildeo de se manter dentro do tema proposto pelo primeiro quer o contradizendo quer o enriquecendo com variaccedilotildees O primeiro improvisador (repentista) tanto podia se manter dentro de um mesmo tema durante vaacuterias estrofes quanto podia mudaacute-lo bruscamente criando assim dificuldades para o segundo Este tipo de desafio era denominado canto ldquoamebeurdquo (canto alternado) (MENDES 2005 p 16-17)
A ldquoV Bucoacutelicardquo concentra-se no canto alternado entre dois amigos pastores
Menalcas e Mopso que se encontram em um cenaacuterio campestre para juntos
celebrarem o pastor miacutetico Daacutefnis e por extensatildeo o proacuteprio gecircnero bucoacutelico De
acordo com Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 236) o canto amebeu existe neste poema
todavia em um tom muito diferente pois natildeo haacute o compromisso da aposta entre os
dois pastores-cantadores Aleacutem disso apresentam-se trechos longos elaborados
que visam o mero prazer de recitar
Logo a composiccedilatildeo do universo pastoril seraacute feita gradualmente a partir da fala
dos personagens-pastores O poema inicia-se com a fala de Menalcas (hex 1-3) que
apresenta a descriccedilatildeo do locus amoenus
MENALCAS
Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo tu calamos inflare leuis ego dicere uersus hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre os olmeiros misturados agraves aveleiras
Nestes versos Menalcas convida o pastor Mopso para sentar-se entre os
olmeiros e as aveleiras O Olmeiro (ou Ulmeiro) eacute uma aacutervore de grande porte e
portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra Era comum aos pastores no
momento de oacutecio desfrutarem da sombra de uma frondosa faia enquanto tocavam a
singela flauta Trata-se de uma temaacutetica recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico A
descriccedilatildeo do lugar apraziacutevel e favoraacutevel portanto ao canto aparece iconicamente no
hexacircmetro 3
90
Hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
Aqui nos sentamos entre os olmeiros misturados agraves aveleiras
Destaca-se deste verso o verbo ldquoconsedimusrdquo (sentamos) que estaacute entre
ldquocorylisrdquo aveleiras e ldquoulmosrdquo olmeiros figurativizando o convite que Menalcas faz a
Mopso o de que deveriam se sentar entre as aveleiras e os olmeiros Nota-se que a
disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso favorece agrave impressatildeo referencial do cenaacuterio
bucoacutelico ou seja agrave percepccedilatildeo da imagem dos dois pastores que sentados entre as
aacutervores cantam a natureza que os cerca
O efeito de sentido simples eacute depreendido aqui a partir da descriccedilatildeo do cenaacuterio
bucoacutelico O lugar elegido pelos pastores eacute o chatildeo ruacutestico de onde se aproveitaraacute a
sombra do olmeiro que se encontra perto das aveleiras Dando continuidade agrave
construccedilatildeo desse efeito temos a fala de Mopso que em resposta a Menalcas (hex
4-7) procura sugerir um outro lugar para o encontro ampliando de tal forma a
descriccedilatildeo do cenaacuterio tipicamente bucoacutelico
MOPSVS
Tu maior tibi me est aequom parere Menalca Siue sub incertas Zephyris motantibus umbras Siue antro potius succedimus Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis
Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo
das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados ou melhor em uma gruta
sigamos Vecirc como a videira silvestre a cobriu com cachos raros
Da fala de Mopso merece destaque o hexacircmetro 5
Siue Sub incertaS ZephyriS motantibuS umbraS
Seja debaixo das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados
A repeticcedilatildeo do fonema s ao longo do verso deixa entrever uma sibilacircncia
significativa pois sugere a cena que estaacute sendo descrita a de que as sombras
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proporcionadas pelas aacutervores satildeo inconstantes devido ao sopro dos ventos presente
figurativamente na repeticcedilatildeo da sibilante s O que se pode observar nesse trecho eacute
uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem em que o poeta relaciona o som ao sentido
e procura colocar em destaque agravequilo de que fala O discurso poeacutetico com isso
identifica-se com o proacuteprio referente As palavras de Joseacute Luiz Fiorin (1992 p 21)
vecircm ao encontro desse raciociacutenio
O conteuacutedo precisa unir-se a um plano de expressatildeo para manifestar-
se A expressatildeo principalmente no texto literaacuterio fornece tambeacutem
elementos dotados de valor significativo Esses elementos satildeo
basicamente os efeitos estiliacutesticos da expressatildeo ritmo aliteraccedilotildees
assonacircncias figuras de construccedilatildeo etc
Zeacutefiro eacute o vento oeste a personificaccedilatildeo do sopro sugerido pela aliteraccedilatildeo da
sibilante s no quinto hexacircmetro do poema de Virgiacutelio No quadro O Nascimento de
Vecircnus de Sandro Botticelli o sopro do Zeacutefiro permite que Vecircnus deusa do amor e da
beleza aproxime-se da Ilha de Chipre onde deveraacute ser recebida pelas Graccedilas
Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus
Fonte CUMMING Robert 1998 p 22
92
O sopro que em Virgiacutelio aparece como jogo aliterativo na concretude das
palavras dispostas no verso e na tentativa de homologaccedilatildeo do som ao sentido em
Botticelli aparece no movimento pictoacuterico sugerido pela ilusatildeo da presenccedila das ondas
no mar no manto e nos cabelos esvoaccedilantes aleacutem das flores que se desprendem
com o movimento desse sopro Enquanto Virgiacutelio extrai da palavra seu poder
figurador Botticelli exalta a plasticidade dos corpos e sugere a sensaccedilatildeo de
movimento as figuras estatildeo paradas enquanto as linhas se movimentam
Voltando agrave descriccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico da fala de Mopso ainda merecem
destaque os hexacircmetros 6 e 7
[] Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis
Vecirc como a videira silvestre cobriu a gruta com cachos raros
A disposiccedilatildeo dos sintagmas neste verso contribui para a construccedilatildeo figurativa
da cena que estaacute sendo descrita Nota-se que a videira silvestre ldquolabrusca siluestrisrdquo
estaacute entre os cachos raros ldquoraris racemisrdquo favorecendo agrave construccedilatildeo da imagem da
videira que estaacute circundada por cachos dispersos de uvas
A descriccedilatildeo do locus amoenus mais uma vez aparece na fala do pastor
remetendo-nos ao efeito de sentido simples proacuteprio da poesia bucoacutelica
No decorrer dos cantos alternados entre os amigos pastores o cenaacuterio bucoacutelico
vai sendo tecido ao abrigo de figuras que entrecruzadas favorecem agrave apreensatildeo
temaacutetica do ldquolouvor ao proacuteprio canto bucoacutelicordquo
Logo Menalcas (hex10-12) sugere a Mopso alguns temas mais elevados para
o canto bucoacutelico os louvores de Alcatildeo as disputas de Codro e a histoacuteria de Fiacutelis
afirmando que os cabritos seratildeo guardados por Tiacutetiro Alcatildeo era companheiro de
Heacutercules foi um haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu
filho sem o ferir Codro foi um rei ateniense que se sacrificou por sua paacutetria e Fiacutelis foi
uma princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado enforcou-
se e foi transformada em amendoeira Menalcas apresenta dessa forma alguns
temas um pouco mais elevados para abrir a inspiraccedilatildeo do amigo pastor Mas Mopso
se recorda da temaacutetica bucoacutelica e assim responde
93
(hex 13-15)
MOPSVS
Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi carmina descripsi et modulans alterna notaui experiar tu deinde iubeto certet Amyntas
Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na casca verde de uma faia tu em seguida mandai que Amintas dispute (comigo)
A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute
que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos
As figuras apresentadas remetem-nos portanto agrave descriccedilatildeo do espaccedilo
campestre que deve ser sempre um lugar apraziacutevel tanto ao oacutecio quanto ao canto
Aleacutem disso a fala de Mopso deixa entrever os temas singelos humildes proacuteprios da
poesia bucoacutelica o que corrobora para a construccedilatildeo do efeito de sentido simples
Menalcas nos hexacircmetros 16 a 19 cita outros elementos que compotildeem o
espaccedilo bucoacutelico e em seguida entra na gruta com Mopso
MENALCAS
Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae puniceis humilis quantum saliunca rosetis iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas Sed tu desine plura puer sucessimus antro
Assim como o flexiacutevel salgueiro cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo ceacuteltico (cede) agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta
O salgueiro citado por Menalcas eacute um arbusto de folhas delgadas com longos
e flexiacuteveis ramos que serviam para a confecccedilatildeo de cestas e outros objetos de uso
rural A oliveira no pequeno excerto ganha o epiacuteteto de paacutelida Isso se deve agrave cor de
sua folhagem jaacute que nos olivais prevalece o tom cinza As figuras apresentadas na
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fala dos pastores ao tecer um cenaacuterio bucoacutelico por meio de recorrecircncias coerentes
vatildeo criando um efeito de sentido que caracteriza o estilo simples proacuteprio da poesia
pastoril
Tendo transferido o lugar do canto das sombras incertas para a gruta
circundada por cachos de uvas os pastores iniciam o canto O lugar apraziacutevel
escolhido pelos pastores pode ser definido como um iacutendice espacial em que figuram
os elementos responsaacuteveis pela caracterizaccedilatildeo do gecircnero da poesia pastoril Aleacutem
disso nota-se que o iacutendice temporal eacute estaacutetico jaacute que o ambiente e as personagens
tecircm avidez de presente Isso eacute previsto pelo equiliacutebrio sugerido pela composiccedilatildeo de
gecircnero bucoacutelico que natildeo comporta sobressaltos ou rupturas na descriccedilatildeo do locus
amoenus e no tempo que rege as personagens Os pastores exaltam a tranquilidade
que adveacutem da natureza e a partir dela entoam seus versos
Mopso entatildeo principia a celebraccedilatildeo de Daacutefnis em uma espeacutecie de hino
fuacutenebre em que canta o modo como a natureza pranteou o inventor do canto
bucoacutelico Nos hexacircmetros de nuacutemero 20 a 44 observa-se que as Ninfas divindades
que habitam as fontes montes e campos natildeo mais seratildeo lembradas pelo lendaacuterio
cantor bucoacutelico e por isso choram a sua morte Essas divindades figurativizam os
elementos da natureza que geralmente compotildeem todo o ambiente campestre O canto
de Mopso deixa entrever que a morte de Daacutefnis eacute responsaacutevel pela quebra da ordem
natural das coisas jaacute que nenhum animal tocou a erva do pasto ou provou a aacutegua do
regato Devido agrave morte de Daacutefnis os campos tornaram-se infeacuterteis e produziram
plantas esteacutereis e com espinhos o que demonstra a tristeza do cenaacuterio bucoacutelico
Afinal
Dafnis eacute um pastor ou antes o pastor por excelecircncia [] a divindade protectora dos pastores Eacute pastor [] tem um rebanho a seu cargo leva-o a pascer aos campos Aiacute enamoram-se decircle tocircdas as coisas tocircdas as criaturas desde as inanimadas ndash as pedras as aacutervores ndash ateacute aos animais A sua presenccedila anima a proacutepria natureza que vive e sente como um ser humano(BOLEacuteO 1936 p 31-2)
No canto de Menalcas (hex 56-80) tem-se a divinizaccedilatildeo do pastor Daacutefnis jaacute
que ele seraacute cantado agrave semelhanccedila de Baco o deus do vinho e de Ceres a deusa
da colheita Enquanto no canto de Mopso a natureza se entristece com a morte do
pastor no canto de Menalcas a mesma natureza alegra-se com sua divinizaccedilatildeo uma
95
vez que o lendaacuterio pastor seraacute instituiacutedo como divindade campestre devendo ser
lembrado pelos agricultores juntamente com Baco e Ceres
De acordo com Prado (1992 p 55)
Daacutefnis eacute Daacutefnis ou ainda aquele heroacutei dos pastores da Siciacutelia que segundo a lenda inventou o canto bucoacutelico do qual se tornou depois sua figura predileta e mais filho de Hermes e de uma ninfa nasceu no vale dos montes Ereus a matildee o deu agrave luz ou o expocircs num bosque de louros donde o seu nome tendo crescido tornou-se um pastor de rebanhos bovinos que lhe aprazia apascentar cantando e tocando sua flauta de Patilde era belo a ponto de ter sido amado por seres humanos e divinos tais como Patilde Priapo as Ninfas as Musas Apolo Aacutertemis etc ainda jovem veio a morrer e toda a natureza o pranteou haacute vaacuterias versotildees acerca da forma como morreu segundo a versatildeo mais antiga a de Estesiacutecoro apaixonou-se por uma ninfa (Neide Equeneide ou Lica) que o cegou para vingar-se de uma infidelidade por algum tempo Daacutefnis confortou-se com seu proacuteprio canto mas depois num momento de desespero precipitou-se do alto de uma rocha e foi levado aos ceacuteus por Hermes os pastores passaram a oferecer-lhe sacrifiacutecios anualmente no local onde ele teria se precipitado Tal eacute a resposta mais objetiva que se pode dar acerca da identidade de Daacutefnis
Ao questionarmo-nos sobre a escolha do mito de Daacutefnis na ldquoV Bucoacutelicardquo
chegamos em Teoacutecrito jaacute que em seu Idiacutelio I ldquoencontramos o pastor Thyrsis cantando
os infortuacutenios de Daacutefnis golpeado por Afrodite por um amor irresistiacutevel porque se
gabava de ser insensiacutevel a essa classe de paixatildeo Vaacuterias passagens daquele canto
e mesmo alguns versos inteiros foram reproduzidos por Virgiacutelio na Eacutegloga Vrdquo
(PRADO 1992 p 56)
Mas vale ressaltar que no idiacutelio de Teoacutecrito Daacutefnis natildeo eacute divinizado mas sim
ao contraacuterio jaacute que ele ldquobaixa agraves profundezas do Hades ateacute submergir ou dissolver-
se nas aacuteguas do rio Estiacutegio enquanto no relato do pastor virgiliano (vs 56-80) haacute uma
longa celebraccedilatildeo do novo status de Daacutefnis como deus []rdquo (PRADO 1992 p 56
grifo do autor)
Na visatildeo de Prado (1992 p 56-57) Virgiacutelio na ldquoV Bucoacutelicardquo distancia-se da
temaacutetica teocriteana para assim construir um novo mito calcado no discurso histoacuterico
e lendaacuterio dos feitos de Ceacutesar criando com isso uma atmosfera propiacutecia ao
Cesarismo que ficaria cristalizado posteriormente na figura de Otaviano
Segundo Prado (1992) Juacutelio Ceacutesar e Daacutefnis podem ser aproximados no
discurso poeacutetico de Virgiacutelio porque ambos podem ser vistos como heroacuteis lendaacuterios
96
aleacutem do que alguns indiacutecios da histoacuteria do general romano mostram que Ceacutesar
tambeacutem foi divinizado em 42 aC pelos triuacutenviros Aleacutem disso outro intertexto que
torna possiacutevel aliar a histoacuteria lendaacuteria de Ceacutesar com a de Daacutefnis segundo o criacutetico eacute
a sucessatildeo de eventos que se seguem apoacutes a morte do imperador mas descritos em
um texto posterior nas Geoacutergicas (Canto I hex-463-488)
Nas palavras de Prado (1992 p 57)
Quando ele morreu Virgiacutelio nos conta que o sol se escondeu e o povo julgou que fosse o fim dos tempos aleacutem do sol tambeacutem deram sinais a terra as aacuteguas do mar os catildees agourentos as aves mal astradas o Etna vomitou lava ouviram-se clamores de guerra na Germacircnia os Alpes tremeram vozes ressoaram na escuridatildeo da noite e fantasmas apareceram nos bosques animais falaram rios houve que transbordaram ou suspenderam o curso de suas aacuteguas e toda sorte de estranhos acontecimentos deram lugar agrave morte desse heroacutei de Roma
Logo segundo Prado todos esses fatos lendaacuterios quando somados deixam
entrever uma apropriaccedilatildeo de um aspecto cultural e poliacutetico do tempo de Virgiacutelio
Natildeo podemos perder de vista eacute claro que ldquoos noventa hexacircmetros datiacutelicos de
Virgiacutelio que a tradiccedilatildeo dos estudos claacutessicos nos transmite sob a designaccedilatildeo de
Eacutegloga V por vezes subintitulados Daphnis em boas ediccedilotildees satildeo como os de
qualquer uma das outras nove peccedilas da coletacircnea uma fala em liacutengua latinardquo (LIMA
1992 p 59 grifo do autor)
Na visatildeo de Lima (1992) neste canto liacuterico-pastoral de Virgiacutelio deixa-se
entrever um efeito de sentido logo no iniacutecio do primeiro hexacircmetro ndash Cur non
consedimus (Por que natildeo nos sentamos) Cur eacute responsaacutevel por causa de seu
valor latino de forma de interrogaccedilatildeo pelo efeito de sentido ldquoconversa entre
interlocutoresrsquo
com que Virgiacutelio finge poeticamente incorporar a uma simples fala de pastores aquilo que eacute mais propriamente efusatildeo liacuterica ao mesmo tempo em que se torna como que natural o prolongamento dessa efusatildeo graccedilas agrave economia simulada num jogo de pergunta e resposta entre parceiros No plano fonoloacutegico cur 1) antecipa e faz ressoarem as assonacircncias em liacutequidas intensificadas jaacute no hexacircmetro seguinte 2) acentua a oposiccedilatildeo entre a leveza da flauta ruacutestica que parece comunicar-se agrave liquidez natural do seu som simbolizada no fonema [l] e uma certa dureza das vibraccedilotildees do [r] da voz humana do pastor Menalcas tu calamos inflare leuis ego dicere uersus (LIMA 1992 p 63 grifos do autor)
97
Segundo Lima (1992) Daphnis eacute o vocaacutebulo de maior recorrecircncia na ldquoV
Bucoacutelicardquo jaacute que aparece 13 vezes pois tem um relevo especial Para o criacutetico natildeo
haacute duacutevida sobre a adesatildeo entusiasta do poeta em relaccedilatildeo agrave monarquia juliana Mas
se isso deve ser interpretado ldquocomo identificaccedilatildeo pura e simples de uma obra que eacute
produto do imaginaacuterio e do talento com a ideologia dos mortais interessados no ecircxito
de um evento poliacutetico e natildeo primeiro como transfiguraccedilatildeo poeacutetica da vida em
sociedade eacute uma questatildeo de gosto e de sensibilidaderdquo (LIMA 1992 p 63-64)
Com relaccedilatildeo aos expedientes figurativos presentes no poema podem-se
destacar ainda os hexacircmetros 83 e 84 da fala de Mopso que se emociona com o
canto de Menalcas e afirma que nem as aacuteguas que descem pelo vale o deleitam tanto
[] nec quae saxosas inter decurrunt flumina uallis
nem os rios que descem por entre vales escarpados
A distribuiccedilatildeo dos vocaacutebulos contribui iconicamente para a mimetizaccedilatildeo da
cena que estaacute sendo invocada jaacute que ldquofluminardquo rios aparece figurativamente entre
ldquouallis saxosasrdquo vales escarpados Temos dessa forma a imagem do rio construiacuteda
em meio ao vale
Ao apresentar o pastor Daacutefnis lendaacuterio inventor do canto bucoacutelico como tema
principal de toda a trama de figuras a ldquoV Bucoacutelicardquo deixa entrever o tema do ldquolouvor
ao proacuteprio gecircnero pastorilrdquo que eacute revestido por figuras que simbolizam todo o universo
campestre
O estilo pensado aqui como efeito de individuaccedilatildeo construiacutedo no poema eacute
depreendido pela coerecircncia discursiva ou seja pela rede de figuras que vatildeo criando
uma expectativa do dizer A recorrecircncia figurativa potencializa dessa forma o estilo
enunciado porque ele vai aparecer como um efeito de sentido depreendido pelo
contexto do poema Na ldquoV Bucoacutelicardquo portanto temos um estilo simples construiacutedo
como efeito a partir de um cenaacuterio campesino (com uma gruta coberta por cachos de
uvas um olmeiro uma frondosa faia) o canto alternado entre dois pastores (Mopso e
Menalcas) e a menccedilatildeo a deuses que se coadunam com o ambiente campestre
(Daacutefnis Ceres)
98
Buscou-se entender assim como o arranjo de figuras presentes no poema
contribui para a construccedilatildeo da verossimilhanccedila do cenaacuterio bucoacutelico o locus amoenus
o lugar apraziacutevel destinado ao canto e ao oacutecio dos poetas-pastores Ao destacarmos
o jogo aliterativo e posicional das palavras na produccedilatildeo de impressotildees referenciais
procuramos apreender tambeacutem a forma como Virgiacutelio trama as palavras que estatildeo em
andamento no poema remetendo-nos ao sentido poeacutetico e esteacutetico do texto
99
54 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) ldquodescriccedilatildeo do lugar adequado
para as abelhasrdquo
Protinus aerii mellis caelestia dona
exsequar hanc etiam Maecenas adspice partem
Admiranda tibi leuim spetacula rerum
magnanimosque duces totiusque ordine gentis
mores et studia et populos et proelia dicam 5
In tenui labor at tenuis non gloria si quem
numina laeua sinunt auditque uocatus Apollo
Principio sedes apibus statioque petenda
quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti
ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci 10
floribus insultent aut errans bubula campo
decutiat rorem et surgentis atterat herbas
Absint et picti squalentia terga lacerti
pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolocres
et manibus Procne pectus signata cruentis 15
omnia nam late uastant ipsasque uolantis
ore ferunt dulcem nidis immitibus escam
At liquidi fontes et stagna uirentia musco
adsint et tenuis fugiens per graminha riuos
palmaque uestibulum aut igens oleaster inumbret 20
ut cum prima noui ducent examina reges
uere suo ludetque fauis emissa iuuentus
uicina inuitet decedere ripa calori
100
obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos
In medium seu stabit iners seu profluet umor 25
transuersas salices et grandia conice saxa
pontibus ut crebris possint consistere et alas
pandere ad aestiuom86 solem si forte morantis
sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus
Haec circum casiae uirides et olentia late 30
serpylla87 et grauiter spirantis copia thymbrae
floreat inriguom88que bibant uiolaria fontem
Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis
seu lento fuerint aluaria uimine texta
angustos habeant aditus nam frigore mella 35
cogit hiems eademque calor liquefacta remittit
Vtraque uis apibus pariter metuenda neque illae
nequiquam in tectis certatim tenuia cera
spiramenta linunt fucoque et floribus oras
explent conlectumque haec ipsa ad munera gluten 40
et uisco et Phrygiae seruant pice lentius Idae
Saepe etiam effosis si uera est fama latebris
sub terra fouere larem penitusque repertae
pumicibusque cauis exesaeque arboris antro
Tu tamen et leui rimosa cubilia limo 45
unge fouens circum et raras superinice frondis
86 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aestiuum Aquiacute optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1956 87 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se serpulla 88 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se inriguumque
101
neu propius tectis taxum sine neue rubentis
ure foco cancros altae neu crede paludi
aut ubi odor caeni grauis aut ubi concaua pulsu
saxa sonant uocisque ofensa resultat imago 50
Quod superest ubi pulsam hiemem sol aureus egit
sub terras caelumque aestiua luce reclusit
illae continuo saltus siluasque peragrant
purpureosque metunt flores et flumina libant
summa leues Hinc nescio qua dulcedine laetae 55
progeniem nidosque fouent hinc arte recentis
excudunt ceras et mella tenacia fingunt
Hinc ubi iam emissum caueis ad sidera caeli
nare per aestatem liquidam suspexeris agmen
obscuramque trahi uento mirabere nubem 60
contemplator aquas dulcis et frondea semper
tecta petunt Huc tu iussos adsperge sapores
trita melisphylla et cerinthae ignobile gramen
tinnitusque cie et Matris quate cymbala circum
ipsae consident medicatis sedibus ipsae 65
intima more suo sese in cunabula condent
Sin autem ad pugnam exierint ndash nam saepe duobus
regibus incessit magno discordia motu
continuoque animos uolgi89 et trepidantia bello
corda licet longe praesciscere namque morantis 70
89 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se uulgi
102
Martius ille aeris rauci canor increpat et uox
auditur fractos sonitus imitata tubarum
tum trepidae inter se coeunt pinnisque coruscant
spiculaque exacuunt rostris aptantque lacertos
et circa regem atque ipsa ad praetoria densae 75
miscentur magnisque uocant clamoribus hostem
ergo ubi uer nactae sudum camposque patentis
erumpunt portis concurritur aethere in alto
fit sonitus magnum mixtae glomerantur in orbem
praecipitesque cadunt non densior aere grando 80
nec de concussa tantum pluit ilice glandis
ipsi per medias acies insignibus alis
ingentis animos angusto in pectore uersant
usque adeo obnixi non cedere dum grauis aut hos
aut hos uersa fuga uictor dare terga subegit ndash 85
hi motus animorum atque haec certamina tanta
pulueris exigui iactu compressa quiescunt
Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo
deterior qui uisus eum ne prodigus obsit
dede neci melior uacua sine regnet in aula 90
Alter erit maculis auro squalentibus ardens
(nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore
et rutilis clarus squamis ille horridus alter
desidia latamque trahens inglorius aluom90
90 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se aluum
103
Vt binae regum facies ita corpora plebis 95
namque aliae turpes horrent ceu puluere ab alto
quom91 uenit et sicco terram spuit ore uiator
aridus elucent aliae et fulgore coruscant
ardentes auro et paribus lita corpora guttis
Haec potior suboles hinc caeli tempore certo 100
dulcia mella premes nec tantum dulcia quantum
et liquida et durum Bacchi domitura saporem
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt
contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont92
instabilis animos ludo prohibebis inani 105
Nec magnus prohibere labor tu regibus alas
eripe non illis quisquam cunctantibus altum
ire iter aut castris audebit uellere signa
Inuitent croceis halantes floribus horti
et custos furum atque auium cum falce saligna 110
Hellespontiaci seruet tutela Priapi
Ipse thymum pinosque93 ferens de montibus altis
tecta serat late circum quoi94 talia curae
ipse labore manum duro terat ipse feracis
figat humo plantas et amicos inriget imbris 115
91 Na estaccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cum 92 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se relinquunt 93 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tinosque 94 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cui
104
55 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) Traduccedilatildeo e notas
Continuadamente relatarei os dons celestes do aeacutereo mel95 Considera
tambeacutem Mecenas96 esta parte Para tua admiraccedilatildeo cantarei espetaacuteculos de breves
assuntos e em ordem magnacircnimos comandantes costumes ocupaccedilotildees povos e
combates de toda naccedilatildeo Pequeno o trabalho97 mas natildeo pequena a gloacuteria Se os
deuses contraacuterios o permitem e Apolo98 quando invocado ouve
Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que
natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem
as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo
agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes
Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos99 de ouriccedilados dorsos das feacuterteis
moradas e os melharucos100 outras aves e Procne101 marcada no peito com crueacuteis
matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes102
alimento doce para agrestes ninhos
Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos um
tecircnue riacho fluindo pela relva uma palmeira ou um alto zambujeiro103 sombreie o
vestiacutebulo104 para que quando os novos reis105 conduzirem os primeiros enxames de
abelhas em sua primavera106 e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma
margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com
folhagens hospitaleiras
No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados
salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir
95O mel era visto pelos antigos como um orvalho celeste 96Mecenas o patrono das artes na eacutepoca do reinado de Otaacutevio Augusto 97Trata-se de um assunto humilde Evidencia-se aqui a modeacutestia do tema 98Apolo o deus das artes 99Diz-se que o lagarto fica agrave espreita na entrada das colmeias sendo um de seus inimigos 100Melharuco (ou abelharuco) ave do tamanho de um sabiaacute que se nutre das abelhas e outros insetos 101Procne esposa de Tereu e irmatilde de Filomela Foi transformada em andorinha apoacutes matar o filho e servi-lo ao marido Diz-se que a mancha no peito da andorinha satildeo as marcas do sangue de Iacutetis 102 abelhas 103Zambujeiro oliveira brava 104 A entrada da colmeia 105Segundo o pensamento da eacutepoca as abelhas eram governadas por reis 106O adjetivo possessivo presente em ldquoVere suordquo indica que a primavera eacute a estaccedilatildeo das abelhas sendo mais favoraacutevel a elas
105
as asas ao sol de estio se por acaso Euro107 impetuoso tiver molhado ou submergido
em Netuno108 as que tardam
Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas109 e cheirosos serpotildees110
ao longe e uma abundacircncia de segurelha111 exalando fortemente e que os canteiros
de violetas bebam a uacutemida fonte
Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas
corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas
entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos112
Uma e outra forccedila igualmente deve ser temida pelas abelhas e natildeo sem motivo
agrave porfia113 elas revestem com cera114 as pequenas fendas de suas habitaccedilotildees e
vedam as extremidades com visco e flores e reunida para esses mesmos serviccedilos
[elas] conservam uma cola mais pegajosa do que o visgo e o pez do Ida Friacutegio115
Muitas vezes tambeacutem se eacute verdadeira a fama as abelhas aqueceram o lar em
tocas sob a terra e foram descobertas no interior de pedras porosas e na cavidade
de uma aacutervore carcomida116
Tu poreacutem unta as colmeias cheias de fenda com liso limo aquecendo ao
redor e lanccedila por cima raras117 folhagens E natildeo permitas o teixo perto dos tetos natildeo
queimes ao fogo os vermelhos caranguejos118 natildeo creias em profunda lagoa ou onde
eacute forte o odor da lama ou onde cocircncavas pedras ressoam com uma batida e resulta
o eco repercutido da voz119
107Euro vento do Leste capaz de alcanccedilar as abelhas perdidas (as que tardam) 108Netuno deus romano que preside os mares aqui representa a proacutepria agua 109 Manjerona planta aromaacutetica usada como condimento 110Serpatildeo (ou serpilho) planta aromaacutetica de pequeno porte 111Segurelha erva aromaacutetica planta ornamental tambeacutem usada como condimento 112Os excessos de calor e frio danificam o mel 113 As abelhas trabalham incansavelmente 114As abelhas revestem o interior das colmeias com proacutepolis O termo cera indica a qualidade do proacutepolis substacircncia escura e dura 115Ida friacutegio o monte Ida localizado na Friacutegia antiga regiatildeo no Oeste da Aacutesia Menor 116Diz-se que as abelhas tambeacutem se alojam em esconderijos em cavadas rochas ou nos buracos de aacutervores 117As folhagens natildeo devem ser muito longas pois o ar deve circular entre os ramos 118 Haacute diferentes remeacutedios que satildeo compostos com os caranguejos em brasa mas o odor desta preparaccedilatildeo eacute nocivo agraves abelhas 119As colmeias devem ser instaladas longe do barulho onde natildeo haacute mais eco
106
Quanto ao mais quando o aacuteureo sol expulsou o abatido inverno sob as terras120
e abriu o ceacuteu com luz de veratildeo imediatamente as abelhas percorrem os bosques e
as florestas recolhem as purpuacutereas flores e leves libam a superfiacutecie dos rios Assim
felizes eu natildeo sei por qual doccedilura aquecem os ninhos e a progecircnie depois elas
formam com arte novas ceras e produzem os licorosos meacuteis
Aiacute quando jaacute vires uma multidatildeo saiacuteda da colmeia voar pelo liacutempido estio ateacute
os astros do ceacuteu e admirares uma nuvem escura ser trazida pelo vento contempla
buscam sempre aacuteguas doces e abrigos cobertos de folhagens Espalha tu aiacute os
aromas determinados a melissa121 triturada e a erva comum do chupa-mel122 faze
ao redor soar zumbidos123 e agita os ciacutembalos da Matildee124 As proacuteprias abelhas
pousaratildeo nos lugares preparados125 elas mesmas abrigar-se-atildeo segundo seu
costume no interior da morada126
Mas se saiacuterem ao combate (porque muitas vezes a discoacuterdia de dois reis
sobreveio com grande alvoroccedilo) de longe se podem prever os acircnimos da turba e os
coraccedilotildees que vibram pela guerra127 porque aquele som marcial do rouco bronze
estimula as morosas e a voz que imita os ruidosos sons das trombetas eacute ouvida
Entatildeo agitadas entre si confrontam-se e batem as asas e afiam os ferrotildees com os
bicos e preparam as garras numerosas misturam-se ao redor do rei e ao mesmo
pretoacuterio o inimigo invocam com grandes clamores No momento em que tenham
encontrado clara primavera e descortinados campos lanccedilam-se pelas portas
combate-se Um barulho ressoa no alto ceacuteu misturadas aglomeram-se em um grande
orbe e caem precipitadas O granizo natildeo cai mais denso do ar nem tatildeo grande nuacutemero
de bolotas chove da sacudida azinheira
Os proacuteprios [reis] insignes pelas asas128 em meio aos exeacutercitos revolvem no
pequeno peito os ingentes acircnimos obstinados em natildeo ceder ateacute que o duro vencedor
120O inverno esconde-se nas entranhas da terra 121Mellisa folha para as abelhas ou para o mel 122 Chupa-mel erva de 30 a 50 cm de altura de cor roxa ou amarela cultivada em pastagens ou solo pedregoso 123 Para Virgiacutelio o barulho atrai as abelhas 124A ldquoMatildeerdquo eacute a deusa friacutegia Cibele a grande Matildee que preside toda a natureza Muitas vezes ela eacute representada com ciacutembalos 125 As abelhas entrariam na colmeia por si proacuteprias 126 Colmeia 127 Agitaccedilatildeo que se produz no enxame com a aproximaccedilatildeo do combate 128Os reis se distinguem das demais abelhas pela luminosidade de suas asas
107
obrigou estes ou aqueles a virar as costas na fuga Estes alvoroccedilos dos acircnimos e
estes tatildeo grandes combates se apaziguam reprimidos por um jato de bem pouco
poeira
Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele
que pareceu pior para que por consumir natildeo seja prejudicial deixe que o melhor
reine na desimpedida corte
Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de
ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor
aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre
Dois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo os corpos da plebe pois
umas satildeo disformes e horrendas como o viajante sedento quando vem da espessa
poeira e cospe terra de sua garganta seca outras reluzem e cintilam com fulgor
brilhantes do ouro em corpos mosqueados de manchas iguais
Essa eacute a melhor raccedila dela na estaccedilatildeo certa do ano extrairaacutes os doces meacuteis
natildeo tatildeo doces quanto puros para corrigir o aacutespero sabor de Baco
Mas quando incertos os enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os
favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o
fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles
imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do
acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e
a tutela de Priapo129 do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua
foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado
trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor
dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele
mesmo no solo enterre as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas
129 Priapo filho de Vecircnus e Baco o deus dos jardins Juno fez com que Priapo nascesse deformado Envergonhada Vecircnus mandou-o para Lacircmpsaco cidade da Miacutesia sobre o Helesponto
108
56 FIGURATIVIDADE NO CANTO IV (hex 1-115) anaacutelise do texto
Peter Toohey em seu estudo Epic Lessons an introduction to ancient didatic
poetry (1996) debruccedila-se sobre o tema da poesia didaacutetica grega e romana
demonstrando uma possiacutevel arqueologia da esteacutetica didaacutetica O autor busca assim
por meio de uma anaacutelise comparativa de um grupo de poemas uma certa regularidade
que segundo ele eacute caracteriacutestica da poesia didaacutetica Toohey observou as
composiccedilotildees de Hesiacuteodo Xenoacutefanes Parmecircnides Empeacutedocles Arato Nicandro
Ciacutecero Lucreacutecio Virgiacutelio Oviacutedio e Horaacutecio Segundo o criacutetico todos estes poetas
apresentam alguns traccedilos comuns tais como 1) uma voz forte singular e persuasiva
jaacute que segundo Toohey a poesia didaacutetica requer a presenccedila de uma voz direcionada
a um destinataacuterio 2) um assunto que seja atraente ou sensacional 3) o tipo de verso
pois para o autor o hexacircmetro datiacutelico seria um protoacutetipo da poesia didaacutetica 4) a
simplicidade conceitual e por fim 5) a extensatildeo referindo-se aos 828 versos de O
trabalho e os dias de Hesiacuteodo que se tornou segundo Toohey um modelo para um
livro de versos didaacuteticos
Tendo em vista que ldquotoda obra supotildee o horizonte de uma expectativa ou seja
um conjunto de regras preexistentes para orientar a compreensatildeo do leitor (do
puacuteblico) e permitir-lhe uma recepccedilatildeo apreciativardquo (JAUSS apud LIMA 1983 p 268)
nossa tarefa eacute a de pensar qual seria a expectativa de um discurso que se pretende
didaacutetico
O termo ldquodidaacuteticardquo remete-nos a um contexto de ensino-aprendizagem De
origem grega o termo eacute da famiacutelia do verbo διδάσκω cujo sentido principal eacute ldquofazer
aprender ensinar instruirrdquo
Desde Hesiacuteodo (750 - 650 aC) adotou-se o hexacircmetro datiacutelico como metro
convencional da poesia de gecircnero didaacutetico Todavia Oviacutedio (43 aC -18 dC) utiliza o
diacutestico elegiacuteaco em seus poemas Ars amatoria Medicamina faciei feminae e Remedia
amoris Estes textos colocaram alguns problemas agrave criacutetica tradicional pois satildeo obras
que mesclam caracteriacutesticas que satildeo proacuteprias da poesia didaacutetica com a poesia
elegiacuteaca Haacute por isso estudiosos que apresentam duacutevidas quanto agrave categorizaccedilatildeo
dessas obras ovidianas como pertencentes ao gecircnero da poesia didaacutetica sobretudo
a Ars amatoria e Remedia amoris O que se verifica eacute que uma variada gama de
109
intenccedilotildees didaacuteticas faz com que haja diferenccedilas em maior ou menor grau entre os
diferentes poemas didaacuteticos
Houve por isso vaacuterias tentativas por parte dos criacuteticos em criar uma taxonomia
do gecircnero da poesia didaacutetica130
Seacutervio no seacutec IV dC utiliza no iniacutecio do seu comentaacuterio agraves Geoacutergicas de
Virgiacutelio uma palavra de origem grega - didascalice - para se referir agrave poesia didaacutetica
et hi libri didascalici sunt unde necesse est ut ad aliquem scribantur nam praeceptum et doctoris et discipuli personam requirit unde ad Maecenatem scribit sicut Hesiodus ad Persen Lucretius ad Memmium Estes livros [das Geoacutergicas] satildeo didascaacutelicos por isso a necessidade de que para algueacutem sejam escritos uma vez que o preceito requer a pessoa do mestre e do disciacutepulo [Virgiacutelio] escreve para Mecenas
assim como Hesiacuteodo para Perses e Lucreacutecio para Mecircmio
Assim Virgiacutelio compocircs as Geoacutergicas entre 37 e 29 aC Segundo a tradiccedilatildeo dos
Estudos Claacutessicos a obra apresenta conteuacutedo instrucional sobre agricultura segundo
os pressupostos da poesia didaacutetica Algumas caracteriacutesticas do texto virgiliano dentre
elas o caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a
presenccedila de uma voz poeacutetica didaacutetica que se presta agrave instruccedilatildeo colaboraram para a
particularizaccedilatildeo da obra como gecircnero didaacutetico (TOOHEY 1996 p 15)
Sobre os modelos literaacuterios seguidos por Virgiacutelio sabe-se que as fontes satildeo
sobretudo gregas Hesiacuteodo Xenofonte Arato e Nicandro mas se constatam tambeacutem
as fontes latinas Catatildeo Varratildeo e Lucreacutecio (SANTOS 2007 p 23)
No que concerne agrave poesia didaacutetica e agrave literatura agraacuteria latina Aguilar (2006 p
247) assim expotildee
Por Literatura Agronoacutemica o Agriacutecola en el panorama literario greco-romano se entiende el conjunto de obras que tienen por objeto la exposicioacuten preceptiva de las labores y los trabajos propios de la vida en el aacutembito rural del ager y por tanto del hombre rusticus en oposicioacuten al urbanus Desde esta perspectiva se compreende sin problemas que las obras latinas De agricultura no se circunscriben estrictamente a la agricultura entendida soacutelo en sentido moderno como arte de cultivar la tierra sino que engloben tambieacuten otros
130 Conferir A Dalzell R Martin - J Gaillard Les genres litteacuteraires agrave Rome (Paris 1990) 199-200 Peter Toohey Epic lessons An introduction to ancient didactic poetry (London-New York 1996) Roy K Gibson lsquoDidactic poetry as lsquopopularrsquo form study of imperatival expressions in Latin didactic verse and prosersquo 67-69 In Catherine Atherton (ed) Form and content in didactic poetry (Bari 1997)
110
trabajos y atividades caracteriacutesticos de la economiacutea rural (la res rustica) como la arboricultura la ganaderiacutea la avicultura la apicultura o la administracioacuten misma de la uilla la finca en suelo ruacutestico (AGUILAR 2006 p247)
No Canto I das Geoacutergicas Virgiacutelio menciona a importacircncia do trabalho e a luta
obstinada com a terra No Canto II cantam-se as aacutervores e as vinhas e eacute destacado
o campo como um lugar de felicidade tranquila A terra produz frutos em troca do
esforccedilo despendido pelo homem O Canto III apresenta a raccedila dos animais e as artes
de criaccedilatildeo do gado e no Canto IV Virgiacutelio apresenta a apicultura em um quadro
agriacutecola
Na visatildeo de Elaine C Prado dos Santos (2007 p26)
Com os quatro cantos plantas aacutervores animais e abelhas o poema permite visualizar a gradaccedilatildeo dos niacuteveis da vida diferentes e hierarquizados mostrando que as criaturas se diferenciam Essa ideia eacute compatiacutevel com a filosofia epicurista ou seja agrave medida que se sobe na escala dos seres as criaturas vatildeo se diferenciando pois os organismos ficam mais complexos e compreendem um nuacutemero maior de aacutetomos diferenciados em combinaccedilotildees mais variadas
Vale ressaltar que ao compor um poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo
quis apenas transmitir alguns conhecimentos teacutecnicos sobre os trabalhos do campo
Se a criacutetica da obra virgiliana se prendesse apenas a esse aspecto temaacutetico
classificaria a obra do poeta mantuano como uma espeacutecie de tratado teacutecnico de
agronomia todavia as Geoacutergicas vatildeo muito aleacutem de um simples compecircndio de
aplicaccedilatildeo praacutetica sobre meacutetodos a serem seguidos na agricultura Aliaacutes dentro dos
preceitos uacuteteis e praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas
aqueles que se coadunam com a finalidade artiacutestica Essa seleccedilatildeo eacute portanto
significativa jaacute que estabelece a diferenccedila existente entre a poesia didaacutetica e os
tratados teacutecnicos sobre agricultura
O fiacuteloacutesofo e escritor Secircneca (4 aC-65 dC) tambeacutem opinou acerca da obra
virgiliana afirmando que ldquoO nosso poeta aliaacutes cuidava menos da verdade que da
beleza literaacuteria interessado como estava em proporcionar prazer aos seus leitores e
natildeo em dar liccedilotildees aos homens do campo rdquo (SEcircNECA 2004 p400)
O excerto do ldquoCanto IVrdquo das Geoacutergicas hexacircmetros de 1 a 115 aqui
selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise tem como tema principal a apicultura
mais precisamente a descriccedilatildeo do lugar adequado e seguro para as abelhas
111
Virgiacutelio nos hexacircmetros 1 a 7 faz uma invocaccedilatildeo a Mecenas o patrono das
letras e posteriormente nos hexacircmetros de 8 a 32 fala da situaccedilatildeo das colmeias e
da condiccedilatildeo necessaacuteria para se mantecirc-las em seguranccedila hexacircmetros 33 a 50
Menciona-se ainda o que deve ser feito pelo apicultor com a saiacuteda das abelhas para
pilhar enxamear ou combater hexacircmetros de 51 a 87 Posteriormente eacute destacada a
escolha dos reis quando duas satildeo as espeacutecies das abelhas hexacircmetros 88 a 102 e
como reter as abelhas em um jardim florido hexacircmetros 103 a 115 Seguindo o
pressuposto da poesia didaacutetica o de instruir Virgiacutelio discorre sobre o modo como se
deve cuidar das abelhas No entanto o modo como trama o texto deixa entrever um
trabalho artiacutestico primoroso com a linguagem
O estilo das Geoacutergicas eacute o meacutedio pois a obra trata de assuntos considerados
moderados destinados aos trabalhos no campo do cuidado para com as aacutervores e
plantas da criaccedilatildeo de animais de meacutedio e grande porte e por fim da apicultura Os
temas e figuras apresentados coadunam-se com um tom didaacutetico de ensinamento
Todavia o poema de Virgiacutelio natildeo se restringe apenas agrave instruccedilatildeo Haacute nas Geoacutergicas
um rico trabalho com a linguagem tanto no excerto selecionado para anaacutelise como
na segunda parte do ldquoCanto IVrdquo em que se tem a narrativa sobre Orfeu no mundo
inferior para resgatar a amada Euriacutedice (hex315-558) Deve-se levar em conta que
nas Geoacutergicas muito aleacutem de ldquoinstruirrdquo em um estilo meacutedio e portanto em um tom
didaacutetico Virgiacutelio tambeacutem se utiliza de digressotildees e procura envolvecirc-las
figurativamente em sua obra Dentre as muitas digressotildees jaacute destacamos a do ldquoCanto
IIrdquo em que Virgiacutelio faz uma pausa na descriccedilatildeo do cultivo agraves vinhas (hex259-419) para
realizar um elogio agrave primavera (315-345)
Ao mencionar o estilo meacutedio mediocris stylus fazemos alusatildeo agrave classificaccedilatildeo
feita pelos gramaacuteticos latinos em relaccedilatildeo agraves Geoacutergicas Enquanto as Bucoacutelicas
apresentam-se em um estilo simples humilis stylus tratando de assuntos destinados
ao pastor de cabra ou ovelhas as Geoacutergicas instruem o trabalho e o cultivo do campo
apresentando assuntos considerados moderados Entendemos com isso que os
temas e figuras que aparecem nas duas obras diferem quanto agrave sua funcionalidade
no texto Nos poemas bucoacutelicos encontramos quase sempre uma tematizaccedilatildeo
referente ao louvor do campo e da natureza de modo geral como vimos na ldquoBucoacutelica
Vrdquo Todas as figuras apresentadas nos poemas pastoris portanto coadunam-se com
a ideia de celebraccedilatildeo do ambiente campestre Jaacute nos poemas didaacuteticos das Geoacutergicas
o cenaacuterio ainda eacute o campo mas na tematizaccedilatildeo satildeo apresentadas a importacircncia do
112
trabalho e as diferentes teacutecnicas de cultivo As figuras didaacuteticas alinham-se assim
com o motivo da obra o de instruir
Tendo em vista que o estilo eacute um traccedilo diferencial depreensiacutevel no discurso
podemos afirmar que nas Geoacutergicas portanto a recorrecircncia figurativa que nos
transmite assuntos agriacutecolas por meio da voz de um magister deixa entrever um efeito
de individuaccedilatildeo proacuteprio da poesia didaacutetica o de instruir que permite assim a
manifestaccedilatildeo do estilo meacutedio Pensando-se na recorrecircncia figurativa presente nas
Geoacutergicas destacam-se No Canto I (hex 42-203) as figuras que nos remetem ao
trabalho para o cultivo dos cereais no Canto II (hex 9-258) destacam-se diferentes
tipos de cultivo o das plantas em geral bem como das videiras (hex 259-419) e o de
outras plantas de particular interesse como a oliveira e a macieira (hex420-540) No
Canto III menciona-se a criaccedilatildeo do gado de grande e pequeno porte (hex 49-283 e
284-566) e no Canto IV fala-se da criaccedilatildeo de abelhas e sua natureza (8-280)
No excerto selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise (Canto IV hex 1-115)
tem-se a descriccedilatildeo de um lugar seguro para as abelhas se alojarem Descreve-se
entatildeo uma espeacutecie de paraiacuteso terrestre lugar onde os ventos natildeo sopram as cabras
e ovelhas natildeo saltam a vaca natildeo esmaga as flores e os animais nocivos lagartos e
andorinhas estatildeo distantes Aleacutem disso as colmeias satildeo construiacutedas com meticuloso
cuidado contra os excessos do clima e de outros perigos (SANTOS 2007 p 33)
Com isso nos hexacircmetros de 8 a 32 o leitor eacute conduzido ao lugar mais
adequado para que as abelhas possam fundar a colocircnia Satildeo mencionadas neste
pequeno trecho algumas providecircncias que devem ser tomadas para dar agraves abelhas
as condiccedilotildees necessaacuterias para a produccedilatildeo de mel
(hex 8-32) Principio sedes apibus statioque petenda quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci floribus insultent aut errans bubula campo decutiat rorem et surgentis atterat herbas Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis omnia nam late uastant ipsasque uolantis ore ferunt dulcem nidis immitibus escam At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per graminha riuos
113
palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos In medium seu stabit iners seu profluet umor transuersas salices et grandia conice saxa pontibus ut crebris possint consistere et alas pandere ad aestiuom solem si forte morantis sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem
Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes alimento doce para agrestes ninhos Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames de abelhas em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir as asas ao sol de estio sepor acaso Euro impetuoso tiver molhado ou submergido em Netuno as que tardam Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e cheirosos serpotildees ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte
Os cinco primeiros versos do trecho selecionado para anaacutelise (hex 8-12)
trazem a imagem dos ventos que dificultam o trabalho das abelhas pois impedem que
elas carreguem os alimentos para a colmeia aleacutem disso o excerto traz as imagens
dos animais domeacutesticos que causam perturbaccedilatildeo no habitat (as ovelhas os bodes e
a novilha) o que pode comprometer as condiccedilotildees ideais agrave produccedilatildeo de mel Em
seguida satildeo citados os lagartos e as aves predadoras (melharuco e andorinhas) que
colocam em perigo a existecircncia das proacuteprias abelhas jaacute que se alimentam delas
114
A voz poeacutetica enumera assim os elementos que podem comprometer o
trabalho e a existecircncia das abelhas apresentando-nos a partir do conteuacutedo
instrucional segundo os pressupostos do gecircnero da poesia didaacutetica um conselho
sobre apicultura Dessa forma Virgiacutelio descreve o lugar adequado e seguro para que
as abelhas possam fundar a colocircnia
Dentre os elementos que ameaccedilam a existecircncia das abelhas encontramos
Procne entre as aves predadoras
(hex 13-15)
Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis
Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos
De acordo com a mitologia Procne era filha de Pandiatildeo rei de Atenas casou-
se com Tereu e dessa uniatildeo ela teve um filho Iacutetis mas ao descobrir que o marido
havia violentado sua irmatilde (Filomela) ela mata o filho e o serve ao marido Tereu
Procne entatildeo foge com a irmatilde Mas quando Tereu descobre o crime persegue as
duas mulheres que imploram aos deuses que as poupem Filomela eacute transformada
em rouxinol e Procne em andorinha (Cf GRIMAL 2014 verbete Filomela) Dizem
que as manchas no peito da andorinha satildeo traccedilos do sangue de Iacutetis que foi morto
pela matildee e servido ao pai ldquoEsse detalhe mostra a ferocidade da andorinha e assim
ela eacute um perigo para as abelhasrdquo (SANTOS 2007 p 109)
No hexacircmetro de Virgiacutelio a menccedilatildeo agrave Procne deixa entrever uma condensaccedilatildeo
imageacutetica pois o poeta sintetiza toda a histoacuteria de Procne em uma uacutenica passagem
um uacutenico verso Ao nomear a andorinha predadora como Procne Virgiacutelio resgata o
mito e faz da palavra uma figuraccedilatildeo miacutetica concreta De acordo com Cassirer (1972
p 115) ldquoNa perspectiva maacutegica do mundo em particular o encantamento verbal eacute
sempre acompanhado pelo encantamento imageacuteticordquo o que nos leva a crer nos
expedientes expressivos evidenciados na linguagem poeacutetica Logo a ferocidade da
andorinha natildeo eacute descrita mas sugerida pela menccedilatildeo ao mito A instruccedilatildeo sobre as
aves predadores ganha relevo nessa passagem do texto
115
De acordo com o relato de Virgiacutelio um grande enxame de abelhas segue o rei
para procurar uma nova casa e assim fundar a colocircnia Segundo o pensamento da
eacutepoca as abelhas eram governadas por reis e natildeo por rainhas (SANTOS 2007 p
110)
(Hex 18-24)
At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per gramina riuos palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos
Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames [de abelhas] em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras
O enxame assim deve pousar para se reagrupar em um lugar seguro longe
de ventos e tempestades pois a mudanccedila climaacutetica torna o trabalho das abelhas
impossiacutevel jaacute que elas natildeo satildeo adaptaacuteveis para voar no frio ou na chuva e precisam
de energia para enfrentar o mau tempo Confirmado o local seguro para abrigar a
colmeia longe da ferocidade de predadores lagartos andorinhas e outras aves o
proacuteximo passo eacute esquivar-se do calor pois o sol em excesso prejudica o trabalho
das abelhas O local ideal portanto deve ser o sombreado Eacute importante que em torno
das colmeias haja muitas aacutervores e folhas com capacidade de protegecirc-las das rajadas
fortes de vento e aleacutem disso a presenccedila de aacutegua eacute importante pois ela ajuda na
polinizaccedilatildeo das flores
De acordo com Huizinga em Homo Ludens (1971 p 149)
O que a linguagem poeacutetica faz eacute essencialmente jogar com as palavras Ordena-as de maneira harmoniosa e injeta misteacuterio em cada uma delas de modo tal que cada imagem passa a encerrar a soluccedilatildeo de um enigma
Levando em conta tais apontamentos merece destaque a seguinte passagem
116
(hex 19)
[] et tenuis fugiens per gramina riuos E um tecircnue riacho fluindo pela relva
Neste verso a ideia de que um tecircnue riacho passa pela relva fluindo por ela eacute
icocircnica jaacute que os termos ldquotecircnuerdquo (tenuis) e ldquoriachordquo (riuos) circundam a expressatildeo ldquoper
graminardquo (pela relva) deixando entrever o arranjo artiacutestico da linguagem poeacutetica
Como se vecirc haacute um jogo poeacutetico com as palavras um arranjo estrutural que nos suscita
uma imagem Com base no raciociacutenio tecido por Greimas (1975 p 12) podemos
afirmar que o significante graacutefico entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com
as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a
assumir como verdadeira a proposiccedilatildeo do discurso
Tambeacutem merece destaque os trecircs uacuteltimos hexacircmetros do excerto selecionado
(hex 30-32)Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e serpotildees que deitam bom cheiro ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte
Aqui Virgiacutelio nomeia trecircs ervas aromaacuteticas as verdejantes manjeronas (casiae
uirides) os serpotildees que deitam bom cheiro ao longe (olentia late serpylla) e uma
abundacircncia de segurelha exalando fortemente (grauiter spirantis copia thymbrae)
Para cada uma dessas ervas haacute uma amplitude descritiva que reforccedila imageticamente
a extensatildeo dos aromas presentes na cena Assim procurando lidar com a face mais
sensorial da palavra o poeta o artista literaacuterio deixa entrever um estiacutemulo sensorial
suscitado pela linguagem
Sobre os materiais que devem ser empregados pelo apicultor na confecccedilatildeo das
caixas das colmeias Virgiacutelio apresenta-nos
(hex 33-36) Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis
117
seu lento fuerint aluaria uimine texta angustos habeant aditus nam frigore mella
cogit hiems eademque calor liquefacta remittit
Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos
Observa-se neste excerto que dois materiais satildeo indicados para a confecccedilatildeo
das caixas que abrigam as abelhas (a corticcedila e o vime) Na descriccedilatildeo virgiliana natildeo
se faz uma distinccedilatildeo qualitativa destes materiais embora se soubesse na eacutepoca que
as caixas de corticcedila eram preferiacuteveis agraves de vime Estas informaccedilotildees natildeo escapavam
aos agrocircnomos da Antiguidade greco-latina sobretudo a Varratildeo no De Re Rustica
que eacute uma das fontes de Virgiacutelio Isso deixa entrever que a poesia didaacutetica virgiliana
longe de ser um manual com teacutecnicas de cultivo e cuidado ao campo natildeo tem o
compromisso com o detalhamento minucioso das informaccedilotildees teacutecnicas mas sim com
a forma literaacuteria
Recomenda-se ainda que a entrada das colmeias seja estreita pois isso
facilitaria o controle interno da temperatura evitando com isso o excessivo frio ou
calor Aleacutem disso a entrada estreita afastaria os invasores daninhos agraves abelhas
Nos hexacircmetros de nuacutemero 88 a 94 Virgiacutelio apresenta dois tipos de reis Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo deterior qui uisus eum ne prodigus obsit dede neci melior uacua sine regnet in aula Alter erit maculis auro squalentibus ardens (nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore et rutilis clarus squamis ille horridus alter desidia latamque trahens inglorius aluom
Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele que pareceu pior para que consumindo natildeo seja prejudicial deixa que o melhor reine na desimpedida corte Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre
O termo ldquoductoresrdquo liacutederes empregado no verso sugere uma imagem militar e
monaacuterquica identificando assim os reis das abelhas aos dos homens De um lado o
melior (hex90) ldquoo melhorrdquo aquele que ardens (hex91) ldquoque brilhardquo o que regnet in
118
aula (hex90) ldquoreina na corterdquo enquanto o pior ao contraacuterio eacute aquele que arrasta
latamquealuom (hex94) ldquoabundante ventrerdquo inglorius (hex94) ldquoingloacuteriordquo Esses
termos remetem ao gecircnero eacutepico sugerindo de acordo com alguns criacuteticos da obra
virgiliana relaccedilotildees entre o mundo das abelhas e a realidade histoacuterica do poeta mais
precisamente agrave batalha do Aacutecio Mas essa alegoria natildeo eacute um consenso entre os
pesquisadores
Nos hexacircmetros seguintes 95 a 102 Virgiacutelio faz uma comparaccedilatildeo entre dois
tipos de abelhas operaacuterias identificando-as ao seu respectivo rei Vt binae regum
facies ita corpora plebis (hex95) ldquoDois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo
os corpos da pleberdquo Neste verso fica assinalada a imagem humanizada das abelhas
como suacuteditos de reis
Os termos empregados neste excerto situam as duas espeacutecies de abelhas em
campos opostos as abelhas de tipo inferior turpes horrent (hex96) ldquosatildeo disformes e
horrendasrdquo e suas caracteriacutesticas apresentam-se por meio de uma comparaccedilatildeo jaacute
que elas satildeo apresentadas na descriccedilatildeo virgiliana ndash puluere ab alto quom uenit et
sicco terram spuit ore uiator aridus (hex96-98) ldquocomo o viajante sedento quando vem
da espessa poeira e cospe terra de sua garganta secardquo Com isso as abelhas de tipo
superior apresentam conotaccedilotildees positivas que as vinculam agrave figura do rei vencedor
elucent et fulgore coruscant (hex98) ldquoreluzem e cintilam com fulgorrdquo Nos trecircs
hexacircmetros finais (hex100-102) reforccedila-se a superioridade da primeira espeacutecie que
produz dulcia mella (hex101) ldquodoces meacuteisrdquo durum Bacchi domitura saporem
(hex102) ldquopara corrigir o aacutespero sabor de Bacordquo O termo mella (hex101) eacute um plural
poeacutetico O mel entre os antigos era tido como alimento celeste proveniente dos
deuses Virgiacutelio chama-o assim de aacuteereo mel aerii mellis caelestia dona (Geo IV 1)
ldquoos dons celestes do aeacutereo melrdquo pois de acordo com a crenccedila da eacutepoca o mel caiacutea
do ceacuteu com o orvalho sobre as flores de onde as abelhas o extraiacuteam No excerto o
mel atenua o sabor aacutespero do vinho de Baco pois era costume entre os antigos
preparar os vinhos amargos com mel
Nos hexacircmetros de nuacutemero 103 a 115 Virgiacutelio aconselha
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont instabilis animos ludo prohibebis inani Nec magnus prohibere labor tu regibus alas eripe non illis quisquam cunctantibus altum ire iter aut castris audebit uellere signa
119
Inuitent croceis halantes floribus horti et custos furum atque auium cum falce saligna Hellespontiaci seruet tutela Priapi Ipse thymum pinosque ferens de montibus altis tecta serat late circum quoi talia curae ipse labore manum duro terat ipse feracis figat humo plantas et amicos inriget imbris
Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e a tutela de Priapo do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele mesmo no solo enterre
as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas
Merece destaque deste excerto o hexacircmetro 103
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu
Os vocaacutebulos incerta e examina ldquoenxames incertosrdquo encontram-se entre os
vocaacutebulos uolant e ludunt respectivamente voam e brincam Tem-se assim a partir
da disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso a imagem dos enxames de abelhas voando e
brincando iconicamente no texto Trata-se de uma construccedilatildeo expressiva em que se
revela um trabalho artiacutestico com a linguagem
Selecionamos das Geoacutergicas os hexacircmetros de nuacutemero 1 a 115
Depreendemos deste excerto de modo geral o tema do lugar apraziacutevel a ser
modelado para as abelhas Desenvolve-se neste excerto o tema da apicultura
apresentando um conteuacutedo instrucional segundo os pressupostos da poesia didaacutetica
valendo-se de uma linguagem rica em procedimentos estiliacutesticos
Procurou-se observar como a estrutura poeacutetica atua e assim destacamos na
anaacutelise alguns hexacircmetros que consideramos mais expressivos
120
Nossa preocupaccedilatildeo eacute a de investigar o arranjo particular da linguagem poeacutetica
a construccedilatildeo expressiva do texto a sua dimensatildeo figurativa Fundamentamo-nos
para isso no conceito semioacutetico de figuratividade e na ideia explicitada por Joseph
Brodsky (1994 p 74) a de que ldquoa poesia eacute antes de mais nada uma arte de
referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo e de que ldquocom os poetas a
escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo que elas
contamrdquo (1994 p 97)
As Geoacutergicas pertencem de acordo com a tradiccedilatildeo ao gecircnero da poesia
didaacutetica Os traccedilos distintivos do poema didaacutetico iniciaram-se com Hesiacuteodo em O
trabalho e os dias seacuteculo VIII aC Durante os seacuteculos em que tal forma foi utilizada
algumas caracteriacutesticas contribuiacuteram para a especificaccedilatildeo do gecircnero tais como o
caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a presenccedila de
uma voz didaacutetica chamada de magister Os assuntos agraacuterios presentes nas
Geoacutergicas de caraacuteter instrucional como eacute proacuteprio ao gecircnero deixam entrever um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo remetendo-nos ao estilo meacutedio
Perutelli (2010 p 309-310) retomando o conceito didascaacutelico exposto por
Seacutervio assim afirma
[] o poema virgiliano contempla dois niacuteveis didaacuteticos o superficial o agriacutecola digamos recobre uma segunda mensagem mais profunda e articulada que eacute aquela da eacutetica da nova moral Dentro da linha do gecircnero didascaacutelico verifica-se a paradoxal situaccedilatildeo de um texto que tem um fim didaacutetico declarado ndash o agriacutecola ndash menos real do que outro natildeo declarado ndash o eacutetico
Na leitura traduccedilatildeo e anaacutelise do excerto selecionado das Geoacutergicas (Canto IV
hex 1-115) procuramos entender a instruccedilatildeo acerca do lugar apraziacutevel e ideal para
as abelhas fundarem sua colmeia como parte da caracterizaccedilatildeo da poesia de gecircnero
didaacutetico e de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo Logo observou-se que a voz
didaacutetica que perpassa o excerto deixa entrever a partir de um efeito de sentido
moderado figuras que nos remetem a um espaccedilo ideal a ser construiacutedo para as
abelhas Mas o assunto moderado natildeo retira assim a grandiosidade da expressatildeo
pois como atesta Virgiacutelio eacute pequeno o trabalho (in tenui labor-hex6) natildeo pequena a
gloacuteria (tenuis non gloria -hex6)
121
57 ENEIDA Canto VIII (hex 612-731) ldquoENEIAS E AS ARMAS DE GUERRArdquo
ldquoEn perfecta mei promissa coniugis arte
munera ne mox aut Laurentis nate superbos
aut acrem dubites in proelia poscere Turnumrdquo
Dixit et amplexus nati Cytherea petiuit 615
arma sub aduersa posuit radiantia quercu
Ille deae donis et tanto laetus honore
expleri nequit atque oculos per singula uoluit
miraturque interque manus et bracchia uersat
terribilem cristis galeam flammasque minantem131 620
fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem
sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes
solis inardescit radiis longeque refulget
tum leues ocreas electro auroque recocto
hastamque et clipei non enarrabile textum 625
Illic res Italas Romanorumque triumphos
haud uatum ignarus uenturique inscius aeui
fecerat ignipotens illic genus omne futurae
stirpis ab Ascanio pugnataque in ordine bella
Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro 630
procubuisse lupam geminos huic ubera circum
ludere pendentis pueros et lambere matrem
impauidos illam tereti ceruice reflexam
mulcere alternos et corpora fingere lingua
Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas 635
consessu caueae magnis Circensibus actis
131 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se uomentem Conington em The Works of Virgil (2008) tambeacutem chama a atenccedilatildeo para o termo uomentem embora coloque em notas ao texto as duas formas (uomentem e minantem) Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1957
122
addiderat subitoque nouom132 consuergere bellum
Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris
Post idem inter se posito certamine reges
armati Iouis ante aram paterasque tenentes 640
stabant et caesa iungebant foedera porca
Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae
distulerant (at tu dictis Albane maneres)
raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus
per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres 645
Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat
accipere ingentique urbem obsidione premebat
Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant
Illum indignanti similem similemque minanti
aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles 650
et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis
In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat
Romuleoque recens horrebat regia culmo
Atque hic auratis uolitans argenteus anser 655
porticibus Gallos in limine adesse canebat
Galli per dumos aderant arcemque tenebant
defensi tenebris et dono noctis opacae
aurea caesaries ollis atque aurea uestis
uirgatis lucent sagulis tum lactea colla 660
auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant
gaesa manu scutis protecti corpora longis
Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos
lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo
extuderat castae ducebant sacra per urbem 665
pilentis matres in mollibus Hinc procul addit
Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis
et scelerum poenas et te Catilina minaci
132 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se nouum
123
pendentem scopulo Furiarumque ora trementem
secretosque pios his dantem iura Catonem 670
Haec inter tumidi late maris ibat imago
aurea sed fluctu spumabant caerula cano
et circum argento clari delphines in orbem
aequora uerrebant caudis aestumque secabant
In medio classis aeratas Actia bella 675
cernete erat totumque instructo Marte uideres
feruere Leucaten auroque effulgere fluctus
Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar
cum patribus populoque penatibus et magnis dis
stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas 680
laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus
Parte alia uentis et dis Agrippa secundis
arduos133 agmen agens cui belli insigne superbum
tempora nauali fulgent rostrata corona
Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis 685
uictor ab Aurorae populis et litore rubro
Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum
Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx
Vna omnes ruere ac totum spumare reductis
conuolsum remis rostrisque tridentibus aequor 690
Alta petunt pelago credas innare reuolsas
Cycladas aut montis concurrere montibus altos
tanta mole uiri turritis puppibus instant
Stuppea flamma manu telisque uolatile ferrum
spargitur arua noua Neptunia caede rubescunt 695
Regina in mediis patrio uocat agmina sistro
necdum etiam geminos a tergo respicit anguis
Niligenumque134 deum monstra et latrator Anubis
contra Neptunum et Venerem contraque Mineruam
tela tenent Saeuit medio in certamine Mauors 700
133 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se arduus 134 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se ominigenunque
124
caelatus ferro tristesque ex aethere Dirae
et scissa gaudens uadit Discordia palla
quam cum sanguineo sequitur Bellona flagello
Actius haec cernens arcum intendebat Apollo
desuper omnis eo terrore Aegyptus et Indi 705
omnis Arabs omnes uertebant terga Sabaei
Ipsa uidebatur uentis regina uocatis
uela dare et laxos iam iamque immittere funis
Illam inter caedes pallentem morte futura
fecerat ignipotens undis et Iapyge ferri 710
contra autem magno maerentem corpore Nilum
pandentemque sinus et tota ueste uocantem
caeruleum in gremium latebrosaque flumina uictos
At Caesar triplici inuectus Romana triumpho
moenia dis Italis uotum immortale sacrabat 715
maxima ter centum totam delubra per urbem
Laetitia ludisque uiae plausuque fremebant
omnibus in templis matrum chorus omnibus arae
ante aras terram caesi strauere iuuenci
Ipse sedens niueo candentis limine Phoebi 720
dona recognoscit populorum aptatque superbis
postibus incedunt uictae longo ordine gentes
quam uariae linguis habitu tam uestis et armis
Hic Nomadum genus et discinctos Mulciber Afros
hic Lelegas Carasque sagittiferosque Gelonos 725
finxerat Euphrates ibat iam mollior undis
extremique hominum Morini Rhenusque bicornis
indomitique Dahae et pontem indignatus Araxes
Talia per clipeum Volcani dona parentis
miratur rerumque ignarus imagine gaudet 730
attollens umero famamque et fata nepotum
125
58 Traduccedilatildeo e notas do CANTO VIII (hex 612-731)
ldquoEis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo135 Filho natildeo duvides
em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos136 ou o vigoroso Turno137rdquo
Citereia138 disse e recebeu os abraccedilos de seu filho colocou as brilhantes armas sob
um carvalho em frente Ele alegre com os presentes da deusa e com tatildeo grande honra
natildeo pocircde se satisfazer e volveu os olhos por cada coisa
[Eneias] admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus
penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze
imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios
do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro
refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo
Ali139 o deus do fogo140 que natildeo ignora os vates nem desconhece o tempo futuro
havia colocado os feitos da Itaacutelia e os triunfos dos romanos ali havia colocado toda a
origem de toda a geraccedilatildeo futura de Ascacircnio141 e sucessivamente as guerras
combatidas
E havia colocado a feacutertil loba142 deitada no antro verde de Marte143 e suspensos em
volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela
voltada para traacutes com a cabeccedila torneada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus
corpos com a liacutengua
Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas144 sem o direito na
assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se
135Vulcano o deus das forjas esposo de Vecircnus a deusa do Amor 136 Laurentinos povo de Laurento cidade da Antiga Roma situada no Laacutecio entre Ostia e Laviacutenio 137Turno heroacutei itaacutelico rei dos Ruacutetulos povo da Itaacutelia Central ldquoEacute o proacuteprio Turno quem provoca a guerra contra os troianosrdquo (GRIMAL 2014 p 457) Era noivo de Laviacutenia antes do rei Latino dar a matildeo da filha a Eneias 138 Citereia outro nome para Vecircnus 139 Refere-se agrave descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente da deusa Vecircnus 140Vulcano o deus das forjas 141Ascacircnio filho de Eneias e Creuacutesa 142Remete-se agrave histoacuteria de Rocircmulo e Remo 143Marte deus da Guerra mas tambeacutem aparece como um deus ligado agrave vegetaccedilatildeo 144 O Rapto das Sabinas eacute um dos episoacutedios lendaacuterios da origem de Roma Quando a cidade foi fundada Rocircmulo preocupou-se em povoaacute-la especialmente com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de Rocircmulo raptaram todas as jovens (TITO LIacuteVIO 1989 p 31)
126
uma nova guerra entre os Romulidas145 e o velho Taacutecio146 rei dos severos habitantes
de Cures
Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do
altar de Juacutepiter147 segurando as paacuteteras148 e faziam um tratado de alianccedila com a
porca imolada
Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio149 em sentidos
contraacuterios (mas tu oacute Albano150 natildeo manterias teus dizeres) e Tulo151 arrastava as
viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue
escorriam
E ainda tambeacutem Porsena152 mandava receber o exilado Tarquiacutenio153 e sitiava a cidade
com um enorme cerco154 Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade
Se considerares quem eacute semelhante ao indigno ameaccedilador porque Cocles155 ousara
destruir a ponte e Cleacutelia156 atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas
No alto o guardiatildeo de Tarpeia157 Macircnlio158 estava de peacute diante do templo e defendia
o alto do Capitoacutelio O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo159 E aqui
145Os Romulidas o povo que Rocircmulo havia reunido em Roma 146Titus Tatius o rei dos Sabinos Apoacutes o rapto das Sabinas diz-se que Taacutecio organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas segundo conta-nos Tito Liacutevio (cf Ab Urbe Condita) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos 147Conta-se que que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo fez um pedido a Juacutepiter o grande deus do panteatildeo romano e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse de feiccedilatildeo 148Espeacutecie de taccedila usada em sacrifiacutecios antigos 149Mettus Fufetius o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Diz-se que ele recusou ajuda a Roma em um conflito traindo-a 150Referecircncia a Meacutecio Fufeacutecio uacuteltimo rei albano que quebra o acordo com Roma 151Tullus Hostillius o terceiro rei lendaacuterio de Roma responsaacutevel pela destruiccedilatildeo de Alba Longa cidade vizinha a Roma 152Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia 153Lucius Tarquinius Superbus Tarquiacutenio o Soberbo eacute responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que quando tomou o poder no senado Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio confiscando seus bens Foi deposto em 509 aC Expulso de Roma Tarquiacutenio procurou Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para declarar guerra agrave Roma 154 Porsena no ano de 507 aC sitiou Roma cercando-a 155Com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela qual o inimigo iria atravessar o Tibre 156 Durante o cerco agrave Roma em 507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado 157Apoacutes o rapto das sabinas Tito Taacutecio liderou os sabinos contra Roma Diz-se que Tarpeia atraiacuteda pelo ouro dos sabinos traiu Roma deixando entrar os sabinos na citadela Posteriormente ela foi assassinada e o monte onde ela foi sepultada foi chamado com seu nome No texto assim Tarpeia refere-se agrave rocha Tarpeia no monte Capitolino 158 Marco Macircnlio cocircnsul da Repuacuteblica Romana defendeu Roma da invasatildeo gaulesa 159Colmo haste das gramiacuteneas palha longa usada para cobrir as casas Entende-se nesta passagem que o palaacutecio de Rocircmulo ericcedilava-se com um teto de palha
127
um ganso prateado160 voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os
gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e
ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus
cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus
pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita com a matildeo os
dardos alpinos os corpos protegidos pelos longos escudos
Aqui havia representado os saltitantes saacutelios161 e os lupercus162 nus os barretes
sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela
cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados Daqui ao longe acrescenta
tambeacutem as moradas do Taacutertaro163 a alta porta de Dite164 e os castigos dos criminosos
e tu oacute Catilina165 suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias166
e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo167 havia ditado as leis
Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe
mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata
em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas
ondas No meio viam-se as armadas de bronze a batalha do Aacutecio168 via-se todo o
Leucates169 a ferver com Marte170 preparado e as ondas resplandecerem com o brilho
do ouro
160Chama-se a atenccedilatildeo dos romamos para um ataque noturno dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno no monte Capitolino 161Os saacutelios eram sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro 162Os lupercus eram sacerdotes de Fauno divindade associada ao campo e tambeacutem agrave fertilidade Conta-se que os lupercus usavam chicotes feitos com couro de cabra (barretes sacerdotais de latilde) 163 Taacutertaro o mundo inferior 164 Dite um dos nomes de Plutatildeo deus responsaacutevel pelo mundo inferior 165Lucius Sergius Catilina militar e senador romano queria destruir o poder oligaacuterquico do senado 166Fuacuterias divindades que viviam nas profundezas do Taacutertaro e eram responsaacuteveis pela tortura das almas 167 De acordo com Seacutervio seria o Catatildeo (o Velho ou Catatildeo Sapiente) poliacutetico e escritor de Roma eleito cocircnsul em 195 aC mas para Conington (2008) Virgiacutelio teria pretendido o Catatildeo de Uacutetica (o Jovem) (95-16 aC) poliacutetico romano ceacutelebre pela sua integridade moral para destacar o contraste em relaccedilatildeo a Catilina 168 A batalha do Aacutecio em 31 aC foi um confronto naval entre Marco Antocircnio e Otaacutevio Augusto Enquanto a frota de Otaacutevio era comandada por Agripa a frota de Marco Antocircnio era apoiada pela rainha do Egito Cleoacutepatra Com a vitoacuteria de Otaacutevio inicia-se o Impeacuterio e ele passa a ser conhecido como Ceacutesar Augusto 169 O monte Leucates Conta-se que Leucates era um jovem muito amado por Apolo e que ao escapar da perseguiccedilatildeo do deus lanccedilou-se ao mar do alto de uma encosta iacutengreme A ilha recebeu assim o nome de Lecircucade (GRIMAL 2014 p 276) 170Marte o deus guerreiro
128
De um lado Ceacutesar Augusto171 conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e
o povo os penates e os deuses maiores172 em peacute sobre a elevada popa a que o seu
feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua
cabeccedila173
Em outra parte Agripa174 com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o
exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros175
da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas
Antocircnio176 vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho177 transporta com
ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra178 e eacute seguido pela esposa
egiacutepcia179 Ao mesmo tempo todos se precipitaram e toda a superfiacutecie do mar espuma
sob os remos e os tridentes dos rostros que o afastam Dirigem-se a alto mar creia
que as Ciacuteclades180 arrancadas flutuavam sob a aacutegua ou que as altas montanhas se
chocavam contra as outras montanhas os varotildees se aproximavam das popas
torreadas com tanta massa A chama da estopa eacute espalhada pela matildeo e o volaacutetil ferro
pelos dardos os campos de Netuno181 avermelham-se com a nova carnificina No
centro a Rainha182 invoca os batalhotildees com o sistro183 paacutetrio e ainda natildeo voltou a
vista para as duas serpentes atraacutes
171Otaacutevio Augusto que apoacutes a vitoacuteria na batalha do Aacutecio receberia o nome de Ceacutesar Augusto A vitoacuteria contra Marco Antocircnio seria o iniacutecio do Impeacuterio em Roma 172Os penates satildeo os deuses do lar adorados por romanos e etruscos Os deuses maiores satildeo os representantes do Grande Olimpo Otaacutevio contava com a proteccedilatildeo dos deuses na batalha do Aacutecio 173 Em 42 aC Otaacutevio erigiu o Templo do Divino Juacutelio adicionando o termo ldquoFilho do Divinordquo a seu nome o que fortaleceria seus laccedilos poliacuteticos com os soldados de Ceacutesar (GRIMAL 2014 cf verbete Apolo) 174Marcus Vipsanius Agrippa principal comandante de Otaacutevio guiou as frotas de Roma contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra na Batalha do Aacutecio (BOWDER 1980) 175Rostro esporatildeo colocado na proa dos navios antigos para perfurar o casco dos outros nas batalhas 176Marco Antocircnio foi aliado de Ceacutesar durante a conquista da Gaacutelia e tambeacutem na guerra civil contra Pompeu Aliou-se mais tarde a Otaacutevio e Leacutepido formando com eles o Segundo Triunvirato (BOWDER 1980) 177Marco Antocircnio venceu os habitantes da Aacutesia (ldquopovos de aurorardquo) do Egito (do famoso Nilo) e da Bactriana no Afeganistatildeo (BECHARA SPINA 1973 p 89) 178 Bactra regiatildeo da Aacutesia Central 179Marco Antocircnio alia-se a Cleoacutepatra desprezando sua esposa romana Otaacutevia irmatilde de Otaacutevio Augusto (BECHARA SPINA 1973 p 89) 180Ciacuteclades grupo de ilhas no sul do mar Egeu 181Netuno deus dos mares 182 Cleoacutepatra (69-30 aC) rainha egiacutepcia da dinastia de Ptolomeu 183Sistro antigo instrumento egiacutepcio de percussatildeo que produzia som agudo e prolongado
129
Monstros de deuses de toda espeacutecie e o ladrador Anuacutebis184 mantecircm as armas contra
Netuno e Vecircnus185 e contra Minerva186 Marte gravado em ferro enfurece-se no meio
da batalha e as crueacuteis Fuacuterias descem pelo ar e com o manto rasgado a Discoacuterdia187
alegre caminha e eacute seguida por Belona188 com seu chicote ensanguentado
Ao ver isto de cima Apolo Aacutecio189 retesava o arco Com horror todo o Egito Indianos
todos os araacutebes e todos os sabeus viravam as costas A proacutepria rainha parecia dar
velas aos invocados ventos e a soltar cada vez mais as frouxas amarras O deus do
fogo190 colocara-a entre a carnificina paacutelida pela morte futura arrastada pelas ondas
e pelo Iaacutepige191 em frente tambeacutem colocara o Nilo192 com seu vasto corpo abrindo as
pregas de todo o seu traje e chamando os vencidos para o seu colo azul e para os
seus secretos rios
E Ceacutesar193 levado pelo triacuteplice triunfo agraves muralhas romanas consagrava aos deuses
da Itaacutelia um voto imortal trezentos templos maacuteximos por toda a cidade As ruas
retumbavam de alegria com jogos e aplausos em todos os templos o coro das matildees
todos tinham altares e diante deles os novilhos imolados cobriram a terra Ele proacuteprio
sentado no limiar da neve do candente Febo194 examina os presentes dos povos e os
coloca nas soberbas portas as naccedilotildees vencidas avanccedilam em longa fila tatildeo variadas
no modo de vestir e nas armas quanto nas vaacuterias liacutenguas
Aqui Mulciacutebero195 representara a raccedila dos nocircmades196 e os africanos de vestes
soltas neste lugar os leacutelegos197 os caacuterios198 e os gelonos199 armados de setas o
184Anuacutebis deus egiacutepcio protetor e guia dos mortos comumente representado com a cabeccedila de um chacal animal de caccedila relacionado aos lobos daiacute o nome ladrador 185Vecircnus deusa do amor matildee de Eneias e protetora dos romanos 186Minerva deusa romana das artes e sabedoria tambeacutem rege as estrateacutegias de guerra 187Discoacuterdia a matildee dos males diz-se que acompanhava Marte nas batalhas 188Belona eacute a fuacuteria da guerra e carnificina deusa de origem etrusca 189O arco do deus Apolo dispara dardos letais 190Vulcano deus das forjas responsaacutevel por colocar todas as presentes histoacuterias no escudo de Eneias 191Iaacutepige filho de Deacutedalo eacute um vento que sopra de oeste-noroeste 192O rio Nilo foi o principal fator para o desenvolvimento da sociedade egiacutepcia Hapi era cultuado como o deus das aacuteguas do Nilo sendo responsaacutevel pela prosperidade advinda do rio Diz-se que este deus eacute representado segurando talos de Papiros e flores de Loacutetus 193Otaacutevio agora nomeado Ceacutesar Augusto depois da vitoacuteria na batalha do Aacutecio 194Febo deus romano equivalente ao grego Apolo representa a luz a muacutesica e as artes eacute irmatildeo de Diana 195Mulciacutebero outro nome para Vulcano o deus das forjas 196 Nocircmades gente do ocidente de Cartago 197 Leleacutegos povo do sudoeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor 198Caacuterios povo do oeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor Caacuterios e leleacutegos eram muito proacuteximos 199Gelonos povos da Ciacutentia ou da Traacutecia
130
Eufrates200 jaacute corria mais calmo com suas ondas e os moacuterios201 os mais afastados
dos homens e o Reno202 de duas barras os indomaacuteveis dahas203 e o Araxes204
indignado com a ponte
[Eneias] admira tais coisas atraveacutes do escudo de Vulcano presente da sua matildee e
estranho aos assuntos regozija-se com a imagem carregando sobre o ombro a gloacuteria
e a fama dos seus descendentes
200 Eufrates rio que passa pela Armecircnia e Mesopotacircmia 201Moacuterios povos da Beacutelgica Os romanos chamavam-lhes de uacuteltimos porque aleacutem deles natildeo conheciam mais povos 202Reno rio da Alemanha era parte da fronteira setentrional do Impeacuterio Romano 203Dahas povo da Ciacutentia 204O rio Araxes nasce nos montes da Armecircnia e desaacutegua no mar Caacutespio Xerxes lhe fez uma ponte e Alexandre outra mas as enchentes do rio a destruiacuteram Otaacutevio entatildeo subjugou-o com outra ponte mais firme (LEITAtildeO 1819 p 75)
131
59 FIGURATIVIDADE NO CANTO VIII (hex 612-731) anaacutelise do
texto
Baseando-se nos poemas eacutepicos da Antiguidade Grimal (1992 p 185) assim
esclarece
Esses poemas satildeo ldquoeacutepicosrdquo na medida em que contam feitos de caraacuteter sobre-humano realizados por alguma das personagens pertencentes agrave ldquomemoacuteria coletivardquo das cidades que estatildeo em relaccedilatildeo com as divindades - das quais se originaram e pelas quais satildeo inspiradas - e que vivem em tempos em que o divino e o humano ainda natildeo se distinguiam claramente eacute o tempo dos ldquoheroacuteisrdquo dos semi-deuses
Para Hegel (1993 p 572-573) na Esteacutetica a epopeia propriamente dita
Representa o espiritual concreto sob uma forma individual e a epopeia quando narra alguma coisa tem por objeto uma accedilatildeo que por todas as circunstacircncias que a acompanham e as condiccedilotildees nas quais se realiza apresenta inumeraacuteveis ramificaccedilotildees pelas quais contacta com o mundo total de uma naccedilatildeo ou de uma eacutepoca Eacute portanto o conjunto da concepccedilatildeo do mundo e da vida de uma naccedilatildeo que apresentado sob uma forma objetiva de acontecimentos reais constitui o conteuacutedo e determina a forma do eacutepico propriamente dito Desta totalidade fazem parte por um lado a consciecircncia religiosa de todas as verdades profundas do espiacuterito humano e por outro lado a vida concreta a vida poliacutetica e domeacutestica e ateacute as necessidades que a vida exterior comporta e os meios de satisfazer
Assim a poesia de gecircnero eacutepico eacute uma celebraccedilatildeo narrativa da histoacuteria paacutetria
acompanhada pela glorificaccedilatildeo de heroacuteis nacionais Hegel menciona ainda outros
elementos constitutivos do gecircnero Entre eles vale destacar a objetividade e o conflito
da guerra que eacute conveniente agrave temaacutetica eacutepica e ao desenvolvimento da accedilatildeo
Segundo Montagner (2014) a eacutepica nasce na oralidade ancestral grega O
termo lsquoeacutepicarsquo proveacutem do grego eacutepos e significa de modo mais amplo lsquopalavrarsquo
lsquodiscursorsquo De modo restrito os gregos assim denominavam a poesia em hexacircmetro
a partir de epeacute plural de eacutepos Na eacutepoca claacutessica greco-latina seraacute o hexacircmetro
datiacutelico segundo o criacutetico o verso proacuteprio desse gecircnero Todavia aleacutem do verso
caracteriacutestico haacute outra marca o caraacuteter narrativo ou expositivo que assinala suas
manifestaccedilotildees
132
A Eneida a eacutepica virgiliana possui doze cantos (ou livros) escritos em
hexacircmetros datiacutelicos Em sua ceacutelebre epopeia Virgiacutelio narra os memoraacuteveis feitos
romanos Vemos as aventuras do heroacutei Eneias filho protegido da deusa Vecircnus em
luta para firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino A histoacuteria
comeccedila (in medias res) com Eneias e suas naus em pleno Mediterracircneo jaacute no seacutetimo
ano apoacutes a queda de Troia O heroacutei sofre um naufraacutegio arquitetado pela deusa Juno
e eacute lanccedilado agrave costa africana Desenrolam-se a partir daiacute os acontecimentos e accedilotildees
que faratildeo de Eneias um iacutecone romano o fundador da Nova Troia Logo a personagem
Eneias bem como suas accedilotildees e portanto seu papel figurativo no texto apoia-se na
previsibilidade narrativa que fundamenta a expectativa das figuras no contexto da
poesia eacutepica Trata-se de um heroacutei cujo destino eacute grandioso pois nele repousa o futuro
da raccedila troiana Todos estes elementos seratildeo desenvolvidos por Virgiacutelio ao retomar o
quadro da lenda romana Assim no engendramento do estilo grandiloquente
encontramos recorrecircncias figurativas que nos levam a um especiacutefico efeito de
individuaccedilatildeo no texto
Segundo Pedro Paulo Funari (2001 p 66)
Apoacutes a vitoacuteria dos gregos sobre os troianos Eneias vagou pelo Mediterracircneo ateacute chegar ao Laacutecio onde reinou por alguns anos Depois de morto foi adorado como Juacutepiter Indiges Seu filho Ascacircnio fundou Alba Longa e seu descendente Numitor pai de Reacuteia Siacutelvia foi pois avocirc de Rocircmulo Por essas lendas Roma ligava-se ao deus da guerra Marte e agrave deusa da fertilidade Vecircnus
Para Antocircnio Medina Rodrigues (2005 p10) a Eneida eacute ldquoum cacircntico aos novos
tempos do Impeacuterio eacute tambeacutem a nostalgia dos tempos lendaacuterios e primeiros haacute muito
sepultados sob as guerras civis e de conquista tempos de Rocircmulo e da chegada dos
troianos aos litorais itaacutelicos tempos da fundaccedilatildeo de Romardquo Virgiacutelio mescla histoacuteria
mito e um conjunto de situaccedilotildees que jaacute eram conhecidas pelos romanos
Como marco da Literatura Latina a Eneida confere agrave naccedilatildeo romana uma
identidade cultural A obra faz parte da chamada Idade de Ouro de Augusto e
segundo Funari (2001 p 66) para os romanos era importante considerar que seu
destino estava ligado aos deuses pois estas nobres origens legitimavam seu poder
sobre outros povos e servia como propaganda de suas qualidades
No canto VIII no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise hexacircmetros 612
a 731 temos a descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente forjado por Vulcano e
133
ofertado pela deusa Vecircnus ao heroacutei No escudo Vulcano desenhou os eventos da
futura Roma e entre estes eventos estatildeo a loba alimentando Rocircmulo e Remo o rapto
das Sabinas e no centro a batalha do Aacutecio As imagens esculpidas por Vulcano no
escudo de Eneias refletem toda a histoacuteria de Roma incluindo episoacutedios miacuteticos que
se mesclaram aos eventos histoacutericos Aleacutem disso vale ressaltar tambeacutem a figura de
Otaviano na centralidade do escudo jaacute que o governante passou a ser o centro do
cenaacuterio poliacutetico e social de Roma Segundo Pierre Grimal (1992 p 192) ldquoO heroacutei do
poema seraacute Eneacuteias claro mas este se ergueraacute antes de Roma no alto de uma
linhagem que de condutor de homens a triunfador vem dar em Otaacuteviordquo
Na descriccedilatildeo do escudo natildeo se observam detalhes das accedilotildees dos
personagens em seus respectivos cenaacuterios Ao descrever a batalha do Aacutecio por
exemplo vemos os oponentes de um lado e Otaviano de outro enquanto as
estrateacutegias beacutelicas e o combate soacute satildeo sugeridos Cabe ao leitor assim reconstituir
os eventos
As diferentes histoacuterias aludidas no escudo satildeo narrativas lendaacuterias e histoacutericas
desde a fundaccedilatildeo de Roma Pensando que o estilo eacute depreensiacutevel pelas recorrecircncias
figurativas do discurso podemos pensar nessas narrativas como parte do programa
figurativo que engendra o efeito de sentido grandiloquente
Nos hexacircmetros 619 e 625 vemos a descriccedilatildeo das armas de guerra presentes
ofertados pela deusa Vecircnus ao filho Eneias
miraturque interque manus et bracchia uersat terribilem cristis galeam flammasque minantem fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes solis inardescit radiis longeque refulget tum leuis ocreas electro auroque recocto hastamque et clipei non enarrabile textum
admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo
O capacete de crista vermelha a riacutegida couraccedila de bronze as armaduras da
perna a lanccedila e o exuberante escudo compotildeem a imagem do guerreiro Estas figuras
contribuem para a caracterizaccedilatildeo de Eneias que desde os Poemas Homeacutericos ldquosurge
134
como um heroacutei protegido pelos deuses aos quais obedece respeitosamente estando-
lhe reservado um destino grandioso nele repousa o futuro da raccedila troianardquo (GRIMAL
2014 p 135) Diferentemente do pastor que no cenaacuterio bucoacutelico eacute representado pelo
cajado e a flauta aqui o guerreiro alia-se aos artefatos beacutelicos em um cenaacuterio de
estrateacutegias de combate Tem-se portanto a descriccedilatildeo de objetos representativos do
contexto da poesia eacutepica
Conington (2008 p145) em seus comentaacuterios ao texto de Virgiacutelio aponta para
o termo ldquobracchiardquo (braccedilos) do seguinte excerto Segundo o criacutetico a accedilatildeo de virar
entre as matildeos e os braccedilos deixa entrever o tamanho das diferentes partes da
armadura que enchem os braccedilos quando levantadas
Miraturque interque manus et bracchia uersat
e admira e vira entre as matildeos e os braccedilos
A grandiosidade dos presentes forjados pelo deus do fogo na visatildeo de
Conington (2008 p145) aparece com o vocaacutebulo ldquominantemrdquo verbo depoente que
indica a accedilatildeo de ldquoameaccedilarrdquo sugerindo o aceno da crista do capacete que resplandece
ao ser manuseado e admirado por Eneias
Terribilem cristis galeam flammasque minantem
o tremendo capacete que ameaccedila com suas cristas e chamas
No Canto VII Eneias chega agrave regiatildeo do Tibre onde governa o rei Latino que
havia recebido dos deuses o aviso da chegada de Eneias futuro esposo de sua filha
Laviacutenia O chefe dos troianos envia uma comitiva ao rei Latino para que seja feito um
acordo de paz mas a terriacutevel Juno envia a deusa infernal Alecto responsaacutevel pela
guerra e pelas desgraccedilas para semear a discoacuterdia entre os dois povos
No Canto VIII com agrave iminecircncia da batalha Eneias encontra-se preocupado
com o porvir Agrave noite entatildeo ao permitir-se o descanso necessaacuterio o heroacutei eacute
surpreendido pelo rio Tibre que se personifica e comeccedila a falar O Tibre conta ao
troiano quem entatildeo poderaacute auxiliaacute-lo na guerra contra Turno trata-se de Palante ndash
filho de Evandro rei dos Aacutercades Percorrendo o curso do rio e ouvindo-o Eneias
alcanccedila a regiatildeo onde Evandro lidera e tem a oportunidade de falar com o rei e
confirmar a alianccedila predestinada
135
Paralelo a isso mostra-se a preocupaccedilatildeo de Vecircnus com a iminecircncia da guerra
Por esse motivo a deusa queixa-se a Vulcano pedindo-lhe ajuda na confecccedilatildeo de
artefatos beacutelicos que seratildeo indispensaacuteveis ao filho Eneias Com o pedido da esposa
Vulcano promete confeccionar as armas e pede a seus colaboradores na forja para
que produzam uma arma de caraacuteter singular
(hex 369-385) Nox ruit et fuscis tellurem amplectitur alis At Venus haud animo nequiquam exterrita mater 370 Laurentumque minis et duro mota tumultu Volcanum adloquitur thalamoque haec coniugis aureo incipit et dictis diuinum aspirat amorem ldquoDum bello Argolici uastabant Pergama reges debita casurasque inimicis ignibus arces 375 non ullum auxilium miseris non arma rogaui artis opisque tuae nec te carissime coniunx incassumue tuos uolui exercere labores quamuis et Priami deberem plurima natis et durum Aeneae fleuissem saepe laborem 380 Nunc Iouis imperiis Rutulorum constitit oris ergo eadem supplex uenio et sanctum mihi numen arma rogo genetrix nato Te filia Nerei te potuit lacrimis Tithonia flectere coniunx Aspice qui coeant populi quae moenia clausis 385 ferrum acuant portis in me excidiumque meorum
A noite impele e abraccedila a terra com as suas sombrias asas Poreacutem
Vecircnus matildee natildeo apavorada de coraccedilatildeo perturbada com as ameaccedilas
dos laurentinos e com o duro tumulto dirige-se a Vulcano e no leito
nupcial de ouro de seu esposo comeccedila com estas palavras e infunde-
lhe o divino amor ldquoEnquanto os reis argoacutelicos devastavam Peacutergamo
com a guerra condenada e as cidadelas sucumbiam pelas inimigas
chamas nenhum auxiacutelio pedi para os infelizes nem armas do poder
da tua arte cariacutessimo esposo nem quis que tu exercesses teus
trabalhos em vatildeo e ainda que eu devesse grande quantidade de
coisas aos filhos de Priamo e muitas vezes lamentasse o duro
trabalho de Eneias Agora por ordens de Jove deteve-se agrave entrada
dos ruacutetulos por isso eu mesma suplicante venho e eu como matildee
rogo por seu veneraacutevel poder armas para o meu filho A filha de Nereu
e a esposa de Titono puderam te comover com suas laacutegrimas
Considera que os povos se reuacutenem e que muralhas com as suas
portas fechadas aguccedilam o ferro contra mim e para a destruiccedilatildeo dos
meusrdquo
Atendendo ao pedido da esposa Vulcano confecciona um instrumento beacutelico
que garantiraacute a seguranccedila de Eneias Aleacutem disso o deus representaraacute neste artefato
136
o futuro da descendecircncia do heroacutei Apoacutes a confecccedilatildeo das armas de guerra Vecircnus
presenteia o filho A passagem inicia-se com as palavras da deusa
(hex 612 ndash 614) En perfecta mei promissa coniugis arte munera ne mox aut Laurentis nate superbos aut acrem dubites in proelia poscere Turnum Eis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo Filho natildeo duvides em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos ou o vigoroso Turno
A partir dessas palavras desenham-se por meio do olhar do narrador
mesclado ao olhar de Eneias os utensiacutelios beacutelicos As armas de guerra satildeo descritas
e para cada uma delas eacute apresentada uma caracteriacutestica especiacutefica Por meio da
descriccedilatildeo das armas podemos acompanhar o olhar de Eneias e a partir desse olhar
tambeacutem admirar a arte produzida por Vulcano
A exposiccedilatildeo dos artefatos beacutelicos eacute minuciosa mas breve (hex 619 ndash 625)
Virgiacutelio mostra cada uma das armas qualificando-as O poeta apresenta cada uma o
capacete que conteacutem um penacho e que eacute responsaacutevel por despertar o terror no
oponente uma espada que leva agrave morte uma couraccedila riacutegida com uma tonalidade cor
de sangue botas de eletro feitas de metal compostas de ouro e prata uma lanccedila e
por fim um escudo que eacute inenarraacutevel
Ressalta-se para cada uma das armas apresentadas pelo poeta uma
particular estrutura descritiva nomeia-se a arma de guerra e posteriormente ela eacute
qualificada Quanto agrave essa forma de descriccedilatildeo nota-se que o uacutenico artefato beacutelico que
natildeo possui um qualificativo eacute a lanccedila A omissatildeo da caracteriacutestica da lanccedila colocaraacute
assim o escudo em um relevo especial jaacute que este utensiacutelio beacutelico eacute tatildeo importante
para o desenvolvimento da narrativa virgiliana que ganha uma descriccedilatildeo mais
detalhada
As figuras em cenaacuterio eacutepico natildeo revestem uma temaacutetica humilde mas sim uma
temaacutetica sublime por isso se reconhece na eacutepica o estilo grandiloquente Para Grimal
(1992 p 187) ldquoo tom da epopeia eacute o mais elevado possiacutevel eacute ldquosublimerdquo por
excelecircncia pois refere-se aos assuntos mais grandiosos e aos interesses mais
altos()rdquo
137
Com vistas agrave percepccedilatildeo de um estilo grandiloquente nos versos seguintes
hexacircmetros 612 a 731 procuramos analisar a descriccedilatildeo particular do escudo de
Eneias instrumento em que o deus do fogo Vulcano esculpiu os feitos da Itaacutelia e os
triunfos dos romanos No poema o escudo de Eneias eacute transformado em objeto
artiacutestico jaacute que nele se desenham os acontecimentos histoacutericos de Roma desde a
sua fundaccedilatildeo O escudo permite que o leitor veja o destino grandioso da Nova Troia
que seraacute fundada no Laacutecio Observa-se no excerto uma rede de figuras coerentes
ao contexto da poesia eacutepica porque supotildeem uma unidade do discurso levando-nos
ao entendimento de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo o grandiloquente Vale
ressaltar tambeacutem o modo como Virgiacutelio desenhou a histoacuteria de Roma valendo-se da
palavra poeacutetica
O escudo comeccedila a ser descrito pela figura lendaacuteria da loba alimentando
Rocircmulo e Remo (hex 630-634)
Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro procubuisse lupam geminos huic ubera circum ludere pendentis pueros et lambere matrem impauidos illam tereti ceruice reflexam mulcere alternos et corpora fingere lingua
E havia colocado a feacutertil loba deitada no antro verde de Marte e suspensos em volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela voltada para traacutes de cabeccedila arredondada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus corpos com a liacutengua
Nesta passagem a figura da loba aparece deitada no antro verde de Marte
uma gruta destinada ao deus e que eacute recoberta por plantas Sabe-se que o deus Marte
aparece em Roma como o deus da Guerra mas ele tambeacutem eacute visto como o deus da
vegetaccedilatildeo ou seja um deus da Primavera jaacute que a eacutepoca da guerra comeccedila com o
fim do Inverno Eacute ele assim quem guia os jovens que emigram das cidades sabinas
para fundar novas cidades e encontrar novos locais para se estabelecerem (GRIMAL
2014 p 293) Ao costume de deixar o velho local em procura de outro chamava-se
ldquover sacrumrdquo ldquoa primavera sagradardquo No trajeto ao novo local os jovens eram guiados
pelo piccedilanccedilo ave passeriforme ou pelo lobo dois animais consagrados a Marte Daiacute
o papel da loba no campo verde de Marte O tempo do verbo ldquoprocubuisserdquo perfeito
ativo do infinitivo segundo Conington indica a accedilatildeo da loba que jaacute havia se deitado
quando os gecircmeos se posicionaram para beber o leite
138
procubuisse lupam geminos huic ubera circum
a loba deitada os gecircmeos ao redor das tetas
A figura da loba aleacutem de lendaacuteria mesclou-se agrave histoacuteria e tem um lugar de
destaque no pequeno excerto Nota-se ainda que a histoacuteria de Rocircmulo e Remo eacute
sugerida a partir da imagem da feacutertil loba e deve portanto ser completada pelo leitor
Trata-se de um mito acerca da histoacuteria da fundaccedilatildeo de Roma em que os gecircmeos
Rocircmulo e Remo filhos do deus Marte com Reacuteia Silvia descendente da estirpe de
Eneias foram amamentados por uma loba
A feacutertil loba passa-nos portanto a ideia de abundacircncia eacute ela que supre os
gecircmeos Na ldquoIV Bucoacutelicardquo de Virgiacutelio quando eacute mencionado o Retorno da Idade de
Ouro e o nascimento de uma crianccedila toda natureza tambeacutem aparece apta a servir
(hex 60-63)
Ipsae lacte domum referente distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundente cunabula flores
As cabritinhas por si mesmas levaratildeo a casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti (crianccedila) o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores
No pequeno excerto da ldquoIV Bucoacutelicardquo como visto acima a natureza modifica-
se para receber a crianccedila que havia acabado de nascer e paralelamente neste
pequeno excerto do ldquoVIII Cantordquo da Eneida a feacutertil loba encontra-se apta a servir
alimentar os gecircmeos receacutem-nascidos A natureza nos dois casos encanta-se com a
crianccedila que traz boas novas
Apoacutes a figura da loba mostra-se o episoacutedio do rapto das Sabinas entalhado
no escudo como marca lendaacuteria de um dos eventos que se seguiram agrave fundaccedilatildeo de
Roma Mais uma vez trata-se de um episoacutedio que eacute apenas sugerido jaacute que os
detalhes do acontecimento natildeo satildeo mencionados pois eles devem ser reconstituiacutedos
pelo leitor No excerto satildeo citadas as Raptadas Sabinas e a guerra entre os
Romulidas e o Velho Taacutecio Quando Roma foi fundada soacute existiam homens e Rocircmulo
preocupou-se em povoaacute-la com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas
139
dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos
durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de
Rocircmulo os Romulidas raptaram todas as jovens O Velho Taacutecio o rei dos Sabinos
apoacutes o rapto das Sabinas organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas
segundo conta-nos Tito Liacutevio (1989 p 31) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em
meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos
assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos (GRIMAL 2014 p 409)
Diz-se que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo dirigiu a Juacutepiter um
pedido e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse
de feiccedilatildeo Cessada a batalha foi construiacutedo o templo de Iupiter Stator (Juacutepiter que
deteacutem) edificado no local onde mais tarde foi construiacutedo o arco de Tito na Via Sacra
(GRIMAL 2014 p 409) A figura do templo de Juacutepiter bem como das paacuteteras taccedilas
usadas em sacrifiacutecios e da porca imolada deixam entrever a comunhatildeo entre
Romulidas e Sabinos com o fim da guerra Conington (2008 p147) revela-nos que
era antigo o costume de se sacrificar um suiacuteno em tratados de paz
(hex 635-641)
Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas consessu caueae magnis Circensibus actis addiderat subitoque nouom consuergere bellum Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris Post idem inter se posito certamine reges armati Iouis ante aram paterasque tenentes stabant et caesa iungebant foedera porca
Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas sem o haacutebito na assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se uma nova guerra entre os Romulidas e o velho Taacutecio rei dos severos habitantes de Cures Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do altar de Juacutepiter segurando as paacuteteras e faziam um tratado de alianccedila com a porca imolada
Outro episoacutedio entalhado no escudo eacute o esquartejamento de Meacutecio No
pequeno excerto temos o vocaacutebulo ldquoMettumrdquo Meacutecio entre os vocaacutebulos ldquocitaerdquo e
ldquoquadrigaerdquo raacutepidas quadrigas remetendo-nos iconicamente agrave ideia do
esquartejamento do rei albano Reforccedila ainda esta ideia os outros vocaacutebulos que
fazem alusatildeo a Meacutecio mas que aparecem distantes espalhados nos versos
seguintes como ldquoAlbanerdquo Albano ldquouirirdquo homem ldquomendacisrdquo mentiroso e ldquouiscerardquo
140
viacutesceras levando-nos a ideia jaacute expressa nos versos a de que as raacutepidas quadrigas
esquartejaram Meacutecio em sentidos contraacuterios
(hex 642-645)
Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae distulerant (at tu dictis Albane maneres) raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres
Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio em sentidos contraacuterios (mas tu oacute Albano natildeo manterias teus dizeres) e Tulo arrastava as viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue escorriam
Meacutecio Fufeacutecio foi o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Conta-se que ele fez um
acordo com Tulo o terceiro rei lendaacuterio de Roma Os romanos haviam declarado
guerra contra os albanos mas Tulo e o rei de Alba Longa Meacutecio fizeram um acordo
para evitar o excessivo derramamento de sangue Como os dois exeacutercitos tinham um
conjunto de irmatildeos trigecircmeos foi decidido que esses irmatildeos lutariam entre si Os
irmatildeos Horaacutecios lutariam pelo lado romano enquanto os Curiaacutecios lutariam pelos
albanos Roma saiu vitoriosa e Alba Longa foi submetida ao Estado romano
Posteriormente quando Meacutecio se recusou a ajudar Roma em um conflito traindo-a
diz-se que foi esquartejado por duas quadrigas lanccediladas em direccedilotildees opostas
Tito Liacutevio (59 aC ndash 17 dC) historiador romano em Ab urbe condita (1989 p
60) assim registrou esse acontecimento
Tulo entatildeo prosseguiu Meacutetio Fufeacutecio se pudesses aprender ainda a respeitar os juramentos e os tratados eu te pouparia a vida e seria eu proacuteprio o teu instrutor Mas como teu caraacuteter eacute irrecuperaacutevel que ao menos teu supliacutecio ensine os homens a considerarem sagrados os compromissos que violas e assim como ontem dividias tua alma entre Fidenas e Roma hoje eacute a vez de teu corpo ser tambeacutem dividido Mandou entatildeo que trouxessem duas quadrigas agraves quais fez amarrar Meacutetio com os membros distendidos Em seguida os cavalos foram impelidos em direccedilatildeo contraacuteria o corpo se dilacerou e os dois carros arrastaram os membros neles amarrados Todos os olhares se afastaram do horriacutevel espetaacuteculo (XXVIII)
Somando-se a este episoacutedio Vulcano coloca tambeacutem dois personagens
Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia e Tarquiacutenio o Soberbo
responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que ao tomar o
141
poder no senado romano Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio e
confiscou seus bens Foi deposto em 509 aC Quando foi expulso de Roma Tarquiacutenio
procurou a ajuda de Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para
declarar guerra agrave Roma No ano de 507 aC Porsena sitiou Roma cercando-a Mais
uma vez os detalhes dos acontecimentos natildeo satildeo mencionados por Virgiacutelio mas
apenas aludidos atraveacutes das figuras por ele elencadas Merece destaque a imagem
do cerco agrave Roma
(hex 646-651)
Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat accipere ingentique urbem obsidione premebat Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant Illum indignanti similem similemque minanti aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis
E ainda tambeacutem Porsena mandava receber o exilado Tarquiacutenio e sitiava a cidade com um enorme cerco Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade Se observares aquele semelhante ao indigno e semelhante ameaccedilador porque Cocles ousara destruir a ponte e Cleacutelia atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas
Nota-se que o vocaacutebulo ldquourbemrdquo cidade encontra-se entre a expressatildeo ldquoingenti
obsedionerdquo grande cerco remetendo-nos iconicamente agrave ideia de que a cidade estaacute
sitiada
ingentique urbem obsidione premebat
e sitiava a cidade com um enorme cerco
Em menccedilatildeo ao verso seguinte (hex 648)
Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant
Os descentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade
Conington (2008 p148) destaca a expressatildeo ldquoin ferrum ruererdquo (ldquocorrer ao
ferrorsquo) pois segundo ele desenha-se nesta passagem uma espeacutecie de espada Com
base nessa afirmaccedilatildeo observamos que a recorrecircncia do fonema vibrante r no final
142
do verso Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant mimetiza a ideia de um ranger de
espadas remetendo-nos portanto agrave ideia da batalha
Assim com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela
qual o inimigo iria atravessar o Tibre Diz-se tambeacutem que durante o cerco agrave Roma em
507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado A
imagem deste acontecimento tambeacutem foi aludida iconicamente
Et fluvium uinclis innaret Cloelia ruptis
E Clelia atravessara o rio com as correntes destruiacutedas
Nota-se que as correntes destruiacutedas aparecem figurativamente no verso pois
o vocaacutebulo ldquouinclisrdquo correntes estaacute apartado do vocaacutebulo ldquoruptisrdquo destruiacutedas
representando a ideia de ruptura e liberdade de Cleacutelia
O memoraacutevel escudo de Eneias traz ainda a figura de Marco Macircnlio cocircnsul
da Repuacuteblica Romana que defendeu Roma da invasatildeo gaulesa De acordo com os
comentaacuterios de Conington (2008 p 148) para os hexacircmetros 652 e 653
In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat
No alto o guardiatildeo de Tarpeia Macircnlio estava de peacute diante do templo
e defendia o alto do Capitoacutelio
O termo ldquoIn summordquo no alto refere-se ao topo do escudo de Eneias e Macircnlio
eacute representado pictoricamente ao lado da rocha Tarpeia como podemos observar
iconicamente no verso In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
No hexacircmetro 654 Conington (2008 p 148) afirma que ao utilizar o vocaacutebulo
ldquorecensrdquo Virgiacutelio assinala a arte de Vulcano no presente ofertado a Eneias jaacute que se
trata do recente palaacutecio acabado de ser entalhado no escudo
Romuleoque recens horrebat regia culmo
O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo
143
O hexacircmetro na visatildeo do criacutetico alude a renovaccedilatildeo constante da casa de
Rocircmulo nos tempos histoacutericos de Roma O termo ldquoRomuleordquo refere-se ao que se
manteve como era nos tempos de Rocircmulo Virgiacutelio usa a imagem do colmo ldquoculmordquo
a palha usada para cobrir as casas para descrever o palaacutecio de Rocircmulo e combinaacute-
lo de certa forma com o templo dourado de seu proacuteprio tempo Dessa forma constroacutei-
se para o leitor a imagem do Capitoacutelio
Ainda neste excerto chama-se a atenccedilatildeo dos romanos para um ataque noturno
dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno
no monte Capitolino
(hex 655-662)
Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat Galli per dumos aderant arcemque tenebant defensi tenebris et dono noctis opacae aurea caesaries ollis atque aurea uestis uirgatis lucent sagulis tum lactea colla auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant gaesa manu scutis protecti corpora longis
E aqui um ganso prateado voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita nas matildeos os dardos alpinos os corpos protegidos pelo longo escudo
Para Conington (2008 p149) o termo ldquouolitansrdquo particiacutepio presente que se
refere a accedilatildeo de voejar daacute-nos a imagem das asas vibrantes dos gansos
Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat
O que reforccedila essa ideia na verdade eacute a repeticcedilatildeo do fonema sibilante s nos
dois primeiros hexacircmetros que colaboram para a construccedilatildeo dessa imagem jaacute que
sugerem por meio da aliteraccedilatildeo em s a presenccedila do voo dos gansos no poema
Vulcano destaca ainda alguns elementos de cultura e entalha no escudo de
Eneias os saacutelios sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro
e os lupercus sacerdotes de Fauno que era uma divindade associada ao campo e agrave
144
fertilidade Os lupercus utilizavam chicotes feitos com couro de cabra que eram
chamados de barretes sacerdotais de latilde Destacam-se assim as cerimocircnias
sagradas
(hex 663-666)
Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo extuderat castae ducebant sacra per urbem pilentis matres in mollibus [hellip]
Aqui havia representado os saltitantes saacutelios e os lupercus nus os barretes sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados
De acordo com Heyne Peerlkamp e Ribbeck todos citados por Conington
(2008 p150) agrave primeira vista a introduccedilatildeo das regiotildees infernais nos hexacircmetros de
nuacutemero 666 a 670 parece fora de sintonia com o resto do contexto esculpido por
Vulcano mas devemos considerar como bem aponta-nos Conington que neste
pequeno excerto assim como em outros o objetivo de Virgiacutelio eacute narrar incidentes
pictoacutericos e entre eles a posiccedilatildeo de benfeitores e criminosos nacionais
(hex 666-670)
[hellip] Hinc procul addit Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis et scelerum poenas et te Catilina minaci pendentem scopulo Furiarumque ora trementem secretosque pios his dantem iura Catonem
Daqui ao longe acrescenta tambeacutem as moradas do Taacutertaro a alta porta de Dite e os castigos dos criminosos e tu oacute Catilina suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo havia ditado as leis
No pequeno excerto os inimigos de Ceacutesar satildeo colocados no mundo inferior o
Taacutertaro Dite eacute um dos nomes utilizados para se referir ao deus Plutatildeo que eacute
responsaacutevel pelo mundo inferior No Taacutertaro encontra-se Catilina um militar e senador
romano que queria destruir o poder oligaacuterquico do senado bem como as fuacuterias
divindades que viviam nas profundezas e eram responsaacuteveis pela tortura das almas
Ao traidor Catilina coube a agonia de cair do abismo enquanto a Catatildeo o Jovem ou
Catatildeo de Uacutetica poliacutetico romano ceacutelebre pela sua inflexibilidade e integridade moral
145
coube os Campos Eliacuteseos Na visatildeo de Conington (2008 p151) a figura de Catatildeo
apresenta-se nesta passagem em contraste com a figura de Catilina concluindo que
o caraacuteter de Catatildeo em vida fez dele um legislador para os mortos
Vulcano prossegue nos detalhes de sua obra com a imagem de um mar que
atravessa o escudo como um tipo de fronteira
(hex 671-674)
Haec inter tumidi late maris ibat imago aurea sed fluctu spumabant caerula cano et circum argento clari delphines in orbem aequora uerrebant caudis aestumque secabant
Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas ondas
Destaca-se desta passagem a figura dos golfinhos delphines O golfinho eacute um
animal marinho consagrado a Apolo pois seu nome lembra o santuaacuterio principal de
Apolo em Delfos Se lembrarmos portanto que Apolo foi adotado por Otaviano como
seu protetor pessoal e que o imperador atribuiacutea ao deus a sua vitoacuteria na batalha naval
contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra a presenccedila dos golfinhos abrindo o cenaacuterio da
batalha do Aacutecio faz alusatildeo agrave figura do deus Apolo bem como agrave proteccedilatildeo do deus aos
romanos (GRIMAL 2014 p33)
Assim no centro do escudo de Eneias detalha-se a Batalha do Aacutecio e coloca-
se a figura de Otaviano em destaque
(hex 675-688)
In medio classis aeratas Actia bella cernete erat totumque instructo Marte uideres feruere Leucaten auroque effulgere fluctus Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar cum patribus populoque penatibus et magnis dis stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus Parte alia uentis et dis Agrippa secundis arduos agmen agens cui belli insigne superbum tempora nauali fulgent rostrata corona Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis uictor ab Aurorae populis et litore rubro Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx
146
No meio via-se as armadas de bronze a guerra do Aacutecio via-se todo o Leucates a ferver com Marte preparado e as ondas resplandecerem com o brilho do ouro De um lado Ceacutesar Augusto conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e o povo os penates e os deuses maiores em peacute sobre a elevada popa a que o seu feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua cabeccedila Em outra parte Agripa com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas Antocircnio vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho transporta com ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra e eacute seguido pela esposa egiacutepcia
Representa-se neste excerto os dois rivais de um lado Otaacutevio Augusto o
senado o povo os Penates e os grandes deuses romanos de outro Marco Antocircnio
e Cleoacutepatra acompanhados de um exeacutercito de homens baacuterbaros e figuras divinas
monstruosas Com o fim da batalha haacute o triunfo de Otaacutevio sobre Marco Antocircnio e a
Alexandria Posteriormente sentado agrave entrada do templo de Apolo Otaacutevio recebe os
presentes das naccedilotildees vencidas O fim da guerra delimita o iniacutecio da pax romana
A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)
O escudo de Eneias como se viu traz episoacutedios centrais da histoacuteria de Roma
a loba que alimenta Rocircmulo e Remo o rapto das Sabinas o castigo da traiccedilatildeo de
Meacutecio por Tulo Hostiacutelio a invasatildeo de Porsena os feitos heroicos de Horaacutecio Cocles e
Cleacutelia a defesa do Capitoacutelio contra os gauleses saacutelios e lupercus e no centro a
batalha do Aacutecio Haacute tambeacutem a representaccedilatildeo do mundo inferior no Taacutertaro encontra-
se Catilina inimigo da paacutetria enquanto nos Campos Eliacuteseos lugar onde habitam os
justos Catatildeo aparece ditando as leis Condensados em poucos versos estes
episoacutedios revelam um modo peculiar de medir o tempo na narrativa jaacute que a
percepccedilatildeo de grandes mudanccedilas histoacutericas satildeo condensadas em um curto periacuteodo
contrariando a mediccedilatildeo cronoloacutegica do tempo Com relaccedilatildeo ao tempo da narrativa
147
portanto no escudo figura-se o futuro de Roma pois ele mostra a Eneias
acontecimentos que ainda natildeo aconteceram
O escudo de Eneias ganha especial descriccedilatildeo na narrativa Isso se deve agrave
peculiaridade que ele carrega o futuro de Roma Levando em conta a definiccedilatildeo do
dicionaacuterio de siacutembolos para o termo ldquoescudordquo encontramos
O escudo (broquel) eacute o siacutembolo da arma passiva defensiva protetora embora agraves vezes possa ser tambeacutem mortal Agrave sua proacutepria forccedila (como objeto de metal ou de couro) ele associa magicamente forccedilas figuradas Efetivamente o escudo eacute em muitos casos uma representaccedilatildeo do universo como se o guerreiro ao usaacute-lo opusesse o cosmo ao seu adversaacuterio e como se os golpes deste uacuteltimo atingissem muito aleacutem do combatente agrave sua frente e alcanccedilassem a proacutepria realidade representada nos ornatos do broquel O escudo de Aquiles eacute um singular exemplo disso Hefestos (Vulcano) cria nele uma decoraccedilatildeo muacuteltipla fruto de seus saacutebios pensamentos Ornamenta-o com figuras da terra do ceacuteu e do mar do sol infatigaacutevel e da lua cheia bem como de todos os outros astros que coroam o ceacuteu Tambeacutem satildeo figuradas duas cidades humanas ndash duas belas cidades Numa delas veem-se nuacutepcias festins Em torno da outra cidade acampam dois exeacutercitos cujos guerreiros rebrilham sob suas armaduras Os atacantes hesitam entre duas decisotildees a destruiccedilatildeo da cidade inteira ou a partilha de todas as riquezas que guarda dentro de seus muros a apraziacutevel cidade (HOMI 18 v 478 ndash 492 508 ndash 512) Nesse broquel Hefestos potildee ainda uma terra branda um campo feacutertil domiacutenios reais um vinhedo pesadamente carregado de uvas um rebanho de vacas de chifres altos uma pastagem de cabras uma praccedila de danccedila e por fim a forccedila pujante do rio Oceano a formar a beirada do soacutelido escudo Todas as razotildees de viver todas as belezas do universo todos os siacutembolos da forccedila da riqueza e da alegria estatildeo mobilizados e concentrados nesse broquel O escudo era grande o bastante para proteger o combatente de cima a baixo e eventualmente servir de padiola para carregar um morto ou um ferido (CHEVALIER GHEERBRANT 1999 p 387)
Com isso entende-se que o ldquoescudordquo no pequeno excerto vai aleacutem de um
termo aleatoacuterio Trata-se de um artefato beacutelico de uma forccedila milenar jaacute que ele
carrega a origem de Roma a Nova Troia bem como toda a descendecircncia do heroacutei
Eneias Pensando-se no tempo da narrativa as imagens ali esculpidas separam o
tempo de Eneias e o tempo do imperador Otaacutevio Augusto revelando-nos um passado
e um futuro
Vale destacar que as figuras gravadas no escudo apenas sugerem a accedilatildeo dos
personagens que deve portanto ser reconstituiacuteda pelo leitor No que diz respeito agrave
presenccedila do mito e sua narrativa sabe-se que entre os antigos o mito era associado
148
a algo verdadeiro divino e sagrado Inicialmente o mito era um relato sobre os
primoacuterdios ou sobre as accedilotildees heroicas ou fatos que tiveram ou natildeo uma intervenccedilatildeo
divina por isso eacute uma mateacuteria predominante e caracteriacutestica do gecircnero eacutepico Com
isso a poesia eacutepica experimenta o contato com o tempo passado
Procurou-se destacar no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise as
figuras representativas do cenaacuterio eacutepico e portanto a construccedilatildeo do texto em um
estilo grandiloquente Partindo do princiacutepio de que o estilo eacute efeito de sentido e uma
construccedilatildeo do discurso verificamos que o efeito grandiloquente emerge de uma
recorrecircncia figurativa
Neste excerto da Eneida o efeito de individuaccedilatildeo pretendido foi o sublime e a
rede de figuras deixaram entrever uma recorrecircncia de representaccedilatildeo a de um cenaacuterio
marcado pela figura do heroacutei que eacute agraciado pelos deuses com um presente especial
um artefato beacutelico que registra a histoacuteria de sua descendecircncia
As figuras destacadas portanto com especial atenccedilatildeo ao escudo de Eneias
engendram um cenaacuterio marcado por feitos heroicos que eacute mediado pela accedilatildeo vigorosa
do heroacutei e seu povo
A poesia eacutepica virgiliana em um tom vigoroso e portanto com destaque para
temas e figuras grandiloquentes colocou em relevo agraves faccedilanhas da Itaacutelia e os triunfos
romanos
149
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao compreendermos o estilo como efeito de sentido produzido pelo discurso
reconhecemos a importacircncia de se analisar a recorrecircncia de procedimentos temaacuteticos
e figurativos na construccedilatildeo do sentido
Para descrever um estilo devemos compreender a rede de temas e figuras que
configuram a totalidade discursiva entendendo-as como repertoacuterio deduziacutevel do texto
mas tambeacutem como um modo especiacutefico de uso desse repertoacuterio
Na anaacutelise de um determinado estilo devemos procurar portanto os temas e
figuras que estatildeo circunscritos no discurso a fim de depreendermos um especiacutefico
efeito de individuaccedilatildeo engendrado no texto
Como jaacute vimos a Roda de Virgiacutelio especifica quais seriam as figuras desejadas
para o contexto da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica pensando cada grupo de figuras
a partir de diferentes contextos seja do estilo simples (singelo) do meacutedio e do
grandiloquente Ao mapear os trecircs estilos da Antiga Retoacuterica o esquema circular
tripartido que foi difundido a partir do seacuteculo XII atraveacutes dos estudos de Joatildeo de
Garlacircndia natildeo aponta para uma classificaccedilatildeo entre os gecircneros bucoacutelico didaacutetico e
eacutepico pensando-os do baixo ao elevado mas sim para uma ideia de continuidade
temaacutetica da carreira literaacuteria de Virgiacutelio
Se uma roda como se sabe gira em torno de um eixo central podemos pensar
em Virgiacutelio como o eixo que mobiliza movimenta trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo As
Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida movimentam-se em torno do poeta que criou
diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo e personagens o pastor o agricultor e o heroacutei A partir
deles desenham-se as accedilotildees e a espacialidade para o pastor o campo a sombra
de uma frondosa faia para o agricultor o cultivo o campo lavrado as aacutervores
frutiacuteferas e para o heroacutei as batalhas e suas armas de guerra O cenaacuterio das Bucoacutelicas
traz um contorno humilde pois as figuras apresentadas satildeo de um universo temaacutetico
singelo ligado agrave natureza O cenaacuterio das Geoacutergicas traz um contorno diferenciado
pois as figuras abordam o cultivo das plantas e a criaccedilatildeo de animais ou seja trata-se
de um universo temaacutetico moderado em que satildeo apresentados alguns ensinamentos
relacionados agrave agricultura No cenaacuterio da Eneida o contorno eacute o sublime
grandiloquente pois o universo temaacutetico eacute outro o das guerras e batalhas em que
satildeo descritos os feitos dos heroacuteis
150
Ao analisar os trecircs tipos de estilo descritos na Roda de Virgiacutelio partimos do
princiacutepio de que todo estilo eacute um efeito de sentido e portanto uma construccedilatildeo do
discurso Acreditamos que esse efeito eacute determinado por recorrecircncias de
procedimentos na construccedilatildeo do discurso Quando falamos em recorrecircncia
estabelecemos como objeto de anaacutelise a isotopia figurativa presente nos textos que
eacute capaz de construir um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo
Haacute portanto nas Bucoacutelicas nas Geoacutergicas e na Eneida uma direcionalidade
previamente estabelecida uma vez que o cenaacuterio campesino do pastor na ldquoBucoacutelica
Vrdquo constroacutei-se a partir de Mopso e Menalcas personagens bucoacutelicos que cantam
sobre a morte e apoteose de Daacutefnis pastor por excelecircncia e lendaacuterio inventor do
gecircnero bucoacutelico O ambiente de atuaccedilatildeo dos personagens eacute a gruta e o campo
Percebe-se na leitura do poema uma recorrecircncia de figuras que nos remetem a uma
temaacutetica singela sobre o viver ruacutestico o oacutecio e o prazer do canto levando-nos a um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo a do estilo simples
Enquanto isso no Canto IV (hex 1-115) das Geoacutergicas com intencionalidade
instrutiva e portanto em um estilo meacutedio revela-se qual eacute o ambiente mais adequado
para o cultivo das abelhas Assim o campo os rios e as folhagens hospitaleiras
participam da construccedilatildeo deste cenaacuterio em que tambeacutem figuram andorinhas
melharucos e outras aves predadoras que segundo a voz didaacutetica que perpassa a
obra satildeo um risco para as abelhas Apresentam-se tambeacutem os materiais adequados
para a produccedilatildeo das caixas que abrigam as abelhas a corticcedila e o vime Tem-se ainda
a menccedilatildeo a Aristeu um pastor miacutetico mas que sabe teacutecnicas de apicultura Neste
excerto das Geoacutergicas eacute apresentada portanto uma narraccedilatildeo em que a voz poeacutetica
descreve qual o cenaacuterio mais adequado para a criaccedilatildeo de abelhas As figuras
presentes no fragmento revelam-nos o tema sobre os cuidados a serem tomados na
apicultura
Jaacute no Canto VIII (hex 612-731) da Eneida o estilo eacute o grandiloquente uma vez
que somos conduzidos a um cenaacuterio em que figuram o heroacutei com suas armas de
guerra Ao filho Eneias a deusa Vecircnus entrega o capacete as espadas a riacutegida
couraccedila as armaduras da perna a lanccedila e o inenarraacutevel escudo As figuras remetem-
nos ao tema das batalhas e posteriormente aos triunfos dos romanos
151
Se retomarmos as figuras presentes na Roda podemos entender que cada
estilo cria um modo individualizador de dizer gerando uma expectativa de
personagens accedilatildeo e ambientaccedilatildeo Observa-se uma recorrecircncia figurativa que resulta
em especiacuteficos efeitos de sentido Confirma-se assim que os diferentes papeacuteis
temaacuteticos presentes na constituiccedilatildeo de um estilo fundamentam a totalidade discursiva
As personagens e seus respectivos cenaacuterios de atuaccedilatildeo estatildeo pressupostos em cada
efeito de individuaccedilatildeo De cada estilo depreende-se dessa forma uma expectativa
do dizer
Pensando nos excertos das obras virgilianas aqui estudados para o humilis
stylus encontramos como personagens os pastores Mopso e Menalcas dentre os
animais representativos os cabritos aleacutem da flauta e o cajado como objetos coerentes
ao universo dos pastores Tambeacutem destacamos o campo a gruta e os olmeiros que
figuram como a espacialidade desejada para o cenaacuterio bucoacutelico descrito
Na Roda de Virgiacutelio as personagens mencionadas satildeo Tityrus e Meliboeus
figuras recorrentes nos idiacutelios de Teoacutecrito e que depois tambeacutem foram retomadas por
Virgiacutelio As outras figuras mencionadas as ovelhas o cajado o campo e a faia
tambeacutem satildeo coerentes ao universo bucoacutelico jaacute que contribuem para a previsibilidade
do cenaacuterio no contexto do humilis stylus
Para o mediocris stylus podemos destacar como personagem o pastor Aristeu
que sabe teacutecnicas de apicultura A menccedilatildeo a este personagem eacute feita nos hexacircmetros
281-294 315-558 do Canto IV das Geoacutergicas Embora ele natildeo apareccedila no excerto
aqui estudado podemos destacar sua presenccedila como personagem representativo
justamente por ser parte do contexto virgiliano Dentre os animais representativos
podem ser destacadas as abelhas pois o excerto aqui estudado aborda alguns
conselhos de apicultura colocando as abelhas portanto em maior destaque Aleacutem
disso as colmeias podem figurar como objeto representativo em uma alusatildeo agraves
caixas de corticcedila e vime destinadas ao abrigo das abelhas e que aparecem no texto
como um dos conselhos a ser seguido na apicultura Para a descriccedilatildeo do cenaacuterio vale
destacar o campo o rio e as folhagens hospitaleiras ambiente adequado para as
abelhas se alojarem
Na Roda virgiliana os personagens mencionados para o mediocris stylus satildeo
Triptolemus e Coelius (agraves vezes pode aparecer Caelius como jaacute mencionamos
anteriormente) Em Joatildeo de Garlacircndia aparece ainda Triptolemus e Ceres Segundo
152
Fowler (2012) Coelius e Triptolemus satildeo nomes comuns para a eacutepoca nomes
destinados aos proprietaacuterios da terra por exemplo embora a figura de Triptolemus
apareccedila em um dos Hinos Homeacutericos agrave Demeacuteter deusa grega da agricultura daiacute a
menccedilatildeo a Ceres equivalente romano para Demeacuteter feita por Garlacircndia Satildeo nomes
portanto que estariam dentro do contexto das Geoacutergicas mesmo natildeo sendo
personagens virgilianos seriam nomes equivalentes Logo o boi o arado o campo e
os pomares todos mencionados na Roda de Virgiacutelio figuram como elementos
previsiacuteveis neste contexto
No grauis stylus podemos destacar como personagens Eneias e Turno Como
protagonista da Eneida o heroi Eneias figura como o filho protegido da deusa Vecircnus
que eacute agraciado com artefatos beacutelicos feitos pelo deus das forjas Vulcano Turno o
seu rival na batalha aparece para fazer contraponto ao heroi Dentre os animais
representativos destacamos o cavalo que embora natildeo apareccedila no excerto aqui
estudado eacute uma figura recorrente no contexto eacutepico virgiliano Como objetos
representativos tecircm-se as espadas as armaduras a lanccedila e o escudo A accedilatildeo das
personagens remete agrave defesa das muralhas da cidade bem como agrave construccedilatildeo delas
e o louro figura como uma honraria destinada aos heroacuteis
Na Roda os personagens citados satildeo Hector e Ajax personagens recorrentes
na epopeia homeacuterica Em Homero um dos modelos utilizados por Virgiacutelio o estilo
grandiloquente portanto tambeacutem contribui para a compreensatildeo das personagens
sua atuaccedilatildeo e a espacialidade descrita
Queremos destacar assim que para cada estilo encontramos uma
homogeneizaccedilatildeo das figuras que corroboram para uma direcionalidade do discurso e
para a criaccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos
Para Norma Discini (2009 p 57) ldquoo estilo apresenta um ponto de vista sobre o
mundordquo Pensando-se nas obras de Virgiacutelio cada estilo simples meacutedio e
grandiloquente aponta para a recorrecircncia de um modo de dizer remetendo-nos a
diferentes discursos com diferentes pontos de vista
Segundo Discini (2009 p 59)
descrever um estilo eacute reconstruiacute-lo Para tanto reconstruiacutemos o ator da enunciaccedilatildeo esse sujeito cuja figura emerge como corpo como caraacuteter de uma totalidade enunciada Por isso o estilo eacute um efeito de sentido uma construccedilatildeo do discurso O efeito de estilo pressupotildee concretizada nas figuras da espacialidade temporalidade e actorialidade uma sistematizaccedilatildeo Trata-se de uma homogeneizaccedilatildeo
153
do sentido que confirma a coerecircncia global do estilo e confirma tambeacutem um equiliacutebrio necessaacuterio agrave economia geral da construccedilatildeo do sentido
Logo observa-se que esta homogeneizaccedilatildeo do sentido se apoia nas isotopias
figurativas sejam elas espaciais pensando-se na descriccedilatildeo do espaccedilo de atuaccedilatildeo
ou actoriais pensando-se nas personagens Em Virgiacutelio as personagens descritas
revelam trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o heroacutei) e a partir delas constroacutei-se
um modo de ser no texto uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa que coloca em
destaque uma identidade do discurso os especiacuteficos efeitos de individuaccedilatildeo os
estilos
Pensando-se na doutrina dos genera dicendi ou seja dos trecircs tipos de estilo
definidos pelos gramaacuteticos antigos podemos entendecirc-los como instrumentos para a
construccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos Cada estilo daacute uma direcionalidade
para o sentido de cada discurso Haacute nas trecircs obras virgilianas diferentes
personagens que marcam assim diferentes tipos sociais com diferentes ambientes e
accedilotildees
Para cada estilo destaca-se um personagem que a partir de seu papel temaacutetico
e figurativo aspectualiza-se no texto jaacute que a sua atuaccedilatildeo esquematiza um cenaacuterio
coerente
Portanto entendemos que os estilos simples meacutedio e grandiloquente que
perpassam as trecircs obras remetem-nos a uma mudanccedila de atuaccedilatildeo levando-nos a
especiacuteficas esquematizaccedilotildees figurativas seja do cenaacuterio das personagens ou das
accedilotildees circunscritas a cada estilo
Segundo Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 31)
Ao fazer girar ainda que muito de leve ldquoa roda de Virgiacuteliordquo ndash essa espeacutecie de hierarquia de estilos que os comentaristas da baixa latinidade identificaram nas obras do mantuano tomando respectivamente as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida como paradigmas dos trecircs tipos baacutesicos de estilo reconhecidos pelos antigos quais sejam o ldquosimplesrdquo (humilis stylus) o ldquotemperadordquo (mediocris stylus) e o ldquosublimerdquo (grauis stylus) ndash percebe-se que a expressatildeo num grande autor se sujeita por completo ao domiacutenio dos recursos da linguagem []
Procurou-se destacar com isso o modo como as figuras e temas se organizam
nas trecircs obras virgilianas Para tanto valemo-nos dos diferentes estilos e a partir
154
deles articulamos os personagens e seu ambiente de atuaccedilatildeo Procurou-se entender
como cada estilo determina a figuratividade presente nos textos agindo como um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo
A poesia atinge um alto grau de encantamento quando a palavra poeacutetica
alcanccedila um aacutepice de realizaccedilatildeo imageacutetica A poesia vale-se da linguagem
experimentando-a e revificando-a
Assim como proposta deste trabalho procurou-se descrever e compreender a
construccedilatildeo expressiva da linguagem artiacutestica Para isso buscou-se entender que a
palavra poeacutetica enquanto imagem soacute alcanccedila sua funccedilatildeo puramente representativa
e esteacutetica quando percebida como uma forma particular de construccedilatildeo Coube-nos a
partir destas consideraccedilotildees ler as obras de Virgiacutelio com a finalidade de reconhecer a
eficaacutecia do texto poeacutetico e a sua vocaccedilatildeo imageacutetica
Procurou-se investigar em excertos representativos das trecircs obras virgilianas
alguns dos recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico dos
textos Aleacutem disso na anaacutelise das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida debruccedilamo-
nos sobre os trecircs tipos de estilo reconhecidos pelos gramaacuteticos antigos a fim de
compreendecirc-los a partir da Poeacutetica e da Semioacutetica Literaacuteria
Verificou-se que a triacuteade das obras virgilianas passou a ser representativa dos
trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica Posteriormente Joatildeo de Garlacircndia
filologista do seacuteculo XIII mapeou as trecircs obras na chamada Roda de Virgiacutelio
classificaccedilatildeo medieval que seguiu assim a doutrina dos gramaacuteticos antigos
Nosso trabalho portanto com vistas agrave compreensatildeo dos estilos presentes nas
obras virgilianas procurou reconhecer nos poemas o modo de atuaccedilatildeo de cada estilo
pensando-os como efeitos especiacuteficos de individuaccedilatildeo depreensiacuteveis por diferentes
recorrecircncias figurativas
Apresentamos ainda as traduccedilotildees dos excertos das trecircs obras com as
necessaacuterias referecircncias culturais Para estas notas foram utilizados dicionaacuterios de
mitologia e os comentaristas tradicionais acerca da obra do poeta mantuano
Foi feito um levantamento da origem da Roda de Virgiacutelio e do pensamento
estruturado pelos gramaacuteticos antigos acerca dos trecircs tipos de estilo presentes nas trecircs
obras Natildeo nos prendemos agraves classificaccedilotildees de maneira exaustiva jaacute que nosso
objetivo natildeo foi catalogar mas sim entender o modo como esses estilos atuam nos
textos Pensando nisso procuramos por meio da moderna anaacutelise metodoloacutegica dar
155
ecircnfase ao entendimento do estilo como efeito de sentido partindo da compreensatildeo
da isotopia figurativa presente em cada obra
Quanto ao capiacutetulo destinado aos comentaacuterios sobre a obra de Virgiacutelio
destacamos aqueles que julgamos pertinentes para a compreensatildeo acerca da
estrutura dos textos Dedicamos tambeacutem um capiacutetulo para as definiccedilotildees de tema
figura figuratividade e os processos de estruturaccedilatildeo do texto com exemplos de
excertos da obra virgiliana
Atualizando a questatildeo dos trecircs estilos na obra de Virgiacutelio o trabalho pretendeu
contribuir assim para as reflexotildees acerca da figuratividade na poesia bucoacutelica
didaacutetica e eacutepica
156
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Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia In GARLAND John of The Parisiana Poetria
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Yale University Press 1974 p 40-41
Figura 4 ndash A Roda de Virgiacutelio In GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo
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Figura 5 ndash Mopso e Menalcas In CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana vol
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Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus In CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa
Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica1998 p 22
Thalita Morato Ferreira
A Roda de Virgiacutelio um estudo da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras ndash UnespAraraquara como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Letras Linha de pesquisa Relaccedilotildees Intersemioacuteticas
Orientador Prof Dr Maacutercio N Thamos
ARARAQUARA ndash SP
2020
Ferreira Thalita Morato
A Roda de Virgiacutelio um estudo da figuratividade na
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Thalita Morato
Ferreira mdash 2020
168 f
Tese (Doutorado em Estudos Literaacuterios) mdash
Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita
Filho Faculdade de Ciecircncias e Letras (Campus
Araraquara)
Orientador Maacutercio Thamos
1 Virgiacutelio 2 Figuratividade 3 Semioacutetica
Literaacuteria I Tiacutetulo
Thalita Morato Ferreira
A RODA DE VIRGIacuteLIO um estudo da figuratividade na
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras ndash UNESPAraraquara como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Letras Linha de pesquisa Relaccedilotildees Intersemioacuteticas Orientador Prof Dr Maacutercio N Thamos
Data da defesa 30042020
MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA
Presidente e Orientador Prof Dr MAacuteRCIO THAMOS - Orientador Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias
e Letras de Araraquara
Membro Titular Prof Dr BRUNNO VINICIUS GONCcedilALVES VIEIRA Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias
e Letras de Araraquara
Membro Titular Prof Dr ALEXANDRE SILVEIRA CAMPOS Departamento de Letras Modernas UNESP - Faculdade de Ciecircncias e Letras de Araraquara
Membro Titular Profa Dra ELAINE CRISTINA PRADO DOS SANTOS Centro de Comunicaccedilatildeo e Letras Universidade Presbiteriana Mackenzie
Membro Titular Profa Dra PATRIacuteCIA PRATA Departamento de Linguiacutestica Universidade Estadual de Campinas Local Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciecircncias e Letras UNESP ndash Cacircmpus de Araraquara
Para Luis Carlos Dhara e Theo que me ensinam todos os dias que viver eacute ir
tecendo naturalmente a trama da nossa histoacuteria
AGRADECIMENTOS
ldquoUm galo sozinho natildeo tece uma manhatilderdquo
Ao meu orientador Prof Dr Maacutercio Thamos quem me ensinou que Virgiacutelio noacutes natildeo
o descobrimos noacutes o merecemos agradeccedilo por ter acompanhado minha pesquisa
desde a Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica pela amizade e minha formaccedilatildeo acadecircmica poeacutetica e
humana
Agrave Profa Dra Ude Baldan e ao Prof Dr Brunno Vieira agradeccedilo pela leitura generosa
do meu trabalho e pelas valiosas contribuiccedilotildees em minha banca de qualificaccedilatildeo bem
como pela minha formaccedilatildeo
Ao meu esposo Luis Carlos Malimpensa que me incentivou a cada momento
agradeccedilo pelo amor companheirismo e por ter me encorajado a natildeo desistir do
caminho
Agrave Dhara minha filha que nasceu em 2018 trazendo vida nova e sadia agradeccedilo pelo
despertar e pela poesia do maternar
Ao Theo meu novo bebecirc que estaacute a caminho e completaraacute a poesia da nossa famiacutelia
Agrave madrinha Edna Batistela que cuidou da minha famiacutelia enquanto eu natildeo podia todo
o meu carinho amor e o meu afeto constante
Aos meus pais Joseacute de Arauacutejo Ferreira e Antonieta Morato do Amaral Ferreira
agradeccedilo pela vida amor e sincero apoio e tambeacutem ao meu irmatildeo Carlos Eduardo
pelo apoio e amizade
Agrave Camila Sabino que me auxiliou na leitura de artigos em inglecircs agradeccedilo pela
amizade e carinho
Agrave Unesp pelo compromisso e por ter me dado a chance e todas as ferramentas que
me permitiram chegar hoje ao final desse ciclo de maneira satisfatoacuteria
E por fim mas natildeo menos importante aos Orixaacutes que clareiam nossos caminhos
A todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formaccedilatildeo o meu muito
obrigado
O primado da forma o que significa eacute que por exemplo a poesia de Virgiacutelio eacute a porccedilatildeo da substacircncia Roma que a forma de Virgiacutelio o seu hexacircmetro recorta e
exprime Sem o hexacircmetro de Virgiacutelio Roma eacute histoacuteria civilizaccedilatildeo liacutengua latina metrificaccedilatildeo ateacute mas natildeo poema pelo menos natildeo como o lemos nas Bucoacutelicas e
na Eneida Alceu Dias Lima (1992 p 14)
RESUMO
O presente trabalho procura investigar a manifestaccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs
obras de Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Pretende-se por meio da
Semioacutetica Literaacuteria analisar os excertos das obras do ponto de vista da expressatildeo
com destaque para a vocaccedilatildeo imageacutetica dos textos a sua figuratividade Aleacutem disso
o trabalho debruccedila-se sobre o conceito de estilo ao investigar na chamada Roda de
Virgiacutelio os trecircs tipos de estilo descritos pela Retoacuterica Antiga a saber o estilo singelo
o estilo meacutedio e o estilo grandiloquente Trata-se de um esquema circular tripartido do
seacuteculo XIII que apresenta as Bucoacutelicas no estilo singelo as Geoacutergicas no meacutedio e a
Eneida no grandiloquente Com isso o esquema da Roda compreende para cada
texto virgiliano um cenaacuterio representativo diferente com diferentes caracteres O
presente estudo procura assim ampliar a compreensatildeo acerca dos trecircs estilos ao
entendecirc-los como efeitos de sentido engendrados nos textos ou seja como
especiacuteficos efeitos sugestionados nas obras a partir da predominacircncia de um
tratamento temaacutetico seguido de sua isotopia figurativa Apresentamos ainda uma
traduccedilatildeo dos excertos virgilianos aqui destacados para anaacutelise A pesquisa eacute um
estudo sobre a estrutura poeacutetica das obras virgilianas com destaque portanto para
a presenccedila da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica
Palavras-chave Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida Figuratividade Semioacutetica
ABSTRACT
The present study seeks to investigate the figurative manifestation in excerpts of
Virgilrsquos three works the Eclogues the Georgics and the Aeneid It is intended through
Literary Semiotics to analyze the excerpts of the works from the point of view of
expression with emphasis on the imagery vocation of the texts their figurativity In
addition the work focuses on the concept of style by investigating in the so-called
Virgils Wheel the three types of style described by Ancient Rhetoric namely the
simple style the medium style and the grandiloquent style It is a circular tripartite
scheme from the 13th century that presents the Eclogues in simple style the Georgics
in the middle and the Aeneid in the grandiloquent Thus the scheme of the Wheel
comprises a different representative scenario for each Virgilian text with different
characters The present study thus seeks to increase the understanding of the three
styles to understand them as meaning effects engendered in the texts that is as
specific effects suggested in the works from the predominance of a thematic treatment
followed by their figurative isotopy We also present a translation of the Virgilian
excerpts highlighted here for analysis The research is a study on the poetic structure
of Virgilian works with emphasis therefore on the presence of figurativity in bucolic
didactic and epic poetry
Keywords Eclogues Georgics Aeneid Figurativity Semiotics
Lista de Figuras e Tabelas
Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo IIIp 10
Figura 2 ndash A Roda Virgiliana p 11
Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia p27
Figura 4 ndash A Roda de Virgiacuteliop30
Figura 5 ndash Mopso e Menalcasp 75
Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnusp 91
Tabela 1 ndash The spokes of Virgilrsquos Wheelp 44
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 13
1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica 22
2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente 33
3 A criacutetica virgiliana46
31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da
Eneida46
32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho 53
4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto57
41 Textos temaacuteticos e figurativos57
42 A figuratividade e a leitura do poeacutetico 69
5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises
51 BUCOacuteLICA V ndash Mopso e Menalcas os pastores cantadores75
52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo81
53 Figuratividade na Bucoacutelica V ndash anaacutelise do texto86
54 GEOacuteRGICAS Canto IV (1-115) ndash descriccedilatildeo do lugar adequado para as
abelhas 99
55 Geoacutergicas Canto IV (1-115) Traduccedilatildeo e notas104
56 Figuratividade no Canto IV (1-115) ndash anaacutelise do texto 108
57 ENEIDA Canto VIII (612-731) ndash Eneias e as armas de guerra 121
58 Traduccedilatildeo e notas do Canto VIII (612-731)125
59 Figuratividade no Canto VIII (612-731) ndash anaacutelise do texto 131
6 Consideraccedilotildees Finais 149
Bibliografia 156
Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III
Fonte PEREIRA Maria H da R 2002 p 247
Figura 2 - A Roda Virgiliana
Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p592
Um claacutessico eacute um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha
para dizer (2007 p11)
Os claacutessicos satildeo livros que quanto mais pensamos conhecer por
ouvir dizer quando satildeo lidos de fato mais se revelam novos inesperados
ineacuteditos (2007 p 12)
[] os claacutessicos natildeo satildeo lidos por dever ou por respeito mas soacute por
amor (2007 p 12-13)
Italo Calvino (2007)
13
Introduccedilatildeo
Publius Vergilius Maro nasceu no ano 70 aC em Andes aldeia proacutexima a
Macircntua sob o primeiro consulado de Liciacutenio Crasso e de Pompeu Magno O poeta
deixou-nos trecircs grandes obras as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Seus textos
estatildeo entre os manuscritos (seacutecs II-III dC) mais antigos que possuiacutemos em papiro na
corrente de difusatildeo da Cultura Claacutessica
As fontes baacutesicas para a biografia do poeta satildeo os comentaacuterios de Valeacuterio
Probo (seacutec I dC) Donato (seacutec IV dC) Seacutervio (seacutec IV dC) Juacutenio Filargiacuterio (seacutec V
dC) e a Vita em verso do gramaacutetico Focas mais tardia e incompleta (seacutec IX) No
livro De poetis Suetocircnio (seacutec I dC) menciona a biografia de Virgiacutelio (Vita Vergilii) que
foi conservada graccedilas a Donato que a reproduziu em seu Comentarium ad Vergilium
O poeta morreu em 19 aC em Brindisi e seu corpo foi transportado para
Naacutepoles sendo sepultado em uma gruta proacutexima agrave estrada de Puteacuteolos1 Todos os
bioacutegrafos citam um diacutestico que o poeta teria supostamente redigido a si proacuteprio
Mantua me genuit Calabri rapuere tenet nunc Parthenope cecini pascua rura duces2
Macircntua me gerou na Calaacutebria arrebataram-me agora me tem o Partecircnope3 cantei as pastagens os campos e os heroacuteis
Segundo Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 30) a veneraccedilatildeo ao poeta comeccedilou
logo apoacutes sua morte Siacutelio Itaacutelico (26-101 dC) por exemplo em seu poema eacutepico
acerca da segunda guerra puacutenica (Punica) imitou de Virgiacutelio o estilo os episoacutedios o
maravilhoso mitoloacutegico e ateacute os recursos do gecircnero Aleacutem disso Eacutelio Lampriacutedio (seacutec
IV dC) um dos escritores da Histoacuteria Augusta conta que Alexandre Severo4 tinha no
palaacutecio a imagem de Virgiacutelio a quem chamava de ldquoPlatatildeo dos poetasrdquo na mesma
1 Atualmente Pozzuoli proviacutencia de Napoacuteles Era conhecida como Puteacuteolos no Periacuteodo Romano 2O termo ldquopascuardquo pastagens refere-se agraves Bucoacutelicas ldquorurardquo campos cultivadosrdquo agraves Geoacutergicas ldquoducesrdquo chefes ou heroacuteis agrave Eneida 3 Partecircnope eacute o nome poeacutetico da cidade de Naacutepoles Na mitologia conta-se que Partecircnope lanccedilou-se
ao mar com suas irmatildes sereias e as ondas atiraram seu corpo para as margens de Naacutepoles onde lhe foi erigido um monumento (cf GRIMAL 2014 p 357) Nos versos finais das Geoacutergicas Canto IV (hex 563-564) Virgiacutelio assim afirma Illo Vergilium me tempore dulcis alebatParthenope studiis florentem ignobilis oti ldquoNaquele tempo a doce Partecircnope nutria a mim Virgiacutelio que nos esforccedilos de um obscuro oacutecio floresciardquo 4 Alexandre Severo (222-235 dC) uacuteltimo imperador da Dinastiacutea Severa em Roma
14
galeria de Aquiles Ciacutecero e outros nomes ilustres Vale ressaltar tambeacutem que as
escavaccedilotildees arqueoloacutegicas de Pompeia forneceram ateacute hoje cerca de sessenta
grafitos virgilianos e uma quinzena deles eacute de citaccedilotildees ou reminiscecircncias das
Bucoacutelicas Segundo Mendes (1997 p 43) as Bucoacutelicas faziam parte da vida dos
habitantes de Pompeia pois os grafitos aparecem nos peristilos poacuterticos e muros
Enrico Rostagni (1931 p 5) assim exprime a benignidade do tempo para com a obra
de Virgiacutelio
AL MASSIMO POETA della Romanitagrave il tempo egrave stato in certo qual modo benigno perchegrave del texto delle sue Opere permise che ci giungessero esemplari insigni per lrsquoantichitagrave veneranda della scritura la quale nella sua maestagrave riflette per cosigrave dire la maestagrave del Poeta e della Gente per cui egli aveva cantato
A vitalidade das obras de Virgiacutelio eacute patente pelo modo como os seus principais
temas e enredos inspiraram e ainda inspiram poetas e demais artistas Mendes (1997
p 42) questiona-se acerca do valor dessa obra de arte para assim perdurar na
memoacuteria e nas matildeos de geraccedilotildees Ele entatildeo afirma que ldquouma obra literaacuteria impotildee-se
e permanece por sua concepccedilatildeo e novidade de conteuacutedo aliadas ao primor de
execuccedilatildeordquo
Como bem aponta-nos Joseph Brodsky (1994 p 97) poeta e criacutetico russo ldquoA
biografia dos poetas estaacute em suas vogais e sibilantes em sua meacutetrica suas rimas e
metaacuteforasrdquo e assim acreditamos que Virgiacutelio revive sempre em cada leitor aacutevido e
maravilhado pelas paacuteginas de indefiniacutevel Beleza As Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a
Eneida renascem constantemente naquele que mergulha em suas linhas e entrelinhas
(SANTOS 2007 p73)
Das obras virgilianas sabemos que a coleccedilatildeo de dez poemas pastoris que a
tradiccedilatildeo de estudos claacutessicos conhece sob o tiacutetulo de Bucoacutelicas foi composta
aproximadamente entre 42 e 37 aC Nesta obra ao buscar motivos nos Idiacutelios de
Teoacutecrito (310 ndash 250 aC) poeta siracusano de destaque no Periacuteodo Heleniacutestico
Virgiacutelio cria cenaacuterios e personagens campestres valendo-se de uma linguagem
repleta de elementos figurativos
As Geoacutergicas foram escritas entre 37 e 29 aC logo apoacutes as Bucoacutelicas A obra
configura-se de acordo com a tradiccedilatildeo claacutessica como um poema didaacutetico e eacute
composta por quatro livros (ou cantos) A obra traz como tema a terra e os encantos
da vida rural apresentando uma seacuterie de ensinamentos relacionados aos trabalhos
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no campo No primeiro livro apresenta-se a lavoura no segundo a arboricultura
sobretudo a viticultura no terceiro a pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no
quarto a apicultura
Escrita entre 29 e 19 aC a Eneida eacute a eacutepica virgiliana Com doze livros (ou
cantos) a obra eacute considerada pela tradiccedilatildeo como um poema histoacuterico e mitoloacutegico
Ao colocar em cena os feitos de Eneias o filho protegido da deusa Vecircnus e o
responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino Virgiacutelio
trama um conjunto de situaccedilotildees e narrativas que propiciaram a fundaccedilatildeo de Roma
Pensando-se nos versos de Virgiacutelio eacute oportuno afirmar que sua poesia teve a
virtude de perpetuar-se e de registrar um povo e um momento da fala desse povo Ao
reconhecer o poeacutetico presente em suas obras compreendemos um fato de linguagem
com valor humano e portanto universal
Virgiacutelio como se sabe valeu-se do hexacircmetro datiacutelico como molde em suas
composiccedilotildees Este tipo de verso jaacute havia sido utilizado por Homero na produccedilatildeo da
Iliacuteada e da Odisseia O emprego do hexacircmetro nos poemas eacutepicos estendeu-se
tambeacutem agrave poesia didaacutetica com Hesiacuteodo e tambeacutem agrave poesia pastoril com Teoacutecrito
Adaptado agrave Literatura Latina o hexacircmetro datiacutelico foi escolhido por Virgiacutelio no texto
das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida
Sendo o hexacircmetro datiacutelico o uacutenico metro usado por Virgiacutelio em suas
composiccedilotildees cabe-nos mencionar suas especificaccedilotildees Natildeo se trata de um verso
com um nuacutemero fixo de siacutelabas pois em certos pontos uma vogal longa pode
substituir duas breves Na formaccedilatildeo de versos latinos natildeo satildeo as siacutelabas que satildeo
submetidas agrave regularidade meacutetrica mas sim o tempo nelas incorporado Logo intui-
se que o ritmo eacute determinado por um arranjo preciso entre siacutelabas de diferente
duraccedilatildeo Os vinte e quatro tempos de um hexacircmetro estatildeo reagrupados em seis
subunidades de quatro tempos Cada uma delas chamadas peacutes estatildeo enfileiradas
uma apoacutes a outra do primeiro ao sexto peacute na linha do hexacircmetro Trecircs satildeo os tipos
de peacutes meacutetricos o daacutetilo o espondeu e o troqueu
O daacutetilo eacute formado de duas partes a primeira representa os dois primeiros
tempos do peacute realizados sobre uma uacutenica siacutelaba que eacute marcada pela vogal longa A
segunda parte traz os dois uacuteltimos tempos do peacute realizados cada um sobre uma
siacutelaba sendo cada siacutelaba marcada por uma vogal breve O daacutetilo eacute representado por
( ˉ ˘ ˘ )
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O espondeu tambeacutem eacute formado por duas partes Cada parte diferentemente
do daacutetilo eacute formada por duas siacutelabas longas O espondeu eacute graficamente
representado por ( ˉ ˉ )
A segunda parte de um daacutetilo marcada por duas vogais breves ( ˘ ˘) pode ser
substituiacuteda no verso por uma vogal longa pois uma vogal longa equivale a duas
breves Mas na praacutetica soacute os primeiros quatro peacutes do hexacircmetro podem ser
substituiacutedos por equivalentes espondeus pois o quinto peacute eacute normalmente um daacutetilo
que garante a base para que o verso seja chamado datiacutelico Quanto ao uacuteltimo ou seja
o sexto peacute chamado troqueu eacute constituiacutedo de duas siacutelabas A primeira eacute longa e a
segunda pode ser longa ou breve O uacuteltimo peacute eacute representado por ( ˉ ˘_)
Segundo Joatildeo Batista Toledo Prado (2012 p 109)
Para a consecuccedilatildeo do ritmo verbal no verso por exemplo num hexacircmetro datiacutelico (um verso de seis peacutes meacutetricos compostos ao menos idealmente por seis daacutetilos ou seja por sequecircncias trissilaacutebicas em que a primeira siacutelaba eacute longa e as duas outras que se lhe seguem satildeo breves) um daacutetilo poderaacute ser substituiacutedo em certas posiccedilotildees por um espondeu (peacute dissilaacutebico com ambas as siacutelabas longas)
Aleacutem disso a siacutelaba final que atua como pontuaccedilatildeo do verso eacute
fonologicamente neutralizada de tal forma que como se sabe o uacuteltimo peacute de um
hexacircmetro seraacute sempre um dissiacutelabo espondaico (quatro tempos) ou trocaico (trecircs
tempos) (PRADO 1997 p 171-172)
Com isso resulta o esquema geral do hexacircmetro
ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘
1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm
ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˘ ˘ ˉ ˉ
1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm
Acrescentaram-se na Antiguidade agraves trecircs obras canocircnicas de Virgiacutelio alguns
textos que hoje satildeo em sua maioria tidos como apoacutecrifos e considerados de autoria
duvidosa ou controversa pelos estudiosos Foi feita uma compilaccedilatildeo desses textos no
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ano de 1572 com o tiacutetulo de Appendix Vergiliana pelo humanista francecircs J J
Escaliacutegero (1540 ndash 1609) No seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX vaacuterios estudiosos tais
como Rand (1919) e Frank (1930) afirmavam que os textos presentes na Appendix
Vergiliana eram todos (ou quase todos) da autoria de Virgiacutelio e passaram a consideraacute-
los como parte de um processo poeacutetico que culminaria nas trecircs obras consagradas do
poeta Mas em contrapartida tambeacutem havia nessa mesma eacutepoca quem apresentasse
um ponto de vista que se aproxima mais do consenso atual sobre a questatildeo ou seja
o de negar a autoria virgiliana dos textos presentes na Appendix O que vale destacar
para aleacutem da autoria destes textos eacute que as obras presentes na Appendix Vergiliana
constituem um material vasto e ainda pouco explorado
O presente trabalho procura focar assim nas trecircs principais produccedilotildees de
Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Ao investigar a manifestaccedilatildeo figurativa
presente em excertos representativos das trecircs obras procuramos destacar alguns dos
recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico de cada texto Os
excertos escolhidos satildeo representativos na medida em que alicerccedilam as
caracteriacutesticas dominantes da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Ao observar quais
satildeo as caracteriacutesticas predominantes em cada excerto o trabalho debruccedila-se sobre
os trecircs tipos de estilos descritos pela antiga retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio
e o grandiloquente que foram difundidos atraveacutes da chamada Rota Vergilli Roda de
Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que apresenta os principais caracteres dos trecircs
cenaacuterios criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico e o eacutepico atrelando cada um deles
a um tipo de estilo Ao compreender cada estilo como um efeito de sentido
sugestionado por meio de uma predominacircncia figurativa e temaacutetica presente em cada
excerto passamos a entender os estilos singelo meacutedio e grandiloquente presentes
na Roda como especiacuteficas construccedilotildees figurativas Para este entendimento o
presente estudo apoia-se no arcabouccedilo teoacuterico da Semioacutetica Literaacuteria
Pensando portanto em estilo como um efeito de sentido depreensiacutevel a partir
de uma totalidade discursiva o trabalho propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo
que os tratados de retoacuterica distinguiam Procurar-se-aacute observar assim a tessitura
poeacutetica de excertos das trecircs obras de Virgiacutelio valendo-se da caracterizaccedilatildeo figurativa
e da expressividade de cada estilo Ao descrever os procedimentos retoacutericos por meio
de princiacutepios mais amplos do que aqueles entatildeo utilizados pelos tratadistas antigos
pretendemos ampliar a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica a leitura do texto
claacutessico latino
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O trabalho busca investigar a construccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs
principais produccedilotildees de Virgiacutelio e propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo
definidos pelos gramaacuteticos antigos ao entender cada estilo como parte da construccedilatildeo
figurativa presente nas trecircs obras O esquema da Roda de Virgiacutelio serviraacute assim
como base para os exemplos de figuras e temas encontrados nas Bucoacutelicas nas
Geoacutergicas e na Eneida e para o entendimento da construccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico
didaacutetico e eacutepico
Vale ressaltar que uma figura natildeo tem significado em si mesma Seu sentido
nasce do encadeamento com outras figuras presentes no discurso Se em um texto
tudo eacute relaccedilatildeo o que daraacute sentido a essas figuras eacute um tema Por isso para encontrar
o sentido de um conjunto de figuras que estatildeo encadeadas no discurso deve-se
perceber o tema subjacente a elas As figuras presentes em um texto formam uma
rede uma trama e por isso para depreendermos o tema de um texto figurativo eacute
preciso apreender primeiro as redes coerentes formadas pelas figuras No caso das
Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida eacute imprescindiacutevel que reconheccedilamos nos
excertos selecionados para anaacutelise o encadeamento e a rede de figuras Aliaacutes o que
garante a depreensatildeo dos temas por traacutes da rede de figuras eacute exatamente a coerecircncia
existente entre elas ou seja a predominacircncia figurativa afinal eacute a partir da coerecircncia
existente entre as figuras que podemos compreender a relaccedilatildeo solidaacuteria que elas
mantecircm entre si
Logo ao adentrarmos na dimensatildeo enunciativa e figurativa de cada excerto
virgiliano investigaremos a figuratividade que perpassa cada discurso destacando
como os estilos singelo meacutedio e grandiloquente satildeo expressos figurativamente nos
textos Pretendemos dessa maneira descrever cada estilo como um especiacutefico efeito
de sentido fruto da rede figurativa arquitetada pelo texto Assim procuramos
descrever os procedimentos retoacutericos atraveacutes de princiacutepios mais amplos para explicar
o fenocircmeno figurativo evidenciado na Roda Logo ao utilizarmos aqui o termo ldquofigurardquo
referimo-nos aos substantivos adjetivos e verbos de accedilatildeo presentes no texto e que
revestem uma ideia abstrata um tema A Retoacuterica seraacute lida entatildeo a partir de um olhar
Semioacutetico Apresentaremos ainda uma traduccedilatildeo dos excertos selecionados para
leitura e anaacutelise com as necessaacuterias notas de referecircncia (geograacuteficas mitoloacutegicas e
histoacutericas)
Os principais excertos selecionados para traduccedilatildeo e anaacutelise satildeo a Bucoacutelica V
a primeira parte do Canto IV das Geoacutergicas (hex 1-115) e o Canto VIII (hex 612-731)
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da Eneida Estes excertos foram escolhidos pensando-se em seus esquemas
figurativos Satildeo trechos que alicerccedilam as caracteriacutesticas dominantes evidenciadas na
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica e que corroboram assim para o entendimento dos
estilos singelo meacutedio e grandiloquente descritos na Roda de Virgiacutelio Ao afirmarmos
com isso em nossas anaacutelises e comentaacuterios que determinado excerto eacute singelo
meacutedio ou grandiloquente o que se quer dizer eacute que estes trechos apresentam
predominantemente e natildeo exclusivamente caracteriacutesticas que alicerccedilam um
determinado efeito de sentido O que se observou nestes excertos escolhidos para
traduccedilatildeo e anaacutelise eacute que os efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente que
nos remetem respectivamente agrave poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica podem ser
depreendidos por uma rede coerente de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria
entre si
Aleacutem destes excertos outros apareceratildeo ao longo do trabalho para
complementarem o entendimento acerca dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente
e o modo como eles satildeo arquitetados por uma rede figurativa uma caracteriacutestica
dominante que alicerccedila o cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Vale ressaltar ainda que
todos os excertos traduzidos das obras virgilianas satildeo de autoria nossa assim como
os demais trechos em latim dos tratadistas antigos
O presente estudo procura portanto a partir de uma moderna anaacutelise
metodoloacutegica produzir um discurso metalinguiacutestico capaz de lanccedilar luz sobre os
recursos da figuratividade evidenciados na Roda de Virgiacutelio Com isso
compreendemos os trecircs estilos definidos pelos tratadistas antigos como efeitos de
sentido arquitetados por uma predominacircncia de figuras presente nos discursos
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
No primeiro capiacutetulo ldquoA Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela
Antiga Retoacutericardquo destacaremos brevemente o pensamento dos principais gramaacuteticos
latinos acerca da classificaccedilatildeo das obras de Virgiacutelio e com isso colocaremos em
relevo os trecircs tipos de estilo por eles descritos o singelo o meacutedio e o grandiloquente
Neste capiacutetulo ainda mencionaremos a Parisiana Poetria de Joatildeo de Garlacircndia e a
Rota Vergilii a Roda de Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que segue a doutrina dos
tratadistas antigos Procuraremos neste capiacutetulo esclarecer alguns pontos
importantes da doutrina dos genera dicendi os trecircs tipos de estilo descritos pelos
gramaacuteticos latinos e para isso faremos um levantamento dos pensamentos mais
relevantes para o tema Para esta etapa do trabalho utilizaremos como fonte os
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gramaacuteticos latinos e outros estudiosos da aacuterea de estudos claacutessicos Dentre os
pensadores antigos destacamos Seacutervio Valeacuterio Probo Donato e Filargiacuterio
No segundo capiacutetulo ldquoUma leitura dos efeitos de sentido simples meacutedio e
grandiloquenterdquo procuramos analisar os trecircs estilos presentes da Roda de Virgiacutelio
como efeitos de sentido engendrados nos textos e que corroboram para o
entendimento dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico
e o eacutepico Busca-se entender dessa forma que cada estilo supotildee uma unidade de
interpretaccedilatildeo depreensiacutevel da recorrecircncia temaacutetica e figurativa presente em cada
discurso Para esse entendimento foram destacados os pensamentos de Antoine
Compagnon (2014) Norma Discini (2009) e Wilson-Okamura (2010) entre outros
No terceiro capiacutetulo ldquoA criacutetica virgilianardquo mencionamos as reflexotildees de
Katharina Volk (2008) que mapeia os principais criacuteticos da obra de Virgiacutelio a partir da
deacutecada de 70 sublinhando duas vertentes de leitura para a obra do poeta a ideoloacutegica
e a literaacuteria Mencionamos alguns comentaacuterios de Elaine C Prado dos Santos (2007)
Ruy Mayer (1948) entre outros Nesta etapa destacamos ainda o pensamento e
estudo de Andrew Laird (2010) sobre a recepccedilatildeo de Virgiacutelio
No quarto capiacutetulo ldquoA Figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um
textordquo falaremos de conceitos semioacuteticos como lsquotemarsquo lsquofigurarsquo e lsquofiguratividadersquo e
procuraremos demonstrar na leitura e anaacutelise de alguns excertos dos poemas de
Virgiacutelio como os temas e figuras participam da formaccedilatildeo textual Para esta reflexatildeo
teremos como respaldo os estudos de Poeacutetica e Semioacutetica Literaacuteria Destacam-se
nesta etapa as reflexotildees de Greimas (1975) (2011) Jakobson (1978) (1989) Barros
(2005) Fiorin (1995) (2011) e Bertrand (2003)
No quinto capiacutetulo ldquoTraduccedilotildees notas e anaacutelisesrdquo contaremos com os excertos
selecionados das trecircs obras virgilianas traduzidos e analisados O trabalho de
traduccedilatildeo seraacute acompanhado das necessaacuterias referecircncias culturais (geograacuteficas
mitoloacutegicas e histoacutericas) Neste capiacutetulo seraacute observada a dimensatildeo figurativa de cada
obra e para isso seratildeo destacadas as principais figuras e os temas recorrentes agrave
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Nas anaacutelises procuraremos abordar como as figuras
se organizam e asseguram um revestimento figurativo dos principais temas bucoacutelicos
didaacuteticos e eacutepicos Aleacutem disso tambeacutem levaremos em conta os estilos singelo meacutedio
e grandiloquente compreendendo-os como efeitos de sentido a partir principalmente
de sua estrutura figurativa Os textos latinos escolhidos para leitura traduccedilatildeo e
anaacutelise seratildeo os das ediccedilotildees Les Belles Lettres em cotejo com as ediccedilotildees
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apresentadas por John Conington em The Works of Virgil e com as ediccedilotildees alematildes
da De Gruyter comentadas por Gian Biagio Conte
O presente estudo procura dessa forma analisar as obras de Virgiacutelio do ponto
de vista da expressatildeo procurando ampliar a percepccedilatildeo da leitura da poesia claacutessica
ao colocar em relevo os recursos da figuratividade do texto A anaacutelise dos elementos
de Retoacuterica a partir da Semioacutetica implica aqui em uma releitura ou seja em
descrever os procedimentos retoacutericos por meio de princiacutepios mais amplos do que
aqueles utilizados pelos gramaacuteticos antigos
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1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga
Retoacuterica
Procurar entender um poema a partir de uma classificaccedilatildeo preacute-estabelecida
natildeo nos parece uma tarefa meritoacuteria pois ldquocada criaccedilatildeo poeacutetica eacute uma unidade
autossuficienterdquo e cada poema portanto ldquoeacute uacutenico irredutiacutevel e inigualaacutevelrdquo (PAZ
2012 p 23) Classificar catalogar reduzir a poesia a algumas poucas formas natildeo diz
nada sobre o poeacutetico em si nem sobre a expressividade do texto todavia buscar
compreender o porquecirc de uma classificaccedilatildeo e o modo como essa classificaccedilatildeo atua
pode nos auxiliar numa tarefa que vai aleacutem de uma mera ordenaccedilatildeo externa agrave obra
quando nos leva a entender alguns mecanismos de estruturaccedilatildeo poeacutetica Eacute oacutebvio que
apenas traccedilar as fronteiras de uma obra e descrevecirc-la levando em conta a
configuraccedilatildeo de um determinado estilo natildeo eacute capaz de esclarecer o poeacutetico que ali
atua Assim ao refletirmos sobre os trecircs estilos (singelo meacutedio e grandiloquente)
presentes nas obras de Virgiacutelio natildeo queremos com isso catalogaacute-las muito menos
hierarquizaacute-las mas sim adentrar o poeacutetico a expressividade do texto virgiliano a fim
de compreendermos natildeo apenas os assuntos tratados nos poemas mas sobretudo a
sua forma de expressatildeo
No iniacutecio da Bucoacutelica VI (hex 3-5) Virgiacutelio menciona as figuras representativas
do cenaacuterio bucoacutelico em contraponto agraves figuras eacutepicas
Cum canerem reges et proelia Cynthius aurem uellit et admonuit ltltPastorem Tityre pinguis pascere oportet ouis deductum dicere carmengtgt
Como eu cantasse reis e batalhas Ciacutentio5 puxou-me a orelha e advertiu-me ldquoAo pastor Tiacutetiro conveacutem apascentar gordas ovelhas e cantar um canto ruacutesticordquo
Haacute uma oposiccedilatildeo no excerto entre dois grupos de figuras De um lado lsquoreisrsquo e
lsquobatalhasrsquo e de outro lsquoo pastorrsquo as lsquogordas ovelhasrsquo e um lsquocanto ruacutesticorsquo Enquanto a
temaacutetica da eacutepica destina-se agrave narraccedilatildeo de grandes feitos de reis e batalhas a poesia
de gecircnero bucoacutelico eacute um canto de temaacutetica mais simples pois traz a figura do pastor
5 Ciacutentio outro nome para Apolo aqui citado como um deus pastoral identificado com agrave natureza
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que apascenta as gordas ovelhas e canta um canto ruacutestico humilde singelo de
temaacutetica portanto diferente da eacutepica
Tambeacutem Camotildees no seacuteculo XVI na Invocaccedilatildeo drsquoOs Lusiacuteadas (I 5 v 1-4)
opocircs o cenaacuterio da eacutepica e da bucoacutelica
Dai-me uma fuacuteria grande e sonorosa E natildeo de agreste avena ou frauta ruda Mas de tuba canora e belicosa Que o peito acende e a cor ao gesto muda
A poesia bucoacutelica neste excerto eacute caracterizada pela ldquoagreste avenardquo ou
ldquofrauta rudardquo o instrumento do pastor-cantador protagonista do cenaacuterio bucoacutelico Jaacute
a poesia eacutepica aparece caracterizada pela lsquotuba canora e belicosarsquo Trata-se de uma
mudanccedila de cenaacuterio entre a bucoacutelica e a eacutepica muda-se o tema cantado e
consequentemente as figuras empregadas Entre os antigos a epopeia jaacute era descrita
por narrar os feitos de reis de chefes e as tristes guerras (cf Horaacutecio Arte Poeacutetica)
Augusto Epiphanio da Silva Dias (1910 p 6 nota 5) afirma que ldquoEm latim avena
lsquoaveiarsquo emprega-se tambeacutem por lsquocana de aveiarsquo e daiacute na poesia por lsquoflauta pastorilrsquo
A lsquoavenarsquo simboliza a poesia bucoacutelica assim como a lsquotubarsquo ou trombeta a poesia
eacutepicardquo
Enquanto as figuras representam no texto as coisas e os acontecimentos do
mundo natural os temas explicam os fatos que ocorrem Para criar determinado efeito
de sentido o autor de um texto escolhe figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria
entre si formando uma rede uma trama figurativa Ao identificarmos as figuras de um
texto devemos verificar portanto qual eacute a funccedilatildeo que elas desempenham no sentido
do texto Logo a depreensatildeo dos temas subjacentes a um texto figurativo soacute eacute
possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre figuras que se articulam e se encadeiam no
interior dele formando uma rede Como observamos nos exemplos acima o contraste
evidenciado entre a poesia bucoacutelica e eacutepica estaacute manifestado dessa maneira por
redes figurativas diferentes
Semelhante oposiccedilatildeo tambeacutem aparece com Antoacutenio Ferreira (2000 p 157) no
iniacutecio de sua ldquoEacutecloga Irdquo (v1-8)
No tempo qursquoo cruel e furioso Inimigo dos pastores e dos gados Da terra e das sementes belicoso
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Marte segundo contam por pecados Do mundo contra o mundo tatildeo iroso Desceu que teacute os lugares mais sagrados Assi com ferro e fogo cometeu Que tudo de ira cinza e sangue encheu
A guerra no seguinte excerto eacute figurativizada pelo ldquobelicoso Marterdquo que se
mostra inimigo dos pastores e de todo cenaacuterio bucoacutelico pois a guerra quebra
necessariamente com a paz ideal presente no mundo pastoril
Haacute portanto uma oposiccedilatildeo temaacutetica entre a poesia de gecircnero bucoacutelico e a
poesia eacutepica O contraste evidenciado nos dois discursos eacute marcado por redes
figurativas especiacuteficas que apontam para temas distintos O efeito de sentido singelo
humilde eacute proacuteprio da bucoacutelica jaacute que a recorrecircncia figurativa pressupotildee o universo
dos pastores inseridos em um locus amoenus Enquanto isso o efeito de sentido
grandiloquente eacute proacuteprio do cenaacuterio eacutepico em que figuram heroacuteis em contexto de
grandes aventuras e batalhas Entende-se por efeito de sentido a construccedilatildeo de
significados que pode ser depreensiacutevel de um discurso Essa construccedilatildeo eacute arquitetada
em um texto por uma rede de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre si Logo
ao falarmos em efeito de sentido referimo-nos agrave trama de figuras presente em cada
discurso e ao modo como essa rede figurativa manifesta-se predominantemente no
discurso ao tecer significados No que diz respeito agrave poesia de gecircnero bucoacutelico e
eacutepico evidenciamos redes figurativas distintas e portanto diferentes efeitos de
sentido
Assim a partir do tema da accedilatildeo e da caracterizaccedilatildeo presentes nas trecircs obras
de Virgiacutelio - as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida ndash o trabalho procura observar as
mudanccedilas nos efeitos de sentido em cada obra Os estilos singelo meacutedio e
grandiloquente apresentam-se em cada obra virgiliana como efeitos de identidade do
texto sendo arquitetados a partir de um conjunto de procedimentos recorrentes na
construccedilatildeo de um sentido Analisar os estilos portanto significa investigar os
diferentes efeitos de individualidade presentes em cada texto
Valeacuterio Probo gramaacutetico romano da segunda metade do seacuteculo I dC In Vergilii
Bucolica et Georgica commentarius ao comparar a eacutepica e a bucoacutelica virgiliana
afirma que o ldquosublime e grandiloquenterdquo pertencem agrave Eneida enquanto agraves Bucoacutelicas
pertencem o que eacute ldquohumilde e ruacutesticordquo Diz o gramaacutetico
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Sunt quaedam propria heroico carmini sublimia sed in bucolico humilia quae apte diuisse Vergilius notatus est
Algumas coisas satildeo apropriadas as sublimes ao poema heroico mas as humildes no bucoacutelico notou-se que Virgiacutelio as separou adequadamente
Essa distinccedilatildeo feita entre as obras deixa entrever a possibilidade de figuras que
podemos encontrar em cada uma delas Para a Eneida uma rede figurativa que nos
remete a um tema de caraacuteter grandioso enquanto para as Bucoacutelicas uma trama
figurativa que nos remete a assuntos mais singelos
Eacutelio Donato gramaacutetico e retoacuterico latino do seacuteculo IV dC menciona as trecircs
obras de Virgiacutelio e designa o modo de elocuccedilatildeo de cada gecircnero Para ele satildeo trecircs os
modos de elocuccedilatildeo o tecircnue (tenuis) para o gecircnero bucoacutelico o moderado (moderatus)
para o gecircnero didaacutetico e o vigoroso (ualidus) para o gecircnero eacutepico A elocuccedilatildeo
segundo a Retoacuterica refere-se agrave escrita do discurso ao estilo agrave expressatildeo Refere-se
pois ao trabalho com a linguagem e abrange assim o bom uso do leacutexico
Juacutenio Filargiacuterio comentarista de Virgiacutelio do seacuteculo V dC em Explanatio in
Bucolica Vergilli ao comparar as trecircs obras virgilianas acaba relacionando-as aos trecircs
genera dicendi
Humile medium magnum physica ethica logica Bucolica Georgica Aeneades naturalis moralis rationalis pastor operator bellator Physica ethica logica propter naturam propter usum propter doctrinam
Humilde meacutedio grande fiacutesica eacutetica loacutegica Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida natural moral racional pastor operaacuterio guerreiro Fiacutesica eacutetica loacutegica por causa da natureza por causa do uso por causa da doutrina
Dos pensadores aqui mencionados todos subordinam as Bucoacutelicas ao estilo
humilde (singelo) as Geoacutergicas ao meacutedio e a Eneida ao sublime grandiloquente
Com o auxiacutelio da Semioacutetica Literaacuteria entendemos que os trecircs estilos descritos
pelos tratadistas antigos podem ser lidos como diferentes efeitos de sentido presentes
nas trecircs obras virgilianas Estes efeitos estatildeo alicerccedilados nas diferentes tramas
figurativas tecidas por Virgiacutelio Pretende-se entender com isso o modo como os
principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica atuam no discurso Ao
compreender os trecircs estilos como construccedilotildees figurativas como efeitos de sentido
arquitetados em cada obra destacaremos como a significaccedilatildeo de uma determinada
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figura estaacute sob o controle de um contexto no qual se encaixa com coerecircncia Pretende-
se investigar portanto a relaccedilatildeo solidaacuteria existente entre as figuras em contexto
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
A subordinaccedilatildeo das trecircs obras de Virgiacutelio aos trecircs genera dicendi aos trecircs
estilos descritos pelos gramaacuteticos latinos tambeacutem encontramos na Parisiana Poetria
de Joatildeo de Garlacircndia A Parisiana Poetria eacute um tratado sobre gramaacutetica e retoacuterica
escrito por Garlacircndia por volta de 1231 e 1235 Trata-se de um trabalho que registra
tipos de composiccedilatildeo escrita e aponta os cacircnones da retoacuterica Garlacircndia dessa forma
descreve uma teoria abrangente do estilo e para isso vale-se das Bucoacutelicas das
Geoacutergicas e da Eneida para criar a Roda de Virgiacutelio esquema circular tripartido em
que as obras virgilianas aparecem para descrever diferentes personagens temas
caracterizaccedilotildees e niacuteveis de estilo Assim ao mapear os estilos singelo meacutedio e
grandiloquente o filologista chama-nos a atenccedilatildeo para o fato de que Virgiacutelio registrou
diferentes tipos de estilo fixando modelos
De acordo com a Encyclopaedia Britannica (2009) John of Garland ou como
se diz tradicionalmente em portuguecircs Joatildeo de Garlacircndia (1180-1252) foi um
gramaacutetico e poeta inglecircs do seacuteculo XIII Seus escritos foram importantes no
desenvolvimento do latim medieval Aleacutem da Parisiana Poetria entre seus trabalhos
gramaticais estatildeo Compendium Grammatice (Esboccedilo de Gramaacutetica) Liber de
Constructionibus (Livro sobre Construccedilotildees) e um vocabulaacuterio latino Dois de seus
poemas mais conhecidos satildeo De triumphis ecclesiae (Sobre os triunfos da igreja) e
Epithalamium beatae Mariae Virginis (Canccedilatildeo nupcial da bem aventurada Virgem
Maria)
Ao arquitetar a Rota Vergilii Roda de Virgiacutelio seguindo a doutrina dos
gramaacuteticos latinos jaacute citados Joatildeo de Garlacircndia apresenta-nos a funccedilatildeo social de
cada personagem de Virgiacutelio o pastor o agricultor e o guerreiro
Segue portanto o esquema circular tripartido das trecircs obras virgilianas Cada
um dos aros concecircntricos da roda deixa entrever o personagem emblemaacutetico o
vegetal tiacutepico o ambiente de atuaccedilatildeo das personagens os objetos e os animais
representativos
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Figura 3- A Roda Virgiliana de Garlacircndia
Fonte GARLAND John of 1974 p 40-41
Partindo desta divisatildeo entre as obras na Parisiana Poetria (1974 p38) Joatildeo
de Garlacircndia assim descreve
Item notandum quod in Rota Vergilii quam pre manibus habemus ordinantur tres columpne et in circuitu per multas circumferencias ordinantur tres stili In prima columpna comparationes continentur similitudines et nomina rerum ad humilem stilum pertinencium in secunda ad mediocrem in tercia ad grauem
Nota-se que na Roda de Virgiacutelio que temos em matildeos ordenam-se trecircs colunas e os trecircs estilos no circuito por meio de muitas circunferecircncias Na primeira coluna estatildeo contidas as comparaccedilotildees as imagens e os nomes das coisas pertinentes ao estilo humilde na segunda ao meacutedio na terceira ao grave
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Vemos que o filologista segue a doutrina dos gramaacuteticos latinos apresentando-
nos em seu esquema tripartido as Bucoacutelicas na coluna do estilo singelo humilde as
Geoacutergicas na do meacutedio moderado e a Eneida na do grave grandiloquente
Na Enciclopedia Virgiliana organizada por Franceso della Corte (1996 p586)
encontramos um verbete para Rota Vergilii Neste verbete diz-se que as trecircs obras de
Virgiacutelio indicadas em uma figura circular satildeo exemplos dos trecircs estilos retoacutericos
(simples meacutedio e sublime) Menciona-se ali a documentaccedilatildeo da Poetria de Joatildeo de
Garlacircndia para quem Virgiacutelio apoacutes ter elegido sua mateacuteria poeacutetica tambeacutem elegeu
trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o guerreiro) a partir dos quais criou trecircs
cenaacuterios de atuaccedilatildeo
A Roda de Virgiacutelio segundo o verbete eacute uma emblemaacutetica correspondecircncia
dos trecircs genera dicendi os trecircs estilos defendidos pelos gramaacuteticos antigos e
configura-se como um esquema mnemocircnico que concentra a mateacuteria poeacutetica de cada
obra ou seja um breve panorama da criaccedilatildeo poeacutetica de Virgiacutelio A Roda eacute
interpretada assim como um cacircnone da arte retoacuterica
De acordo com Joatildeo Adolfo Hansen (2013 p26) ldquoStilus nome latino do estilete
com que se escrevia na tabuinha de cera passou a significar metaforicamente a
variaccedilatildeo da elocuccedilatildeo caracteriacutestica de um autor determinado proposto agrave emulaccedilatildeo
como auctoritasrdquo Segundo Hansen o termo lsquoestilorsquo refere-se agraves variaccedilotildees discursivas
das muitas elocuccedilotildees dos gecircneros Teofrasto disciacutepulo de Aristoacuteteles foi o primeiro
a fazer uma divisatildeo tripartida da elocuccedilatildeo dos estilos ndash simples temperado e nobre ndash
que corresponde na visatildeo de Hansen ao estilo humilde meacutedio e sublime
classificaccedilatildeo presente na chamada Rota Vergilii de Joatildeo de Garlacircndia como jaacute citado
anteriormente
Para Hansen (2013 p 26-27) a chamada Rota Vergilii do seacuteculo XIII
prescreve trecircs genera elocutionis que
satildeo exemplificados com as trecircs obras principais do poeta humilis ou humilde (Bucoacutelicas) mediocris ou meacutedio (Geoacutergicas) grauis ou alto (Eneida) Cada um deles corresponde agraves palavras especiacuteficas de lugares comuns as Bucoacutelicas o campo do pastor nomes proacuteprios de pastores as ovelhas as Geoacutergicas o campo do agricultor nomes proacuteprios de agricultores o boi a Eneida o campo do soldado nomes proacuteprios de soldados o cavalo e lugares comuns de objetos artificiais e coisas naturais ndash o cajado do pastor e a faia o arado do lavrador e a macieira a espada do soldado e o carvalho (ou loureiro) e na
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elocuccedilatildeo palavras simples e humildes nas Bucoacutelicas meacutedias e com poucos ornamentos nas Geoacutergicas elevadas e sublimes na Eneida
Ao compreendermos com o auxiacutelio da Semioacutetica os trecircs estilos como efeitos
de sentido engendrados em cada obra pressupomos o nuacutecleo temaacutetico e figurativo
de cada texto e o modo como figuras e temas se encadeiam coerentemente
Pierre Guiraud em A Estiliacutestica (1970) segue o modelo de Garlacircndia ao citar
os trecircs estilos elementares descritos pela Antiga Retoacuterica descrevendo-os e
apresentando-os em cada aro concecircntrico de sua Roda
Assim o camponecircs chama-se Caelius lavra seu campo plantado de aacutervores frutiacuteferas com seu arado puxado por bois mas o capitatildeo chama-se Hector estaacute coroado de louros tem agrave cinta um glaacutedio e percorre o acampamento em seu cavalo A vida do labrego seraacute contada em estilo simples ao passo que se usaratildeo estilo grave ou nobre para contar as faccedilanhas de Heitor (GUIRAUD 1970 p 27 grifos do autor)
Ao retomar a Roda de Garlacircndia Guiraud descreve trecircs diferentes contextos
de atuaccedilatildeo destacando as principais caracteriacutesticas de cada um deles Pode-se
compreender que os elementos por ele citados apesar da oscilaccedilatildeo possiacutevel dos seus
significados estatildeo articuladas no interior de cada texto remetendo-nos a diferentes
efeitos de sentido seja o simples (o singelo) o meacutedio ou o grandiloquente
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Figura 4 - A Roda de Virgiacutelio
Fonte GUIRAUD Pierre 1970 p 26
Como se lecirc no esquema circular tripartido para as Bucoacutelicas tem-se o Humilis
Stylus o estilo singelo e seu personagem representativo eacute o pastor otiosus o pastor
despreocupado Entre os nomes de pastores mais conhecidos estatildeo Tityrus e
Melibœus (cf Buc I) dos animais que figuram a ambientaccedilatildeo campestre destacam-
se as ovelhas (ovis) aleacutem disso como objetos representativos do pastor encontramos
o cajado (baculus) e a flauta Na descriccedilatildeo da espacialidade destacam-se os prados
(pascua) e a faia (fagus) com suas folhagens hospitaleiras que contribuem para a
descriccedilatildeo do locus amoenus ambientaccedilatildeo proacutepria ao universo bucoacutelico Os
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caracteres bucoacutelicos remetem-nos a assuntos tecircnues e por isso entendemos que
haja um efeito de sentido singelo que perpassa a obra
Para as Geoacutergicas temos o estilo meacutedio mediocrus stylus Como personagem
representativo encontramos o lavrador (agricola) e dentre os animais encontramos o
boi (bos) O arado (aratrum) serve para o cultivo do campo (ager) e na ambientaccedilatildeo
figuram aacutervores frutiacuteferas (pomus) Logo os assuntos satildeo moderados e destinam-se
agraves informaccedilotildees sobre a plantaccedilatildeo e a criaccedilatildeo de animais Entendemos com isso que
o cenaacuterio provoca um efeito de sentido mediano instrutivo
Para a Eneida destaca-se o estilo sublime (gravis stylus) Como personagem
tem-se o soldado vencedor (miles dominans) Entre os animais que aparecem estaacute o
cavalo (equus) A espada (gladius) figura como objeto representativo da personagem
e tanto a cidade (urbs) como a fortaleza de guerra ou o acampamento militar
(castrum) mapeiam o espaccedilo de atuaccedilatildeo Os caracteres eacutepicos destinam-se assim
aos assuntos grandiosos de reis e batalhas Logo pensando-se em termos
semioacuteticos cria-se um efeito de sentido grandiloquente
Eacute importante lembrar que a Roda natildeo esgota os elementos presentes nas
Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida ela apresenta apenas alguns dos aspectos gerais que
podem aparecer na caracterizaccedilatildeo de cada obra Eacute preciso que o leitor conheccedila o
texto de Virgiacutelio para depreender dessa forma as diferentes caracteriacutesticas bucoacutelicas
didaacuteticas e eacutepicas Entendemos neste trabalho que o esquema tripartido da Roda
serve para nortear a forma como Virgiacutelio valeu-se dos diferentes temas e como
conseguiu registraacute-los em suas obras
Na visatildeo de Guiraud (1970 p 27) ldquoas palavras guardam o reflexo das coisas
que designam ou dos ambientes em que satildeo empregadasrdquo Em se tratando das trecircs
obras de Virgiacutelio os cenaacuterios em contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico apresentam os
temas e figuras que lhe satildeo proacuteprios
As trecircs obras de Virgiacutelio dialogam com os trecircs tipos de estilo descritos pela
Antiga Retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Procuramos
entender esta divisatildeo como um esquema representativo das principais figuras e temas
presentes nas obras de Virgiacutelio Logo os trecircs estilos seratildeo aqui entendidos como
diferentes efeitos de sentido que aparecem na obra virgiliana Demonstraremos
atraveacutes de excertos do texto virgiliano como temas e figuras se comportam em
contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Compreendemos portanto o esquema tripartido
de Joatildeo de Garlacircndia com o auxiacutelio da moderna anaacutelise metodoloacutegica e com isso a
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leitura que se seguiraacute das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida apresentaraacute o estilo
como um efeito de sentido que perpassa as obras
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2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente
Estilo eacute efeito de individuaccedilatildeo dado por uma totalidade de discursos enunciados
Norma Discini 2009 p 27
Por meio da linguagem o emissor eacute capaz de expressar seus sentimentos
emoccedilotildees e modos de ser aleacutem de influenciar o seu receptor (o ouvinte ou leitor)
provocando assim uma determinada impressatildeo Foi pensando nisso que os gregos
antigos se valeram de diferentes loacutegicas argumentativas para convencer a plateia
sobre a veracidade de suas ideias Com isso a Greacutecia claacutessica levou a graus de
sutileza a preocupaccedilatildeo com a estrutura do discurso Entre os gregos inclusive foram
criadas disciplinas que melhor ensinassem as artes de domiacutenio da palavra tais como
a eloquecircncia a gramaacutetica e a retoacuterica (CITELLI 2002)
O surgimento da retoacuterica como disciplina especiacutefica contribuiu para uma
reflexatildeo sobre o aspecto discursivo da liacutengua bem como sobre o efeito que ela
provocava no receptor Na Idade Meacutedia a Retoacuterica apareceu no campo religioso pois
era comum os monges discutirem temas dogmaacuteticos com a finalidade de mostrar suas
habilidades argumentativas Na Idade Moderna com o advento do positivismo a
Retoacuterica foi deixada de lado jaacute que o importante passou a ser o conteuacutedo aquilo que
poderia ser comprovado e natildeo mais a expressividade Jaacute na Idade Contemporacircnea
a Retoacuterica retorna em duas grandes vertentes a teoria da argumentaccedilatildeo no discurso
cientiacutefico e a Estiliacutestica nos estudos linguiacutesticos (CITELLI 2002)
Levando em conta as dimensotildees da liacutengua e seu uso Mattoso Cacircmara (1978
p110) em seu Dicionaacuterio de Linguiacutestica e Gramaacutetica faz a seguinte afirmaccedilatildeo acerca
da Estiliacutestica ldquoDisciplina linguiacutestica que estuda a expressatildeo em seu sentido estrito de
expressividade da linguagem isto eacute a sua capacidade de emocionar e sugestionarrdquo
Pensando nessa capacidade de emocionar e sugerir Mattoso Cacircmara (1978
p 7 grifo nosso) define ldquoestilordquo nos seguintes termos
Em sentido lato estilo eacute a maneira tiacutepica pela qual nos exprimimos linguisticamente individualizando-nos em funccedilatildeo da nossa linguagem Para isso fazemos uma aplicaccedilatildeo metoacutedica dos elementos que a liacutengua ministra (Leo Spitzer) procedendo a uma escolha entre as possibilidades de expressatildeo que se apresentam na liacutengua (Marouzeau) Em sentido estrito no entanto essa caracteriacutestica decorre antes de tudo do nosso impulso emotivo e do propoacutesito claro ou subconsciente de sugestionar o proacuteximo
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Com isso podemos pensar em estilo como a individualidade de um discurso
como uma escolha entre os recursos de expressatildeo presentes na liacutengua e como um
efeito de sentido que eacute capaz de sugestionar determinadas impressotildees
Ao entendermos que um efeito de sentido soacute pode ser depreendido a partir de
uma rede coerente de figuras no interior do discurso concluiacutemos que toda trama de
figuras presente em um texto alicerccedila os significados ali tecidos Para depreendermos
portanto o efeito sugerido por determinada obra literaacuteria por exemplo devemos
adentrar a sua dimensatildeo temaacutetica e figurativa a fim de compreendermos a dominacircncia
dos elementos abstratos e concretos presentes no discurso
Como afirma Compagnon (2014 p164) a palavra estilo natildeo tem origem em
vocabulaacuterio especializado Aleacutem disso natildeo eacute um termo reservado apenas agrave literatura
e agrave liacutengua A ideia de estilo para Compagnon abrange numerosas aacutereas da atividade
humana Estilo denota a individualidade a singularidade de uma obra a necessidade
de uma escritura um gecircnero um periacuteodo ou um arsenal de procedimentos
expressivos de recursos a escolher Logo os aspectos da noccedilatildeo de estilo tanto
verbal como natildeo verbal hoje satildeo muito numerosos O estilo eacute citado por Compagnon
como norma pensando-se que o bom estilo eacute aquele que deve ser imitado o cacircnone
Aleacutem disso o estilo frequentemente aparece segundo ele como ornamento Essa
concepccedilatildeo eacute evidente na retoacuterica em que existem duas partes relacionadas agraves ideias
(invenccedilatildeo e disposiccedilatildeo) e uma terceira relativa agrave expressatildeo atraveacutes das palavras
(elocuccedilatildeo) Compagnon tambeacutem menciona o estilo no sentido de desvio pensando-
se na variaccedilatildeo estiliacutestica no desvio da liacutengua em relaccedilatildeo ao seu uso corrente na
substituiccedilatildeo de uma palavra por outra que oferece agrave elocuccedilatildeo uma forma mais
elevada uma marca diferenciada Tem-se assim de um lado uma elocuccedilatildeo clara ou
baixa e de outro uma elocuccedilatildeo elegante
Para Compagnon (2014 p 166) o ornamento e o desvio satildeo inseparaacuteveis da
noccedilatildeo de estilo Desde Aristoacuteteles entende-se o estilo como um ornamento formal
definido pela sua marca diferenciada em relaccedilatildeo ao uso comum da linguagem
Compagnon traz ainda a noccedilatildeo de estilo atrelada agrave ideia de gecircnero ou tipo
Para o criacutetico segundo a antiga retoacuterica o estilo enquanto escolha entre meios
expressivos estava ligado a noccedilatildeo de conveniecircncia jaacute que natildeo bastava possuir a
mateacuteria do discurso era preciso aleacutem disso falar segundo a necessidade da situaccedilatildeo
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O estilo dessa forma designava a propriedade do discurso a adaptaccedilatildeo da
expressatildeo a seus fins
Compagnon (2014 p 167) diz que
Os tratados de retoacuterica distinguiam tradicionalmente nem mais nem menos trecircs tipos de estilo o stylus humilis (simples) o stylus mediocris (moderado) e o stylus grauis (elevado ou sublime) Ciacutecero no Orator associava esses trecircs estilos agraves trecircs escolas de eloquecircncia (o asiatismo que se caracterizava pela abundacircncia ou empolaccedilatildeo o aticismo pelo gosto seguro e o gecircnero roacutedio gecircnero intermediaacuterio) Na Idade Meacutedia Diomedes identificou esses trecircs estilos aos grandes gecircneros depois Donato em seu comentaacuterio de Virgiacutelio relacionou-os aos temas das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida isto eacute agrave poesia pastoril agrave poesia didaacutetica e agrave epopeia Essa tipologia dos trecircs tipos de estilo difundida desde entatildeo com o nome Rota Vergilii ldquoRoda de Virgiacuteliordquo gozou de uma estabilidade de mais de mil anos Ela corresponde a uma hierarquia (familiar meacutedia nobre) que engloba o fundo a expressatildeo e a composiccedilatildeo Montaigne vai transgredi-la deliberadamente escrevendo sobre assuntos ldquomediacuteocresrdquo e eventualmente ldquosublimesrdquo no estilo ldquococircmico e privadordquo das letras e da conversaccedilatildeo Ora os trecircs tipos de estilo satildeo igualmente conhecidos sob o nome de genera dicendi assim eacute a noccedilatildeo de estilo que se acha na origem da noccedilatildeo de gecircnero ou mais exatamente eacute atraveacutes da noccedilatildeo de estilo (e a teoria dos trecircs estilos classifica os discursos e os textos) que as diferenccedilas geneacutericas foram tratadas por muito tempo
Pensando em estilo por meio da narratividade e do discurso Norma Discini em
sua obra O estilo nos textos (2009 p29) afirma
O estilo tambeacutem decorre de uma leitura homogeneizadora do mundo inerente ao efeito de individuaccedilatildeo de uma totalidade de discursos enunciados Tal leitura eacute identificaacutevel na anaacutelise de um estilo por meio da observaccedilatildeo do modo recorrente da referencializaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo no enunciado o que por sua vez supotildee uma unidade de avaliaccedilotildees e interpretaccedilotildees
Logo a leitura de um determinado estilo deve ser buscada na totalidade
enunciada da qual se depreende o ator da enunciaccedilatildeo o espaccedilo de atuaccedilatildeo e
consequentemente o efeito engendrado Para Discini (2009 p 30) ldquoestilo eacute corpo eacute
voz eacute caraacuteter de uma totalidaderdquo e portanto traz consigo um efeito de individualidade
que permite a construccedilatildeo de um cenaacuterio representativo em que figuram o ator a accedilatildeo
e o espaccedilo de atuaccedilatildeo Discini (2009) assim parte do princiacutepio de que o estilo eacute efeito
de sentido e portanto uma construccedilatildeo do discurso Segundo o pensamento da
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semioticista o efeito eacute determinado pela recorrecircncia de procedimentos na construccedilatildeo
do sentido o que deixa entrever do ponto de vista da produccedilatildeo do discurso como o
ator a accedilatildeo e o espaccedilo de atuaccedilatildeo satildeo tematizados e figurativizados
Os efeitos de sentido satildeo reveladores das intencionalidades presentes no
discurso Em virtude da presenccedila de determinados efeitos de sentido as figuras
presentes em um texto coadunam-se para concretizar sentidos especiacuteficos O efeito
de sentido portanto pode ser obtido atraveacutes de estrateacutegias discursivas como por
exemplo a referecircncia a pessoas a objetos a lugares e a caracteriacutesticas individuais
das personagens Estas estrateacutegias contribuem para a construccedilatildeo de diferentes
cenaacuterios que sugestionam efeitos especiacuteficos
Pensando-se nas trecircs obras de Virgiacutelio coacuterpus do nosso trabalho acreditamos
que a Roda de Virgiacutelio apresenta a partir dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente
os toacutepicos caracteriacutesticos de cada obra ou em termos semioacuteticos as principais
figuras e temas que caracterizam os trecircs cenaacuterios criados por Virgiacutelio
Ao entendermos o estilo como um fato diferencial e como um efeito de
individualidade que daacute voz e imprime uma singularidade ao discurso enunciado
podemos compreender como os diferentes estilos expostos pelos tratadistas antigos
podem ser lidos hoje a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica Para relembrar
dentre os antigos as obras eram classificadas a partir de trecircs tipos de elocuccedilatildeo a
tecircnue a moderada e a vigorosa que definiam respectivamente trecircs tipos de estilo o
singelo o meacutedio e o grandiloquente Virgiacutelio eacute conhecido por compor todos os trecircs
Nas Bucoacutelicas encontramos o humilde (singelo) nas Geoacutergicas o meacutedio e na Eneida
o grandiloquente A Roda de Virgiacutelio como jaacute citamos anteriormente eacute uma
classificaccedilatildeo medieval que mapeia portanto os trecircs tipos de estilo da Antiga Retoacuterica
deixando entrever os principais elementos dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por
Virgiacutelio Cabe-nos aqui avaliar como esses estilos satildeo engendrados em cada obra
deixando entrever efeitos de individuaccedilatildeo que lhe satildeo proacuteprios
No iniacutecio da primeira Bucoacutelica de Virgiacutelio Melibeu um pastor de gado fala a
Tiacutetiro outro pastor sobre o confisco de suas terras e sobre o fato de o amigo que
descansa agrave sombra de uma faia ter conseguido conservar as suas por ajuda de um
benfeitor
(Buc I hex 1-10) Meliboeus
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Tityre tu patulae recubans sub tegmine fagi siluestrem tenui Musam meditaris auena nos patriae finis et dulcia linquimus arua nos patriam fugimus tu Tityre lentus in umbra formosam resonare doces Amaryllida siluas
Tityrus
O Meliboee deus nobis haec otia fecit namque erit ille mihi semper deus illius aram saepe tener nostris ab ouilibus imbuet agnus ille meas errare boues ut cernis et ipsum ludere quae uellem calamo permisit agresti
Melibeu
Oacute Tiacutetiro tu reclinado agrave sombra de uma copada faia contemplas a musa silvestre na tecircnue flauta noacutes deixamos os limites da paacutetria e os doces campos da paacutetria noacutes fugimos tu oacute Tiacutetiro deitado agrave sombra ensinas os bosques a ressoar o nome da formosa Amariacutelis
Tiacutetiro
Oacute Melibeu um deus nos proporcionou este oacutecio De fato ele seraacute sempre um deus para mim seu altar sempre embeberaacute um tenro cordeiro de nossos apriscos Ele permitiu como vecircs que minhas vacas vagueassem e que eu tocasse na flauta agreste o que quisesse
A palavra bucoacutelica etimologicamente vem de boukolikaacute que em grego quer
dizer ldquocantos de boiadeirosrdquo Este era o nome dado agraves composiccedilotildees em que o
protagonista era o boieiro ou o vaqueiro A princiacutepio a composiccedilatildeo bucoacutelica
compreenderia como adverte Manuel de Paiva Boleacuteo (1936 p 16) uma forma de
poesia em que o boieiro ou vaqueiro seria o protagonista Nesse gecircnero figuram os
guardadores de gado os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas
sempre inseridos em um cenaacuterio ruacutestico campesino Fraguier (apud BOLEacuteO 1936 p
17) um dos teoacutericos sobre a poesia pastoril declara que os pastores satildeo homens do
campo que vivem singelamente que estatildeo sempre acompanhados de seus cajados e
rebanhos e que no momento de oacutecio ocupam-se de cantigas inocentes Com o
tempo os termos pastoral e pastoralismo tambeacutem passaram a designar as
composiccedilotildees que retratavam o pastor de cabras ou de ovelhas e por isso os termos
satildeo vistos como sinocircnimos de bucolismo O principal como menciona Boleacuteo (1936 p
18) eacute que esse tipo de composiccedilatildeo tenha uma essecircncia ou expressatildeo pastoril A
escolha do pastor como protagonista da cena bucoacutelica se deve ao fato de que cabe
ao pastor em seu momento de oacutecio os cantares singelos que expressam uma vida
essencialmente campestre
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O efeito de sentido singelo humilde estaacute presente neste excerto da primeira
bucoacutelica Vale destacar do seguinte excerto a expressatildeo ldquosub tegmine fagirdquo (agrave sombra
de uma copada faia) pois se refere ao costume que os pastores tecircm de nas eacutepocas
quentes protegerem-se do sol debaixo das aacutervores junto com os rebanhos O estilo
singelo eacute marcado dessa forma pela presenccedila dos pastores Tiacutetiro e Melibeu bem
como pela accedilatildeo de Tiacutetiro que se encontra deitado sob agrave sombra de uma frondosa
aacutervore enquanto toca na singela flauta uma muacutesica agreste Em resposta ao amigo
Melibeu Tiacutetiro afirma que pode desfrutar da sombra e do oacutecio enquanto suas vacas
vagueiam graccedilas a um deus que lhe proporcionou essa tranquilidade A temaacutetica
recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico diz respeito ao oacutecio dos pastores e estaacute
atrelada ao prazer do canto e ao locus amoenus lugar apraziacutevel em que figuram o
som da flauta as ovelhas cabras e aacutervores com sombras hospitaleiras
Eacute interessante que neste excerto da primeira bucoacutelica apareccedila na fala do
pastor Melibeu uma temaacutetica aparentemente contraacuteria agrave ideia de um lugar apraziacutevel
que eacute proposto pela poesia bucoacutelica Enquanto o pastor Tiacutetiro desfruta de um cenaacuterio
ameno Melibeu afirma que deixou os limites da paacutetria e os doces campos deixando
entrever que natildeo teve a mesma sorte que o feliz amigo Embora apareccedila uma temaacutetica
um pouco contraacuteria ao contexto singelo proposto pela poesia bucoacutelica devemos levar
em conta que toda depreensatildeo temaacutetica soacute eacute possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre as
figuras que se articulam e se encadeiam no interior do discurso formando uma rede
Com isso se pensarmos na trama figurativa de todo o poema bem como na
dominacircncia dos elementos notadamente bucoacutelicos podemos afirmar que o efeito
sugerido pelo contexto eacute predominantemente singelo
Logo observa-se que em um texto as muacuteltiplas significaccedilotildees de uma
determinada figura estatildeo sob o controle de um contexto em que se encaixam com
coerecircncia apenas algumas dessas possibilidades significativas
Pensando-se na totalidade discursiva foram destacados aqui os elementos que
datildeo corporalidade agrave voz simples do discurso bucoacutelico e que satildeo capazes de engendrar
a accedilatildeo dos atores bem como caracterizar o espaccedilo de atuaccedilatildeo das personagens O
efeito de individuaccedilatildeo pretendido eacute o humilde que se corporifica nas falas das
personagens bem como na espacialidade descrita
Com efeito o cenaacuterio presente na poesia pastoril difere do cenaacuterio encontrado
na poesia eacutepica Como observa Legrand (apud BOLEacuteO 1936 p 54-55) o ambiente
campestre pode contemplar um rochedo a espessura verde de um pequeno bosque
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uma fonte pinheiros olmos choupos carvalhos aves insetos etc Estas seratildeo
portanto figuras recorrentes na poesia de temaacutetica pastoril Mas eacute importante destacar
o modo como essas figuras se organizam e o modo como particularizam os temas que
abrangem a simplicidade e o viver ruacutestico do campo
Apoacutes a coleccedilatildeo de dez poemas de temaacutetica bucoacutelica Virgiacutelio compocircs as
Geoacutergicas obra classificada tradicionalmente como didaacutetica Mas ao compor um
poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo quis transmitir apenas conhecimentos
teacutecnicos sobre os trabalhos do campo tais como o tempo propiacutecio para realizar o
plantio e a colheita ou os procedimentos adequados para se castrar as colmeias Aliaacutes
se os criacuteticos da obra virgiliana se fixassem apenas nesse aspecto temaacutetico a obra
seria classificada como um tratado teacutecnico de agronomia todavia as Geoacutergicas
representam muito mais do que um simples compecircndio de aplicaccedilatildeo praacutetica sobre
meacutetodos a serem seguidos na agricultura jaacute que da totalidade de preceitos uacuteteis e
praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas aqueles que convecircm
agrave finalidade artiacutestica e poeacutetica
De acordo com Trevisam (2014 p 30) a palavra ldquodidaacuteticordquo remonta ao verbo
grego didaacutesco (lat doceo de mesma raiz indo-europeia) cujos sentidos oferecidos
em dicionaacuterio especializado incluem ldquoensinarrdquo e ldquoinstruirrdquo Assim de iniacutecio podemos
dizer que todo poema didaacutetico se compromete essencialmente com a instruccedilatildeo do
seu puacuteblico Os quatro cantos das Geoacutergicas satildeo organizados a partir de diferentes
temaacuteticas No primeiro livro fala-se da lavoura no segundo da arboricultura
sobretudo a viticultura no terceiro da pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no
quarto da apicultura como assim descreve Virgiacutelio no iniacutecio do Canto I
(Geo Canto I hex 1-5)
Quid faciat laetas segetes quo sidere terram uertere Maecenas ulmisque adiungere uitis conueniat quae cura boum qui cultus habendo sit pecori apibus quanta experientia parcis hinc canere incipiam
Agora comeccedilarei a celebrar o que faz as colheitas feacuterteis com que astros Mecenas conveacutem arar a terra e unir as videiras aos olmeiros que cuidados aos bois que conduta seguir para que seja mantido o rebanho quanta experiecircncia para as parcas abelhas
As Geoacutergicas apresentam um caraacuteter instrutivo proacuteprio do gecircnero da poesia
didaacutetica e empregam uma gama variada de modos discursivos tais como exposiccedilatildeo
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descriccedilatildeo narraccedilatildeo inserccedilatildeo de episoacutedios mitoloacutegicos faacutebulas etc aleacutem de contar
com a presenccedila de uma voz didaacutetica que se coloca como magister para ditar os
conhecimentos relativos agrave agricultura (TREVISAM 2014)
Pensando-se nessa temaacutetica de caraacuteter instrutivo os tratadistas antigos
nomearam para as Geoacutergicas o estilo meacutedio que eacute destinado a assuntos moderados
Logo o efeito de sentido mediano apoia-se dessa forma no conjunto de temas e
figuras utilizados Destacam-se alguns exemplos
(Geo I 176-177)
Possum multa tibi ueterum praecepta referre ni refugis tenuisque piget cognoscere curas
Posso contar-te muitos preceitos dos antigos se natildeo te esquivas nem te daacute fastio em conhecer pequenos cuidados
Nestes dois hexacircmetros antes de introduzir o tema dos cereais a voz poeacutetica
pede licenccedila para tratar de assuntos considerados menores e ainda no mesmo canto
essa voz continua a prever que se poderaacute achar despreziacutevel o toacutepico do cultivo da
lentilha da Peluacutesia
(Geo I 227-230)
Si uero uiciamque seres uilemque phaselum nec Pelusiacae curam aspernabere lentis haud obscura cadens mittet tibi signa Bootes incipe et ad medias sementem extende pruinas
Se plantares a ervilha e o humilde feijatildeo e natildeo desprezares cuidar da lentilha da Peluacutesia6 o Boieiro7 ao se pocircr dar-te-aacute sinais bem claros
comeccedila e prolonga a semeadura ateacute o meio das geadas Sobre o Canto I das Geoacutergicas aliaacutes vale destacar as palavras de Trevisam
(2014 p 190-191)
O livro I das Geoacutergicas virgilianas descortina ao leitor o espetaacuteculo da luta humana pela sobrevivecircncia diaacuteria fruto do trabalho de nossas matildeos segundo descrito pelo poeta eacute essa a parcela da obra em que se concentram preceitos didaacuteticos em nexo com o plantio dos campos cerealistas donde nos vem o patildeo siacutembolo por excelecircncia da vida material civilizada Nesse contexto como muitas e por vezes
6 Peluacutesio ou Boca Peluacutesia cidade antiga do baixo Egito 7 Boieiro uma constelaccedilatildeo do hemisfeacuterio celestial norte
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penosas satildeo descritas as vaacuterias operaccedilotildees de cultivo necessaacuterias a exemplo da primeira arada do solo (v 43-46) da escolha das sementes (v 197-200) da feitura de uma eira para debulha das espigas (v 176-186) e da adubaccedilatildeo (v 80)
Com efeito o cenaacuterio presente no Canto I das Geoacutergicas deixa entrever
sobretudo a importacircncia do trabalho e as teacutecnicas de cultivo desde o preparo do solo
ateacute sua adubaccedilatildeo e o iniacutecio do plantio A voz didaacutetica presente no texto coloca-se na
posiccedilatildeo de um magister que presta orientaccedilotildees sobre esse tema O efeito de sentido
engendrado eacute de caraacuteter instrutivo e os assuntos tratados satildeo considerados triviais O
estilo mediano portanto constroacutei-se a partir dessa recorrecircncia temaacutetica e das figuras
que lhe datildeo corporalidade no enunciado
Como marco da literatura latina a Eneida foi escrita a pedido do imperador
Otaviano8 Assim a epopeia de Virgiacutelio busca enaltecer Roma senhora do mundo e
consequentemente engrandecer a figura de Otaviano como princeps O estilo
reconheciacutevel eacute o sublime devido a recorrecircncia de temas e figuras que datildeo ao discurso
o efeito de sentido grandiloquente proacuteprio da eacutepica
(Eneida Canto I ndash hex 1- 11)
Arma uirumque cano Troiae qui primus ab oris Italiam fato profugus Lauinaque uenit litora ndash multum ille et terris iactatus et alto ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram multa quoque et bello passus dum conderet urbem inferretque deos Latio genus unde Latinum Albanique patres atque altae moenia Romae Musa mihi causas memora quo numine laeso quidue dolens regina deum tot uoluere casus insignem pietate uirum tot adire labores impulerit Tantaene animis caelestibus irae
Canto as armas e o varatildeo que impelido pelo destino primeiro veio das praias de Troia ateacute agrave Itaacutelia e ao litoral Laviacutenio ele foi muito perseguido tanto em terra como no mar e pela forccedila dos deuses e pela ira lembrada da cruel Juno ele sofreu muito na guerra ateacute que natildeo fundasse uma cidade e introduzisse os deuses no Laacutecio onde surgiriam a raccedila latina e os chefes Albanos e as muralhas da soberba Roma Oacute musa recorda-me as causas por que a divindade ofendida ou por qual maacutegoa a rainha dos deuses obrigou um varatildeo notaacutevel por
8 Caio Otaacutevio filho de famiacutelia senatorial tornou-se Caio Juacutelio Ceacutesar Otaviano herdeiro legal e poliacutetico de Ceacutesar em 27 aC jaacute firmemente estabelecido como senhor do mundo tornou-se Ceacutesar Augusto (BOWDER 1980 p42)
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sua piedade a correr tantos perigos e a enfrentar tantos trabalhos Por que tanta ira nos espiacuteritos celestes
A eacutepica eacute marcada como se vecirc no pequeno excerto pela figura do heroacutei e suas
aventuras Eneias o ilustre varatildeo cumpre seu destino ao sair das praias de Troia e
chegar ao litoral Laviacutenio na Itaacutelia onde se construiratildeo as muralhas da soberba Roma
A musa a ser lembrada eacute a da poesia eacutepica que inspira temas grandiosos sobre as
aventuras do heroacutei O efeito de individuaccedilatildeo apoia-se dessa forma na recorrecircncia de
figuras que contribuem para a corporalidade do eacutepico Depreende-se o estilo
grandiloquente a partir da imagem construiacuteda do heroacutei bem como por suas accedilotildees
desde que saiu das praias de Troia e deu iniacutecio agrave sua empreitada O estilo marca um
efeito de individualidade que pode ser captado pela recorrecircncia temaacutetica e figurativa
presente no discurso O efeito grandiloquente emerge portanto de um contexto que
lhe daacute corporalidade para existir
Ao falar em estilo falamos portanto em unidade pensando-se na recorrecircncia
temaacutetica e figurativa predominante nos discursos bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Para cada
estilo singelo meacutedio e grandiloquente haacute um efeito de individuaccedilatildeo marcado pela
recorrecircncia de temas e figuras e pelas relaccedilotildees de sentido detectadas que
permanecem no discurso e deixam entrever uma unidade A recorrecircncia de temas e
figuras engendram assim uma previsibilidade e um modo de ser dos textos
Nosso objetivo eacute enfim demonstrar que eacute possiacutevel descrever os trecircs estilos
singelo meacutedio e grandiloquente tendo como apoio teoacuterico a Semioacutetica Greimasiana
Para tanto buscaremos em excertos representativos das trecircs obras de Virgiacutelio a
recorrecircncia temaacutetica e figurativa que imprime assim um modo proacuteprio de dizer
configurando o efeito de individuaccedilatildeo de cada estilo
Em Virgil in the Renaissance Wilson-Okamura (2010 p 90) fala-nos sobre o
mito que cerca a Roda de Virgiacutelio O criacutetico menciona que a Roda tem origem
medieval pois sua expressatildeo se origina no iniacutecio do seacuteculo XIII com Joatildeo de
Garlacircndia mas para o criacutetico embora o termo ldquoRoda de Virgiacuteliordquo seja mencionado em
alguns estudos do Renascimento o uso ou a menccedilatildeo que se faz agrave Roda carece de
precisatildeo sobre o termo Segundo Wilson-Okamura muitos estudiosos escrevem
sobre a Roda como se ela fosse uma progressatildeo de gecircneros comeccedilando com o
gecircnero pastoral (Bucoacutelicas) passando pelo gecircnero didaacutetico (Geoacutergicas) e terminando
com o eacutepico (Eneida) Na opiniatildeo do criacutetico isso faz tanto sentido quanto dizer que
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uma roda de cores comeccedila com o vermelho e termina com o violeta jaacute que por
definiccedilatildeo as rodas natildeo tecircm pontos finais pois trazem uma ideia de continuidade de
um movimento circular ao redor de um eixo Wilson-Okamura (2010 p 91) esclarece-
nos assim que a Roda natildeo diz nada sobre gecircneros nem sobre uma progressatildeo entre
eles Os aros concecircntricos presentes na Roda satildeo organizados de acordo com os
estilos e natildeo de acordo com os gecircneros Aleacutem disso o objetivo da Roda para Wilson-
Okamura natildeo eacute ditar qual gecircnero deve aparecer primeiro mas sim mostrar como os
caracteres satildeo dispostos em diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo por exemplo os poemas
no estilo mediano natildeo devem apresentar espadas ou pastores porque espadas
pertencem ao contexto do estilo grave enquanto os pastores satildeo parte de um cenaacuterio
que eacute proacuteprio do estilo humilde
De acordo com Wilson-Okamura (2010) a Roda de Virgiacutelio natildeo eacute um termo
usado pelos autores no Renascimento pois se trata de uma concepccedilatildeo acerca da
carreira de Virgiacutelio como extensatildeo de todos os niacuteveis de estilo que ecoaram nos
comentaacuterios do Renascimento
Segundo o criacutetico Virgiacutelio criou os seus trecircs trabalhos em um triacuteplice estilo
Para as Bucoacutelicas ele caracteriza as coisas em um estilo delicado registrando o
cenaacuterio com caracteres amenos Nas Geoacutergicas o poeta vale-se de um estilo
mediano utilizando caracteres que registram um cenaacuterio moderado e na Eneida lanccedila
matildeo de caracteres graves para registrar o cenaacuterio das guerras e batalhas O que
define a carreira de Virgiacutelio para Wilson-Okamura (2010) eacute o domiacutenio dos trecircs estilos
pois o que define o sucesso de Virgiacutelio natildeo eacute a sequecircncia de gecircneros mas sim a
representaccedilatildeo que o poeta fez de cada estilo sendo por fim esta forma de
representaccedilatildeo e natildeo os gecircneros o que os poetas e criacuteticos modernos devem apreciar
na carreira de Virgiacutelio
Embora Wilson-Okamura fale de caracteres proacuteprios a cada estilo e natildeo
mencione termos semioacuteticos tais como recorrecircncia temaacutetica e figurativa o que ele
pretendeu destacar sobre os trecircs tipos de estilo vai ao encontro daquilo que
acreditamos o de que satildeo elementos engendrados no discurso e que mantecircm um
caraacuteter de individuaccedilatildeo Quando Wilson-Okamura muito bem destaca os diferentes
contextos de atuaccedilatildeo das personagens ele quer com isso mostrar a coerecircncia de
figuras que satildeo proacuteprias a cada discurso O criacutetico mostra ainda o conteuacutedo da Roda
arranjado verticalmente
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Tabela 1- The spokes of Virgilrsquos Wheel
Lowly (humilis) style Middle (mediocris) style Weighty (grauis) style
Shepherd at ease Farmer Soldier ruler
Tityrus Meliboeus Triptolemus Coelius Hector Ajax
Sheep Cow Horse
Crool Plow Sword
Pasture Field city camp
Beech apple pear Laurel cedar
Fonte Extraiacutedo de Wilson-Okamura 2010 p 91
Com isso Wilson-Okamura demonstra que as colunas da Roda satildeo
organizadas de acordo com os estilos e natildeo de acordo com os gecircneros jaacute que o
objetivo da roda natildeo eacute ditar qual gecircnero deve ser apresentado primeiro mas sim
ensinar o que eacute proacuteprio de cada cenaacuterio de atuaccedilatildeo
Concordamos portanto com o pensamento do criacutetico e destacamos ainda
que os caracteres por ele mencionados devem ser entendidos a partir da Semioacutetica
como figuras que se coadunam para atuaccedilatildeo em cenaacuterios especiacuteficos seja bucoacutelico
didaacutetico ou eacutepico
Embora o esquema circular tripartido de Joatildeo de Garlacircndia tenha recebido o
nome de A Roda de Virgiacutelio muito se tem discutido acerca dos elementos colocados
em seus trecircs aros concecircntricos
Em Literary Names Personal Names in English Literature Alastair Fowler
(2012 p29) discorre acerca dos nomes proacuteprios presentes na Roda de Virgiacutelio Os
nomes citados no estilo grave por exemplo satildeo Hector e Ajax personagens de
Homero (seacutec VIII aC) pois neste estilo cabem nomes lendaacuterios e histoacutericos Por isso
a Eneida a eacutepica virgiliana eacute associada a este estilo9 Enquanto isso Triptolemus e
Coelius (agraves vezes Caelius) nomes referenciados no estilo mediano satildeo nomes
comuns e que portanto de acordo com Fowler assemelham-se ao contexto de um
estilo moderado ainda que os nomes tenham alguma alusatildeo lendaacuteria como no caso
de Triptolemus heroacutei de Elecircusis - regiatildeo da Aacutetica Ocidental na Greacutecia - que foi
9 Aleacutem disso em Virgiacutelio haacute menccedilatildeo a Ajax no Canto I hex 41 e Canto II hex 414 A figura de Heitor (Hector) jaacute aparece em vaacuterios contextos Canto I- hex 99 483 750 Canto II ndash hex 270 275 282 522 Canto III- hex 312 319 343 Canto V- hex 371 Canto VI- hex 166 Canto IX- hex 155 Canto XI- hex 289 Canto XII- hex 440 Aleacutem de Hectoreus em Canto I ndash hex 273 Canto II- hex 543 Canto III- hex 304 488 Canto V- hex 190 634
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agraciado com o dom da agricultura no Hino Homeacuterico a Demeacuteter I10 Diz-se que em
Elecircusis aliaacutes era comum o culto agrave deusa agriacutecola Demeacuteter Triptolemus eacute um nome
portanto relacionado ao contexto da agricultura presente nas Geoacutergicas ainda que
natildeo seja necessariamente uma personagem de Virgiacutelio Em se tratando do estilo
simples seguindo o pensamento de Fowler Tiacutetiro e Melibeu satildeo nomes comuns de
pastores presentes tanto em Teoacutecrito (300-260 aC) poeta grego do Periacuteodo
Heleniacutestico como em Virgiacutelio Fowler aponta assim para o tipo de nomeaccedilatildeo
especiacutefica a partir de cada estilo e seu contexto correspondente o que vai ao encontro
da ideia exposta por Wilson-Okamura a de que os caracteres se moldam a partir de
seu contexto de atuaccedilatildeo
Podemos observar que as obras de Virgiacutelio foram identificadas com os trecircs
tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica A Roda de Virgiacutelio no seacuteculo XIII
mapeando essa identificaccedilatildeo aponta em cada um de seus aros concecircntricos os
caracteres coerentes para cada contexto de atuaccedilatildeo seja ele singelo meacutedio ou
grandiloquente o que deixa entrever que para cada cenaacuterio construiacutedo haacute figuras
especiacuteficas que lhe datildeo corporalidade Com isso entendemos cada estilo como um
efeito de individuaccedilatildeo como uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa depreensiacutevel do
discurso
10 Este eacute um dos quatro hinos homeacutericos mais extensos Satildeo chamados homeacutericos porque pertencem ao gecircnero eacutepico e por apresentarem uma teacutecnica de composiccedilatildeo anaacuteloga agrave obra homeacuterica Na realidade sua autoria eacute desconhecida
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3 A criacutetica virgiliana
31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida
Na introduccedilatildeo dos seus dois conjuntos de ensaios Vergilrsquos Eclogues e Vergilrsquos
Georgics publicados em 2008 Katharina Volk discorre sobre as diferentes
abordagens acadecircmicas acerca da vida e obra de Virgiacutelio Procuramos destacar aqui
os comentaacuterios que julgamos mais relevantes
Volk (2008) afirma assim que haacute leituras divergentes em relaccedilatildeo agraves trecircs obras
virgilianas e que realizar um panorama geral dos estudos virgilianos eacute uma tarefa
assustadora devido agraves inuacutemeras interpretaccedilotildees No entanto segundo a estudiosa a
discussatildeo da criacutetica virgiliana apesar de divergente e ampla merece destaque Ela
enfatiza entatildeo as abordagens acadecircmicas a partir da deacutecada de 70
Segundo Volk o estudo das Bucoacutelicas e das Geoacutergicas de Virgiacutelio ficaram um
bom tempo agrave margem dos estudos sobre Eneida pois eram obras citadas como
exemplo de menor gecircnero e fruto do trabalho de um poeta jovem As Bucoacutelicas
frequentemente eram citadas como um livro de preparaccedilatildeo para a grande eacutepica a
obra-prima em que a vida e o trabalho de Virgiacutelio alcanccedilaram segundo a criacutetica
tradicional o seu aacutepice Embora o gecircnero bucoacutelico tenha usufruiacutedo de acordo com
Volk periacuteodos de grande popularidade em vaacuterios pontos da histoacuteria da literatura
ocidental os poemas pastoris de Virgiacutelio eram estudados menos frequentemente que
a Eneida e segundo a especialista as publicaccedilotildees sobre a eacutepica virgiliana
ultrapassavam de longe os primeiros poemas Para Volk isso natildeo quer dizer no
entanto que natildeo se tenha nas Bucoacutelicas e Geoacutergicas um trabalho consideraacutevel Ela
destaca portanto os uacuteltimos trinta anos ou mais que foram contemplados com
publicaccedilotildees de grande criacutetica Dentre as publicaccedilotildees de destaque Volk menciona
Coleman (1977) Clausen (1994) e numerosos livros e artigos representativos de
ambas as obras virgilianas
O aumento de publicaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves duas obras consideradas ldquomenoresrdquo
de Virgiacutelio deve-se de acordo com Volk ao desenvolvimento e avanccedilo dos estudos
da Literatura Latina no final do seacuteculo XX e iniacutecio do seacuteculo XXI Hoje apesar da
multiplicidade de abordagens dificultar uma visatildeo geral acerca da obra virgiliana
parece possiacutevel segundo a especialista discernir ao menos duas principais vertentes
criacuteticas na obra do poeta mantuano
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A primeira vertente envolve as leituras que para Volk podem ser chamadas de
ldquoideoloacutegicasrdquo Satildeo as abordagens acadecircmicas baseadas na ideia de que os poemas
de Virgiacutelio foram concebidos para transmitir uma mensagem que o criacutetico de uma
certa forma esforccedila-se para descobrir Nesta mensagem subliminar pode-se
considerar a situaccedilatildeo social e poliacutetica em que a obra foi concebida ou avaliaccedilotildees
criacuteticas acerca da posiccedilatildeo social e poliacutetica de Virgiacutelio Ao poeta assim eacute creditada
uma visatildeo positiva ou otimista natildeo soacute para a vida pastoril apresentada em seu poema
como tambeacutem para a ascendecircncia de Otaviano
A partir da deacutecada de 70 os criacuteticos passaram a ver certa ambivalecircncia e ateacute
certo pessimismo nas Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida demonstrando que o poeta natildeo
era totalmente a favor da poliacutetica de Otaviano Segundo Virgiacutenia Soares (1984 p 173)
A criacutetica respeitante agrave obra de Virgiacutelio conta cerca de dois mil anos Cada eacutepoca procurou na Eneida o poema que se ajustava agraves suas vivecircncias Por isso tecircm sido tantas e tatildeo diferentes contraditoacuterias mesmo as abordagens interpretativas do poema Eacutepocas houve confiantes no futuro e na funccedilatildeo regeneradora de um estado providencial e organizado que na Eneida viram o poema da glorificaccedilatildeo de Augusto e da missatildeo civilizadora de Roma
Assim as leituras de vertente ldquoideoloacutegicardquo concentraram-se em determinar as
nuances ldquootimistasrdquo ou ldquopessimistasrdquo das obras de Virgiacutelio demonstrando se os
escritos do poeta eram coerentes ou natildeo com o programa poliacutetico de Otaviano No
entanto segundo Volk houve uma reavaliaccedilatildeo dos estudos virgilianos nos uacuteltimos
anos e os especialistas inclinaram-se mais a uma interpretaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a
Virgiacutelio e a poliacutetica de sua eacutepoca
A segunda vertente por fim envolve as ldquoleituras literaacuteriasrdquo das obras virgilianas
Finalmente para Volk as criacuteticas mais atuais passaram a dar enfoque agraves questotildees
de poeacutetica ou seja em como Virgiacutelio compromete-se a inscrever seus proacuteprios
esforccedilos dentro de uma particular tradiccedilatildeo literaacuteria Nesta abordagem estatildeo presentes
as discussotildees sobre os gecircneros dos poemas a intertextualidade e as diferentes
formas como cada obra se realiza
No entendimento de Volk as duas vertentes podem se complementar Enquanto
as leituras ideoloacutegicas preocupam-se com o papel do poeta e sua visatildeo poliacutetica a
vertente literaacuteria tem muito a dizer sobre os poemas em si Mas segundo ela muito
se tem a dizer ainda sobre a poesia de Virgiacutelio
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Nos anos 70 houve um suacutebito florescimento dos estudos das Bucoacutelicas de
Virgiacutelio especialmente no mundo da Liacutengua Inglesa em que Putnam (1970) publicou
a primeira monografia e logo foi seguido por Berg (1974) Leach (1974) Van Sickle
(1978) e Alpers (1979) assim como a criacutetica de Coleman em 1977 Alguns fatores
contribuiacuteram segundo Volk para esse florescimento primeiro os estudos literaacuterios
assistiram a um aumento consideraacutevel de novas composiccedilotildees da poesia pastoril
(bucoacutelica) o que fez Eleanor W Leach a proclamar no prefaacutecio do seu livro em 1974
uma nova idade de ouro da criacutetica da poesia bucoacutelica segundo inspirados pelo New
Criticism os estudiosos encontraram nos enigmaacuteticos e complexos poemas pastoris
de Virgiacutelio um terreno feacutertil para interpretaccedilotildees simboacutelicas terceiro a leitura
pessimista que se fez da eacutepica virgiliana em relaccedilatildeo agrave poliacutetica de Otaviano na deacutecada
de 60 ampliou o interesse dos estudiosos pelas outras duas obras
Volk cita algumas leituras pessimistas das Bucoacutelicas e entre elas estatildeo
Putnam (1970) Leach (1974) e Segal (1981) com uma coleccedilatildeo de artigos bucoacutelicos
de Teoacutecrito e Virgiacutelio publicados originalmente entre 1965 e 1977 aleacutem de Boyle
(1986) e MOLee (1989) entre outros Estas obras segundo a especialista refletem
uma visatildeo das obras pastoris em geral e das Bucoacutelicas de Virgiacutelio trazem a ideia de
uma fantasia evasiva rural
A ideia de que Virgiacutelio nas Bucoacutelicas tenha criado uma espeacutecie de ldquopaisagem
espiritualrdquo que ele chamou de Arcaacutedia foi formulada por Bruno Snell em 1945 o que
influenciou muitos estudos Entre os pesquisadores representativos desse tipo de
visatildeo utoacutepica das Bucoacutelicas estaacute Friedrick Klinger que em 1967 publicou uma
monografia com seus estudos e reflexotildees acerca da obra de Virgiacutelio
Nas interpretaccedilotildees pessimistas no entanto as Bucoacutelicas nunca apresentam
um mundo bucoacutelico ideal mas sempre um que estaacute em perigo foi perdido ou estaacute
sendo abandonado Os criacuteticos aos poucos foram desconstruindo a visatildeo de Snell
chamando a atenccedilatildeo para contradiccedilotildees poliacuteticas apresentadas nos poemas pastoris
de Virgiacutelio Um latinista alematildeo Ernst Schmidit todavia ataca a Arcaacutedia por um
acircngulo diferente Na visatildeo de Schmidit qualquer leitura ideoloacutegica dos poemas de
Virgiacutelio baseava-se em mal-entendidos As Bucoacutelicas segundo ele natildeo satildeo
panegiacutericos poliacuteticos louvor do campo ou algum estado ideal de vida humana tal
como a Idade de Ouro ou a Arcaacutedia para Schmidit os poemas satildeo sobre a proacutepria
poesia
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Muitas das publicaccedilotildees acadecircmicas das uacuteltimas deacutecadas segundo Volk
preocupavam-se mais com as Bucoacutelicas como poesia ou com o que a obra tem a dizer
sobre poesia do que o posicionamento poliacutetico do poeta Dentre as anaacutelises
formalistas sobre o estilo e a linguagem nas bucoacutelicas de Virgiacutelio incluem-se Lipka
(2001) os ensaios de RGNisbet (1991) e Rumpf (1999) Sobre o jogo etimoloacutegico
das Bucoacutelicas destaca-se ainda o trabalho de OrsquoHara (1996) Para Volk questotildees
acerca do gecircnero bucoacutelico tecircm sido sempre um foco de reflexatildeo nos estudos das
Bucoacutelicas Hubbard (1998 p18) insistindo na construccedilatildeo intertextual do poema
pastoril propocircs que o gecircnero bucoacutelico fosse constituiacutedo pelo posicionamento de cada
poeta diante de seu antecessor Aleacutem disso Volk tambeacutem destaca o estudo de Breed
(2006) que examina nas Bucoacutelicas a suposta cultura da oralidade dos seus pastores
protagonistas Dentre as obras de criacutetica sobre o gecircnero bucoacutelico tambeacutem
sublinhamos o estudo de Joatildeo Pedro Mendes em Construccedilatildeo e arte nas Bucoacutelicas de
Virgiacutelio assim como o trabalho de Alexandre Hasegawa em Os limites do gecircnero
bucoacutelico em Vergiacutelio
No que diz respeito agrave criacutetica das Geoacutergicas destacamos o pensamento de Ruy
Mayer (1948 p 15) que afirma que a exaltaccedilatildeo do trabalho e da prece eacute a essecircncia
filosoacutefica das Geoacutergicas jaacute que a obra
relaciona-se com um objetivo social ou antes poliacutetico restaurar o prestiacutegio da vida agriacutecola um dos pilares da ordem nova que Augusto se propunha a instituir e com um objetivo teacutecnico ensinar os bons preceitos agronocircmicos os meacutetodos racionais da cultura e da exploraccedilatildeo pecuaacuteria envolvendo a doutrina na delicada trama da poesia o meio de transmissatildeo mais apropriado para o gosto e para os usos da eacutepoca
Sublinha-se tambeacutem o pensamento de Santos (2007 p 17) que atesta que ao
cantar a terra e os encantos da vida rural Virgiacutelio talvez pudesse incentivar a volta ao
campo de milhares de camponeses que estavam desempregados na cidade e
consequentemente poder-se-ia ldquorestaurar a agricultura itaacutelica que se encontrava em
plano inferior devido agraves guerras civisrdquo
Mecenas o patrono das letras foi um auxiliar uacutetil e leal de Otaviano Atuando
como intermediaacuterio em vaacuterios assuntos ele foi encarregado da administraccedilatildeo de
Roma Segundo a tradiccedilatildeo foi ele quem sugeriu o poema das Geoacutergicas a Virgiacutelio
pois como afirma-nos Santos (2007 p18) isso corresponderia ao programa poliacutetico
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de Otaviano o retorno agrave agricultura Na eacutepoca a celebraccedilatildeo do trabalho agriacutecola e do
ofiacutecio do lavrador eram bastante significativos jaacute que a agricultura era uma das bases
da grandeza de Roma pois ocupava importante posiccedilatildeo na economia do Oriente e
era uma fonte de riqueza importante para os conquistadores
Para La Penna (1988 p71-72 apud Santos 2007 p18) seria um erro supor
que a obra de Virgiacutelio serviria como guia para os agricultores da Itaacutelia pois o que se
desejava na verdade era um impulso ideal que favorecesse um retorno agrave terra com
confianccedila no trabalho e no Estado romano-itaacutelico Grimal (1992 p123) afirma ainda
que Mecenas eacute apenas o vento que empurra a embarcaccedilatildeo natildeo sendo portanto seu
piloto nem comandante O patrono das letras assim eacute destacado neste pequeno
excerto das Geoacutergicas (Canto II 39-41)
Tuque ades inceptumque una decurre laborem o decus o famae merito pars maxima nostrae Maecenas pelagoque uolans da uela patenti
E tu estaacutes presente e percorre o trabalho empreendido oacute honra Mecenas a melhor parte da minha fama com justiccedila voando daacute velas ao extenso mar
Segundo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos Mecenas mobilizava talentos como
Virgiacutelio e Horaacutecio a serviccedilo do regime propondo-lhes alguns temas Para Santos
(2007 p 21) talvez estes poetas ldquotivessem se agrupado ao redor de Mecenas por
encontrarem nele uma concepccedilatildeo de vida e de arte Provavelmente o novo regime
correspondesse agraves suas aspiraccedilotildeesrdquo
Na visatildeo de Ruy Mayer (1948 p19-20) em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo das
Geoacutergicas
eacute provaacutevel que o Poeta independente de qualquer incitamento sentisse a gravidade da decadecircncia agriacutecola da Itaacutelia e considerasse obra de utilidade nacional atrair agrave atividade agraacuteria muitos dos que a haviam deixado Mas como opina Skrine nem os propoacutesitos poliacuteticos de Augusto nem a intenccedilatildeo da iniciativa de Virgiacutelio de acudir ao agricultor romano explicam as Geoacutergicas O que explica esta incomparaacutevel obra de arte eacute o amor de Virgiacutelio pelo seu assunto o seu encanto pela Natureza a sua afeiccedilatildeo pelas fainas do campo a sua ternura pelos animais e pelas plantas tudo enfim quanto Saint-Beauve definiu magistralmente no capiacutetulo do seu ceacutelebre estudo que se intitula De quoi se compose le geacutenie et lrsquoart drsquoum Virgile
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No que concerne agrave Eneida a eacutepica virgiliana tem sido considerada pela tradiccedilatildeo
como um canto aos novos tempos do Impeacuterio jaacute que desde o anuacutencio de sua
concepccedilatildeo Otaviano colocava grandes esperanccedilas em seu projeto
Foi na eacutepoca em que Otaviano foi nomeado Ceacutesar Augusto portanto que os
escritores encontraram o que Leoni (1969 p 65) chama de completa harmonia pois
com Otaviano ao poder Roma entrou numa eacutepoca de paz tatildeo almejada depois das
tormentas das guerras civis Os feitos do imperador bem como sua poliacutetica
equilibrada e pacificadora exerceram influecircncia nas artes e literatura Deve-se
destacar que
A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)
Segundo Funari (2001 p 100)
Virgiacutelio foi o grande poeta eacutepico latino tendo composto na eacutepoca do
imperador Augusto (seacuteculo I aC) a Eneida um poema que contava
as origens heroicas do povo romano descendente dos troianos Na
mesma eacutepoca Tito Liacutevio escrevia uma monumental Histoacuteria de Roma
desde a fundaccedilatildeo ateacute Augusto Em ambos os casos as obras
representavam bem os planos de Augusto para glorificar as origens e
a histoacuteria de expansatildeo e domiacutenio romano do mundo
Virgiacutelio trama portanto em sua eacutepica um conjunto de situaccedilotildees e histoacuterias
remetendo-nos agrave nostalgia de tempos lendaacuterios em Roma Narram-se assim as
aventuras de Eneias heroacutei que possui aleacutem da sua origem humana uma linhagem
divina pois sua matildee eacute Vecircnus a deusa do amor O heroacutei em suas aventuras eacute guiado
pelo fatum (destino) que o leva a experimentar e a enfrentar o que lhe eacute apresentado
ao longo do caminho Sabe-se por fim que
A fundaccedilatildeo da nova estirpe que daraacute origem a Roma e ao Impeacuterio eacute uma missatildeo querida pela providecircncia divina reservada a um heroacutei perfeito ao heroacutei piedoso e paciente que se resigna a perder a esposa na ruiacutena de Troia a renunciar ao amor de Dido a obedecer ponto por
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ponto agraves ordens divinas a fim de ser porta-voz da vontade celeste (PARATORE 1983 p 402)
Desde a saiacuteda de Troia incendiada Eneias jaacute sabe que estaacute destinado a fundar
uma ldquoNova Troiardquo Ele seraacute o responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses
do lar em solo latino Portanto ao longo da narraccedilatildeo o heroacutei tenta fazer cumprir o
seu destino
Dividida em doze cantos a epopeia virgiliana segue o modelo da Iliacuteada e a
Odisseia de Homero Segundo Antonio Medina Rodrigues (2005 p13) embora
Homero tenha sido o modelo os guerreiros da Iliacuteada adotam uma postura narciacutesica
enquanto os guerreiros da Eneida satildeo marcados pela pietas de Eneias
Sobre isso vale aqui destacar o seguinte comentaacuterio de Andreacute Bellesort (1949
p 261 apud THAMOS 2011 p 49 nota 16)
A Eneida natildeo seria o grande poema de Roma e da civilizaccedilatildeo latina se natildeo tivesse um interesse universal Natildeo lhe compreendemos todas as belezas e toda a majestade que nos reportam agraves Antiguidades romanas e ao Impeacuterio mas afora circunstacircncias histoacutericas que poderiacuteamos desconhecer ela eacute uma dessas poucas obras nas quais a menos que a si mesma se renegue a humanidade se reconhece junto com a natureza e em que experimentamos um maravilhoso prazer contemplando o espetaacuteculo de nossas proacuteprias miseacuterias Ela nos oferece com os encantos da mais fina e vigorosa arte emoccedilotildees profundamente humanas
Assim a Eneida eacute ao lado da Iliacuteada e da Odisseia de Homero um dos maiores
eacutepicos da Literatura Universal Soares (1984) nomeia alguns dos estudos sobre a
Eneida The two voices of Virgils Aeneid (A PARRY) Linspiration tragique de
lEneacuteide (W S MAGUINNESS) The pessimism of the eighth Aeneid (CD S
WIESEN) An interpretation of the Aeneid (W CLAUSEN visatildeo pessimista) A study
of Vergils Aeneid (W R JOHNSON) Le poegraveme de linquieacutetude historique (J-P
BRISSON) A outra face de Eneias (W S MEDEIROS) Aeneas desairing (W W
DE GRUMMOND) Para a criacutetica a lista poderia se alongar e ainda assim os criacuteticos
natildeo esgotariam os temas presentes na epopeia latina Segundo a tradiccedilatildeo a eacutepica
virgiliana assim que foi publicada afirmou-se como a mais alta expressatildeo artiacutestica e
cultural que o mundo romano jamais produzira Sobre a poeacutetica de Virgiacutelio na Eneida
destacamos o estudo de Thamos As armas e o varatildeo (2011) Valendo-se dos
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recursos da Poeacutetica o criacutetico analisa a obra de Virgiacutelio do ponto de vista da expressatildeo
buscando o entendimento acerca da vocaccedilatildeo imageacutetica do texto latino
O que pensar portanto desta rede de informaccedilotildees que os bioacutegrafos e
estudiosos de Virgiacutelio reuniram Apesar da curiosidade que a vida e o posicionamento
poliacutetico do poeta possam despertar acreditamos que um estudo sobre a obra de
Virgiacutelio contemplando-se a sua poeacutetica a construccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico
dos textos possa render discussotildees para aleacutem de enigmas e posicionamentos que
satildeo externos ao texto Embora natildeo desmereccedilamos os estudos da vertente ideoloacutegica
valemo-nos daqueles que nos auxiliam a pensar o texto claacutessico do ponto de vista da
expressatildeo contribuindo assim para a nossa leitura semioacutetica das obras virgilianas
32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho
Segundo Andrew Laird (2010 p 138) a partir de meados de 1600 a palavra
italiana para carreira carriera havia se associado a uma vida de trabalho muito antes
do seu equivalente em inglecircs adquirir o mesmo sentido no iniacutecio do seacuteculo XIX De
fato o primeiro uso atestado de carriera estava relacionado agrave carreira literaacuteria No
prefaacutecio do seu Trattato dellarte e dello stile del dialogo (1662) o historiador e poeta
Pietro Sforza Pallavicino expressou os seus agradecimentos ao Bispo de Fermo por
ter encorajado a sua infacircncia na carreira das letras (la mia puerizia nella carriera
delle lettere)
Carriera como o latim via carraria da qual deriva originalmente denotava uma
estrada de carruagem ou faixa para um veiacuteculo com rodas (carrus) Para Laird (2010
p138) este significado acaba por ter uma ligaccedilatildeo feliz com a ideia de carreira literaacuteria
e segundo o criacutetico eacute improvaacutevel que isso seja coincidecircncia jaacute que na Idade Meacutedia
a mais influente carreira literaacuteria de todas foi visualizada como uma roda - a Rota
Vergilii ou Rota Vergiliana (a Roda de Virgiacutelio) Como jaacute mencionado aqui trata-se
de um arranjo das obras de Virgiacutelio pensando-se em seus respectivos temas e estilos
em um diagrama circular que parece ter se desenvolvido a partir do uso de rota como
sineacutedoque para a imagem claacutessica da carruagem das Musas uma imagem mediada
pelos professores da antiguidade tardia Segundo a tradiccedilatildeo quando Virgiacutelio concebe
seu cursus poeacutetico como um triunfo militar na abertura do Canto III das Geoacutergicas ele
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se vecirc como um vencedor coroado com palmas que vai colocar cem carruagens em
movimento Trata-se de uma passagem em que Virgiacutelio reconhece a importacircncia da
cultura grega para a elevaccedilatildeo literaacuteria latina e tambeacutem anuncia a construccedilatildeo de um
templo para Ceacutesar Augusto
(Geo Canto III hex 10-18) primus ego in patriam mecum modo uita supersit Aonio rediens deducam uertice Musas primus Idumaeas referam tibi Mantua palmas et uiridi in campo templum de marmore ponam propter aquam tardis ingens ubi flexibus errat Mincius et tenera praetexit harundine ripas In medio mihi Caesar erit templumque tenebit illi uictor ego et Tyrio conspectus in ostro centum quadriiugos agitabo ad flumina currus
Serei eu o primeiro se a vida me restar a trazer para a minha paacutetria as musas dos cumes Aocircnios11 O primeiro a trazer para ti oacute Macircntua12 as palmas de Idumea13 Em um campo verdejante edificarei um templo de maacutermore proacuteximo agraves aacuteguas na ribeira onde o majestoso Miacutencio14 vagueia em vagarosas curvas e [que ele] adorna com a delicada cana No meio do meu templo estaraacute Ceacutesar o vencedor e eu revestido da puacuterpura de Tiro15 farei correr cem quadrigas pela margem do rio
Essa passagem foi retomada pela criacutetica como uma sugestatildeo de uma eacutepica
futura Como um todo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos tem apontado em suas
composiccedilotildees uma progressatildeo da poesia bucoacutelica para a didaacutetica e depois da didaacutetica
para a eacutepica Como jaacute pontuamos aqui por meio das palavras de Wilson-Okamura
(2010) embora seja apontada na Roda uma ideia de progressatildeo entre os gecircneros
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico a Roda aponta para uma sequecircncia de diferentes estilos
que configuram cenaacuterios particulares a partir de efeitos de individuaccedilatildeo especiacuteficos
que nos remetem portanto ao cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
Segundo Laird (2010 p139) os leitores medievais prontamente assumiram
como haviam feito os antigos bioacutegrafos de Virgiacutelio que o elevado gecircnero poeacutetico da
11 Referente agrave Aocircnia regiatildeo da Beoacutecia na Antiga Greacutecia Virgiacutelio aqui reconhece a importacircncia da cultura grega para a cultura latina 12 Proviacutencia romana da regiatildeo da Lombardia Cidade natal de Virgiacutelio 13 Regiatildeo entre o mar Morto e o golfo de Aqaba 14 Rio da Itaacutelia com 73 km de extensatildeo 15 Diz-se que a puacuterpura de Tiro da regiatildeo feniacutecia era uma tinta natural de coloraccedilatildeo vermelho-puacuterpura extraiacuteda dos caramujos
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epopeia representava o aacutepice da carreira do poeta Essa interpretaccedilatildeo se deve ao fato
de que o estilo grandiloquente presente na eacutepica deixa entrever imagens de um
cenaacuterio em que figuram temas sublimes e com personagens ilustres Todavia vale
destacar que em termos de expressatildeo as trecircs obras virgilianas estatildeo em peacute de
igualdade O que muda eacute o tratamento temaacutetico presente em cada obra e com isso
os efeitos de individuaccedilatildeo de cada discurso que configuram cenaacuterios especiacuteficos de
atuaccedilatildeo
Para Laird (2010 p 146) os antigos podiam perceber uma progressatildeo nas
obras de Virgiacutelio - ou pelo menos um aumento em sua importacircncia - das Bucoacutelicas
para as Geoacutergicas das Geoacutergicas para a Eneida Como jaacute mencionado aqui essa
progressatildeo na verdade pode ser lida como uma continuidade temaacutetica do curso
poeacutetico de Virgiacutelio se pensarmos na Roda como um diagrama circular em que estatildeo
dispostos os diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo nomeados por Virgiacutelio e que sugestionam
diferentes efeitos de sentido seja o singelo o meacutedio e o grandiloquente
Pensando-se na ideia de continuidade temaacutetica no lugar da ideia de
progressatildeo Laird (2010 p 158-159) afirma que considerar todas as composiccedilotildees de
Virgiacutelio como parte de um uacutenico livro eacute audacioso pois equivale a considerar toda a
sua obra como um texto uacutenico16 Mas isso pode natildeo ser injustificado se pensarmos no
sentido esteacutetico e poeacutetico dos textos a sua forma de expressatildeo Haacute nas trecircs obras
uma diferenccedila temaacutetica e notadamente diferentes efeitos de individuaccedilatildeo que
sugerem cenaacuterios especiacuteficos Todavia se considerarmos os termos da expressatildeo
presentes nas trecircs obras podemos afirmar que as Bucoacutelicas Georgicas e Eneida
constituem uma unidade Aleacutem disso a representaccedilatildeo na Rota Virgiliana de cada um
dos poemas de Virgiacutelio como uma parte de um ciacuterculo inteiro trecircs em um poderia ser
um reflexo da ideia de totalidade17
A Rota Virgiliana serviu portanto como ferramenta para retoacutericos e poetas que
procuraram lembrar e replicar os trecircs estilos virgilianos ao mesmo tempo em que
16 Theodorakopoulos (1997) oferece uma leitura do livro de Virgiacutelio como um texto uacutenico William Dominik tambeacutem discute essa ideia no artigo ldquoNatureza escuridatildeo e sombras no supertexto de Virgiacuteliordquo Phaos 9 17 Carruthers (2008) afirma que a lsquoRoda de Virgiacutelio era claramente um diagrama mnemocircnico que se mantinha desde John of Garland aquiacute referenciado como Joatildeo de Garlacircndia sendo provaacutevel que possa ser fisicamente manipulada como sugerem seus ciacuterculos concecircntricos Para Laird (2010 p 158) a figura da retoacuterica rota Virgili pode fornecer a conexatildeo entre a palavra latina rota roda e a frase em inglecircs pela rotardquo
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contribuiu para transmitir uma identidade subjacente agraves obras de Virgiacutelio Mas para
Laird (2010 p 159) a forma circular da Roda natildeo pocircde linearizar as Bucoacutelicas
Geoacutergicas e Eneida em uma sequecircncia temporal
A Roda de Virgiacutelio dessa forma colocou em movimento a carreira literaacuteria do
poeta do Seacuteculo de Ouro da Literatura Latina servindo como veiacuteculo para o
entendimento de suas obras
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4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto
41 Textos temaacuteticos e figurativos
Temos por enquanto de trabalhar no sentido de ver como eacute que essa estruturaccedilatildeo atua () organizando o substrato figurativo a partir do qual o texto entrama molda enforma o
tema ou temas que o discurso potildee em andamento [] Ignaacutecio Assis Silva 1995 p 12
Ao colocar em relevo o texto como um objeto de significaccedilatildeo considerando-o
como um todo de sentido dotado de uma estrutura especiacutefica deve-se colocar em
destaque os procedimentos e mecanismos que satildeo responsaacuteveis por sua organizaccedilatildeo
e tessitura
Embora a Semioacutetica Francesa natildeo ignore que o texto seja um objeto histoacuterico
ela procura estudaacute-lo como objeto de significaccedilatildeo e por isso preocupa-se em estudar
os mecanismos e procedimentos que o estruturam e o tramam como uma totalidade
de sentido
De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (1995 p 165-166)
a palavra texto proveacutem do verbo latino texo is texui textum texere que quer dizer tecer Logo da mesma maneira que um tecido natildeo eacute um amontoado desorganizado de fios o texto natildeo eacute um amontoado de frases nem uma grande frase Tem ele uma estrutura que garante que o sentido seja apreendido em sua globalidade que o significado de cada uma de suas partes dependa do todo
A Semioacutetica Francesa concebe o processo de formaccedilatildeo de um texto como um
percurso gerativo que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto
em um processo de enriquecimento semacircntico Em um primeiro momento a
Semioacutetica examina o plano do conteuacutedo e soacute depois vai destacar as especificidades
da expressatildeo e sua relaccedilatildeo com o significado
Dois satildeo os tipos de texto temaacuteticos e figurativos Os primeiros satildeo compostos
predominantemente de temas termos abstratos enquanto os segundos apresentam
preponderantemente figuras ou seja termos concretos
Entende-se tema e figura como dois mecanismos de atuaccedilatildeo do discurso O
tema que eacute abstrato revela um discurso predominantemente natildeo-figurativo como
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satildeo os textos jornaliacutesticos dissertaccedilotildees etc O objetivo destes textos eacute o de informar
explicar ou ainda catalogar A figura por outro lado parte de um tema abstrato para
concretizaacute-lo e com isso produz um discurso predominantemente figurativo Exemplo
disso satildeo os textos literaacuterios e histoacutericos Tema remete-nos portanto ao que eacute da
ordem do abstrato e figura remete-nos agravequilo que eacute concreto
Os textos predominantemente temaacuteticos (textos jornaliacutesticos acadecircmicos)
procuram explicar classificar e ordenar enquanto os textos predominantemente
figurativos (literaacuterios histoacutericos) tecircm uma funccedilatildeo descritiva narrativa poeacutetica O tema
abstrato eacute um investimento semacircntico de ordem conceitual enquanto a figura
corresponde a tudo que eacute perceptiacutevel no mundo natural
Assim a Semioacutetica Greimasiana oferece modelos para a anaacutelise da
significaccedilatildeo na dimensatildeo do discurso procurando demonstrar como os percursos da
significaccedilatildeo se organizam e se combinam a partir de regras sintaacutexicas e semacircnticas
responsaacuteveis pela coerecircncia de um texto Agrave Semioacutetica cabe avaliar como um texto vai
se tornando mais concreto a partir da instalaccedilatildeo de personagens e a introduccedilatildeo de
iacutendices espaccedilotemporais O conteuacutedo de um texto eacute engendrado por um percurso que
vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto manifestando-se assim
por meio de um plano da expressatildeo
Os textos com funccedilatildeo utilitaacuteria informam convencem explicam e documentam
eles tecircm um compromisso com o conteuacutedo e a informaccedilatildeo Enquanto isso os textos
com funccedilatildeo esteacutetica comprometem-se com a expressatildeo
De acordo com Ignaacutecio Assis Silva (1995 p 44)
a semioacutetica natildeo estaacute preocupada com o sentido que eacute da ordem da evidecircncia com o sentido que estaacute aiacute e que natildeo eacute senatildeo efeito de sentido produto em suma A fim de poder passaacute-lo adiante de poder falar dele eacute preciso ver a produccedilatildeo que engendrou esse efeito de sentido ou o processo criador como prefere dizer Cassirer
Ao leitor atento cabe portanto notar que eacute na relaccedilatildeo entre conteuacutedo e
expressatildeo que satildeo gerados os efeitos estiliacutesticos que determinam os elementos
essenciais de um texto
Procuremos entender no pequeno excerto das Geoacutergicas de Virgiacutelio ldquoCanto IIrdquo
hexacircmetros 315 a 345 os procedimentos de figuraccedilatildeo
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Nec tibi tam prudens quisquam persuadeat auctor tellurem Borea rigidam spirante mouere rura gelu tum claudit hiems nec semine iacto concretam patitur radicem adfigere terrae optima uinetis satio cum uere rubenti candida uenit auis longis inuisa colubris prima uel autumni sub frigora cum rapidus Sol nondum hiemem contingit equis iam praeterit aestas uer adeo frondi nemorum uer utile siluis uere tument terrae et genitalia semina poscunt tum pater omnipotens fecundis imbribus Aether coniugis in gremium laetae descendit et omnis magnus alit magno commixtus corpore fetus auia tum resonant auibus uirgulta canoris et Venerem certis repetunt armenta diebus parturit almus ager Zephyrique tepentibus auris laxant arua sinus superat tener omnibus umor inque nouos soles audent se gramina tuto credere nec metuit surgentis pampinus Austros aut actum caelo magnis Aquilonibus imbrem sed trudit gemmas et frondes explicat omnis non alios prima crescentis origine mundi inluxisse dies aliumue habuisse tenorem
crediderim uer illud erat uer magnus agebat orbis et hibernis parcebant flatibus Euri cum primae lucem pecudes hausere uirumque terrea progenies duris caput extulit aruis immissaeque ferae siluis et sidera caelo nec res hunc tenerae possent perferre laborem si non tanta quies iret frigusque caloremque inter et exciperet caeli indulgentia terras
Que nenhum mestre tatildeo prudente te convenccedila a cavar a riacutegida Terra quando Boacutereas sopra18 Depois o inverno aperta os campos com a geada e nem com a semente lanccedilada permite que a espessa raiz se prenda agrave terra O melhor plantio para as vinhas eacute quando na roacutesea primavera chega a candida ave odiada pelas grandes serpentes sob os primeiros frios do outono quando o impetuoso sol com seus cavalos19 natildeo atingiu o inverno e jaacute o veratildeo ficou para traacutes Sobretudo a primavera uacutetil agrave folhagem dos bosques a primavera uacutetil agraves florestas na primavera as terras se intumescem e exigem as fecundas sementes20
18Ruy Mayer (1948 p 305) destaca em nota ao texto Prudens auctor eacute como se chama o sabichatildeo que sobre todos os assuntos daacute opiniatildeo Fazer a mobilizaccedilatildeo do solo quando sopra o vento Norte (Boacutereas) seria desastroso na Campacircnia onde esse vento eacute frio e violento e onde em terrenos soltos a aacutegua congela por camadas sucessivas tornando impossiacutevel semear ou plantar 19 Personificaccedilatildeo do sol que conduz seus cavalos luminosos para trazer o dia 20Para Ruy Mayer (1948 p 306) o presente excerto do Canto II das Geoacutergicas eacute um hino de maravilhosa perfeiccedilatildeo artiacutestica agraves energias criadoras da primavera apresentando uma elegacircncia e riqueza de formas incomparaacuteveis
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Entatildeo o pai onipotente Eacuteter21 com chuvas fecundas desce sob o colo da feacutertil esposa22 e unindo-se a esse grande corpo alimenta todos os filhos Entatildeo as ramagens dos lugares afastados ressoam com as melodiosas aves e os rebanhos reivindicam Vecircnus23 em dias certos O nutriz campo daacute agrave luz por causa da brisa morna de Zeacutefiro24 as pastagens relaxam os seios um liacutequido suave ultrapassa todas as coisas e com confianccedila as ervas ousam entregar-se aos novos soacuteis e nem o pacircmpano teme os Austros25 que surgem ou a chuva impelida do ceacuteu pelos fortes Aquilotildees26 mas faz brotar os rebentos e estende todas as folhagens Natildeo acreditei que outros dias tenham iluminado na primeira origem do mundo nascente ou que tenham tido outro curso aquilo era primavera no grande orbe vivia a primavera e os Euros27 cessavam os invernosos ventos quando os primeiros animais viram a luz e a teacuterrea progecircnie do homem ergueu a cabeccedila das duras terras as feras foram enviadas para as florestas e os astros para o ceacuteu
Os delicados seres natildeo podiam sofrer esta opressatildeo se tanta tranquilidade natildeo se refugiasse entre o frio e o calor e se a indulgecircncia do ceacuteu natildeo acolhesse as terras
Neste pequeno excerto Virgiacutelio abandona as recomendaccedilotildees acerca das
teacutecnicas de plantaccedilatildeo da vinha para cantar sobre a primavera a estaccedilatildeo do ano em
que a natureza se encontra apta a germinar Trata-se de uma das digressotildees
presentes no texto das Geoacutergicas As terras assim como eacute descrito pelo poeta longe
do frio do inverno e dos impetuosos raios do sol incham-se e preparam-se para
receber as fecundas sementes com a chegada da nova estaccedilatildeo
Ao referir-se agrave primavera o poeta atesta que ela eacute uacutetil agraves aacutervores agraves florestas
aos bosques Ela eacute a proacutepria reproduccedilatildeo o periacuteodo feacutertil da terra e de toda a natureza
A figura da primavera marca um tempo de prosperidade fecundidade e germinaccedilatildeo
Com a chegada da primavera ocorre a uniatildeo entre o Ceacuteu e a Terra e daiacute
nascem todos os seres vivos Nesta estaccedilatildeo ainda o Pai onipotente Eacuteter desce sob
a forma de chuvas fecundas Eacuteter nesta passagem associa-se a Juacutepiter jaacute que
ambos representam o ceacuteu superior assumindo a paternidade de todas as coisas
Podem-se destacar deste excerto algumas figuras que remetem ao tema do
amor da uniatildeo dos seres da fecundidade e a procriaccedilatildeo tais como genitalia semina
21 Eacuteter a personificaccedilatildeo do ceacuteu profundo 22 A terra 23 Vecircnus deusa do amor e da beleza 24 Zeacutefiro o vento da Primavera 25 Austros os ventos 26 Aquilotildees Ventos frios tempestuosos 27 Euro vento leste criador de tempestades
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- hex 324 (sementes fecundas) fecundis imbribus ndash hex 325 (chuvas fecundas)
coniugis laetae - hex 326 (esposa feacutertil)
Atraveacutes destas figuras tem-se a concretizaccedilatildeo de uma ideia abstrata o tema
da fertilidade e prosperidade da natureza No pequeno excerto a Terra e o Eacuteter satildeo
representados como dois amantes em uma relaccedilatildeo amorosa Unem-se para
produzirem a vida
Eacuteter eacute quem alimenta (alit ndash hex 327) ou seja impulsiona a vida e modela os
seres dando-lhes forma e a feacutertil esposa assim o recebe em um grande abraccedilo O
discurso figurativo aponta com isso para a imagem da Terra sendo fecundada
A partir daiacute as melodiosas aves cantam em celebraccedilatildeo a todos os elementos
da natureza e a terra que daacute agrave luz (Parturit ndash hex 330) relaxa com a brisa de Zeacutefiro
o vento da Primavera
Os rebanhos tambeacutem buscam Vecircnus a deusa do amor e da beleza nos dias
certos (Venerem certis repetunt armenta diebus ndash hex329) A figura de Vecircnus
representa aqui a ideia de uniatildeo o periacuteodo propiacutecio para a procriaccedilatildeo dos animais
Os brotos natildeo temem as chuvas nem as tempestades pois estatildeo acolhidos
crescem em seguranccedila e desabrocham A vida portanto eacute criada surgindo novos
ramos novas folhagens e novos seres O mundo nasce e se organiza graccedilas agrave
primavera Menciona-se ainda que na ldquoprimeira origem do mundo nascenterdquo (prima
crescentis origine mundi ndash hex 336) era a primavera que imperava Os primeiros
animais com isso viram a luz as feras povoaram as florestas e os astros o ceacuteu
Deixa-se entrever neste excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas o tema da
fertilidade e prosperidade da natureza pois o arranjo de figuras tais como
ldquoprimaverardquo ldquofecundas sementesrdquo ldquonutriz campordquo ldquoesposa feacutertilrdquo ldquochuvas fecundasrdquo
entre outras concretizam essa ideia A figura da primavera em especial torna o
cenaacuterio propiacutecio ao plantio e agrave procriaccedilatildeo dos animais destacando com isso a forma
como todo o cenaacuterio se modifica com a chegada da nova estaccedilatildeo
Logo as figuras satildeo os elementos concretos de um texto jaacute aos elementos
abstratos chamamos de temas Figura eacute o termo com que podemos designar algo
existente no mundo tais como ldquoprimaverardquo ldquovinhardquo ldquoflorestasrdquo ldquobosquesrdquo sementesrdquo
De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (2011 p 91) ldquoa figura eacute todo conteuacutedo de qualquer
liacutengua natural ou de qualquer sistema de representaccedilatildeo que tem um correspondente
perceptiacutevel no mundo naturalrdquo Mas o mundo natural e perceptiacutevel natildeo se refere
apenas ao mundo real mas tambeacutem aos ldquomundos fictiacutecios criados pela imaginaccedilatildeo
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humanardquo As figuras podem ser dessa forma substantivos concretos verbos que
indicam accedilatildeo ou adjetivos que expressam um atributo fiacutesico das coisas e pessoas do
mundo percebido No que diz respeito ao Tema destaca-se que eacute o termo com que
designamos as palavras e expressotildees que satildeo responsaacuteveis pela explicaccedilatildeo de um
dado ou fato do mundo natural Trata-se de um ldquoinvestimento semacircntico de natureza
puramente conceptual que natildeo remete ao mundo naturalrdquo (FIORIN 2011 p 91) No
pequeno excerto a ideia de fertilidade prosperidade e germinaccedilatildeo da natureza eacute
depreendida pela cadeia de figuras que corroboram para este tema
Os textos figurativos como assinala Fiorin (2011 p 91) ldquocriam um efeito de
realidade jaacute que constroem um simulacro da realidade representando dessa forma
o mundordquo enquanto os textos temaacuteticos ldquoprocuram explicar a realidaderdquo Os discursos
figurativos satildeo eminentemente descritivos e narrativos enquanto os temaacuteticos satildeo
caracterizados pela explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do mundo perceptiacutevel
De acordo com Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 147-149) um texto
literaacuterio
tende a ser predominantemente descritivo ou narrativo afastando-se sponte sua do gecircnero dissertativo pois narraccedilatildeo e descriccedilatildeo pressupotildeem o desenvolvimento de um tema qualquer atraveacutes do recurso baacutesico da figuratividade enquanto a dissertaccedilatildeo procura ao contraacuterio o despojamento figurativo do enunciado a fim de dar relevo ao tema em si mesmo considerado Em outras palavras os gecircneros narrativo e descritivo exigem a manipulaccedilatildeo preponderante de termos concretos e particularizantes ao passo que o gecircnero dissertativo requer principalmente a adoccedilatildeo de conceitos abstratos e generalizantes na composiccedilatildeo do enunciado
Em um texto figurativo como o excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas que aqui
selecionamos encontramos sempre um tema que eacute subjacente agraves figuras instaladas
no discurso Toda figura eacute portanto a concretizaccedilatildeo de um determinado tema
abstrato No exemplo aqui citado todas as figuras coadunam-se com a ideia de
prosperidade e fertilidade da natureza remetendo-nos a este tema
Segundo Fiorin (2011 p 92) eacute o niacutevel temaacutetico que daacute sentido ao figurativo
Sobre isso Bertrand (2003 p 215) adverte que ldquoa significaccedilatildeo figurativa ultrapassa
com folga seus significados literais dotando-se de significaccedilotildees abstratas[]rdquo
Os textos que circulam em nossa sociedade satildeo temaacuteticos com algum recurso
figurativo esporaacutedico (discursos poliacuteticos textos filosoacuteficos) ou figurativos recobertos
assim em sua totalidade por figuras (textos literaacuterios e histoacutericos)
Greimas amp Courteacutes (2011 p 210) observam que
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Quando se tenta classificar o conjunto de discursos em duas grandes classes discursos figurativos e natildeo-figurativos (ou abstratos) percebe-se que a quase totalidade dos textos ditos literaacuterios e histoacutericos pertencem agrave classe dos discursos figurativos Fica entendido entretanto que tal distinccedilatildeo eacute de certa forma ldquoidealrdquo que ela procura classificar as formas (figurativas e natildeo-figurativas) e natildeo os discursos-ocorrecircncias que natildeo apresentam praticamente nunca uma forma em estado puro
Enquanto os textos figurativos assim como vimos no exemplo do excerto das
Geoacutergicas aqui citado constroem cenaacuterios reais com a presenccedila de pessoas animais
cores etc os textos temaacuteticos ao explicarem os fatos do mundo visam agrave
interpretaccedilatildeo de uma dada realidade
De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros em Teoria Semioacutetica do Texto
(2005 p 69) ldquoAos textos de figuraccedilatildeo esporaacutedica opotildeem-se aqueles em que ocorrem
percursos figurativos duradouros que se espalham pelo discurso inteiro e recobrem
totalmente os percursos temaacuteticosrdquo
Em Elementos de Anaacutelise do Discurso Fiorin (2011 p 92) assinala que
ldquoquando se fala em textos figurativos ou temaacuteticos fala-se respectivamente em
textos predominantemente e natildeo exclusivamente figurativos e temaacuteticosrdquo
Ao lermos um texto figurativo observamos portanto que eacute um tema abstrato
que imprime sentido agraves figuras daiacute a necessidade de se encontrar o sentido de um
conjunto de figuras uma vez que estariacuteamos depreendendo o tema subjacente a elas
Com isso todo texto figurativo apresenta dados concretos que veiculam significados
mais abstratos Aleacutem disso uma figura sempre estaraacute relacionada a outras pois juntas
elas criaratildeo um percurso figurativo Logo uma figura por si soacute natildeo tem significado
definido uma vez tomada isoladamente pode sugerir diversas ideias O seu sentido
soacute aparece quando ela eacute combinada a outras figuras visto que em um texto tudo eacute
relaccedilatildeo
Logo para compreendermos o tema de um texto figurativo precisamos
perceber as redes coerentes formadas pelas figuras (isotopia) jaacute que eacute a coerecircncia
entre elas que permite a depreensatildeo do sentido A quebra do encadeamento entre as
figuras pode tornar o texto inverossiacutemil jaacute que seria uma quebra no efeito de sentido
construiacutedo no discurso a menos que o inverossiacutemil apareccedila como um dos efeitos de
sentido a ser suscitado no leitor
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Na anaacutelise de um texto um tema ou uma figura isolados de nada servem
Torna-se preciso assim que haja um conjunto ou encadeamento de figuras e temas
Dessa forma uma isotopia ou seja a recorrecircncia de temas e figuras na cadeia do
discurso eacute capaz de assegurar a coerecircncia de um texto oferecendo ao leitor um
projeto de leitura
Tendo em vista o excerto do Canto II da Eneida hexacircmetros 707-720
podemos depreender o tema do heroacutei piedoso A Eneida inicia-se in medias res e
Eneias encontra-se com suas naus em pleno Mediterracircneo sete anos apoacutes a queda
de Troia (Canto I) posteriormente eacute lanccedilado agraves costas africanas onde eacute recebido pela
rainha Dido (Canto II) Num banquete ofertado ao heroacutei a rainha pede que Eneias
narre os acontecimentos sobre a destruiccedilatildeo de Troia Tem-se a partir daiacute uma
recordaccedilatildeo de eventos jaacute passados Destacamos entatildeo do Canto II os hexacircmetros
em que o caraacuteter de Eneias aparece em relevo
ergo age care pater ceruici imponere nostrae ipse subibo umeris nec me labor iste quo rescumque cadente unum et commune una salus ambobus erit mihi paruus Iulus sit comes et longe seruet uestigia coniunx uos famuli quae dicam animus est urbe egressis tumulus templumque uestutum desertae Cereris iuxtaque antiqua cipressus religione patrum multos seruata per anos hanc ex diuerso sedem ueniemus in unam Tu genitor cape sacra manu patriosque penatis me bello e tanto digressum et caede recenti attrectare nefas donec me flumine uiuo abluero Agora querido pai vem se colocar em meu pescoccedilo Eu proacuteprio te alccedilarei sobre os ombros e este trabalho natildeo me afetaraacute Onde quer que a sorte caia um soacute e comum perigo uma salvaccedilatildeo haveraacute para ambos a mim o pequeno Iuacutelo28 acompanhe e ao longe a esposa29 siga os passos Voacutes servos com vossas almas atentai no que vou dizer saindo da cidade haacute um tuacutemulo e um velho templo de Ceres30 abandonado e junto um antigo cipreste A religiatildeo dos antepassados preservada por muitos anos Chegaremos neste ponto vindos de diferentes lugares Tu oacute pai carrega os objetos sagrados com a matildeo e os Paacutetrios Penates31 A mim saiacutedo de tatildeo dura guerra e de recente massacre natildeo eacute permitido tocar ateacute que num rio corrente me lave
28 Iuacutelo (Ascacircnio) filho de Eneias e Creuacutesa 29 Creuacutesa esposa de Eneias 30 Ceres deusa da vegetaccedilatildeo e da colheita 31 Paacutetrios Penates os deuses do lar
65
Tem-se assim um pequeno trecho do relato eacutepico da tomada de Troia a partir
da narraccedilatildeo de Eneias A perspectiva do heroacutei intensifica as accedilotildees que se passaram
jaacute que se trata da visatildeo daquele que foi vencido O testemunho de Eneias divide-se
em trecircs partes comeccedila-se pela descriccedilatildeo do cavalo de madeira que eacute levado para
dentro da cidade (hex 13- 249) fala-se da batalha noturna (hex 250-558) e
posteriormente da fuga da cidade de Troia (hex 559-803) O relato do heroacutei ao longo
da narrativa destaca o seu comprometimento com a paacutetria a famiacutelia e seu caraacuteter
piedoso No pequeno excerto que aqui mencionamos tem-se a fuga de Eneias
acompanhado do pai Anquises do filho Iuacutelo (Ascacircnio) e da esposa Creuacutesa Todo o
conjunto de figuras deste excerto figurativiza valores de piedade Aleacutem do cuidado
para com o pai carregando-o sobre os ombros pode-se ver a preocupaccedilatildeo com o
filho esposa e outras pessoas do grupo o que indica a dimensatildeo ciacutevica de sua
piedade que abarca tambeacutem os objetos sagrados e os Paacutetrios Penates com o respeito
de natildeo os tocar com a matildeo ensanguentada A presente cena que destacamos (hex
707-720) sintetiza as virtudes que o caraacuteter do heroacutei engloba A tradiccedilatildeo sobre Eneias
aponta que ldquoele era notaacutevel por sua devoccedilatildeo filialrdquo (PEREIRA 2009 p 261) e o
pequeno excerto apresenta figuras que contribuem para a compreensatildeo deste tema
A accedilatildeo de colocar o pai sobre os ombros a preocupaccedilatildeo com as pessoas de seu
grupo esposa e filho bem como o respeito para com os Paacutetrios Penates figurativizam
o caraacuteter do heroacutei que pode ser depreendido no excerto
Diana Luz Pessoa de Barros (2005 p 69) menciona as diferentes etapas da
estruturaccedilatildeo de um texto a figuraccedilatildeo responsaacutevel pela instalaccedilatildeo das figuras eacute o
primeiro niacutevel de especificaccedilatildeo figurativa do tema em que uma ideia abstrata recebe
um investimento figurativo A iconizaccedilatildeo nomeada como ldquoinvestimento figurativo
exaustivo finalrdquo seria a uacuteltima etapa da estruturaccedilatildeo textual e tem o objetivo de
produzir uma ilusatildeo referencial Nessa etapa de acordo com Maacutercio Thamos (2003
p 114) haacute uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem na qual ldquorelacionando o som
com o sentido o poeta procura colocar em relevo aquilo de que fala manifestando o
desejo de fazer que o poema se identifique concretamente com o proacuteprio referenterdquo
Vale ressaltar ainda que essas duas etapas (figuraccedilatildeo rarriconizaccedilatildeo) satildeo fases
da construccedilatildeo figurativa de um texto e que nem todo texto figurativo apresentaraacute esse
investimento particularizante suscetiacutevel de produzir uma ilusatildeo referencial
Para Barros (2005 p 70)
66
Na iconizaccedilatildeo mas tambeacutem nas demais etapas da figurativizaccedilatildeo o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciataacuterio a reconhecer ldquoimagens do mundordquo e a partir daiacute a acreditar na ldquoverdaderdquo do discurso O enunciataacuterio por sua vez crecirc ou natildeo no discurso graccedilas em grande parte ao reconhecimento de figuras do mundo O fazer-crer e o crer dependem de um contrato de veridicccedilatildeo que se estabelece entre enunciador e enunciataacuterio e que regulamenta entre outras coisas o reconhecimento das figuras
Cabe ao leitor atento depreender assim os efeitos de sentido de um texto
Para Fiorin (1995 p 175)
Quem ler os seguintes versos de Os Lusiacuteadas ldquoEm tempo de tormenta e vento esquivordquo ldquoDe tempestade escura e triste prantordquo (V 18 3-4) sem perceber a aliteraccedilatildeo de oclusivas e principalmente do ldquotrdquo teraacute perdido um elemento essencial do texto que eacute o efeito de sentido de fuacuteria da tormenta dado pela articulaccedilatildeo entre a aliteraccedilatildeo no plano da expressatildeo e o conteuacutedo manifestado
O texto literaacuterio apresenta dessa forma uma funccedilatildeo esteacutetica e sua
compreensatildeo exige que se entenda natildeo somente o conteuacutedo mas especialmente os
significados dos seus elementos de expressatildeo
Thamos (2011 p 150) ao mencionar as especificidades do texto figurativo
afirma
A vocaccedilatildeo imageacutetica do texto literaacuterio encontra pois as condiccedilotildees naturais para a sua realizaccedilatildeo quer na narraccedilatildeo quer na descriccedilatildeo que lhe oferecem sempre possibilidades conotativas a partir da figuratividade enquanto por outro lado a dissertaccedilatildeo se constitui na maneira ideal de desenvolvimento do discurso cientiacutefico no qual imperam necessidades denotativas na expressatildeo de um tema
Na leitura de um texto literaacuterio adentramos de imediato em sua figuratividade
pois nele delineiam-se figuras como personagens espaccedilo objetos valores Por meio
da figuratividade assim podemos depreender as dimensotildees figurativas do discurso e
o modo como satildeo engendrados os efeitos de sentido
Bertrand (2003 p 156) referindo-se agrave figuratividade assim esclarece-nos
Qualificaremos de figurativo todo significado todo conteuacutedo de uma liacutengua natural e de maneira mais abrangente de qualquer sistema de representaccedilatildeo (visual por exemplo) que tenha um correspondente no plano do significante (ou da expressatildeo) do mundo natural da realidade perceptiacutevel
67
Com vistas portanto aos recursos da figuratividade presentes na poesia
bucoacutelica didaacutetica e eacutepica procuramos investigar nas trecircs obras de Virgiacutelio o percurso
figurativo e a atuaccedilatildeo dos trecircs tipos de estilo descritos pelos tratadistas antigos o
estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Na Roda esquema circular tripartido das
obras virgilianas satildeo apresentadas as principais figuras que compotildeem o cenaacuterio da
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Logo procuramos entender como os diferentes
estilos atuam em cada poema e como eles podem ser depreendidos a partir da
recorrecircncia figurativa presente em cada obra deixando entrever um efeito particular
de individuaccedilatildeo Para isso na anaacutelise das obras virgilianas destacamos a presenccedila
de uma rede de figuras que sugerem um modo proacuteprio de ser e fazer de especiacuteficos
cenaacuterios de atuaccedilatildeo para as Bucoacutelicas o efeito tecircnue que configura um estilo singelo
para as Geoacutergicas o efeito moderado que configura um estilo meacutedio e para a Eneida
um efeito vigoroso que corrobora para a construccedilatildeo do estilo sublime grandiloquente
Assim nosso intento eacute o de compreender na dimensatildeo figurativa de cada excerto
selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise a atuaccedilatildeo dos estilos singelo meacutedio e
grandiloquente Virgiacutelio construiu segundo a tradiccedilatildeo trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo a partir
de trecircs estilos Cabe-nos aqui depreender a caracterizaccedilatildeo presente em cada obra
e com isso depreender os principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e
eacutepica
Entendemos que em termos de expressatildeo as trecircs obras apresentam um rico
trabalho com a linguagem Pensando-se primeiramente na caracterizaccedilatildeo presente
nas trecircs obras personagens accedilotildees e ambientaccedilatildeo destacaremos os principais temas
e figuras proacuteprios agraves Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Com isso procuramos
entender cada estilo como uma construccedilatildeo sistemaacutetica que deixa entrever um efeito
particular de sentido Natildeo perderemos de vista contudo o arranjo particular da
linguagem poeacutetica e portanto tambeacutem procuraremos analisar as obras a partir do seu
plano da expressatildeo
Os temas presentes na poesia eacutepica coadunam-se com um tom elevado
grandiloquente com figuras que deixam entrever um efeito de sentido grandiloquente
Alteram-se os temas altera-se o cenaacuterio e consequentemente o efeito de sentido
sugestionado o estilo Primeiro escolhe-se o tema a ser cantado e soacute entatildeo eacute definido
o cenaacuterio ldquoconvenienterdquo a esse tema O ambiente descrito na poesia eacutepica difere
68
portanto daquele que eacute apresentado em um tom mais singelo como eacute o caso da
poesia de gecircnero bucoacutelico Da Eneida selecionamos um excerto do ldquoVIII Cantordquo (612-
731) em que depreendemos o tema do heroacutei e suas armas de guerra atrelado ao
tema da fundaccedilatildeo e gloacuteria de Roma As figuras utilizadas neste fragmento tramam
cenaacuterios tipicamente eacutepicos em um tom solene
Na poesia bucoacutelica o tema muda e as figuras se alteram Logo altera-se o
efeito pretendido que seraacute tecircnue O locus amoenus pode aparecer na figura de um
rochedo na espessura verde de um pequeno bosque em uma fonte pinheiros olmos
choupos carvalhos cabras ovelhas etc Estas figuras recorrentes na poesia
bucoacutelica virgiliana organizam-se de modo expressivo e particularizam os temas que
abrangem a simplicidade o viver ruacutestico do campo e o oacutecio criativo dos pastores O
estilo singelo aparece portanto subjacente a esse arranjo de figuras A ldquoBucoacutelica Vrdquo
aqui selecionada para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise apresenta um cenaacuterio apraziacutevel para
que os pastores-cantadores Mopso e Menalcas possam cantar seus louvores a
Daacutefnis
Na poesia didaacutetica os temas abrangem um conteuacutedo instrucional e assumem
um tom e um contexto de atuaccedilatildeo moderados No excerto do ldquoIV Cantordquo (1-115) das
Geoacutergicas colocaremos em relevo portanto a ldquodescriccedilatildeo do lugar apraziacutevel para as
abelhasrdquo e o modo como as figuras selecionadas pelo poeta particularizam este tema
no contexto da poesia didaacutetica
Na anaacutelise dos poemas de Virgiacutelio seratildeo destacadas as principais figuras e
temas recorrentes agraves Bucoacutelicas agraves Geoacutergicas e agrave Eneida Aleacutem disso pretende-se
demonstrar o modo como essas figuras se organizam e asseguram um revestimento
figurativo e abstrato dos principais temas bucoacutelicos didaacuteticos e eacutepicos levando em
conta a formaccedilatildeo do sentido poeacutetico e esteacutetico de cada texto e os niacuteveis de estilo
definidos pelos tratadistas antigos pensando-os como efeitos de individuaccedilatildeo
engendrados em cada texto
69
42 A Figuratividade a leitura do poeacutetico
Com os poetas a escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo
que elas contamrdquo
(BRODSKY 1994 p 97)
O poeta e criacutetico russo Joseph Brodsky acredita que natildeo eacute do ofiacutecio do poeta
informar algo mas sim por meio de um arranjo expressivo da linguagem artiacutestica
suscitar no leitor um determinado efeito de sentido A poesia revela-se dessa forma
como ldquouma arte de referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo
(BRODSKY 1994 p 74) Roman Jakobson ao questionar-se sobre a expressividade
poeacutetica vai ao encontro desse raciociacutenio Assim a sua ceacutelebre pergunta ldquoQue eacute que
faz de uma mensagem verbal uma obra de arterdquo (JAKOBSON 1989 p 118-119)
leva-nos a acreditar que toda criaccedilatildeo poeacutetica apresenta um trabalho artiacutestico com a
linguagem jaacute que a palavra artiacutestica ultrapassa o uso comum e ganha um efeito
esteacutetico pois o poeta agrega valor agrave palavra seu elemento material concreto
Cabe-nos a partir disso avaliar quais satildeo os recursos expressivos
evidenciados na leitura de um texto e de que forma os procedimentos da figuraccedilatildeo e
iconizaccedilatildeo aliados a outros expedientes expressivos participam da formaccedilatildeo do
sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto
Para a Semioacutetica Greimasiana o sentido aparece intimamente relacionado com
a linguagem que o estrutura e eacute a partir do reconhecimento das formas presentes em
um texto que apreendemos o arranjo expressivo da linguagem Logo eacute o trabalho
artiacutestico com o plano da expressatildeo que particulariza um texto poeacutetico contrapondo-o
portanto aos outros discursos que possivelmente podem apresentar temas
semelhantes
O arranjo da linguagem poeacutetica longe de transmitir apenas ideias apresenta
recursos expressivos capazes de suscitar um determinado efeito esteacutetico no leitor
Em Linguiacutestica e Comunicaccedilatildeo Jakobson (1989 p 130) declara que ldquoA funccedilatildeo
poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de
combinaccedilatildeordquo Fica evidente portanto o destaque do linguista para a construccedilatildeo do
sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto Em que medida as figuras instaladas em um
discurso satildeo combinadas e revestidas de expressividade Aleacutem disso natildeo podemos
esquecer de que o poeacutetico se enquadra na esfera luacutedica em que o poeta modela as
palavras em uma espeacutecie de brincadeira artiacutestica para assim conferir-lhes um
sentido poeacutetico Para Huizinga (2007 p 133) a poesia
70
[] estaacute para aleacutem da seriedade naquele plano mais primitivo e originaacuterio a que pertencem a crianccedila o animal o selvagem e o visionaacuterio na regiatildeo do sonho do encantamento do ecircxtase do riso Para compreender a poesia precisamos ser capazes de envergar a alma da crianccedila como se fosse uma capa maacutegica e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto
Logo o arranjo das palavras quando manipuladas pelo artista pode suscitar
um determinado efeito de sentido no leitor Trata-se de uma brincadeira uma espeacutecie
de jogo com a palavra que em acircmbito poeacutetico pode metamorfosear-se em imagens
do mundo
Ao focalizar o processo de criaccedilatildeo de um texto artiacutestico e ressaltar o modo
como a palavra eacute trabalhada pelo artista deve-se compreender que a palavra poeacutetica
porta sempre um encantamento imageacutetico Acredita-se com isso que o poeta
encontra na palavra o elemento material concreto de que necessita para a criaccedilatildeo
de imagens
Como bem observa Thamos (2003 p 109)
Na busca de expressatildeo para determinado tema o poeta bem como o pintor constroacutei um texto em que a primazia da figura eacute bastante evidente o que potildee em relevo o seu desejo de concretude sua necessidade de procurar dar contorno plasticidade palpabilidade a sua criaccedilatildeo
Como ilustraccedilatildeo desses procedimentos vale destacar a ldquoBucoacutelica IVrdquo de
Virgiacutelio poema em que eacute celebrado o nascimento de uma crianccedila que seraacute o fator
determinante da renovaccedilatildeo dos tempos No poema a natureza alegra-se com esse
nascimento e o proacutespero ambiente campestre assim responde agrave chegada da crianccedila
(Buc IV 23-25)
Ipsae lacte domum referent distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores As cabritinhas por si mesmas levaratildeo agrave casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti oacute crianccedila o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores
71
Nesse exemplo observa-se que a disposiccedilatildeo dos sintagmas no hexacircmetro 25
Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores favorece de algum modo a figuratividade
da cena que estaacute sendo descrita uma vez que o termo ldquocunabulardquo (berccedilo) eacute
circundado por ldquoblandosrdquo e ldquofloresrdquo (delicadas flores) ilustrando portanto a ideia
expressa no verso a de que o berccedilo da crianccedila encontra-se ornado por delicadas
flores que nesse contexto podem ser vistas como sinocircnimo de encanto e beleza do
novo mundo que ressurge em consonacircncia ao nascimento dessa crianccedila O verso
destacado favorece agrave representaccedilatildeo icocircnica deixando entrever pelo arranjo particular
da linguagem a imagem de um berccedilo florido pela distribuiccedilatildeo dos termos no verso
Para Greimas (1975 p 12) podemos afirmar que
[] o significante sonoro ndash e graacutefico em menor proporccedilatildeo ndash entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a assumir como verdadeiras as proposiccedilotildees emitidas pelo discurso poeacutetico []
Lembra-nos Octavio Paz que ldquoo poema natildeo explica nem representa apresenta
Natildeo alude agrave realidade pretende ndash e agraves vezes consegue ndash recriaacute-la Portanto a poesia
eacute um penetrar um estar ou ser na realidaderdquo (2012 p 118)
A ilusatildeo ou impressatildeo referencial eacute o termo com que designamos a segunda
etapa dos procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto literaacuterio conhecida por
iconizaccedilatildeo Nesta etapa haacute uma espeacutecie de ecircnfase figurativa do discurso com vistas
a um expediente de criaccedilatildeo de imagens anaacutelogas agrave realidade
Pensando ainda na ldquoBucoacutelica IVrdquo e na exortaccedilatildeo ao nascimento da crianccedila
destacamos os seguintes versos
(Buc IV 60-63) Incipe parue puer risu cognoscere matrem (matri longa decem tulerunt fastidia menses) Incipe parue puer qui non risere parenti Nec deus hunc mensa dea nec dignata cubili est Comeccedila pequeno menino a conhecer a matildee com um sorriso Agrave ela dez meses causaram longos enjoos comeccedila pequeno menino aquele que natildeo sorriu para a matildee nem um deus o julgou digno da sua
mesa e nem uma deusa de seu leito
Os hexacircmetros 60 e 62 relacionam-se expressivamente pelo emprego do
paralelismo ou seja pela repeticcedilatildeo de incipe parue puer que reforccedila assim a
72
homenagem agrave crianccedila Aleacutem disso a aliteraccedilatildeo da oclusiva p em ldquoincipe parue
puerrdquo eacute um fato do plano da expressatildeo que associado ao paralelismo sugere uma
ideia de repeticcedilatildeo e balbucio da matildee para seu filho passando-nos a ideia de uma
cantiga de ninar um acalanto Esses versos pelo arranjo particular da linguagem
criam um efeito de sentido ldquorealidaderdquo ao sugerirem a cena familiar que estaacute sendo
descrita em um tom de ludismo e serenidade
Neste fragmento ao relacionar o som ao sentido o poeta pretende manipular
a linguagem para colocar em destaque aquilo de que fala de modo que a palavra
artiacutestica coincida concretamente com o proacuteprio referente Adverte Thamos (2003 p
114) que ldquoA iconizaccedilatildeo se dirige mais diretamente aos sentidos e estaacute assentada num
pressuposto de representaccedilatildeo realista assumido tanto pelo produtor quanto pelo
receptor do discurso figurativordquo Na ilusatildeo referencial destaca-se portanto a
apresentaccedilatildeo de um efeito esteacutetico evidenciado no texto em que neste caso ldquotoda a
massa sonora do poema eacute viva do ponto de vista criativordquo (LIMA apud THAMOS
2003 p115)
O poeta aacutercade Tomaacutes Antocircnio Gonzaga (2006 p 43 grifos nossos) em uma
evidente alusatildeo ao texto de Virgiacutelio compocircs
Que gosto natildeo teraacute a matildee que toca Quando o tem nos seus braccedilos crsquoo dedinho Nas faces graciosas e na boca Do inocente filhinho Quando Mariacutelia bela O tenro infante jaacute com risos mudos Comeccedila a conhececirc-la
Nesse pequeno trecho de Mariacutelia de Dirceu Parte I Lira XIX nota-se que o
ambiente familiar descrito por Virgiacutelio eacute aludido na liacuterica de Gonzaga que resgatou
algo da sugestatildeo do acalanto do poeta claacutessico
A repeticcedilatildeo quase seguida da oclusiva t nos dois primeiros versos do excerto
acompanhada das nasais n e m deixam entrever uma fala manhosa linguagem
inicial dos pais para com a crianccedila sempre carregada de afetuosidade Aleacutem disso
destaca-se a presenccedila de dois diminutivos que reforccedilam a ideia de uma fala mais
amorosa dentro deste contexto No poema de Gonzaga o jogo sonoro remete-nos agrave
cena que estaacute sendo descrita agrave imagem da matildee conversando com seu filho
A figuratividade eacute portanto uma categoria descritiva que ligada agrave teoria
esteacutetica abarca o figurativo e o natildeo-figurativo (ou abstrato) este uacuteltimo sempre
73
apareceraacute revestido por figuras que o particularizam Nesse sentido no processo de
estruturaccedilatildeo de um texto encontramos o niacutevel da figuraccedilatildeo em que um tema ou seja
um discurso abstrato eacute convertido em figuras e tambeacutem o niacutevel da iconizaccedilatildeo em
que as figuras utilizadas no discurso teriam o poder de se transformar em imagens do
mundo provocando uma ilusatildeo ou impressatildeo referencial que eacute definida como sendo
ldquo[] o resultado de um conjunto de procedimentos mobilizados para produzir efeito de
sentido ldquorealidade []rdquo (GREIMAS COURTEacuteS 2011 p 251)
Como observa Bertrand (2003 p 154) a figuratividade ldquosugere
espontaneamente a semelhanccedila a representaccedilatildeo a imitaccedilatildeo do mundo pela
disposiccedilatildeo das formas numa superfiacutecierdquo Assim um texto classificado como figurativo
vale-se de figuras capazes de representar verbal ou visualmente uma figura do
mundo natural O efeito sugerido por essa representaccedilatildeo pode transmitir ao leitor a
ideia de ldquorealidaderdquo ldquoirrealidaderdquo ou ateacute mesmo ldquosurrealidaderdquo - efeitos especiacuteficos
gerados pelo texto por meio de estrateacutegias discursivas e que satildeo capazes de criar
impressotildees referenciais
Sobre isso Bertrand (2003 p 157) afirma que
A figuratividade se define como todo conteuacutedo de um sistema de
representaccedilatildeo verbal visual auditivo ou misto que entra em
correlaccedilatildeo com uma figura significante do mundo percebido quando
ocorre sua assunccedilatildeo pelo discurso
Logo eacute pertinente observar o modo como as figuras presentes em um texto
podem gerar ilusotildees da realidade produzindo imagens capazes de representar o
mundo natural concreto
De acordo com o conceito de representaccedilatildeo aqui sugerido a figuratividade
incorporaria a criaccedilatildeo de um simulacro com a aparecircncia de verdadeiro estabelecendo
uma noccedilatildeo interdiscursiva entre a realidade e o texto literaacuterio Com vistas agrave dimensatildeo
enunciativa e figurativa da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica em Virgiacutelio foram
selecionados trechos representativos das trecircs obras em que o revestimento particular
da linguagem poeacutetica ganha relevo em que a funccedilatildeo poeacutetica portanto eacute dominante
Ao colocar em destaque a vocaccedilatildeo imageacutetica a poeticidade dos textos o
trabalho apoia-se portanto na noccedilatildeo de figuratividade e procura avaliar o modo como
as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida apresentam e combinam temas e figuras
Busca-se entender portanto os estilos (singelo meacutedio e grandiloquente) como efeitos
de sentido que configuram cenaacuterios de atuaccedilatildeo especiacuteficos
74
ldquoEnquanto manifestaccedilatildeo privilegiada do mais alto poder expressivo que
uma liacutengua pode alcanccedilar versos satildeo o testemunho irretorquiacutevel seja de
soacutelidas construccedilotildees neles plasmadas seja do proacuteprio sistema virtual
que as trouxe agrave vida Este fica por tal modo igualmente imortalizado
graccedilas agrave realizaccedilatildeo plaacutestica e riacutetmica que faculta ao sistema virtualrdquo
(Lima 2003 p100)
ldquoO poema sem deixar de ser palavra e histoacuteria transcende a histoacuteriardquo
(Octavio Paz 2012 p 31)
75
5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises
51 BUCOacuteLICA V ldquoMOPSO E MENALCAS OS PASTORES
CANTADORESrdquo
Figura 5 ndash Mopso e Menalcas
Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p 465
76
MENALCAS
Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo
tu calamos inflare leuis ego dicere uersus
hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
MOPSVS
Tu maior tibi me est aequom32 parere Menalca
siue sub incertas Zephyris motantibus umbras
siue antro potius succedimus Aspice ut antrum 5
siluestris raris sparsit labrusca racemis
MENALCAS
Montibus in nostris solus tibi certat Amyntas
MOPSVS
Quid si idem certet Phoebum superare canendo
MENALCAS
Incipe Mopse prior si quos aut Phyllidis ignis 10
aut Alconis habes laudes aut iurgia Codri
incipe pascentis seruabit Tityrus haedos
MOPSVS
32 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aequum Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1967
77
Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi
carmina descripsi et modulans alterna notaui
experiar tu deinde iubeto certet Amyntas 15
MENALCAS
Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae
puniceis humilis quantum saliunca rosetis
iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas
Sed tu desine plura puer successimus antro
MOPSVS
Exstinctum Nymphae crudeli funere Daphnim33 20
flebant (uos coryli testes et flumina Nymphis)
cum complexa sui corpus miserabile nati
atque deos atque astra uocat crudelia mater
Non ulli pastos illis egere diebus
frigida Daphni boues ad flumina nulla neque34 amnem 25
libauit quadrupes nec graminis attigit herbam
Daphni 35tuom Poenos etiam ingemuisse leones
interitum montesque feri siluaeque loquontur36
Daphnis et Armenias curru subiungere tigris
instituit Daphnis thiasos inducere37 Bacchi 30
et foliis lentas intexere mollibus hastas
Vitis ut arboribus decori est ut uitibus uuae
33 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin 34 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nec 35 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 36 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se loquuntur 37 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se et ducere
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ut gregibus tauri segetes ut pinguibus aruis
tu decus omne tuis Postquam te fata tulerunt
ipsa Pales agros atque ipse reliquit Apollo 35
Grandia saepe quibus mandauimus hordea sulcis
infelix lolium et steriles nascuntur auenae
pro molli uiola pro purpureo narcisso
carduos38 et spinis surgit paliurus acutis
Spargite humum foliis inducite fontibus umbras 40
pastores (mandat fieri sibi talia Daphnis)
et tumulum facite et tumulo superaddite Carmen
DAPHNIS EGO IN SILVIS HINC VSQUE AD SIDERA NOTVS
FORMOSI PECORIS CVSTOS FORMOSIOR IPSE
MENALCAS
Tale tuom carmen nobis39 diuine poeta 45
quale sopor fessis in gramine quale per aestum
dulcis aquae saliente sitim restinguere riuo
Nec calamis solum aequiperas sed uoce magistrum
fortunate puer tu nunc eris alter ab illo
Nos tamen haec quocumque modo tibi nostra uicissim 50
dicemus Daphnim40que tuom41 tollemus ad Astra
Daphnim42 ad Astra feremus amauit nos quoque Daphnis
MOPSVS
An quicquam nobis tali sit munere maius
38 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se carduus 39 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se ldquoTale tuum nobis carmenrdquo 40 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphin 41 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 42 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin
79
Et puer ipse fuit cantari dignus et ista
iam pridem Stimichon laudauit carmina nobis 55
MENALCAS
Candidus insuetum miratur limen Olympi
sub pedibusque uidet nubes et sidera Daphnis
Ergo alacris siluas et cetera rura uoluptas
Panaque pastoresque tenet Dryadasque puellas
Nec lupus insidias pecori nec retia ceruis 60
ulla dolum meditantur amat bonus otia Daphnis
Ipsi laetitia uoces ad sidera iactant
intonsi montes ipsae iam carmina rupes
ipsa sonant arbusta laquo Deus deus ille Menalca raquo
Sis bonus o felixque tuis En quattuor aras 65
ecce duas tibi Daphni duas altaria Phoebo
Pocula bina nouo spumantia lacte quotannis
craterasque duo statuam tibi pinguis oliui
et multo in primis hilarans conuiuia Baccho
ante focum si frigus erit si messis in umbra 70
uina nouom43 fundam calathis Ariusia nectar
Cantabunt mihi Damoetas et Lyctius Aegon
saltantis Satyros imitabitur Alphesiboeus
Haec tibi semper erunt et cum sollemnia uota
reddemus Nymphis et cum lustrabimus agros 75
Dum iuga montis aper fluuios dum piscis amabit
dumque thymo pascentur apes dum rore cicadae
semper honos nomenque tuom44 laudesque manebunt
43 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nouum 44 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum
80
Vt Baccho Cererique tibi sic uota quotannis
agricolae facient damnabis tu quoque uotis 80
MOPSVS
Quae tibi quae tali reddam pro carmine dona
Nam neque me tantum uenientis sibilus Austri
nec percussa iuuant fluctu tam litora nec quae
saxosas inter decurrunt flumina uallis
MENALCAS
Hac te nos fragili donabimus ante cicuta 85
haec nos laquo Formosum Corydon ardebat Alexim45 raquo
haec eadem docuit laquo Cuium pecus an Meliboei raquo
MOPSVS
At tu sume pedum quod me cum saepe rogaret
non tulit Antigenes (et erat tum dignus amari)
formosum paribus nodis atque aere Menalca 90
45 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Alexin
81
52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo
V
Menalcas
Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar
os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre
os olmeiros46 misturados agraves aveleiras47
Mopso
Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo das
sombras incertas dos Zeacutefiros48 agitados ou melhor em uma gruta sigamos Vecirc como
a videira49 silvestre cobriu-a com cachos raros
Menalcas
Em nossos montes soacute Amintas50 disputa contigo
Mopso
Quecirc se o proacuteprio Amintas cantando se esforccedilaria para superar Febo51
46Olmeiro (ou Ulmeiro) aacutervore de grande porte que pode alcanccedilar ateacute 30m de altura sendo portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra 47 Aveleira aacutervore mediterracircnica 48Zeacutefiro Vento oeste responsaacutevel pela brisa suave 49Videira silvestre alusatildeo a Baco o deus do vinho Composiccedilatildeo do locus amoenus 50Amintas pastor e haacutebil muacutesico assim como Mopso e Menalcas 51Febo epiacuteteto para Apolo o deus-sol Filho de Juacutepiter e Latona eacute irmatildeo gecircmeo de Diana a deusa da caccedila Costuma ser lembrado como protetor das artes
82
Menalcas
Comeccedila Mopso primeiro jaacute que tens aquelas chamas de Fiacutelis52 os louvores
de Alcatildeo53 e as disputas de Codro54 Comeccedila Tiacutetiro55 guardaraacute os cabritos que
pastam
Mopso
Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na
casca verde de uma faia56 tu em seguida mandai que Amintas dispute comigo
Menalcas
Assim como o flexiacutevel salgueiro57 cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo
ceacuteltico58 cede agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti
Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta
Mopso
52 Fiacutelis princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado (Demoofonte rei dos atenienses) enforcou-se e foi transformada em amendoeira Conta-se que quando o esposo retornou e soube do ocorrido abraccedilou-se agrave aacutervore que ao perceber o retorno do amado passou a produzir folhas Fiacutelis tambeacutem eacute um nome de pastora que aparece como amada de Dametas e Menalcas na Eacutegloga III bem como de Tiacutersis na Eacutegloga VII 53Alcatildeo companheiro de Heacutercules haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu filho sem o ferir O louvor a Alcatildeo deixa entrever os elogios aos seus feitos natildeo sendo estranho ao gecircnero bucoacutelico pois tambeacutem se cantaraacute posteriormente os feitos do pastor Daacutefnis 54Codro rei ateniense que humildemente sacrificou-se pela paacutetria 55Tiacutetiro pastor 56A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos 57Salgueiro aacutervore de folhas longas 58 Nardo ceacuteltico espeacutecie de planta aromaacutetica conhecida como ldquovaleriana ceacutelticardquo
83
Morto Dafnis59 as Ninfas60 choravam com a cruel morte (voacutes aveleiras e rios
sois testemunhas das Ninfas) quando miseravelmente a matildee abraccedilada ao corpo do
filho chama de crueacuteis os deuses e os astros
Naqueles dias ningueacutem levou os bois para os pastos e para as frescas correntes
oacute Daacutefnis nenhum cavalo provou a aacutegua nem tocou as ervas do pasto
Os montes bravios e os bosques dizem que ateacute os leotildees cartagineses61 choraram
a tua morte Daacutefnis
Daacutefnis foi quem ensinou prender os tigres armecircnios62 no carro Daacutefnis conduziu
as danccedilas de Baco63 e cobriu as maleaacuteveis lanccedilas64 com delicadas folhas
Como as videiras satildeo as gloacuterias para as aacutervores como as uvas satildeo para as
videiras como os touros satildeo para os rebanhos como as searas satildeo para os feacuterteis
campos tu Daacutefnis eacutes a gloacuteria para todos os teus A proacutepria Pales65 e o proacuteprio Apolo66
deixaram os campos depois que os fados te levaram
Nos sulcos em que jogamos tantas vezes a cevada as aveias esteacutereis e o joio
improdutivo nascem Em lugar da delicada violeta e do purpuacutereo narciso67 surge o
paliuacutero pontiagudo68 os cardos e os espinheiros
Espalhai folhas ao chatildeo levai sombras agraves fontes pastores (Daacutefnis manda fazer
isto para si) e fazei um tuacutemulo e no tuacutemulo gravai os versos
Eu sou Daacutefnis conhecido nos bosques daqui ateacute aos astros Guardiatildeo de
formoso rebanho mais formoso sou
Menalcas
Os teus versos admiraacutevel poeta satildeo para noacutes tal como eacute o sono na relva aos
cansados tal como eacute pelo calor extinguir a sede no regato de aacutegua doce Natildeo soacute
59Daacutefnis pastor por excelecircncia e ceacutelebre inventor do gecircnero bucoacutelico Filho de Mercuacuterio e de uma Ninfa da Siciacutelia nasceu em um bosque de loureiros Mopso apresenta um lsquoelogio fuacutenebrersquo ao inventor da poesia pastoril 60 Ninfas divindades que habitam os bosques campos e aacuteguas figurativizam os elementos da natureza que compotildeem o cenaacuterio bucoacutelico 61Leotildees cartagineses leotildees africanos 62Tigres armecircnios o pastor Daacutefnis aparece como espeacutecie de lsquoheroacuteirsquo civilizador 63Baco filho de Semele e Juacutepiter eacute o deus do vinho do oacutecio e do prazer 64Maleaacuteveis lanccedilas lanccedilas enfeitadas com folhas de hera usadas pelas bacantes 65Pales deusa pastoral dos campos cultivados 66Apolo deus das pastagens eacute retomado como na figura de pastor quando apascentou os rebanhos do rei Admeto 67Purpuacutereo narciso planta de flores perfumadas 68Paliuacutero pontiagudo planta espinhosa
84
igualas o mestre69 na flauta mas na voz oacute afortunado rapaz agora seraacutes um outro
como ele Mas por nossa vez cantaremos e elevaremos o teu Daacutefnis aos astros aos
astros levaremos Daacutefnis Daacutefnis tambeacutem nos amou
Mopso
Acaso haveraacute para noacutes algo maior do que semelhante daacutediva E o proacuteprio rapaz
foi digno de ser cantado e estes versos jaacute haacute muito tempo Estimicatildeo70 nos louvou
Menalcas
O cacircndido Daacutefnis admira o desconhecido limiar do Olimpo71 vecirc as nuvens e as
estrelas sob seus peacutes Por isso alegre prazer domina as florestas os campos
restantes Patilde72 os pastores e as jovens Driacuteades73 O lobo natildeo prepara ardis ao
rebanho nem as redes preparam algum engano aos cervos O bom Daacutefnis ama os
oacutecios Os proacuteprios montes agrestes com alegria proferem gritos para os astros As
proacuteprias pedras os proacuteprios bosques entoam versos Um deus ele eacute um deus
Menalcas Oacute que tu sejas bom e favoraacutevel para os teus Eis aqui quatro altares Dois
para ti oacute Daacutefnis dois mais altos para Febo Todo ano ofertarei para ti duas taccedilas
espumantes com leite fresco e duas tigelas com azeite abundante74 Sobretudo
alegrando os festins com transbordante Baco75 ante o fogo se frio estiver agrave sombra
durante colheitas Derramarei nos copos os vinhos ariuacutesos76 um fresco neacutectar
Cantaratildeo para mim Dametas77 e Eacutegatildeo de Licto78 Alfesibeu79 imitaraacute os saacutetiros80
saltitantes Estes ritos para ti sempre existiratildeo seja quando fizermos votos solenes agraves
69Mestre alusatildeo a Daacutefnis pastor e cantor por excelecircncia 70Estimicatildeo pastor 71Olimpo Monte entre a Tessaacutelia e a Macedocircnia onde se acreditava residirem os deuses oliacutempicos 72Patilde deus dos pastores da Arcaacutedia 73Driacuteades ninfas dos bosques 74Azeite abundante oferendas agrave nova entidade rural Daacutefnis aparece como mortal divinizado 75Baco vinho por metoniacutemia 76Vinho ariuacuteso vinho de um promontoacuterio em Quios ilha das Ciacuteclades 77Dametas pastor 78Eacutegatildeo pastor da ilha de Creta 79Alfesibeu pastor 80 Saacutetiros saltitantes entidades hiacutebridas figuras humanas com chifres e patas de bode Personificam a natureza selvagem e os instintos primitivos Acompanham Baco Patilde e as Ninfas
85
Ninfas seja quando purificarmos81 os campos Enquanto o javali amar os cimos do
monte enquanto o peixe amar os rios enquanto as abelhas alimentarem-se de
tomilho e as cigarras de orvalho a honra e o teu nome e os louvores sempre
permaneceratildeo Assim como a Baco e agrave Ceres82 todo ano os agricultores prestaratildeo
votos para ti Tu mesmo solicitaraacutes os votos
Mopso
O que oferecerei a ti que presente por tal canto Pois natildeo me agrada tanto o
silvo que vem do Austro83 nem as praias atingidas pela onda nem os rios que correm
entre vales pedregosos
Menalcas
Primeiro noacutes te presentearemos com esta fraacutegil flauta que nos ensinou que
ldquoCoacuteridon ardia pelo formoso Aleacutexis84rdquo bem como ldquoDe quem pertence o rebanho
Acaso eacute de Melibeu85rdquo
Mopso
E tu Menalcas recebe o cajado que eacute formoso com noacutes iguais e com bronze
o qual embora frequentemente me rogasse Antiacutegenes natildeo levou (e era entatildeo digno
de ser amado)
81 Purificaccedilatildeo dos campos celebraccedilotildees em honra de Ceres 82Ceres deusa protetora das colheitas 83Austro vento teacutepido do sul 84Aleacutexis objeto do desejo do pastor Coacuteridon (alusatildeo agrave Bucoacutelica II) 85Melibeu pastor (alusatildeo ao iniacutecio da Bucoacutelica III)
86
53 FIGURATIVIDADE NA BUCOacuteLICA V ndash anaacutelise do texto
A poesia de gecircnero bucoacutelico destina-se aos assuntos da vida campestre em
que estatildeo presentes a natureza os animais e o pastor de cabras ou ovelhas figura
recorrente e que estaacute em simbiose com o oacutecio e os prazeres do viver ruacutestico do campo
O termo boukolikaacute ldquobucoacutelicardquo em grego refere-se a cantos de boiadeiros No que diz
respeito ao termo έχλογή (eacutecloga ou eacutegloga) trata-se de um adjetivo substantivado
que significa laquoescolharaquo laquopoesia ou trecho escolhidoraquo Soacute na linguagem moderna eacute
que se comeccedilou a empregar este termo como sinocircnimo de idiacutelio isto eacute de composiccedilatildeo
pastoril (BOLEacuteO 1936 p 15) Para Boleacuteo isso se deve a uma influecircncia antiga de
uma etimologia errocircnea segundo a qual laquoeacuteclogaraquo viria de αίξ αιγός cabra e
significaria portanto qualquer coisa como laquocanto ou poema em que entram cabrasraquo
(quando eacute sabido que laquoeacuteclogaraquo vem do verbo έχ-λέγειν escolher) Hoje os dicionaacuterios
modernos referem-se ao vocaacutebulo eacutecloga como sinocircnimo de cantos dialogados entre
pastores
Seacutervio gramaacutetico latino do seacuteculo IV dC em seu In Vergilii Carmina
Commentarii tambeacutem discorre acerca da origem do poema bucoacutelico Para ele as
bucoacutelicas foram assim chamadas a partir dos guardadores de bois Seacutervio entatildeo
menciona que a origem deste tipo de poema estaacute atrelada aos hinos em louvor a Diana
e Apolo Nocircmio no tempo em que o deus apascentou os rebanhos de Admeto Seacutervio
afirma ainda que o poema bucoacutelico foi dedicado pelos pastores aos numes ruacutesticos
tais como Patilde faunos ninfas e saacutetiros
Assim na composiccedilatildeo bucoacutelica geralmente figuram os guardadores de gado
os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas que estatildeo sempre
inseridos em um cenaacuterio campesino Os pastores satildeo representados como homens
do campo que vivem singelamente e que estatildeo sempre acompanhados de seus
cajados e rebanhos Aleacutem disso no momento de oacutecio entoam cantigas inocentes na
singela flauta
Em Roma coube a Virgiacutelio as primeiras composiccedilotildees pastoris Nas Bucoacutelicas
coleccedilatildeo de poemas publicados entre 42 e 37 aC ao buscar motivos nos Idiacutelios de
Teoacutecrito poeta siracusano do Periacuteodo Heleniacutestico (seacutec III aC) tambeacutem conhecido
87
tradicionalmente como o fundador do gecircnero bucoacutelico Virgiacutelio criou ambientaccedilotildees e
personagens valendo-se de uma linguagem repleta de elementos figurativos
A tradiccedilatildeo claacutessica atribui ao siracusano Teoacutecrito a origem do poema bucoacutelico
Girard (apud BOLEacuteO 1936 p 21) ao referir-se agrave poesia pastoril grega menciona o
nome de Teoacutecrito como criador de modelos Mas nos estudos de Boleacuteo afirma-se
que seria errocircneo pensar em Teoacutecrito como uacutenico criador da poesia de gecircnero
bucoacutelico jaacute que o poeta tal como Homero vale-se de uma reminiscecircncia literaacuteria
praticada na Greacutecia Com isso ao mencionar as origens remotas da poesia bucoacutelica
Boleacuteo (1936 p 33) lembra sobre a praacutetica da agricultura (referindo-se assim ao
campo e agrave natureza em geral) e da pastoriacutecia (referindo-se agrave simpatia pelo pastor)
como elemento fundamental para a caracterizaccedilatildeo do povo siciliano e da Siciacutelia tida
pelo criacutetico como a paacutetria por excelecircncia do gecircnero da poesia pastoril Somando-se a
isso Boacuteleo menciona que a poesia bucoacutelica teve na mitologia agreste especialmente
no mito de Daacutefnis sua principal fonte
Os poemas bucoacutelicos de Virgiacutelio apresentam um cenaacuterio em que estatildeo
presentes figuras coerentes ao contexto pastoril Mas Zeacutelia de Almeida Cardoso
(1989 p 66) afirma que ldquoApesar da simplicidade dos temas a linguagem de Virgiacutelio
nas Bucoacutelicas eacute bastante rica em figuras de estilo e elementos ornamentaisrdquo Isso
mostra que a expressatildeo tradicional ldquoestilo simplesrdquo para caracterizar o gecircnero bucoacutelico
pode induzir a conclusotildees precipitadas do ponto de vista da sofisticaccedilatildeo da linguagem
empregada nos poemas Ao nos referirmos ao estilo simples em relaccedilatildeo agrave poesia
bucoacutelica de Virgiacutelio queremos com isso destacar o efeito de sentido depreendido a
partir de uma coerecircncia discursiva O estilo simples se verifica dessa forma na
expectativa gerada pela rede de figuras que eacute recorrente no discurso sendo capaz de
construir um especiacutefico efeito de sentido partindo da caracterizaccedilatildeo do tipo de
personagens e ambientaccedilatildeo proacuteprios da poesia bucoacutelica
O pastor o protagonista do cenaacuterio bucoacutelico aleacutem de se deleitar com a vida
ruacutestica do campo desfrutando do oacutecio tambeacutem participa com seu engenho e arte da
composiccedilatildeo da cena pastoril Fontenelle (apud BOLEacuteO 1936 p 59) revela assim
que o poema bucoacutelico traz um elemento muito importante o aspecto musical
O costume de fazer acompanhar a poesia de muacutesica ou melhor o haacutebito de
compor versos para serem cantados e acompanhados de um instrumento musical
natildeo era soacute peculiar agrave poesia liacuterica mas agrave poesia em geral de tal forma que antes de
88
Hesiacuteodo e Piacutendaro a palavra ldquocriadorrdquo ou ldquopoetardquo era sinocircnimo de cantor de aedo []
(BOLEacuteO 1936 p 59)
Com isso os pastores na poesia de gecircnero bucoacutelico estatildeo ligados agrave terra e agrave
arte de bem dizer e portanto frequentemente aparecem como cantores Sabe-se que
o canto bucoacutelico eacute um dos elementos essenciais nos Idiacutelios pastoris de Teoacutecrito
servindo de modelo a Virgiacutelio na composiccedilatildeo das Bucoacutelicas de nuacutemero I III V VII e
IX
As bucoacutelicas iacutempares apresentam diaacutelogos de pastores com tonalidade
dramaacutetica A seacutetima bucoacutelica por exemplo vale-se de proacutelogos dirigidos ao auditoacuterio
assemelhando-se agraves comeacutedias de Plauto Assim como esta os outros poemas
tambeacutem trabalham com o apelo cecircnico revelando-se fortemente dramaacuteticas
E de Saint-Denis (apud MENDES 1997 p 144) cita algumas dessas
caracteriacutesticas e questiona a investigaccedilatildeo das Bucoacutelicas a partir da encenaccedilatildeo e da
muacutesica Com base em dados cecircnico-musicais o criacutetico procura elementos que
revelem a progressatildeo dramaacutetica que se desenvolve no cenaacuterio bucoacutelico
Para Joatildeo Pedro Mendes (1997 p144)
A muacutesica acompanha sempre a encenaccedilatildeo quer executada pela flauta dos pastores quer murmurada em surdina pela natureza envolvente quer ainda pelos recursos teacutecnicos do verso (anaacuteforas ecos ressonacircncias aliteraccedilotildees e assonacircncias no final do verso ou do hemistiacutequio)
O desafio poeacutetico de motivo liacuterico era praticado entre dois pastores O canto
dialogado constituiacutea o chamado canto amebeu ldquoque significa tomar uma coisa em
troca doutrardquo (BOLEacuteO 1936 p 61) Com o teacutermino dos cantos o pastor vitorioso
recebia um precircmio uma flauta pastoril ou um cajado por exemplo
Ao definir os antecedentes do desafio poeacutetico Luiacutes da Cacircmara Cascudo (2005)
tambeacutem menciona os versos improvisados que os romanos chamaram de
amoeboeum carmen ou seja canto amebeu que ldquoera alternado e os interlocutores
deviam responder com igual nuacutemero de versosrdquo (2005 p 185-186)
Em seu ensaio Virgiacutelio e os cantadores (2005) Mauro Mendes apresenta-nos
uma definiccedilatildeo para o concurso ou desafio poeacutetico entre pastores
Enquanto cuidavam dos rebanhos os pastores costumavam promover disputas entre si para ver quem era o melhor na arte de cantar e fazer versos Plessis sem nenhum preconceito chama a este tipo de
89
disputa de ldquoconcurso poeacuteticordquo (concours poeacutetique) o qual se realizava sob a observaccedilatildeo de um juiz Iniciada a disputa os dois rivais se alternavam cantando estrofes que deviam ter o mesmo nuacutemero de versos tendo o segundo improvisador a obrigaccedilatildeo de se manter dentro do tema proposto pelo primeiro quer o contradizendo quer o enriquecendo com variaccedilotildees O primeiro improvisador (repentista) tanto podia se manter dentro de um mesmo tema durante vaacuterias estrofes quanto podia mudaacute-lo bruscamente criando assim dificuldades para o segundo Este tipo de desafio era denominado canto ldquoamebeurdquo (canto alternado) (MENDES 2005 p 16-17)
A ldquoV Bucoacutelicardquo concentra-se no canto alternado entre dois amigos pastores
Menalcas e Mopso que se encontram em um cenaacuterio campestre para juntos
celebrarem o pastor miacutetico Daacutefnis e por extensatildeo o proacuteprio gecircnero bucoacutelico De
acordo com Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 236) o canto amebeu existe neste poema
todavia em um tom muito diferente pois natildeo haacute o compromisso da aposta entre os
dois pastores-cantadores Aleacutem disso apresentam-se trechos longos elaborados
que visam o mero prazer de recitar
Logo a composiccedilatildeo do universo pastoril seraacute feita gradualmente a partir da fala
dos personagens-pastores O poema inicia-se com a fala de Menalcas (hex 1-3) que
apresenta a descriccedilatildeo do locus amoenus
MENALCAS
Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo tu calamos inflare leuis ego dicere uersus hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre os olmeiros misturados agraves aveleiras
Nestes versos Menalcas convida o pastor Mopso para sentar-se entre os
olmeiros e as aveleiras O Olmeiro (ou Ulmeiro) eacute uma aacutervore de grande porte e
portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra Era comum aos pastores no
momento de oacutecio desfrutarem da sombra de uma frondosa faia enquanto tocavam a
singela flauta Trata-se de uma temaacutetica recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico A
descriccedilatildeo do lugar apraziacutevel e favoraacutevel portanto ao canto aparece iconicamente no
hexacircmetro 3
90
Hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
Aqui nos sentamos entre os olmeiros misturados agraves aveleiras
Destaca-se deste verso o verbo ldquoconsedimusrdquo (sentamos) que estaacute entre
ldquocorylisrdquo aveleiras e ldquoulmosrdquo olmeiros figurativizando o convite que Menalcas faz a
Mopso o de que deveriam se sentar entre as aveleiras e os olmeiros Nota-se que a
disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso favorece agrave impressatildeo referencial do cenaacuterio
bucoacutelico ou seja agrave percepccedilatildeo da imagem dos dois pastores que sentados entre as
aacutervores cantam a natureza que os cerca
O efeito de sentido simples eacute depreendido aqui a partir da descriccedilatildeo do cenaacuterio
bucoacutelico O lugar elegido pelos pastores eacute o chatildeo ruacutestico de onde se aproveitaraacute a
sombra do olmeiro que se encontra perto das aveleiras Dando continuidade agrave
construccedilatildeo desse efeito temos a fala de Mopso que em resposta a Menalcas (hex
4-7) procura sugerir um outro lugar para o encontro ampliando de tal forma a
descriccedilatildeo do cenaacuterio tipicamente bucoacutelico
MOPSVS
Tu maior tibi me est aequom parere Menalca Siue sub incertas Zephyris motantibus umbras Siue antro potius succedimus Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis
Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo
das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados ou melhor em uma gruta
sigamos Vecirc como a videira silvestre a cobriu com cachos raros
Da fala de Mopso merece destaque o hexacircmetro 5
Siue Sub incertaS ZephyriS motantibuS umbraS
Seja debaixo das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados
A repeticcedilatildeo do fonema s ao longo do verso deixa entrever uma sibilacircncia
significativa pois sugere a cena que estaacute sendo descrita a de que as sombras
91
proporcionadas pelas aacutervores satildeo inconstantes devido ao sopro dos ventos presente
figurativamente na repeticcedilatildeo da sibilante s O que se pode observar nesse trecho eacute
uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem em que o poeta relaciona o som ao sentido
e procura colocar em destaque agravequilo de que fala O discurso poeacutetico com isso
identifica-se com o proacuteprio referente As palavras de Joseacute Luiz Fiorin (1992 p 21)
vecircm ao encontro desse raciociacutenio
O conteuacutedo precisa unir-se a um plano de expressatildeo para manifestar-
se A expressatildeo principalmente no texto literaacuterio fornece tambeacutem
elementos dotados de valor significativo Esses elementos satildeo
basicamente os efeitos estiliacutesticos da expressatildeo ritmo aliteraccedilotildees
assonacircncias figuras de construccedilatildeo etc
Zeacutefiro eacute o vento oeste a personificaccedilatildeo do sopro sugerido pela aliteraccedilatildeo da
sibilante s no quinto hexacircmetro do poema de Virgiacutelio No quadro O Nascimento de
Vecircnus de Sandro Botticelli o sopro do Zeacutefiro permite que Vecircnus deusa do amor e da
beleza aproxime-se da Ilha de Chipre onde deveraacute ser recebida pelas Graccedilas
Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus
Fonte CUMMING Robert 1998 p 22
92
O sopro que em Virgiacutelio aparece como jogo aliterativo na concretude das
palavras dispostas no verso e na tentativa de homologaccedilatildeo do som ao sentido em
Botticelli aparece no movimento pictoacuterico sugerido pela ilusatildeo da presenccedila das ondas
no mar no manto e nos cabelos esvoaccedilantes aleacutem das flores que se desprendem
com o movimento desse sopro Enquanto Virgiacutelio extrai da palavra seu poder
figurador Botticelli exalta a plasticidade dos corpos e sugere a sensaccedilatildeo de
movimento as figuras estatildeo paradas enquanto as linhas se movimentam
Voltando agrave descriccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico da fala de Mopso ainda merecem
destaque os hexacircmetros 6 e 7
[] Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis
Vecirc como a videira silvestre cobriu a gruta com cachos raros
A disposiccedilatildeo dos sintagmas neste verso contribui para a construccedilatildeo figurativa
da cena que estaacute sendo descrita Nota-se que a videira silvestre ldquolabrusca siluestrisrdquo
estaacute entre os cachos raros ldquoraris racemisrdquo favorecendo agrave construccedilatildeo da imagem da
videira que estaacute circundada por cachos dispersos de uvas
A descriccedilatildeo do locus amoenus mais uma vez aparece na fala do pastor
remetendo-nos ao efeito de sentido simples proacuteprio da poesia bucoacutelica
No decorrer dos cantos alternados entre os amigos pastores o cenaacuterio bucoacutelico
vai sendo tecido ao abrigo de figuras que entrecruzadas favorecem agrave apreensatildeo
temaacutetica do ldquolouvor ao proacuteprio canto bucoacutelicordquo
Logo Menalcas (hex10-12) sugere a Mopso alguns temas mais elevados para
o canto bucoacutelico os louvores de Alcatildeo as disputas de Codro e a histoacuteria de Fiacutelis
afirmando que os cabritos seratildeo guardados por Tiacutetiro Alcatildeo era companheiro de
Heacutercules foi um haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu
filho sem o ferir Codro foi um rei ateniense que se sacrificou por sua paacutetria e Fiacutelis foi
uma princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado enforcou-
se e foi transformada em amendoeira Menalcas apresenta dessa forma alguns
temas um pouco mais elevados para abrir a inspiraccedilatildeo do amigo pastor Mas Mopso
se recorda da temaacutetica bucoacutelica e assim responde
93
(hex 13-15)
MOPSVS
Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi carmina descripsi et modulans alterna notaui experiar tu deinde iubeto certet Amyntas
Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na casca verde de uma faia tu em seguida mandai que Amintas dispute (comigo)
A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute
que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos
As figuras apresentadas remetem-nos portanto agrave descriccedilatildeo do espaccedilo
campestre que deve ser sempre um lugar apraziacutevel tanto ao oacutecio quanto ao canto
Aleacutem disso a fala de Mopso deixa entrever os temas singelos humildes proacuteprios da
poesia bucoacutelica o que corrobora para a construccedilatildeo do efeito de sentido simples
Menalcas nos hexacircmetros 16 a 19 cita outros elementos que compotildeem o
espaccedilo bucoacutelico e em seguida entra na gruta com Mopso
MENALCAS
Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae puniceis humilis quantum saliunca rosetis iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas Sed tu desine plura puer sucessimus antro
Assim como o flexiacutevel salgueiro cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo ceacuteltico (cede) agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta
O salgueiro citado por Menalcas eacute um arbusto de folhas delgadas com longos
e flexiacuteveis ramos que serviam para a confecccedilatildeo de cestas e outros objetos de uso
rural A oliveira no pequeno excerto ganha o epiacuteteto de paacutelida Isso se deve agrave cor de
sua folhagem jaacute que nos olivais prevalece o tom cinza As figuras apresentadas na
94
fala dos pastores ao tecer um cenaacuterio bucoacutelico por meio de recorrecircncias coerentes
vatildeo criando um efeito de sentido que caracteriza o estilo simples proacuteprio da poesia
pastoril
Tendo transferido o lugar do canto das sombras incertas para a gruta
circundada por cachos de uvas os pastores iniciam o canto O lugar apraziacutevel
escolhido pelos pastores pode ser definido como um iacutendice espacial em que figuram
os elementos responsaacuteveis pela caracterizaccedilatildeo do gecircnero da poesia pastoril Aleacutem
disso nota-se que o iacutendice temporal eacute estaacutetico jaacute que o ambiente e as personagens
tecircm avidez de presente Isso eacute previsto pelo equiliacutebrio sugerido pela composiccedilatildeo de
gecircnero bucoacutelico que natildeo comporta sobressaltos ou rupturas na descriccedilatildeo do locus
amoenus e no tempo que rege as personagens Os pastores exaltam a tranquilidade
que adveacutem da natureza e a partir dela entoam seus versos
Mopso entatildeo principia a celebraccedilatildeo de Daacutefnis em uma espeacutecie de hino
fuacutenebre em que canta o modo como a natureza pranteou o inventor do canto
bucoacutelico Nos hexacircmetros de nuacutemero 20 a 44 observa-se que as Ninfas divindades
que habitam as fontes montes e campos natildeo mais seratildeo lembradas pelo lendaacuterio
cantor bucoacutelico e por isso choram a sua morte Essas divindades figurativizam os
elementos da natureza que geralmente compotildeem todo o ambiente campestre O canto
de Mopso deixa entrever que a morte de Daacutefnis eacute responsaacutevel pela quebra da ordem
natural das coisas jaacute que nenhum animal tocou a erva do pasto ou provou a aacutegua do
regato Devido agrave morte de Daacutefnis os campos tornaram-se infeacuterteis e produziram
plantas esteacutereis e com espinhos o que demonstra a tristeza do cenaacuterio bucoacutelico
Afinal
Dafnis eacute um pastor ou antes o pastor por excelecircncia [] a divindade protectora dos pastores Eacute pastor [] tem um rebanho a seu cargo leva-o a pascer aos campos Aiacute enamoram-se decircle tocircdas as coisas tocircdas as criaturas desde as inanimadas ndash as pedras as aacutervores ndash ateacute aos animais A sua presenccedila anima a proacutepria natureza que vive e sente como um ser humano(BOLEacuteO 1936 p 31-2)
No canto de Menalcas (hex 56-80) tem-se a divinizaccedilatildeo do pastor Daacutefnis jaacute
que ele seraacute cantado agrave semelhanccedila de Baco o deus do vinho e de Ceres a deusa
da colheita Enquanto no canto de Mopso a natureza se entristece com a morte do
pastor no canto de Menalcas a mesma natureza alegra-se com sua divinizaccedilatildeo uma
95
vez que o lendaacuterio pastor seraacute instituiacutedo como divindade campestre devendo ser
lembrado pelos agricultores juntamente com Baco e Ceres
De acordo com Prado (1992 p 55)
Daacutefnis eacute Daacutefnis ou ainda aquele heroacutei dos pastores da Siciacutelia que segundo a lenda inventou o canto bucoacutelico do qual se tornou depois sua figura predileta e mais filho de Hermes e de uma ninfa nasceu no vale dos montes Ereus a matildee o deu agrave luz ou o expocircs num bosque de louros donde o seu nome tendo crescido tornou-se um pastor de rebanhos bovinos que lhe aprazia apascentar cantando e tocando sua flauta de Patilde era belo a ponto de ter sido amado por seres humanos e divinos tais como Patilde Priapo as Ninfas as Musas Apolo Aacutertemis etc ainda jovem veio a morrer e toda a natureza o pranteou haacute vaacuterias versotildees acerca da forma como morreu segundo a versatildeo mais antiga a de Estesiacutecoro apaixonou-se por uma ninfa (Neide Equeneide ou Lica) que o cegou para vingar-se de uma infidelidade por algum tempo Daacutefnis confortou-se com seu proacuteprio canto mas depois num momento de desespero precipitou-se do alto de uma rocha e foi levado aos ceacuteus por Hermes os pastores passaram a oferecer-lhe sacrifiacutecios anualmente no local onde ele teria se precipitado Tal eacute a resposta mais objetiva que se pode dar acerca da identidade de Daacutefnis
Ao questionarmo-nos sobre a escolha do mito de Daacutefnis na ldquoV Bucoacutelicardquo
chegamos em Teoacutecrito jaacute que em seu Idiacutelio I ldquoencontramos o pastor Thyrsis cantando
os infortuacutenios de Daacutefnis golpeado por Afrodite por um amor irresistiacutevel porque se
gabava de ser insensiacutevel a essa classe de paixatildeo Vaacuterias passagens daquele canto
e mesmo alguns versos inteiros foram reproduzidos por Virgiacutelio na Eacutegloga Vrdquo
(PRADO 1992 p 56)
Mas vale ressaltar que no idiacutelio de Teoacutecrito Daacutefnis natildeo eacute divinizado mas sim
ao contraacuterio jaacute que ele ldquobaixa agraves profundezas do Hades ateacute submergir ou dissolver-
se nas aacuteguas do rio Estiacutegio enquanto no relato do pastor virgiliano (vs 56-80) haacute uma
longa celebraccedilatildeo do novo status de Daacutefnis como deus []rdquo (PRADO 1992 p 56
grifo do autor)
Na visatildeo de Prado (1992 p 56-57) Virgiacutelio na ldquoV Bucoacutelicardquo distancia-se da
temaacutetica teocriteana para assim construir um novo mito calcado no discurso histoacuterico
e lendaacuterio dos feitos de Ceacutesar criando com isso uma atmosfera propiacutecia ao
Cesarismo que ficaria cristalizado posteriormente na figura de Otaviano
Segundo Prado (1992) Juacutelio Ceacutesar e Daacutefnis podem ser aproximados no
discurso poeacutetico de Virgiacutelio porque ambos podem ser vistos como heroacuteis lendaacuterios
96
aleacutem do que alguns indiacutecios da histoacuteria do general romano mostram que Ceacutesar
tambeacutem foi divinizado em 42 aC pelos triuacutenviros Aleacutem disso outro intertexto que
torna possiacutevel aliar a histoacuteria lendaacuteria de Ceacutesar com a de Daacutefnis segundo o criacutetico eacute
a sucessatildeo de eventos que se seguem apoacutes a morte do imperador mas descritos em
um texto posterior nas Geoacutergicas (Canto I hex-463-488)
Nas palavras de Prado (1992 p 57)
Quando ele morreu Virgiacutelio nos conta que o sol se escondeu e o povo julgou que fosse o fim dos tempos aleacutem do sol tambeacutem deram sinais a terra as aacuteguas do mar os catildees agourentos as aves mal astradas o Etna vomitou lava ouviram-se clamores de guerra na Germacircnia os Alpes tremeram vozes ressoaram na escuridatildeo da noite e fantasmas apareceram nos bosques animais falaram rios houve que transbordaram ou suspenderam o curso de suas aacuteguas e toda sorte de estranhos acontecimentos deram lugar agrave morte desse heroacutei de Roma
Logo segundo Prado todos esses fatos lendaacuterios quando somados deixam
entrever uma apropriaccedilatildeo de um aspecto cultural e poliacutetico do tempo de Virgiacutelio
Natildeo podemos perder de vista eacute claro que ldquoos noventa hexacircmetros datiacutelicos de
Virgiacutelio que a tradiccedilatildeo dos estudos claacutessicos nos transmite sob a designaccedilatildeo de
Eacutegloga V por vezes subintitulados Daphnis em boas ediccedilotildees satildeo como os de
qualquer uma das outras nove peccedilas da coletacircnea uma fala em liacutengua latinardquo (LIMA
1992 p 59 grifo do autor)
Na visatildeo de Lima (1992) neste canto liacuterico-pastoral de Virgiacutelio deixa-se
entrever um efeito de sentido logo no iniacutecio do primeiro hexacircmetro ndash Cur non
consedimus (Por que natildeo nos sentamos) Cur eacute responsaacutevel por causa de seu
valor latino de forma de interrogaccedilatildeo pelo efeito de sentido ldquoconversa entre
interlocutoresrsquo
com que Virgiacutelio finge poeticamente incorporar a uma simples fala de pastores aquilo que eacute mais propriamente efusatildeo liacuterica ao mesmo tempo em que se torna como que natural o prolongamento dessa efusatildeo graccedilas agrave economia simulada num jogo de pergunta e resposta entre parceiros No plano fonoloacutegico cur 1) antecipa e faz ressoarem as assonacircncias em liacutequidas intensificadas jaacute no hexacircmetro seguinte 2) acentua a oposiccedilatildeo entre a leveza da flauta ruacutestica que parece comunicar-se agrave liquidez natural do seu som simbolizada no fonema [l] e uma certa dureza das vibraccedilotildees do [r] da voz humana do pastor Menalcas tu calamos inflare leuis ego dicere uersus (LIMA 1992 p 63 grifos do autor)
97
Segundo Lima (1992) Daphnis eacute o vocaacutebulo de maior recorrecircncia na ldquoV
Bucoacutelicardquo jaacute que aparece 13 vezes pois tem um relevo especial Para o criacutetico natildeo
haacute duacutevida sobre a adesatildeo entusiasta do poeta em relaccedilatildeo agrave monarquia juliana Mas
se isso deve ser interpretado ldquocomo identificaccedilatildeo pura e simples de uma obra que eacute
produto do imaginaacuterio e do talento com a ideologia dos mortais interessados no ecircxito
de um evento poliacutetico e natildeo primeiro como transfiguraccedilatildeo poeacutetica da vida em
sociedade eacute uma questatildeo de gosto e de sensibilidaderdquo (LIMA 1992 p 63-64)
Com relaccedilatildeo aos expedientes figurativos presentes no poema podem-se
destacar ainda os hexacircmetros 83 e 84 da fala de Mopso que se emociona com o
canto de Menalcas e afirma que nem as aacuteguas que descem pelo vale o deleitam tanto
[] nec quae saxosas inter decurrunt flumina uallis
nem os rios que descem por entre vales escarpados
A distribuiccedilatildeo dos vocaacutebulos contribui iconicamente para a mimetizaccedilatildeo da
cena que estaacute sendo invocada jaacute que ldquofluminardquo rios aparece figurativamente entre
ldquouallis saxosasrdquo vales escarpados Temos dessa forma a imagem do rio construiacuteda
em meio ao vale
Ao apresentar o pastor Daacutefnis lendaacuterio inventor do canto bucoacutelico como tema
principal de toda a trama de figuras a ldquoV Bucoacutelicardquo deixa entrever o tema do ldquolouvor
ao proacuteprio gecircnero pastorilrdquo que eacute revestido por figuras que simbolizam todo o universo
campestre
O estilo pensado aqui como efeito de individuaccedilatildeo construiacutedo no poema eacute
depreendido pela coerecircncia discursiva ou seja pela rede de figuras que vatildeo criando
uma expectativa do dizer A recorrecircncia figurativa potencializa dessa forma o estilo
enunciado porque ele vai aparecer como um efeito de sentido depreendido pelo
contexto do poema Na ldquoV Bucoacutelicardquo portanto temos um estilo simples construiacutedo
como efeito a partir de um cenaacuterio campesino (com uma gruta coberta por cachos de
uvas um olmeiro uma frondosa faia) o canto alternado entre dois pastores (Mopso e
Menalcas) e a menccedilatildeo a deuses que se coadunam com o ambiente campestre
(Daacutefnis Ceres)
98
Buscou-se entender assim como o arranjo de figuras presentes no poema
contribui para a construccedilatildeo da verossimilhanccedila do cenaacuterio bucoacutelico o locus amoenus
o lugar apraziacutevel destinado ao canto e ao oacutecio dos poetas-pastores Ao destacarmos
o jogo aliterativo e posicional das palavras na produccedilatildeo de impressotildees referenciais
procuramos apreender tambeacutem a forma como Virgiacutelio trama as palavras que estatildeo em
andamento no poema remetendo-nos ao sentido poeacutetico e esteacutetico do texto
99
54 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) ldquodescriccedilatildeo do lugar adequado
para as abelhasrdquo
Protinus aerii mellis caelestia dona
exsequar hanc etiam Maecenas adspice partem
Admiranda tibi leuim spetacula rerum
magnanimosque duces totiusque ordine gentis
mores et studia et populos et proelia dicam 5
In tenui labor at tenuis non gloria si quem
numina laeua sinunt auditque uocatus Apollo
Principio sedes apibus statioque petenda
quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti
ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci 10
floribus insultent aut errans bubula campo
decutiat rorem et surgentis atterat herbas
Absint et picti squalentia terga lacerti
pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolocres
et manibus Procne pectus signata cruentis 15
omnia nam late uastant ipsasque uolantis
ore ferunt dulcem nidis immitibus escam
At liquidi fontes et stagna uirentia musco
adsint et tenuis fugiens per graminha riuos
palmaque uestibulum aut igens oleaster inumbret 20
ut cum prima noui ducent examina reges
uere suo ludetque fauis emissa iuuentus
uicina inuitet decedere ripa calori
100
obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos
In medium seu stabit iners seu profluet umor 25
transuersas salices et grandia conice saxa
pontibus ut crebris possint consistere et alas
pandere ad aestiuom86 solem si forte morantis
sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus
Haec circum casiae uirides et olentia late 30
serpylla87 et grauiter spirantis copia thymbrae
floreat inriguom88que bibant uiolaria fontem
Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis
seu lento fuerint aluaria uimine texta
angustos habeant aditus nam frigore mella 35
cogit hiems eademque calor liquefacta remittit
Vtraque uis apibus pariter metuenda neque illae
nequiquam in tectis certatim tenuia cera
spiramenta linunt fucoque et floribus oras
explent conlectumque haec ipsa ad munera gluten 40
et uisco et Phrygiae seruant pice lentius Idae
Saepe etiam effosis si uera est fama latebris
sub terra fouere larem penitusque repertae
pumicibusque cauis exesaeque arboris antro
Tu tamen et leui rimosa cubilia limo 45
unge fouens circum et raras superinice frondis
86 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aestiuum Aquiacute optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1956 87 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se serpulla 88 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se inriguumque
101
neu propius tectis taxum sine neue rubentis
ure foco cancros altae neu crede paludi
aut ubi odor caeni grauis aut ubi concaua pulsu
saxa sonant uocisque ofensa resultat imago 50
Quod superest ubi pulsam hiemem sol aureus egit
sub terras caelumque aestiua luce reclusit
illae continuo saltus siluasque peragrant
purpureosque metunt flores et flumina libant
summa leues Hinc nescio qua dulcedine laetae 55
progeniem nidosque fouent hinc arte recentis
excudunt ceras et mella tenacia fingunt
Hinc ubi iam emissum caueis ad sidera caeli
nare per aestatem liquidam suspexeris agmen
obscuramque trahi uento mirabere nubem 60
contemplator aquas dulcis et frondea semper
tecta petunt Huc tu iussos adsperge sapores
trita melisphylla et cerinthae ignobile gramen
tinnitusque cie et Matris quate cymbala circum
ipsae consident medicatis sedibus ipsae 65
intima more suo sese in cunabula condent
Sin autem ad pugnam exierint ndash nam saepe duobus
regibus incessit magno discordia motu
continuoque animos uolgi89 et trepidantia bello
corda licet longe praesciscere namque morantis 70
89 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se uulgi
102
Martius ille aeris rauci canor increpat et uox
auditur fractos sonitus imitata tubarum
tum trepidae inter se coeunt pinnisque coruscant
spiculaque exacuunt rostris aptantque lacertos
et circa regem atque ipsa ad praetoria densae 75
miscentur magnisque uocant clamoribus hostem
ergo ubi uer nactae sudum camposque patentis
erumpunt portis concurritur aethere in alto
fit sonitus magnum mixtae glomerantur in orbem
praecipitesque cadunt non densior aere grando 80
nec de concussa tantum pluit ilice glandis
ipsi per medias acies insignibus alis
ingentis animos angusto in pectore uersant
usque adeo obnixi non cedere dum grauis aut hos
aut hos uersa fuga uictor dare terga subegit ndash 85
hi motus animorum atque haec certamina tanta
pulueris exigui iactu compressa quiescunt
Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo
deterior qui uisus eum ne prodigus obsit
dede neci melior uacua sine regnet in aula 90
Alter erit maculis auro squalentibus ardens
(nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore
et rutilis clarus squamis ille horridus alter
desidia latamque trahens inglorius aluom90
90 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se aluum
103
Vt binae regum facies ita corpora plebis 95
namque aliae turpes horrent ceu puluere ab alto
quom91 uenit et sicco terram spuit ore uiator
aridus elucent aliae et fulgore coruscant
ardentes auro et paribus lita corpora guttis
Haec potior suboles hinc caeli tempore certo 100
dulcia mella premes nec tantum dulcia quantum
et liquida et durum Bacchi domitura saporem
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt
contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont92
instabilis animos ludo prohibebis inani 105
Nec magnus prohibere labor tu regibus alas
eripe non illis quisquam cunctantibus altum
ire iter aut castris audebit uellere signa
Inuitent croceis halantes floribus horti
et custos furum atque auium cum falce saligna 110
Hellespontiaci seruet tutela Priapi
Ipse thymum pinosque93 ferens de montibus altis
tecta serat late circum quoi94 talia curae
ipse labore manum duro terat ipse feracis
figat humo plantas et amicos inriget imbris 115
91 Na estaccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cum 92 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se relinquunt 93 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tinosque 94 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cui
104
55 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) Traduccedilatildeo e notas
Continuadamente relatarei os dons celestes do aeacutereo mel95 Considera
tambeacutem Mecenas96 esta parte Para tua admiraccedilatildeo cantarei espetaacuteculos de breves
assuntos e em ordem magnacircnimos comandantes costumes ocupaccedilotildees povos e
combates de toda naccedilatildeo Pequeno o trabalho97 mas natildeo pequena a gloacuteria Se os
deuses contraacuterios o permitem e Apolo98 quando invocado ouve
Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que
natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem
as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo
agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes
Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos99 de ouriccedilados dorsos das feacuterteis
moradas e os melharucos100 outras aves e Procne101 marcada no peito com crueacuteis
matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes102
alimento doce para agrestes ninhos
Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos um
tecircnue riacho fluindo pela relva uma palmeira ou um alto zambujeiro103 sombreie o
vestiacutebulo104 para que quando os novos reis105 conduzirem os primeiros enxames de
abelhas em sua primavera106 e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma
margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com
folhagens hospitaleiras
No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados
salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir
95O mel era visto pelos antigos como um orvalho celeste 96Mecenas o patrono das artes na eacutepoca do reinado de Otaacutevio Augusto 97Trata-se de um assunto humilde Evidencia-se aqui a modeacutestia do tema 98Apolo o deus das artes 99Diz-se que o lagarto fica agrave espreita na entrada das colmeias sendo um de seus inimigos 100Melharuco (ou abelharuco) ave do tamanho de um sabiaacute que se nutre das abelhas e outros insetos 101Procne esposa de Tereu e irmatilde de Filomela Foi transformada em andorinha apoacutes matar o filho e servi-lo ao marido Diz-se que a mancha no peito da andorinha satildeo as marcas do sangue de Iacutetis 102 abelhas 103Zambujeiro oliveira brava 104 A entrada da colmeia 105Segundo o pensamento da eacutepoca as abelhas eram governadas por reis 106O adjetivo possessivo presente em ldquoVere suordquo indica que a primavera eacute a estaccedilatildeo das abelhas sendo mais favoraacutevel a elas
105
as asas ao sol de estio se por acaso Euro107 impetuoso tiver molhado ou submergido
em Netuno108 as que tardam
Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas109 e cheirosos serpotildees110
ao longe e uma abundacircncia de segurelha111 exalando fortemente e que os canteiros
de violetas bebam a uacutemida fonte
Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas
corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas
entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos112
Uma e outra forccedila igualmente deve ser temida pelas abelhas e natildeo sem motivo
agrave porfia113 elas revestem com cera114 as pequenas fendas de suas habitaccedilotildees e
vedam as extremidades com visco e flores e reunida para esses mesmos serviccedilos
[elas] conservam uma cola mais pegajosa do que o visgo e o pez do Ida Friacutegio115
Muitas vezes tambeacutem se eacute verdadeira a fama as abelhas aqueceram o lar em
tocas sob a terra e foram descobertas no interior de pedras porosas e na cavidade
de uma aacutervore carcomida116
Tu poreacutem unta as colmeias cheias de fenda com liso limo aquecendo ao
redor e lanccedila por cima raras117 folhagens E natildeo permitas o teixo perto dos tetos natildeo
queimes ao fogo os vermelhos caranguejos118 natildeo creias em profunda lagoa ou onde
eacute forte o odor da lama ou onde cocircncavas pedras ressoam com uma batida e resulta
o eco repercutido da voz119
107Euro vento do Leste capaz de alcanccedilar as abelhas perdidas (as que tardam) 108Netuno deus romano que preside os mares aqui representa a proacutepria agua 109 Manjerona planta aromaacutetica usada como condimento 110Serpatildeo (ou serpilho) planta aromaacutetica de pequeno porte 111Segurelha erva aromaacutetica planta ornamental tambeacutem usada como condimento 112Os excessos de calor e frio danificam o mel 113 As abelhas trabalham incansavelmente 114As abelhas revestem o interior das colmeias com proacutepolis O termo cera indica a qualidade do proacutepolis substacircncia escura e dura 115Ida friacutegio o monte Ida localizado na Friacutegia antiga regiatildeo no Oeste da Aacutesia Menor 116Diz-se que as abelhas tambeacutem se alojam em esconderijos em cavadas rochas ou nos buracos de aacutervores 117As folhagens natildeo devem ser muito longas pois o ar deve circular entre os ramos 118 Haacute diferentes remeacutedios que satildeo compostos com os caranguejos em brasa mas o odor desta preparaccedilatildeo eacute nocivo agraves abelhas 119As colmeias devem ser instaladas longe do barulho onde natildeo haacute mais eco
106
Quanto ao mais quando o aacuteureo sol expulsou o abatido inverno sob as terras120
e abriu o ceacuteu com luz de veratildeo imediatamente as abelhas percorrem os bosques e
as florestas recolhem as purpuacutereas flores e leves libam a superfiacutecie dos rios Assim
felizes eu natildeo sei por qual doccedilura aquecem os ninhos e a progecircnie depois elas
formam com arte novas ceras e produzem os licorosos meacuteis
Aiacute quando jaacute vires uma multidatildeo saiacuteda da colmeia voar pelo liacutempido estio ateacute
os astros do ceacuteu e admirares uma nuvem escura ser trazida pelo vento contempla
buscam sempre aacuteguas doces e abrigos cobertos de folhagens Espalha tu aiacute os
aromas determinados a melissa121 triturada e a erva comum do chupa-mel122 faze
ao redor soar zumbidos123 e agita os ciacutembalos da Matildee124 As proacuteprias abelhas
pousaratildeo nos lugares preparados125 elas mesmas abrigar-se-atildeo segundo seu
costume no interior da morada126
Mas se saiacuterem ao combate (porque muitas vezes a discoacuterdia de dois reis
sobreveio com grande alvoroccedilo) de longe se podem prever os acircnimos da turba e os
coraccedilotildees que vibram pela guerra127 porque aquele som marcial do rouco bronze
estimula as morosas e a voz que imita os ruidosos sons das trombetas eacute ouvida
Entatildeo agitadas entre si confrontam-se e batem as asas e afiam os ferrotildees com os
bicos e preparam as garras numerosas misturam-se ao redor do rei e ao mesmo
pretoacuterio o inimigo invocam com grandes clamores No momento em que tenham
encontrado clara primavera e descortinados campos lanccedilam-se pelas portas
combate-se Um barulho ressoa no alto ceacuteu misturadas aglomeram-se em um grande
orbe e caem precipitadas O granizo natildeo cai mais denso do ar nem tatildeo grande nuacutemero
de bolotas chove da sacudida azinheira
Os proacuteprios [reis] insignes pelas asas128 em meio aos exeacutercitos revolvem no
pequeno peito os ingentes acircnimos obstinados em natildeo ceder ateacute que o duro vencedor
120O inverno esconde-se nas entranhas da terra 121Mellisa folha para as abelhas ou para o mel 122 Chupa-mel erva de 30 a 50 cm de altura de cor roxa ou amarela cultivada em pastagens ou solo pedregoso 123 Para Virgiacutelio o barulho atrai as abelhas 124A ldquoMatildeerdquo eacute a deusa friacutegia Cibele a grande Matildee que preside toda a natureza Muitas vezes ela eacute representada com ciacutembalos 125 As abelhas entrariam na colmeia por si proacuteprias 126 Colmeia 127 Agitaccedilatildeo que se produz no enxame com a aproximaccedilatildeo do combate 128Os reis se distinguem das demais abelhas pela luminosidade de suas asas
107
obrigou estes ou aqueles a virar as costas na fuga Estes alvoroccedilos dos acircnimos e
estes tatildeo grandes combates se apaziguam reprimidos por um jato de bem pouco
poeira
Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele
que pareceu pior para que por consumir natildeo seja prejudicial deixe que o melhor
reine na desimpedida corte
Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de
ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor
aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre
Dois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo os corpos da plebe pois
umas satildeo disformes e horrendas como o viajante sedento quando vem da espessa
poeira e cospe terra de sua garganta seca outras reluzem e cintilam com fulgor
brilhantes do ouro em corpos mosqueados de manchas iguais
Essa eacute a melhor raccedila dela na estaccedilatildeo certa do ano extrairaacutes os doces meacuteis
natildeo tatildeo doces quanto puros para corrigir o aacutespero sabor de Baco
Mas quando incertos os enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os
favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o
fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles
imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do
acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e
a tutela de Priapo129 do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua
foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado
trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor
dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele
mesmo no solo enterre as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas
129 Priapo filho de Vecircnus e Baco o deus dos jardins Juno fez com que Priapo nascesse deformado Envergonhada Vecircnus mandou-o para Lacircmpsaco cidade da Miacutesia sobre o Helesponto
108
56 FIGURATIVIDADE NO CANTO IV (hex 1-115) anaacutelise do texto
Peter Toohey em seu estudo Epic Lessons an introduction to ancient didatic
poetry (1996) debruccedila-se sobre o tema da poesia didaacutetica grega e romana
demonstrando uma possiacutevel arqueologia da esteacutetica didaacutetica O autor busca assim
por meio de uma anaacutelise comparativa de um grupo de poemas uma certa regularidade
que segundo ele eacute caracteriacutestica da poesia didaacutetica Toohey observou as
composiccedilotildees de Hesiacuteodo Xenoacutefanes Parmecircnides Empeacutedocles Arato Nicandro
Ciacutecero Lucreacutecio Virgiacutelio Oviacutedio e Horaacutecio Segundo o criacutetico todos estes poetas
apresentam alguns traccedilos comuns tais como 1) uma voz forte singular e persuasiva
jaacute que segundo Toohey a poesia didaacutetica requer a presenccedila de uma voz direcionada
a um destinataacuterio 2) um assunto que seja atraente ou sensacional 3) o tipo de verso
pois para o autor o hexacircmetro datiacutelico seria um protoacutetipo da poesia didaacutetica 4) a
simplicidade conceitual e por fim 5) a extensatildeo referindo-se aos 828 versos de O
trabalho e os dias de Hesiacuteodo que se tornou segundo Toohey um modelo para um
livro de versos didaacuteticos
Tendo em vista que ldquotoda obra supotildee o horizonte de uma expectativa ou seja
um conjunto de regras preexistentes para orientar a compreensatildeo do leitor (do
puacuteblico) e permitir-lhe uma recepccedilatildeo apreciativardquo (JAUSS apud LIMA 1983 p 268)
nossa tarefa eacute a de pensar qual seria a expectativa de um discurso que se pretende
didaacutetico
O termo ldquodidaacuteticardquo remete-nos a um contexto de ensino-aprendizagem De
origem grega o termo eacute da famiacutelia do verbo διδάσκω cujo sentido principal eacute ldquofazer
aprender ensinar instruirrdquo
Desde Hesiacuteodo (750 - 650 aC) adotou-se o hexacircmetro datiacutelico como metro
convencional da poesia de gecircnero didaacutetico Todavia Oviacutedio (43 aC -18 dC) utiliza o
diacutestico elegiacuteaco em seus poemas Ars amatoria Medicamina faciei feminae e Remedia
amoris Estes textos colocaram alguns problemas agrave criacutetica tradicional pois satildeo obras
que mesclam caracteriacutesticas que satildeo proacuteprias da poesia didaacutetica com a poesia
elegiacuteaca Haacute por isso estudiosos que apresentam duacutevidas quanto agrave categorizaccedilatildeo
dessas obras ovidianas como pertencentes ao gecircnero da poesia didaacutetica sobretudo
a Ars amatoria e Remedia amoris O que se verifica eacute que uma variada gama de
109
intenccedilotildees didaacuteticas faz com que haja diferenccedilas em maior ou menor grau entre os
diferentes poemas didaacuteticos
Houve por isso vaacuterias tentativas por parte dos criacuteticos em criar uma taxonomia
do gecircnero da poesia didaacutetica130
Seacutervio no seacutec IV dC utiliza no iniacutecio do seu comentaacuterio agraves Geoacutergicas de
Virgiacutelio uma palavra de origem grega - didascalice - para se referir agrave poesia didaacutetica
et hi libri didascalici sunt unde necesse est ut ad aliquem scribantur nam praeceptum et doctoris et discipuli personam requirit unde ad Maecenatem scribit sicut Hesiodus ad Persen Lucretius ad Memmium Estes livros [das Geoacutergicas] satildeo didascaacutelicos por isso a necessidade de que para algueacutem sejam escritos uma vez que o preceito requer a pessoa do mestre e do disciacutepulo [Virgiacutelio] escreve para Mecenas
assim como Hesiacuteodo para Perses e Lucreacutecio para Mecircmio
Assim Virgiacutelio compocircs as Geoacutergicas entre 37 e 29 aC Segundo a tradiccedilatildeo dos
Estudos Claacutessicos a obra apresenta conteuacutedo instrucional sobre agricultura segundo
os pressupostos da poesia didaacutetica Algumas caracteriacutesticas do texto virgiliano dentre
elas o caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a
presenccedila de uma voz poeacutetica didaacutetica que se presta agrave instruccedilatildeo colaboraram para a
particularizaccedilatildeo da obra como gecircnero didaacutetico (TOOHEY 1996 p 15)
Sobre os modelos literaacuterios seguidos por Virgiacutelio sabe-se que as fontes satildeo
sobretudo gregas Hesiacuteodo Xenofonte Arato e Nicandro mas se constatam tambeacutem
as fontes latinas Catatildeo Varratildeo e Lucreacutecio (SANTOS 2007 p 23)
No que concerne agrave poesia didaacutetica e agrave literatura agraacuteria latina Aguilar (2006 p
247) assim expotildee
Por Literatura Agronoacutemica o Agriacutecola en el panorama literario greco-romano se entiende el conjunto de obras que tienen por objeto la exposicioacuten preceptiva de las labores y los trabajos propios de la vida en el aacutembito rural del ager y por tanto del hombre rusticus en oposicioacuten al urbanus Desde esta perspectiva se compreende sin problemas que las obras latinas De agricultura no se circunscriben estrictamente a la agricultura entendida soacutelo en sentido moderno como arte de cultivar la tierra sino que engloben tambieacuten otros
130 Conferir A Dalzell R Martin - J Gaillard Les genres litteacuteraires agrave Rome (Paris 1990) 199-200 Peter Toohey Epic lessons An introduction to ancient didactic poetry (London-New York 1996) Roy K Gibson lsquoDidactic poetry as lsquopopularrsquo form study of imperatival expressions in Latin didactic verse and prosersquo 67-69 In Catherine Atherton (ed) Form and content in didactic poetry (Bari 1997)
110
trabajos y atividades caracteriacutesticos de la economiacutea rural (la res rustica) como la arboricultura la ganaderiacutea la avicultura la apicultura o la administracioacuten misma de la uilla la finca en suelo ruacutestico (AGUILAR 2006 p247)
No Canto I das Geoacutergicas Virgiacutelio menciona a importacircncia do trabalho e a luta
obstinada com a terra No Canto II cantam-se as aacutervores e as vinhas e eacute destacado
o campo como um lugar de felicidade tranquila A terra produz frutos em troca do
esforccedilo despendido pelo homem O Canto III apresenta a raccedila dos animais e as artes
de criaccedilatildeo do gado e no Canto IV Virgiacutelio apresenta a apicultura em um quadro
agriacutecola
Na visatildeo de Elaine C Prado dos Santos (2007 p26)
Com os quatro cantos plantas aacutervores animais e abelhas o poema permite visualizar a gradaccedilatildeo dos niacuteveis da vida diferentes e hierarquizados mostrando que as criaturas se diferenciam Essa ideia eacute compatiacutevel com a filosofia epicurista ou seja agrave medida que se sobe na escala dos seres as criaturas vatildeo se diferenciando pois os organismos ficam mais complexos e compreendem um nuacutemero maior de aacutetomos diferenciados em combinaccedilotildees mais variadas
Vale ressaltar que ao compor um poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo
quis apenas transmitir alguns conhecimentos teacutecnicos sobre os trabalhos do campo
Se a criacutetica da obra virgiliana se prendesse apenas a esse aspecto temaacutetico
classificaria a obra do poeta mantuano como uma espeacutecie de tratado teacutecnico de
agronomia todavia as Geoacutergicas vatildeo muito aleacutem de um simples compecircndio de
aplicaccedilatildeo praacutetica sobre meacutetodos a serem seguidos na agricultura Aliaacutes dentro dos
preceitos uacuteteis e praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas
aqueles que se coadunam com a finalidade artiacutestica Essa seleccedilatildeo eacute portanto
significativa jaacute que estabelece a diferenccedila existente entre a poesia didaacutetica e os
tratados teacutecnicos sobre agricultura
O fiacuteloacutesofo e escritor Secircneca (4 aC-65 dC) tambeacutem opinou acerca da obra
virgiliana afirmando que ldquoO nosso poeta aliaacutes cuidava menos da verdade que da
beleza literaacuteria interessado como estava em proporcionar prazer aos seus leitores e
natildeo em dar liccedilotildees aos homens do campo rdquo (SEcircNECA 2004 p400)
O excerto do ldquoCanto IVrdquo das Geoacutergicas hexacircmetros de 1 a 115 aqui
selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise tem como tema principal a apicultura
mais precisamente a descriccedilatildeo do lugar adequado e seguro para as abelhas
111
Virgiacutelio nos hexacircmetros 1 a 7 faz uma invocaccedilatildeo a Mecenas o patrono das
letras e posteriormente nos hexacircmetros de 8 a 32 fala da situaccedilatildeo das colmeias e
da condiccedilatildeo necessaacuteria para se mantecirc-las em seguranccedila hexacircmetros 33 a 50
Menciona-se ainda o que deve ser feito pelo apicultor com a saiacuteda das abelhas para
pilhar enxamear ou combater hexacircmetros de 51 a 87 Posteriormente eacute destacada a
escolha dos reis quando duas satildeo as espeacutecies das abelhas hexacircmetros 88 a 102 e
como reter as abelhas em um jardim florido hexacircmetros 103 a 115 Seguindo o
pressuposto da poesia didaacutetica o de instruir Virgiacutelio discorre sobre o modo como se
deve cuidar das abelhas No entanto o modo como trama o texto deixa entrever um
trabalho artiacutestico primoroso com a linguagem
O estilo das Geoacutergicas eacute o meacutedio pois a obra trata de assuntos considerados
moderados destinados aos trabalhos no campo do cuidado para com as aacutervores e
plantas da criaccedilatildeo de animais de meacutedio e grande porte e por fim da apicultura Os
temas e figuras apresentados coadunam-se com um tom didaacutetico de ensinamento
Todavia o poema de Virgiacutelio natildeo se restringe apenas agrave instruccedilatildeo Haacute nas Geoacutergicas
um rico trabalho com a linguagem tanto no excerto selecionado para anaacutelise como
na segunda parte do ldquoCanto IVrdquo em que se tem a narrativa sobre Orfeu no mundo
inferior para resgatar a amada Euriacutedice (hex315-558) Deve-se levar em conta que
nas Geoacutergicas muito aleacutem de ldquoinstruirrdquo em um estilo meacutedio e portanto em um tom
didaacutetico Virgiacutelio tambeacutem se utiliza de digressotildees e procura envolvecirc-las
figurativamente em sua obra Dentre as muitas digressotildees jaacute destacamos a do ldquoCanto
IIrdquo em que Virgiacutelio faz uma pausa na descriccedilatildeo do cultivo agraves vinhas (hex259-419) para
realizar um elogio agrave primavera (315-345)
Ao mencionar o estilo meacutedio mediocris stylus fazemos alusatildeo agrave classificaccedilatildeo
feita pelos gramaacuteticos latinos em relaccedilatildeo agraves Geoacutergicas Enquanto as Bucoacutelicas
apresentam-se em um estilo simples humilis stylus tratando de assuntos destinados
ao pastor de cabra ou ovelhas as Geoacutergicas instruem o trabalho e o cultivo do campo
apresentando assuntos considerados moderados Entendemos com isso que os
temas e figuras que aparecem nas duas obras diferem quanto agrave sua funcionalidade
no texto Nos poemas bucoacutelicos encontramos quase sempre uma tematizaccedilatildeo
referente ao louvor do campo e da natureza de modo geral como vimos na ldquoBucoacutelica
Vrdquo Todas as figuras apresentadas nos poemas pastoris portanto coadunam-se com
a ideia de celebraccedilatildeo do ambiente campestre Jaacute nos poemas didaacuteticos das Geoacutergicas
o cenaacuterio ainda eacute o campo mas na tematizaccedilatildeo satildeo apresentadas a importacircncia do
112
trabalho e as diferentes teacutecnicas de cultivo As figuras didaacuteticas alinham-se assim
com o motivo da obra o de instruir
Tendo em vista que o estilo eacute um traccedilo diferencial depreensiacutevel no discurso
podemos afirmar que nas Geoacutergicas portanto a recorrecircncia figurativa que nos
transmite assuntos agriacutecolas por meio da voz de um magister deixa entrever um efeito
de individuaccedilatildeo proacuteprio da poesia didaacutetica o de instruir que permite assim a
manifestaccedilatildeo do estilo meacutedio Pensando-se na recorrecircncia figurativa presente nas
Geoacutergicas destacam-se No Canto I (hex 42-203) as figuras que nos remetem ao
trabalho para o cultivo dos cereais no Canto II (hex 9-258) destacam-se diferentes
tipos de cultivo o das plantas em geral bem como das videiras (hex 259-419) e o de
outras plantas de particular interesse como a oliveira e a macieira (hex420-540) No
Canto III menciona-se a criaccedilatildeo do gado de grande e pequeno porte (hex 49-283 e
284-566) e no Canto IV fala-se da criaccedilatildeo de abelhas e sua natureza (8-280)
No excerto selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise (Canto IV hex 1-115)
tem-se a descriccedilatildeo de um lugar seguro para as abelhas se alojarem Descreve-se
entatildeo uma espeacutecie de paraiacuteso terrestre lugar onde os ventos natildeo sopram as cabras
e ovelhas natildeo saltam a vaca natildeo esmaga as flores e os animais nocivos lagartos e
andorinhas estatildeo distantes Aleacutem disso as colmeias satildeo construiacutedas com meticuloso
cuidado contra os excessos do clima e de outros perigos (SANTOS 2007 p 33)
Com isso nos hexacircmetros de 8 a 32 o leitor eacute conduzido ao lugar mais
adequado para que as abelhas possam fundar a colocircnia Satildeo mencionadas neste
pequeno trecho algumas providecircncias que devem ser tomadas para dar agraves abelhas
as condiccedilotildees necessaacuterias para a produccedilatildeo de mel
(hex 8-32) Principio sedes apibus statioque petenda quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci floribus insultent aut errans bubula campo decutiat rorem et surgentis atterat herbas Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis omnia nam late uastant ipsasque uolantis ore ferunt dulcem nidis immitibus escam At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per graminha riuos
113
palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos In medium seu stabit iners seu profluet umor transuersas salices et grandia conice saxa pontibus ut crebris possint consistere et alas pandere ad aestiuom solem si forte morantis sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem
Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes alimento doce para agrestes ninhos Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames de abelhas em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir as asas ao sol de estio sepor acaso Euro impetuoso tiver molhado ou submergido em Netuno as que tardam Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e cheirosos serpotildees ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte
Os cinco primeiros versos do trecho selecionado para anaacutelise (hex 8-12)
trazem a imagem dos ventos que dificultam o trabalho das abelhas pois impedem que
elas carreguem os alimentos para a colmeia aleacutem disso o excerto traz as imagens
dos animais domeacutesticos que causam perturbaccedilatildeo no habitat (as ovelhas os bodes e
a novilha) o que pode comprometer as condiccedilotildees ideais agrave produccedilatildeo de mel Em
seguida satildeo citados os lagartos e as aves predadoras (melharuco e andorinhas) que
colocam em perigo a existecircncia das proacuteprias abelhas jaacute que se alimentam delas
114
A voz poeacutetica enumera assim os elementos que podem comprometer o
trabalho e a existecircncia das abelhas apresentando-nos a partir do conteuacutedo
instrucional segundo os pressupostos do gecircnero da poesia didaacutetica um conselho
sobre apicultura Dessa forma Virgiacutelio descreve o lugar adequado e seguro para que
as abelhas possam fundar a colocircnia
Dentre os elementos que ameaccedilam a existecircncia das abelhas encontramos
Procne entre as aves predadoras
(hex 13-15)
Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis
Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos
De acordo com a mitologia Procne era filha de Pandiatildeo rei de Atenas casou-
se com Tereu e dessa uniatildeo ela teve um filho Iacutetis mas ao descobrir que o marido
havia violentado sua irmatilde (Filomela) ela mata o filho e o serve ao marido Tereu
Procne entatildeo foge com a irmatilde Mas quando Tereu descobre o crime persegue as
duas mulheres que imploram aos deuses que as poupem Filomela eacute transformada
em rouxinol e Procne em andorinha (Cf GRIMAL 2014 verbete Filomela) Dizem
que as manchas no peito da andorinha satildeo traccedilos do sangue de Iacutetis que foi morto
pela matildee e servido ao pai ldquoEsse detalhe mostra a ferocidade da andorinha e assim
ela eacute um perigo para as abelhasrdquo (SANTOS 2007 p 109)
No hexacircmetro de Virgiacutelio a menccedilatildeo agrave Procne deixa entrever uma condensaccedilatildeo
imageacutetica pois o poeta sintetiza toda a histoacuteria de Procne em uma uacutenica passagem
um uacutenico verso Ao nomear a andorinha predadora como Procne Virgiacutelio resgata o
mito e faz da palavra uma figuraccedilatildeo miacutetica concreta De acordo com Cassirer (1972
p 115) ldquoNa perspectiva maacutegica do mundo em particular o encantamento verbal eacute
sempre acompanhado pelo encantamento imageacuteticordquo o que nos leva a crer nos
expedientes expressivos evidenciados na linguagem poeacutetica Logo a ferocidade da
andorinha natildeo eacute descrita mas sugerida pela menccedilatildeo ao mito A instruccedilatildeo sobre as
aves predadores ganha relevo nessa passagem do texto
115
De acordo com o relato de Virgiacutelio um grande enxame de abelhas segue o rei
para procurar uma nova casa e assim fundar a colocircnia Segundo o pensamento da
eacutepoca as abelhas eram governadas por reis e natildeo por rainhas (SANTOS 2007 p
110)
(Hex 18-24)
At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per gramina riuos palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos
Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames [de abelhas] em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras
O enxame assim deve pousar para se reagrupar em um lugar seguro longe
de ventos e tempestades pois a mudanccedila climaacutetica torna o trabalho das abelhas
impossiacutevel jaacute que elas natildeo satildeo adaptaacuteveis para voar no frio ou na chuva e precisam
de energia para enfrentar o mau tempo Confirmado o local seguro para abrigar a
colmeia longe da ferocidade de predadores lagartos andorinhas e outras aves o
proacuteximo passo eacute esquivar-se do calor pois o sol em excesso prejudica o trabalho
das abelhas O local ideal portanto deve ser o sombreado Eacute importante que em torno
das colmeias haja muitas aacutervores e folhas com capacidade de protegecirc-las das rajadas
fortes de vento e aleacutem disso a presenccedila de aacutegua eacute importante pois ela ajuda na
polinizaccedilatildeo das flores
De acordo com Huizinga em Homo Ludens (1971 p 149)
O que a linguagem poeacutetica faz eacute essencialmente jogar com as palavras Ordena-as de maneira harmoniosa e injeta misteacuterio em cada uma delas de modo tal que cada imagem passa a encerrar a soluccedilatildeo de um enigma
Levando em conta tais apontamentos merece destaque a seguinte passagem
116
(hex 19)
[] et tenuis fugiens per gramina riuos E um tecircnue riacho fluindo pela relva
Neste verso a ideia de que um tecircnue riacho passa pela relva fluindo por ela eacute
icocircnica jaacute que os termos ldquotecircnuerdquo (tenuis) e ldquoriachordquo (riuos) circundam a expressatildeo ldquoper
graminardquo (pela relva) deixando entrever o arranjo artiacutestico da linguagem poeacutetica
Como se vecirc haacute um jogo poeacutetico com as palavras um arranjo estrutural que nos suscita
uma imagem Com base no raciociacutenio tecido por Greimas (1975 p 12) podemos
afirmar que o significante graacutefico entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com
as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a
assumir como verdadeira a proposiccedilatildeo do discurso
Tambeacutem merece destaque os trecircs uacuteltimos hexacircmetros do excerto selecionado
(hex 30-32)Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e serpotildees que deitam bom cheiro ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte
Aqui Virgiacutelio nomeia trecircs ervas aromaacuteticas as verdejantes manjeronas (casiae
uirides) os serpotildees que deitam bom cheiro ao longe (olentia late serpylla) e uma
abundacircncia de segurelha exalando fortemente (grauiter spirantis copia thymbrae)
Para cada uma dessas ervas haacute uma amplitude descritiva que reforccedila imageticamente
a extensatildeo dos aromas presentes na cena Assim procurando lidar com a face mais
sensorial da palavra o poeta o artista literaacuterio deixa entrever um estiacutemulo sensorial
suscitado pela linguagem
Sobre os materiais que devem ser empregados pelo apicultor na confecccedilatildeo das
caixas das colmeias Virgiacutelio apresenta-nos
(hex 33-36) Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis
117
seu lento fuerint aluaria uimine texta angustos habeant aditus nam frigore mella
cogit hiems eademque calor liquefacta remittit
Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos
Observa-se neste excerto que dois materiais satildeo indicados para a confecccedilatildeo
das caixas que abrigam as abelhas (a corticcedila e o vime) Na descriccedilatildeo virgiliana natildeo
se faz uma distinccedilatildeo qualitativa destes materiais embora se soubesse na eacutepoca que
as caixas de corticcedila eram preferiacuteveis agraves de vime Estas informaccedilotildees natildeo escapavam
aos agrocircnomos da Antiguidade greco-latina sobretudo a Varratildeo no De Re Rustica
que eacute uma das fontes de Virgiacutelio Isso deixa entrever que a poesia didaacutetica virgiliana
longe de ser um manual com teacutecnicas de cultivo e cuidado ao campo natildeo tem o
compromisso com o detalhamento minucioso das informaccedilotildees teacutecnicas mas sim com
a forma literaacuteria
Recomenda-se ainda que a entrada das colmeias seja estreita pois isso
facilitaria o controle interno da temperatura evitando com isso o excessivo frio ou
calor Aleacutem disso a entrada estreita afastaria os invasores daninhos agraves abelhas
Nos hexacircmetros de nuacutemero 88 a 94 Virgiacutelio apresenta dois tipos de reis Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo deterior qui uisus eum ne prodigus obsit dede neci melior uacua sine regnet in aula Alter erit maculis auro squalentibus ardens (nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore et rutilis clarus squamis ille horridus alter desidia latamque trahens inglorius aluom
Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele que pareceu pior para que consumindo natildeo seja prejudicial deixa que o melhor reine na desimpedida corte Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre
O termo ldquoductoresrdquo liacutederes empregado no verso sugere uma imagem militar e
monaacuterquica identificando assim os reis das abelhas aos dos homens De um lado o
melior (hex90) ldquoo melhorrdquo aquele que ardens (hex91) ldquoque brilhardquo o que regnet in
118
aula (hex90) ldquoreina na corterdquo enquanto o pior ao contraacuterio eacute aquele que arrasta
latamquealuom (hex94) ldquoabundante ventrerdquo inglorius (hex94) ldquoingloacuteriordquo Esses
termos remetem ao gecircnero eacutepico sugerindo de acordo com alguns criacuteticos da obra
virgiliana relaccedilotildees entre o mundo das abelhas e a realidade histoacuterica do poeta mais
precisamente agrave batalha do Aacutecio Mas essa alegoria natildeo eacute um consenso entre os
pesquisadores
Nos hexacircmetros seguintes 95 a 102 Virgiacutelio faz uma comparaccedilatildeo entre dois
tipos de abelhas operaacuterias identificando-as ao seu respectivo rei Vt binae regum
facies ita corpora plebis (hex95) ldquoDois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo
os corpos da pleberdquo Neste verso fica assinalada a imagem humanizada das abelhas
como suacuteditos de reis
Os termos empregados neste excerto situam as duas espeacutecies de abelhas em
campos opostos as abelhas de tipo inferior turpes horrent (hex96) ldquosatildeo disformes e
horrendasrdquo e suas caracteriacutesticas apresentam-se por meio de uma comparaccedilatildeo jaacute
que elas satildeo apresentadas na descriccedilatildeo virgiliana ndash puluere ab alto quom uenit et
sicco terram spuit ore uiator aridus (hex96-98) ldquocomo o viajante sedento quando vem
da espessa poeira e cospe terra de sua garganta secardquo Com isso as abelhas de tipo
superior apresentam conotaccedilotildees positivas que as vinculam agrave figura do rei vencedor
elucent et fulgore coruscant (hex98) ldquoreluzem e cintilam com fulgorrdquo Nos trecircs
hexacircmetros finais (hex100-102) reforccedila-se a superioridade da primeira espeacutecie que
produz dulcia mella (hex101) ldquodoces meacuteisrdquo durum Bacchi domitura saporem
(hex102) ldquopara corrigir o aacutespero sabor de Bacordquo O termo mella (hex101) eacute um plural
poeacutetico O mel entre os antigos era tido como alimento celeste proveniente dos
deuses Virgiacutelio chama-o assim de aacuteereo mel aerii mellis caelestia dona (Geo IV 1)
ldquoos dons celestes do aeacutereo melrdquo pois de acordo com a crenccedila da eacutepoca o mel caiacutea
do ceacuteu com o orvalho sobre as flores de onde as abelhas o extraiacuteam No excerto o
mel atenua o sabor aacutespero do vinho de Baco pois era costume entre os antigos
preparar os vinhos amargos com mel
Nos hexacircmetros de nuacutemero 103 a 115 Virgiacutelio aconselha
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont instabilis animos ludo prohibebis inani Nec magnus prohibere labor tu regibus alas eripe non illis quisquam cunctantibus altum ire iter aut castris audebit uellere signa
119
Inuitent croceis halantes floribus horti et custos furum atque auium cum falce saligna Hellespontiaci seruet tutela Priapi Ipse thymum pinosque ferens de montibus altis tecta serat late circum quoi talia curae ipse labore manum duro terat ipse feracis figat humo plantas et amicos inriget imbris
Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e a tutela de Priapo do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele mesmo no solo enterre
as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas
Merece destaque deste excerto o hexacircmetro 103
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu
Os vocaacutebulos incerta e examina ldquoenxames incertosrdquo encontram-se entre os
vocaacutebulos uolant e ludunt respectivamente voam e brincam Tem-se assim a partir
da disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso a imagem dos enxames de abelhas voando e
brincando iconicamente no texto Trata-se de uma construccedilatildeo expressiva em que se
revela um trabalho artiacutestico com a linguagem
Selecionamos das Geoacutergicas os hexacircmetros de nuacutemero 1 a 115
Depreendemos deste excerto de modo geral o tema do lugar apraziacutevel a ser
modelado para as abelhas Desenvolve-se neste excerto o tema da apicultura
apresentando um conteuacutedo instrucional segundo os pressupostos da poesia didaacutetica
valendo-se de uma linguagem rica em procedimentos estiliacutesticos
Procurou-se observar como a estrutura poeacutetica atua e assim destacamos na
anaacutelise alguns hexacircmetros que consideramos mais expressivos
120
Nossa preocupaccedilatildeo eacute a de investigar o arranjo particular da linguagem poeacutetica
a construccedilatildeo expressiva do texto a sua dimensatildeo figurativa Fundamentamo-nos
para isso no conceito semioacutetico de figuratividade e na ideia explicitada por Joseph
Brodsky (1994 p 74) a de que ldquoa poesia eacute antes de mais nada uma arte de
referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo e de que ldquocom os poetas a
escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo que elas
contamrdquo (1994 p 97)
As Geoacutergicas pertencem de acordo com a tradiccedilatildeo ao gecircnero da poesia
didaacutetica Os traccedilos distintivos do poema didaacutetico iniciaram-se com Hesiacuteodo em O
trabalho e os dias seacuteculo VIII aC Durante os seacuteculos em que tal forma foi utilizada
algumas caracteriacutesticas contribuiacuteram para a especificaccedilatildeo do gecircnero tais como o
caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a presenccedila de
uma voz didaacutetica chamada de magister Os assuntos agraacuterios presentes nas
Geoacutergicas de caraacuteter instrucional como eacute proacuteprio ao gecircnero deixam entrever um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo remetendo-nos ao estilo meacutedio
Perutelli (2010 p 309-310) retomando o conceito didascaacutelico exposto por
Seacutervio assim afirma
[] o poema virgiliano contempla dois niacuteveis didaacuteticos o superficial o agriacutecola digamos recobre uma segunda mensagem mais profunda e articulada que eacute aquela da eacutetica da nova moral Dentro da linha do gecircnero didascaacutelico verifica-se a paradoxal situaccedilatildeo de um texto que tem um fim didaacutetico declarado ndash o agriacutecola ndash menos real do que outro natildeo declarado ndash o eacutetico
Na leitura traduccedilatildeo e anaacutelise do excerto selecionado das Geoacutergicas (Canto IV
hex 1-115) procuramos entender a instruccedilatildeo acerca do lugar apraziacutevel e ideal para
as abelhas fundarem sua colmeia como parte da caracterizaccedilatildeo da poesia de gecircnero
didaacutetico e de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo Logo observou-se que a voz
didaacutetica que perpassa o excerto deixa entrever a partir de um efeito de sentido
moderado figuras que nos remetem a um espaccedilo ideal a ser construiacutedo para as
abelhas Mas o assunto moderado natildeo retira assim a grandiosidade da expressatildeo
pois como atesta Virgiacutelio eacute pequeno o trabalho (in tenui labor-hex6) natildeo pequena a
gloacuteria (tenuis non gloria -hex6)
121
57 ENEIDA Canto VIII (hex 612-731) ldquoENEIAS E AS ARMAS DE GUERRArdquo
ldquoEn perfecta mei promissa coniugis arte
munera ne mox aut Laurentis nate superbos
aut acrem dubites in proelia poscere Turnumrdquo
Dixit et amplexus nati Cytherea petiuit 615
arma sub aduersa posuit radiantia quercu
Ille deae donis et tanto laetus honore
expleri nequit atque oculos per singula uoluit
miraturque interque manus et bracchia uersat
terribilem cristis galeam flammasque minantem131 620
fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem
sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes
solis inardescit radiis longeque refulget
tum leues ocreas electro auroque recocto
hastamque et clipei non enarrabile textum 625
Illic res Italas Romanorumque triumphos
haud uatum ignarus uenturique inscius aeui
fecerat ignipotens illic genus omne futurae
stirpis ab Ascanio pugnataque in ordine bella
Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro 630
procubuisse lupam geminos huic ubera circum
ludere pendentis pueros et lambere matrem
impauidos illam tereti ceruice reflexam
mulcere alternos et corpora fingere lingua
Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas 635
consessu caueae magnis Circensibus actis
131 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se uomentem Conington em The Works of Virgil (2008) tambeacutem chama a atenccedilatildeo para o termo uomentem embora coloque em notas ao texto as duas formas (uomentem e minantem) Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1957
122
addiderat subitoque nouom132 consuergere bellum
Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris
Post idem inter se posito certamine reges
armati Iouis ante aram paterasque tenentes 640
stabant et caesa iungebant foedera porca
Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae
distulerant (at tu dictis Albane maneres)
raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus
per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres 645
Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat
accipere ingentique urbem obsidione premebat
Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant
Illum indignanti similem similemque minanti
aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles 650
et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis
In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat
Romuleoque recens horrebat regia culmo
Atque hic auratis uolitans argenteus anser 655
porticibus Gallos in limine adesse canebat
Galli per dumos aderant arcemque tenebant
defensi tenebris et dono noctis opacae
aurea caesaries ollis atque aurea uestis
uirgatis lucent sagulis tum lactea colla 660
auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant
gaesa manu scutis protecti corpora longis
Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos
lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo
extuderat castae ducebant sacra per urbem 665
pilentis matres in mollibus Hinc procul addit
Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis
et scelerum poenas et te Catilina minaci
132 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se nouum
123
pendentem scopulo Furiarumque ora trementem
secretosque pios his dantem iura Catonem 670
Haec inter tumidi late maris ibat imago
aurea sed fluctu spumabant caerula cano
et circum argento clari delphines in orbem
aequora uerrebant caudis aestumque secabant
In medio classis aeratas Actia bella 675
cernete erat totumque instructo Marte uideres
feruere Leucaten auroque effulgere fluctus
Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar
cum patribus populoque penatibus et magnis dis
stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas 680
laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus
Parte alia uentis et dis Agrippa secundis
arduos133 agmen agens cui belli insigne superbum
tempora nauali fulgent rostrata corona
Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis 685
uictor ab Aurorae populis et litore rubro
Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum
Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx
Vna omnes ruere ac totum spumare reductis
conuolsum remis rostrisque tridentibus aequor 690
Alta petunt pelago credas innare reuolsas
Cycladas aut montis concurrere montibus altos
tanta mole uiri turritis puppibus instant
Stuppea flamma manu telisque uolatile ferrum
spargitur arua noua Neptunia caede rubescunt 695
Regina in mediis patrio uocat agmina sistro
necdum etiam geminos a tergo respicit anguis
Niligenumque134 deum monstra et latrator Anubis
contra Neptunum et Venerem contraque Mineruam
tela tenent Saeuit medio in certamine Mauors 700
133 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se arduus 134 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se ominigenunque
124
caelatus ferro tristesque ex aethere Dirae
et scissa gaudens uadit Discordia palla
quam cum sanguineo sequitur Bellona flagello
Actius haec cernens arcum intendebat Apollo
desuper omnis eo terrore Aegyptus et Indi 705
omnis Arabs omnes uertebant terga Sabaei
Ipsa uidebatur uentis regina uocatis
uela dare et laxos iam iamque immittere funis
Illam inter caedes pallentem morte futura
fecerat ignipotens undis et Iapyge ferri 710
contra autem magno maerentem corpore Nilum
pandentemque sinus et tota ueste uocantem
caeruleum in gremium latebrosaque flumina uictos
At Caesar triplici inuectus Romana triumpho
moenia dis Italis uotum immortale sacrabat 715
maxima ter centum totam delubra per urbem
Laetitia ludisque uiae plausuque fremebant
omnibus in templis matrum chorus omnibus arae
ante aras terram caesi strauere iuuenci
Ipse sedens niueo candentis limine Phoebi 720
dona recognoscit populorum aptatque superbis
postibus incedunt uictae longo ordine gentes
quam uariae linguis habitu tam uestis et armis
Hic Nomadum genus et discinctos Mulciber Afros
hic Lelegas Carasque sagittiferosque Gelonos 725
finxerat Euphrates ibat iam mollior undis
extremique hominum Morini Rhenusque bicornis
indomitique Dahae et pontem indignatus Araxes
Talia per clipeum Volcani dona parentis
miratur rerumque ignarus imagine gaudet 730
attollens umero famamque et fata nepotum
125
58 Traduccedilatildeo e notas do CANTO VIII (hex 612-731)
ldquoEis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo135 Filho natildeo duvides
em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos136 ou o vigoroso Turno137rdquo
Citereia138 disse e recebeu os abraccedilos de seu filho colocou as brilhantes armas sob
um carvalho em frente Ele alegre com os presentes da deusa e com tatildeo grande honra
natildeo pocircde se satisfazer e volveu os olhos por cada coisa
[Eneias] admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus
penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze
imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios
do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro
refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo
Ali139 o deus do fogo140 que natildeo ignora os vates nem desconhece o tempo futuro
havia colocado os feitos da Itaacutelia e os triunfos dos romanos ali havia colocado toda a
origem de toda a geraccedilatildeo futura de Ascacircnio141 e sucessivamente as guerras
combatidas
E havia colocado a feacutertil loba142 deitada no antro verde de Marte143 e suspensos em
volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela
voltada para traacutes com a cabeccedila torneada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus
corpos com a liacutengua
Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas144 sem o direito na
assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se
135Vulcano o deus das forjas esposo de Vecircnus a deusa do Amor 136 Laurentinos povo de Laurento cidade da Antiga Roma situada no Laacutecio entre Ostia e Laviacutenio 137Turno heroacutei itaacutelico rei dos Ruacutetulos povo da Itaacutelia Central ldquoEacute o proacuteprio Turno quem provoca a guerra contra os troianosrdquo (GRIMAL 2014 p 457) Era noivo de Laviacutenia antes do rei Latino dar a matildeo da filha a Eneias 138 Citereia outro nome para Vecircnus 139 Refere-se agrave descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente da deusa Vecircnus 140Vulcano o deus das forjas 141Ascacircnio filho de Eneias e Creuacutesa 142Remete-se agrave histoacuteria de Rocircmulo e Remo 143Marte deus da Guerra mas tambeacutem aparece como um deus ligado agrave vegetaccedilatildeo 144 O Rapto das Sabinas eacute um dos episoacutedios lendaacuterios da origem de Roma Quando a cidade foi fundada Rocircmulo preocupou-se em povoaacute-la especialmente com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de Rocircmulo raptaram todas as jovens (TITO LIacuteVIO 1989 p 31)
126
uma nova guerra entre os Romulidas145 e o velho Taacutecio146 rei dos severos habitantes
de Cures
Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do
altar de Juacutepiter147 segurando as paacuteteras148 e faziam um tratado de alianccedila com a
porca imolada
Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio149 em sentidos
contraacuterios (mas tu oacute Albano150 natildeo manterias teus dizeres) e Tulo151 arrastava as
viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue
escorriam
E ainda tambeacutem Porsena152 mandava receber o exilado Tarquiacutenio153 e sitiava a cidade
com um enorme cerco154 Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade
Se considerares quem eacute semelhante ao indigno ameaccedilador porque Cocles155 ousara
destruir a ponte e Cleacutelia156 atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas
No alto o guardiatildeo de Tarpeia157 Macircnlio158 estava de peacute diante do templo e defendia
o alto do Capitoacutelio O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo159 E aqui
145Os Romulidas o povo que Rocircmulo havia reunido em Roma 146Titus Tatius o rei dos Sabinos Apoacutes o rapto das Sabinas diz-se que Taacutecio organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas segundo conta-nos Tito Liacutevio (cf Ab Urbe Condita) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos 147Conta-se que que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo fez um pedido a Juacutepiter o grande deus do panteatildeo romano e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse de feiccedilatildeo 148Espeacutecie de taccedila usada em sacrifiacutecios antigos 149Mettus Fufetius o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Diz-se que ele recusou ajuda a Roma em um conflito traindo-a 150Referecircncia a Meacutecio Fufeacutecio uacuteltimo rei albano que quebra o acordo com Roma 151Tullus Hostillius o terceiro rei lendaacuterio de Roma responsaacutevel pela destruiccedilatildeo de Alba Longa cidade vizinha a Roma 152Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia 153Lucius Tarquinius Superbus Tarquiacutenio o Soberbo eacute responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que quando tomou o poder no senado Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio confiscando seus bens Foi deposto em 509 aC Expulso de Roma Tarquiacutenio procurou Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para declarar guerra agrave Roma 154 Porsena no ano de 507 aC sitiou Roma cercando-a 155Com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela qual o inimigo iria atravessar o Tibre 156 Durante o cerco agrave Roma em 507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado 157Apoacutes o rapto das sabinas Tito Taacutecio liderou os sabinos contra Roma Diz-se que Tarpeia atraiacuteda pelo ouro dos sabinos traiu Roma deixando entrar os sabinos na citadela Posteriormente ela foi assassinada e o monte onde ela foi sepultada foi chamado com seu nome No texto assim Tarpeia refere-se agrave rocha Tarpeia no monte Capitolino 158 Marco Macircnlio cocircnsul da Repuacuteblica Romana defendeu Roma da invasatildeo gaulesa 159Colmo haste das gramiacuteneas palha longa usada para cobrir as casas Entende-se nesta passagem que o palaacutecio de Rocircmulo ericcedilava-se com um teto de palha
127
um ganso prateado160 voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os
gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e
ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus
cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus
pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita com a matildeo os
dardos alpinos os corpos protegidos pelos longos escudos
Aqui havia representado os saltitantes saacutelios161 e os lupercus162 nus os barretes
sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela
cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados Daqui ao longe acrescenta
tambeacutem as moradas do Taacutertaro163 a alta porta de Dite164 e os castigos dos criminosos
e tu oacute Catilina165 suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias166
e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo167 havia ditado as leis
Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe
mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata
em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas
ondas No meio viam-se as armadas de bronze a batalha do Aacutecio168 via-se todo o
Leucates169 a ferver com Marte170 preparado e as ondas resplandecerem com o brilho
do ouro
160Chama-se a atenccedilatildeo dos romamos para um ataque noturno dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno no monte Capitolino 161Os saacutelios eram sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro 162Os lupercus eram sacerdotes de Fauno divindade associada ao campo e tambeacutem agrave fertilidade Conta-se que os lupercus usavam chicotes feitos com couro de cabra (barretes sacerdotais de latilde) 163 Taacutertaro o mundo inferior 164 Dite um dos nomes de Plutatildeo deus responsaacutevel pelo mundo inferior 165Lucius Sergius Catilina militar e senador romano queria destruir o poder oligaacuterquico do senado 166Fuacuterias divindades que viviam nas profundezas do Taacutertaro e eram responsaacuteveis pela tortura das almas 167 De acordo com Seacutervio seria o Catatildeo (o Velho ou Catatildeo Sapiente) poliacutetico e escritor de Roma eleito cocircnsul em 195 aC mas para Conington (2008) Virgiacutelio teria pretendido o Catatildeo de Uacutetica (o Jovem) (95-16 aC) poliacutetico romano ceacutelebre pela sua integridade moral para destacar o contraste em relaccedilatildeo a Catilina 168 A batalha do Aacutecio em 31 aC foi um confronto naval entre Marco Antocircnio e Otaacutevio Augusto Enquanto a frota de Otaacutevio era comandada por Agripa a frota de Marco Antocircnio era apoiada pela rainha do Egito Cleoacutepatra Com a vitoacuteria de Otaacutevio inicia-se o Impeacuterio e ele passa a ser conhecido como Ceacutesar Augusto 169 O monte Leucates Conta-se que Leucates era um jovem muito amado por Apolo e que ao escapar da perseguiccedilatildeo do deus lanccedilou-se ao mar do alto de uma encosta iacutengreme A ilha recebeu assim o nome de Lecircucade (GRIMAL 2014 p 276) 170Marte o deus guerreiro
128
De um lado Ceacutesar Augusto171 conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e
o povo os penates e os deuses maiores172 em peacute sobre a elevada popa a que o seu
feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua
cabeccedila173
Em outra parte Agripa174 com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o
exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros175
da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas
Antocircnio176 vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho177 transporta com
ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra178 e eacute seguido pela esposa
egiacutepcia179 Ao mesmo tempo todos se precipitaram e toda a superfiacutecie do mar espuma
sob os remos e os tridentes dos rostros que o afastam Dirigem-se a alto mar creia
que as Ciacuteclades180 arrancadas flutuavam sob a aacutegua ou que as altas montanhas se
chocavam contra as outras montanhas os varotildees se aproximavam das popas
torreadas com tanta massa A chama da estopa eacute espalhada pela matildeo e o volaacutetil ferro
pelos dardos os campos de Netuno181 avermelham-se com a nova carnificina No
centro a Rainha182 invoca os batalhotildees com o sistro183 paacutetrio e ainda natildeo voltou a
vista para as duas serpentes atraacutes
171Otaacutevio Augusto que apoacutes a vitoacuteria na batalha do Aacutecio receberia o nome de Ceacutesar Augusto A vitoacuteria contra Marco Antocircnio seria o iniacutecio do Impeacuterio em Roma 172Os penates satildeo os deuses do lar adorados por romanos e etruscos Os deuses maiores satildeo os representantes do Grande Olimpo Otaacutevio contava com a proteccedilatildeo dos deuses na batalha do Aacutecio 173 Em 42 aC Otaacutevio erigiu o Templo do Divino Juacutelio adicionando o termo ldquoFilho do Divinordquo a seu nome o que fortaleceria seus laccedilos poliacuteticos com os soldados de Ceacutesar (GRIMAL 2014 cf verbete Apolo) 174Marcus Vipsanius Agrippa principal comandante de Otaacutevio guiou as frotas de Roma contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra na Batalha do Aacutecio (BOWDER 1980) 175Rostro esporatildeo colocado na proa dos navios antigos para perfurar o casco dos outros nas batalhas 176Marco Antocircnio foi aliado de Ceacutesar durante a conquista da Gaacutelia e tambeacutem na guerra civil contra Pompeu Aliou-se mais tarde a Otaacutevio e Leacutepido formando com eles o Segundo Triunvirato (BOWDER 1980) 177Marco Antocircnio venceu os habitantes da Aacutesia (ldquopovos de aurorardquo) do Egito (do famoso Nilo) e da Bactriana no Afeganistatildeo (BECHARA SPINA 1973 p 89) 178 Bactra regiatildeo da Aacutesia Central 179Marco Antocircnio alia-se a Cleoacutepatra desprezando sua esposa romana Otaacutevia irmatilde de Otaacutevio Augusto (BECHARA SPINA 1973 p 89) 180Ciacuteclades grupo de ilhas no sul do mar Egeu 181Netuno deus dos mares 182 Cleoacutepatra (69-30 aC) rainha egiacutepcia da dinastia de Ptolomeu 183Sistro antigo instrumento egiacutepcio de percussatildeo que produzia som agudo e prolongado
129
Monstros de deuses de toda espeacutecie e o ladrador Anuacutebis184 mantecircm as armas contra
Netuno e Vecircnus185 e contra Minerva186 Marte gravado em ferro enfurece-se no meio
da batalha e as crueacuteis Fuacuterias descem pelo ar e com o manto rasgado a Discoacuterdia187
alegre caminha e eacute seguida por Belona188 com seu chicote ensanguentado
Ao ver isto de cima Apolo Aacutecio189 retesava o arco Com horror todo o Egito Indianos
todos os araacutebes e todos os sabeus viravam as costas A proacutepria rainha parecia dar
velas aos invocados ventos e a soltar cada vez mais as frouxas amarras O deus do
fogo190 colocara-a entre a carnificina paacutelida pela morte futura arrastada pelas ondas
e pelo Iaacutepige191 em frente tambeacutem colocara o Nilo192 com seu vasto corpo abrindo as
pregas de todo o seu traje e chamando os vencidos para o seu colo azul e para os
seus secretos rios
E Ceacutesar193 levado pelo triacuteplice triunfo agraves muralhas romanas consagrava aos deuses
da Itaacutelia um voto imortal trezentos templos maacuteximos por toda a cidade As ruas
retumbavam de alegria com jogos e aplausos em todos os templos o coro das matildees
todos tinham altares e diante deles os novilhos imolados cobriram a terra Ele proacuteprio
sentado no limiar da neve do candente Febo194 examina os presentes dos povos e os
coloca nas soberbas portas as naccedilotildees vencidas avanccedilam em longa fila tatildeo variadas
no modo de vestir e nas armas quanto nas vaacuterias liacutenguas
Aqui Mulciacutebero195 representara a raccedila dos nocircmades196 e os africanos de vestes
soltas neste lugar os leacutelegos197 os caacuterios198 e os gelonos199 armados de setas o
184Anuacutebis deus egiacutepcio protetor e guia dos mortos comumente representado com a cabeccedila de um chacal animal de caccedila relacionado aos lobos daiacute o nome ladrador 185Vecircnus deusa do amor matildee de Eneias e protetora dos romanos 186Minerva deusa romana das artes e sabedoria tambeacutem rege as estrateacutegias de guerra 187Discoacuterdia a matildee dos males diz-se que acompanhava Marte nas batalhas 188Belona eacute a fuacuteria da guerra e carnificina deusa de origem etrusca 189O arco do deus Apolo dispara dardos letais 190Vulcano deus das forjas responsaacutevel por colocar todas as presentes histoacuterias no escudo de Eneias 191Iaacutepige filho de Deacutedalo eacute um vento que sopra de oeste-noroeste 192O rio Nilo foi o principal fator para o desenvolvimento da sociedade egiacutepcia Hapi era cultuado como o deus das aacuteguas do Nilo sendo responsaacutevel pela prosperidade advinda do rio Diz-se que este deus eacute representado segurando talos de Papiros e flores de Loacutetus 193Otaacutevio agora nomeado Ceacutesar Augusto depois da vitoacuteria na batalha do Aacutecio 194Febo deus romano equivalente ao grego Apolo representa a luz a muacutesica e as artes eacute irmatildeo de Diana 195Mulciacutebero outro nome para Vulcano o deus das forjas 196 Nocircmades gente do ocidente de Cartago 197 Leleacutegos povo do sudoeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor 198Caacuterios povo do oeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor Caacuterios e leleacutegos eram muito proacuteximos 199Gelonos povos da Ciacutentia ou da Traacutecia
130
Eufrates200 jaacute corria mais calmo com suas ondas e os moacuterios201 os mais afastados
dos homens e o Reno202 de duas barras os indomaacuteveis dahas203 e o Araxes204
indignado com a ponte
[Eneias] admira tais coisas atraveacutes do escudo de Vulcano presente da sua matildee e
estranho aos assuntos regozija-se com a imagem carregando sobre o ombro a gloacuteria
e a fama dos seus descendentes
200 Eufrates rio que passa pela Armecircnia e Mesopotacircmia 201Moacuterios povos da Beacutelgica Os romanos chamavam-lhes de uacuteltimos porque aleacutem deles natildeo conheciam mais povos 202Reno rio da Alemanha era parte da fronteira setentrional do Impeacuterio Romano 203Dahas povo da Ciacutentia 204O rio Araxes nasce nos montes da Armecircnia e desaacutegua no mar Caacutespio Xerxes lhe fez uma ponte e Alexandre outra mas as enchentes do rio a destruiacuteram Otaacutevio entatildeo subjugou-o com outra ponte mais firme (LEITAtildeO 1819 p 75)
131
59 FIGURATIVIDADE NO CANTO VIII (hex 612-731) anaacutelise do
texto
Baseando-se nos poemas eacutepicos da Antiguidade Grimal (1992 p 185) assim
esclarece
Esses poemas satildeo ldquoeacutepicosrdquo na medida em que contam feitos de caraacuteter sobre-humano realizados por alguma das personagens pertencentes agrave ldquomemoacuteria coletivardquo das cidades que estatildeo em relaccedilatildeo com as divindades - das quais se originaram e pelas quais satildeo inspiradas - e que vivem em tempos em que o divino e o humano ainda natildeo se distinguiam claramente eacute o tempo dos ldquoheroacuteisrdquo dos semi-deuses
Para Hegel (1993 p 572-573) na Esteacutetica a epopeia propriamente dita
Representa o espiritual concreto sob uma forma individual e a epopeia quando narra alguma coisa tem por objeto uma accedilatildeo que por todas as circunstacircncias que a acompanham e as condiccedilotildees nas quais se realiza apresenta inumeraacuteveis ramificaccedilotildees pelas quais contacta com o mundo total de uma naccedilatildeo ou de uma eacutepoca Eacute portanto o conjunto da concepccedilatildeo do mundo e da vida de uma naccedilatildeo que apresentado sob uma forma objetiva de acontecimentos reais constitui o conteuacutedo e determina a forma do eacutepico propriamente dito Desta totalidade fazem parte por um lado a consciecircncia religiosa de todas as verdades profundas do espiacuterito humano e por outro lado a vida concreta a vida poliacutetica e domeacutestica e ateacute as necessidades que a vida exterior comporta e os meios de satisfazer
Assim a poesia de gecircnero eacutepico eacute uma celebraccedilatildeo narrativa da histoacuteria paacutetria
acompanhada pela glorificaccedilatildeo de heroacuteis nacionais Hegel menciona ainda outros
elementos constitutivos do gecircnero Entre eles vale destacar a objetividade e o conflito
da guerra que eacute conveniente agrave temaacutetica eacutepica e ao desenvolvimento da accedilatildeo
Segundo Montagner (2014) a eacutepica nasce na oralidade ancestral grega O
termo lsquoeacutepicarsquo proveacutem do grego eacutepos e significa de modo mais amplo lsquopalavrarsquo
lsquodiscursorsquo De modo restrito os gregos assim denominavam a poesia em hexacircmetro
a partir de epeacute plural de eacutepos Na eacutepoca claacutessica greco-latina seraacute o hexacircmetro
datiacutelico segundo o criacutetico o verso proacuteprio desse gecircnero Todavia aleacutem do verso
caracteriacutestico haacute outra marca o caraacuteter narrativo ou expositivo que assinala suas
manifestaccedilotildees
132
A Eneida a eacutepica virgiliana possui doze cantos (ou livros) escritos em
hexacircmetros datiacutelicos Em sua ceacutelebre epopeia Virgiacutelio narra os memoraacuteveis feitos
romanos Vemos as aventuras do heroacutei Eneias filho protegido da deusa Vecircnus em
luta para firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino A histoacuteria
comeccedila (in medias res) com Eneias e suas naus em pleno Mediterracircneo jaacute no seacutetimo
ano apoacutes a queda de Troia O heroacutei sofre um naufraacutegio arquitetado pela deusa Juno
e eacute lanccedilado agrave costa africana Desenrolam-se a partir daiacute os acontecimentos e accedilotildees
que faratildeo de Eneias um iacutecone romano o fundador da Nova Troia Logo a personagem
Eneias bem como suas accedilotildees e portanto seu papel figurativo no texto apoia-se na
previsibilidade narrativa que fundamenta a expectativa das figuras no contexto da
poesia eacutepica Trata-se de um heroacutei cujo destino eacute grandioso pois nele repousa o futuro
da raccedila troiana Todos estes elementos seratildeo desenvolvidos por Virgiacutelio ao retomar o
quadro da lenda romana Assim no engendramento do estilo grandiloquente
encontramos recorrecircncias figurativas que nos levam a um especiacutefico efeito de
individuaccedilatildeo no texto
Segundo Pedro Paulo Funari (2001 p 66)
Apoacutes a vitoacuteria dos gregos sobre os troianos Eneias vagou pelo Mediterracircneo ateacute chegar ao Laacutecio onde reinou por alguns anos Depois de morto foi adorado como Juacutepiter Indiges Seu filho Ascacircnio fundou Alba Longa e seu descendente Numitor pai de Reacuteia Siacutelvia foi pois avocirc de Rocircmulo Por essas lendas Roma ligava-se ao deus da guerra Marte e agrave deusa da fertilidade Vecircnus
Para Antocircnio Medina Rodrigues (2005 p10) a Eneida eacute ldquoum cacircntico aos novos
tempos do Impeacuterio eacute tambeacutem a nostalgia dos tempos lendaacuterios e primeiros haacute muito
sepultados sob as guerras civis e de conquista tempos de Rocircmulo e da chegada dos
troianos aos litorais itaacutelicos tempos da fundaccedilatildeo de Romardquo Virgiacutelio mescla histoacuteria
mito e um conjunto de situaccedilotildees que jaacute eram conhecidas pelos romanos
Como marco da Literatura Latina a Eneida confere agrave naccedilatildeo romana uma
identidade cultural A obra faz parte da chamada Idade de Ouro de Augusto e
segundo Funari (2001 p 66) para os romanos era importante considerar que seu
destino estava ligado aos deuses pois estas nobres origens legitimavam seu poder
sobre outros povos e servia como propaganda de suas qualidades
No canto VIII no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise hexacircmetros 612
a 731 temos a descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente forjado por Vulcano e
133
ofertado pela deusa Vecircnus ao heroacutei No escudo Vulcano desenhou os eventos da
futura Roma e entre estes eventos estatildeo a loba alimentando Rocircmulo e Remo o rapto
das Sabinas e no centro a batalha do Aacutecio As imagens esculpidas por Vulcano no
escudo de Eneias refletem toda a histoacuteria de Roma incluindo episoacutedios miacuteticos que
se mesclaram aos eventos histoacutericos Aleacutem disso vale ressaltar tambeacutem a figura de
Otaviano na centralidade do escudo jaacute que o governante passou a ser o centro do
cenaacuterio poliacutetico e social de Roma Segundo Pierre Grimal (1992 p 192) ldquoO heroacutei do
poema seraacute Eneacuteias claro mas este se ergueraacute antes de Roma no alto de uma
linhagem que de condutor de homens a triunfador vem dar em Otaacuteviordquo
Na descriccedilatildeo do escudo natildeo se observam detalhes das accedilotildees dos
personagens em seus respectivos cenaacuterios Ao descrever a batalha do Aacutecio por
exemplo vemos os oponentes de um lado e Otaviano de outro enquanto as
estrateacutegias beacutelicas e o combate soacute satildeo sugeridos Cabe ao leitor assim reconstituir
os eventos
As diferentes histoacuterias aludidas no escudo satildeo narrativas lendaacuterias e histoacutericas
desde a fundaccedilatildeo de Roma Pensando que o estilo eacute depreensiacutevel pelas recorrecircncias
figurativas do discurso podemos pensar nessas narrativas como parte do programa
figurativo que engendra o efeito de sentido grandiloquente
Nos hexacircmetros 619 e 625 vemos a descriccedilatildeo das armas de guerra presentes
ofertados pela deusa Vecircnus ao filho Eneias
miraturque interque manus et bracchia uersat terribilem cristis galeam flammasque minantem fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes solis inardescit radiis longeque refulget tum leuis ocreas electro auroque recocto hastamque et clipei non enarrabile textum
admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo
O capacete de crista vermelha a riacutegida couraccedila de bronze as armaduras da
perna a lanccedila e o exuberante escudo compotildeem a imagem do guerreiro Estas figuras
contribuem para a caracterizaccedilatildeo de Eneias que desde os Poemas Homeacutericos ldquosurge
134
como um heroacutei protegido pelos deuses aos quais obedece respeitosamente estando-
lhe reservado um destino grandioso nele repousa o futuro da raccedila troianardquo (GRIMAL
2014 p 135) Diferentemente do pastor que no cenaacuterio bucoacutelico eacute representado pelo
cajado e a flauta aqui o guerreiro alia-se aos artefatos beacutelicos em um cenaacuterio de
estrateacutegias de combate Tem-se portanto a descriccedilatildeo de objetos representativos do
contexto da poesia eacutepica
Conington (2008 p145) em seus comentaacuterios ao texto de Virgiacutelio aponta para
o termo ldquobracchiardquo (braccedilos) do seguinte excerto Segundo o criacutetico a accedilatildeo de virar
entre as matildeos e os braccedilos deixa entrever o tamanho das diferentes partes da
armadura que enchem os braccedilos quando levantadas
Miraturque interque manus et bracchia uersat
e admira e vira entre as matildeos e os braccedilos
A grandiosidade dos presentes forjados pelo deus do fogo na visatildeo de
Conington (2008 p145) aparece com o vocaacutebulo ldquominantemrdquo verbo depoente que
indica a accedilatildeo de ldquoameaccedilarrdquo sugerindo o aceno da crista do capacete que resplandece
ao ser manuseado e admirado por Eneias
Terribilem cristis galeam flammasque minantem
o tremendo capacete que ameaccedila com suas cristas e chamas
No Canto VII Eneias chega agrave regiatildeo do Tibre onde governa o rei Latino que
havia recebido dos deuses o aviso da chegada de Eneias futuro esposo de sua filha
Laviacutenia O chefe dos troianos envia uma comitiva ao rei Latino para que seja feito um
acordo de paz mas a terriacutevel Juno envia a deusa infernal Alecto responsaacutevel pela
guerra e pelas desgraccedilas para semear a discoacuterdia entre os dois povos
No Canto VIII com agrave iminecircncia da batalha Eneias encontra-se preocupado
com o porvir Agrave noite entatildeo ao permitir-se o descanso necessaacuterio o heroacutei eacute
surpreendido pelo rio Tibre que se personifica e comeccedila a falar O Tibre conta ao
troiano quem entatildeo poderaacute auxiliaacute-lo na guerra contra Turno trata-se de Palante ndash
filho de Evandro rei dos Aacutercades Percorrendo o curso do rio e ouvindo-o Eneias
alcanccedila a regiatildeo onde Evandro lidera e tem a oportunidade de falar com o rei e
confirmar a alianccedila predestinada
135
Paralelo a isso mostra-se a preocupaccedilatildeo de Vecircnus com a iminecircncia da guerra
Por esse motivo a deusa queixa-se a Vulcano pedindo-lhe ajuda na confecccedilatildeo de
artefatos beacutelicos que seratildeo indispensaacuteveis ao filho Eneias Com o pedido da esposa
Vulcano promete confeccionar as armas e pede a seus colaboradores na forja para
que produzam uma arma de caraacuteter singular
(hex 369-385) Nox ruit et fuscis tellurem amplectitur alis At Venus haud animo nequiquam exterrita mater 370 Laurentumque minis et duro mota tumultu Volcanum adloquitur thalamoque haec coniugis aureo incipit et dictis diuinum aspirat amorem ldquoDum bello Argolici uastabant Pergama reges debita casurasque inimicis ignibus arces 375 non ullum auxilium miseris non arma rogaui artis opisque tuae nec te carissime coniunx incassumue tuos uolui exercere labores quamuis et Priami deberem plurima natis et durum Aeneae fleuissem saepe laborem 380 Nunc Iouis imperiis Rutulorum constitit oris ergo eadem supplex uenio et sanctum mihi numen arma rogo genetrix nato Te filia Nerei te potuit lacrimis Tithonia flectere coniunx Aspice qui coeant populi quae moenia clausis 385 ferrum acuant portis in me excidiumque meorum
A noite impele e abraccedila a terra com as suas sombrias asas Poreacutem
Vecircnus matildee natildeo apavorada de coraccedilatildeo perturbada com as ameaccedilas
dos laurentinos e com o duro tumulto dirige-se a Vulcano e no leito
nupcial de ouro de seu esposo comeccedila com estas palavras e infunde-
lhe o divino amor ldquoEnquanto os reis argoacutelicos devastavam Peacutergamo
com a guerra condenada e as cidadelas sucumbiam pelas inimigas
chamas nenhum auxiacutelio pedi para os infelizes nem armas do poder
da tua arte cariacutessimo esposo nem quis que tu exercesses teus
trabalhos em vatildeo e ainda que eu devesse grande quantidade de
coisas aos filhos de Priamo e muitas vezes lamentasse o duro
trabalho de Eneias Agora por ordens de Jove deteve-se agrave entrada
dos ruacutetulos por isso eu mesma suplicante venho e eu como matildee
rogo por seu veneraacutevel poder armas para o meu filho A filha de Nereu
e a esposa de Titono puderam te comover com suas laacutegrimas
Considera que os povos se reuacutenem e que muralhas com as suas
portas fechadas aguccedilam o ferro contra mim e para a destruiccedilatildeo dos
meusrdquo
Atendendo ao pedido da esposa Vulcano confecciona um instrumento beacutelico
que garantiraacute a seguranccedila de Eneias Aleacutem disso o deus representaraacute neste artefato
136
o futuro da descendecircncia do heroacutei Apoacutes a confecccedilatildeo das armas de guerra Vecircnus
presenteia o filho A passagem inicia-se com as palavras da deusa
(hex 612 ndash 614) En perfecta mei promissa coniugis arte munera ne mox aut Laurentis nate superbos aut acrem dubites in proelia poscere Turnum Eis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo Filho natildeo duvides em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos ou o vigoroso Turno
A partir dessas palavras desenham-se por meio do olhar do narrador
mesclado ao olhar de Eneias os utensiacutelios beacutelicos As armas de guerra satildeo descritas
e para cada uma delas eacute apresentada uma caracteriacutestica especiacutefica Por meio da
descriccedilatildeo das armas podemos acompanhar o olhar de Eneias e a partir desse olhar
tambeacutem admirar a arte produzida por Vulcano
A exposiccedilatildeo dos artefatos beacutelicos eacute minuciosa mas breve (hex 619 ndash 625)
Virgiacutelio mostra cada uma das armas qualificando-as O poeta apresenta cada uma o
capacete que conteacutem um penacho e que eacute responsaacutevel por despertar o terror no
oponente uma espada que leva agrave morte uma couraccedila riacutegida com uma tonalidade cor
de sangue botas de eletro feitas de metal compostas de ouro e prata uma lanccedila e
por fim um escudo que eacute inenarraacutevel
Ressalta-se para cada uma das armas apresentadas pelo poeta uma
particular estrutura descritiva nomeia-se a arma de guerra e posteriormente ela eacute
qualificada Quanto agrave essa forma de descriccedilatildeo nota-se que o uacutenico artefato beacutelico que
natildeo possui um qualificativo eacute a lanccedila A omissatildeo da caracteriacutestica da lanccedila colocaraacute
assim o escudo em um relevo especial jaacute que este utensiacutelio beacutelico eacute tatildeo importante
para o desenvolvimento da narrativa virgiliana que ganha uma descriccedilatildeo mais
detalhada
As figuras em cenaacuterio eacutepico natildeo revestem uma temaacutetica humilde mas sim uma
temaacutetica sublime por isso se reconhece na eacutepica o estilo grandiloquente Para Grimal
(1992 p 187) ldquoo tom da epopeia eacute o mais elevado possiacutevel eacute ldquosublimerdquo por
excelecircncia pois refere-se aos assuntos mais grandiosos e aos interesses mais
altos()rdquo
137
Com vistas agrave percepccedilatildeo de um estilo grandiloquente nos versos seguintes
hexacircmetros 612 a 731 procuramos analisar a descriccedilatildeo particular do escudo de
Eneias instrumento em que o deus do fogo Vulcano esculpiu os feitos da Itaacutelia e os
triunfos dos romanos No poema o escudo de Eneias eacute transformado em objeto
artiacutestico jaacute que nele se desenham os acontecimentos histoacutericos de Roma desde a
sua fundaccedilatildeo O escudo permite que o leitor veja o destino grandioso da Nova Troia
que seraacute fundada no Laacutecio Observa-se no excerto uma rede de figuras coerentes
ao contexto da poesia eacutepica porque supotildeem uma unidade do discurso levando-nos
ao entendimento de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo o grandiloquente Vale
ressaltar tambeacutem o modo como Virgiacutelio desenhou a histoacuteria de Roma valendo-se da
palavra poeacutetica
O escudo comeccedila a ser descrito pela figura lendaacuteria da loba alimentando
Rocircmulo e Remo (hex 630-634)
Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro procubuisse lupam geminos huic ubera circum ludere pendentis pueros et lambere matrem impauidos illam tereti ceruice reflexam mulcere alternos et corpora fingere lingua
E havia colocado a feacutertil loba deitada no antro verde de Marte e suspensos em volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela voltada para traacutes de cabeccedila arredondada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus corpos com a liacutengua
Nesta passagem a figura da loba aparece deitada no antro verde de Marte
uma gruta destinada ao deus e que eacute recoberta por plantas Sabe-se que o deus Marte
aparece em Roma como o deus da Guerra mas ele tambeacutem eacute visto como o deus da
vegetaccedilatildeo ou seja um deus da Primavera jaacute que a eacutepoca da guerra comeccedila com o
fim do Inverno Eacute ele assim quem guia os jovens que emigram das cidades sabinas
para fundar novas cidades e encontrar novos locais para se estabelecerem (GRIMAL
2014 p 293) Ao costume de deixar o velho local em procura de outro chamava-se
ldquover sacrumrdquo ldquoa primavera sagradardquo No trajeto ao novo local os jovens eram guiados
pelo piccedilanccedilo ave passeriforme ou pelo lobo dois animais consagrados a Marte Daiacute
o papel da loba no campo verde de Marte O tempo do verbo ldquoprocubuisserdquo perfeito
ativo do infinitivo segundo Conington indica a accedilatildeo da loba que jaacute havia se deitado
quando os gecircmeos se posicionaram para beber o leite
138
procubuisse lupam geminos huic ubera circum
a loba deitada os gecircmeos ao redor das tetas
A figura da loba aleacutem de lendaacuteria mesclou-se agrave histoacuteria e tem um lugar de
destaque no pequeno excerto Nota-se ainda que a histoacuteria de Rocircmulo e Remo eacute
sugerida a partir da imagem da feacutertil loba e deve portanto ser completada pelo leitor
Trata-se de um mito acerca da histoacuteria da fundaccedilatildeo de Roma em que os gecircmeos
Rocircmulo e Remo filhos do deus Marte com Reacuteia Silvia descendente da estirpe de
Eneias foram amamentados por uma loba
A feacutertil loba passa-nos portanto a ideia de abundacircncia eacute ela que supre os
gecircmeos Na ldquoIV Bucoacutelicardquo de Virgiacutelio quando eacute mencionado o Retorno da Idade de
Ouro e o nascimento de uma crianccedila toda natureza tambeacutem aparece apta a servir
(hex 60-63)
Ipsae lacte domum referente distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundente cunabula flores
As cabritinhas por si mesmas levaratildeo a casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti (crianccedila) o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores
No pequeno excerto da ldquoIV Bucoacutelicardquo como visto acima a natureza modifica-
se para receber a crianccedila que havia acabado de nascer e paralelamente neste
pequeno excerto do ldquoVIII Cantordquo da Eneida a feacutertil loba encontra-se apta a servir
alimentar os gecircmeos receacutem-nascidos A natureza nos dois casos encanta-se com a
crianccedila que traz boas novas
Apoacutes a figura da loba mostra-se o episoacutedio do rapto das Sabinas entalhado
no escudo como marca lendaacuteria de um dos eventos que se seguiram agrave fundaccedilatildeo de
Roma Mais uma vez trata-se de um episoacutedio que eacute apenas sugerido jaacute que os
detalhes do acontecimento natildeo satildeo mencionados pois eles devem ser reconstituiacutedos
pelo leitor No excerto satildeo citadas as Raptadas Sabinas e a guerra entre os
Romulidas e o Velho Taacutecio Quando Roma foi fundada soacute existiam homens e Rocircmulo
preocupou-se em povoaacute-la com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas
139
dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos
durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de
Rocircmulo os Romulidas raptaram todas as jovens O Velho Taacutecio o rei dos Sabinos
apoacutes o rapto das Sabinas organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas
segundo conta-nos Tito Liacutevio (1989 p 31) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em
meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos
assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos (GRIMAL 2014 p 409)
Diz-se que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo dirigiu a Juacutepiter um
pedido e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse
de feiccedilatildeo Cessada a batalha foi construiacutedo o templo de Iupiter Stator (Juacutepiter que
deteacutem) edificado no local onde mais tarde foi construiacutedo o arco de Tito na Via Sacra
(GRIMAL 2014 p 409) A figura do templo de Juacutepiter bem como das paacuteteras taccedilas
usadas em sacrifiacutecios e da porca imolada deixam entrever a comunhatildeo entre
Romulidas e Sabinos com o fim da guerra Conington (2008 p147) revela-nos que
era antigo o costume de se sacrificar um suiacuteno em tratados de paz
(hex 635-641)
Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas consessu caueae magnis Circensibus actis addiderat subitoque nouom consuergere bellum Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris Post idem inter se posito certamine reges armati Iouis ante aram paterasque tenentes stabant et caesa iungebant foedera porca
Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas sem o haacutebito na assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se uma nova guerra entre os Romulidas e o velho Taacutecio rei dos severos habitantes de Cures Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do altar de Juacutepiter segurando as paacuteteras e faziam um tratado de alianccedila com a porca imolada
Outro episoacutedio entalhado no escudo eacute o esquartejamento de Meacutecio No
pequeno excerto temos o vocaacutebulo ldquoMettumrdquo Meacutecio entre os vocaacutebulos ldquocitaerdquo e
ldquoquadrigaerdquo raacutepidas quadrigas remetendo-nos iconicamente agrave ideia do
esquartejamento do rei albano Reforccedila ainda esta ideia os outros vocaacutebulos que
fazem alusatildeo a Meacutecio mas que aparecem distantes espalhados nos versos
seguintes como ldquoAlbanerdquo Albano ldquouirirdquo homem ldquomendacisrdquo mentiroso e ldquouiscerardquo
140
viacutesceras levando-nos a ideia jaacute expressa nos versos a de que as raacutepidas quadrigas
esquartejaram Meacutecio em sentidos contraacuterios
(hex 642-645)
Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae distulerant (at tu dictis Albane maneres) raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres
Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio em sentidos contraacuterios (mas tu oacute Albano natildeo manterias teus dizeres) e Tulo arrastava as viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue escorriam
Meacutecio Fufeacutecio foi o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Conta-se que ele fez um
acordo com Tulo o terceiro rei lendaacuterio de Roma Os romanos haviam declarado
guerra contra os albanos mas Tulo e o rei de Alba Longa Meacutecio fizeram um acordo
para evitar o excessivo derramamento de sangue Como os dois exeacutercitos tinham um
conjunto de irmatildeos trigecircmeos foi decidido que esses irmatildeos lutariam entre si Os
irmatildeos Horaacutecios lutariam pelo lado romano enquanto os Curiaacutecios lutariam pelos
albanos Roma saiu vitoriosa e Alba Longa foi submetida ao Estado romano
Posteriormente quando Meacutecio se recusou a ajudar Roma em um conflito traindo-a
diz-se que foi esquartejado por duas quadrigas lanccediladas em direccedilotildees opostas
Tito Liacutevio (59 aC ndash 17 dC) historiador romano em Ab urbe condita (1989 p
60) assim registrou esse acontecimento
Tulo entatildeo prosseguiu Meacutetio Fufeacutecio se pudesses aprender ainda a respeitar os juramentos e os tratados eu te pouparia a vida e seria eu proacuteprio o teu instrutor Mas como teu caraacuteter eacute irrecuperaacutevel que ao menos teu supliacutecio ensine os homens a considerarem sagrados os compromissos que violas e assim como ontem dividias tua alma entre Fidenas e Roma hoje eacute a vez de teu corpo ser tambeacutem dividido Mandou entatildeo que trouxessem duas quadrigas agraves quais fez amarrar Meacutetio com os membros distendidos Em seguida os cavalos foram impelidos em direccedilatildeo contraacuteria o corpo se dilacerou e os dois carros arrastaram os membros neles amarrados Todos os olhares se afastaram do horriacutevel espetaacuteculo (XXVIII)
Somando-se a este episoacutedio Vulcano coloca tambeacutem dois personagens
Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia e Tarquiacutenio o Soberbo
responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que ao tomar o
141
poder no senado romano Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio e
confiscou seus bens Foi deposto em 509 aC Quando foi expulso de Roma Tarquiacutenio
procurou a ajuda de Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para
declarar guerra agrave Roma No ano de 507 aC Porsena sitiou Roma cercando-a Mais
uma vez os detalhes dos acontecimentos natildeo satildeo mencionados por Virgiacutelio mas
apenas aludidos atraveacutes das figuras por ele elencadas Merece destaque a imagem
do cerco agrave Roma
(hex 646-651)
Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat accipere ingentique urbem obsidione premebat Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant Illum indignanti similem similemque minanti aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis
E ainda tambeacutem Porsena mandava receber o exilado Tarquiacutenio e sitiava a cidade com um enorme cerco Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade Se observares aquele semelhante ao indigno e semelhante ameaccedilador porque Cocles ousara destruir a ponte e Cleacutelia atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas
Nota-se que o vocaacutebulo ldquourbemrdquo cidade encontra-se entre a expressatildeo ldquoingenti
obsedionerdquo grande cerco remetendo-nos iconicamente agrave ideia de que a cidade estaacute
sitiada
ingentique urbem obsidione premebat
e sitiava a cidade com um enorme cerco
Em menccedilatildeo ao verso seguinte (hex 648)
Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant
Os descentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade
Conington (2008 p148) destaca a expressatildeo ldquoin ferrum ruererdquo (ldquocorrer ao
ferrorsquo) pois segundo ele desenha-se nesta passagem uma espeacutecie de espada Com
base nessa afirmaccedilatildeo observamos que a recorrecircncia do fonema vibrante r no final
142
do verso Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant mimetiza a ideia de um ranger de
espadas remetendo-nos portanto agrave ideia da batalha
Assim com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela
qual o inimigo iria atravessar o Tibre Diz-se tambeacutem que durante o cerco agrave Roma em
507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado A
imagem deste acontecimento tambeacutem foi aludida iconicamente
Et fluvium uinclis innaret Cloelia ruptis
E Clelia atravessara o rio com as correntes destruiacutedas
Nota-se que as correntes destruiacutedas aparecem figurativamente no verso pois
o vocaacutebulo ldquouinclisrdquo correntes estaacute apartado do vocaacutebulo ldquoruptisrdquo destruiacutedas
representando a ideia de ruptura e liberdade de Cleacutelia
O memoraacutevel escudo de Eneias traz ainda a figura de Marco Macircnlio cocircnsul
da Repuacuteblica Romana que defendeu Roma da invasatildeo gaulesa De acordo com os
comentaacuterios de Conington (2008 p 148) para os hexacircmetros 652 e 653
In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat
No alto o guardiatildeo de Tarpeia Macircnlio estava de peacute diante do templo
e defendia o alto do Capitoacutelio
O termo ldquoIn summordquo no alto refere-se ao topo do escudo de Eneias e Macircnlio
eacute representado pictoricamente ao lado da rocha Tarpeia como podemos observar
iconicamente no verso In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
No hexacircmetro 654 Conington (2008 p 148) afirma que ao utilizar o vocaacutebulo
ldquorecensrdquo Virgiacutelio assinala a arte de Vulcano no presente ofertado a Eneias jaacute que se
trata do recente palaacutecio acabado de ser entalhado no escudo
Romuleoque recens horrebat regia culmo
O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo
143
O hexacircmetro na visatildeo do criacutetico alude a renovaccedilatildeo constante da casa de
Rocircmulo nos tempos histoacutericos de Roma O termo ldquoRomuleordquo refere-se ao que se
manteve como era nos tempos de Rocircmulo Virgiacutelio usa a imagem do colmo ldquoculmordquo
a palha usada para cobrir as casas para descrever o palaacutecio de Rocircmulo e combinaacute-
lo de certa forma com o templo dourado de seu proacuteprio tempo Dessa forma constroacutei-
se para o leitor a imagem do Capitoacutelio
Ainda neste excerto chama-se a atenccedilatildeo dos romanos para um ataque noturno
dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno
no monte Capitolino
(hex 655-662)
Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat Galli per dumos aderant arcemque tenebant defensi tenebris et dono noctis opacae aurea caesaries ollis atque aurea uestis uirgatis lucent sagulis tum lactea colla auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant gaesa manu scutis protecti corpora longis
E aqui um ganso prateado voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita nas matildeos os dardos alpinos os corpos protegidos pelo longo escudo
Para Conington (2008 p149) o termo ldquouolitansrdquo particiacutepio presente que se
refere a accedilatildeo de voejar daacute-nos a imagem das asas vibrantes dos gansos
Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat
O que reforccedila essa ideia na verdade eacute a repeticcedilatildeo do fonema sibilante s nos
dois primeiros hexacircmetros que colaboram para a construccedilatildeo dessa imagem jaacute que
sugerem por meio da aliteraccedilatildeo em s a presenccedila do voo dos gansos no poema
Vulcano destaca ainda alguns elementos de cultura e entalha no escudo de
Eneias os saacutelios sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro
e os lupercus sacerdotes de Fauno que era uma divindade associada ao campo e agrave
144
fertilidade Os lupercus utilizavam chicotes feitos com couro de cabra que eram
chamados de barretes sacerdotais de latilde Destacam-se assim as cerimocircnias
sagradas
(hex 663-666)
Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo extuderat castae ducebant sacra per urbem pilentis matres in mollibus [hellip]
Aqui havia representado os saltitantes saacutelios e os lupercus nus os barretes sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados
De acordo com Heyne Peerlkamp e Ribbeck todos citados por Conington
(2008 p150) agrave primeira vista a introduccedilatildeo das regiotildees infernais nos hexacircmetros de
nuacutemero 666 a 670 parece fora de sintonia com o resto do contexto esculpido por
Vulcano mas devemos considerar como bem aponta-nos Conington que neste
pequeno excerto assim como em outros o objetivo de Virgiacutelio eacute narrar incidentes
pictoacutericos e entre eles a posiccedilatildeo de benfeitores e criminosos nacionais
(hex 666-670)
[hellip] Hinc procul addit Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis et scelerum poenas et te Catilina minaci pendentem scopulo Furiarumque ora trementem secretosque pios his dantem iura Catonem
Daqui ao longe acrescenta tambeacutem as moradas do Taacutertaro a alta porta de Dite e os castigos dos criminosos e tu oacute Catilina suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo havia ditado as leis
No pequeno excerto os inimigos de Ceacutesar satildeo colocados no mundo inferior o
Taacutertaro Dite eacute um dos nomes utilizados para se referir ao deus Plutatildeo que eacute
responsaacutevel pelo mundo inferior No Taacutertaro encontra-se Catilina um militar e senador
romano que queria destruir o poder oligaacuterquico do senado bem como as fuacuterias
divindades que viviam nas profundezas e eram responsaacuteveis pela tortura das almas
Ao traidor Catilina coube a agonia de cair do abismo enquanto a Catatildeo o Jovem ou
Catatildeo de Uacutetica poliacutetico romano ceacutelebre pela sua inflexibilidade e integridade moral
145
coube os Campos Eliacuteseos Na visatildeo de Conington (2008 p151) a figura de Catatildeo
apresenta-se nesta passagem em contraste com a figura de Catilina concluindo que
o caraacuteter de Catatildeo em vida fez dele um legislador para os mortos
Vulcano prossegue nos detalhes de sua obra com a imagem de um mar que
atravessa o escudo como um tipo de fronteira
(hex 671-674)
Haec inter tumidi late maris ibat imago aurea sed fluctu spumabant caerula cano et circum argento clari delphines in orbem aequora uerrebant caudis aestumque secabant
Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas ondas
Destaca-se desta passagem a figura dos golfinhos delphines O golfinho eacute um
animal marinho consagrado a Apolo pois seu nome lembra o santuaacuterio principal de
Apolo em Delfos Se lembrarmos portanto que Apolo foi adotado por Otaviano como
seu protetor pessoal e que o imperador atribuiacutea ao deus a sua vitoacuteria na batalha naval
contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra a presenccedila dos golfinhos abrindo o cenaacuterio da
batalha do Aacutecio faz alusatildeo agrave figura do deus Apolo bem como agrave proteccedilatildeo do deus aos
romanos (GRIMAL 2014 p33)
Assim no centro do escudo de Eneias detalha-se a Batalha do Aacutecio e coloca-
se a figura de Otaviano em destaque
(hex 675-688)
In medio classis aeratas Actia bella cernete erat totumque instructo Marte uideres feruere Leucaten auroque effulgere fluctus Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar cum patribus populoque penatibus et magnis dis stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus Parte alia uentis et dis Agrippa secundis arduos agmen agens cui belli insigne superbum tempora nauali fulgent rostrata corona Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis uictor ab Aurorae populis et litore rubro Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx
146
No meio via-se as armadas de bronze a guerra do Aacutecio via-se todo o Leucates a ferver com Marte preparado e as ondas resplandecerem com o brilho do ouro De um lado Ceacutesar Augusto conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e o povo os penates e os deuses maiores em peacute sobre a elevada popa a que o seu feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua cabeccedila Em outra parte Agripa com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas Antocircnio vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho transporta com ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra e eacute seguido pela esposa egiacutepcia
Representa-se neste excerto os dois rivais de um lado Otaacutevio Augusto o
senado o povo os Penates e os grandes deuses romanos de outro Marco Antocircnio
e Cleoacutepatra acompanhados de um exeacutercito de homens baacuterbaros e figuras divinas
monstruosas Com o fim da batalha haacute o triunfo de Otaacutevio sobre Marco Antocircnio e a
Alexandria Posteriormente sentado agrave entrada do templo de Apolo Otaacutevio recebe os
presentes das naccedilotildees vencidas O fim da guerra delimita o iniacutecio da pax romana
A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)
O escudo de Eneias como se viu traz episoacutedios centrais da histoacuteria de Roma
a loba que alimenta Rocircmulo e Remo o rapto das Sabinas o castigo da traiccedilatildeo de
Meacutecio por Tulo Hostiacutelio a invasatildeo de Porsena os feitos heroicos de Horaacutecio Cocles e
Cleacutelia a defesa do Capitoacutelio contra os gauleses saacutelios e lupercus e no centro a
batalha do Aacutecio Haacute tambeacutem a representaccedilatildeo do mundo inferior no Taacutertaro encontra-
se Catilina inimigo da paacutetria enquanto nos Campos Eliacuteseos lugar onde habitam os
justos Catatildeo aparece ditando as leis Condensados em poucos versos estes
episoacutedios revelam um modo peculiar de medir o tempo na narrativa jaacute que a
percepccedilatildeo de grandes mudanccedilas histoacutericas satildeo condensadas em um curto periacuteodo
contrariando a mediccedilatildeo cronoloacutegica do tempo Com relaccedilatildeo ao tempo da narrativa
147
portanto no escudo figura-se o futuro de Roma pois ele mostra a Eneias
acontecimentos que ainda natildeo aconteceram
O escudo de Eneias ganha especial descriccedilatildeo na narrativa Isso se deve agrave
peculiaridade que ele carrega o futuro de Roma Levando em conta a definiccedilatildeo do
dicionaacuterio de siacutembolos para o termo ldquoescudordquo encontramos
O escudo (broquel) eacute o siacutembolo da arma passiva defensiva protetora embora agraves vezes possa ser tambeacutem mortal Agrave sua proacutepria forccedila (como objeto de metal ou de couro) ele associa magicamente forccedilas figuradas Efetivamente o escudo eacute em muitos casos uma representaccedilatildeo do universo como se o guerreiro ao usaacute-lo opusesse o cosmo ao seu adversaacuterio e como se os golpes deste uacuteltimo atingissem muito aleacutem do combatente agrave sua frente e alcanccedilassem a proacutepria realidade representada nos ornatos do broquel O escudo de Aquiles eacute um singular exemplo disso Hefestos (Vulcano) cria nele uma decoraccedilatildeo muacuteltipla fruto de seus saacutebios pensamentos Ornamenta-o com figuras da terra do ceacuteu e do mar do sol infatigaacutevel e da lua cheia bem como de todos os outros astros que coroam o ceacuteu Tambeacutem satildeo figuradas duas cidades humanas ndash duas belas cidades Numa delas veem-se nuacutepcias festins Em torno da outra cidade acampam dois exeacutercitos cujos guerreiros rebrilham sob suas armaduras Os atacantes hesitam entre duas decisotildees a destruiccedilatildeo da cidade inteira ou a partilha de todas as riquezas que guarda dentro de seus muros a apraziacutevel cidade (HOMI 18 v 478 ndash 492 508 ndash 512) Nesse broquel Hefestos potildee ainda uma terra branda um campo feacutertil domiacutenios reais um vinhedo pesadamente carregado de uvas um rebanho de vacas de chifres altos uma pastagem de cabras uma praccedila de danccedila e por fim a forccedila pujante do rio Oceano a formar a beirada do soacutelido escudo Todas as razotildees de viver todas as belezas do universo todos os siacutembolos da forccedila da riqueza e da alegria estatildeo mobilizados e concentrados nesse broquel O escudo era grande o bastante para proteger o combatente de cima a baixo e eventualmente servir de padiola para carregar um morto ou um ferido (CHEVALIER GHEERBRANT 1999 p 387)
Com isso entende-se que o ldquoescudordquo no pequeno excerto vai aleacutem de um
termo aleatoacuterio Trata-se de um artefato beacutelico de uma forccedila milenar jaacute que ele
carrega a origem de Roma a Nova Troia bem como toda a descendecircncia do heroacutei
Eneias Pensando-se no tempo da narrativa as imagens ali esculpidas separam o
tempo de Eneias e o tempo do imperador Otaacutevio Augusto revelando-nos um passado
e um futuro
Vale destacar que as figuras gravadas no escudo apenas sugerem a accedilatildeo dos
personagens que deve portanto ser reconstituiacuteda pelo leitor No que diz respeito agrave
presenccedila do mito e sua narrativa sabe-se que entre os antigos o mito era associado
148
a algo verdadeiro divino e sagrado Inicialmente o mito era um relato sobre os
primoacuterdios ou sobre as accedilotildees heroicas ou fatos que tiveram ou natildeo uma intervenccedilatildeo
divina por isso eacute uma mateacuteria predominante e caracteriacutestica do gecircnero eacutepico Com
isso a poesia eacutepica experimenta o contato com o tempo passado
Procurou-se destacar no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise as
figuras representativas do cenaacuterio eacutepico e portanto a construccedilatildeo do texto em um
estilo grandiloquente Partindo do princiacutepio de que o estilo eacute efeito de sentido e uma
construccedilatildeo do discurso verificamos que o efeito grandiloquente emerge de uma
recorrecircncia figurativa
Neste excerto da Eneida o efeito de individuaccedilatildeo pretendido foi o sublime e a
rede de figuras deixaram entrever uma recorrecircncia de representaccedilatildeo a de um cenaacuterio
marcado pela figura do heroacutei que eacute agraciado pelos deuses com um presente especial
um artefato beacutelico que registra a histoacuteria de sua descendecircncia
As figuras destacadas portanto com especial atenccedilatildeo ao escudo de Eneias
engendram um cenaacuterio marcado por feitos heroicos que eacute mediado pela accedilatildeo vigorosa
do heroacutei e seu povo
A poesia eacutepica virgiliana em um tom vigoroso e portanto com destaque para
temas e figuras grandiloquentes colocou em relevo agraves faccedilanhas da Itaacutelia e os triunfos
romanos
149
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao compreendermos o estilo como efeito de sentido produzido pelo discurso
reconhecemos a importacircncia de se analisar a recorrecircncia de procedimentos temaacuteticos
e figurativos na construccedilatildeo do sentido
Para descrever um estilo devemos compreender a rede de temas e figuras que
configuram a totalidade discursiva entendendo-as como repertoacuterio deduziacutevel do texto
mas tambeacutem como um modo especiacutefico de uso desse repertoacuterio
Na anaacutelise de um determinado estilo devemos procurar portanto os temas e
figuras que estatildeo circunscritos no discurso a fim de depreendermos um especiacutefico
efeito de individuaccedilatildeo engendrado no texto
Como jaacute vimos a Roda de Virgiacutelio especifica quais seriam as figuras desejadas
para o contexto da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica pensando cada grupo de figuras
a partir de diferentes contextos seja do estilo simples (singelo) do meacutedio e do
grandiloquente Ao mapear os trecircs estilos da Antiga Retoacuterica o esquema circular
tripartido que foi difundido a partir do seacuteculo XII atraveacutes dos estudos de Joatildeo de
Garlacircndia natildeo aponta para uma classificaccedilatildeo entre os gecircneros bucoacutelico didaacutetico e
eacutepico pensando-os do baixo ao elevado mas sim para uma ideia de continuidade
temaacutetica da carreira literaacuteria de Virgiacutelio
Se uma roda como se sabe gira em torno de um eixo central podemos pensar
em Virgiacutelio como o eixo que mobiliza movimenta trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo As
Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida movimentam-se em torno do poeta que criou
diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo e personagens o pastor o agricultor e o heroacutei A partir
deles desenham-se as accedilotildees e a espacialidade para o pastor o campo a sombra
de uma frondosa faia para o agricultor o cultivo o campo lavrado as aacutervores
frutiacuteferas e para o heroacutei as batalhas e suas armas de guerra O cenaacuterio das Bucoacutelicas
traz um contorno humilde pois as figuras apresentadas satildeo de um universo temaacutetico
singelo ligado agrave natureza O cenaacuterio das Geoacutergicas traz um contorno diferenciado
pois as figuras abordam o cultivo das plantas e a criaccedilatildeo de animais ou seja trata-se
de um universo temaacutetico moderado em que satildeo apresentados alguns ensinamentos
relacionados agrave agricultura No cenaacuterio da Eneida o contorno eacute o sublime
grandiloquente pois o universo temaacutetico eacute outro o das guerras e batalhas em que
satildeo descritos os feitos dos heroacuteis
150
Ao analisar os trecircs tipos de estilo descritos na Roda de Virgiacutelio partimos do
princiacutepio de que todo estilo eacute um efeito de sentido e portanto uma construccedilatildeo do
discurso Acreditamos que esse efeito eacute determinado por recorrecircncias de
procedimentos na construccedilatildeo do discurso Quando falamos em recorrecircncia
estabelecemos como objeto de anaacutelise a isotopia figurativa presente nos textos que
eacute capaz de construir um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo
Haacute portanto nas Bucoacutelicas nas Geoacutergicas e na Eneida uma direcionalidade
previamente estabelecida uma vez que o cenaacuterio campesino do pastor na ldquoBucoacutelica
Vrdquo constroacutei-se a partir de Mopso e Menalcas personagens bucoacutelicos que cantam
sobre a morte e apoteose de Daacutefnis pastor por excelecircncia e lendaacuterio inventor do
gecircnero bucoacutelico O ambiente de atuaccedilatildeo dos personagens eacute a gruta e o campo
Percebe-se na leitura do poema uma recorrecircncia de figuras que nos remetem a uma
temaacutetica singela sobre o viver ruacutestico o oacutecio e o prazer do canto levando-nos a um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo a do estilo simples
Enquanto isso no Canto IV (hex 1-115) das Geoacutergicas com intencionalidade
instrutiva e portanto em um estilo meacutedio revela-se qual eacute o ambiente mais adequado
para o cultivo das abelhas Assim o campo os rios e as folhagens hospitaleiras
participam da construccedilatildeo deste cenaacuterio em que tambeacutem figuram andorinhas
melharucos e outras aves predadoras que segundo a voz didaacutetica que perpassa a
obra satildeo um risco para as abelhas Apresentam-se tambeacutem os materiais adequados
para a produccedilatildeo das caixas que abrigam as abelhas a corticcedila e o vime Tem-se ainda
a menccedilatildeo a Aristeu um pastor miacutetico mas que sabe teacutecnicas de apicultura Neste
excerto das Geoacutergicas eacute apresentada portanto uma narraccedilatildeo em que a voz poeacutetica
descreve qual o cenaacuterio mais adequado para a criaccedilatildeo de abelhas As figuras
presentes no fragmento revelam-nos o tema sobre os cuidados a serem tomados na
apicultura
Jaacute no Canto VIII (hex 612-731) da Eneida o estilo eacute o grandiloquente uma vez
que somos conduzidos a um cenaacuterio em que figuram o heroacutei com suas armas de
guerra Ao filho Eneias a deusa Vecircnus entrega o capacete as espadas a riacutegida
couraccedila as armaduras da perna a lanccedila e o inenarraacutevel escudo As figuras remetem-
nos ao tema das batalhas e posteriormente aos triunfos dos romanos
151
Se retomarmos as figuras presentes na Roda podemos entender que cada
estilo cria um modo individualizador de dizer gerando uma expectativa de
personagens accedilatildeo e ambientaccedilatildeo Observa-se uma recorrecircncia figurativa que resulta
em especiacuteficos efeitos de sentido Confirma-se assim que os diferentes papeacuteis
temaacuteticos presentes na constituiccedilatildeo de um estilo fundamentam a totalidade discursiva
As personagens e seus respectivos cenaacuterios de atuaccedilatildeo estatildeo pressupostos em cada
efeito de individuaccedilatildeo De cada estilo depreende-se dessa forma uma expectativa
do dizer
Pensando nos excertos das obras virgilianas aqui estudados para o humilis
stylus encontramos como personagens os pastores Mopso e Menalcas dentre os
animais representativos os cabritos aleacutem da flauta e o cajado como objetos coerentes
ao universo dos pastores Tambeacutem destacamos o campo a gruta e os olmeiros que
figuram como a espacialidade desejada para o cenaacuterio bucoacutelico descrito
Na Roda de Virgiacutelio as personagens mencionadas satildeo Tityrus e Meliboeus
figuras recorrentes nos idiacutelios de Teoacutecrito e que depois tambeacutem foram retomadas por
Virgiacutelio As outras figuras mencionadas as ovelhas o cajado o campo e a faia
tambeacutem satildeo coerentes ao universo bucoacutelico jaacute que contribuem para a previsibilidade
do cenaacuterio no contexto do humilis stylus
Para o mediocris stylus podemos destacar como personagem o pastor Aristeu
que sabe teacutecnicas de apicultura A menccedilatildeo a este personagem eacute feita nos hexacircmetros
281-294 315-558 do Canto IV das Geoacutergicas Embora ele natildeo apareccedila no excerto
aqui estudado podemos destacar sua presenccedila como personagem representativo
justamente por ser parte do contexto virgiliano Dentre os animais representativos
podem ser destacadas as abelhas pois o excerto aqui estudado aborda alguns
conselhos de apicultura colocando as abelhas portanto em maior destaque Aleacutem
disso as colmeias podem figurar como objeto representativo em uma alusatildeo agraves
caixas de corticcedila e vime destinadas ao abrigo das abelhas e que aparecem no texto
como um dos conselhos a ser seguido na apicultura Para a descriccedilatildeo do cenaacuterio vale
destacar o campo o rio e as folhagens hospitaleiras ambiente adequado para as
abelhas se alojarem
Na Roda virgiliana os personagens mencionados para o mediocris stylus satildeo
Triptolemus e Coelius (agraves vezes pode aparecer Caelius como jaacute mencionamos
anteriormente) Em Joatildeo de Garlacircndia aparece ainda Triptolemus e Ceres Segundo
152
Fowler (2012) Coelius e Triptolemus satildeo nomes comuns para a eacutepoca nomes
destinados aos proprietaacuterios da terra por exemplo embora a figura de Triptolemus
apareccedila em um dos Hinos Homeacutericos agrave Demeacuteter deusa grega da agricultura daiacute a
menccedilatildeo a Ceres equivalente romano para Demeacuteter feita por Garlacircndia Satildeo nomes
portanto que estariam dentro do contexto das Geoacutergicas mesmo natildeo sendo
personagens virgilianos seriam nomes equivalentes Logo o boi o arado o campo e
os pomares todos mencionados na Roda de Virgiacutelio figuram como elementos
previsiacuteveis neste contexto
No grauis stylus podemos destacar como personagens Eneias e Turno Como
protagonista da Eneida o heroi Eneias figura como o filho protegido da deusa Vecircnus
que eacute agraciado com artefatos beacutelicos feitos pelo deus das forjas Vulcano Turno o
seu rival na batalha aparece para fazer contraponto ao heroi Dentre os animais
representativos destacamos o cavalo que embora natildeo apareccedila no excerto aqui
estudado eacute uma figura recorrente no contexto eacutepico virgiliano Como objetos
representativos tecircm-se as espadas as armaduras a lanccedila e o escudo A accedilatildeo das
personagens remete agrave defesa das muralhas da cidade bem como agrave construccedilatildeo delas
e o louro figura como uma honraria destinada aos heroacuteis
Na Roda os personagens citados satildeo Hector e Ajax personagens recorrentes
na epopeia homeacuterica Em Homero um dos modelos utilizados por Virgiacutelio o estilo
grandiloquente portanto tambeacutem contribui para a compreensatildeo das personagens
sua atuaccedilatildeo e a espacialidade descrita
Queremos destacar assim que para cada estilo encontramos uma
homogeneizaccedilatildeo das figuras que corroboram para uma direcionalidade do discurso e
para a criaccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos
Para Norma Discini (2009 p 57) ldquoo estilo apresenta um ponto de vista sobre o
mundordquo Pensando-se nas obras de Virgiacutelio cada estilo simples meacutedio e
grandiloquente aponta para a recorrecircncia de um modo de dizer remetendo-nos a
diferentes discursos com diferentes pontos de vista
Segundo Discini (2009 p 59)
descrever um estilo eacute reconstruiacute-lo Para tanto reconstruiacutemos o ator da enunciaccedilatildeo esse sujeito cuja figura emerge como corpo como caraacuteter de uma totalidade enunciada Por isso o estilo eacute um efeito de sentido uma construccedilatildeo do discurso O efeito de estilo pressupotildee concretizada nas figuras da espacialidade temporalidade e actorialidade uma sistematizaccedilatildeo Trata-se de uma homogeneizaccedilatildeo
153
do sentido que confirma a coerecircncia global do estilo e confirma tambeacutem um equiliacutebrio necessaacuterio agrave economia geral da construccedilatildeo do sentido
Logo observa-se que esta homogeneizaccedilatildeo do sentido se apoia nas isotopias
figurativas sejam elas espaciais pensando-se na descriccedilatildeo do espaccedilo de atuaccedilatildeo
ou actoriais pensando-se nas personagens Em Virgiacutelio as personagens descritas
revelam trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o heroacutei) e a partir delas constroacutei-se
um modo de ser no texto uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa que coloca em
destaque uma identidade do discurso os especiacuteficos efeitos de individuaccedilatildeo os
estilos
Pensando-se na doutrina dos genera dicendi ou seja dos trecircs tipos de estilo
definidos pelos gramaacuteticos antigos podemos entendecirc-los como instrumentos para a
construccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos Cada estilo daacute uma direcionalidade
para o sentido de cada discurso Haacute nas trecircs obras virgilianas diferentes
personagens que marcam assim diferentes tipos sociais com diferentes ambientes e
accedilotildees
Para cada estilo destaca-se um personagem que a partir de seu papel temaacutetico
e figurativo aspectualiza-se no texto jaacute que a sua atuaccedilatildeo esquematiza um cenaacuterio
coerente
Portanto entendemos que os estilos simples meacutedio e grandiloquente que
perpassam as trecircs obras remetem-nos a uma mudanccedila de atuaccedilatildeo levando-nos a
especiacuteficas esquematizaccedilotildees figurativas seja do cenaacuterio das personagens ou das
accedilotildees circunscritas a cada estilo
Segundo Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 31)
Ao fazer girar ainda que muito de leve ldquoa roda de Virgiacuteliordquo ndash essa espeacutecie de hierarquia de estilos que os comentaristas da baixa latinidade identificaram nas obras do mantuano tomando respectivamente as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida como paradigmas dos trecircs tipos baacutesicos de estilo reconhecidos pelos antigos quais sejam o ldquosimplesrdquo (humilis stylus) o ldquotemperadordquo (mediocris stylus) e o ldquosublimerdquo (grauis stylus) ndash percebe-se que a expressatildeo num grande autor se sujeita por completo ao domiacutenio dos recursos da linguagem []
Procurou-se destacar com isso o modo como as figuras e temas se organizam
nas trecircs obras virgilianas Para tanto valemo-nos dos diferentes estilos e a partir
154
deles articulamos os personagens e seu ambiente de atuaccedilatildeo Procurou-se entender
como cada estilo determina a figuratividade presente nos textos agindo como um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo
A poesia atinge um alto grau de encantamento quando a palavra poeacutetica
alcanccedila um aacutepice de realizaccedilatildeo imageacutetica A poesia vale-se da linguagem
experimentando-a e revificando-a
Assim como proposta deste trabalho procurou-se descrever e compreender a
construccedilatildeo expressiva da linguagem artiacutestica Para isso buscou-se entender que a
palavra poeacutetica enquanto imagem soacute alcanccedila sua funccedilatildeo puramente representativa
e esteacutetica quando percebida como uma forma particular de construccedilatildeo Coube-nos a
partir destas consideraccedilotildees ler as obras de Virgiacutelio com a finalidade de reconhecer a
eficaacutecia do texto poeacutetico e a sua vocaccedilatildeo imageacutetica
Procurou-se investigar em excertos representativos das trecircs obras virgilianas
alguns dos recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico dos
textos Aleacutem disso na anaacutelise das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida debruccedilamo-
nos sobre os trecircs tipos de estilo reconhecidos pelos gramaacuteticos antigos a fim de
compreendecirc-los a partir da Poeacutetica e da Semioacutetica Literaacuteria
Verificou-se que a triacuteade das obras virgilianas passou a ser representativa dos
trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica Posteriormente Joatildeo de Garlacircndia
filologista do seacuteculo XIII mapeou as trecircs obras na chamada Roda de Virgiacutelio
classificaccedilatildeo medieval que seguiu assim a doutrina dos gramaacuteticos antigos
Nosso trabalho portanto com vistas agrave compreensatildeo dos estilos presentes nas
obras virgilianas procurou reconhecer nos poemas o modo de atuaccedilatildeo de cada estilo
pensando-os como efeitos especiacuteficos de individuaccedilatildeo depreensiacuteveis por diferentes
recorrecircncias figurativas
Apresentamos ainda as traduccedilotildees dos excertos das trecircs obras com as
necessaacuterias referecircncias culturais Para estas notas foram utilizados dicionaacuterios de
mitologia e os comentaristas tradicionais acerca da obra do poeta mantuano
Foi feito um levantamento da origem da Roda de Virgiacutelio e do pensamento
estruturado pelos gramaacuteticos antigos acerca dos trecircs tipos de estilo presentes nas trecircs
obras Natildeo nos prendemos agraves classificaccedilotildees de maneira exaustiva jaacute que nosso
objetivo natildeo foi catalogar mas sim entender o modo como esses estilos atuam nos
textos Pensando nisso procuramos por meio da moderna anaacutelise metodoloacutegica dar
155
ecircnfase ao entendimento do estilo como efeito de sentido partindo da compreensatildeo
da isotopia figurativa presente em cada obra
Quanto ao capiacutetulo destinado aos comentaacuterios sobre a obra de Virgiacutelio
destacamos aqueles que julgamos pertinentes para a compreensatildeo acerca da
estrutura dos textos Dedicamos tambeacutem um capiacutetulo para as definiccedilotildees de tema
figura figuratividade e os processos de estruturaccedilatildeo do texto com exemplos de
excertos da obra virgiliana
Atualizando a questatildeo dos trecircs estilos na obra de Virgiacutelio o trabalho pretendeu
contribuir assim para as reflexotildees acerca da figuratividade na poesia bucoacutelica
didaacutetica e eacutepica
156
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Tese (Doutorado em Estudos Literaacuterios) mdash
Universidade Estadual Paulista Juacutelio de Mesquita
Filho Faculdade de Ciecircncias e Letras (Campus
Araraquara)
Orientador Maacutercio Thamos
1 Virgiacutelio 2 Figuratividade 3 Semioacutetica
Literaacuteria I Tiacutetulo
Thalita Morato Ferreira
A RODA DE VIRGIacuteLIO um estudo da figuratividade na
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras ndash UNESPAraraquara como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Letras Linha de pesquisa Relaccedilotildees Intersemioacuteticas Orientador Prof Dr Maacutercio N Thamos
Data da defesa 30042020
MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA
Presidente e Orientador Prof Dr MAacuteRCIO THAMOS - Orientador Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias
e Letras de Araraquara
Membro Titular Prof Dr BRUNNO VINICIUS GONCcedilALVES VIEIRA Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias
e Letras de Araraquara
Membro Titular Prof Dr ALEXANDRE SILVEIRA CAMPOS Departamento de Letras Modernas UNESP - Faculdade de Ciecircncias e Letras de Araraquara
Membro Titular Profa Dra ELAINE CRISTINA PRADO DOS SANTOS Centro de Comunicaccedilatildeo e Letras Universidade Presbiteriana Mackenzie
Membro Titular Profa Dra PATRIacuteCIA PRATA Departamento de Linguiacutestica Universidade Estadual de Campinas Local Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciecircncias e Letras UNESP ndash Cacircmpus de Araraquara
Para Luis Carlos Dhara e Theo que me ensinam todos os dias que viver eacute ir
tecendo naturalmente a trama da nossa histoacuteria
AGRADECIMENTOS
ldquoUm galo sozinho natildeo tece uma manhatilderdquo
Ao meu orientador Prof Dr Maacutercio Thamos quem me ensinou que Virgiacutelio noacutes natildeo
o descobrimos noacutes o merecemos agradeccedilo por ter acompanhado minha pesquisa
desde a Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica pela amizade e minha formaccedilatildeo acadecircmica poeacutetica e
humana
Agrave Profa Dra Ude Baldan e ao Prof Dr Brunno Vieira agradeccedilo pela leitura generosa
do meu trabalho e pelas valiosas contribuiccedilotildees em minha banca de qualificaccedilatildeo bem
como pela minha formaccedilatildeo
Ao meu esposo Luis Carlos Malimpensa que me incentivou a cada momento
agradeccedilo pelo amor companheirismo e por ter me encorajado a natildeo desistir do
caminho
Agrave Dhara minha filha que nasceu em 2018 trazendo vida nova e sadia agradeccedilo pelo
despertar e pela poesia do maternar
Ao Theo meu novo bebecirc que estaacute a caminho e completaraacute a poesia da nossa famiacutelia
Agrave madrinha Edna Batistela que cuidou da minha famiacutelia enquanto eu natildeo podia todo
o meu carinho amor e o meu afeto constante
Aos meus pais Joseacute de Arauacutejo Ferreira e Antonieta Morato do Amaral Ferreira
agradeccedilo pela vida amor e sincero apoio e tambeacutem ao meu irmatildeo Carlos Eduardo
pelo apoio e amizade
Agrave Camila Sabino que me auxiliou na leitura de artigos em inglecircs agradeccedilo pela
amizade e carinho
Agrave Unesp pelo compromisso e por ter me dado a chance e todas as ferramentas que
me permitiram chegar hoje ao final desse ciclo de maneira satisfatoacuteria
E por fim mas natildeo menos importante aos Orixaacutes que clareiam nossos caminhos
A todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formaccedilatildeo o meu muito
obrigado
O primado da forma o que significa eacute que por exemplo a poesia de Virgiacutelio eacute a porccedilatildeo da substacircncia Roma que a forma de Virgiacutelio o seu hexacircmetro recorta e
exprime Sem o hexacircmetro de Virgiacutelio Roma eacute histoacuteria civilizaccedilatildeo liacutengua latina metrificaccedilatildeo ateacute mas natildeo poema pelo menos natildeo como o lemos nas Bucoacutelicas e
na Eneida Alceu Dias Lima (1992 p 14)
RESUMO
O presente trabalho procura investigar a manifestaccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs
obras de Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Pretende-se por meio da
Semioacutetica Literaacuteria analisar os excertos das obras do ponto de vista da expressatildeo
com destaque para a vocaccedilatildeo imageacutetica dos textos a sua figuratividade Aleacutem disso
o trabalho debruccedila-se sobre o conceito de estilo ao investigar na chamada Roda de
Virgiacutelio os trecircs tipos de estilo descritos pela Retoacuterica Antiga a saber o estilo singelo
o estilo meacutedio e o estilo grandiloquente Trata-se de um esquema circular tripartido do
seacuteculo XIII que apresenta as Bucoacutelicas no estilo singelo as Geoacutergicas no meacutedio e a
Eneida no grandiloquente Com isso o esquema da Roda compreende para cada
texto virgiliano um cenaacuterio representativo diferente com diferentes caracteres O
presente estudo procura assim ampliar a compreensatildeo acerca dos trecircs estilos ao
entendecirc-los como efeitos de sentido engendrados nos textos ou seja como
especiacuteficos efeitos sugestionados nas obras a partir da predominacircncia de um
tratamento temaacutetico seguido de sua isotopia figurativa Apresentamos ainda uma
traduccedilatildeo dos excertos virgilianos aqui destacados para anaacutelise A pesquisa eacute um
estudo sobre a estrutura poeacutetica das obras virgilianas com destaque portanto para
a presenccedila da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica
Palavras-chave Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida Figuratividade Semioacutetica
ABSTRACT
The present study seeks to investigate the figurative manifestation in excerpts of
Virgilrsquos three works the Eclogues the Georgics and the Aeneid It is intended through
Literary Semiotics to analyze the excerpts of the works from the point of view of
expression with emphasis on the imagery vocation of the texts their figurativity In
addition the work focuses on the concept of style by investigating in the so-called
Virgils Wheel the three types of style described by Ancient Rhetoric namely the
simple style the medium style and the grandiloquent style It is a circular tripartite
scheme from the 13th century that presents the Eclogues in simple style the Georgics
in the middle and the Aeneid in the grandiloquent Thus the scheme of the Wheel
comprises a different representative scenario for each Virgilian text with different
characters The present study thus seeks to increase the understanding of the three
styles to understand them as meaning effects engendered in the texts that is as
specific effects suggested in the works from the predominance of a thematic treatment
followed by their figurative isotopy We also present a translation of the Virgilian
excerpts highlighted here for analysis The research is a study on the poetic structure
of Virgilian works with emphasis therefore on the presence of figurativity in bucolic
didactic and epic poetry
Keywords Eclogues Georgics Aeneid Figurativity Semiotics
Lista de Figuras e Tabelas
Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo IIIp 10
Figura 2 ndash A Roda Virgiliana p 11
Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia p27
Figura 4 ndash A Roda de Virgiacuteliop30
Figura 5 ndash Mopso e Menalcasp 75
Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnusp 91
Tabela 1 ndash The spokes of Virgilrsquos Wheelp 44
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 13
1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica 22
2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente 33
3 A criacutetica virgiliana46
31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da
Eneida46
32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho 53
4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto57
41 Textos temaacuteticos e figurativos57
42 A figuratividade e a leitura do poeacutetico 69
5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises
51 BUCOacuteLICA V ndash Mopso e Menalcas os pastores cantadores75
52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo81
53 Figuratividade na Bucoacutelica V ndash anaacutelise do texto86
54 GEOacuteRGICAS Canto IV (1-115) ndash descriccedilatildeo do lugar adequado para as
abelhas 99
55 Geoacutergicas Canto IV (1-115) Traduccedilatildeo e notas104
56 Figuratividade no Canto IV (1-115) ndash anaacutelise do texto 108
57 ENEIDA Canto VIII (612-731) ndash Eneias e as armas de guerra 121
58 Traduccedilatildeo e notas do Canto VIII (612-731)125
59 Figuratividade no Canto VIII (612-731) ndash anaacutelise do texto 131
6 Consideraccedilotildees Finais 149
Bibliografia 156
Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III
Fonte PEREIRA Maria H da R 2002 p 247
Figura 2 - A Roda Virgiliana
Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p592
Um claacutessico eacute um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha
para dizer (2007 p11)
Os claacutessicos satildeo livros que quanto mais pensamos conhecer por
ouvir dizer quando satildeo lidos de fato mais se revelam novos inesperados
ineacuteditos (2007 p 12)
[] os claacutessicos natildeo satildeo lidos por dever ou por respeito mas soacute por
amor (2007 p 12-13)
Italo Calvino (2007)
13
Introduccedilatildeo
Publius Vergilius Maro nasceu no ano 70 aC em Andes aldeia proacutexima a
Macircntua sob o primeiro consulado de Liciacutenio Crasso e de Pompeu Magno O poeta
deixou-nos trecircs grandes obras as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Seus textos
estatildeo entre os manuscritos (seacutecs II-III dC) mais antigos que possuiacutemos em papiro na
corrente de difusatildeo da Cultura Claacutessica
As fontes baacutesicas para a biografia do poeta satildeo os comentaacuterios de Valeacuterio
Probo (seacutec I dC) Donato (seacutec IV dC) Seacutervio (seacutec IV dC) Juacutenio Filargiacuterio (seacutec V
dC) e a Vita em verso do gramaacutetico Focas mais tardia e incompleta (seacutec IX) No
livro De poetis Suetocircnio (seacutec I dC) menciona a biografia de Virgiacutelio (Vita Vergilii) que
foi conservada graccedilas a Donato que a reproduziu em seu Comentarium ad Vergilium
O poeta morreu em 19 aC em Brindisi e seu corpo foi transportado para
Naacutepoles sendo sepultado em uma gruta proacutexima agrave estrada de Puteacuteolos1 Todos os
bioacutegrafos citam um diacutestico que o poeta teria supostamente redigido a si proacuteprio
Mantua me genuit Calabri rapuere tenet nunc Parthenope cecini pascua rura duces2
Macircntua me gerou na Calaacutebria arrebataram-me agora me tem o Partecircnope3 cantei as pastagens os campos e os heroacuteis
Segundo Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 30) a veneraccedilatildeo ao poeta comeccedilou
logo apoacutes sua morte Siacutelio Itaacutelico (26-101 dC) por exemplo em seu poema eacutepico
acerca da segunda guerra puacutenica (Punica) imitou de Virgiacutelio o estilo os episoacutedios o
maravilhoso mitoloacutegico e ateacute os recursos do gecircnero Aleacutem disso Eacutelio Lampriacutedio (seacutec
IV dC) um dos escritores da Histoacuteria Augusta conta que Alexandre Severo4 tinha no
palaacutecio a imagem de Virgiacutelio a quem chamava de ldquoPlatatildeo dos poetasrdquo na mesma
1 Atualmente Pozzuoli proviacutencia de Napoacuteles Era conhecida como Puteacuteolos no Periacuteodo Romano 2O termo ldquopascuardquo pastagens refere-se agraves Bucoacutelicas ldquorurardquo campos cultivadosrdquo agraves Geoacutergicas ldquoducesrdquo chefes ou heroacuteis agrave Eneida 3 Partecircnope eacute o nome poeacutetico da cidade de Naacutepoles Na mitologia conta-se que Partecircnope lanccedilou-se
ao mar com suas irmatildes sereias e as ondas atiraram seu corpo para as margens de Naacutepoles onde lhe foi erigido um monumento (cf GRIMAL 2014 p 357) Nos versos finais das Geoacutergicas Canto IV (hex 563-564) Virgiacutelio assim afirma Illo Vergilium me tempore dulcis alebatParthenope studiis florentem ignobilis oti ldquoNaquele tempo a doce Partecircnope nutria a mim Virgiacutelio que nos esforccedilos de um obscuro oacutecio floresciardquo 4 Alexandre Severo (222-235 dC) uacuteltimo imperador da Dinastiacutea Severa em Roma
14
galeria de Aquiles Ciacutecero e outros nomes ilustres Vale ressaltar tambeacutem que as
escavaccedilotildees arqueoloacutegicas de Pompeia forneceram ateacute hoje cerca de sessenta
grafitos virgilianos e uma quinzena deles eacute de citaccedilotildees ou reminiscecircncias das
Bucoacutelicas Segundo Mendes (1997 p 43) as Bucoacutelicas faziam parte da vida dos
habitantes de Pompeia pois os grafitos aparecem nos peristilos poacuterticos e muros
Enrico Rostagni (1931 p 5) assim exprime a benignidade do tempo para com a obra
de Virgiacutelio
AL MASSIMO POETA della Romanitagrave il tempo egrave stato in certo qual modo benigno perchegrave del texto delle sue Opere permise che ci giungessero esemplari insigni per lrsquoantichitagrave veneranda della scritura la quale nella sua maestagrave riflette per cosigrave dire la maestagrave del Poeta e della Gente per cui egli aveva cantato
A vitalidade das obras de Virgiacutelio eacute patente pelo modo como os seus principais
temas e enredos inspiraram e ainda inspiram poetas e demais artistas Mendes (1997
p 42) questiona-se acerca do valor dessa obra de arte para assim perdurar na
memoacuteria e nas matildeos de geraccedilotildees Ele entatildeo afirma que ldquouma obra literaacuteria impotildee-se
e permanece por sua concepccedilatildeo e novidade de conteuacutedo aliadas ao primor de
execuccedilatildeordquo
Como bem aponta-nos Joseph Brodsky (1994 p 97) poeta e criacutetico russo ldquoA
biografia dos poetas estaacute em suas vogais e sibilantes em sua meacutetrica suas rimas e
metaacuteforasrdquo e assim acreditamos que Virgiacutelio revive sempre em cada leitor aacutevido e
maravilhado pelas paacuteginas de indefiniacutevel Beleza As Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a
Eneida renascem constantemente naquele que mergulha em suas linhas e entrelinhas
(SANTOS 2007 p73)
Das obras virgilianas sabemos que a coleccedilatildeo de dez poemas pastoris que a
tradiccedilatildeo de estudos claacutessicos conhece sob o tiacutetulo de Bucoacutelicas foi composta
aproximadamente entre 42 e 37 aC Nesta obra ao buscar motivos nos Idiacutelios de
Teoacutecrito (310 ndash 250 aC) poeta siracusano de destaque no Periacuteodo Heleniacutestico
Virgiacutelio cria cenaacuterios e personagens campestres valendo-se de uma linguagem
repleta de elementos figurativos
As Geoacutergicas foram escritas entre 37 e 29 aC logo apoacutes as Bucoacutelicas A obra
configura-se de acordo com a tradiccedilatildeo claacutessica como um poema didaacutetico e eacute
composta por quatro livros (ou cantos) A obra traz como tema a terra e os encantos
da vida rural apresentando uma seacuterie de ensinamentos relacionados aos trabalhos
15
no campo No primeiro livro apresenta-se a lavoura no segundo a arboricultura
sobretudo a viticultura no terceiro a pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no
quarto a apicultura
Escrita entre 29 e 19 aC a Eneida eacute a eacutepica virgiliana Com doze livros (ou
cantos) a obra eacute considerada pela tradiccedilatildeo como um poema histoacuterico e mitoloacutegico
Ao colocar em cena os feitos de Eneias o filho protegido da deusa Vecircnus e o
responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino Virgiacutelio
trama um conjunto de situaccedilotildees e narrativas que propiciaram a fundaccedilatildeo de Roma
Pensando-se nos versos de Virgiacutelio eacute oportuno afirmar que sua poesia teve a
virtude de perpetuar-se e de registrar um povo e um momento da fala desse povo Ao
reconhecer o poeacutetico presente em suas obras compreendemos um fato de linguagem
com valor humano e portanto universal
Virgiacutelio como se sabe valeu-se do hexacircmetro datiacutelico como molde em suas
composiccedilotildees Este tipo de verso jaacute havia sido utilizado por Homero na produccedilatildeo da
Iliacuteada e da Odisseia O emprego do hexacircmetro nos poemas eacutepicos estendeu-se
tambeacutem agrave poesia didaacutetica com Hesiacuteodo e tambeacutem agrave poesia pastoril com Teoacutecrito
Adaptado agrave Literatura Latina o hexacircmetro datiacutelico foi escolhido por Virgiacutelio no texto
das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida
Sendo o hexacircmetro datiacutelico o uacutenico metro usado por Virgiacutelio em suas
composiccedilotildees cabe-nos mencionar suas especificaccedilotildees Natildeo se trata de um verso
com um nuacutemero fixo de siacutelabas pois em certos pontos uma vogal longa pode
substituir duas breves Na formaccedilatildeo de versos latinos natildeo satildeo as siacutelabas que satildeo
submetidas agrave regularidade meacutetrica mas sim o tempo nelas incorporado Logo intui-
se que o ritmo eacute determinado por um arranjo preciso entre siacutelabas de diferente
duraccedilatildeo Os vinte e quatro tempos de um hexacircmetro estatildeo reagrupados em seis
subunidades de quatro tempos Cada uma delas chamadas peacutes estatildeo enfileiradas
uma apoacutes a outra do primeiro ao sexto peacute na linha do hexacircmetro Trecircs satildeo os tipos
de peacutes meacutetricos o daacutetilo o espondeu e o troqueu
O daacutetilo eacute formado de duas partes a primeira representa os dois primeiros
tempos do peacute realizados sobre uma uacutenica siacutelaba que eacute marcada pela vogal longa A
segunda parte traz os dois uacuteltimos tempos do peacute realizados cada um sobre uma
siacutelaba sendo cada siacutelaba marcada por uma vogal breve O daacutetilo eacute representado por
( ˉ ˘ ˘ )
16
O espondeu tambeacutem eacute formado por duas partes Cada parte diferentemente
do daacutetilo eacute formada por duas siacutelabas longas O espondeu eacute graficamente
representado por ( ˉ ˉ )
A segunda parte de um daacutetilo marcada por duas vogais breves ( ˘ ˘) pode ser
substituiacuteda no verso por uma vogal longa pois uma vogal longa equivale a duas
breves Mas na praacutetica soacute os primeiros quatro peacutes do hexacircmetro podem ser
substituiacutedos por equivalentes espondeus pois o quinto peacute eacute normalmente um daacutetilo
que garante a base para que o verso seja chamado datiacutelico Quanto ao uacuteltimo ou seja
o sexto peacute chamado troqueu eacute constituiacutedo de duas siacutelabas A primeira eacute longa e a
segunda pode ser longa ou breve O uacuteltimo peacute eacute representado por ( ˉ ˘_)
Segundo Joatildeo Batista Toledo Prado (2012 p 109)
Para a consecuccedilatildeo do ritmo verbal no verso por exemplo num hexacircmetro datiacutelico (um verso de seis peacutes meacutetricos compostos ao menos idealmente por seis daacutetilos ou seja por sequecircncias trissilaacutebicas em que a primeira siacutelaba eacute longa e as duas outras que se lhe seguem satildeo breves) um daacutetilo poderaacute ser substituiacutedo em certas posiccedilotildees por um espondeu (peacute dissilaacutebico com ambas as siacutelabas longas)
Aleacutem disso a siacutelaba final que atua como pontuaccedilatildeo do verso eacute
fonologicamente neutralizada de tal forma que como se sabe o uacuteltimo peacute de um
hexacircmetro seraacute sempre um dissiacutelabo espondaico (quatro tempos) ou trocaico (trecircs
tempos) (PRADO 1997 p 171-172)
Com isso resulta o esquema geral do hexacircmetro
ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘
1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm
ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˘ ˘ ˉ ˉ
1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm
Acrescentaram-se na Antiguidade agraves trecircs obras canocircnicas de Virgiacutelio alguns
textos que hoje satildeo em sua maioria tidos como apoacutecrifos e considerados de autoria
duvidosa ou controversa pelos estudiosos Foi feita uma compilaccedilatildeo desses textos no
17
ano de 1572 com o tiacutetulo de Appendix Vergiliana pelo humanista francecircs J J
Escaliacutegero (1540 ndash 1609) No seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX vaacuterios estudiosos tais
como Rand (1919) e Frank (1930) afirmavam que os textos presentes na Appendix
Vergiliana eram todos (ou quase todos) da autoria de Virgiacutelio e passaram a consideraacute-
los como parte de um processo poeacutetico que culminaria nas trecircs obras consagradas do
poeta Mas em contrapartida tambeacutem havia nessa mesma eacutepoca quem apresentasse
um ponto de vista que se aproxima mais do consenso atual sobre a questatildeo ou seja
o de negar a autoria virgiliana dos textos presentes na Appendix O que vale destacar
para aleacutem da autoria destes textos eacute que as obras presentes na Appendix Vergiliana
constituem um material vasto e ainda pouco explorado
O presente trabalho procura focar assim nas trecircs principais produccedilotildees de
Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Ao investigar a manifestaccedilatildeo figurativa
presente em excertos representativos das trecircs obras procuramos destacar alguns dos
recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico de cada texto Os
excertos escolhidos satildeo representativos na medida em que alicerccedilam as
caracteriacutesticas dominantes da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Ao observar quais
satildeo as caracteriacutesticas predominantes em cada excerto o trabalho debruccedila-se sobre
os trecircs tipos de estilos descritos pela antiga retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio
e o grandiloquente que foram difundidos atraveacutes da chamada Rota Vergilli Roda de
Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que apresenta os principais caracteres dos trecircs
cenaacuterios criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico e o eacutepico atrelando cada um deles
a um tipo de estilo Ao compreender cada estilo como um efeito de sentido
sugestionado por meio de uma predominacircncia figurativa e temaacutetica presente em cada
excerto passamos a entender os estilos singelo meacutedio e grandiloquente presentes
na Roda como especiacuteficas construccedilotildees figurativas Para este entendimento o
presente estudo apoia-se no arcabouccedilo teoacuterico da Semioacutetica Literaacuteria
Pensando portanto em estilo como um efeito de sentido depreensiacutevel a partir
de uma totalidade discursiva o trabalho propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo
que os tratados de retoacuterica distinguiam Procurar-se-aacute observar assim a tessitura
poeacutetica de excertos das trecircs obras de Virgiacutelio valendo-se da caracterizaccedilatildeo figurativa
e da expressividade de cada estilo Ao descrever os procedimentos retoacutericos por meio
de princiacutepios mais amplos do que aqueles entatildeo utilizados pelos tratadistas antigos
pretendemos ampliar a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica a leitura do texto
claacutessico latino
18
O trabalho busca investigar a construccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs
principais produccedilotildees de Virgiacutelio e propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo
definidos pelos gramaacuteticos antigos ao entender cada estilo como parte da construccedilatildeo
figurativa presente nas trecircs obras O esquema da Roda de Virgiacutelio serviraacute assim
como base para os exemplos de figuras e temas encontrados nas Bucoacutelicas nas
Geoacutergicas e na Eneida e para o entendimento da construccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico
didaacutetico e eacutepico
Vale ressaltar que uma figura natildeo tem significado em si mesma Seu sentido
nasce do encadeamento com outras figuras presentes no discurso Se em um texto
tudo eacute relaccedilatildeo o que daraacute sentido a essas figuras eacute um tema Por isso para encontrar
o sentido de um conjunto de figuras que estatildeo encadeadas no discurso deve-se
perceber o tema subjacente a elas As figuras presentes em um texto formam uma
rede uma trama e por isso para depreendermos o tema de um texto figurativo eacute
preciso apreender primeiro as redes coerentes formadas pelas figuras No caso das
Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida eacute imprescindiacutevel que reconheccedilamos nos
excertos selecionados para anaacutelise o encadeamento e a rede de figuras Aliaacutes o que
garante a depreensatildeo dos temas por traacutes da rede de figuras eacute exatamente a coerecircncia
existente entre elas ou seja a predominacircncia figurativa afinal eacute a partir da coerecircncia
existente entre as figuras que podemos compreender a relaccedilatildeo solidaacuteria que elas
mantecircm entre si
Logo ao adentrarmos na dimensatildeo enunciativa e figurativa de cada excerto
virgiliano investigaremos a figuratividade que perpassa cada discurso destacando
como os estilos singelo meacutedio e grandiloquente satildeo expressos figurativamente nos
textos Pretendemos dessa maneira descrever cada estilo como um especiacutefico efeito
de sentido fruto da rede figurativa arquitetada pelo texto Assim procuramos
descrever os procedimentos retoacutericos atraveacutes de princiacutepios mais amplos para explicar
o fenocircmeno figurativo evidenciado na Roda Logo ao utilizarmos aqui o termo ldquofigurardquo
referimo-nos aos substantivos adjetivos e verbos de accedilatildeo presentes no texto e que
revestem uma ideia abstrata um tema A Retoacuterica seraacute lida entatildeo a partir de um olhar
Semioacutetico Apresentaremos ainda uma traduccedilatildeo dos excertos selecionados para
leitura e anaacutelise com as necessaacuterias notas de referecircncia (geograacuteficas mitoloacutegicas e
histoacutericas)
Os principais excertos selecionados para traduccedilatildeo e anaacutelise satildeo a Bucoacutelica V
a primeira parte do Canto IV das Geoacutergicas (hex 1-115) e o Canto VIII (hex 612-731)
19
da Eneida Estes excertos foram escolhidos pensando-se em seus esquemas
figurativos Satildeo trechos que alicerccedilam as caracteriacutesticas dominantes evidenciadas na
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica e que corroboram assim para o entendimento dos
estilos singelo meacutedio e grandiloquente descritos na Roda de Virgiacutelio Ao afirmarmos
com isso em nossas anaacutelises e comentaacuterios que determinado excerto eacute singelo
meacutedio ou grandiloquente o que se quer dizer eacute que estes trechos apresentam
predominantemente e natildeo exclusivamente caracteriacutesticas que alicerccedilam um
determinado efeito de sentido O que se observou nestes excertos escolhidos para
traduccedilatildeo e anaacutelise eacute que os efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente que
nos remetem respectivamente agrave poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica podem ser
depreendidos por uma rede coerente de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria
entre si
Aleacutem destes excertos outros apareceratildeo ao longo do trabalho para
complementarem o entendimento acerca dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente
e o modo como eles satildeo arquitetados por uma rede figurativa uma caracteriacutestica
dominante que alicerccedila o cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Vale ressaltar ainda que
todos os excertos traduzidos das obras virgilianas satildeo de autoria nossa assim como
os demais trechos em latim dos tratadistas antigos
O presente estudo procura portanto a partir de uma moderna anaacutelise
metodoloacutegica produzir um discurso metalinguiacutestico capaz de lanccedilar luz sobre os
recursos da figuratividade evidenciados na Roda de Virgiacutelio Com isso
compreendemos os trecircs estilos definidos pelos tratadistas antigos como efeitos de
sentido arquitetados por uma predominacircncia de figuras presente nos discursos
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
No primeiro capiacutetulo ldquoA Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela
Antiga Retoacutericardquo destacaremos brevemente o pensamento dos principais gramaacuteticos
latinos acerca da classificaccedilatildeo das obras de Virgiacutelio e com isso colocaremos em
relevo os trecircs tipos de estilo por eles descritos o singelo o meacutedio e o grandiloquente
Neste capiacutetulo ainda mencionaremos a Parisiana Poetria de Joatildeo de Garlacircndia e a
Rota Vergilii a Roda de Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que segue a doutrina dos
tratadistas antigos Procuraremos neste capiacutetulo esclarecer alguns pontos
importantes da doutrina dos genera dicendi os trecircs tipos de estilo descritos pelos
gramaacuteticos latinos e para isso faremos um levantamento dos pensamentos mais
relevantes para o tema Para esta etapa do trabalho utilizaremos como fonte os
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gramaacuteticos latinos e outros estudiosos da aacuterea de estudos claacutessicos Dentre os
pensadores antigos destacamos Seacutervio Valeacuterio Probo Donato e Filargiacuterio
No segundo capiacutetulo ldquoUma leitura dos efeitos de sentido simples meacutedio e
grandiloquenterdquo procuramos analisar os trecircs estilos presentes da Roda de Virgiacutelio
como efeitos de sentido engendrados nos textos e que corroboram para o
entendimento dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico
e o eacutepico Busca-se entender dessa forma que cada estilo supotildee uma unidade de
interpretaccedilatildeo depreensiacutevel da recorrecircncia temaacutetica e figurativa presente em cada
discurso Para esse entendimento foram destacados os pensamentos de Antoine
Compagnon (2014) Norma Discini (2009) e Wilson-Okamura (2010) entre outros
No terceiro capiacutetulo ldquoA criacutetica virgilianardquo mencionamos as reflexotildees de
Katharina Volk (2008) que mapeia os principais criacuteticos da obra de Virgiacutelio a partir da
deacutecada de 70 sublinhando duas vertentes de leitura para a obra do poeta a ideoloacutegica
e a literaacuteria Mencionamos alguns comentaacuterios de Elaine C Prado dos Santos (2007)
Ruy Mayer (1948) entre outros Nesta etapa destacamos ainda o pensamento e
estudo de Andrew Laird (2010) sobre a recepccedilatildeo de Virgiacutelio
No quarto capiacutetulo ldquoA Figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um
textordquo falaremos de conceitos semioacuteticos como lsquotemarsquo lsquofigurarsquo e lsquofiguratividadersquo e
procuraremos demonstrar na leitura e anaacutelise de alguns excertos dos poemas de
Virgiacutelio como os temas e figuras participam da formaccedilatildeo textual Para esta reflexatildeo
teremos como respaldo os estudos de Poeacutetica e Semioacutetica Literaacuteria Destacam-se
nesta etapa as reflexotildees de Greimas (1975) (2011) Jakobson (1978) (1989) Barros
(2005) Fiorin (1995) (2011) e Bertrand (2003)
No quinto capiacutetulo ldquoTraduccedilotildees notas e anaacutelisesrdquo contaremos com os excertos
selecionados das trecircs obras virgilianas traduzidos e analisados O trabalho de
traduccedilatildeo seraacute acompanhado das necessaacuterias referecircncias culturais (geograacuteficas
mitoloacutegicas e histoacutericas) Neste capiacutetulo seraacute observada a dimensatildeo figurativa de cada
obra e para isso seratildeo destacadas as principais figuras e os temas recorrentes agrave
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Nas anaacutelises procuraremos abordar como as figuras
se organizam e asseguram um revestimento figurativo dos principais temas bucoacutelicos
didaacuteticos e eacutepicos Aleacutem disso tambeacutem levaremos em conta os estilos singelo meacutedio
e grandiloquente compreendendo-os como efeitos de sentido a partir principalmente
de sua estrutura figurativa Os textos latinos escolhidos para leitura traduccedilatildeo e
anaacutelise seratildeo os das ediccedilotildees Les Belles Lettres em cotejo com as ediccedilotildees
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apresentadas por John Conington em The Works of Virgil e com as ediccedilotildees alematildes
da De Gruyter comentadas por Gian Biagio Conte
O presente estudo procura dessa forma analisar as obras de Virgiacutelio do ponto
de vista da expressatildeo procurando ampliar a percepccedilatildeo da leitura da poesia claacutessica
ao colocar em relevo os recursos da figuratividade do texto A anaacutelise dos elementos
de Retoacuterica a partir da Semioacutetica implica aqui em uma releitura ou seja em
descrever os procedimentos retoacutericos por meio de princiacutepios mais amplos do que
aqueles utilizados pelos gramaacuteticos antigos
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1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga
Retoacuterica
Procurar entender um poema a partir de uma classificaccedilatildeo preacute-estabelecida
natildeo nos parece uma tarefa meritoacuteria pois ldquocada criaccedilatildeo poeacutetica eacute uma unidade
autossuficienterdquo e cada poema portanto ldquoeacute uacutenico irredutiacutevel e inigualaacutevelrdquo (PAZ
2012 p 23) Classificar catalogar reduzir a poesia a algumas poucas formas natildeo diz
nada sobre o poeacutetico em si nem sobre a expressividade do texto todavia buscar
compreender o porquecirc de uma classificaccedilatildeo e o modo como essa classificaccedilatildeo atua
pode nos auxiliar numa tarefa que vai aleacutem de uma mera ordenaccedilatildeo externa agrave obra
quando nos leva a entender alguns mecanismos de estruturaccedilatildeo poeacutetica Eacute oacutebvio que
apenas traccedilar as fronteiras de uma obra e descrevecirc-la levando em conta a
configuraccedilatildeo de um determinado estilo natildeo eacute capaz de esclarecer o poeacutetico que ali
atua Assim ao refletirmos sobre os trecircs estilos (singelo meacutedio e grandiloquente)
presentes nas obras de Virgiacutelio natildeo queremos com isso catalogaacute-las muito menos
hierarquizaacute-las mas sim adentrar o poeacutetico a expressividade do texto virgiliano a fim
de compreendermos natildeo apenas os assuntos tratados nos poemas mas sobretudo a
sua forma de expressatildeo
No iniacutecio da Bucoacutelica VI (hex 3-5) Virgiacutelio menciona as figuras representativas
do cenaacuterio bucoacutelico em contraponto agraves figuras eacutepicas
Cum canerem reges et proelia Cynthius aurem uellit et admonuit ltltPastorem Tityre pinguis pascere oportet ouis deductum dicere carmengtgt
Como eu cantasse reis e batalhas Ciacutentio5 puxou-me a orelha e advertiu-me ldquoAo pastor Tiacutetiro conveacutem apascentar gordas ovelhas e cantar um canto ruacutesticordquo
Haacute uma oposiccedilatildeo no excerto entre dois grupos de figuras De um lado lsquoreisrsquo e
lsquobatalhasrsquo e de outro lsquoo pastorrsquo as lsquogordas ovelhasrsquo e um lsquocanto ruacutesticorsquo Enquanto a
temaacutetica da eacutepica destina-se agrave narraccedilatildeo de grandes feitos de reis e batalhas a poesia
de gecircnero bucoacutelico eacute um canto de temaacutetica mais simples pois traz a figura do pastor
5 Ciacutentio outro nome para Apolo aqui citado como um deus pastoral identificado com agrave natureza
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que apascenta as gordas ovelhas e canta um canto ruacutestico humilde singelo de
temaacutetica portanto diferente da eacutepica
Tambeacutem Camotildees no seacuteculo XVI na Invocaccedilatildeo drsquoOs Lusiacuteadas (I 5 v 1-4)
opocircs o cenaacuterio da eacutepica e da bucoacutelica
Dai-me uma fuacuteria grande e sonorosa E natildeo de agreste avena ou frauta ruda Mas de tuba canora e belicosa Que o peito acende e a cor ao gesto muda
A poesia bucoacutelica neste excerto eacute caracterizada pela ldquoagreste avenardquo ou
ldquofrauta rudardquo o instrumento do pastor-cantador protagonista do cenaacuterio bucoacutelico Jaacute
a poesia eacutepica aparece caracterizada pela lsquotuba canora e belicosarsquo Trata-se de uma
mudanccedila de cenaacuterio entre a bucoacutelica e a eacutepica muda-se o tema cantado e
consequentemente as figuras empregadas Entre os antigos a epopeia jaacute era descrita
por narrar os feitos de reis de chefes e as tristes guerras (cf Horaacutecio Arte Poeacutetica)
Augusto Epiphanio da Silva Dias (1910 p 6 nota 5) afirma que ldquoEm latim avena
lsquoaveiarsquo emprega-se tambeacutem por lsquocana de aveiarsquo e daiacute na poesia por lsquoflauta pastorilrsquo
A lsquoavenarsquo simboliza a poesia bucoacutelica assim como a lsquotubarsquo ou trombeta a poesia
eacutepicardquo
Enquanto as figuras representam no texto as coisas e os acontecimentos do
mundo natural os temas explicam os fatos que ocorrem Para criar determinado efeito
de sentido o autor de um texto escolhe figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria
entre si formando uma rede uma trama figurativa Ao identificarmos as figuras de um
texto devemos verificar portanto qual eacute a funccedilatildeo que elas desempenham no sentido
do texto Logo a depreensatildeo dos temas subjacentes a um texto figurativo soacute eacute
possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre figuras que se articulam e se encadeiam no
interior dele formando uma rede Como observamos nos exemplos acima o contraste
evidenciado entre a poesia bucoacutelica e eacutepica estaacute manifestado dessa maneira por
redes figurativas diferentes
Semelhante oposiccedilatildeo tambeacutem aparece com Antoacutenio Ferreira (2000 p 157) no
iniacutecio de sua ldquoEacutecloga Irdquo (v1-8)
No tempo qursquoo cruel e furioso Inimigo dos pastores e dos gados Da terra e das sementes belicoso
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Marte segundo contam por pecados Do mundo contra o mundo tatildeo iroso Desceu que teacute os lugares mais sagrados Assi com ferro e fogo cometeu Que tudo de ira cinza e sangue encheu
A guerra no seguinte excerto eacute figurativizada pelo ldquobelicoso Marterdquo que se
mostra inimigo dos pastores e de todo cenaacuterio bucoacutelico pois a guerra quebra
necessariamente com a paz ideal presente no mundo pastoril
Haacute portanto uma oposiccedilatildeo temaacutetica entre a poesia de gecircnero bucoacutelico e a
poesia eacutepica O contraste evidenciado nos dois discursos eacute marcado por redes
figurativas especiacuteficas que apontam para temas distintos O efeito de sentido singelo
humilde eacute proacuteprio da bucoacutelica jaacute que a recorrecircncia figurativa pressupotildee o universo
dos pastores inseridos em um locus amoenus Enquanto isso o efeito de sentido
grandiloquente eacute proacuteprio do cenaacuterio eacutepico em que figuram heroacuteis em contexto de
grandes aventuras e batalhas Entende-se por efeito de sentido a construccedilatildeo de
significados que pode ser depreensiacutevel de um discurso Essa construccedilatildeo eacute arquitetada
em um texto por uma rede de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre si Logo
ao falarmos em efeito de sentido referimo-nos agrave trama de figuras presente em cada
discurso e ao modo como essa rede figurativa manifesta-se predominantemente no
discurso ao tecer significados No que diz respeito agrave poesia de gecircnero bucoacutelico e
eacutepico evidenciamos redes figurativas distintas e portanto diferentes efeitos de
sentido
Assim a partir do tema da accedilatildeo e da caracterizaccedilatildeo presentes nas trecircs obras
de Virgiacutelio - as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida ndash o trabalho procura observar as
mudanccedilas nos efeitos de sentido em cada obra Os estilos singelo meacutedio e
grandiloquente apresentam-se em cada obra virgiliana como efeitos de identidade do
texto sendo arquitetados a partir de um conjunto de procedimentos recorrentes na
construccedilatildeo de um sentido Analisar os estilos portanto significa investigar os
diferentes efeitos de individualidade presentes em cada texto
Valeacuterio Probo gramaacutetico romano da segunda metade do seacuteculo I dC In Vergilii
Bucolica et Georgica commentarius ao comparar a eacutepica e a bucoacutelica virgiliana
afirma que o ldquosublime e grandiloquenterdquo pertencem agrave Eneida enquanto agraves Bucoacutelicas
pertencem o que eacute ldquohumilde e ruacutesticordquo Diz o gramaacutetico
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Sunt quaedam propria heroico carmini sublimia sed in bucolico humilia quae apte diuisse Vergilius notatus est
Algumas coisas satildeo apropriadas as sublimes ao poema heroico mas as humildes no bucoacutelico notou-se que Virgiacutelio as separou adequadamente
Essa distinccedilatildeo feita entre as obras deixa entrever a possibilidade de figuras que
podemos encontrar em cada uma delas Para a Eneida uma rede figurativa que nos
remete a um tema de caraacuteter grandioso enquanto para as Bucoacutelicas uma trama
figurativa que nos remete a assuntos mais singelos
Eacutelio Donato gramaacutetico e retoacuterico latino do seacuteculo IV dC menciona as trecircs
obras de Virgiacutelio e designa o modo de elocuccedilatildeo de cada gecircnero Para ele satildeo trecircs os
modos de elocuccedilatildeo o tecircnue (tenuis) para o gecircnero bucoacutelico o moderado (moderatus)
para o gecircnero didaacutetico e o vigoroso (ualidus) para o gecircnero eacutepico A elocuccedilatildeo
segundo a Retoacuterica refere-se agrave escrita do discurso ao estilo agrave expressatildeo Refere-se
pois ao trabalho com a linguagem e abrange assim o bom uso do leacutexico
Juacutenio Filargiacuterio comentarista de Virgiacutelio do seacuteculo V dC em Explanatio in
Bucolica Vergilli ao comparar as trecircs obras virgilianas acaba relacionando-as aos trecircs
genera dicendi
Humile medium magnum physica ethica logica Bucolica Georgica Aeneades naturalis moralis rationalis pastor operator bellator Physica ethica logica propter naturam propter usum propter doctrinam
Humilde meacutedio grande fiacutesica eacutetica loacutegica Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida natural moral racional pastor operaacuterio guerreiro Fiacutesica eacutetica loacutegica por causa da natureza por causa do uso por causa da doutrina
Dos pensadores aqui mencionados todos subordinam as Bucoacutelicas ao estilo
humilde (singelo) as Geoacutergicas ao meacutedio e a Eneida ao sublime grandiloquente
Com o auxiacutelio da Semioacutetica Literaacuteria entendemos que os trecircs estilos descritos
pelos tratadistas antigos podem ser lidos como diferentes efeitos de sentido presentes
nas trecircs obras virgilianas Estes efeitos estatildeo alicerccedilados nas diferentes tramas
figurativas tecidas por Virgiacutelio Pretende-se entender com isso o modo como os
principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica atuam no discurso Ao
compreender os trecircs estilos como construccedilotildees figurativas como efeitos de sentido
arquitetados em cada obra destacaremos como a significaccedilatildeo de uma determinada
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figura estaacute sob o controle de um contexto no qual se encaixa com coerecircncia Pretende-
se investigar portanto a relaccedilatildeo solidaacuteria existente entre as figuras em contexto
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
A subordinaccedilatildeo das trecircs obras de Virgiacutelio aos trecircs genera dicendi aos trecircs
estilos descritos pelos gramaacuteticos latinos tambeacutem encontramos na Parisiana Poetria
de Joatildeo de Garlacircndia A Parisiana Poetria eacute um tratado sobre gramaacutetica e retoacuterica
escrito por Garlacircndia por volta de 1231 e 1235 Trata-se de um trabalho que registra
tipos de composiccedilatildeo escrita e aponta os cacircnones da retoacuterica Garlacircndia dessa forma
descreve uma teoria abrangente do estilo e para isso vale-se das Bucoacutelicas das
Geoacutergicas e da Eneida para criar a Roda de Virgiacutelio esquema circular tripartido em
que as obras virgilianas aparecem para descrever diferentes personagens temas
caracterizaccedilotildees e niacuteveis de estilo Assim ao mapear os estilos singelo meacutedio e
grandiloquente o filologista chama-nos a atenccedilatildeo para o fato de que Virgiacutelio registrou
diferentes tipos de estilo fixando modelos
De acordo com a Encyclopaedia Britannica (2009) John of Garland ou como
se diz tradicionalmente em portuguecircs Joatildeo de Garlacircndia (1180-1252) foi um
gramaacutetico e poeta inglecircs do seacuteculo XIII Seus escritos foram importantes no
desenvolvimento do latim medieval Aleacutem da Parisiana Poetria entre seus trabalhos
gramaticais estatildeo Compendium Grammatice (Esboccedilo de Gramaacutetica) Liber de
Constructionibus (Livro sobre Construccedilotildees) e um vocabulaacuterio latino Dois de seus
poemas mais conhecidos satildeo De triumphis ecclesiae (Sobre os triunfos da igreja) e
Epithalamium beatae Mariae Virginis (Canccedilatildeo nupcial da bem aventurada Virgem
Maria)
Ao arquitetar a Rota Vergilii Roda de Virgiacutelio seguindo a doutrina dos
gramaacuteticos latinos jaacute citados Joatildeo de Garlacircndia apresenta-nos a funccedilatildeo social de
cada personagem de Virgiacutelio o pastor o agricultor e o guerreiro
Segue portanto o esquema circular tripartido das trecircs obras virgilianas Cada
um dos aros concecircntricos da roda deixa entrever o personagem emblemaacutetico o
vegetal tiacutepico o ambiente de atuaccedilatildeo das personagens os objetos e os animais
representativos
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Figura 3- A Roda Virgiliana de Garlacircndia
Fonte GARLAND John of 1974 p 40-41
Partindo desta divisatildeo entre as obras na Parisiana Poetria (1974 p38) Joatildeo
de Garlacircndia assim descreve
Item notandum quod in Rota Vergilii quam pre manibus habemus ordinantur tres columpne et in circuitu per multas circumferencias ordinantur tres stili In prima columpna comparationes continentur similitudines et nomina rerum ad humilem stilum pertinencium in secunda ad mediocrem in tercia ad grauem
Nota-se que na Roda de Virgiacutelio que temos em matildeos ordenam-se trecircs colunas e os trecircs estilos no circuito por meio de muitas circunferecircncias Na primeira coluna estatildeo contidas as comparaccedilotildees as imagens e os nomes das coisas pertinentes ao estilo humilde na segunda ao meacutedio na terceira ao grave
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Vemos que o filologista segue a doutrina dos gramaacuteticos latinos apresentando-
nos em seu esquema tripartido as Bucoacutelicas na coluna do estilo singelo humilde as
Geoacutergicas na do meacutedio moderado e a Eneida na do grave grandiloquente
Na Enciclopedia Virgiliana organizada por Franceso della Corte (1996 p586)
encontramos um verbete para Rota Vergilii Neste verbete diz-se que as trecircs obras de
Virgiacutelio indicadas em uma figura circular satildeo exemplos dos trecircs estilos retoacutericos
(simples meacutedio e sublime) Menciona-se ali a documentaccedilatildeo da Poetria de Joatildeo de
Garlacircndia para quem Virgiacutelio apoacutes ter elegido sua mateacuteria poeacutetica tambeacutem elegeu
trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o guerreiro) a partir dos quais criou trecircs
cenaacuterios de atuaccedilatildeo
A Roda de Virgiacutelio segundo o verbete eacute uma emblemaacutetica correspondecircncia
dos trecircs genera dicendi os trecircs estilos defendidos pelos gramaacuteticos antigos e
configura-se como um esquema mnemocircnico que concentra a mateacuteria poeacutetica de cada
obra ou seja um breve panorama da criaccedilatildeo poeacutetica de Virgiacutelio A Roda eacute
interpretada assim como um cacircnone da arte retoacuterica
De acordo com Joatildeo Adolfo Hansen (2013 p26) ldquoStilus nome latino do estilete
com que se escrevia na tabuinha de cera passou a significar metaforicamente a
variaccedilatildeo da elocuccedilatildeo caracteriacutestica de um autor determinado proposto agrave emulaccedilatildeo
como auctoritasrdquo Segundo Hansen o termo lsquoestilorsquo refere-se agraves variaccedilotildees discursivas
das muitas elocuccedilotildees dos gecircneros Teofrasto disciacutepulo de Aristoacuteteles foi o primeiro
a fazer uma divisatildeo tripartida da elocuccedilatildeo dos estilos ndash simples temperado e nobre ndash
que corresponde na visatildeo de Hansen ao estilo humilde meacutedio e sublime
classificaccedilatildeo presente na chamada Rota Vergilii de Joatildeo de Garlacircndia como jaacute citado
anteriormente
Para Hansen (2013 p 26-27) a chamada Rota Vergilii do seacuteculo XIII
prescreve trecircs genera elocutionis que
satildeo exemplificados com as trecircs obras principais do poeta humilis ou humilde (Bucoacutelicas) mediocris ou meacutedio (Geoacutergicas) grauis ou alto (Eneida) Cada um deles corresponde agraves palavras especiacuteficas de lugares comuns as Bucoacutelicas o campo do pastor nomes proacuteprios de pastores as ovelhas as Geoacutergicas o campo do agricultor nomes proacuteprios de agricultores o boi a Eneida o campo do soldado nomes proacuteprios de soldados o cavalo e lugares comuns de objetos artificiais e coisas naturais ndash o cajado do pastor e a faia o arado do lavrador e a macieira a espada do soldado e o carvalho (ou loureiro) e na
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elocuccedilatildeo palavras simples e humildes nas Bucoacutelicas meacutedias e com poucos ornamentos nas Geoacutergicas elevadas e sublimes na Eneida
Ao compreendermos com o auxiacutelio da Semioacutetica os trecircs estilos como efeitos
de sentido engendrados em cada obra pressupomos o nuacutecleo temaacutetico e figurativo
de cada texto e o modo como figuras e temas se encadeiam coerentemente
Pierre Guiraud em A Estiliacutestica (1970) segue o modelo de Garlacircndia ao citar
os trecircs estilos elementares descritos pela Antiga Retoacuterica descrevendo-os e
apresentando-os em cada aro concecircntrico de sua Roda
Assim o camponecircs chama-se Caelius lavra seu campo plantado de aacutervores frutiacuteferas com seu arado puxado por bois mas o capitatildeo chama-se Hector estaacute coroado de louros tem agrave cinta um glaacutedio e percorre o acampamento em seu cavalo A vida do labrego seraacute contada em estilo simples ao passo que se usaratildeo estilo grave ou nobre para contar as faccedilanhas de Heitor (GUIRAUD 1970 p 27 grifos do autor)
Ao retomar a Roda de Garlacircndia Guiraud descreve trecircs diferentes contextos
de atuaccedilatildeo destacando as principais caracteriacutesticas de cada um deles Pode-se
compreender que os elementos por ele citados apesar da oscilaccedilatildeo possiacutevel dos seus
significados estatildeo articuladas no interior de cada texto remetendo-nos a diferentes
efeitos de sentido seja o simples (o singelo) o meacutedio ou o grandiloquente
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Figura 4 - A Roda de Virgiacutelio
Fonte GUIRAUD Pierre 1970 p 26
Como se lecirc no esquema circular tripartido para as Bucoacutelicas tem-se o Humilis
Stylus o estilo singelo e seu personagem representativo eacute o pastor otiosus o pastor
despreocupado Entre os nomes de pastores mais conhecidos estatildeo Tityrus e
Melibœus (cf Buc I) dos animais que figuram a ambientaccedilatildeo campestre destacam-
se as ovelhas (ovis) aleacutem disso como objetos representativos do pastor encontramos
o cajado (baculus) e a flauta Na descriccedilatildeo da espacialidade destacam-se os prados
(pascua) e a faia (fagus) com suas folhagens hospitaleiras que contribuem para a
descriccedilatildeo do locus amoenus ambientaccedilatildeo proacutepria ao universo bucoacutelico Os
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caracteres bucoacutelicos remetem-nos a assuntos tecircnues e por isso entendemos que
haja um efeito de sentido singelo que perpassa a obra
Para as Geoacutergicas temos o estilo meacutedio mediocrus stylus Como personagem
representativo encontramos o lavrador (agricola) e dentre os animais encontramos o
boi (bos) O arado (aratrum) serve para o cultivo do campo (ager) e na ambientaccedilatildeo
figuram aacutervores frutiacuteferas (pomus) Logo os assuntos satildeo moderados e destinam-se
agraves informaccedilotildees sobre a plantaccedilatildeo e a criaccedilatildeo de animais Entendemos com isso que
o cenaacuterio provoca um efeito de sentido mediano instrutivo
Para a Eneida destaca-se o estilo sublime (gravis stylus) Como personagem
tem-se o soldado vencedor (miles dominans) Entre os animais que aparecem estaacute o
cavalo (equus) A espada (gladius) figura como objeto representativo da personagem
e tanto a cidade (urbs) como a fortaleza de guerra ou o acampamento militar
(castrum) mapeiam o espaccedilo de atuaccedilatildeo Os caracteres eacutepicos destinam-se assim
aos assuntos grandiosos de reis e batalhas Logo pensando-se em termos
semioacuteticos cria-se um efeito de sentido grandiloquente
Eacute importante lembrar que a Roda natildeo esgota os elementos presentes nas
Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida ela apresenta apenas alguns dos aspectos gerais que
podem aparecer na caracterizaccedilatildeo de cada obra Eacute preciso que o leitor conheccedila o
texto de Virgiacutelio para depreender dessa forma as diferentes caracteriacutesticas bucoacutelicas
didaacuteticas e eacutepicas Entendemos neste trabalho que o esquema tripartido da Roda
serve para nortear a forma como Virgiacutelio valeu-se dos diferentes temas e como
conseguiu registraacute-los em suas obras
Na visatildeo de Guiraud (1970 p 27) ldquoas palavras guardam o reflexo das coisas
que designam ou dos ambientes em que satildeo empregadasrdquo Em se tratando das trecircs
obras de Virgiacutelio os cenaacuterios em contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico apresentam os
temas e figuras que lhe satildeo proacuteprios
As trecircs obras de Virgiacutelio dialogam com os trecircs tipos de estilo descritos pela
Antiga Retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Procuramos
entender esta divisatildeo como um esquema representativo das principais figuras e temas
presentes nas obras de Virgiacutelio Logo os trecircs estilos seratildeo aqui entendidos como
diferentes efeitos de sentido que aparecem na obra virgiliana Demonstraremos
atraveacutes de excertos do texto virgiliano como temas e figuras se comportam em
contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Compreendemos portanto o esquema tripartido
de Joatildeo de Garlacircndia com o auxiacutelio da moderna anaacutelise metodoloacutegica e com isso a
32
leitura que se seguiraacute das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida apresentaraacute o estilo
como um efeito de sentido que perpassa as obras
33
2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente
Estilo eacute efeito de individuaccedilatildeo dado por uma totalidade de discursos enunciados
Norma Discini 2009 p 27
Por meio da linguagem o emissor eacute capaz de expressar seus sentimentos
emoccedilotildees e modos de ser aleacutem de influenciar o seu receptor (o ouvinte ou leitor)
provocando assim uma determinada impressatildeo Foi pensando nisso que os gregos
antigos se valeram de diferentes loacutegicas argumentativas para convencer a plateia
sobre a veracidade de suas ideias Com isso a Greacutecia claacutessica levou a graus de
sutileza a preocupaccedilatildeo com a estrutura do discurso Entre os gregos inclusive foram
criadas disciplinas que melhor ensinassem as artes de domiacutenio da palavra tais como
a eloquecircncia a gramaacutetica e a retoacuterica (CITELLI 2002)
O surgimento da retoacuterica como disciplina especiacutefica contribuiu para uma
reflexatildeo sobre o aspecto discursivo da liacutengua bem como sobre o efeito que ela
provocava no receptor Na Idade Meacutedia a Retoacuterica apareceu no campo religioso pois
era comum os monges discutirem temas dogmaacuteticos com a finalidade de mostrar suas
habilidades argumentativas Na Idade Moderna com o advento do positivismo a
Retoacuterica foi deixada de lado jaacute que o importante passou a ser o conteuacutedo aquilo que
poderia ser comprovado e natildeo mais a expressividade Jaacute na Idade Contemporacircnea
a Retoacuterica retorna em duas grandes vertentes a teoria da argumentaccedilatildeo no discurso
cientiacutefico e a Estiliacutestica nos estudos linguiacutesticos (CITELLI 2002)
Levando em conta as dimensotildees da liacutengua e seu uso Mattoso Cacircmara (1978
p110) em seu Dicionaacuterio de Linguiacutestica e Gramaacutetica faz a seguinte afirmaccedilatildeo acerca
da Estiliacutestica ldquoDisciplina linguiacutestica que estuda a expressatildeo em seu sentido estrito de
expressividade da linguagem isto eacute a sua capacidade de emocionar e sugestionarrdquo
Pensando nessa capacidade de emocionar e sugerir Mattoso Cacircmara (1978
p 7 grifo nosso) define ldquoestilordquo nos seguintes termos
Em sentido lato estilo eacute a maneira tiacutepica pela qual nos exprimimos linguisticamente individualizando-nos em funccedilatildeo da nossa linguagem Para isso fazemos uma aplicaccedilatildeo metoacutedica dos elementos que a liacutengua ministra (Leo Spitzer) procedendo a uma escolha entre as possibilidades de expressatildeo que se apresentam na liacutengua (Marouzeau) Em sentido estrito no entanto essa caracteriacutestica decorre antes de tudo do nosso impulso emotivo e do propoacutesito claro ou subconsciente de sugestionar o proacuteximo
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Com isso podemos pensar em estilo como a individualidade de um discurso
como uma escolha entre os recursos de expressatildeo presentes na liacutengua e como um
efeito de sentido que eacute capaz de sugestionar determinadas impressotildees
Ao entendermos que um efeito de sentido soacute pode ser depreendido a partir de
uma rede coerente de figuras no interior do discurso concluiacutemos que toda trama de
figuras presente em um texto alicerccedila os significados ali tecidos Para depreendermos
portanto o efeito sugerido por determinada obra literaacuteria por exemplo devemos
adentrar a sua dimensatildeo temaacutetica e figurativa a fim de compreendermos a dominacircncia
dos elementos abstratos e concretos presentes no discurso
Como afirma Compagnon (2014 p164) a palavra estilo natildeo tem origem em
vocabulaacuterio especializado Aleacutem disso natildeo eacute um termo reservado apenas agrave literatura
e agrave liacutengua A ideia de estilo para Compagnon abrange numerosas aacutereas da atividade
humana Estilo denota a individualidade a singularidade de uma obra a necessidade
de uma escritura um gecircnero um periacuteodo ou um arsenal de procedimentos
expressivos de recursos a escolher Logo os aspectos da noccedilatildeo de estilo tanto
verbal como natildeo verbal hoje satildeo muito numerosos O estilo eacute citado por Compagnon
como norma pensando-se que o bom estilo eacute aquele que deve ser imitado o cacircnone
Aleacutem disso o estilo frequentemente aparece segundo ele como ornamento Essa
concepccedilatildeo eacute evidente na retoacuterica em que existem duas partes relacionadas agraves ideias
(invenccedilatildeo e disposiccedilatildeo) e uma terceira relativa agrave expressatildeo atraveacutes das palavras
(elocuccedilatildeo) Compagnon tambeacutem menciona o estilo no sentido de desvio pensando-
se na variaccedilatildeo estiliacutestica no desvio da liacutengua em relaccedilatildeo ao seu uso corrente na
substituiccedilatildeo de uma palavra por outra que oferece agrave elocuccedilatildeo uma forma mais
elevada uma marca diferenciada Tem-se assim de um lado uma elocuccedilatildeo clara ou
baixa e de outro uma elocuccedilatildeo elegante
Para Compagnon (2014 p 166) o ornamento e o desvio satildeo inseparaacuteveis da
noccedilatildeo de estilo Desde Aristoacuteteles entende-se o estilo como um ornamento formal
definido pela sua marca diferenciada em relaccedilatildeo ao uso comum da linguagem
Compagnon traz ainda a noccedilatildeo de estilo atrelada agrave ideia de gecircnero ou tipo
Para o criacutetico segundo a antiga retoacuterica o estilo enquanto escolha entre meios
expressivos estava ligado a noccedilatildeo de conveniecircncia jaacute que natildeo bastava possuir a
mateacuteria do discurso era preciso aleacutem disso falar segundo a necessidade da situaccedilatildeo
35
O estilo dessa forma designava a propriedade do discurso a adaptaccedilatildeo da
expressatildeo a seus fins
Compagnon (2014 p 167) diz que
Os tratados de retoacuterica distinguiam tradicionalmente nem mais nem menos trecircs tipos de estilo o stylus humilis (simples) o stylus mediocris (moderado) e o stylus grauis (elevado ou sublime) Ciacutecero no Orator associava esses trecircs estilos agraves trecircs escolas de eloquecircncia (o asiatismo que se caracterizava pela abundacircncia ou empolaccedilatildeo o aticismo pelo gosto seguro e o gecircnero roacutedio gecircnero intermediaacuterio) Na Idade Meacutedia Diomedes identificou esses trecircs estilos aos grandes gecircneros depois Donato em seu comentaacuterio de Virgiacutelio relacionou-os aos temas das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida isto eacute agrave poesia pastoril agrave poesia didaacutetica e agrave epopeia Essa tipologia dos trecircs tipos de estilo difundida desde entatildeo com o nome Rota Vergilii ldquoRoda de Virgiacuteliordquo gozou de uma estabilidade de mais de mil anos Ela corresponde a uma hierarquia (familiar meacutedia nobre) que engloba o fundo a expressatildeo e a composiccedilatildeo Montaigne vai transgredi-la deliberadamente escrevendo sobre assuntos ldquomediacuteocresrdquo e eventualmente ldquosublimesrdquo no estilo ldquococircmico e privadordquo das letras e da conversaccedilatildeo Ora os trecircs tipos de estilo satildeo igualmente conhecidos sob o nome de genera dicendi assim eacute a noccedilatildeo de estilo que se acha na origem da noccedilatildeo de gecircnero ou mais exatamente eacute atraveacutes da noccedilatildeo de estilo (e a teoria dos trecircs estilos classifica os discursos e os textos) que as diferenccedilas geneacutericas foram tratadas por muito tempo
Pensando em estilo por meio da narratividade e do discurso Norma Discini em
sua obra O estilo nos textos (2009 p29) afirma
O estilo tambeacutem decorre de uma leitura homogeneizadora do mundo inerente ao efeito de individuaccedilatildeo de uma totalidade de discursos enunciados Tal leitura eacute identificaacutevel na anaacutelise de um estilo por meio da observaccedilatildeo do modo recorrente da referencializaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo no enunciado o que por sua vez supotildee uma unidade de avaliaccedilotildees e interpretaccedilotildees
Logo a leitura de um determinado estilo deve ser buscada na totalidade
enunciada da qual se depreende o ator da enunciaccedilatildeo o espaccedilo de atuaccedilatildeo e
consequentemente o efeito engendrado Para Discini (2009 p 30) ldquoestilo eacute corpo eacute
voz eacute caraacuteter de uma totalidaderdquo e portanto traz consigo um efeito de individualidade
que permite a construccedilatildeo de um cenaacuterio representativo em que figuram o ator a accedilatildeo
e o espaccedilo de atuaccedilatildeo Discini (2009) assim parte do princiacutepio de que o estilo eacute efeito
de sentido e portanto uma construccedilatildeo do discurso Segundo o pensamento da
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semioticista o efeito eacute determinado pela recorrecircncia de procedimentos na construccedilatildeo
do sentido o que deixa entrever do ponto de vista da produccedilatildeo do discurso como o
ator a accedilatildeo e o espaccedilo de atuaccedilatildeo satildeo tematizados e figurativizados
Os efeitos de sentido satildeo reveladores das intencionalidades presentes no
discurso Em virtude da presenccedila de determinados efeitos de sentido as figuras
presentes em um texto coadunam-se para concretizar sentidos especiacuteficos O efeito
de sentido portanto pode ser obtido atraveacutes de estrateacutegias discursivas como por
exemplo a referecircncia a pessoas a objetos a lugares e a caracteriacutesticas individuais
das personagens Estas estrateacutegias contribuem para a construccedilatildeo de diferentes
cenaacuterios que sugestionam efeitos especiacuteficos
Pensando-se nas trecircs obras de Virgiacutelio coacuterpus do nosso trabalho acreditamos
que a Roda de Virgiacutelio apresenta a partir dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente
os toacutepicos caracteriacutesticos de cada obra ou em termos semioacuteticos as principais
figuras e temas que caracterizam os trecircs cenaacuterios criados por Virgiacutelio
Ao entendermos o estilo como um fato diferencial e como um efeito de
individualidade que daacute voz e imprime uma singularidade ao discurso enunciado
podemos compreender como os diferentes estilos expostos pelos tratadistas antigos
podem ser lidos hoje a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica Para relembrar
dentre os antigos as obras eram classificadas a partir de trecircs tipos de elocuccedilatildeo a
tecircnue a moderada e a vigorosa que definiam respectivamente trecircs tipos de estilo o
singelo o meacutedio e o grandiloquente Virgiacutelio eacute conhecido por compor todos os trecircs
Nas Bucoacutelicas encontramos o humilde (singelo) nas Geoacutergicas o meacutedio e na Eneida
o grandiloquente A Roda de Virgiacutelio como jaacute citamos anteriormente eacute uma
classificaccedilatildeo medieval que mapeia portanto os trecircs tipos de estilo da Antiga Retoacuterica
deixando entrever os principais elementos dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por
Virgiacutelio Cabe-nos aqui avaliar como esses estilos satildeo engendrados em cada obra
deixando entrever efeitos de individuaccedilatildeo que lhe satildeo proacuteprios
No iniacutecio da primeira Bucoacutelica de Virgiacutelio Melibeu um pastor de gado fala a
Tiacutetiro outro pastor sobre o confisco de suas terras e sobre o fato de o amigo que
descansa agrave sombra de uma faia ter conseguido conservar as suas por ajuda de um
benfeitor
(Buc I hex 1-10) Meliboeus
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Tityre tu patulae recubans sub tegmine fagi siluestrem tenui Musam meditaris auena nos patriae finis et dulcia linquimus arua nos patriam fugimus tu Tityre lentus in umbra formosam resonare doces Amaryllida siluas
Tityrus
O Meliboee deus nobis haec otia fecit namque erit ille mihi semper deus illius aram saepe tener nostris ab ouilibus imbuet agnus ille meas errare boues ut cernis et ipsum ludere quae uellem calamo permisit agresti
Melibeu
Oacute Tiacutetiro tu reclinado agrave sombra de uma copada faia contemplas a musa silvestre na tecircnue flauta noacutes deixamos os limites da paacutetria e os doces campos da paacutetria noacutes fugimos tu oacute Tiacutetiro deitado agrave sombra ensinas os bosques a ressoar o nome da formosa Amariacutelis
Tiacutetiro
Oacute Melibeu um deus nos proporcionou este oacutecio De fato ele seraacute sempre um deus para mim seu altar sempre embeberaacute um tenro cordeiro de nossos apriscos Ele permitiu como vecircs que minhas vacas vagueassem e que eu tocasse na flauta agreste o que quisesse
A palavra bucoacutelica etimologicamente vem de boukolikaacute que em grego quer
dizer ldquocantos de boiadeirosrdquo Este era o nome dado agraves composiccedilotildees em que o
protagonista era o boieiro ou o vaqueiro A princiacutepio a composiccedilatildeo bucoacutelica
compreenderia como adverte Manuel de Paiva Boleacuteo (1936 p 16) uma forma de
poesia em que o boieiro ou vaqueiro seria o protagonista Nesse gecircnero figuram os
guardadores de gado os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas
sempre inseridos em um cenaacuterio ruacutestico campesino Fraguier (apud BOLEacuteO 1936 p
17) um dos teoacutericos sobre a poesia pastoril declara que os pastores satildeo homens do
campo que vivem singelamente que estatildeo sempre acompanhados de seus cajados e
rebanhos e que no momento de oacutecio ocupam-se de cantigas inocentes Com o
tempo os termos pastoral e pastoralismo tambeacutem passaram a designar as
composiccedilotildees que retratavam o pastor de cabras ou de ovelhas e por isso os termos
satildeo vistos como sinocircnimos de bucolismo O principal como menciona Boleacuteo (1936 p
18) eacute que esse tipo de composiccedilatildeo tenha uma essecircncia ou expressatildeo pastoril A
escolha do pastor como protagonista da cena bucoacutelica se deve ao fato de que cabe
ao pastor em seu momento de oacutecio os cantares singelos que expressam uma vida
essencialmente campestre
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O efeito de sentido singelo humilde estaacute presente neste excerto da primeira
bucoacutelica Vale destacar do seguinte excerto a expressatildeo ldquosub tegmine fagirdquo (agrave sombra
de uma copada faia) pois se refere ao costume que os pastores tecircm de nas eacutepocas
quentes protegerem-se do sol debaixo das aacutervores junto com os rebanhos O estilo
singelo eacute marcado dessa forma pela presenccedila dos pastores Tiacutetiro e Melibeu bem
como pela accedilatildeo de Tiacutetiro que se encontra deitado sob agrave sombra de uma frondosa
aacutervore enquanto toca na singela flauta uma muacutesica agreste Em resposta ao amigo
Melibeu Tiacutetiro afirma que pode desfrutar da sombra e do oacutecio enquanto suas vacas
vagueiam graccedilas a um deus que lhe proporcionou essa tranquilidade A temaacutetica
recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico diz respeito ao oacutecio dos pastores e estaacute
atrelada ao prazer do canto e ao locus amoenus lugar apraziacutevel em que figuram o
som da flauta as ovelhas cabras e aacutervores com sombras hospitaleiras
Eacute interessante que neste excerto da primeira bucoacutelica apareccedila na fala do
pastor Melibeu uma temaacutetica aparentemente contraacuteria agrave ideia de um lugar apraziacutevel
que eacute proposto pela poesia bucoacutelica Enquanto o pastor Tiacutetiro desfruta de um cenaacuterio
ameno Melibeu afirma que deixou os limites da paacutetria e os doces campos deixando
entrever que natildeo teve a mesma sorte que o feliz amigo Embora apareccedila uma temaacutetica
um pouco contraacuteria ao contexto singelo proposto pela poesia bucoacutelica devemos levar
em conta que toda depreensatildeo temaacutetica soacute eacute possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre as
figuras que se articulam e se encadeiam no interior do discurso formando uma rede
Com isso se pensarmos na trama figurativa de todo o poema bem como na
dominacircncia dos elementos notadamente bucoacutelicos podemos afirmar que o efeito
sugerido pelo contexto eacute predominantemente singelo
Logo observa-se que em um texto as muacuteltiplas significaccedilotildees de uma
determinada figura estatildeo sob o controle de um contexto em que se encaixam com
coerecircncia apenas algumas dessas possibilidades significativas
Pensando-se na totalidade discursiva foram destacados aqui os elementos que
datildeo corporalidade agrave voz simples do discurso bucoacutelico e que satildeo capazes de engendrar
a accedilatildeo dos atores bem como caracterizar o espaccedilo de atuaccedilatildeo das personagens O
efeito de individuaccedilatildeo pretendido eacute o humilde que se corporifica nas falas das
personagens bem como na espacialidade descrita
Com efeito o cenaacuterio presente na poesia pastoril difere do cenaacuterio encontrado
na poesia eacutepica Como observa Legrand (apud BOLEacuteO 1936 p 54-55) o ambiente
campestre pode contemplar um rochedo a espessura verde de um pequeno bosque
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uma fonte pinheiros olmos choupos carvalhos aves insetos etc Estas seratildeo
portanto figuras recorrentes na poesia de temaacutetica pastoril Mas eacute importante destacar
o modo como essas figuras se organizam e o modo como particularizam os temas que
abrangem a simplicidade e o viver ruacutestico do campo
Apoacutes a coleccedilatildeo de dez poemas de temaacutetica bucoacutelica Virgiacutelio compocircs as
Geoacutergicas obra classificada tradicionalmente como didaacutetica Mas ao compor um
poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo quis transmitir apenas conhecimentos
teacutecnicos sobre os trabalhos do campo tais como o tempo propiacutecio para realizar o
plantio e a colheita ou os procedimentos adequados para se castrar as colmeias Aliaacutes
se os criacuteticos da obra virgiliana se fixassem apenas nesse aspecto temaacutetico a obra
seria classificada como um tratado teacutecnico de agronomia todavia as Geoacutergicas
representam muito mais do que um simples compecircndio de aplicaccedilatildeo praacutetica sobre
meacutetodos a serem seguidos na agricultura jaacute que da totalidade de preceitos uacuteteis e
praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas aqueles que convecircm
agrave finalidade artiacutestica e poeacutetica
De acordo com Trevisam (2014 p 30) a palavra ldquodidaacuteticordquo remonta ao verbo
grego didaacutesco (lat doceo de mesma raiz indo-europeia) cujos sentidos oferecidos
em dicionaacuterio especializado incluem ldquoensinarrdquo e ldquoinstruirrdquo Assim de iniacutecio podemos
dizer que todo poema didaacutetico se compromete essencialmente com a instruccedilatildeo do
seu puacuteblico Os quatro cantos das Geoacutergicas satildeo organizados a partir de diferentes
temaacuteticas No primeiro livro fala-se da lavoura no segundo da arboricultura
sobretudo a viticultura no terceiro da pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no
quarto da apicultura como assim descreve Virgiacutelio no iniacutecio do Canto I
(Geo Canto I hex 1-5)
Quid faciat laetas segetes quo sidere terram uertere Maecenas ulmisque adiungere uitis conueniat quae cura boum qui cultus habendo sit pecori apibus quanta experientia parcis hinc canere incipiam
Agora comeccedilarei a celebrar o que faz as colheitas feacuterteis com que astros Mecenas conveacutem arar a terra e unir as videiras aos olmeiros que cuidados aos bois que conduta seguir para que seja mantido o rebanho quanta experiecircncia para as parcas abelhas
As Geoacutergicas apresentam um caraacuteter instrutivo proacuteprio do gecircnero da poesia
didaacutetica e empregam uma gama variada de modos discursivos tais como exposiccedilatildeo
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descriccedilatildeo narraccedilatildeo inserccedilatildeo de episoacutedios mitoloacutegicos faacutebulas etc aleacutem de contar
com a presenccedila de uma voz didaacutetica que se coloca como magister para ditar os
conhecimentos relativos agrave agricultura (TREVISAM 2014)
Pensando-se nessa temaacutetica de caraacuteter instrutivo os tratadistas antigos
nomearam para as Geoacutergicas o estilo meacutedio que eacute destinado a assuntos moderados
Logo o efeito de sentido mediano apoia-se dessa forma no conjunto de temas e
figuras utilizados Destacam-se alguns exemplos
(Geo I 176-177)
Possum multa tibi ueterum praecepta referre ni refugis tenuisque piget cognoscere curas
Posso contar-te muitos preceitos dos antigos se natildeo te esquivas nem te daacute fastio em conhecer pequenos cuidados
Nestes dois hexacircmetros antes de introduzir o tema dos cereais a voz poeacutetica
pede licenccedila para tratar de assuntos considerados menores e ainda no mesmo canto
essa voz continua a prever que se poderaacute achar despreziacutevel o toacutepico do cultivo da
lentilha da Peluacutesia
(Geo I 227-230)
Si uero uiciamque seres uilemque phaselum nec Pelusiacae curam aspernabere lentis haud obscura cadens mittet tibi signa Bootes incipe et ad medias sementem extende pruinas
Se plantares a ervilha e o humilde feijatildeo e natildeo desprezares cuidar da lentilha da Peluacutesia6 o Boieiro7 ao se pocircr dar-te-aacute sinais bem claros
comeccedila e prolonga a semeadura ateacute o meio das geadas Sobre o Canto I das Geoacutergicas aliaacutes vale destacar as palavras de Trevisam
(2014 p 190-191)
O livro I das Geoacutergicas virgilianas descortina ao leitor o espetaacuteculo da luta humana pela sobrevivecircncia diaacuteria fruto do trabalho de nossas matildeos segundo descrito pelo poeta eacute essa a parcela da obra em que se concentram preceitos didaacuteticos em nexo com o plantio dos campos cerealistas donde nos vem o patildeo siacutembolo por excelecircncia da vida material civilizada Nesse contexto como muitas e por vezes
6 Peluacutesio ou Boca Peluacutesia cidade antiga do baixo Egito 7 Boieiro uma constelaccedilatildeo do hemisfeacuterio celestial norte
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penosas satildeo descritas as vaacuterias operaccedilotildees de cultivo necessaacuterias a exemplo da primeira arada do solo (v 43-46) da escolha das sementes (v 197-200) da feitura de uma eira para debulha das espigas (v 176-186) e da adubaccedilatildeo (v 80)
Com efeito o cenaacuterio presente no Canto I das Geoacutergicas deixa entrever
sobretudo a importacircncia do trabalho e as teacutecnicas de cultivo desde o preparo do solo
ateacute sua adubaccedilatildeo e o iniacutecio do plantio A voz didaacutetica presente no texto coloca-se na
posiccedilatildeo de um magister que presta orientaccedilotildees sobre esse tema O efeito de sentido
engendrado eacute de caraacuteter instrutivo e os assuntos tratados satildeo considerados triviais O
estilo mediano portanto constroacutei-se a partir dessa recorrecircncia temaacutetica e das figuras
que lhe datildeo corporalidade no enunciado
Como marco da literatura latina a Eneida foi escrita a pedido do imperador
Otaviano8 Assim a epopeia de Virgiacutelio busca enaltecer Roma senhora do mundo e
consequentemente engrandecer a figura de Otaviano como princeps O estilo
reconheciacutevel eacute o sublime devido a recorrecircncia de temas e figuras que datildeo ao discurso
o efeito de sentido grandiloquente proacuteprio da eacutepica
(Eneida Canto I ndash hex 1- 11)
Arma uirumque cano Troiae qui primus ab oris Italiam fato profugus Lauinaque uenit litora ndash multum ille et terris iactatus et alto ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram multa quoque et bello passus dum conderet urbem inferretque deos Latio genus unde Latinum Albanique patres atque altae moenia Romae Musa mihi causas memora quo numine laeso quidue dolens regina deum tot uoluere casus insignem pietate uirum tot adire labores impulerit Tantaene animis caelestibus irae
Canto as armas e o varatildeo que impelido pelo destino primeiro veio das praias de Troia ateacute agrave Itaacutelia e ao litoral Laviacutenio ele foi muito perseguido tanto em terra como no mar e pela forccedila dos deuses e pela ira lembrada da cruel Juno ele sofreu muito na guerra ateacute que natildeo fundasse uma cidade e introduzisse os deuses no Laacutecio onde surgiriam a raccedila latina e os chefes Albanos e as muralhas da soberba Roma Oacute musa recorda-me as causas por que a divindade ofendida ou por qual maacutegoa a rainha dos deuses obrigou um varatildeo notaacutevel por
8 Caio Otaacutevio filho de famiacutelia senatorial tornou-se Caio Juacutelio Ceacutesar Otaviano herdeiro legal e poliacutetico de Ceacutesar em 27 aC jaacute firmemente estabelecido como senhor do mundo tornou-se Ceacutesar Augusto (BOWDER 1980 p42)
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sua piedade a correr tantos perigos e a enfrentar tantos trabalhos Por que tanta ira nos espiacuteritos celestes
A eacutepica eacute marcada como se vecirc no pequeno excerto pela figura do heroacutei e suas
aventuras Eneias o ilustre varatildeo cumpre seu destino ao sair das praias de Troia e
chegar ao litoral Laviacutenio na Itaacutelia onde se construiratildeo as muralhas da soberba Roma
A musa a ser lembrada eacute a da poesia eacutepica que inspira temas grandiosos sobre as
aventuras do heroacutei O efeito de individuaccedilatildeo apoia-se dessa forma na recorrecircncia de
figuras que contribuem para a corporalidade do eacutepico Depreende-se o estilo
grandiloquente a partir da imagem construiacuteda do heroacutei bem como por suas accedilotildees
desde que saiu das praias de Troia e deu iniacutecio agrave sua empreitada O estilo marca um
efeito de individualidade que pode ser captado pela recorrecircncia temaacutetica e figurativa
presente no discurso O efeito grandiloquente emerge portanto de um contexto que
lhe daacute corporalidade para existir
Ao falar em estilo falamos portanto em unidade pensando-se na recorrecircncia
temaacutetica e figurativa predominante nos discursos bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Para cada
estilo singelo meacutedio e grandiloquente haacute um efeito de individuaccedilatildeo marcado pela
recorrecircncia de temas e figuras e pelas relaccedilotildees de sentido detectadas que
permanecem no discurso e deixam entrever uma unidade A recorrecircncia de temas e
figuras engendram assim uma previsibilidade e um modo de ser dos textos
Nosso objetivo eacute enfim demonstrar que eacute possiacutevel descrever os trecircs estilos
singelo meacutedio e grandiloquente tendo como apoio teoacuterico a Semioacutetica Greimasiana
Para tanto buscaremos em excertos representativos das trecircs obras de Virgiacutelio a
recorrecircncia temaacutetica e figurativa que imprime assim um modo proacuteprio de dizer
configurando o efeito de individuaccedilatildeo de cada estilo
Em Virgil in the Renaissance Wilson-Okamura (2010 p 90) fala-nos sobre o
mito que cerca a Roda de Virgiacutelio O criacutetico menciona que a Roda tem origem
medieval pois sua expressatildeo se origina no iniacutecio do seacuteculo XIII com Joatildeo de
Garlacircndia mas para o criacutetico embora o termo ldquoRoda de Virgiacuteliordquo seja mencionado em
alguns estudos do Renascimento o uso ou a menccedilatildeo que se faz agrave Roda carece de
precisatildeo sobre o termo Segundo Wilson-Okamura muitos estudiosos escrevem
sobre a Roda como se ela fosse uma progressatildeo de gecircneros comeccedilando com o
gecircnero pastoral (Bucoacutelicas) passando pelo gecircnero didaacutetico (Geoacutergicas) e terminando
com o eacutepico (Eneida) Na opiniatildeo do criacutetico isso faz tanto sentido quanto dizer que
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uma roda de cores comeccedila com o vermelho e termina com o violeta jaacute que por
definiccedilatildeo as rodas natildeo tecircm pontos finais pois trazem uma ideia de continuidade de
um movimento circular ao redor de um eixo Wilson-Okamura (2010 p 91) esclarece-
nos assim que a Roda natildeo diz nada sobre gecircneros nem sobre uma progressatildeo entre
eles Os aros concecircntricos presentes na Roda satildeo organizados de acordo com os
estilos e natildeo de acordo com os gecircneros Aleacutem disso o objetivo da Roda para Wilson-
Okamura natildeo eacute ditar qual gecircnero deve aparecer primeiro mas sim mostrar como os
caracteres satildeo dispostos em diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo por exemplo os poemas
no estilo mediano natildeo devem apresentar espadas ou pastores porque espadas
pertencem ao contexto do estilo grave enquanto os pastores satildeo parte de um cenaacuterio
que eacute proacuteprio do estilo humilde
De acordo com Wilson-Okamura (2010) a Roda de Virgiacutelio natildeo eacute um termo
usado pelos autores no Renascimento pois se trata de uma concepccedilatildeo acerca da
carreira de Virgiacutelio como extensatildeo de todos os niacuteveis de estilo que ecoaram nos
comentaacuterios do Renascimento
Segundo o criacutetico Virgiacutelio criou os seus trecircs trabalhos em um triacuteplice estilo
Para as Bucoacutelicas ele caracteriza as coisas em um estilo delicado registrando o
cenaacuterio com caracteres amenos Nas Geoacutergicas o poeta vale-se de um estilo
mediano utilizando caracteres que registram um cenaacuterio moderado e na Eneida lanccedila
matildeo de caracteres graves para registrar o cenaacuterio das guerras e batalhas O que
define a carreira de Virgiacutelio para Wilson-Okamura (2010) eacute o domiacutenio dos trecircs estilos
pois o que define o sucesso de Virgiacutelio natildeo eacute a sequecircncia de gecircneros mas sim a
representaccedilatildeo que o poeta fez de cada estilo sendo por fim esta forma de
representaccedilatildeo e natildeo os gecircneros o que os poetas e criacuteticos modernos devem apreciar
na carreira de Virgiacutelio
Embora Wilson-Okamura fale de caracteres proacuteprios a cada estilo e natildeo
mencione termos semioacuteticos tais como recorrecircncia temaacutetica e figurativa o que ele
pretendeu destacar sobre os trecircs tipos de estilo vai ao encontro daquilo que
acreditamos o de que satildeo elementos engendrados no discurso e que mantecircm um
caraacuteter de individuaccedilatildeo Quando Wilson-Okamura muito bem destaca os diferentes
contextos de atuaccedilatildeo das personagens ele quer com isso mostrar a coerecircncia de
figuras que satildeo proacuteprias a cada discurso O criacutetico mostra ainda o conteuacutedo da Roda
arranjado verticalmente
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Tabela 1- The spokes of Virgilrsquos Wheel
Lowly (humilis) style Middle (mediocris) style Weighty (grauis) style
Shepherd at ease Farmer Soldier ruler
Tityrus Meliboeus Triptolemus Coelius Hector Ajax
Sheep Cow Horse
Crool Plow Sword
Pasture Field city camp
Beech apple pear Laurel cedar
Fonte Extraiacutedo de Wilson-Okamura 2010 p 91
Com isso Wilson-Okamura demonstra que as colunas da Roda satildeo
organizadas de acordo com os estilos e natildeo de acordo com os gecircneros jaacute que o
objetivo da roda natildeo eacute ditar qual gecircnero deve ser apresentado primeiro mas sim
ensinar o que eacute proacuteprio de cada cenaacuterio de atuaccedilatildeo
Concordamos portanto com o pensamento do criacutetico e destacamos ainda
que os caracteres por ele mencionados devem ser entendidos a partir da Semioacutetica
como figuras que se coadunam para atuaccedilatildeo em cenaacuterios especiacuteficos seja bucoacutelico
didaacutetico ou eacutepico
Embora o esquema circular tripartido de Joatildeo de Garlacircndia tenha recebido o
nome de A Roda de Virgiacutelio muito se tem discutido acerca dos elementos colocados
em seus trecircs aros concecircntricos
Em Literary Names Personal Names in English Literature Alastair Fowler
(2012 p29) discorre acerca dos nomes proacuteprios presentes na Roda de Virgiacutelio Os
nomes citados no estilo grave por exemplo satildeo Hector e Ajax personagens de
Homero (seacutec VIII aC) pois neste estilo cabem nomes lendaacuterios e histoacutericos Por isso
a Eneida a eacutepica virgiliana eacute associada a este estilo9 Enquanto isso Triptolemus e
Coelius (agraves vezes Caelius) nomes referenciados no estilo mediano satildeo nomes
comuns e que portanto de acordo com Fowler assemelham-se ao contexto de um
estilo moderado ainda que os nomes tenham alguma alusatildeo lendaacuteria como no caso
de Triptolemus heroacutei de Elecircusis - regiatildeo da Aacutetica Ocidental na Greacutecia - que foi
9 Aleacutem disso em Virgiacutelio haacute menccedilatildeo a Ajax no Canto I hex 41 e Canto II hex 414 A figura de Heitor (Hector) jaacute aparece em vaacuterios contextos Canto I- hex 99 483 750 Canto II ndash hex 270 275 282 522 Canto III- hex 312 319 343 Canto V- hex 371 Canto VI- hex 166 Canto IX- hex 155 Canto XI- hex 289 Canto XII- hex 440 Aleacutem de Hectoreus em Canto I ndash hex 273 Canto II- hex 543 Canto III- hex 304 488 Canto V- hex 190 634
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agraciado com o dom da agricultura no Hino Homeacuterico a Demeacuteter I10 Diz-se que em
Elecircusis aliaacutes era comum o culto agrave deusa agriacutecola Demeacuteter Triptolemus eacute um nome
portanto relacionado ao contexto da agricultura presente nas Geoacutergicas ainda que
natildeo seja necessariamente uma personagem de Virgiacutelio Em se tratando do estilo
simples seguindo o pensamento de Fowler Tiacutetiro e Melibeu satildeo nomes comuns de
pastores presentes tanto em Teoacutecrito (300-260 aC) poeta grego do Periacuteodo
Heleniacutestico como em Virgiacutelio Fowler aponta assim para o tipo de nomeaccedilatildeo
especiacutefica a partir de cada estilo e seu contexto correspondente o que vai ao encontro
da ideia exposta por Wilson-Okamura a de que os caracteres se moldam a partir de
seu contexto de atuaccedilatildeo
Podemos observar que as obras de Virgiacutelio foram identificadas com os trecircs
tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica A Roda de Virgiacutelio no seacuteculo XIII
mapeando essa identificaccedilatildeo aponta em cada um de seus aros concecircntricos os
caracteres coerentes para cada contexto de atuaccedilatildeo seja ele singelo meacutedio ou
grandiloquente o que deixa entrever que para cada cenaacuterio construiacutedo haacute figuras
especiacuteficas que lhe datildeo corporalidade Com isso entendemos cada estilo como um
efeito de individuaccedilatildeo como uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa depreensiacutevel do
discurso
10 Este eacute um dos quatro hinos homeacutericos mais extensos Satildeo chamados homeacutericos porque pertencem ao gecircnero eacutepico e por apresentarem uma teacutecnica de composiccedilatildeo anaacuteloga agrave obra homeacuterica Na realidade sua autoria eacute desconhecida
46
3 A criacutetica virgiliana
31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida
Na introduccedilatildeo dos seus dois conjuntos de ensaios Vergilrsquos Eclogues e Vergilrsquos
Georgics publicados em 2008 Katharina Volk discorre sobre as diferentes
abordagens acadecircmicas acerca da vida e obra de Virgiacutelio Procuramos destacar aqui
os comentaacuterios que julgamos mais relevantes
Volk (2008) afirma assim que haacute leituras divergentes em relaccedilatildeo agraves trecircs obras
virgilianas e que realizar um panorama geral dos estudos virgilianos eacute uma tarefa
assustadora devido agraves inuacutemeras interpretaccedilotildees No entanto segundo a estudiosa a
discussatildeo da criacutetica virgiliana apesar de divergente e ampla merece destaque Ela
enfatiza entatildeo as abordagens acadecircmicas a partir da deacutecada de 70
Segundo Volk o estudo das Bucoacutelicas e das Geoacutergicas de Virgiacutelio ficaram um
bom tempo agrave margem dos estudos sobre Eneida pois eram obras citadas como
exemplo de menor gecircnero e fruto do trabalho de um poeta jovem As Bucoacutelicas
frequentemente eram citadas como um livro de preparaccedilatildeo para a grande eacutepica a
obra-prima em que a vida e o trabalho de Virgiacutelio alcanccedilaram segundo a criacutetica
tradicional o seu aacutepice Embora o gecircnero bucoacutelico tenha usufruiacutedo de acordo com
Volk periacuteodos de grande popularidade em vaacuterios pontos da histoacuteria da literatura
ocidental os poemas pastoris de Virgiacutelio eram estudados menos frequentemente que
a Eneida e segundo a especialista as publicaccedilotildees sobre a eacutepica virgiliana
ultrapassavam de longe os primeiros poemas Para Volk isso natildeo quer dizer no
entanto que natildeo se tenha nas Bucoacutelicas e Geoacutergicas um trabalho consideraacutevel Ela
destaca portanto os uacuteltimos trinta anos ou mais que foram contemplados com
publicaccedilotildees de grande criacutetica Dentre as publicaccedilotildees de destaque Volk menciona
Coleman (1977) Clausen (1994) e numerosos livros e artigos representativos de
ambas as obras virgilianas
O aumento de publicaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves duas obras consideradas ldquomenoresrdquo
de Virgiacutelio deve-se de acordo com Volk ao desenvolvimento e avanccedilo dos estudos
da Literatura Latina no final do seacuteculo XX e iniacutecio do seacuteculo XXI Hoje apesar da
multiplicidade de abordagens dificultar uma visatildeo geral acerca da obra virgiliana
parece possiacutevel segundo a especialista discernir ao menos duas principais vertentes
criacuteticas na obra do poeta mantuano
47
A primeira vertente envolve as leituras que para Volk podem ser chamadas de
ldquoideoloacutegicasrdquo Satildeo as abordagens acadecircmicas baseadas na ideia de que os poemas
de Virgiacutelio foram concebidos para transmitir uma mensagem que o criacutetico de uma
certa forma esforccedila-se para descobrir Nesta mensagem subliminar pode-se
considerar a situaccedilatildeo social e poliacutetica em que a obra foi concebida ou avaliaccedilotildees
criacuteticas acerca da posiccedilatildeo social e poliacutetica de Virgiacutelio Ao poeta assim eacute creditada
uma visatildeo positiva ou otimista natildeo soacute para a vida pastoril apresentada em seu poema
como tambeacutem para a ascendecircncia de Otaviano
A partir da deacutecada de 70 os criacuteticos passaram a ver certa ambivalecircncia e ateacute
certo pessimismo nas Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida demonstrando que o poeta natildeo
era totalmente a favor da poliacutetica de Otaviano Segundo Virgiacutenia Soares (1984 p 173)
A criacutetica respeitante agrave obra de Virgiacutelio conta cerca de dois mil anos Cada eacutepoca procurou na Eneida o poema que se ajustava agraves suas vivecircncias Por isso tecircm sido tantas e tatildeo diferentes contraditoacuterias mesmo as abordagens interpretativas do poema Eacutepocas houve confiantes no futuro e na funccedilatildeo regeneradora de um estado providencial e organizado que na Eneida viram o poema da glorificaccedilatildeo de Augusto e da missatildeo civilizadora de Roma
Assim as leituras de vertente ldquoideoloacutegicardquo concentraram-se em determinar as
nuances ldquootimistasrdquo ou ldquopessimistasrdquo das obras de Virgiacutelio demonstrando se os
escritos do poeta eram coerentes ou natildeo com o programa poliacutetico de Otaviano No
entanto segundo Volk houve uma reavaliaccedilatildeo dos estudos virgilianos nos uacuteltimos
anos e os especialistas inclinaram-se mais a uma interpretaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a
Virgiacutelio e a poliacutetica de sua eacutepoca
A segunda vertente por fim envolve as ldquoleituras literaacuteriasrdquo das obras virgilianas
Finalmente para Volk as criacuteticas mais atuais passaram a dar enfoque agraves questotildees
de poeacutetica ou seja em como Virgiacutelio compromete-se a inscrever seus proacuteprios
esforccedilos dentro de uma particular tradiccedilatildeo literaacuteria Nesta abordagem estatildeo presentes
as discussotildees sobre os gecircneros dos poemas a intertextualidade e as diferentes
formas como cada obra se realiza
No entendimento de Volk as duas vertentes podem se complementar Enquanto
as leituras ideoloacutegicas preocupam-se com o papel do poeta e sua visatildeo poliacutetica a
vertente literaacuteria tem muito a dizer sobre os poemas em si Mas segundo ela muito
se tem a dizer ainda sobre a poesia de Virgiacutelio
48
Nos anos 70 houve um suacutebito florescimento dos estudos das Bucoacutelicas de
Virgiacutelio especialmente no mundo da Liacutengua Inglesa em que Putnam (1970) publicou
a primeira monografia e logo foi seguido por Berg (1974) Leach (1974) Van Sickle
(1978) e Alpers (1979) assim como a criacutetica de Coleman em 1977 Alguns fatores
contribuiacuteram segundo Volk para esse florescimento primeiro os estudos literaacuterios
assistiram a um aumento consideraacutevel de novas composiccedilotildees da poesia pastoril
(bucoacutelica) o que fez Eleanor W Leach a proclamar no prefaacutecio do seu livro em 1974
uma nova idade de ouro da criacutetica da poesia bucoacutelica segundo inspirados pelo New
Criticism os estudiosos encontraram nos enigmaacuteticos e complexos poemas pastoris
de Virgiacutelio um terreno feacutertil para interpretaccedilotildees simboacutelicas terceiro a leitura
pessimista que se fez da eacutepica virgiliana em relaccedilatildeo agrave poliacutetica de Otaviano na deacutecada
de 60 ampliou o interesse dos estudiosos pelas outras duas obras
Volk cita algumas leituras pessimistas das Bucoacutelicas e entre elas estatildeo
Putnam (1970) Leach (1974) e Segal (1981) com uma coleccedilatildeo de artigos bucoacutelicos
de Teoacutecrito e Virgiacutelio publicados originalmente entre 1965 e 1977 aleacutem de Boyle
(1986) e MOLee (1989) entre outros Estas obras segundo a especialista refletem
uma visatildeo das obras pastoris em geral e das Bucoacutelicas de Virgiacutelio trazem a ideia de
uma fantasia evasiva rural
A ideia de que Virgiacutelio nas Bucoacutelicas tenha criado uma espeacutecie de ldquopaisagem
espiritualrdquo que ele chamou de Arcaacutedia foi formulada por Bruno Snell em 1945 o que
influenciou muitos estudos Entre os pesquisadores representativos desse tipo de
visatildeo utoacutepica das Bucoacutelicas estaacute Friedrick Klinger que em 1967 publicou uma
monografia com seus estudos e reflexotildees acerca da obra de Virgiacutelio
Nas interpretaccedilotildees pessimistas no entanto as Bucoacutelicas nunca apresentam
um mundo bucoacutelico ideal mas sempre um que estaacute em perigo foi perdido ou estaacute
sendo abandonado Os criacuteticos aos poucos foram desconstruindo a visatildeo de Snell
chamando a atenccedilatildeo para contradiccedilotildees poliacuteticas apresentadas nos poemas pastoris
de Virgiacutelio Um latinista alematildeo Ernst Schmidit todavia ataca a Arcaacutedia por um
acircngulo diferente Na visatildeo de Schmidit qualquer leitura ideoloacutegica dos poemas de
Virgiacutelio baseava-se em mal-entendidos As Bucoacutelicas segundo ele natildeo satildeo
panegiacutericos poliacuteticos louvor do campo ou algum estado ideal de vida humana tal
como a Idade de Ouro ou a Arcaacutedia para Schmidit os poemas satildeo sobre a proacutepria
poesia
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Muitas das publicaccedilotildees acadecircmicas das uacuteltimas deacutecadas segundo Volk
preocupavam-se mais com as Bucoacutelicas como poesia ou com o que a obra tem a dizer
sobre poesia do que o posicionamento poliacutetico do poeta Dentre as anaacutelises
formalistas sobre o estilo e a linguagem nas bucoacutelicas de Virgiacutelio incluem-se Lipka
(2001) os ensaios de RGNisbet (1991) e Rumpf (1999) Sobre o jogo etimoloacutegico
das Bucoacutelicas destaca-se ainda o trabalho de OrsquoHara (1996) Para Volk questotildees
acerca do gecircnero bucoacutelico tecircm sido sempre um foco de reflexatildeo nos estudos das
Bucoacutelicas Hubbard (1998 p18) insistindo na construccedilatildeo intertextual do poema
pastoril propocircs que o gecircnero bucoacutelico fosse constituiacutedo pelo posicionamento de cada
poeta diante de seu antecessor Aleacutem disso Volk tambeacutem destaca o estudo de Breed
(2006) que examina nas Bucoacutelicas a suposta cultura da oralidade dos seus pastores
protagonistas Dentre as obras de criacutetica sobre o gecircnero bucoacutelico tambeacutem
sublinhamos o estudo de Joatildeo Pedro Mendes em Construccedilatildeo e arte nas Bucoacutelicas de
Virgiacutelio assim como o trabalho de Alexandre Hasegawa em Os limites do gecircnero
bucoacutelico em Vergiacutelio
No que diz respeito agrave criacutetica das Geoacutergicas destacamos o pensamento de Ruy
Mayer (1948 p 15) que afirma que a exaltaccedilatildeo do trabalho e da prece eacute a essecircncia
filosoacutefica das Geoacutergicas jaacute que a obra
relaciona-se com um objetivo social ou antes poliacutetico restaurar o prestiacutegio da vida agriacutecola um dos pilares da ordem nova que Augusto se propunha a instituir e com um objetivo teacutecnico ensinar os bons preceitos agronocircmicos os meacutetodos racionais da cultura e da exploraccedilatildeo pecuaacuteria envolvendo a doutrina na delicada trama da poesia o meio de transmissatildeo mais apropriado para o gosto e para os usos da eacutepoca
Sublinha-se tambeacutem o pensamento de Santos (2007 p 17) que atesta que ao
cantar a terra e os encantos da vida rural Virgiacutelio talvez pudesse incentivar a volta ao
campo de milhares de camponeses que estavam desempregados na cidade e
consequentemente poder-se-ia ldquorestaurar a agricultura itaacutelica que se encontrava em
plano inferior devido agraves guerras civisrdquo
Mecenas o patrono das letras foi um auxiliar uacutetil e leal de Otaviano Atuando
como intermediaacuterio em vaacuterios assuntos ele foi encarregado da administraccedilatildeo de
Roma Segundo a tradiccedilatildeo foi ele quem sugeriu o poema das Geoacutergicas a Virgiacutelio
pois como afirma-nos Santos (2007 p18) isso corresponderia ao programa poliacutetico
50
de Otaviano o retorno agrave agricultura Na eacutepoca a celebraccedilatildeo do trabalho agriacutecola e do
ofiacutecio do lavrador eram bastante significativos jaacute que a agricultura era uma das bases
da grandeza de Roma pois ocupava importante posiccedilatildeo na economia do Oriente e
era uma fonte de riqueza importante para os conquistadores
Para La Penna (1988 p71-72 apud Santos 2007 p18) seria um erro supor
que a obra de Virgiacutelio serviria como guia para os agricultores da Itaacutelia pois o que se
desejava na verdade era um impulso ideal que favorecesse um retorno agrave terra com
confianccedila no trabalho e no Estado romano-itaacutelico Grimal (1992 p123) afirma ainda
que Mecenas eacute apenas o vento que empurra a embarcaccedilatildeo natildeo sendo portanto seu
piloto nem comandante O patrono das letras assim eacute destacado neste pequeno
excerto das Geoacutergicas (Canto II 39-41)
Tuque ades inceptumque una decurre laborem o decus o famae merito pars maxima nostrae Maecenas pelagoque uolans da uela patenti
E tu estaacutes presente e percorre o trabalho empreendido oacute honra Mecenas a melhor parte da minha fama com justiccedila voando daacute velas ao extenso mar
Segundo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos Mecenas mobilizava talentos como
Virgiacutelio e Horaacutecio a serviccedilo do regime propondo-lhes alguns temas Para Santos
(2007 p 21) talvez estes poetas ldquotivessem se agrupado ao redor de Mecenas por
encontrarem nele uma concepccedilatildeo de vida e de arte Provavelmente o novo regime
correspondesse agraves suas aspiraccedilotildeesrdquo
Na visatildeo de Ruy Mayer (1948 p19-20) em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo das
Geoacutergicas
eacute provaacutevel que o Poeta independente de qualquer incitamento sentisse a gravidade da decadecircncia agriacutecola da Itaacutelia e considerasse obra de utilidade nacional atrair agrave atividade agraacuteria muitos dos que a haviam deixado Mas como opina Skrine nem os propoacutesitos poliacuteticos de Augusto nem a intenccedilatildeo da iniciativa de Virgiacutelio de acudir ao agricultor romano explicam as Geoacutergicas O que explica esta incomparaacutevel obra de arte eacute o amor de Virgiacutelio pelo seu assunto o seu encanto pela Natureza a sua afeiccedilatildeo pelas fainas do campo a sua ternura pelos animais e pelas plantas tudo enfim quanto Saint-Beauve definiu magistralmente no capiacutetulo do seu ceacutelebre estudo que se intitula De quoi se compose le geacutenie et lrsquoart drsquoum Virgile
51
No que concerne agrave Eneida a eacutepica virgiliana tem sido considerada pela tradiccedilatildeo
como um canto aos novos tempos do Impeacuterio jaacute que desde o anuacutencio de sua
concepccedilatildeo Otaviano colocava grandes esperanccedilas em seu projeto
Foi na eacutepoca em que Otaviano foi nomeado Ceacutesar Augusto portanto que os
escritores encontraram o que Leoni (1969 p 65) chama de completa harmonia pois
com Otaviano ao poder Roma entrou numa eacutepoca de paz tatildeo almejada depois das
tormentas das guerras civis Os feitos do imperador bem como sua poliacutetica
equilibrada e pacificadora exerceram influecircncia nas artes e literatura Deve-se
destacar que
A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)
Segundo Funari (2001 p 100)
Virgiacutelio foi o grande poeta eacutepico latino tendo composto na eacutepoca do
imperador Augusto (seacuteculo I aC) a Eneida um poema que contava
as origens heroicas do povo romano descendente dos troianos Na
mesma eacutepoca Tito Liacutevio escrevia uma monumental Histoacuteria de Roma
desde a fundaccedilatildeo ateacute Augusto Em ambos os casos as obras
representavam bem os planos de Augusto para glorificar as origens e
a histoacuteria de expansatildeo e domiacutenio romano do mundo
Virgiacutelio trama portanto em sua eacutepica um conjunto de situaccedilotildees e histoacuterias
remetendo-nos agrave nostalgia de tempos lendaacuterios em Roma Narram-se assim as
aventuras de Eneias heroacutei que possui aleacutem da sua origem humana uma linhagem
divina pois sua matildee eacute Vecircnus a deusa do amor O heroacutei em suas aventuras eacute guiado
pelo fatum (destino) que o leva a experimentar e a enfrentar o que lhe eacute apresentado
ao longo do caminho Sabe-se por fim que
A fundaccedilatildeo da nova estirpe que daraacute origem a Roma e ao Impeacuterio eacute uma missatildeo querida pela providecircncia divina reservada a um heroacutei perfeito ao heroacutei piedoso e paciente que se resigna a perder a esposa na ruiacutena de Troia a renunciar ao amor de Dido a obedecer ponto por
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ponto agraves ordens divinas a fim de ser porta-voz da vontade celeste (PARATORE 1983 p 402)
Desde a saiacuteda de Troia incendiada Eneias jaacute sabe que estaacute destinado a fundar
uma ldquoNova Troiardquo Ele seraacute o responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses
do lar em solo latino Portanto ao longo da narraccedilatildeo o heroacutei tenta fazer cumprir o
seu destino
Dividida em doze cantos a epopeia virgiliana segue o modelo da Iliacuteada e a
Odisseia de Homero Segundo Antonio Medina Rodrigues (2005 p13) embora
Homero tenha sido o modelo os guerreiros da Iliacuteada adotam uma postura narciacutesica
enquanto os guerreiros da Eneida satildeo marcados pela pietas de Eneias
Sobre isso vale aqui destacar o seguinte comentaacuterio de Andreacute Bellesort (1949
p 261 apud THAMOS 2011 p 49 nota 16)
A Eneida natildeo seria o grande poema de Roma e da civilizaccedilatildeo latina se natildeo tivesse um interesse universal Natildeo lhe compreendemos todas as belezas e toda a majestade que nos reportam agraves Antiguidades romanas e ao Impeacuterio mas afora circunstacircncias histoacutericas que poderiacuteamos desconhecer ela eacute uma dessas poucas obras nas quais a menos que a si mesma se renegue a humanidade se reconhece junto com a natureza e em que experimentamos um maravilhoso prazer contemplando o espetaacuteculo de nossas proacuteprias miseacuterias Ela nos oferece com os encantos da mais fina e vigorosa arte emoccedilotildees profundamente humanas
Assim a Eneida eacute ao lado da Iliacuteada e da Odisseia de Homero um dos maiores
eacutepicos da Literatura Universal Soares (1984) nomeia alguns dos estudos sobre a
Eneida The two voices of Virgils Aeneid (A PARRY) Linspiration tragique de
lEneacuteide (W S MAGUINNESS) The pessimism of the eighth Aeneid (CD S
WIESEN) An interpretation of the Aeneid (W CLAUSEN visatildeo pessimista) A study
of Vergils Aeneid (W R JOHNSON) Le poegraveme de linquieacutetude historique (J-P
BRISSON) A outra face de Eneias (W S MEDEIROS) Aeneas desairing (W W
DE GRUMMOND) Para a criacutetica a lista poderia se alongar e ainda assim os criacuteticos
natildeo esgotariam os temas presentes na epopeia latina Segundo a tradiccedilatildeo a eacutepica
virgiliana assim que foi publicada afirmou-se como a mais alta expressatildeo artiacutestica e
cultural que o mundo romano jamais produzira Sobre a poeacutetica de Virgiacutelio na Eneida
destacamos o estudo de Thamos As armas e o varatildeo (2011) Valendo-se dos
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recursos da Poeacutetica o criacutetico analisa a obra de Virgiacutelio do ponto de vista da expressatildeo
buscando o entendimento acerca da vocaccedilatildeo imageacutetica do texto latino
O que pensar portanto desta rede de informaccedilotildees que os bioacutegrafos e
estudiosos de Virgiacutelio reuniram Apesar da curiosidade que a vida e o posicionamento
poliacutetico do poeta possam despertar acreditamos que um estudo sobre a obra de
Virgiacutelio contemplando-se a sua poeacutetica a construccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico
dos textos possa render discussotildees para aleacutem de enigmas e posicionamentos que
satildeo externos ao texto Embora natildeo desmereccedilamos os estudos da vertente ideoloacutegica
valemo-nos daqueles que nos auxiliam a pensar o texto claacutessico do ponto de vista da
expressatildeo contribuindo assim para a nossa leitura semioacutetica das obras virgilianas
32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho
Segundo Andrew Laird (2010 p 138) a partir de meados de 1600 a palavra
italiana para carreira carriera havia se associado a uma vida de trabalho muito antes
do seu equivalente em inglecircs adquirir o mesmo sentido no iniacutecio do seacuteculo XIX De
fato o primeiro uso atestado de carriera estava relacionado agrave carreira literaacuteria No
prefaacutecio do seu Trattato dellarte e dello stile del dialogo (1662) o historiador e poeta
Pietro Sforza Pallavicino expressou os seus agradecimentos ao Bispo de Fermo por
ter encorajado a sua infacircncia na carreira das letras (la mia puerizia nella carriera
delle lettere)
Carriera como o latim via carraria da qual deriva originalmente denotava uma
estrada de carruagem ou faixa para um veiacuteculo com rodas (carrus) Para Laird (2010
p138) este significado acaba por ter uma ligaccedilatildeo feliz com a ideia de carreira literaacuteria
e segundo o criacutetico eacute improvaacutevel que isso seja coincidecircncia jaacute que na Idade Meacutedia
a mais influente carreira literaacuteria de todas foi visualizada como uma roda - a Rota
Vergilii ou Rota Vergiliana (a Roda de Virgiacutelio) Como jaacute mencionado aqui trata-se
de um arranjo das obras de Virgiacutelio pensando-se em seus respectivos temas e estilos
em um diagrama circular que parece ter se desenvolvido a partir do uso de rota como
sineacutedoque para a imagem claacutessica da carruagem das Musas uma imagem mediada
pelos professores da antiguidade tardia Segundo a tradiccedilatildeo quando Virgiacutelio concebe
seu cursus poeacutetico como um triunfo militar na abertura do Canto III das Geoacutergicas ele
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se vecirc como um vencedor coroado com palmas que vai colocar cem carruagens em
movimento Trata-se de uma passagem em que Virgiacutelio reconhece a importacircncia da
cultura grega para a elevaccedilatildeo literaacuteria latina e tambeacutem anuncia a construccedilatildeo de um
templo para Ceacutesar Augusto
(Geo Canto III hex 10-18) primus ego in patriam mecum modo uita supersit Aonio rediens deducam uertice Musas primus Idumaeas referam tibi Mantua palmas et uiridi in campo templum de marmore ponam propter aquam tardis ingens ubi flexibus errat Mincius et tenera praetexit harundine ripas In medio mihi Caesar erit templumque tenebit illi uictor ego et Tyrio conspectus in ostro centum quadriiugos agitabo ad flumina currus
Serei eu o primeiro se a vida me restar a trazer para a minha paacutetria as musas dos cumes Aocircnios11 O primeiro a trazer para ti oacute Macircntua12 as palmas de Idumea13 Em um campo verdejante edificarei um templo de maacutermore proacuteximo agraves aacuteguas na ribeira onde o majestoso Miacutencio14 vagueia em vagarosas curvas e [que ele] adorna com a delicada cana No meio do meu templo estaraacute Ceacutesar o vencedor e eu revestido da puacuterpura de Tiro15 farei correr cem quadrigas pela margem do rio
Essa passagem foi retomada pela criacutetica como uma sugestatildeo de uma eacutepica
futura Como um todo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos tem apontado em suas
composiccedilotildees uma progressatildeo da poesia bucoacutelica para a didaacutetica e depois da didaacutetica
para a eacutepica Como jaacute pontuamos aqui por meio das palavras de Wilson-Okamura
(2010) embora seja apontada na Roda uma ideia de progressatildeo entre os gecircneros
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico a Roda aponta para uma sequecircncia de diferentes estilos
que configuram cenaacuterios particulares a partir de efeitos de individuaccedilatildeo especiacuteficos
que nos remetem portanto ao cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
Segundo Laird (2010 p139) os leitores medievais prontamente assumiram
como haviam feito os antigos bioacutegrafos de Virgiacutelio que o elevado gecircnero poeacutetico da
11 Referente agrave Aocircnia regiatildeo da Beoacutecia na Antiga Greacutecia Virgiacutelio aqui reconhece a importacircncia da cultura grega para a cultura latina 12 Proviacutencia romana da regiatildeo da Lombardia Cidade natal de Virgiacutelio 13 Regiatildeo entre o mar Morto e o golfo de Aqaba 14 Rio da Itaacutelia com 73 km de extensatildeo 15 Diz-se que a puacuterpura de Tiro da regiatildeo feniacutecia era uma tinta natural de coloraccedilatildeo vermelho-puacuterpura extraiacuteda dos caramujos
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epopeia representava o aacutepice da carreira do poeta Essa interpretaccedilatildeo se deve ao fato
de que o estilo grandiloquente presente na eacutepica deixa entrever imagens de um
cenaacuterio em que figuram temas sublimes e com personagens ilustres Todavia vale
destacar que em termos de expressatildeo as trecircs obras virgilianas estatildeo em peacute de
igualdade O que muda eacute o tratamento temaacutetico presente em cada obra e com isso
os efeitos de individuaccedilatildeo de cada discurso que configuram cenaacuterios especiacuteficos de
atuaccedilatildeo
Para Laird (2010 p 146) os antigos podiam perceber uma progressatildeo nas
obras de Virgiacutelio - ou pelo menos um aumento em sua importacircncia - das Bucoacutelicas
para as Geoacutergicas das Geoacutergicas para a Eneida Como jaacute mencionado aqui essa
progressatildeo na verdade pode ser lida como uma continuidade temaacutetica do curso
poeacutetico de Virgiacutelio se pensarmos na Roda como um diagrama circular em que estatildeo
dispostos os diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo nomeados por Virgiacutelio e que sugestionam
diferentes efeitos de sentido seja o singelo o meacutedio e o grandiloquente
Pensando-se na ideia de continuidade temaacutetica no lugar da ideia de
progressatildeo Laird (2010 p 158-159) afirma que considerar todas as composiccedilotildees de
Virgiacutelio como parte de um uacutenico livro eacute audacioso pois equivale a considerar toda a
sua obra como um texto uacutenico16 Mas isso pode natildeo ser injustificado se pensarmos no
sentido esteacutetico e poeacutetico dos textos a sua forma de expressatildeo Haacute nas trecircs obras
uma diferenccedila temaacutetica e notadamente diferentes efeitos de individuaccedilatildeo que
sugerem cenaacuterios especiacuteficos Todavia se considerarmos os termos da expressatildeo
presentes nas trecircs obras podemos afirmar que as Bucoacutelicas Georgicas e Eneida
constituem uma unidade Aleacutem disso a representaccedilatildeo na Rota Virgiliana de cada um
dos poemas de Virgiacutelio como uma parte de um ciacuterculo inteiro trecircs em um poderia ser
um reflexo da ideia de totalidade17
A Rota Virgiliana serviu portanto como ferramenta para retoacutericos e poetas que
procuraram lembrar e replicar os trecircs estilos virgilianos ao mesmo tempo em que
16 Theodorakopoulos (1997) oferece uma leitura do livro de Virgiacutelio como um texto uacutenico William Dominik tambeacutem discute essa ideia no artigo ldquoNatureza escuridatildeo e sombras no supertexto de Virgiacuteliordquo Phaos 9 17 Carruthers (2008) afirma que a lsquoRoda de Virgiacutelio era claramente um diagrama mnemocircnico que se mantinha desde John of Garland aquiacute referenciado como Joatildeo de Garlacircndia sendo provaacutevel que possa ser fisicamente manipulada como sugerem seus ciacuterculos concecircntricos Para Laird (2010 p 158) a figura da retoacuterica rota Virgili pode fornecer a conexatildeo entre a palavra latina rota roda e a frase em inglecircs pela rotardquo
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contribuiu para transmitir uma identidade subjacente agraves obras de Virgiacutelio Mas para
Laird (2010 p 159) a forma circular da Roda natildeo pocircde linearizar as Bucoacutelicas
Geoacutergicas e Eneida em uma sequecircncia temporal
A Roda de Virgiacutelio dessa forma colocou em movimento a carreira literaacuteria do
poeta do Seacuteculo de Ouro da Literatura Latina servindo como veiacuteculo para o
entendimento de suas obras
57
4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto
41 Textos temaacuteticos e figurativos
Temos por enquanto de trabalhar no sentido de ver como eacute que essa estruturaccedilatildeo atua () organizando o substrato figurativo a partir do qual o texto entrama molda enforma o
tema ou temas que o discurso potildee em andamento [] Ignaacutecio Assis Silva 1995 p 12
Ao colocar em relevo o texto como um objeto de significaccedilatildeo considerando-o
como um todo de sentido dotado de uma estrutura especiacutefica deve-se colocar em
destaque os procedimentos e mecanismos que satildeo responsaacuteveis por sua organizaccedilatildeo
e tessitura
Embora a Semioacutetica Francesa natildeo ignore que o texto seja um objeto histoacuterico
ela procura estudaacute-lo como objeto de significaccedilatildeo e por isso preocupa-se em estudar
os mecanismos e procedimentos que o estruturam e o tramam como uma totalidade
de sentido
De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (1995 p 165-166)
a palavra texto proveacutem do verbo latino texo is texui textum texere que quer dizer tecer Logo da mesma maneira que um tecido natildeo eacute um amontoado desorganizado de fios o texto natildeo eacute um amontoado de frases nem uma grande frase Tem ele uma estrutura que garante que o sentido seja apreendido em sua globalidade que o significado de cada uma de suas partes dependa do todo
A Semioacutetica Francesa concebe o processo de formaccedilatildeo de um texto como um
percurso gerativo que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto
em um processo de enriquecimento semacircntico Em um primeiro momento a
Semioacutetica examina o plano do conteuacutedo e soacute depois vai destacar as especificidades
da expressatildeo e sua relaccedilatildeo com o significado
Dois satildeo os tipos de texto temaacuteticos e figurativos Os primeiros satildeo compostos
predominantemente de temas termos abstratos enquanto os segundos apresentam
preponderantemente figuras ou seja termos concretos
Entende-se tema e figura como dois mecanismos de atuaccedilatildeo do discurso O
tema que eacute abstrato revela um discurso predominantemente natildeo-figurativo como
58
satildeo os textos jornaliacutesticos dissertaccedilotildees etc O objetivo destes textos eacute o de informar
explicar ou ainda catalogar A figura por outro lado parte de um tema abstrato para
concretizaacute-lo e com isso produz um discurso predominantemente figurativo Exemplo
disso satildeo os textos literaacuterios e histoacutericos Tema remete-nos portanto ao que eacute da
ordem do abstrato e figura remete-nos agravequilo que eacute concreto
Os textos predominantemente temaacuteticos (textos jornaliacutesticos acadecircmicos)
procuram explicar classificar e ordenar enquanto os textos predominantemente
figurativos (literaacuterios histoacutericos) tecircm uma funccedilatildeo descritiva narrativa poeacutetica O tema
abstrato eacute um investimento semacircntico de ordem conceitual enquanto a figura
corresponde a tudo que eacute perceptiacutevel no mundo natural
Assim a Semioacutetica Greimasiana oferece modelos para a anaacutelise da
significaccedilatildeo na dimensatildeo do discurso procurando demonstrar como os percursos da
significaccedilatildeo se organizam e se combinam a partir de regras sintaacutexicas e semacircnticas
responsaacuteveis pela coerecircncia de um texto Agrave Semioacutetica cabe avaliar como um texto vai
se tornando mais concreto a partir da instalaccedilatildeo de personagens e a introduccedilatildeo de
iacutendices espaccedilotemporais O conteuacutedo de um texto eacute engendrado por um percurso que
vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto manifestando-se assim
por meio de um plano da expressatildeo
Os textos com funccedilatildeo utilitaacuteria informam convencem explicam e documentam
eles tecircm um compromisso com o conteuacutedo e a informaccedilatildeo Enquanto isso os textos
com funccedilatildeo esteacutetica comprometem-se com a expressatildeo
De acordo com Ignaacutecio Assis Silva (1995 p 44)
a semioacutetica natildeo estaacute preocupada com o sentido que eacute da ordem da evidecircncia com o sentido que estaacute aiacute e que natildeo eacute senatildeo efeito de sentido produto em suma A fim de poder passaacute-lo adiante de poder falar dele eacute preciso ver a produccedilatildeo que engendrou esse efeito de sentido ou o processo criador como prefere dizer Cassirer
Ao leitor atento cabe portanto notar que eacute na relaccedilatildeo entre conteuacutedo e
expressatildeo que satildeo gerados os efeitos estiliacutesticos que determinam os elementos
essenciais de um texto
Procuremos entender no pequeno excerto das Geoacutergicas de Virgiacutelio ldquoCanto IIrdquo
hexacircmetros 315 a 345 os procedimentos de figuraccedilatildeo
59
Nec tibi tam prudens quisquam persuadeat auctor tellurem Borea rigidam spirante mouere rura gelu tum claudit hiems nec semine iacto concretam patitur radicem adfigere terrae optima uinetis satio cum uere rubenti candida uenit auis longis inuisa colubris prima uel autumni sub frigora cum rapidus Sol nondum hiemem contingit equis iam praeterit aestas uer adeo frondi nemorum uer utile siluis uere tument terrae et genitalia semina poscunt tum pater omnipotens fecundis imbribus Aether coniugis in gremium laetae descendit et omnis magnus alit magno commixtus corpore fetus auia tum resonant auibus uirgulta canoris et Venerem certis repetunt armenta diebus parturit almus ager Zephyrique tepentibus auris laxant arua sinus superat tener omnibus umor inque nouos soles audent se gramina tuto credere nec metuit surgentis pampinus Austros aut actum caelo magnis Aquilonibus imbrem sed trudit gemmas et frondes explicat omnis non alios prima crescentis origine mundi inluxisse dies aliumue habuisse tenorem
crediderim uer illud erat uer magnus agebat orbis et hibernis parcebant flatibus Euri cum primae lucem pecudes hausere uirumque terrea progenies duris caput extulit aruis immissaeque ferae siluis et sidera caelo nec res hunc tenerae possent perferre laborem si non tanta quies iret frigusque caloremque inter et exciperet caeli indulgentia terras
Que nenhum mestre tatildeo prudente te convenccedila a cavar a riacutegida Terra quando Boacutereas sopra18 Depois o inverno aperta os campos com a geada e nem com a semente lanccedilada permite que a espessa raiz se prenda agrave terra O melhor plantio para as vinhas eacute quando na roacutesea primavera chega a candida ave odiada pelas grandes serpentes sob os primeiros frios do outono quando o impetuoso sol com seus cavalos19 natildeo atingiu o inverno e jaacute o veratildeo ficou para traacutes Sobretudo a primavera uacutetil agrave folhagem dos bosques a primavera uacutetil agraves florestas na primavera as terras se intumescem e exigem as fecundas sementes20
18Ruy Mayer (1948 p 305) destaca em nota ao texto Prudens auctor eacute como se chama o sabichatildeo que sobre todos os assuntos daacute opiniatildeo Fazer a mobilizaccedilatildeo do solo quando sopra o vento Norte (Boacutereas) seria desastroso na Campacircnia onde esse vento eacute frio e violento e onde em terrenos soltos a aacutegua congela por camadas sucessivas tornando impossiacutevel semear ou plantar 19 Personificaccedilatildeo do sol que conduz seus cavalos luminosos para trazer o dia 20Para Ruy Mayer (1948 p 306) o presente excerto do Canto II das Geoacutergicas eacute um hino de maravilhosa perfeiccedilatildeo artiacutestica agraves energias criadoras da primavera apresentando uma elegacircncia e riqueza de formas incomparaacuteveis
60
Entatildeo o pai onipotente Eacuteter21 com chuvas fecundas desce sob o colo da feacutertil esposa22 e unindo-se a esse grande corpo alimenta todos os filhos Entatildeo as ramagens dos lugares afastados ressoam com as melodiosas aves e os rebanhos reivindicam Vecircnus23 em dias certos O nutriz campo daacute agrave luz por causa da brisa morna de Zeacutefiro24 as pastagens relaxam os seios um liacutequido suave ultrapassa todas as coisas e com confianccedila as ervas ousam entregar-se aos novos soacuteis e nem o pacircmpano teme os Austros25 que surgem ou a chuva impelida do ceacuteu pelos fortes Aquilotildees26 mas faz brotar os rebentos e estende todas as folhagens Natildeo acreditei que outros dias tenham iluminado na primeira origem do mundo nascente ou que tenham tido outro curso aquilo era primavera no grande orbe vivia a primavera e os Euros27 cessavam os invernosos ventos quando os primeiros animais viram a luz e a teacuterrea progecircnie do homem ergueu a cabeccedila das duras terras as feras foram enviadas para as florestas e os astros para o ceacuteu
Os delicados seres natildeo podiam sofrer esta opressatildeo se tanta tranquilidade natildeo se refugiasse entre o frio e o calor e se a indulgecircncia do ceacuteu natildeo acolhesse as terras
Neste pequeno excerto Virgiacutelio abandona as recomendaccedilotildees acerca das
teacutecnicas de plantaccedilatildeo da vinha para cantar sobre a primavera a estaccedilatildeo do ano em
que a natureza se encontra apta a germinar Trata-se de uma das digressotildees
presentes no texto das Geoacutergicas As terras assim como eacute descrito pelo poeta longe
do frio do inverno e dos impetuosos raios do sol incham-se e preparam-se para
receber as fecundas sementes com a chegada da nova estaccedilatildeo
Ao referir-se agrave primavera o poeta atesta que ela eacute uacutetil agraves aacutervores agraves florestas
aos bosques Ela eacute a proacutepria reproduccedilatildeo o periacuteodo feacutertil da terra e de toda a natureza
A figura da primavera marca um tempo de prosperidade fecundidade e germinaccedilatildeo
Com a chegada da primavera ocorre a uniatildeo entre o Ceacuteu e a Terra e daiacute
nascem todos os seres vivos Nesta estaccedilatildeo ainda o Pai onipotente Eacuteter desce sob
a forma de chuvas fecundas Eacuteter nesta passagem associa-se a Juacutepiter jaacute que
ambos representam o ceacuteu superior assumindo a paternidade de todas as coisas
Podem-se destacar deste excerto algumas figuras que remetem ao tema do
amor da uniatildeo dos seres da fecundidade e a procriaccedilatildeo tais como genitalia semina
21 Eacuteter a personificaccedilatildeo do ceacuteu profundo 22 A terra 23 Vecircnus deusa do amor e da beleza 24 Zeacutefiro o vento da Primavera 25 Austros os ventos 26 Aquilotildees Ventos frios tempestuosos 27 Euro vento leste criador de tempestades
61
- hex 324 (sementes fecundas) fecundis imbribus ndash hex 325 (chuvas fecundas)
coniugis laetae - hex 326 (esposa feacutertil)
Atraveacutes destas figuras tem-se a concretizaccedilatildeo de uma ideia abstrata o tema
da fertilidade e prosperidade da natureza No pequeno excerto a Terra e o Eacuteter satildeo
representados como dois amantes em uma relaccedilatildeo amorosa Unem-se para
produzirem a vida
Eacuteter eacute quem alimenta (alit ndash hex 327) ou seja impulsiona a vida e modela os
seres dando-lhes forma e a feacutertil esposa assim o recebe em um grande abraccedilo O
discurso figurativo aponta com isso para a imagem da Terra sendo fecundada
A partir daiacute as melodiosas aves cantam em celebraccedilatildeo a todos os elementos
da natureza e a terra que daacute agrave luz (Parturit ndash hex 330) relaxa com a brisa de Zeacutefiro
o vento da Primavera
Os rebanhos tambeacutem buscam Vecircnus a deusa do amor e da beleza nos dias
certos (Venerem certis repetunt armenta diebus ndash hex329) A figura de Vecircnus
representa aqui a ideia de uniatildeo o periacuteodo propiacutecio para a procriaccedilatildeo dos animais
Os brotos natildeo temem as chuvas nem as tempestades pois estatildeo acolhidos
crescem em seguranccedila e desabrocham A vida portanto eacute criada surgindo novos
ramos novas folhagens e novos seres O mundo nasce e se organiza graccedilas agrave
primavera Menciona-se ainda que na ldquoprimeira origem do mundo nascenterdquo (prima
crescentis origine mundi ndash hex 336) era a primavera que imperava Os primeiros
animais com isso viram a luz as feras povoaram as florestas e os astros o ceacuteu
Deixa-se entrever neste excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas o tema da
fertilidade e prosperidade da natureza pois o arranjo de figuras tais como
ldquoprimaverardquo ldquofecundas sementesrdquo ldquonutriz campordquo ldquoesposa feacutertilrdquo ldquochuvas fecundasrdquo
entre outras concretizam essa ideia A figura da primavera em especial torna o
cenaacuterio propiacutecio ao plantio e agrave procriaccedilatildeo dos animais destacando com isso a forma
como todo o cenaacuterio se modifica com a chegada da nova estaccedilatildeo
Logo as figuras satildeo os elementos concretos de um texto jaacute aos elementos
abstratos chamamos de temas Figura eacute o termo com que podemos designar algo
existente no mundo tais como ldquoprimaverardquo ldquovinhardquo ldquoflorestasrdquo ldquobosquesrdquo sementesrdquo
De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (2011 p 91) ldquoa figura eacute todo conteuacutedo de qualquer
liacutengua natural ou de qualquer sistema de representaccedilatildeo que tem um correspondente
perceptiacutevel no mundo naturalrdquo Mas o mundo natural e perceptiacutevel natildeo se refere
apenas ao mundo real mas tambeacutem aos ldquomundos fictiacutecios criados pela imaginaccedilatildeo
62
humanardquo As figuras podem ser dessa forma substantivos concretos verbos que
indicam accedilatildeo ou adjetivos que expressam um atributo fiacutesico das coisas e pessoas do
mundo percebido No que diz respeito ao Tema destaca-se que eacute o termo com que
designamos as palavras e expressotildees que satildeo responsaacuteveis pela explicaccedilatildeo de um
dado ou fato do mundo natural Trata-se de um ldquoinvestimento semacircntico de natureza
puramente conceptual que natildeo remete ao mundo naturalrdquo (FIORIN 2011 p 91) No
pequeno excerto a ideia de fertilidade prosperidade e germinaccedilatildeo da natureza eacute
depreendida pela cadeia de figuras que corroboram para este tema
Os textos figurativos como assinala Fiorin (2011 p 91) ldquocriam um efeito de
realidade jaacute que constroem um simulacro da realidade representando dessa forma
o mundordquo enquanto os textos temaacuteticos ldquoprocuram explicar a realidaderdquo Os discursos
figurativos satildeo eminentemente descritivos e narrativos enquanto os temaacuteticos satildeo
caracterizados pela explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do mundo perceptiacutevel
De acordo com Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 147-149) um texto
literaacuterio
tende a ser predominantemente descritivo ou narrativo afastando-se sponte sua do gecircnero dissertativo pois narraccedilatildeo e descriccedilatildeo pressupotildeem o desenvolvimento de um tema qualquer atraveacutes do recurso baacutesico da figuratividade enquanto a dissertaccedilatildeo procura ao contraacuterio o despojamento figurativo do enunciado a fim de dar relevo ao tema em si mesmo considerado Em outras palavras os gecircneros narrativo e descritivo exigem a manipulaccedilatildeo preponderante de termos concretos e particularizantes ao passo que o gecircnero dissertativo requer principalmente a adoccedilatildeo de conceitos abstratos e generalizantes na composiccedilatildeo do enunciado
Em um texto figurativo como o excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas que aqui
selecionamos encontramos sempre um tema que eacute subjacente agraves figuras instaladas
no discurso Toda figura eacute portanto a concretizaccedilatildeo de um determinado tema
abstrato No exemplo aqui citado todas as figuras coadunam-se com a ideia de
prosperidade e fertilidade da natureza remetendo-nos a este tema
Segundo Fiorin (2011 p 92) eacute o niacutevel temaacutetico que daacute sentido ao figurativo
Sobre isso Bertrand (2003 p 215) adverte que ldquoa significaccedilatildeo figurativa ultrapassa
com folga seus significados literais dotando-se de significaccedilotildees abstratas[]rdquo
Os textos que circulam em nossa sociedade satildeo temaacuteticos com algum recurso
figurativo esporaacutedico (discursos poliacuteticos textos filosoacuteficos) ou figurativos recobertos
assim em sua totalidade por figuras (textos literaacuterios e histoacutericos)
Greimas amp Courteacutes (2011 p 210) observam que
63
Quando se tenta classificar o conjunto de discursos em duas grandes classes discursos figurativos e natildeo-figurativos (ou abstratos) percebe-se que a quase totalidade dos textos ditos literaacuterios e histoacutericos pertencem agrave classe dos discursos figurativos Fica entendido entretanto que tal distinccedilatildeo eacute de certa forma ldquoidealrdquo que ela procura classificar as formas (figurativas e natildeo-figurativas) e natildeo os discursos-ocorrecircncias que natildeo apresentam praticamente nunca uma forma em estado puro
Enquanto os textos figurativos assim como vimos no exemplo do excerto das
Geoacutergicas aqui citado constroem cenaacuterios reais com a presenccedila de pessoas animais
cores etc os textos temaacuteticos ao explicarem os fatos do mundo visam agrave
interpretaccedilatildeo de uma dada realidade
De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros em Teoria Semioacutetica do Texto
(2005 p 69) ldquoAos textos de figuraccedilatildeo esporaacutedica opotildeem-se aqueles em que ocorrem
percursos figurativos duradouros que se espalham pelo discurso inteiro e recobrem
totalmente os percursos temaacuteticosrdquo
Em Elementos de Anaacutelise do Discurso Fiorin (2011 p 92) assinala que
ldquoquando se fala em textos figurativos ou temaacuteticos fala-se respectivamente em
textos predominantemente e natildeo exclusivamente figurativos e temaacuteticosrdquo
Ao lermos um texto figurativo observamos portanto que eacute um tema abstrato
que imprime sentido agraves figuras daiacute a necessidade de se encontrar o sentido de um
conjunto de figuras uma vez que estariacuteamos depreendendo o tema subjacente a elas
Com isso todo texto figurativo apresenta dados concretos que veiculam significados
mais abstratos Aleacutem disso uma figura sempre estaraacute relacionada a outras pois juntas
elas criaratildeo um percurso figurativo Logo uma figura por si soacute natildeo tem significado
definido uma vez tomada isoladamente pode sugerir diversas ideias O seu sentido
soacute aparece quando ela eacute combinada a outras figuras visto que em um texto tudo eacute
relaccedilatildeo
Logo para compreendermos o tema de um texto figurativo precisamos
perceber as redes coerentes formadas pelas figuras (isotopia) jaacute que eacute a coerecircncia
entre elas que permite a depreensatildeo do sentido A quebra do encadeamento entre as
figuras pode tornar o texto inverossiacutemil jaacute que seria uma quebra no efeito de sentido
construiacutedo no discurso a menos que o inverossiacutemil apareccedila como um dos efeitos de
sentido a ser suscitado no leitor
64
Na anaacutelise de um texto um tema ou uma figura isolados de nada servem
Torna-se preciso assim que haja um conjunto ou encadeamento de figuras e temas
Dessa forma uma isotopia ou seja a recorrecircncia de temas e figuras na cadeia do
discurso eacute capaz de assegurar a coerecircncia de um texto oferecendo ao leitor um
projeto de leitura
Tendo em vista o excerto do Canto II da Eneida hexacircmetros 707-720
podemos depreender o tema do heroacutei piedoso A Eneida inicia-se in medias res e
Eneias encontra-se com suas naus em pleno Mediterracircneo sete anos apoacutes a queda
de Troia (Canto I) posteriormente eacute lanccedilado agraves costas africanas onde eacute recebido pela
rainha Dido (Canto II) Num banquete ofertado ao heroacutei a rainha pede que Eneias
narre os acontecimentos sobre a destruiccedilatildeo de Troia Tem-se a partir daiacute uma
recordaccedilatildeo de eventos jaacute passados Destacamos entatildeo do Canto II os hexacircmetros
em que o caraacuteter de Eneias aparece em relevo
ergo age care pater ceruici imponere nostrae ipse subibo umeris nec me labor iste quo rescumque cadente unum et commune una salus ambobus erit mihi paruus Iulus sit comes et longe seruet uestigia coniunx uos famuli quae dicam animus est urbe egressis tumulus templumque uestutum desertae Cereris iuxtaque antiqua cipressus religione patrum multos seruata per anos hanc ex diuerso sedem ueniemus in unam Tu genitor cape sacra manu patriosque penatis me bello e tanto digressum et caede recenti attrectare nefas donec me flumine uiuo abluero Agora querido pai vem se colocar em meu pescoccedilo Eu proacuteprio te alccedilarei sobre os ombros e este trabalho natildeo me afetaraacute Onde quer que a sorte caia um soacute e comum perigo uma salvaccedilatildeo haveraacute para ambos a mim o pequeno Iuacutelo28 acompanhe e ao longe a esposa29 siga os passos Voacutes servos com vossas almas atentai no que vou dizer saindo da cidade haacute um tuacutemulo e um velho templo de Ceres30 abandonado e junto um antigo cipreste A religiatildeo dos antepassados preservada por muitos anos Chegaremos neste ponto vindos de diferentes lugares Tu oacute pai carrega os objetos sagrados com a matildeo e os Paacutetrios Penates31 A mim saiacutedo de tatildeo dura guerra e de recente massacre natildeo eacute permitido tocar ateacute que num rio corrente me lave
28 Iuacutelo (Ascacircnio) filho de Eneias e Creuacutesa 29 Creuacutesa esposa de Eneias 30 Ceres deusa da vegetaccedilatildeo e da colheita 31 Paacutetrios Penates os deuses do lar
65
Tem-se assim um pequeno trecho do relato eacutepico da tomada de Troia a partir
da narraccedilatildeo de Eneias A perspectiva do heroacutei intensifica as accedilotildees que se passaram
jaacute que se trata da visatildeo daquele que foi vencido O testemunho de Eneias divide-se
em trecircs partes comeccedila-se pela descriccedilatildeo do cavalo de madeira que eacute levado para
dentro da cidade (hex 13- 249) fala-se da batalha noturna (hex 250-558) e
posteriormente da fuga da cidade de Troia (hex 559-803) O relato do heroacutei ao longo
da narrativa destaca o seu comprometimento com a paacutetria a famiacutelia e seu caraacuteter
piedoso No pequeno excerto que aqui mencionamos tem-se a fuga de Eneias
acompanhado do pai Anquises do filho Iuacutelo (Ascacircnio) e da esposa Creuacutesa Todo o
conjunto de figuras deste excerto figurativiza valores de piedade Aleacutem do cuidado
para com o pai carregando-o sobre os ombros pode-se ver a preocupaccedilatildeo com o
filho esposa e outras pessoas do grupo o que indica a dimensatildeo ciacutevica de sua
piedade que abarca tambeacutem os objetos sagrados e os Paacutetrios Penates com o respeito
de natildeo os tocar com a matildeo ensanguentada A presente cena que destacamos (hex
707-720) sintetiza as virtudes que o caraacuteter do heroacutei engloba A tradiccedilatildeo sobre Eneias
aponta que ldquoele era notaacutevel por sua devoccedilatildeo filialrdquo (PEREIRA 2009 p 261) e o
pequeno excerto apresenta figuras que contribuem para a compreensatildeo deste tema
A accedilatildeo de colocar o pai sobre os ombros a preocupaccedilatildeo com as pessoas de seu
grupo esposa e filho bem como o respeito para com os Paacutetrios Penates figurativizam
o caraacuteter do heroacutei que pode ser depreendido no excerto
Diana Luz Pessoa de Barros (2005 p 69) menciona as diferentes etapas da
estruturaccedilatildeo de um texto a figuraccedilatildeo responsaacutevel pela instalaccedilatildeo das figuras eacute o
primeiro niacutevel de especificaccedilatildeo figurativa do tema em que uma ideia abstrata recebe
um investimento figurativo A iconizaccedilatildeo nomeada como ldquoinvestimento figurativo
exaustivo finalrdquo seria a uacuteltima etapa da estruturaccedilatildeo textual e tem o objetivo de
produzir uma ilusatildeo referencial Nessa etapa de acordo com Maacutercio Thamos (2003
p 114) haacute uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem na qual ldquorelacionando o som
com o sentido o poeta procura colocar em relevo aquilo de que fala manifestando o
desejo de fazer que o poema se identifique concretamente com o proacuteprio referenterdquo
Vale ressaltar ainda que essas duas etapas (figuraccedilatildeo rarriconizaccedilatildeo) satildeo fases
da construccedilatildeo figurativa de um texto e que nem todo texto figurativo apresentaraacute esse
investimento particularizante suscetiacutevel de produzir uma ilusatildeo referencial
Para Barros (2005 p 70)
66
Na iconizaccedilatildeo mas tambeacutem nas demais etapas da figurativizaccedilatildeo o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciataacuterio a reconhecer ldquoimagens do mundordquo e a partir daiacute a acreditar na ldquoverdaderdquo do discurso O enunciataacuterio por sua vez crecirc ou natildeo no discurso graccedilas em grande parte ao reconhecimento de figuras do mundo O fazer-crer e o crer dependem de um contrato de veridicccedilatildeo que se estabelece entre enunciador e enunciataacuterio e que regulamenta entre outras coisas o reconhecimento das figuras
Cabe ao leitor atento depreender assim os efeitos de sentido de um texto
Para Fiorin (1995 p 175)
Quem ler os seguintes versos de Os Lusiacuteadas ldquoEm tempo de tormenta e vento esquivordquo ldquoDe tempestade escura e triste prantordquo (V 18 3-4) sem perceber a aliteraccedilatildeo de oclusivas e principalmente do ldquotrdquo teraacute perdido um elemento essencial do texto que eacute o efeito de sentido de fuacuteria da tormenta dado pela articulaccedilatildeo entre a aliteraccedilatildeo no plano da expressatildeo e o conteuacutedo manifestado
O texto literaacuterio apresenta dessa forma uma funccedilatildeo esteacutetica e sua
compreensatildeo exige que se entenda natildeo somente o conteuacutedo mas especialmente os
significados dos seus elementos de expressatildeo
Thamos (2011 p 150) ao mencionar as especificidades do texto figurativo
afirma
A vocaccedilatildeo imageacutetica do texto literaacuterio encontra pois as condiccedilotildees naturais para a sua realizaccedilatildeo quer na narraccedilatildeo quer na descriccedilatildeo que lhe oferecem sempre possibilidades conotativas a partir da figuratividade enquanto por outro lado a dissertaccedilatildeo se constitui na maneira ideal de desenvolvimento do discurso cientiacutefico no qual imperam necessidades denotativas na expressatildeo de um tema
Na leitura de um texto literaacuterio adentramos de imediato em sua figuratividade
pois nele delineiam-se figuras como personagens espaccedilo objetos valores Por meio
da figuratividade assim podemos depreender as dimensotildees figurativas do discurso e
o modo como satildeo engendrados os efeitos de sentido
Bertrand (2003 p 156) referindo-se agrave figuratividade assim esclarece-nos
Qualificaremos de figurativo todo significado todo conteuacutedo de uma liacutengua natural e de maneira mais abrangente de qualquer sistema de representaccedilatildeo (visual por exemplo) que tenha um correspondente no plano do significante (ou da expressatildeo) do mundo natural da realidade perceptiacutevel
67
Com vistas portanto aos recursos da figuratividade presentes na poesia
bucoacutelica didaacutetica e eacutepica procuramos investigar nas trecircs obras de Virgiacutelio o percurso
figurativo e a atuaccedilatildeo dos trecircs tipos de estilo descritos pelos tratadistas antigos o
estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Na Roda esquema circular tripartido das
obras virgilianas satildeo apresentadas as principais figuras que compotildeem o cenaacuterio da
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Logo procuramos entender como os diferentes
estilos atuam em cada poema e como eles podem ser depreendidos a partir da
recorrecircncia figurativa presente em cada obra deixando entrever um efeito particular
de individuaccedilatildeo Para isso na anaacutelise das obras virgilianas destacamos a presenccedila
de uma rede de figuras que sugerem um modo proacuteprio de ser e fazer de especiacuteficos
cenaacuterios de atuaccedilatildeo para as Bucoacutelicas o efeito tecircnue que configura um estilo singelo
para as Geoacutergicas o efeito moderado que configura um estilo meacutedio e para a Eneida
um efeito vigoroso que corrobora para a construccedilatildeo do estilo sublime grandiloquente
Assim nosso intento eacute o de compreender na dimensatildeo figurativa de cada excerto
selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise a atuaccedilatildeo dos estilos singelo meacutedio e
grandiloquente Virgiacutelio construiu segundo a tradiccedilatildeo trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo a partir
de trecircs estilos Cabe-nos aqui depreender a caracterizaccedilatildeo presente em cada obra
e com isso depreender os principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e
eacutepica
Entendemos que em termos de expressatildeo as trecircs obras apresentam um rico
trabalho com a linguagem Pensando-se primeiramente na caracterizaccedilatildeo presente
nas trecircs obras personagens accedilotildees e ambientaccedilatildeo destacaremos os principais temas
e figuras proacuteprios agraves Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Com isso procuramos
entender cada estilo como uma construccedilatildeo sistemaacutetica que deixa entrever um efeito
particular de sentido Natildeo perderemos de vista contudo o arranjo particular da
linguagem poeacutetica e portanto tambeacutem procuraremos analisar as obras a partir do seu
plano da expressatildeo
Os temas presentes na poesia eacutepica coadunam-se com um tom elevado
grandiloquente com figuras que deixam entrever um efeito de sentido grandiloquente
Alteram-se os temas altera-se o cenaacuterio e consequentemente o efeito de sentido
sugestionado o estilo Primeiro escolhe-se o tema a ser cantado e soacute entatildeo eacute definido
o cenaacuterio ldquoconvenienterdquo a esse tema O ambiente descrito na poesia eacutepica difere
68
portanto daquele que eacute apresentado em um tom mais singelo como eacute o caso da
poesia de gecircnero bucoacutelico Da Eneida selecionamos um excerto do ldquoVIII Cantordquo (612-
731) em que depreendemos o tema do heroacutei e suas armas de guerra atrelado ao
tema da fundaccedilatildeo e gloacuteria de Roma As figuras utilizadas neste fragmento tramam
cenaacuterios tipicamente eacutepicos em um tom solene
Na poesia bucoacutelica o tema muda e as figuras se alteram Logo altera-se o
efeito pretendido que seraacute tecircnue O locus amoenus pode aparecer na figura de um
rochedo na espessura verde de um pequeno bosque em uma fonte pinheiros olmos
choupos carvalhos cabras ovelhas etc Estas figuras recorrentes na poesia
bucoacutelica virgiliana organizam-se de modo expressivo e particularizam os temas que
abrangem a simplicidade o viver ruacutestico do campo e o oacutecio criativo dos pastores O
estilo singelo aparece portanto subjacente a esse arranjo de figuras A ldquoBucoacutelica Vrdquo
aqui selecionada para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise apresenta um cenaacuterio apraziacutevel para
que os pastores-cantadores Mopso e Menalcas possam cantar seus louvores a
Daacutefnis
Na poesia didaacutetica os temas abrangem um conteuacutedo instrucional e assumem
um tom e um contexto de atuaccedilatildeo moderados No excerto do ldquoIV Cantordquo (1-115) das
Geoacutergicas colocaremos em relevo portanto a ldquodescriccedilatildeo do lugar apraziacutevel para as
abelhasrdquo e o modo como as figuras selecionadas pelo poeta particularizam este tema
no contexto da poesia didaacutetica
Na anaacutelise dos poemas de Virgiacutelio seratildeo destacadas as principais figuras e
temas recorrentes agraves Bucoacutelicas agraves Geoacutergicas e agrave Eneida Aleacutem disso pretende-se
demonstrar o modo como essas figuras se organizam e asseguram um revestimento
figurativo e abstrato dos principais temas bucoacutelicos didaacuteticos e eacutepicos levando em
conta a formaccedilatildeo do sentido poeacutetico e esteacutetico de cada texto e os niacuteveis de estilo
definidos pelos tratadistas antigos pensando-os como efeitos de individuaccedilatildeo
engendrados em cada texto
69
42 A Figuratividade a leitura do poeacutetico
Com os poetas a escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo
que elas contamrdquo
(BRODSKY 1994 p 97)
O poeta e criacutetico russo Joseph Brodsky acredita que natildeo eacute do ofiacutecio do poeta
informar algo mas sim por meio de um arranjo expressivo da linguagem artiacutestica
suscitar no leitor um determinado efeito de sentido A poesia revela-se dessa forma
como ldquouma arte de referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo
(BRODSKY 1994 p 74) Roman Jakobson ao questionar-se sobre a expressividade
poeacutetica vai ao encontro desse raciociacutenio Assim a sua ceacutelebre pergunta ldquoQue eacute que
faz de uma mensagem verbal uma obra de arterdquo (JAKOBSON 1989 p 118-119)
leva-nos a acreditar que toda criaccedilatildeo poeacutetica apresenta um trabalho artiacutestico com a
linguagem jaacute que a palavra artiacutestica ultrapassa o uso comum e ganha um efeito
esteacutetico pois o poeta agrega valor agrave palavra seu elemento material concreto
Cabe-nos a partir disso avaliar quais satildeo os recursos expressivos
evidenciados na leitura de um texto e de que forma os procedimentos da figuraccedilatildeo e
iconizaccedilatildeo aliados a outros expedientes expressivos participam da formaccedilatildeo do
sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto
Para a Semioacutetica Greimasiana o sentido aparece intimamente relacionado com
a linguagem que o estrutura e eacute a partir do reconhecimento das formas presentes em
um texto que apreendemos o arranjo expressivo da linguagem Logo eacute o trabalho
artiacutestico com o plano da expressatildeo que particulariza um texto poeacutetico contrapondo-o
portanto aos outros discursos que possivelmente podem apresentar temas
semelhantes
O arranjo da linguagem poeacutetica longe de transmitir apenas ideias apresenta
recursos expressivos capazes de suscitar um determinado efeito esteacutetico no leitor
Em Linguiacutestica e Comunicaccedilatildeo Jakobson (1989 p 130) declara que ldquoA funccedilatildeo
poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de
combinaccedilatildeordquo Fica evidente portanto o destaque do linguista para a construccedilatildeo do
sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto Em que medida as figuras instaladas em um
discurso satildeo combinadas e revestidas de expressividade Aleacutem disso natildeo podemos
esquecer de que o poeacutetico se enquadra na esfera luacutedica em que o poeta modela as
palavras em uma espeacutecie de brincadeira artiacutestica para assim conferir-lhes um
sentido poeacutetico Para Huizinga (2007 p 133) a poesia
70
[] estaacute para aleacutem da seriedade naquele plano mais primitivo e originaacuterio a que pertencem a crianccedila o animal o selvagem e o visionaacuterio na regiatildeo do sonho do encantamento do ecircxtase do riso Para compreender a poesia precisamos ser capazes de envergar a alma da crianccedila como se fosse uma capa maacutegica e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto
Logo o arranjo das palavras quando manipuladas pelo artista pode suscitar
um determinado efeito de sentido no leitor Trata-se de uma brincadeira uma espeacutecie
de jogo com a palavra que em acircmbito poeacutetico pode metamorfosear-se em imagens
do mundo
Ao focalizar o processo de criaccedilatildeo de um texto artiacutestico e ressaltar o modo
como a palavra eacute trabalhada pelo artista deve-se compreender que a palavra poeacutetica
porta sempre um encantamento imageacutetico Acredita-se com isso que o poeta
encontra na palavra o elemento material concreto de que necessita para a criaccedilatildeo
de imagens
Como bem observa Thamos (2003 p 109)
Na busca de expressatildeo para determinado tema o poeta bem como o pintor constroacutei um texto em que a primazia da figura eacute bastante evidente o que potildee em relevo o seu desejo de concretude sua necessidade de procurar dar contorno plasticidade palpabilidade a sua criaccedilatildeo
Como ilustraccedilatildeo desses procedimentos vale destacar a ldquoBucoacutelica IVrdquo de
Virgiacutelio poema em que eacute celebrado o nascimento de uma crianccedila que seraacute o fator
determinante da renovaccedilatildeo dos tempos No poema a natureza alegra-se com esse
nascimento e o proacutespero ambiente campestre assim responde agrave chegada da crianccedila
(Buc IV 23-25)
Ipsae lacte domum referent distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores As cabritinhas por si mesmas levaratildeo agrave casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti oacute crianccedila o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores
71
Nesse exemplo observa-se que a disposiccedilatildeo dos sintagmas no hexacircmetro 25
Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores favorece de algum modo a figuratividade
da cena que estaacute sendo descrita uma vez que o termo ldquocunabulardquo (berccedilo) eacute
circundado por ldquoblandosrdquo e ldquofloresrdquo (delicadas flores) ilustrando portanto a ideia
expressa no verso a de que o berccedilo da crianccedila encontra-se ornado por delicadas
flores que nesse contexto podem ser vistas como sinocircnimo de encanto e beleza do
novo mundo que ressurge em consonacircncia ao nascimento dessa crianccedila O verso
destacado favorece agrave representaccedilatildeo icocircnica deixando entrever pelo arranjo particular
da linguagem a imagem de um berccedilo florido pela distribuiccedilatildeo dos termos no verso
Para Greimas (1975 p 12) podemos afirmar que
[] o significante sonoro ndash e graacutefico em menor proporccedilatildeo ndash entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a assumir como verdadeiras as proposiccedilotildees emitidas pelo discurso poeacutetico []
Lembra-nos Octavio Paz que ldquoo poema natildeo explica nem representa apresenta
Natildeo alude agrave realidade pretende ndash e agraves vezes consegue ndash recriaacute-la Portanto a poesia
eacute um penetrar um estar ou ser na realidaderdquo (2012 p 118)
A ilusatildeo ou impressatildeo referencial eacute o termo com que designamos a segunda
etapa dos procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto literaacuterio conhecida por
iconizaccedilatildeo Nesta etapa haacute uma espeacutecie de ecircnfase figurativa do discurso com vistas
a um expediente de criaccedilatildeo de imagens anaacutelogas agrave realidade
Pensando ainda na ldquoBucoacutelica IVrdquo e na exortaccedilatildeo ao nascimento da crianccedila
destacamos os seguintes versos
(Buc IV 60-63) Incipe parue puer risu cognoscere matrem (matri longa decem tulerunt fastidia menses) Incipe parue puer qui non risere parenti Nec deus hunc mensa dea nec dignata cubili est Comeccedila pequeno menino a conhecer a matildee com um sorriso Agrave ela dez meses causaram longos enjoos comeccedila pequeno menino aquele que natildeo sorriu para a matildee nem um deus o julgou digno da sua
mesa e nem uma deusa de seu leito
Os hexacircmetros 60 e 62 relacionam-se expressivamente pelo emprego do
paralelismo ou seja pela repeticcedilatildeo de incipe parue puer que reforccedila assim a
72
homenagem agrave crianccedila Aleacutem disso a aliteraccedilatildeo da oclusiva p em ldquoincipe parue
puerrdquo eacute um fato do plano da expressatildeo que associado ao paralelismo sugere uma
ideia de repeticcedilatildeo e balbucio da matildee para seu filho passando-nos a ideia de uma
cantiga de ninar um acalanto Esses versos pelo arranjo particular da linguagem
criam um efeito de sentido ldquorealidaderdquo ao sugerirem a cena familiar que estaacute sendo
descrita em um tom de ludismo e serenidade
Neste fragmento ao relacionar o som ao sentido o poeta pretende manipular
a linguagem para colocar em destaque aquilo de que fala de modo que a palavra
artiacutestica coincida concretamente com o proacuteprio referente Adverte Thamos (2003 p
114) que ldquoA iconizaccedilatildeo se dirige mais diretamente aos sentidos e estaacute assentada num
pressuposto de representaccedilatildeo realista assumido tanto pelo produtor quanto pelo
receptor do discurso figurativordquo Na ilusatildeo referencial destaca-se portanto a
apresentaccedilatildeo de um efeito esteacutetico evidenciado no texto em que neste caso ldquotoda a
massa sonora do poema eacute viva do ponto de vista criativordquo (LIMA apud THAMOS
2003 p115)
O poeta aacutercade Tomaacutes Antocircnio Gonzaga (2006 p 43 grifos nossos) em uma
evidente alusatildeo ao texto de Virgiacutelio compocircs
Que gosto natildeo teraacute a matildee que toca Quando o tem nos seus braccedilos crsquoo dedinho Nas faces graciosas e na boca Do inocente filhinho Quando Mariacutelia bela O tenro infante jaacute com risos mudos Comeccedila a conhececirc-la
Nesse pequeno trecho de Mariacutelia de Dirceu Parte I Lira XIX nota-se que o
ambiente familiar descrito por Virgiacutelio eacute aludido na liacuterica de Gonzaga que resgatou
algo da sugestatildeo do acalanto do poeta claacutessico
A repeticcedilatildeo quase seguida da oclusiva t nos dois primeiros versos do excerto
acompanhada das nasais n e m deixam entrever uma fala manhosa linguagem
inicial dos pais para com a crianccedila sempre carregada de afetuosidade Aleacutem disso
destaca-se a presenccedila de dois diminutivos que reforccedilam a ideia de uma fala mais
amorosa dentro deste contexto No poema de Gonzaga o jogo sonoro remete-nos agrave
cena que estaacute sendo descrita agrave imagem da matildee conversando com seu filho
A figuratividade eacute portanto uma categoria descritiva que ligada agrave teoria
esteacutetica abarca o figurativo e o natildeo-figurativo (ou abstrato) este uacuteltimo sempre
73
apareceraacute revestido por figuras que o particularizam Nesse sentido no processo de
estruturaccedilatildeo de um texto encontramos o niacutevel da figuraccedilatildeo em que um tema ou seja
um discurso abstrato eacute convertido em figuras e tambeacutem o niacutevel da iconizaccedilatildeo em
que as figuras utilizadas no discurso teriam o poder de se transformar em imagens do
mundo provocando uma ilusatildeo ou impressatildeo referencial que eacute definida como sendo
ldquo[] o resultado de um conjunto de procedimentos mobilizados para produzir efeito de
sentido ldquorealidade []rdquo (GREIMAS COURTEacuteS 2011 p 251)
Como observa Bertrand (2003 p 154) a figuratividade ldquosugere
espontaneamente a semelhanccedila a representaccedilatildeo a imitaccedilatildeo do mundo pela
disposiccedilatildeo das formas numa superfiacutecierdquo Assim um texto classificado como figurativo
vale-se de figuras capazes de representar verbal ou visualmente uma figura do
mundo natural O efeito sugerido por essa representaccedilatildeo pode transmitir ao leitor a
ideia de ldquorealidaderdquo ldquoirrealidaderdquo ou ateacute mesmo ldquosurrealidaderdquo - efeitos especiacuteficos
gerados pelo texto por meio de estrateacutegias discursivas e que satildeo capazes de criar
impressotildees referenciais
Sobre isso Bertrand (2003 p 157) afirma que
A figuratividade se define como todo conteuacutedo de um sistema de
representaccedilatildeo verbal visual auditivo ou misto que entra em
correlaccedilatildeo com uma figura significante do mundo percebido quando
ocorre sua assunccedilatildeo pelo discurso
Logo eacute pertinente observar o modo como as figuras presentes em um texto
podem gerar ilusotildees da realidade produzindo imagens capazes de representar o
mundo natural concreto
De acordo com o conceito de representaccedilatildeo aqui sugerido a figuratividade
incorporaria a criaccedilatildeo de um simulacro com a aparecircncia de verdadeiro estabelecendo
uma noccedilatildeo interdiscursiva entre a realidade e o texto literaacuterio Com vistas agrave dimensatildeo
enunciativa e figurativa da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica em Virgiacutelio foram
selecionados trechos representativos das trecircs obras em que o revestimento particular
da linguagem poeacutetica ganha relevo em que a funccedilatildeo poeacutetica portanto eacute dominante
Ao colocar em destaque a vocaccedilatildeo imageacutetica a poeticidade dos textos o
trabalho apoia-se portanto na noccedilatildeo de figuratividade e procura avaliar o modo como
as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida apresentam e combinam temas e figuras
Busca-se entender portanto os estilos (singelo meacutedio e grandiloquente) como efeitos
de sentido que configuram cenaacuterios de atuaccedilatildeo especiacuteficos
74
ldquoEnquanto manifestaccedilatildeo privilegiada do mais alto poder expressivo que
uma liacutengua pode alcanccedilar versos satildeo o testemunho irretorquiacutevel seja de
soacutelidas construccedilotildees neles plasmadas seja do proacuteprio sistema virtual
que as trouxe agrave vida Este fica por tal modo igualmente imortalizado
graccedilas agrave realizaccedilatildeo plaacutestica e riacutetmica que faculta ao sistema virtualrdquo
(Lima 2003 p100)
ldquoO poema sem deixar de ser palavra e histoacuteria transcende a histoacuteriardquo
(Octavio Paz 2012 p 31)
75
5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises
51 BUCOacuteLICA V ldquoMOPSO E MENALCAS OS PASTORES
CANTADORESrdquo
Figura 5 ndash Mopso e Menalcas
Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p 465
76
MENALCAS
Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo
tu calamos inflare leuis ego dicere uersus
hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
MOPSVS
Tu maior tibi me est aequom32 parere Menalca
siue sub incertas Zephyris motantibus umbras
siue antro potius succedimus Aspice ut antrum 5
siluestris raris sparsit labrusca racemis
MENALCAS
Montibus in nostris solus tibi certat Amyntas
MOPSVS
Quid si idem certet Phoebum superare canendo
MENALCAS
Incipe Mopse prior si quos aut Phyllidis ignis 10
aut Alconis habes laudes aut iurgia Codri
incipe pascentis seruabit Tityrus haedos
MOPSVS
32 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aequum Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1967
77
Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi
carmina descripsi et modulans alterna notaui
experiar tu deinde iubeto certet Amyntas 15
MENALCAS
Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae
puniceis humilis quantum saliunca rosetis
iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas
Sed tu desine plura puer successimus antro
MOPSVS
Exstinctum Nymphae crudeli funere Daphnim33 20
flebant (uos coryli testes et flumina Nymphis)
cum complexa sui corpus miserabile nati
atque deos atque astra uocat crudelia mater
Non ulli pastos illis egere diebus
frigida Daphni boues ad flumina nulla neque34 amnem 25
libauit quadrupes nec graminis attigit herbam
Daphni 35tuom Poenos etiam ingemuisse leones
interitum montesque feri siluaeque loquontur36
Daphnis et Armenias curru subiungere tigris
instituit Daphnis thiasos inducere37 Bacchi 30
et foliis lentas intexere mollibus hastas
Vitis ut arboribus decori est ut uitibus uuae
33 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin 34 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nec 35 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 36 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se loquuntur 37 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se et ducere
78
ut gregibus tauri segetes ut pinguibus aruis
tu decus omne tuis Postquam te fata tulerunt
ipsa Pales agros atque ipse reliquit Apollo 35
Grandia saepe quibus mandauimus hordea sulcis
infelix lolium et steriles nascuntur auenae
pro molli uiola pro purpureo narcisso
carduos38 et spinis surgit paliurus acutis
Spargite humum foliis inducite fontibus umbras 40
pastores (mandat fieri sibi talia Daphnis)
et tumulum facite et tumulo superaddite Carmen
DAPHNIS EGO IN SILVIS HINC VSQUE AD SIDERA NOTVS
FORMOSI PECORIS CVSTOS FORMOSIOR IPSE
MENALCAS
Tale tuom carmen nobis39 diuine poeta 45
quale sopor fessis in gramine quale per aestum
dulcis aquae saliente sitim restinguere riuo
Nec calamis solum aequiperas sed uoce magistrum
fortunate puer tu nunc eris alter ab illo
Nos tamen haec quocumque modo tibi nostra uicissim 50
dicemus Daphnim40que tuom41 tollemus ad Astra
Daphnim42 ad Astra feremus amauit nos quoque Daphnis
MOPSVS
An quicquam nobis tali sit munere maius
38 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se carduus 39 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se ldquoTale tuum nobis carmenrdquo 40 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphin 41 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 42 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin
79
Et puer ipse fuit cantari dignus et ista
iam pridem Stimichon laudauit carmina nobis 55
MENALCAS
Candidus insuetum miratur limen Olympi
sub pedibusque uidet nubes et sidera Daphnis
Ergo alacris siluas et cetera rura uoluptas
Panaque pastoresque tenet Dryadasque puellas
Nec lupus insidias pecori nec retia ceruis 60
ulla dolum meditantur amat bonus otia Daphnis
Ipsi laetitia uoces ad sidera iactant
intonsi montes ipsae iam carmina rupes
ipsa sonant arbusta laquo Deus deus ille Menalca raquo
Sis bonus o felixque tuis En quattuor aras 65
ecce duas tibi Daphni duas altaria Phoebo
Pocula bina nouo spumantia lacte quotannis
craterasque duo statuam tibi pinguis oliui
et multo in primis hilarans conuiuia Baccho
ante focum si frigus erit si messis in umbra 70
uina nouom43 fundam calathis Ariusia nectar
Cantabunt mihi Damoetas et Lyctius Aegon
saltantis Satyros imitabitur Alphesiboeus
Haec tibi semper erunt et cum sollemnia uota
reddemus Nymphis et cum lustrabimus agros 75
Dum iuga montis aper fluuios dum piscis amabit
dumque thymo pascentur apes dum rore cicadae
semper honos nomenque tuom44 laudesque manebunt
43 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nouum 44 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum
80
Vt Baccho Cererique tibi sic uota quotannis
agricolae facient damnabis tu quoque uotis 80
MOPSVS
Quae tibi quae tali reddam pro carmine dona
Nam neque me tantum uenientis sibilus Austri
nec percussa iuuant fluctu tam litora nec quae
saxosas inter decurrunt flumina uallis
MENALCAS
Hac te nos fragili donabimus ante cicuta 85
haec nos laquo Formosum Corydon ardebat Alexim45 raquo
haec eadem docuit laquo Cuium pecus an Meliboei raquo
MOPSVS
At tu sume pedum quod me cum saepe rogaret
non tulit Antigenes (et erat tum dignus amari)
formosum paribus nodis atque aere Menalca 90
45 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Alexin
81
52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo
V
Menalcas
Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar
os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre
os olmeiros46 misturados agraves aveleiras47
Mopso
Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo das
sombras incertas dos Zeacutefiros48 agitados ou melhor em uma gruta sigamos Vecirc como
a videira49 silvestre cobriu-a com cachos raros
Menalcas
Em nossos montes soacute Amintas50 disputa contigo
Mopso
Quecirc se o proacuteprio Amintas cantando se esforccedilaria para superar Febo51
46Olmeiro (ou Ulmeiro) aacutervore de grande porte que pode alcanccedilar ateacute 30m de altura sendo portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra 47 Aveleira aacutervore mediterracircnica 48Zeacutefiro Vento oeste responsaacutevel pela brisa suave 49Videira silvestre alusatildeo a Baco o deus do vinho Composiccedilatildeo do locus amoenus 50Amintas pastor e haacutebil muacutesico assim como Mopso e Menalcas 51Febo epiacuteteto para Apolo o deus-sol Filho de Juacutepiter e Latona eacute irmatildeo gecircmeo de Diana a deusa da caccedila Costuma ser lembrado como protetor das artes
82
Menalcas
Comeccedila Mopso primeiro jaacute que tens aquelas chamas de Fiacutelis52 os louvores
de Alcatildeo53 e as disputas de Codro54 Comeccedila Tiacutetiro55 guardaraacute os cabritos que
pastam
Mopso
Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na
casca verde de uma faia56 tu em seguida mandai que Amintas dispute comigo
Menalcas
Assim como o flexiacutevel salgueiro57 cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo
ceacuteltico58 cede agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti
Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta
Mopso
52 Fiacutelis princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado (Demoofonte rei dos atenienses) enforcou-se e foi transformada em amendoeira Conta-se que quando o esposo retornou e soube do ocorrido abraccedilou-se agrave aacutervore que ao perceber o retorno do amado passou a produzir folhas Fiacutelis tambeacutem eacute um nome de pastora que aparece como amada de Dametas e Menalcas na Eacutegloga III bem como de Tiacutersis na Eacutegloga VII 53Alcatildeo companheiro de Heacutercules haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu filho sem o ferir O louvor a Alcatildeo deixa entrever os elogios aos seus feitos natildeo sendo estranho ao gecircnero bucoacutelico pois tambeacutem se cantaraacute posteriormente os feitos do pastor Daacutefnis 54Codro rei ateniense que humildemente sacrificou-se pela paacutetria 55Tiacutetiro pastor 56A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos 57Salgueiro aacutervore de folhas longas 58 Nardo ceacuteltico espeacutecie de planta aromaacutetica conhecida como ldquovaleriana ceacutelticardquo
83
Morto Dafnis59 as Ninfas60 choravam com a cruel morte (voacutes aveleiras e rios
sois testemunhas das Ninfas) quando miseravelmente a matildee abraccedilada ao corpo do
filho chama de crueacuteis os deuses e os astros
Naqueles dias ningueacutem levou os bois para os pastos e para as frescas correntes
oacute Daacutefnis nenhum cavalo provou a aacutegua nem tocou as ervas do pasto
Os montes bravios e os bosques dizem que ateacute os leotildees cartagineses61 choraram
a tua morte Daacutefnis
Daacutefnis foi quem ensinou prender os tigres armecircnios62 no carro Daacutefnis conduziu
as danccedilas de Baco63 e cobriu as maleaacuteveis lanccedilas64 com delicadas folhas
Como as videiras satildeo as gloacuterias para as aacutervores como as uvas satildeo para as
videiras como os touros satildeo para os rebanhos como as searas satildeo para os feacuterteis
campos tu Daacutefnis eacutes a gloacuteria para todos os teus A proacutepria Pales65 e o proacuteprio Apolo66
deixaram os campos depois que os fados te levaram
Nos sulcos em que jogamos tantas vezes a cevada as aveias esteacutereis e o joio
improdutivo nascem Em lugar da delicada violeta e do purpuacutereo narciso67 surge o
paliuacutero pontiagudo68 os cardos e os espinheiros
Espalhai folhas ao chatildeo levai sombras agraves fontes pastores (Daacutefnis manda fazer
isto para si) e fazei um tuacutemulo e no tuacutemulo gravai os versos
Eu sou Daacutefnis conhecido nos bosques daqui ateacute aos astros Guardiatildeo de
formoso rebanho mais formoso sou
Menalcas
Os teus versos admiraacutevel poeta satildeo para noacutes tal como eacute o sono na relva aos
cansados tal como eacute pelo calor extinguir a sede no regato de aacutegua doce Natildeo soacute
59Daacutefnis pastor por excelecircncia e ceacutelebre inventor do gecircnero bucoacutelico Filho de Mercuacuterio e de uma Ninfa da Siciacutelia nasceu em um bosque de loureiros Mopso apresenta um lsquoelogio fuacutenebrersquo ao inventor da poesia pastoril 60 Ninfas divindades que habitam os bosques campos e aacuteguas figurativizam os elementos da natureza que compotildeem o cenaacuterio bucoacutelico 61Leotildees cartagineses leotildees africanos 62Tigres armecircnios o pastor Daacutefnis aparece como espeacutecie de lsquoheroacuteirsquo civilizador 63Baco filho de Semele e Juacutepiter eacute o deus do vinho do oacutecio e do prazer 64Maleaacuteveis lanccedilas lanccedilas enfeitadas com folhas de hera usadas pelas bacantes 65Pales deusa pastoral dos campos cultivados 66Apolo deus das pastagens eacute retomado como na figura de pastor quando apascentou os rebanhos do rei Admeto 67Purpuacutereo narciso planta de flores perfumadas 68Paliuacutero pontiagudo planta espinhosa
84
igualas o mestre69 na flauta mas na voz oacute afortunado rapaz agora seraacutes um outro
como ele Mas por nossa vez cantaremos e elevaremos o teu Daacutefnis aos astros aos
astros levaremos Daacutefnis Daacutefnis tambeacutem nos amou
Mopso
Acaso haveraacute para noacutes algo maior do que semelhante daacutediva E o proacuteprio rapaz
foi digno de ser cantado e estes versos jaacute haacute muito tempo Estimicatildeo70 nos louvou
Menalcas
O cacircndido Daacutefnis admira o desconhecido limiar do Olimpo71 vecirc as nuvens e as
estrelas sob seus peacutes Por isso alegre prazer domina as florestas os campos
restantes Patilde72 os pastores e as jovens Driacuteades73 O lobo natildeo prepara ardis ao
rebanho nem as redes preparam algum engano aos cervos O bom Daacutefnis ama os
oacutecios Os proacuteprios montes agrestes com alegria proferem gritos para os astros As
proacuteprias pedras os proacuteprios bosques entoam versos Um deus ele eacute um deus
Menalcas Oacute que tu sejas bom e favoraacutevel para os teus Eis aqui quatro altares Dois
para ti oacute Daacutefnis dois mais altos para Febo Todo ano ofertarei para ti duas taccedilas
espumantes com leite fresco e duas tigelas com azeite abundante74 Sobretudo
alegrando os festins com transbordante Baco75 ante o fogo se frio estiver agrave sombra
durante colheitas Derramarei nos copos os vinhos ariuacutesos76 um fresco neacutectar
Cantaratildeo para mim Dametas77 e Eacutegatildeo de Licto78 Alfesibeu79 imitaraacute os saacutetiros80
saltitantes Estes ritos para ti sempre existiratildeo seja quando fizermos votos solenes agraves
69Mestre alusatildeo a Daacutefnis pastor e cantor por excelecircncia 70Estimicatildeo pastor 71Olimpo Monte entre a Tessaacutelia e a Macedocircnia onde se acreditava residirem os deuses oliacutempicos 72Patilde deus dos pastores da Arcaacutedia 73Driacuteades ninfas dos bosques 74Azeite abundante oferendas agrave nova entidade rural Daacutefnis aparece como mortal divinizado 75Baco vinho por metoniacutemia 76Vinho ariuacuteso vinho de um promontoacuterio em Quios ilha das Ciacuteclades 77Dametas pastor 78Eacutegatildeo pastor da ilha de Creta 79Alfesibeu pastor 80 Saacutetiros saltitantes entidades hiacutebridas figuras humanas com chifres e patas de bode Personificam a natureza selvagem e os instintos primitivos Acompanham Baco Patilde e as Ninfas
85
Ninfas seja quando purificarmos81 os campos Enquanto o javali amar os cimos do
monte enquanto o peixe amar os rios enquanto as abelhas alimentarem-se de
tomilho e as cigarras de orvalho a honra e o teu nome e os louvores sempre
permaneceratildeo Assim como a Baco e agrave Ceres82 todo ano os agricultores prestaratildeo
votos para ti Tu mesmo solicitaraacutes os votos
Mopso
O que oferecerei a ti que presente por tal canto Pois natildeo me agrada tanto o
silvo que vem do Austro83 nem as praias atingidas pela onda nem os rios que correm
entre vales pedregosos
Menalcas
Primeiro noacutes te presentearemos com esta fraacutegil flauta que nos ensinou que
ldquoCoacuteridon ardia pelo formoso Aleacutexis84rdquo bem como ldquoDe quem pertence o rebanho
Acaso eacute de Melibeu85rdquo
Mopso
E tu Menalcas recebe o cajado que eacute formoso com noacutes iguais e com bronze
o qual embora frequentemente me rogasse Antiacutegenes natildeo levou (e era entatildeo digno
de ser amado)
81 Purificaccedilatildeo dos campos celebraccedilotildees em honra de Ceres 82Ceres deusa protetora das colheitas 83Austro vento teacutepido do sul 84Aleacutexis objeto do desejo do pastor Coacuteridon (alusatildeo agrave Bucoacutelica II) 85Melibeu pastor (alusatildeo ao iniacutecio da Bucoacutelica III)
86
53 FIGURATIVIDADE NA BUCOacuteLICA V ndash anaacutelise do texto
A poesia de gecircnero bucoacutelico destina-se aos assuntos da vida campestre em
que estatildeo presentes a natureza os animais e o pastor de cabras ou ovelhas figura
recorrente e que estaacute em simbiose com o oacutecio e os prazeres do viver ruacutestico do campo
O termo boukolikaacute ldquobucoacutelicardquo em grego refere-se a cantos de boiadeiros No que diz
respeito ao termo έχλογή (eacutecloga ou eacutegloga) trata-se de um adjetivo substantivado
que significa laquoescolharaquo laquopoesia ou trecho escolhidoraquo Soacute na linguagem moderna eacute
que se comeccedilou a empregar este termo como sinocircnimo de idiacutelio isto eacute de composiccedilatildeo
pastoril (BOLEacuteO 1936 p 15) Para Boleacuteo isso se deve a uma influecircncia antiga de
uma etimologia errocircnea segundo a qual laquoeacuteclogaraquo viria de αίξ αιγός cabra e
significaria portanto qualquer coisa como laquocanto ou poema em que entram cabrasraquo
(quando eacute sabido que laquoeacuteclogaraquo vem do verbo έχ-λέγειν escolher) Hoje os dicionaacuterios
modernos referem-se ao vocaacutebulo eacutecloga como sinocircnimo de cantos dialogados entre
pastores
Seacutervio gramaacutetico latino do seacuteculo IV dC em seu In Vergilii Carmina
Commentarii tambeacutem discorre acerca da origem do poema bucoacutelico Para ele as
bucoacutelicas foram assim chamadas a partir dos guardadores de bois Seacutervio entatildeo
menciona que a origem deste tipo de poema estaacute atrelada aos hinos em louvor a Diana
e Apolo Nocircmio no tempo em que o deus apascentou os rebanhos de Admeto Seacutervio
afirma ainda que o poema bucoacutelico foi dedicado pelos pastores aos numes ruacutesticos
tais como Patilde faunos ninfas e saacutetiros
Assim na composiccedilatildeo bucoacutelica geralmente figuram os guardadores de gado
os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas que estatildeo sempre
inseridos em um cenaacuterio campesino Os pastores satildeo representados como homens
do campo que vivem singelamente e que estatildeo sempre acompanhados de seus
cajados e rebanhos Aleacutem disso no momento de oacutecio entoam cantigas inocentes na
singela flauta
Em Roma coube a Virgiacutelio as primeiras composiccedilotildees pastoris Nas Bucoacutelicas
coleccedilatildeo de poemas publicados entre 42 e 37 aC ao buscar motivos nos Idiacutelios de
Teoacutecrito poeta siracusano do Periacuteodo Heleniacutestico (seacutec III aC) tambeacutem conhecido
87
tradicionalmente como o fundador do gecircnero bucoacutelico Virgiacutelio criou ambientaccedilotildees e
personagens valendo-se de uma linguagem repleta de elementos figurativos
A tradiccedilatildeo claacutessica atribui ao siracusano Teoacutecrito a origem do poema bucoacutelico
Girard (apud BOLEacuteO 1936 p 21) ao referir-se agrave poesia pastoril grega menciona o
nome de Teoacutecrito como criador de modelos Mas nos estudos de Boleacuteo afirma-se
que seria errocircneo pensar em Teoacutecrito como uacutenico criador da poesia de gecircnero
bucoacutelico jaacute que o poeta tal como Homero vale-se de uma reminiscecircncia literaacuteria
praticada na Greacutecia Com isso ao mencionar as origens remotas da poesia bucoacutelica
Boleacuteo (1936 p 33) lembra sobre a praacutetica da agricultura (referindo-se assim ao
campo e agrave natureza em geral) e da pastoriacutecia (referindo-se agrave simpatia pelo pastor)
como elemento fundamental para a caracterizaccedilatildeo do povo siciliano e da Siciacutelia tida
pelo criacutetico como a paacutetria por excelecircncia do gecircnero da poesia pastoril Somando-se a
isso Boacuteleo menciona que a poesia bucoacutelica teve na mitologia agreste especialmente
no mito de Daacutefnis sua principal fonte
Os poemas bucoacutelicos de Virgiacutelio apresentam um cenaacuterio em que estatildeo
presentes figuras coerentes ao contexto pastoril Mas Zeacutelia de Almeida Cardoso
(1989 p 66) afirma que ldquoApesar da simplicidade dos temas a linguagem de Virgiacutelio
nas Bucoacutelicas eacute bastante rica em figuras de estilo e elementos ornamentaisrdquo Isso
mostra que a expressatildeo tradicional ldquoestilo simplesrdquo para caracterizar o gecircnero bucoacutelico
pode induzir a conclusotildees precipitadas do ponto de vista da sofisticaccedilatildeo da linguagem
empregada nos poemas Ao nos referirmos ao estilo simples em relaccedilatildeo agrave poesia
bucoacutelica de Virgiacutelio queremos com isso destacar o efeito de sentido depreendido a
partir de uma coerecircncia discursiva O estilo simples se verifica dessa forma na
expectativa gerada pela rede de figuras que eacute recorrente no discurso sendo capaz de
construir um especiacutefico efeito de sentido partindo da caracterizaccedilatildeo do tipo de
personagens e ambientaccedilatildeo proacuteprios da poesia bucoacutelica
O pastor o protagonista do cenaacuterio bucoacutelico aleacutem de se deleitar com a vida
ruacutestica do campo desfrutando do oacutecio tambeacutem participa com seu engenho e arte da
composiccedilatildeo da cena pastoril Fontenelle (apud BOLEacuteO 1936 p 59) revela assim
que o poema bucoacutelico traz um elemento muito importante o aspecto musical
O costume de fazer acompanhar a poesia de muacutesica ou melhor o haacutebito de
compor versos para serem cantados e acompanhados de um instrumento musical
natildeo era soacute peculiar agrave poesia liacuterica mas agrave poesia em geral de tal forma que antes de
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Hesiacuteodo e Piacutendaro a palavra ldquocriadorrdquo ou ldquopoetardquo era sinocircnimo de cantor de aedo []
(BOLEacuteO 1936 p 59)
Com isso os pastores na poesia de gecircnero bucoacutelico estatildeo ligados agrave terra e agrave
arte de bem dizer e portanto frequentemente aparecem como cantores Sabe-se que
o canto bucoacutelico eacute um dos elementos essenciais nos Idiacutelios pastoris de Teoacutecrito
servindo de modelo a Virgiacutelio na composiccedilatildeo das Bucoacutelicas de nuacutemero I III V VII e
IX
As bucoacutelicas iacutempares apresentam diaacutelogos de pastores com tonalidade
dramaacutetica A seacutetima bucoacutelica por exemplo vale-se de proacutelogos dirigidos ao auditoacuterio
assemelhando-se agraves comeacutedias de Plauto Assim como esta os outros poemas
tambeacutem trabalham com o apelo cecircnico revelando-se fortemente dramaacuteticas
E de Saint-Denis (apud MENDES 1997 p 144) cita algumas dessas
caracteriacutesticas e questiona a investigaccedilatildeo das Bucoacutelicas a partir da encenaccedilatildeo e da
muacutesica Com base em dados cecircnico-musicais o criacutetico procura elementos que
revelem a progressatildeo dramaacutetica que se desenvolve no cenaacuterio bucoacutelico
Para Joatildeo Pedro Mendes (1997 p144)
A muacutesica acompanha sempre a encenaccedilatildeo quer executada pela flauta dos pastores quer murmurada em surdina pela natureza envolvente quer ainda pelos recursos teacutecnicos do verso (anaacuteforas ecos ressonacircncias aliteraccedilotildees e assonacircncias no final do verso ou do hemistiacutequio)
O desafio poeacutetico de motivo liacuterico era praticado entre dois pastores O canto
dialogado constituiacutea o chamado canto amebeu ldquoque significa tomar uma coisa em
troca doutrardquo (BOLEacuteO 1936 p 61) Com o teacutermino dos cantos o pastor vitorioso
recebia um precircmio uma flauta pastoril ou um cajado por exemplo
Ao definir os antecedentes do desafio poeacutetico Luiacutes da Cacircmara Cascudo (2005)
tambeacutem menciona os versos improvisados que os romanos chamaram de
amoeboeum carmen ou seja canto amebeu que ldquoera alternado e os interlocutores
deviam responder com igual nuacutemero de versosrdquo (2005 p 185-186)
Em seu ensaio Virgiacutelio e os cantadores (2005) Mauro Mendes apresenta-nos
uma definiccedilatildeo para o concurso ou desafio poeacutetico entre pastores
Enquanto cuidavam dos rebanhos os pastores costumavam promover disputas entre si para ver quem era o melhor na arte de cantar e fazer versos Plessis sem nenhum preconceito chama a este tipo de
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disputa de ldquoconcurso poeacuteticordquo (concours poeacutetique) o qual se realizava sob a observaccedilatildeo de um juiz Iniciada a disputa os dois rivais se alternavam cantando estrofes que deviam ter o mesmo nuacutemero de versos tendo o segundo improvisador a obrigaccedilatildeo de se manter dentro do tema proposto pelo primeiro quer o contradizendo quer o enriquecendo com variaccedilotildees O primeiro improvisador (repentista) tanto podia se manter dentro de um mesmo tema durante vaacuterias estrofes quanto podia mudaacute-lo bruscamente criando assim dificuldades para o segundo Este tipo de desafio era denominado canto ldquoamebeurdquo (canto alternado) (MENDES 2005 p 16-17)
A ldquoV Bucoacutelicardquo concentra-se no canto alternado entre dois amigos pastores
Menalcas e Mopso que se encontram em um cenaacuterio campestre para juntos
celebrarem o pastor miacutetico Daacutefnis e por extensatildeo o proacuteprio gecircnero bucoacutelico De
acordo com Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 236) o canto amebeu existe neste poema
todavia em um tom muito diferente pois natildeo haacute o compromisso da aposta entre os
dois pastores-cantadores Aleacutem disso apresentam-se trechos longos elaborados
que visam o mero prazer de recitar
Logo a composiccedilatildeo do universo pastoril seraacute feita gradualmente a partir da fala
dos personagens-pastores O poema inicia-se com a fala de Menalcas (hex 1-3) que
apresenta a descriccedilatildeo do locus amoenus
MENALCAS
Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo tu calamos inflare leuis ego dicere uersus hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre os olmeiros misturados agraves aveleiras
Nestes versos Menalcas convida o pastor Mopso para sentar-se entre os
olmeiros e as aveleiras O Olmeiro (ou Ulmeiro) eacute uma aacutervore de grande porte e
portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra Era comum aos pastores no
momento de oacutecio desfrutarem da sombra de uma frondosa faia enquanto tocavam a
singela flauta Trata-se de uma temaacutetica recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico A
descriccedilatildeo do lugar apraziacutevel e favoraacutevel portanto ao canto aparece iconicamente no
hexacircmetro 3
90
Hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
Aqui nos sentamos entre os olmeiros misturados agraves aveleiras
Destaca-se deste verso o verbo ldquoconsedimusrdquo (sentamos) que estaacute entre
ldquocorylisrdquo aveleiras e ldquoulmosrdquo olmeiros figurativizando o convite que Menalcas faz a
Mopso o de que deveriam se sentar entre as aveleiras e os olmeiros Nota-se que a
disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso favorece agrave impressatildeo referencial do cenaacuterio
bucoacutelico ou seja agrave percepccedilatildeo da imagem dos dois pastores que sentados entre as
aacutervores cantam a natureza que os cerca
O efeito de sentido simples eacute depreendido aqui a partir da descriccedilatildeo do cenaacuterio
bucoacutelico O lugar elegido pelos pastores eacute o chatildeo ruacutestico de onde se aproveitaraacute a
sombra do olmeiro que se encontra perto das aveleiras Dando continuidade agrave
construccedilatildeo desse efeito temos a fala de Mopso que em resposta a Menalcas (hex
4-7) procura sugerir um outro lugar para o encontro ampliando de tal forma a
descriccedilatildeo do cenaacuterio tipicamente bucoacutelico
MOPSVS
Tu maior tibi me est aequom parere Menalca Siue sub incertas Zephyris motantibus umbras Siue antro potius succedimus Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis
Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo
das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados ou melhor em uma gruta
sigamos Vecirc como a videira silvestre a cobriu com cachos raros
Da fala de Mopso merece destaque o hexacircmetro 5
Siue Sub incertaS ZephyriS motantibuS umbraS
Seja debaixo das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados
A repeticcedilatildeo do fonema s ao longo do verso deixa entrever uma sibilacircncia
significativa pois sugere a cena que estaacute sendo descrita a de que as sombras
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proporcionadas pelas aacutervores satildeo inconstantes devido ao sopro dos ventos presente
figurativamente na repeticcedilatildeo da sibilante s O que se pode observar nesse trecho eacute
uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem em que o poeta relaciona o som ao sentido
e procura colocar em destaque agravequilo de que fala O discurso poeacutetico com isso
identifica-se com o proacuteprio referente As palavras de Joseacute Luiz Fiorin (1992 p 21)
vecircm ao encontro desse raciociacutenio
O conteuacutedo precisa unir-se a um plano de expressatildeo para manifestar-
se A expressatildeo principalmente no texto literaacuterio fornece tambeacutem
elementos dotados de valor significativo Esses elementos satildeo
basicamente os efeitos estiliacutesticos da expressatildeo ritmo aliteraccedilotildees
assonacircncias figuras de construccedilatildeo etc
Zeacutefiro eacute o vento oeste a personificaccedilatildeo do sopro sugerido pela aliteraccedilatildeo da
sibilante s no quinto hexacircmetro do poema de Virgiacutelio No quadro O Nascimento de
Vecircnus de Sandro Botticelli o sopro do Zeacutefiro permite que Vecircnus deusa do amor e da
beleza aproxime-se da Ilha de Chipre onde deveraacute ser recebida pelas Graccedilas
Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus
Fonte CUMMING Robert 1998 p 22
92
O sopro que em Virgiacutelio aparece como jogo aliterativo na concretude das
palavras dispostas no verso e na tentativa de homologaccedilatildeo do som ao sentido em
Botticelli aparece no movimento pictoacuterico sugerido pela ilusatildeo da presenccedila das ondas
no mar no manto e nos cabelos esvoaccedilantes aleacutem das flores que se desprendem
com o movimento desse sopro Enquanto Virgiacutelio extrai da palavra seu poder
figurador Botticelli exalta a plasticidade dos corpos e sugere a sensaccedilatildeo de
movimento as figuras estatildeo paradas enquanto as linhas se movimentam
Voltando agrave descriccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico da fala de Mopso ainda merecem
destaque os hexacircmetros 6 e 7
[] Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis
Vecirc como a videira silvestre cobriu a gruta com cachos raros
A disposiccedilatildeo dos sintagmas neste verso contribui para a construccedilatildeo figurativa
da cena que estaacute sendo descrita Nota-se que a videira silvestre ldquolabrusca siluestrisrdquo
estaacute entre os cachos raros ldquoraris racemisrdquo favorecendo agrave construccedilatildeo da imagem da
videira que estaacute circundada por cachos dispersos de uvas
A descriccedilatildeo do locus amoenus mais uma vez aparece na fala do pastor
remetendo-nos ao efeito de sentido simples proacuteprio da poesia bucoacutelica
No decorrer dos cantos alternados entre os amigos pastores o cenaacuterio bucoacutelico
vai sendo tecido ao abrigo de figuras que entrecruzadas favorecem agrave apreensatildeo
temaacutetica do ldquolouvor ao proacuteprio canto bucoacutelicordquo
Logo Menalcas (hex10-12) sugere a Mopso alguns temas mais elevados para
o canto bucoacutelico os louvores de Alcatildeo as disputas de Codro e a histoacuteria de Fiacutelis
afirmando que os cabritos seratildeo guardados por Tiacutetiro Alcatildeo era companheiro de
Heacutercules foi um haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu
filho sem o ferir Codro foi um rei ateniense que se sacrificou por sua paacutetria e Fiacutelis foi
uma princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado enforcou-
se e foi transformada em amendoeira Menalcas apresenta dessa forma alguns
temas um pouco mais elevados para abrir a inspiraccedilatildeo do amigo pastor Mas Mopso
se recorda da temaacutetica bucoacutelica e assim responde
93
(hex 13-15)
MOPSVS
Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi carmina descripsi et modulans alterna notaui experiar tu deinde iubeto certet Amyntas
Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na casca verde de uma faia tu em seguida mandai que Amintas dispute (comigo)
A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute
que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos
As figuras apresentadas remetem-nos portanto agrave descriccedilatildeo do espaccedilo
campestre que deve ser sempre um lugar apraziacutevel tanto ao oacutecio quanto ao canto
Aleacutem disso a fala de Mopso deixa entrever os temas singelos humildes proacuteprios da
poesia bucoacutelica o que corrobora para a construccedilatildeo do efeito de sentido simples
Menalcas nos hexacircmetros 16 a 19 cita outros elementos que compotildeem o
espaccedilo bucoacutelico e em seguida entra na gruta com Mopso
MENALCAS
Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae puniceis humilis quantum saliunca rosetis iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas Sed tu desine plura puer sucessimus antro
Assim como o flexiacutevel salgueiro cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo ceacuteltico (cede) agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta
O salgueiro citado por Menalcas eacute um arbusto de folhas delgadas com longos
e flexiacuteveis ramos que serviam para a confecccedilatildeo de cestas e outros objetos de uso
rural A oliveira no pequeno excerto ganha o epiacuteteto de paacutelida Isso se deve agrave cor de
sua folhagem jaacute que nos olivais prevalece o tom cinza As figuras apresentadas na
94
fala dos pastores ao tecer um cenaacuterio bucoacutelico por meio de recorrecircncias coerentes
vatildeo criando um efeito de sentido que caracteriza o estilo simples proacuteprio da poesia
pastoril
Tendo transferido o lugar do canto das sombras incertas para a gruta
circundada por cachos de uvas os pastores iniciam o canto O lugar apraziacutevel
escolhido pelos pastores pode ser definido como um iacutendice espacial em que figuram
os elementos responsaacuteveis pela caracterizaccedilatildeo do gecircnero da poesia pastoril Aleacutem
disso nota-se que o iacutendice temporal eacute estaacutetico jaacute que o ambiente e as personagens
tecircm avidez de presente Isso eacute previsto pelo equiliacutebrio sugerido pela composiccedilatildeo de
gecircnero bucoacutelico que natildeo comporta sobressaltos ou rupturas na descriccedilatildeo do locus
amoenus e no tempo que rege as personagens Os pastores exaltam a tranquilidade
que adveacutem da natureza e a partir dela entoam seus versos
Mopso entatildeo principia a celebraccedilatildeo de Daacutefnis em uma espeacutecie de hino
fuacutenebre em que canta o modo como a natureza pranteou o inventor do canto
bucoacutelico Nos hexacircmetros de nuacutemero 20 a 44 observa-se que as Ninfas divindades
que habitam as fontes montes e campos natildeo mais seratildeo lembradas pelo lendaacuterio
cantor bucoacutelico e por isso choram a sua morte Essas divindades figurativizam os
elementos da natureza que geralmente compotildeem todo o ambiente campestre O canto
de Mopso deixa entrever que a morte de Daacutefnis eacute responsaacutevel pela quebra da ordem
natural das coisas jaacute que nenhum animal tocou a erva do pasto ou provou a aacutegua do
regato Devido agrave morte de Daacutefnis os campos tornaram-se infeacuterteis e produziram
plantas esteacutereis e com espinhos o que demonstra a tristeza do cenaacuterio bucoacutelico
Afinal
Dafnis eacute um pastor ou antes o pastor por excelecircncia [] a divindade protectora dos pastores Eacute pastor [] tem um rebanho a seu cargo leva-o a pascer aos campos Aiacute enamoram-se decircle tocircdas as coisas tocircdas as criaturas desde as inanimadas ndash as pedras as aacutervores ndash ateacute aos animais A sua presenccedila anima a proacutepria natureza que vive e sente como um ser humano(BOLEacuteO 1936 p 31-2)
No canto de Menalcas (hex 56-80) tem-se a divinizaccedilatildeo do pastor Daacutefnis jaacute
que ele seraacute cantado agrave semelhanccedila de Baco o deus do vinho e de Ceres a deusa
da colheita Enquanto no canto de Mopso a natureza se entristece com a morte do
pastor no canto de Menalcas a mesma natureza alegra-se com sua divinizaccedilatildeo uma
95
vez que o lendaacuterio pastor seraacute instituiacutedo como divindade campestre devendo ser
lembrado pelos agricultores juntamente com Baco e Ceres
De acordo com Prado (1992 p 55)
Daacutefnis eacute Daacutefnis ou ainda aquele heroacutei dos pastores da Siciacutelia que segundo a lenda inventou o canto bucoacutelico do qual se tornou depois sua figura predileta e mais filho de Hermes e de uma ninfa nasceu no vale dos montes Ereus a matildee o deu agrave luz ou o expocircs num bosque de louros donde o seu nome tendo crescido tornou-se um pastor de rebanhos bovinos que lhe aprazia apascentar cantando e tocando sua flauta de Patilde era belo a ponto de ter sido amado por seres humanos e divinos tais como Patilde Priapo as Ninfas as Musas Apolo Aacutertemis etc ainda jovem veio a morrer e toda a natureza o pranteou haacute vaacuterias versotildees acerca da forma como morreu segundo a versatildeo mais antiga a de Estesiacutecoro apaixonou-se por uma ninfa (Neide Equeneide ou Lica) que o cegou para vingar-se de uma infidelidade por algum tempo Daacutefnis confortou-se com seu proacuteprio canto mas depois num momento de desespero precipitou-se do alto de uma rocha e foi levado aos ceacuteus por Hermes os pastores passaram a oferecer-lhe sacrifiacutecios anualmente no local onde ele teria se precipitado Tal eacute a resposta mais objetiva que se pode dar acerca da identidade de Daacutefnis
Ao questionarmo-nos sobre a escolha do mito de Daacutefnis na ldquoV Bucoacutelicardquo
chegamos em Teoacutecrito jaacute que em seu Idiacutelio I ldquoencontramos o pastor Thyrsis cantando
os infortuacutenios de Daacutefnis golpeado por Afrodite por um amor irresistiacutevel porque se
gabava de ser insensiacutevel a essa classe de paixatildeo Vaacuterias passagens daquele canto
e mesmo alguns versos inteiros foram reproduzidos por Virgiacutelio na Eacutegloga Vrdquo
(PRADO 1992 p 56)
Mas vale ressaltar que no idiacutelio de Teoacutecrito Daacutefnis natildeo eacute divinizado mas sim
ao contraacuterio jaacute que ele ldquobaixa agraves profundezas do Hades ateacute submergir ou dissolver-
se nas aacuteguas do rio Estiacutegio enquanto no relato do pastor virgiliano (vs 56-80) haacute uma
longa celebraccedilatildeo do novo status de Daacutefnis como deus []rdquo (PRADO 1992 p 56
grifo do autor)
Na visatildeo de Prado (1992 p 56-57) Virgiacutelio na ldquoV Bucoacutelicardquo distancia-se da
temaacutetica teocriteana para assim construir um novo mito calcado no discurso histoacuterico
e lendaacuterio dos feitos de Ceacutesar criando com isso uma atmosfera propiacutecia ao
Cesarismo que ficaria cristalizado posteriormente na figura de Otaviano
Segundo Prado (1992) Juacutelio Ceacutesar e Daacutefnis podem ser aproximados no
discurso poeacutetico de Virgiacutelio porque ambos podem ser vistos como heroacuteis lendaacuterios
96
aleacutem do que alguns indiacutecios da histoacuteria do general romano mostram que Ceacutesar
tambeacutem foi divinizado em 42 aC pelos triuacutenviros Aleacutem disso outro intertexto que
torna possiacutevel aliar a histoacuteria lendaacuteria de Ceacutesar com a de Daacutefnis segundo o criacutetico eacute
a sucessatildeo de eventos que se seguem apoacutes a morte do imperador mas descritos em
um texto posterior nas Geoacutergicas (Canto I hex-463-488)
Nas palavras de Prado (1992 p 57)
Quando ele morreu Virgiacutelio nos conta que o sol se escondeu e o povo julgou que fosse o fim dos tempos aleacutem do sol tambeacutem deram sinais a terra as aacuteguas do mar os catildees agourentos as aves mal astradas o Etna vomitou lava ouviram-se clamores de guerra na Germacircnia os Alpes tremeram vozes ressoaram na escuridatildeo da noite e fantasmas apareceram nos bosques animais falaram rios houve que transbordaram ou suspenderam o curso de suas aacuteguas e toda sorte de estranhos acontecimentos deram lugar agrave morte desse heroacutei de Roma
Logo segundo Prado todos esses fatos lendaacuterios quando somados deixam
entrever uma apropriaccedilatildeo de um aspecto cultural e poliacutetico do tempo de Virgiacutelio
Natildeo podemos perder de vista eacute claro que ldquoos noventa hexacircmetros datiacutelicos de
Virgiacutelio que a tradiccedilatildeo dos estudos claacutessicos nos transmite sob a designaccedilatildeo de
Eacutegloga V por vezes subintitulados Daphnis em boas ediccedilotildees satildeo como os de
qualquer uma das outras nove peccedilas da coletacircnea uma fala em liacutengua latinardquo (LIMA
1992 p 59 grifo do autor)
Na visatildeo de Lima (1992) neste canto liacuterico-pastoral de Virgiacutelio deixa-se
entrever um efeito de sentido logo no iniacutecio do primeiro hexacircmetro ndash Cur non
consedimus (Por que natildeo nos sentamos) Cur eacute responsaacutevel por causa de seu
valor latino de forma de interrogaccedilatildeo pelo efeito de sentido ldquoconversa entre
interlocutoresrsquo
com que Virgiacutelio finge poeticamente incorporar a uma simples fala de pastores aquilo que eacute mais propriamente efusatildeo liacuterica ao mesmo tempo em que se torna como que natural o prolongamento dessa efusatildeo graccedilas agrave economia simulada num jogo de pergunta e resposta entre parceiros No plano fonoloacutegico cur 1) antecipa e faz ressoarem as assonacircncias em liacutequidas intensificadas jaacute no hexacircmetro seguinte 2) acentua a oposiccedilatildeo entre a leveza da flauta ruacutestica que parece comunicar-se agrave liquidez natural do seu som simbolizada no fonema [l] e uma certa dureza das vibraccedilotildees do [r] da voz humana do pastor Menalcas tu calamos inflare leuis ego dicere uersus (LIMA 1992 p 63 grifos do autor)
97
Segundo Lima (1992) Daphnis eacute o vocaacutebulo de maior recorrecircncia na ldquoV
Bucoacutelicardquo jaacute que aparece 13 vezes pois tem um relevo especial Para o criacutetico natildeo
haacute duacutevida sobre a adesatildeo entusiasta do poeta em relaccedilatildeo agrave monarquia juliana Mas
se isso deve ser interpretado ldquocomo identificaccedilatildeo pura e simples de uma obra que eacute
produto do imaginaacuterio e do talento com a ideologia dos mortais interessados no ecircxito
de um evento poliacutetico e natildeo primeiro como transfiguraccedilatildeo poeacutetica da vida em
sociedade eacute uma questatildeo de gosto e de sensibilidaderdquo (LIMA 1992 p 63-64)
Com relaccedilatildeo aos expedientes figurativos presentes no poema podem-se
destacar ainda os hexacircmetros 83 e 84 da fala de Mopso que se emociona com o
canto de Menalcas e afirma que nem as aacuteguas que descem pelo vale o deleitam tanto
[] nec quae saxosas inter decurrunt flumina uallis
nem os rios que descem por entre vales escarpados
A distribuiccedilatildeo dos vocaacutebulos contribui iconicamente para a mimetizaccedilatildeo da
cena que estaacute sendo invocada jaacute que ldquofluminardquo rios aparece figurativamente entre
ldquouallis saxosasrdquo vales escarpados Temos dessa forma a imagem do rio construiacuteda
em meio ao vale
Ao apresentar o pastor Daacutefnis lendaacuterio inventor do canto bucoacutelico como tema
principal de toda a trama de figuras a ldquoV Bucoacutelicardquo deixa entrever o tema do ldquolouvor
ao proacuteprio gecircnero pastorilrdquo que eacute revestido por figuras que simbolizam todo o universo
campestre
O estilo pensado aqui como efeito de individuaccedilatildeo construiacutedo no poema eacute
depreendido pela coerecircncia discursiva ou seja pela rede de figuras que vatildeo criando
uma expectativa do dizer A recorrecircncia figurativa potencializa dessa forma o estilo
enunciado porque ele vai aparecer como um efeito de sentido depreendido pelo
contexto do poema Na ldquoV Bucoacutelicardquo portanto temos um estilo simples construiacutedo
como efeito a partir de um cenaacuterio campesino (com uma gruta coberta por cachos de
uvas um olmeiro uma frondosa faia) o canto alternado entre dois pastores (Mopso e
Menalcas) e a menccedilatildeo a deuses que se coadunam com o ambiente campestre
(Daacutefnis Ceres)
98
Buscou-se entender assim como o arranjo de figuras presentes no poema
contribui para a construccedilatildeo da verossimilhanccedila do cenaacuterio bucoacutelico o locus amoenus
o lugar apraziacutevel destinado ao canto e ao oacutecio dos poetas-pastores Ao destacarmos
o jogo aliterativo e posicional das palavras na produccedilatildeo de impressotildees referenciais
procuramos apreender tambeacutem a forma como Virgiacutelio trama as palavras que estatildeo em
andamento no poema remetendo-nos ao sentido poeacutetico e esteacutetico do texto
99
54 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) ldquodescriccedilatildeo do lugar adequado
para as abelhasrdquo
Protinus aerii mellis caelestia dona
exsequar hanc etiam Maecenas adspice partem
Admiranda tibi leuim spetacula rerum
magnanimosque duces totiusque ordine gentis
mores et studia et populos et proelia dicam 5
In tenui labor at tenuis non gloria si quem
numina laeua sinunt auditque uocatus Apollo
Principio sedes apibus statioque petenda
quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti
ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci 10
floribus insultent aut errans bubula campo
decutiat rorem et surgentis atterat herbas
Absint et picti squalentia terga lacerti
pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolocres
et manibus Procne pectus signata cruentis 15
omnia nam late uastant ipsasque uolantis
ore ferunt dulcem nidis immitibus escam
At liquidi fontes et stagna uirentia musco
adsint et tenuis fugiens per graminha riuos
palmaque uestibulum aut igens oleaster inumbret 20
ut cum prima noui ducent examina reges
uere suo ludetque fauis emissa iuuentus
uicina inuitet decedere ripa calori
100
obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos
In medium seu stabit iners seu profluet umor 25
transuersas salices et grandia conice saxa
pontibus ut crebris possint consistere et alas
pandere ad aestiuom86 solem si forte morantis
sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus
Haec circum casiae uirides et olentia late 30
serpylla87 et grauiter spirantis copia thymbrae
floreat inriguom88que bibant uiolaria fontem
Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis
seu lento fuerint aluaria uimine texta
angustos habeant aditus nam frigore mella 35
cogit hiems eademque calor liquefacta remittit
Vtraque uis apibus pariter metuenda neque illae
nequiquam in tectis certatim tenuia cera
spiramenta linunt fucoque et floribus oras
explent conlectumque haec ipsa ad munera gluten 40
et uisco et Phrygiae seruant pice lentius Idae
Saepe etiam effosis si uera est fama latebris
sub terra fouere larem penitusque repertae
pumicibusque cauis exesaeque arboris antro
Tu tamen et leui rimosa cubilia limo 45
unge fouens circum et raras superinice frondis
86 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aestiuum Aquiacute optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1956 87 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se serpulla 88 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se inriguumque
101
neu propius tectis taxum sine neue rubentis
ure foco cancros altae neu crede paludi
aut ubi odor caeni grauis aut ubi concaua pulsu
saxa sonant uocisque ofensa resultat imago 50
Quod superest ubi pulsam hiemem sol aureus egit
sub terras caelumque aestiua luce reclusit
illae continuo saltus siluasque peragrant
purpureosque metunt flores et flumina libant
summa leues Hinc nescio qua dulcedine laetae 55
progeniem nidosque fouent hinc arte recentis
excudunt ceras et mella tenacia fingunt
Hinc ubi iam emissum caueis ad sidera caeli
nare per aestatem liquidam suspexeris agmen
obscuramque trahi uento mirabere nubem 60
contemplator aquas dulcis et frondea semper
tecta petunt Huc tu iussos adsperge sapores
trita melisphylla et cerinthae ignobile gramen
tinnitusque cie et Matris quate cymbala circum
ipsae consident medicatis sedibus ipsae 65
intima more suo sese in cunabula condent
Sin autem ad pugnam exierint ndash nam saepe duobus
regibus incessit magno discordia motu
continuoque animos uolgi89 et trepidantia bello
corda licet longe praesciscere namque morantis 70
89 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se uulgi
102
Martius ille aeris rauci canor increpat et uox
auditur fractos sonitus imitata tubarum
tum trepidae inter se coeunt pinnisque coruscant
spiculaque exacuunt rostris aptantque lacertos
et circa regem atque ipsa ad praetoria densae 75
miscentur magnisque uocant clamoribus hostem
ergo ubi uer nactae sudum camposque patentis
erumpunt portis concurritur aethere in alto
fit sonitus magnum mixtae glomerantur in orbem
praecipitesque cadunt non densior aere grando 80
nec de concussa tantum pluit ilice glandis
ipsi per medias acies insignibus alis
ingentis animos angusto in pectore uersant
usque adeo obnixi non cedere dum grauis aut hos
aut hos uersa fuga uictor dare terga subegit ndash 85
hi motus animorum atque haec certamina tanta
pulueris exigui iactu compressa quiescunt
Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo
deterior qui uisus eum ne prodigus obsit
dede neci melior uacua sine regnet in aula 90
Alter erit maculis auro squalentibus ardens
(nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore
et rutilis clarus squamis ille horridus alter
desidia latamque trahens inglorius aluom90
90 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se aluum
103
Vt binae regum facies ita corpora plebis 95
namque aliae turpes horrent ceu puluere ab alto
quom91 uenit et sicco terram spuit ore uiator
aridus elucent aliae et fulgore coruscant
ardentes auro et paribus lita corpora guttis
Haec potior suboles hinc caeli tempore certo 100
dulcia mella premes nec tantum dulcia quantum
et liquida et durum Bacchi domitura saporem
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt
contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont92
instabilis animos ludo prohibebis inani 105
Nec magnus prohibere labor tu regibus alas
eripe non illis quisquam cunctantibus altum
ire iter aut castris audebit uellere signa
Inuitent croceis halantes floribus horti
et custos furum atque auium cum falce saligna 110
Hellespontiaci seruet tutela Priapi
Ipse thymum pinosque93 ferens de montibus altis
tecta serat late circum quoi94 talia curae
ipse labore manum duro terat ipse feracis
figat humo plantas et amicos inriget imbris 115
91 Na estaccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cum 92 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se relinquunt 93 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tinosque 94 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cui
104
55 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) Traduccedilatildeo e notas
Continuadamente relatarei os dons celestes do aeacutereo mel95 Considera
tambeacutem Mecenas96 esta parte Para tua admiraccedilatildeo cantarei espetaacuteculos de breves
assuntos e em ordem magnacircnimos comandantes costumes ocupaccedilotildees povos e
combates de toda naccedilatildeo Pequeno o trabalho97 mas natildeo pequena a gloacuteria Se os
deuses contraacuterios o permitem e Apolo98 quando invocado ouve
Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que
natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem
as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo
agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes
Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos99 de ouriccedilados dorsos das feacuterteis
moradas e os melharucos100 outras aves e Procne101 marcada no peito com crueacuteis
matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes102
alimento doce para agrestes ninhos
Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos um
tecircnue riacho fluindo pela relva uma palmeira ou um alto zambujeiro103 sombreie o
vestiacutebulo104 para que quando os novos reis105 conduzirem os primeiros enxames de
abelhas em sua primavera106 e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma
margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com
folhagens hospitaleiras
No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados
salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir
95O mel era visto pelos antigos como um orvalho celeste 96Mecenas o patrono das artes na eacutepoca do reinado de Otaacutevio Augusto 97Trata-se de um assunto humilde Evidencia-se aqui a modeacutestia do tema 98Apolo o deus das artes 99Diz-se que o lagarto fica agrave espreita na entrada das colmeias sendo um de seus inimigos 100Melharuco (ou abelharuco) ave do tamanho de um sabiaacute que se nutre das abelhas e outros insetos 101Procne esposa de Tereu e irmatilde de Filomela Foi transformada em andorinha apoacutes matar o filho e servi-lo ao marido Diz-se que a mancha no peito da andorinha satildeo as marcas do sangue de Iacutetis 102 abelhas 103Zambujeiro oliveira brava 104 A entrada da colmeia 105Segundo o pensamento da eacutepoca as abelhas eram governadas por reis 106O adjetivo possessivo presente em ldquoVere suordquo indica que a primavera eacute a estaccedilatildeo das abelhas sendo mais favoraacutevel a elas
105
as asas ao sol de estio se por acaso Euro107 impetuoso tiver molhado ou submergido
em Netuno108 as que tardam
Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas109 e cheirosos serpotildees110
ao longe e uma abundacircncia de segurelha111 exalando fortemente e que os canteiros
de violetas bebam a uacutemida fonte
Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas
corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas
entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos112
Uma e outra forccedila igualmente deve ser temida pelas abelhas e natildeo sem motivo
agrave porfia113 elas revestem com cera114 as pequenas fendas de suas habitaccedilotildees e
vedam as extremidades com visco e flores e reunida para esses mesmos serviccedilos
[elas] conservam uma cola mais pegajosa do que o visgo e o pez do Ida Friacutegio115
Muitas vezes tambeacutem se eacute verdadeira a fama as abelhas aqueceram o lar em
tocas sob a terra e foram descobertas no interior de pedras porosas e na cavidade
de uma aacutervore carcomida116
Tu poreacutem unta as colmeias cheias de fenda com liso limo aquecendo ao
redor e lanccedila por cima raras117 folhagens E natildeo permitas o teixo perto dos tetos natildeo
queimes ao fogo os vermelhos caranguejos118 natildeo creias em profunda lagoa ou onde
eacute forte o odor da lama ou onde cocircncavas pedras ressoam com uma batida e resulta
o eco repercutido da voz119
107Euro vento do Leste capaz de alcanccedilar as abelhas perdidas (as que tardam) 108Netuno deus romano que preside os mares aqui representa a proacutepria agua 109 Manjerona planta aromaacutetica usada como condimento 110Serpatildeo (ou serpilho) planta aromaacutetica de pequeno porte 111Segurelha erva aromaacutetica planta ornamental tambeacutem usada como condimento 112Os excessos de calor e frio danificam o mel 113 As abelhas trabalham incansavelmente 114As abelhas revestem o interior das colmeias com proacutepolis O termo cera indica a qualidade do proacutepolis substacircncia escura e dura 115Ida friacutegio o monte Ida localizado na Friacutegia antiga regiatildeo no Oeste da Aacutesia Menor 116Diz-se que as abelhas tambeacutem se alojam em esconderijos em cavadas rochas ou nos buracos de aacutervores 117As folhagens natildeo devem ser muito longas pois o ar deve circular entre os ramos 118 Haacute diferentes remeacutedios que satildeo compostos com os caranguejos em brasa mas o odor desta preparaccedilatildeo eacute nocivo agraves abelhas 119As colmeias devem ser instaladas longe do barulho onde natildeo haacute mais eco
106
Quanto ao mais quando o aacuteureo sol expulsou o abatido inverno sob as terras120
e abriu o ceacuteu com luz de veratildeo imediatamente as abelhas percorrem os bosques e
as florestas recolhem as purpuacutereas flores e leves libam a superfiacutecie dos rios Assim
felizes eu natildeo sei por qual doccedilura aquecem os ninhos e a progecircnie depois elas
formam com arte novas ceras e produzem os licorosos meacuteis
Aiacute quando jaacute vires uma multidatildeo saiacuteda da colmeia voar pelo liacutempido estio ateacute
os astros do ceacuteu e admirares uma nuvem escura ser trazida pelo vento contempla
buscam sempre aacuteguas doces e abrigos cobertos de folhagens Espalha tu aiacute os
aromas determinados a melissa121 triturada e a erva comum do chupa-mel122 faze
ao redor soar zumbidos123 e agita os ciacutembalos da Matildee124 As proacuteprias abelhas
pousaratildeo nos lugares preparados125 elas mesmas abrigar-se-atildeo segundo seu
costume no interior da morada126
Mas se saiacuterem ao combate (porque muitas vezes a discoacuterdia de dois reis
sobreveio com grande alvoroccedilo) de longe se podem prever os acircnimos da turba e os
coraccedilotildees que vibram pela guerra127 porque aquele som marcial do rouco bronze
estimula as morosas e a voz que imita os ruidosos sons das trombetas eacute ouvida
Entatildeo agitadas entre si confrontam-se e batem as asas e afiam os ferrotildees com os
bicos e preparam as garras numerosas misturam-se ao redor do rei e ao mesmo
pretoacuterio o inimigo invocam com grandes clamores No momento em que tenham
encontrado clara primavera e descortinados campos lanccedilam-se pelas portas
combate-se Um barulho ressoa no alto ceacuteu misturadas aglomeram-se em um grande
orbe e caem precipitadas O granizo natildeo cai mais denso do ar nem tatildeo grande nuacutemero
de bolotas chove da sacudida azinheira
Os proacuteprios [reis] insignes pelas asas128 em meio aos exeacutercitos revolvem no
pequeno peito os ingentes acircnimos obstinados em natildeo ceder ateacute que o duro vencedor
120O inverno esconde-se nas entranhas da terra 121Mellisa folha para as abelhas ou para o mel 122 Chupa-mel erva de 30 a 50 cm de altura de cor roxa ou amarela cultivada em pastagens ou solo pedregoso 123 Para Virgiacutelio o barulho atrai as abelhas 124A ldquoMatildeerdquo eacute a deusa friacutegia Cibele a grande Matildee que preside toda a natureza Muitas vezes ela eacute representada com ciacutembalos 125 As abelhas entrariam na colmeia por si proacuteprias 126 Colmeia 127 Agitaccedilatildeo que se produz no enxame com a aproximaccedilatildeo do combate 128Os reis se distinguem das demais abelhas pela luminosidade de suas asas
107
obrigou estes ou aqueles a virar as costas na fuga Estes alvoroccedilos dos acircnimos e
estes tatildeo grandes combates se apaziguam reprimidos por um jato de bem pouco
poeira
Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele
que pareceu pior para que por consumir natildeo seja prejudicial deixe que o melhor
reine na desimpedida corte
Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de
ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor
aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre
Dois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo os corpos da plebe pois
umas satildeo disformes e horrendas como o viajante sedento quando vem da espessa
poeira e cospe terra de sua garganta seca outras reluzem e cintilam com fulgor
brilhantes do ouro em corpos mosqueados de manchas iguais
Essa eacute a melhor raccedila dela na estaccedilatildeo certa do ano extrairaacutes os doces meacuteis
natildeo tatildeo doces quanto puros para corrigir o aacutespero sabor de Baco
Mas quando incertos os enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os
favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o
fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles
imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do
acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e
a tutela de Priapo129 do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua
foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado
trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor
dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele
mesmo no solo enterre as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas
129 Priapo filho de Vecircnus e Baco o deus dos jardins Juno fez com que Priapo nascesse deformado Envergonhada Vecircnus mandou-o para Lacircmpsaco cidade da Miacutesia sobre o Helesponto
108
56 FIGURATIVIDADE NO CANTO IV (hex 1-115) anaacutelise do texto
Peter Toohey em seu estudo Epic Lessons an introduction to ancient didatic
poetry (1996) debruccedila-se sobre o tema da poesia didaacutetica grega e romana
demonstrando uma possiacutevel arqueologia da esteacutetica didaacutetica O autor busca assim
por meio de uma anaacutelise comparativa de um grupo de poemas uma certa regularidade
que segundo ele eacute caracteriacutestica da poesia didaacutetica Toohey observou as
composiccedilotildees de Hesiacuteodo Xenoacutefanes Parmecircnides Empeacutedocles Arato Nicandro
Ciacutecero Lucreacutecio Virgiacutelio Oviacutedio e Horaacutecio Segundo o criacutetico todos estes poetas
apresentam alguns traccedilos comuns tais como 1) uma voz forte singular e persuasiva
jaacute que segundo Toohey a poesia didaacutetica requer a presenccedila de uma voz direcionada
a um destinataacuterio 2) um assunto que seja atraente ou sensacional 3) o tipo de verso
pois para o autor o hexacircmetro datiacutelico seria um protoacutetipo da poesia didaacutetica 4) a
simplicidade conceitual e por fim 5) a extensatildeo referindo-se aos 828 versos de O
trabalho e os dias de Hesiacuteodo que se tornou segundo Toohey um modelo para um
livro de versos didaacuteticos
Tendo em vista que ldquotoda obra supotildee o horizonte de uma expectativa ou seja
um conjunto de regras preexistentes para orientar a compreensatildeo do leitor (do
puacuteblico) e permitir-lhe uma recepccedilatildeo apreciativardquo (JAUSS apud LIMA 1983 p 268)
nossa tarefa eacute a de pensar qual seria a expectativa de um discurso que se pretende
didaacutetico
O termo ldquodidaacuteticardquo remete-nos a um contexto de ensino-aprendizagem De
origem grega o termo eacute da famiacutelia do verbo διδάσκω cujo sentido principal eacute ldquofazer
aprender ensinar instruirrdquo
Desde Hesiacuteodo (750 - 650 aC) adotou-se o hexacircmetro datiacutelico como metro
convencional da poesia de gecircnero didaacutetico Todavia Oviacutedio (43 aC -18 dC) utiliza o
diacutestico elegiacuteaco em seus poemas Ars amatoria Medicamina faciei feminae e Remedia
amoris Estes textos colocaram alguns problemas agrave criacutetica tradicional pois satildeo obras
que mesclam caracteriacutesticas que satildeo proacuteprias da poesia didaacutetica com a poesia
elegiacuteaca Haacute por isso estudiosos que apresentam duacutevidas quanto agrave categorizaccedilatildeo
dessas obras ovidianas como pertencentes ao gecircnero da poesia didaacutetica sobretudo
a Ars amatoria e Remedia amoris O que se verifica eacute que uma variada gama de
109
intenccedilotildees didaacuteticas faz com que haja diferenccedilas em maior ou menor grau entre os
diferentes poemas didaacuteticos
Houve por isso vaacuterias tentativas por parte dos criacuteticos em criar uma taxonomia
do gecircnero da poesia didaacutetica130
Seacutervio no seacutec IV dC utiliza no iniacutecio do seu comentaacuterio agraves Geoacutergicas de
Virgiacutelio uma palavra de origem grega - didascalice - para se referir agrave poesia didaacutetica
et hi libri didascalici sunt unde necesse est ut ad aliquem scribantur nam praeceptum et doctoris et discipuli personam requirit unde ad Maecenatem scribit sicut Hesiodus ad Persen Lucretius ad Memmium Estes livros [das Geoacutergicas] satildeo didascaacutelicos por isso a necessidade de que para algueacutem sejam escritos uma vez que o preceito requer a pessoa do mestre e do disciacutepulo [Virgiacutelio] escreve para Mecenas
assim como Hesiacuteodo para Perses e Lucreacutecio para Mecircmio
Assim Virgiacutelio compocircs as Geoacutergicas entre 37 e 29 aC Segundo a tradiccedilatildeo dos
Estudos Claacutessicos a obra apresenta conteuacutedo instrucional sobre agricultura segundo
os pressupostos da poesia didaacutetica Algumas caracteriacutesticas do texto virgiliano dentre
elas o caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a
presenccedila de uma voz poeacutetica didaacutetica que se presta agrave instruccedilatildeo colaboraram para a
particularizaccedilatildeo da obra como gecircnero didaacutetico (TOOHEY 1996 p 15)
Sobre os modelos literaacuterios seguidos por Virgiacutelio sabe-se que as fontes satildeo
sobretudo gregas Hesiacuteodo Xenofonte Arato e Nicandro mas se constatam tambeacutem
as fontes latinas Catatildeo Varratildeo e Lucreacutecio (SANTOS 2007 p 23)
No que concerne agrave poesia didaacutetica e agrave literatura agraacuteria latina Aguilar (2006 p
247) assim expotildee
Por Literatura Agronoacutemica o Agriacutecola en el panorama literario greco-romano se entiende el conjunto de obras que tienen por objeto la exposicioacuten preceptiva de las labores y los trabajos propios de la vida en el aacutembito rural del ager y por tanto del hombre rusticus en oposicioacuten al urbanus Desde esta perspectiva se compreende sin problemas que las obras latinas De agricultura no se circunscriben estrictamente a la agricultura entendida soacutelo en sentido moderno como arte de cultivar la tierra sino que engloben tambieacuten otros
130 Conferir A Dalzell R Martin - J Gaillard Les genres litteacuteraires agrave Rome (Paris 1990) 199-200 Peter Toohey Epic lessons An introduction to ancient didactic poetry (London-New York 1996) Roy K Gibson lsquoDidactic poetry as lsquopopularrsquo form study of imperatival expressions in Latin didactic verse and prosersquo 67-69 In Catherine Atherton (ed) Form and content in didactic poetry (Bari 1997)
110
trabajos y atividades caracteriacutesticos de la economiacutea rural (la res rustica) como la arboricultura la ganaderiacutea la avicultura la apicultura o la administracioacuten misma de la uilla la finca en suelo ruacutestico (AGUILAR 2006 p247)
No Canto I das Geoacutergicas Virgiacutelio menciona a importacircncia do trabalho e a luta
obstinada com a terra No Canto II cantam-se as aacutervores e as vinhas e eacute destacado
o campo como um lugar de felicidade tranquila A terra produz frutos em troca do
esforccedilo despendido pelo homem O Canto III apresenta a raccedila dos animais e as artes
de criaccedilatildeo do gado e no Canto IV Virgiacutelio apresenta a apicultura em um quadro
agriacutecola
Na visatildeo de Elaine C Prado dos Santos (2007 p26)
Com os quatro cantos plantas aacutervores animais e abelhas o poema permite visualizar a gradaccedilatildeo dos niacuteveis da vida diferentes e hierarquizados mostrando que as criaturas se diferenciam Essa ideia eacute compatiacutevel com a filosofia epicurista ou seja agrave medida que se sobe na escala dos seres as criaturas vatildeo se diferenciando pois os organismos ficam mais complexos e compreendem um nuacutemero maior de aacutetomos diferenciados em combinaccedilotildees mais variadas
Vale ressaltar que ao compor um poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo
quis apenas transmitir alguns conhecimentos teacutecnicos sobre os trabalhos do campo
Se a criacutetica da obra virgiliana se prendesse apenas a esse aspecto temaacutetico
classificaria a obra do poeta mantuano como uma espeacutecie de tratado teacutecnico de
agronomia todavia as Geoacutergicas vatildeo muito aleacutem de um simples compecircndio de
aplicaccedilatildeo praacutetica sobre meacutetodos a serem seguidos na agricultura Aliaacutes dentro dos
preceitos uacuteteis e praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas
aqueles que se coadunam com a finalidade artiacutestica Essa seleccedilatildeo eacute portanto
significativa jaacute que estabelece a diferenccedila existente entre a poesia didaacutetica e os
tratados teacutecnicos sobre agricultura
O fiacuteloacutesofo e escritor Secircneca (4 aC-65 dC) tambeacutem opinou acerca da obra
virgiliana afirmando que ldquoO nosso poeta aliaacutes cuidava menos da verdade que da
beleza literaacuteria interessado como estava em proporcionar prazer aos seus leitores e
natildeo em dar liccedilotildees aos homens do campo rdquo (SEcircNECA 2004 p400)
O excerto do ldquoCanto IVrdquo das Geoacutergicas hexacircmetros de 1 a 115 aqui
selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise tem como tema principal a apicultura
mais precisamente a descriccedilatildeo do lugar adequado e seguro para as abelhas
111
Virgiacutelio nos hexacircmetros 1 a 7 faz uma invocaccedilatildeo a Mecenas o patrono das
letras e posteriormente nos hexacircmetros de 8 a 32 fala da situaccedilatildeo das colmeias e
da condiccedilatildeo necessaacuteria para se mantecirc-las em seguranccedila hexacircmetros 33 a 50
Menciona-se ainda o que deve ser feito pelo apicultor com a saiacuteda das abelhas para
pilhar enxamear ou combater hexacircmetros de 51 a 87 Posteriormente eacute destacada a
escolha dos reis quando duas satildeo as espeacutecies das abelhas hexacircmetros 88 a 102 e
como reter as abelhas em um jardim florido hexacircmetros 103 a 115 Seguindo o
pressuposto da poesia didaacutetica o de instruir Virgiacutelio discorre sobre o modo como se
deve cuidar das abelhas No entanto o modo como trama o texto deixa entrever um
trabalho artiacutestico primoroso com a linguagem
O estilo das Geoacutergicas eacute o meacutedio pois a obra trata de assuntos considerados
moderados destinados aos trabalhos no campo do cuidado para com as aacutervores e
plantas da criaccedilatildeo de animais de meacutedio e grande porte e por fim da apicultura Os
temas e figuras apresentados coadunam-se com um tom didaacutetico de ensinamento
Todavia o poema de Virgiacutelio natildeo se restringe apenas agrave instruccedilatildeo Haacute nas Geoacutergicas
um rico trabalho com a linguagem tanto no excerto selecionado para anaacutelise como
na segunda parte do ldquoCanto IVrdquo em que se tem a narrativa sobre Orfeu no mundo
inferior para resgatar a amada Euriacutedice (hex315-558) Deve-se levar em conta que
nas Geoacutergicas muito aleacutem de ldquoinstruirrdquo em um estilo meacutedio e portanto em um tom
didaacutetico Virgiacutelio tambeacutem se utiliza de digressotildees e procura envolvecirc-las
figurativamente em sua obra Dentre as muitas digressotildees jaacute destacamos a do ldquoCanto
IIrdquo em que Virgiacutelio faz uma pausa na descriccedilatildeo do cultivo agraves vinhas (hex259-419) para
realizar um elogio agrave primavera (315-345)
Ao mencionar o estilo meacutedio mediocris stylus fazemos alusatildeo agrave classificaccedilatildeo
feita pelos gramaacuteticos latinos em relaccedilatildeo agraves Geoacutergicas Enquanto as Bucoacutelicas
apresentam-se em um estilo simples humilis stylus tratando de assuntos destinados
ao pastor de cabra ou ovelhas as Geoacutergicas instruem o trabalho e o cultivo do campo
apresentando assuntos considerados moderados Entendemos com isso que os
temas e figuras que aparecem nas duas obras diferem quanto agrave sua funcionalidade
no texto Nos poemas bucoacutelicos encontramos quase sempre uma tematizaccedilatildeo
referente ao louvor do campo e da natureza de modo geral como vimos na ldquoBucoacutelica
Vrdquo Todas as figuras apresentadas nos poemas pastoris portanto coadunam-se com
a ideia de celebraccedilatildeo do ambiente campestre Jaacute nos poemas didaacuteticos das Geoacutergicas
o cenaacuterio ainda eacute o campo mas na tematizaccedilatildeo satildeo apresentadas a importacircncia do
112
trabalho e as diferentes teacutecnicas de cultivo As figuras didaacuteticas alinham-se assim
com o motivo da obra o de instruir
Tendo em vista que o estilo eacute um traccedilo diferencial depreensiacutevel no discurso
podemos afirmar que nas Geoacutergicas portanto a recorrecircncia figurativa que nos
transmite assuntos agriacutecolas por meio da voz de um magister deixa entrever um efeito
de individuaccedilatildeo proacuteprio da poesia didaacutetica o de instruir que permite assim a
manifestaccedilatildeo do estilo meacutedio Pensando-se na recorrecircncia figurativa presente nas
Geoacutergicas destacam-se No Canto I (hex 42-203) as figuras que nos remetem ao
trabalho para o cultivo dos cereais no Canto II (hex 9-258) destacam-se diferentes
tipos de cultivo o das plantas em geral bem como das videiras (hex 259-419) e o de
outras plantas de particular interesse como a oliveira e a macieira (hex420-540) No
Canto III menciona-se a criaccedilatildeo do gado de grande e pequeno porte (hex 49-283 e
284-566) e no Canto IV fala-se da criaccedilatildeo de abelhas e sua natureza (8-280)
No excerto selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise (Canto IV hex 1-115)
tem-se a descriccedilatildeo de um lugar seguro para as abelhas se alojarem Descreve-se
entatildeo uma espeacutecie de paraiacuteso terrestre lugar onde os ventos natildeo sopram as cabras
e ovelhas natildeo saltam a vaca natildeo esmaga as flores e os animais nocivos lagartos e
andorinhas estatildeo distantes Aleacutem disso as colmeias satildeo construiacutedas com meticuloso
cuidado contra os excessos do clima e de outros perigos (SANTOS 2007 p 33)
Com isso nos hexacircmetros de 8 a 32 o leitor eacute conduzido ao lugar mais
adequado para que as abelhas possam fundar a colocircnia Satildeo mencionadas neste
pequeno trecho algumas providecircncias que devem ser tomadas para dar agraves abelhas
as condiccedilotildees necessaacuterias para a produccedilatildeo de mel
(hex 8-32) Principio sedes apibus statioque petenda quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci floribus insultent aut errans bubula campo decutiat rorem et surgentis atterat herbas Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis omnia nam late uastant ipsasque uolantis ore ferunt dulcem nidis immitibus escam At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per graminha riuos
113
palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos In medium seu stabit iners seu profluet umor transuersas salices et grandia conice saxa pontibus ut crebris possint consistere et alas pandere ad aestiuom solem si forte morantis sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem
Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes alimento doce para agrestes ninhos Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames de abelhas em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir as asas ao sol de estio sepor acaso Euro impetuoso tiver molhado ou submergido em Netuno as que tardam Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e cheirosos serpotildees ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte
Os cinco primeiros versos do trecho selecionado para anaacutelise (hex 8-12)
trazem a imagem dos ventos que dificultam o trabalho das abelhas pois impedem que
elas carreguem os alimentos para a colmeia aleacutem disso o excerto traz as imagens
dos animais domeacutesticos que causam perturbaccedilatildeo no habitat (as ovelhas os bodes e
a novilha) o que pode comprometer as condiccedilotildees ideais agrave produccedilatildeo de mel Em
seguida satildeo citados os lagartos e as aves predadoras (melharuco e andorinhas) que
colocam em perigo a existecircncia das proacuteprias abelhas jaacute que se alimentam delas
114
A voz poeacutetica enumera assim os elementos que podem comprometer o
trabalho e a existecircncia das abelhas apresentando-nos a partir do conteuacutedo
instrucional segundo os pressupostos do gecircnero da poesia didaacutetica um conselho
sobre apicultura Dessa forma Virgiacutelio descreve o lugar adequado e seguro para que
as abelhas possam fundar a colocircnia
Dentre os elementos que ameaccedilam a existecircncia das abelhas encontramos
Procne entre as aves predadoras
(hex 13-15)
Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis
Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos
De acordo com a mitologia Procne era filha de Pandiatildeo rei de Atenas casou-
se com Tereu e dessa uniatildeo ela teve um filho Iacutetis mas ao descobrir que o marido
havia violentado sua irmatilde (Filomela) ela mata o filho e o serve ao marido Tereu
Procne entatildeo foge com a irmatilde Mas quando Tereu descobre o crime persegue as
duas mulheres que imploram aos deuses que as poupem Filomela eacute transformada
em rouxinol e Procne em andorinha (Cf GRIMAL 2014 verbete Filomela) Dizem
que as manchas no peito da andorinha satildeo traccedilos do sangue de Iacutetis que foi morto
pela matildee e servido ao pai ldquoEsse detalhe mostra a ferocidade da andorinha e assim
ela eacute um perigo para as abelhasrdquo (SANTOS 2007 p 109)
No hexacircmetro de Virgiacutelio a menccedilatildeo agrave Procne deixa entrever uma condensaccedilatildeo
imageacutetica pois o poeta sintetiza toda a histoacuteria de Procne em uma uacutenica passagem
um uacutenico verso Ao nomear a andorinha predadora como Procne Virgiacutelio resgata o
mito e faz da palavra uma figuraccedilatildeo miacutetica concreta De acordo com Cassirer (1972
p 115) ldquoNa perspectiva maacutegica do mundo em particular o encantamento verbal eacute
sempre acompanhado pelo encantamento imageacuteticordquo o que nos leva a crer nos
expedientes expressivos evidenciados na linguagem poeacutetica Logo a ferocidade da
andorinha natildeo eacute descrita mas sugerida pela menccedilatildeo ao mito A instruccedilatildeo sobre as
aves predadores ganha relevo nessa passagem do texto
115
De acordo com o relato de Virgiacutelio um grande enxame de abelhas segue o rei
para procurar uma nova casa e assim fundar a colocircnia Segundo o pensamento da
eacutepoca as abelhas eram governadas por reis e natildeo por rainhas (SANTOS 2007 p
110)
(Hex 18-24)
At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per gramina riuos palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos
Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames [de abelhas] em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras
O enxame assim deve pousar para se reagrupar em um lugar seguro longe
de ventos e tempestades pois a mudanccedila climaacutetica torna o trabalho das abelhas
impossiacutevel jaacute que elas natildeo satildeo adaptaacuteveis para voar no frio ou na chuva e precisam
de energia para enfrentar o mau tempo Confirmado o local seguro para abrigar a
colmeia longe da ferocidade de predadores lagartos andorinhas e outras aves o
proacuteximo passo eacute esquivar-se do calor pois o sol em excesso prejudica o trabalho
das abelhas O local ideal portanto deve ser o sombreado Eacute importante que em torno
das colmeias haja muitas aacutervores e folhas com capacidade de protegecirc-las das rajadas
fortes de vento e aleacutem disso a presenccedila de aacutegua eacute importante pois ela ajuda na
polinizaccedilatildeo das flores
De acordo com Huizinga em Homo Ludens (1971 p 149)
O que a linguagem poeacutetica faz eacute essencialmente jogar com as palavras Ordena-as de maneira harmoniosa e injeta misteacuterio em cada uma delas de modo tal que cada imagem passa a encerrar a soluccedilatildeo de um enigma
Levando em conta tais apontamentos merece destaque a seguinte passagem
116
(hex 19)
[] et tenuis fugiens per gramina riuos E um tecircnue riacho fluindo pela relva
Neste verso a ideia de que um tecircnue riacho passa pela relva fluindo por ela eacute
icocircnica jaacute que os termos ldquotecircnuerdquo (tenuis) e ldquoriachordquo (riuos) circundam a expressatildeo ldquoper
graminardquo (pela relva) deixando entrever o arranjo artiacutestico da linguagem poeacutetica
Como se vecirc haacute um jogo poeacutetico com as palavras um arranjo estrutural que nos suscita
uma imagem Com base no raciociacutenio tecido por Greimas (1975 p 12) podemos
afirmar que o significante graacutefico entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com
as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a
assumir como verdadeira a proposiccedilatildeo do discurso
Tambeacutem merece destaque os trecircs uacuteltimos hexacircmetros do excerto selecionado
(hex 30-32)Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e serpotildees que deitam bom cheiro ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte
Aqui Virgiacutelio nomeia trecircs ervas aromaacuteticas as verdejantes manjeronas (casiae
uirides) os serpotildees que deitam bom cheiro ao longe (olentia late serpylla) e uma
abundacircncia de segurelha exalando fortemente (grauiter spirantis copia thymbrae)
Para cada uma dessas ervas haacute uma amplitude descritiva que reforccedila imageticamente
a extensatildeo dos aromas presentes na cena Assim procurando lidar com a face mais
sensorial da palavra o poeta o artista literaacuterio deixa entrever um estiacutemulo sensorial
suscitado pela linguagem
Sobre os materiais que devem ser empregados pelo apicultor na confecccedilatildeo das
caixas das colmeias Virgiacutelio apresenta-nos
(hex 33-36) Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis
117
seu lento fuerint aluaria uimine texta angustos habeant aditus nam frigore mella
cogit hiems eademque calor liquefacta remittit
Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos
Observa-se neste excerto que dois materiais satildeo indicados para a confecccedilatildeo
das caixas que abrigam as abelhas (a corticcedila e o vime) Na descriccedilatildeo virgiliana natildeo
se faz uma distinccedilatildeo qualitativa destes materiais embora se soubesse na eacutepoca que
as caixas de corticcedila eram preferiacuteveis agraves de vime Estas informaccedilotildees natildeo escapavam
aos agrocircnomos da Antiguidade greco-latina sobretudo a Varratildeo no De Re Rustica
que eacute uma das fontes de Virgiacutelio Isso deixa entrever que a poesia didaacutetica virgiliana
longe de ser um manual com teacutecnicas de cultivo e cuidado ao campo natildeo tem o
compromisso com o detalhamento minucioso das informaccedilotildees teacutecnicas mas sim com
a forma literaacuteria
Recomenda-se ainda que a entrada das colmeias seja estreita pois isso
facilitaria o controle interno da temperatura evitando com isso o excessivo frio ou
calor Aleacutem disso a entrada estreita afastaria os invasores daninhos agraves abelhas
Nos hexacircmetros de nuacutemero 88 a 94 Virgiacutelio apresenta dois tipos de reis Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo deterior qui uisus eum ne prodigus obsit dede neci melior uacua sine regnet in aula Alter erit maculis auro squalentibus ardens (nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore et rutilis clarus squamis ille horridus alter desidia latamque trahens inglorius aluom
Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele que pareceu pior para que consumindo natildeo seja prejudicial deixa que o melhor reine na desimpedida corte Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre
O termo ldquoductoresrdquo liacutederes empregado no verso sugere uma imagem militar e
monaacuterquica identificando assim os reis das abelhas aos dos homens De um lado o
melior (hex90) ldquoo melhorrdquo aquele que ardens (hex91) ldquoque brilhardquo o que regnet in
118
aula (hex90) ldquoreina na corterdquo enquanto o pior ao contraacuterio eacute aquele que arrasta
latamquealuom (hex94) ldquoabundante ventrerdquo inglorius (hex94) ldquoingloacuteriordquo Esses
termos remetem ao gecircnero eacutepico sugerindo de acordo com alguns criacuteticos da obra
virgiliana relaccedilotildees entre o mundo das abelhas e a realidade histoacuterica do poeta mais
precisamente agrave batalha do Aacutecio Mas essa alegoria natildeo eacute um consenso entre os
pesquisadores
Nos hexacircmetros seguintes 95 a 102 Virgiacutelio faz uma comparaccedilatildeo entre dois
tipos de abelhas operaacuterias identificando-as ao seu respectivo rei Vt binae regum
facies ita corpora plebis (hex95) ldquoDois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo
os corpos da pleberdquo Neste verso fica assinalada a imagem humanizada das abelhas
como suacuteditos de reis
Os termos empregados neste excerto situam as duas espeacutecies de abelhas em
campos opostos as abelhas de tipo inferior turpes horrent (hex96) ldquosatildeo disformes e
horrendasrdquo e suas caracteriacutesticas apresentam-se por meio de uma comparaccedilatildeo jaacute
que elas satildeo apresentadas na descriccedilatildeo virgiliana ndash puluere ab alto quom uenit et
sicco terram spuit ore uiator aridus (hex96-98) ldquocomo o viajante sedento quando vem
da espessa poeira e cospe terra de sua garganta secardquo Com isso as abelhas de tipo
superior apresentam conotaccedilotildees positivas que as vinculam agrave figura do rei vencedor
elucent et fulgore coruscant (hex98) ldquoreluzem e cintilam com fulgorrdquo Nos trecircs
hexacircmetros finais (hex100-102) reforccedila-se a superioridade da primeira espeacutecie que
produz dulcia mella (hex101) ldquodoces meacuteisrdquo durum Bacchi domitura saporem
(hex102) ldquopara corrigir o aacutespero sabor de Bacordquo O termo mella (hex101) eacute um plural
poeacutetico O mel entre os antigos era tido como alimento celeste proveniente dos
deuses Virgiacutelio chama-o assim de aacuteereo mel aerii mellis caelestia dona (Geo IV 1)
ldquoos dons celestes do aeacutereo melrdquo pois de acordo com a crenccedila da eacutepoca o mel caiacutea
do ceacuteu com o orvalho sobre as flores de onde as abelhas o extraiacuteam No excerto o
mel atenua o sabor aacutespero do vinho de Baco pois era costume entre os antigos
preparar os vinhos amargos com mel
Nos hexacircmetros de nuacutemero 103 a 115 Virgiacutelio aconselha
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont instabilis animos ludo prohibebis inani Nec magnus prohibere labor tu regibus alas eripe non illis quisquam cunctantibus altum ire iter aut castris audebit uellere signa
119
Inuitent croceis halantes floribus horti et custos furum atque auium cum falce saligna Hellespontiaci seruet tutela Priapi Ipse thymum pinosque ferens de montibus altis tecta serat late circum quoi talia curae ipse labore manum duro terat ipse feracis figat humo plantas et amicos inriget imbris
Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e a tutela de Priapo do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele mesmo no solo enterre
as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas
Merece destaque deste excerto o hexacircmetro 103
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu
Os vocaacutebulos incerta e examina ldquoenxames incertosrdquo encontram-se entre os
vocaacutebulos uolant e ludunt respectivamente voam e brincam Tem-se assim a partir
da disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso a imagem dos enxames de abelhas voando e
brincando iconicamente no texto Trata-se de uma construccedilatildeo expressiva em que se
revela um trabalho artiacutestico com a linguagem
Selecionamos das Geoacutergicas os hexacircmetros de nuacutemero 1 a 115
Depreendemos deste excerto de modo geral o tema do lugar apraziacutevel a ser
modelado para as abelhas Desenvolve-se neste excerto o tema da apicultura
apresentando um conteuacutedo instrucional segundo os pressupostos da poesia didaacutetica
valendo-se de uma linguagem rica em procedimentos estiliacutesticos
Procurou-se observar como a estrutura poeacutetica atua e assim destacamos na
anaacutelise alguns hexacircmetros que consideramos mais expressivos
120
Nossa preocupaccedilatildeo eacute a de investigar o arranjo particular da linguagem poeacutetica
a construccedilatildeo expressiva do texto a sua dimensatildeo figurativa Fundamentamo-nos
para isso no conceito semioacutetico de figuratividade e na ideia explicitada por Joseph
Brodsky (1994 p 74) a de que ldquoa poesia eacute antes de mais nada uma arte de
referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo e de que ldquocom os poetas a
escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo que elas
contamrdquo (1994 p 97)
As Geoacutergicas pertencem de acordo com a tradiccedilatildeo ao gecircnero da poesia
didaacutetica Os traccedilos distintivos do poema didaacutetico iniciaram-se com Hesiacuteodo em O
trabalho e os dias seacuteculo VIII aC Durante os seacuteculos em que tal forma foi utilizada
algumas caracteriacutesticas contribuiacuteram para a especificaccedilatildeo do gecircnero tais como o
caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a presenccedila de
uma voz didaacutetica chamada de magister Os assuntos agraacuterios presentes nas
Geoacutergicas de caraacuteter instrucional como eacute proacuteprio ao gecircnero deixam entrever um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo remetendo-nos ao estilo meacutedio
Perutelli (2010 p 309-310) retomando o conceito didascaacutelico exposto por
Seacutervio assim afirma
[] o poema virgiliano contempla dois niacuteveis didaacuteticos o superficial o agriacutecola digamos recobre uma segunda mensagem mais profunda e articulada que eacute aquela da eacutetica da nova moral Dentro da linha do gecircnero didascaacutelico verifica-se a paradoxal situaccedilatildeo de um texto que tem um fim didaacutetico declarado ndash o agriacutecola ndash menos real do que outro natildeo declarado ndash o eacutetico
Na leitura traduccedilatildeo e anaacutelise do excerto selecionado das Geoacutergicas (Canto IV
hex 1-115) procuramos entender a instruccedilatildeo acerca do lugar apraziacutevel e ideal para
as abelhas fundarem sua colmeia como parte da caracterizaccedilatildeo da poesia de gecircnero
didaacutetico e de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo Logo observou-se que a voz
didaacutetica que perpassa o excerto deixa entrever a partir de um efeito de sentido
moderado figuras que nos remetem a um espaccedilo ideal a ser construiacutedo para as
abelhas Mas o assunto moderado natildeo retira assim a grandiosidade da expressatildeo
pois como atesta Virgiacutelio eacute pequeno o trabalho (in tenui labor-hex6) natildeo pequena a
gloacuteria (tenuis non gloria -hex6)
121
57 ENEIDA Canto VIII (hex 612-731) ldquoENEIAS E AS ARMAS DE GUERRArdquo
ldquoEn perfecta mei promissa coniugis arte
munera ne mox aut Laurentis nate superbos
aut acrem dubites in proelia poscere Turnumrdquo
Dixit et amplexus nati Cytherea petiuit 615
arma sub aduersa posuit radiantia quercu
Ille deae donis et tanto laetus honore
expleri nequit atque oculos per singula uoluit
miraturque interque manus et bracchia uersat
terribilem cristis galeam flammasque minantem131 620
fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem
sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes
solis inardescit radiis longeque refulget
tum leues ocreas electro auroque recocto
hastamque et clipei non enarrabile textum 625
Illic res Italas Romanorumque triumphos
haud uatum ignarus uenturique inscius aeui
fecerat ignipotens illic genus omne futurae
stirpis ab Ascanio pugnataque in ordine bella
Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro 630
procubuisse lupam geminos huic ubera circum
ludere pendentis pueros et lambere matrem
impauidos illam tereti ceruice reflexam
mulcere alternos et corpora fingere lingua
Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas 635
consessu caueae magnis Circensibus actis
131 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se uomentem Conington em The Works of Virgil (2008) tambeacutem chama a atenccedilatildeo para o termo uomentem embora coloque em notas ao texto as duas formas (uomentem e minantem) Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1957
122
addiderat subitoque nouom132 consuergere bellum
Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris
Post idem inter se posito certamine reges
armati Iouis ante aram paterasque tenentes 640
stabant et caesa iungebant foedera porca
Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae
distulerant (at tu dictis Albane maneres)
raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus
per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres 645
Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat
accipere ingentique urbem obsidione premebat
Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant
Illum indignanti similem similemque minanti
aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles 650
et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis
In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat
Romuleoque recens horrebat regia culmo
Atque hic auratis uolitans argenteus anser 655
porticibus Gallos in limine adesse canebat
Galli per dumos aderant arcemque tenebant
defensi tenebris et dono noctis opacae
aurea caesaries ollis atque aurea uestis
uirgatis lucent sagulis tum lactea colla 660
auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant
gaesa manu scutis protecti corpora longis
Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos
lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo
extuderat castae ducebant sacra per urbem 665
pilentis matres in mollibus Hinc procul addit
Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis
et scelerum poenas et te Catilina minaci
132 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se nouum
123
pendentem scopulo Furiarumque ora trementem
secretosque pios his dantem iura Catonem 670
Haec inter tumidi late maris ibat imago
aurea sed fluctu spumabant caerula cano
et circum argento clari delphines in orbem
aequora uerrebant caudis aestumque secabant
In medio classis aeratas Actia bella 675
cernete erat totumque instructo Marte uideres
feruere Leucaten auroque effulgere fluctus
Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar
cum patribus populoque penatibus et magnis dis
stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas 680
laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus
Parte alia uentis et dis Agrippa secundis
arduos133 agmen agens cui belli insigne superbum
tempora nauali fulgent rostrata corona
Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis 685
uictor ab Aurorae populis et litore rubro
Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum
Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx
Vna omnes ruere ac totum spumare reductis
conuolsum remis rostrisque tridentibus aequor 690
Alta petunt pelago credas innare reuolsas
Cycladas aut montis concurrere montibus altos
tanta mole uiri turritis puppibus instant
Stuppea flamma manu telisque uolatile ferrum
spargitur arua noua Neptunia caede rubescunt 695
Regina in mediis patrio uocat agmina sistro
necdum etiam geminos a tergo respicit anguis
Niligenumque134 deum monstra et latrator Anubis
contra Neptunum et Venerem contraque Mineruam
tela tenent Saeuit medio in certamine Mauors 700
133 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se arduus 134 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se ominigenunque
124
caelatus ferro tristesque ex aethere Dirae
et scissa gaudens uadit Discordia palla
quam cum sanguineo sequitur Bellona flagello
Actius haec cernens arcum intendebat Apollo
desuper omnis eo terrore Aegyptus et Indi 705
omnis Arabs omnes uertebant terga Sabaei
Ipsa uidebatur uentis regina uocatis
uela dare et laxos iam iamque immittere funis
Illam inter caedes pallentem morte futura
fecerat ignipotens undis et Iapyge ferri 710
contra autem magno maerentem corpore Nilum
pandentemque sinus et tota ueste uocantem
caeruleum in gremium latebrosaque flumina uictos
At Caesar triplici inuectus Romana triumpho
moenia dis Italis uotum immortale sacrabat 715
maxima ter centum totam delubra per urbem
Laetitia ludisque uiae plausuque fremebant
omnibus in templis matrum chorus omnibus arae
ante aras terram caesi strauere iuuenci
Ipse sedens niueo candentis limine Phoebi 720
dona recognoscit populorum aptatque superbis
postibus incedunt uictae longo ordine gentes
quam uariae linguis habitu tam uestis et armis
Hic Nomadum genus et discinctos Mulciber Afros
hic Lelegas Carasque sagittiferosque Gelonos 725
finxerat Euphrates ibat iam mollior undis
extremique hominum Morini Rhenusque bicornis
indomitique Dahae et pontem indignatus Araxes
Talia per clipeum Volcani dona parentis
miratur rerumque ignarus imagine gaudet 730
attollens umero famamque et fata nepotum
125
58 Traduccedilatildeo e notas do CANTO VIII (hex 612-731)
ldquoEis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo135 Filho natildeo duvides
em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos136 ou o vigoroso Turno137rdquo
Citereia138 disse e recebeu os abraccedilos de seu filho colocou as brilhantes armas sob
um carvalho em frente Ele alegre com os presentes da deusa e com tatildeo grande honra
natildeo pocircde se satisfazer e volveu os olhos por cada coisa
[Eneias] admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus
penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze
imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios
do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro
refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo
Ali139 o deus do fogo140 que natildeo ignora os vates nem desconhece o tempo futuro
havia colocado os feitos da Itaacutelia e os triunfos dos romanos ali havia colocado toda a
origem de toda a geraccedilatildeo futura de Ascacircnio141 e sucessivamente as guerras
combatidas
E havia colocado a feacutertil loba142 deitada no antro verde de Marte143 e suspensos em
volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela
voltada para traacutes com a cabeccedila torneada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus
corpos com a liacutengua
Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas144 sem o direito na
assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se
135Vulcano o deus das forjas esposo de Vecircnus a deusa do Amor 136 Laurentinos povo de Laurento cidade da Antiga Roma situada no Laacutecio entre Ostia e Laviacutenio 137Turno heroacutei itaacutelico rei dos Ruacutetulos povo da Itaacutelia Central ldquoEacute o proacuteprio Turno quem provoca a guerra contra os troianosrdquo (GRIMAL 2014 p 457) Era noivo de Laviacutenia antes do rei Latino dar a matildeo da filha a Eneias 138 Citereia outro nome para Vecircnus 139 Refere-se agrave descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente da deusa Vecircnus 140Vulcano o deus das forjas 141Ascacircnio filho de Eneias e Creuacutesa 142Remete-se agrave histoacuteria de Rocircmulo e Remo 143Marte deus da Guerra mas tambeacutem aparece como um deus ligado agrave vegetaccedilatildeo 144 O Rapto das Sabinas eacute um dos episoacutedios lendaacuterios da origem de Roma Quando a cidade foi fundada Rocircmulo preocupou-se em povoaacute-la especialmente com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de Rocircmulo raptaram todas as jovens (TITO LIacuteVIO 1989 p 31)
126
uma nova guerra entre os Romulidas145 e o velho Taacutecio146 rei dos severos habitantes
de Cures
Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do
altar de Juacutepiter147 segurando as paacuteteras148 e faziam um tratado de alianccedila com a
porca imolada
Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio149 em sentidos
contraacuterios (mas tu oacute Albano150 natildeo manterias teus dizeres) e Tulo151 arrastava as
viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue
escorriam
E ainda tambeacutem Porsena152 mandava receber o exilado Tarquiacutenio153 e sitiava a cidade
com um enorme cerco154 Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade
Se considerares quem eacute semelhante ao indigno ameaccedilador porque Cocles155 ousara
destruir a ponte e Cleacutelia156 atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas
No alto o guardiatildeo de Tarpeia157 Macircnlio158 estava de peacute diante do templo e defendia
o alto do Capitoacutelio O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo159 E aqui
145Os Romulidas o povo que Rocircmulo havia reunido em Roma 146Titus Tatius o rei dos Sabinos Apoacutes o rapto das Sabinas diz-se que Taacutecio organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas segundo conta-nos Tito Liacutevio (cf Ab Urbe Condita) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos 147Conta-se que que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo fez um pedido a Juacutepiter o grande deus do panteatildeo romano e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse de feiccedilatildeo 148Espeacutecie de taccedila usada em sacrifiacutecios antigos 149Mettus Fufetius o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Diz-se que ele recusou ajuda a Roma em um conflito traindo-a 150Referecircncia a Meacutecio Fufeacutecio uacuteltimo rei albano que quebra o acordo com Roma 151Tullus Hostillius o terceiro rei lendaacuterio de Roma responsaacutevel pela destruiccedilatildeo de Alba Longa cidade vizinha a Roma 152Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia 153Lucius Tarquinius Superbus Tarquiacutenio o Soberbo eacute responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que quando tomou o poder no senado Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio confiscando seus bens Foi deposto em 509 aC Expulso de Roma Tarquiacutenio procurou Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para declarar guerra agrave Roma 154 Porsena no ano de 507 aC sitiou Roma cercando-a 155Com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela qual o inimigo iria atravessar o Tibre 156 Durante o cerco agrave Roma em 507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado 157Apoacutes o rapto das sabinas Tito Taacutecio liderou os sabinos contra Roma Diz-se que Tarpeia atraiacuteda pelo ouro dos sabinos traiu Roma deixando entrar os sabinos na citadela Posteriormente ela foi assassinada e o monte onde ela foi sepultada foi chamado com seu nome No texto assim Tarpeia refere-se agrave rocha Tarpeia no monte Capitolino 158 Marco Macircnlio cocircnsul da Repuacuteblica Romana defendeu Roma da invasatildeo gaulesa 159Colmo haste das gramiacuteneas palha longa usada para cobrir as casas Entende-se nesta passagem que o palaacutecio de Rocircmulo ericcedilava-se com um teto de palha
127
um ganso prateado160 voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os
gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e
ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus
cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus
pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita com a matildeo os
dardos alpinos os corpos protegidos pelos longos escudos
Aqui havia representado os saltitantes saacutelios161 e os lupercus162 nus os barretes
sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela
cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados Daqui ao longe acrescenta
tambeacutem as moradas do Taacutertaro163 a alta porta de Dite164 e os castigos dos criminosos
e tu oacute Catilina165 suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias166
e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo167 havia ditado as leis
Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe
mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata
em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas
ondas No meio viam-se as armadas de bronze a batalha do Aacutecio168 via-se todo o
Leucates169 a ferver com Marte170 preparado e as ondas resplandecerem com o brilho
do ouro
160Chama-se a atenccedilatildeo dos romamos para um ataque noturno dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno no monte Capitolino 161Os saacutelios eram sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro 162Os lupercus eram sacerdotes de Fauno divindade associada ao campo e tambeacutem agrave fertilidade Conta-se que os lupercus usavam chicotes feitos com couro de cabra (barretes sacerdotais de latilde) 163 Taacutertaro o mundo inferior 164 Dite um dos nomes de Plutatildeo deus responsaacutevel pelo mundo inferior 165Lucius Sergius Catilina militar e senador romano queria destruir o poder oligaacuterquico do senado 166Fuacuterias divindades que viviam nas profundezas do Taacutertaro e eram responsaacuteveis pela tortura das almas 167 De acordo com Seacutervio seria o Catatildeo (o Velho ou Catatildeo Sapiente) poliacutetico e escritor de Roma eleito cocircnsul em 195 aC mas para Conington (2008) Virgiacutelio teria pretendido o Catatildeo de Uacutetica (o Jovem) (95-16 aC) poliacutetico romano ceacutelebre pela sua integridade moral para destacar o contraste em relaccedilatildeo a Catilina 168 A batalha do Aacutecio em 31 aC foi um confronto naval entre Marco Antocircnio e Otaacutevio Augusto Enquanto a frota de Otaacutevio era comandada por Agripa a frota de Marco Antocircnio era apoiada pela rainha do Egito Cleoacutepatra Com a vitoacuteria de Otaacutevio inicia-se o Impeacuterio e ele passa a ser conhecido como Ceacutesar Augusto 169 O monte Leucates Conta-se que Leucates era um jovem muito amado por Apolo e que ao escapar da perseguiccedilatildeo do deus lanccedilou-se ao mar do alto de uma encosta iacutengreme A ilha recebeu assim o nome de Lecircucade (GRIMAL 2014 p 276) 170Marte o deus guerreiro
128
De um lado Ceacutesar Augusto171 conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e
o povo os penates e os deuses maiores172 em peacute sobre a elevada popa a que o seu
feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua
cabeccedila173
Em outra parte Agripa174 com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o
exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros175
da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas
Antocircnio176 vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho177 transporta com
ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra178 e eacute seguido pela esposa
egiacutepcia179 Ao mesmo tempo todos se precipitaram e toda a superfiacutecie do mar espuma
sob os remos e os tridentes dos rostros que o afastam Dirigem-se a alto mar creia
que as Ciacuteclades180 arrancadas flutuavam sob a aacutegua ou que as altas montanhas se
chocavam contra as outras montanhas os varotildees se aproximavam das popas
torreadas com tanta massa A chama da estopa eacute espalhada pela matildeo e o volaacutetil ferro
pelos dardos os campos de Netuno181 avermelham-se com a nova carnificina No
centro a Rainha182 invoca os batalhotildees com o sistro183 paacutetrio e ainda natildeo voltou a
vista para as duas serpentes atraacutes
171Otaacutevio Augusto que apoacutes a vitoacuteria na batalha do Aacutecio receberia o nome de Ceacutesar Augusto A vitoacuteria contra Marco Antocircnio seria o iniacutecio do Impeacuterio em Roma 172Os penates satildeo os deuses do lar adorados por romanos e etruscos Os deuses maiores satildeo os representantes do Grande Olimpo Otaacutevio contava com a proteccedilatildeo dos deuses na batalha do Aacutecio 173 Em 42 aC Otaacutevio erigiu o Templo do Divino Juacutelio adicionando o termo ldquoFilho do Divinordquo a seu nome o que fortaleceria seus laccedilos poliacuteticos com os soldados de Ceacutesar (GRIMAL 2014 cf verbete Apolo) 174Marcus Vipsanius Agrippa principal comandante de Otaacutevio guiou as frotas de Roma contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra na Batalha do Aacutecio (BOWDER 1980) 175Rostro esporatildeo colocado na proa dos navios antigos para perfurar o casco dos outros nas batalhas 176Marco Antocircnio foi aliado de Ceacutesar durante a conquista da Gaacutelia e tambeacutem na guerra civil contra Pompeu Aliou-se mais tarde a Otaacutevio e Leacutepido formando com eles o Segundo Triunvirato (BOWDER 1980) 177Marco Antocircnio venceu os habitantes da Aacutesia (ldquopovos de aurorardquo) do Egito (do famoso Nilo) e da Bactriana no Afeganistatildeo (BECHARA SPINA 1973 p 89) 178 Bactra regiatildeo da Aacutesia Central 179Marco Antocircnio alia-se a Cleoacutepatra desprezando sua esposa romana Otaacutevia irmatilde de Otaacutevio Augusto (BECHARA SPINA 1973 p 89) 180Ciacuteclades grupo de ilhas no sul do mar Egeu 181Netuno deus dos mares 182 Cleoacutepatra (69-30 aC) rainha egiacutepcia da dinastia de Ptolomeu 183Sistro antigo instrumento egiacutepcio de percussatildeo que produzia som agudo e prolongado
129
Monstros de deuses de toda espeacutecie e o ladrador Anuacutebis184 mantecircm as armas contra
Netuno e Vecircnus185 e contra Minerva186 Marte gravado em ferro enfurece-se no meio
da batalha e as crueacuteis Fuacuterias descem pelo ar e com o manto rasgado a Discoacuterdia187
alegre caminha e eacute seguida por Belona188 com seu chicote ensanguentado
Ao ver isto de cima Apolo Aacutecio189 retesava o arco Com horror todo o Egito Indianos
todos os araacutebes e todos os sabeus viravam as costas A proacutepria rainha parecia dar
velas aos invocados ventos e a soltar cada vez mais as frouxas amarras O deus do
fogo190 colocara-a entre a carnificina paacutelida pela morte futura arrastada pelas ondas
e pelo Iaacutepige191 em frente tambeacutem colocara o Nilo192 com seu vasto corpo abrindo as
pregas de todo o seu traje e chamando os vencidos para o seu colo azul e para os
seus secretos rios
E Ceacutesar193 levado pelo triacuteplice triunfo agraves muralhas romanas consagrava aos deuses
da Itaacutelia um voto imortal trezentos templos maacuteximos por toda a cidade As ruas
retumbavam de alegria com jogos e aplausos em todos os templos o coro das matildees
todos tinham altares e diante deles os novilhos imolados cobriram a terra Ele proacuteprio
sentado no limiar da neve do candente Febo194 examina os presentes dos povos e os
coloca nas soberbas portas as naccedilotildees vencidas avanccedilam em longa fila tatildeo variadas
no modo de vestir e nas armas quanto nas vaacuterias liacutenguas
Aqui Mulciacutebero195 representara a raccedila dos nocircmades196 e os africanos de vestes
soltas neste lugar os leacutelegos197 os caacuterios198 e os gelonos199 armados de setas o
184Anuacutebis deus egiacutepcio protetor e guia dos mortos comumente representado com a cabeccedila de um chacal animal de caccedila relacionado aos lobos daiacute o nome ladrador 185Vecircnus deusa do amor matildee de Eneias e protetora dos romanos 186Minerva deusa romana das artes e sabedoria tambeacutem rege as estrateacutegias de guerra 187Discoacuterdia a matildee dos males diz-se que acompanhava Marte nas batalhas 188Belona eacute a fuacuteria da guerra e carnificina deusa de origem etrusca 189O arco do deus Apolo dispara dardos letais 190Vulcano deus das forjas responsaacutevel por colocar todas as presentes histoacuterias no escudo de Eneias 191Iaacutepige filho de Deacutedalo eacute um vento que sopra de oeste-noroeste 192O rio Nilo foi o principal fator para o desenvolvimento da sociedade egiacutepcia Hapi era cultuado como o deus das aacuteguas do Nilo sendo responsaacutevel pela prosperidade advinda do rio Diz-se que este deus eacute representado segurando talos de Papiros e flores de Loacutetus 193Otaacutevio agora nomeado Ceacutesar Augusto depois da vitoacuteria na batalha do Aacutecio 194Febo deus romano equivalente ao grego Apolo representa a luz a muacutesica e as artes eacute irmatildeo de Diana 195Mulciacutebero outro nome para Vulcano o deus das forjas 196 Nocircmades gente do ocidente de Cartago 197 Leleacutegos povo do sudoeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor 198Caacuterios povo do oeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor Caacuterios e leleacutegos eram muito proacuteximos 199Gelonos povos da Ciacutentia ou da Traacutecia
130
Eufrates200 jaacute corria mais calmo com suas ondas e os moacuterios201 os mais afastados
dos homens e o Reno202 de duas barras os indomaacuteveis dahas203 e o Araxes204
indignado com a ponte
[Eneias] admira tais coisas atraveacutes do escudo de Vulcano presente da sua matildee e
estranho aos assuntos regozija-se com a imagem carregando sobre o ombro a gloacuteria
e a fama dos seus descendentes
200 Eufrates rio que passa pela Armecircnia e Mesopotacircmia 201Moacuterios povos da Beacutelgica Os romanos chamavam-lhes de uacuteltimos porque aleacutem deles natildeo conheciam mais povos 202Reno rio da Alemanha era parte da fronteira setentrional do Impeacuterio Romano 203Dahas povo da Ciacutentia 204O rio Araxes nasce nos montes da Armecircnia e desaacutegua no mar Caacutespio Xerxes lhe fez uma ponte e Alexandre outra mas as enchentes do rio a destruiacuteram Otaacutevio entatildeo subjugou-o com outra ponte mais firme (LEITAtildeO 1819 p 75)
131
59 FIGURATIVIDADE NO CANTO VIII (hex 612-731) anaacutelise do
texto
Baseando-se nos poemas eacutepicos da Antiguidade Grimal (1992 p 185) assim
esclarece
Esses poemas satildeo ldquoeacutepicosrdquo na medida em que contam feitos de caraacuteter sobre-humano realizados por alguma das personagens pertencentes agrave ldquomemoacuteria coletivardquo das cidades que estatildeo em relaccedilatildeo com as divindades - das quais se originaram e pelas quais satildeo inspiradas - e que vivem em tempos em que o divino e o humano ainda natildeo se distinguiam claramente eacute o tempo dos ldquoheroacuteisrdquo dos semi-deuses
Para Hegel (1993 p 572-573) na Esteacutetica a epopeia propriamente dita
Representa o espiritual concreto sob uma forma individual e a epopeia quando narra alguma coisa tem por objeto uma accedilatildeo que por todas as circunstacircncias que a acompanham e as condiccedilotildees nas quais se realiza apresenta inumeraacuteveis ramificaccedilotildees pelas quais contacta com o mundo total de uma naccedilatildeo ou de uma eacutepoca Eacute portanto o conjunto da concepccedilatildeo do mundo e da vida de uma naccedilatildeo que apresentado sob uma forma objetiva de acontecimentos reais constitui o conteuacutedo e determina a forma do eacutepico propriamente dito Desta totalidade fazem parte por um lado a consciecircncia religiosa de todas as verdades profundas do espiacuterito humano e por outro lado a vida concreta a vida poliacutetica e domeacutestica e ateacute as necessidades que a vida exterior comporta e os meios de satisfazer
Assim a poesia de gecircnero eacutepico eacute uma celebraccedilatildeo narrativa da histoacuteria paacutetria
acompanhada pela glorificaccedilatildeo de heroacuteis nacionais Hegel menciona ainda outros
elementos constitutivos do gecircnero Entre eles vale destacar a objetividade e o conflito
da guerra que eacute conveniente agrave temaacutetica eacutepica e ao desenvolvimento da accedilatildeo
Segundo Montagner (2014) a eacutepica nasce na oralidade ancestral grega O
termo lsquoeacutepicarsquo proveacutem do grego eacutepos e significa de modo mais amplo lsquopalavrarsquo
lsquodiscursorsquo De modo restrito os gregos assim denominavam a poesia em hexacircmetro
a partir de epeacute plural de eacutepos Na eacutepoca claacutessica greco-latina seraacute o hexacircmetro
datiacutelico segundo o criacutetico o verso proacuteprio desse gecircnero Todavia aleacutem do verso
caracteriacutestico haacute outra marca o caraacuteter narrativo ou expositivo que assinala suas
manifestaccedilotildees
132
A Eneida a eacutepica virgiliana possui doze cantos (ou livros) escritos em
hexacircmetros datiacutelicos Em sua ceacutelebre epopeia Virgiacutelio narra os memoraacuteveis feitos
romanos Vemos as aventuras do heroacutei Eneias filho protegido da deusa Vecircnus em
luta para firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino A histoacuteria
comeccedila (in medias res) com Eneias e suas naus em pleno Mediterracircneo jaacute no seacutetimo
ano apoacutes a queda de Troia O heroacutei sofre um naufraacutegio arquitetado pela deusa Juno
e eacute lanccedilado agrave costa africana Desenrolam-se a partir daiacute os acontecimentos e accedilotildees
que faratildeo de Eneias um iacutecone romano o fundador da Nova Troia Logo a personagem
Eneias bem como suas accedilotildees e portanto seu papel figurativo no texto apoia-se na
previsibilidade narrativa que fundamenta a expectativa das figuras no contexto da
poesia eacutepica Trata-se de um heroacutei cujo destino eacute grandioso pois nele repousa o futuro
da raccedila troiana Todos estes elementos seratildeo desenvolvidos por Virgiacutelio ao retomar o
quadro da lenda romana Assim no engendramento do estilo grandiloquente
encontramos recorrecircncias figurativas que nos levam a um especiacutefico efeito de
individuaccedilatildeo no texto
Segundo Pedro Paulo Funari (2001 p 66)
Apoacutes a vitoacuteria dos gregos sobre os troianos Eneias vagou pelo Mediterracircneo ateacute chegar ao Laacutecio onde reinou por alguns anos Depois de morto foi adorado como Juacutepiter Indiges Seu filho Ascacircnio fundou Alba Longa e seu descendente Numitor pai de Reacuteia Siacutelvia foi pois avocirc de Rocircmulo Por essas lendas Roma ligava-se ao deus da guerra Marte e agrave deusa da fertilidade Vecircnus
Para Antocircnio Medina Rodrigues (2005 p10) a Eneida eacute ldquoum cacircntico aos novos
tempos do Impeacuterio eacute tambeacutem a nostalgia dos tempos lendaacuterios e primeiros haacute muito
sepultados sob as guerras civis e de conquista tempos de Rocircmulo e da chegada dos
troianos aos litorais itaacutelicos tempos da fundaccedilatildeo de Romardquo Virgiacutelio mescla histoacuteria
mito e um conjunto de situaccedilotildees que jaacute eram conhecidas pelos romanos
Como marco da Literatura Latina a Eneida confere agrave naccedilatildeo romana uma
identidade cultural A obra faz parte da chamada Idade de Ouro de Augusto e
segundo Funari (2001 p 66) para os romanos era importante considerar que seu
destino estava ligado aos deuses pois estas nobres origens legitimavam seu poder
sobre outros povos e servia como propaganda de suas qualidades
No canto VIII no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise hexacircmetros 612
a 731 temos a descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente forjado por Vulcano e
133
ofertado pela deusa Vecircnus ao heroacutei No escudo Vulcano desenhou os eventos da
futura Roma e entre estes eventos estatildeo a loba alimentando Rocircmulo e Remo o rapto
das Sabinas e no centro a batalha do Aacutecio As imagens esculpidas por Vulcano no
escudo de Eneias refletem toda a histoacuteria de Roma incluindo episoacutedios miacuteticos que
se mesclaram aos eventos histoacutericos Aleacutem disso vale ressaltar tambeacutem a figura de
Otaviano na centralidade do escudo jaacute que o governante passou a ser o centro do
cenaacuterio poliacutetico e social de Roma Segundo Pierre Grimal (1992 p 192) ldquoO heroacutei do
poema seraacute Eneacuteias claro mas este se ergueraacute antes de Roma no alto de uma
linhagem que de condutor de homens a triunfador vem dar em Otaacuteviordquo
Na descriccedilatildeo do escudo natildeo se observam detalhes das accedilotildees dos
personagens em seus respectivos cenaacuterios Ao descrever a batalha do Aacutecio por
exemplo vemos os oponentes de um lado e Otaviano de outro enquanto as
estrateacutegias beacutelicas e o combate soacute satildeo sugeridos Cabe ao leitor assim reconstituir
os eventos
As diferentes histoacuterias aludidas no escudo satildeo narrativas lendaacuterias e histoacutericas
desde a fundaccedilatildeo de Roma Pensando que o estilo eacute depreensiacutevel pelas recorrecircncias
figurativas do discurso podemos pensar nessas narrativas como parte do programa
figurativo que engendra o efeito de sentido grandiloquente
Nos hexacircmetros 619 e 625 vemos a descriccedilatildeo das armas de guerra presentes
ofertados pela deusa Vecircnus ao filho Eneias
miraturque interque manus et bracchia uersat terribilem cristis galeam flammasque minantem fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes solis inardescit radiis longeque refulget tum leuis ocreas electro auroque recocto hastamque et clipei non enarrabile textum
admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo
O capacete de crista vermelha a riacutegida couraccedila de bronze as armaduras da
perna a lanccedila e o exuberante escudo compotildeem a imagem do guerreiro Estas figuras
contribuem para a caracterizaccedilatildeo de Eneias que desde os Poemas Homeacutericos ldquosurge
134
como um heroacutei protegido pelos deuses aos quais obedece respeitosamente estando-
lhe reservado um destino grandioso nele repousa o futuro da raccedila troianardquo (GRIMAL
2014 p 135) Diferentemente do pastor que no cenaacuterio bucoacutelico eacute representado pelo
cajado e a flauta aqui o guerreiro alia-se aos artefatos beacutelicos em um cenaacuterio de
estrateacutegias de combate Tem-se portanto a descriccedilatildeo de objetos representativos do
contexto da poesia eacutepica
Conington (2008 p145) em seus comentaacuterios ao texto de Virgiacutelio aponta para
o termo ldquobracchiardquo (braccedilos) do seguinte excerto Segundo o criacutetico a accedilatildeo de virar
entre as matildeos e os braccedilos deixa entrever o tamanho das diferentes partes da
armadura que enchem os braccedilos quando levantadas
Miraturque interque manus et bracchia uersat
e admira e vira entre as matildeos e os braccedilos
A grandiosidade dos presentes forjados pelo deus do fogo na visatildeo de
Conington (2008 p145) aparece com o vocaacutebulo ldquominantemrdquo verbo depoente que
indica a accedilatildeo de ldquoameaccedilarrdquo sugerindo o aceno da crista do capacete que resplandece
ao ser manuseado e admirado por Eneias
Terribilem cristis galeam flammasque minantem
o tremendo capacete que ameaccedila com suas cristas e chamas
No Canto VII Eneias chega agrave regiatildeo do Tibre onde governa o rei Latino que
havia recebido dos deuses o aviso da chegada de Eneias futuro esposo de sua filha
Laviacutenia O chefe dos troianos envia uma comitiva ao rei Latino para que seja feito um
acordo de paz mas a terriacutevel Juno envia a deusa infernal Alecto responsaacutevel pela
guerra e pelas desgraccedilas para semear a discoacuterdia entre os dois povos
No Canto VIII com agrave iminecircncia da batalha Eneias encontra-se preocupado
com o porvir Agrave noite entatildeo ao permitir-se o descanso necessaacuterio o heroacutei eacute
surpreendido pelo rio Tibre que se personifica e comeccedila a falar O Tibre conta ao
troiano quem entatildeo poderaacute auxiliaacute-lo na guerra contra Turno trata-se de Palante ndash
filho de Evandro rei dos Aacutercades Percorrendo o curso do rio e ouvindo-o Eneias
alcanccedila a regiatildeo onde Evandro lidera e tem a oportunidade de falar com o rei e
confirmar a alianccedila predestinada
135
Paralelo a isso mostra-se a preocupaccedilatildeo de Vecircnus com a iminecircncia da guerra
Por esse motivo a deusa queixa-se a Vulcano pedindo-lhe ajuda na confecccedilatildeo de
artefatos beacutelicos que seratildeo indispensaacuteveis ao filho Eneias Com o pedido da esposa
Vulcano promete confeccionar as armas e pede a seus colaboradores na forja para
que produzam uma arma de caraacuteter singular
(hex 369-385) Nox ruit et fuscis tellurem amplectitur alis At Venus haud animo nequiquam exterrita mater 370 Laurentumque minis et duro mota tumultu Volcanum adloquitur thalamoque haec coniugis aureo incipit et dictis diuinum aspirat amorem ldquoDum bello Argolici uastabant Pergama reges debita casurasque inimicis ignibus arces 375 non ullum auxilium miseris non arma rogaui artis opisque tuae nec te carissime coniunx incassumue tuos uolui exercere labores quamuis et Priami deberem plurima natis et durum Aeneae fleuissem saepe laborem 380 Nunc Iouis imperiis Rutulorum constitit oris ergo eadem supplex uenio et sanctum mihi numen arma rogo genetrix nato Te filia Nerei te potuit lacrimis Tithonia flectere coniunx Aspice qui coeant populi quae moenia clausis 385 ferrum acuant portis in me excidiumque meorum
A noite impele e abraccedila a terra com as suas sombrias asas Poreacutem
Vecircnus matildee natildeo apavorada de coraccedilatildeo perturbada com as ameaccedilas
dos laurentinos e com o duro tumulto dirige-se a Vulcano e no leito
nupcial de ouro de seu esposo comeccedila com estas palavras e infunde-
lhe o divino amor ldquoEnquanto os reis argoacutelicos devastavam Peacutergamo
com a guerra condenada e as cidadelas sucumbiam pelas inimigas
chamas nenhum auxiacutelio pedi para os infelizes nem armas do poder
da tua arte cariacutessimo esposo nem quis que tu exercesses teus
trabalhos em vatildeo e ainda que eu devesse grande quantidade de
coisas aos filhos de Priamo e muitas vezes lamentasse o duro
trabalho de Eneias Agora por ordens de Jove deteve-se agrave entrada
dos ruacutetulos por isso eu mesma suplicante venho e eu como matildee
rogo por seu veneraacutevel poder armas para o meu filho A filha de Nereu
e a esposa de Titono puderam te comover com suas laacutegrimas
Considera que os povos se reuacutenem e que muralhas com as suas
portas fechadas aguccedilam o ferro contra mim e para a destruiccedilatildeo dos
meusrdquo
Atendendo ao pedido da esposa Vulcano confecciona um instrumento beacutelico
que garantiraacute a seguranccedila de Eneias Aleacutem disso o deus representaraacute neste artefato
136
o futuro da descendecircncia do heroacutei Apoacutes a confecccedilatildeo das armas de guerra Vecircnus
presenteia o filho A passagem inicia-se com as palavras da deusa
(hex 612 ndash 614) En perfecta mei promissa coniugis arte munera ne mox aut Laurentis nate superbos aut acrem dubites in proelia poscere Turnum Eis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo Filho natildeo duvides em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos ou o vigoroso Turno
A partir dessas palavras desenham-se por meio do olhar do narrador
mesclado ao olhar de Eneias os utensiacutelios beacutelicos As armas de guerra satildeo descritas
e para cada uma delas eacute apresentada uma caracteriacutestica especiacutefica Por meio da
descriccedilatildeo das armas podemos acompanhar o olhar de Eneias e a partir desse olhar
tambeacutem admirar a arte produzida por Vulcano
A exposiccedilatildeo dos artefatos beacutelicos eacute minuciosa mas breve (hex 619 ndash 625)
Virgiacutelio mostra cada uma das armas qualificando-as O poeta apresenta cada uma o
capacete que conteacutem um penacho e que eacute responsaacutevel por despertar o terror no
oponente uma espada que leva agrave morte uma couraccedila riacutegida com uma tonalidade cor
de sangue botas de eletro feitas de metal compostas de ouro e prata uma lanccedila e
por fim um escudo que eacute inenarraacutevel
Ressalta-se para cada uma das armas apresentadas pelo poeta uma
particular estrutura descritiva nomeia-se a arma de guerra e posteriormente ela eacute
qualificada Quanto agrave essa forma de descriccedilatildeo nota-se que o uacutenico artefato beacutelico que
natildeo possui um qualificativo eacute a lanccedila A omissatildeo da caracteriacutestica da lanccedila colocaraacute
assim o escudo em um relevo especial jaacute que este utensiacutelio beacutelico eacute tatildeo importante
para o desenvolvimento da narrativa virgiliana que ganha uma descriccedilatildeo mais
detalhada
As figuras em cenaacuterio eacutepico natildeo revestem uma temaacutetica humilde mas sim uma
temaacutetica sublime por isso se reconhece na eacutepica o estilo grandiloquente Para Grimal
(1992 p 187) ldquoo tom da epopeia eacute o mais elevado possiacutevel eacute ldquosublimerdquo por
excelecircncia pois refere-se aos assuntos mais grandiosos e aos interesses mais
altos()rdquo
137
Com vistas agrave percepccedilatildeo de um estilo grandiloquente nos versos seguintes
hexacircmetros 612 a 731 procuramos analisar a descriccedilatildeo particular do escudo de
Eneias instrumento em que o deus do fogo Vulcano esculpiu os feitos da Itaacutelia e os
triunfos dos romanos No poema o escudo de Eneias eacute transformado em objeto
artiacutestico jaacute que nele se desenham os acontecimentos histoacutericos de Roma desde a
sua fundaccedilatildeo O escudo permite que o leitor veja o destino grandioso da Nova Troia
que seraacute fundada no Laacutecio Observa-se no excerto uma rede de figuras coerentes
ao contexto da poesia eacutepica porque supotildeem uma unidade do discurso levando-nos
ao entendimento de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo o grandiloquente Vale
ressaltar tambeacutem o modo como Virgiacutelio desenhou a histoacuteria de Roma valendo-se da
palavra poeacutetica
O escudo comeccedila a ser descrito pela figura lendaacuteria da loba alimentando
Rocircmulo e Remo (hex 630-634)
Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro procubuisse lupam geminos huic ubera circum ludere pendentis pueros et lambere matrem impauidos illam tereti ceruice reflexam mulcere alternos et corpora fingere lingua
E havia colocado a feacutertil loba deitada no antro verde de Marte e suspensos em volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela voltada para traacutes de cabeccedila arredondada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus corpos com a liacutengua
Nesta passagem a figura da loba aparece deitada no antro verde de Marte
uma gruta destinada ao deus e que eacute recoberta por plantas Sabe-se que o deus Marte
aparece em Roma como o deus da Guerra mas ele tambeacutem eacute visto como o deus da
vegetaccedilatildeo ou seja um deus da Primavera jaacute que a eacutepoca da guerra comeccedila com o
fim do Inverno Eacute ele assim quem guia os jovens que emigram das cidades sabinas
para fundar novas cidades e encontrar novos locais para se estabelecerem (GRIMAL
2014 p 293) Ao costume de deixar o velho local em procura de outro chamava-se
ldquover sacrumrdquo ldquoa primavera sagradardquo No trajeto ao novo local os jovens eram guiados
pelo piccedilanccedilo ave passeriforme ou pelo lobo dois animais consagrados a Marte Daiacute
o papel da loba no campo verde de Marte O tempo do verbo ldquoprocubuisserdquo perfeito
ativo do infinitivo segundo Conington indica a accedilatildeo da loba que jaacute havia se deitado
quando os gecircmeos se posicionaram para beber o leite
138
procubuisse lupam geminos huic ubera circum
a loba deitada os gecircmeos ao redor das tetas
A figura da loba aleacutem de lendaacuteria mesclou-se agrave histoacuteria e tem um lugar de
destaque no pequeno excerto Nota-se ainda que a histoacuteria de Rocircmulo e Remo eacute
sugerida a partir da imagem da feacutertil loba e deve portanto ser completada pelo leitor
Trata-se de um mito acerca da histoacuteria da fundaccedilatildeo de Roma em que os gecircmeos
Rocircmulo e Remo filhos do deus Marte com Reacuteia Silvia descendente da estirpe de
Eneias foram amamentados por uma loba
A feacutertil loba passa-nos portanto a ideia de abundacircncia eacute ela que supre os
gecircmeos Na ldquoIV Bucoacutelicardquo de Virgiacutelio quando eacute mencionado o Retorno da Idade de
Ouro e o nascimento de uma crianccedila toda natureza tambeacutem aparece apta a servir
(hex 60-63)
Ipsae lacte domum referente distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundente cunabula flores
As cabritinhas por si mesmas levaratildeo a casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti (crianccedila) o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores
No pequeno excerto da ldquoIV Bucoacutelicardquo como visto acima a natureza modifica-
se para receber a crianccedila que havia acabado de nascer e paralelamente neste
pequeno excerto do ldquoVIII Cantordquo da Eneida a feacutertil loba encontra-se apta a servir
alimentar os gecircmeos receacutem-nascidos A natureza nos dois casos encanta-se com a
crianccedila que traz boas novas
Apoacutes a figura da loba mostra-se o episoacutedio do rapto das Sabinas entalhado
no escudo como marca lendaacuteria de um dos eventos que se seguiram agrave fundaccedilatildeo de
Roma Mais uma vez trata-se de um episoacutedio que eacute apenas sugerido jaacute que os
detalhes do acontecimento natildeo satildeo mencionados pois eles devem ser reconstituiacutedos
pelo leitor No excerto satildeo citadas as Raptadas Sabinas e a guerra entre os
Romulidas e o Velho Taacutecio Quando Roma foi fundada soacute existiam homens e Rocircmulo
preocupou-se em povoaacute-la com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas
139
dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos
durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de
Rocircmulo os Romulidas raptaram todas as jovens O Velho Taacutecio o rei dos Sabinos
apoacutes o rapto das Sabinas organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas
segundo conta-nos Tito Liacutevio (1989 p 31) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em
meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos
assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos (GRIMAL 2014 p 409)
Diz-se que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo dirigiu a Juacutepiter um
pedido e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse
de feiccedilatildeo Cessada a batalha foi construiacutedo o templo de Iupiter Stator (Juacutepiter que
deteacutem) edificado no local onde mais tarde foi construiacutedo o arco de Tito na Via Sacra
(GRIMAL 2014 p 409) A figura do templo de Juacutepiter bem como das paacuteteras taccedilas
usadas em sacrifiacutecios e da porca imolada deixam entrever a comunhatildeo entre
Romulidas e Sabinos com o fim da guerra Conington (2008 p147) revela-nos que
era antigo o costume de se sacrificar um suiacuteno em tratados de paz
(hex 635-641)
Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas consessu caueae magnis Circensibus actis addiderat subitoque nouom consuergere bellum Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris Post idem inter se posito certamine reges armati Iouis ante aram paterasque tenentes stabant et caesa iungebant foedera porca
Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas sem o haacutebito na assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se uma nova guerra entre os Romulidas e o velho Taacutecio rei dos severos habitantes de Cures Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do altar de Juacutepiter segurando as paacuteteras e faziam um tratado de alianccedila com a porca imolada
Outro episoacutedio entalhado no escudo eacute o esquartejamento de Meacutecio No
pequeno excerto temos o vocaacutebulo ldquoMettumrdquo Meacutecio entre os vocaacutebulos ldquocitaerdquo e
ldquoquadrigaerdquo raacutepidas quadrigas remetendo-nos iconicamente agrave ideia do
esquartejamento do rei albano Reforccedila ainda esta ideia os outros vocaacutebulos que
fazem alusatildeo a Meacutecio mas que aparecem distantes espalhados nos versos
seguintes como ldquoAlbanerdquo Albano ldquouirirdquo homem ldquomendacisrdquo mentiroso e ldquouiscerardquo
140
viacutesceras levando-nos a ideia jaacute expressa nos versos a de que as raacutepidas quadrigas
esquartejaram Meacutecio em sentidos contraacuterios
(hex 642-645)
Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae distulerant (at tu dictis Albane maneres) raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres
Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio em sentidos contraacuterios (mas tu oacute Albano natildeo manterias teus dizeres) e Tulo arrastava as viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue escorriam
Meacutecio Fufeacutecio foi o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Conta-se que ele fez um
acordo com Tulo o terceiro rei lendaacuterio de Roma Os romanos haviam declarado
guerra contra os albanos mas Tulo e o rei de Alba Longa Meacutecio fizeram um acordo
para evitar o excessivo derramamento de sangue Como os dois exeacutercitos tinham um
conjunto de irmatildeos trigecircmeos foi decidido que esses irmatildeos lutariam entre si Os
irmatildeos Horaacutecios lutariam pelo lado romano enquanto os Curiaacutecios lutariam pelos
albanos Roma saiu vitoriosa e Alba Longa foi submetida ao Estado romano
Posteriormente quando Meacutecio se recusou a ajudar Roma em um conflito traindo-a
diz-se que foi esquartejado por duas quadrigas lanccediladas em direccedilotildees opostas
Tito Liacutevio (59 aC ndash 17 dC) historiador romano em Ab urbe condita (1989 p
60) assim registrou esse acontecimento
Tulo entatildeo prosseguiu Meacutetio Fufeacutecio se pudesses aprender ainda a respeitar os juramentos e os tratados eu te pouparia a vida e seria eu proacuteprio o teu instrutor Mas como teu caraacuteter eacute irrecuperaacutevel que ao menos teu supliacutecio ensine os homens a considerarem sagrados os compromissos que violas e assim como ontem dividias tua alma entre Fidenas e Roma hoje eacute a vez de teu corpo ser tambeacutem dividido Mandou entatildeo que trouxessem duas quadrigas agraves quais fez amarrar Meacutetio com os membros distendidos Em seguida os cavalos foram impelidos em direccedilatildeo contraacuteria o corpo se dilacerou e os dois carros arrastaram os membros neles amarrados Todos os olhares se afastaram do horriacutevel espetaacuteculo (XXVIII)
Somando-se a este episoacutedio Vulcano coloca tambeacutem dois personagens
Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia e Tarquiacutenio o Soberbo
responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que ao tomar o
141
poder no senado romano Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio e
confiscou seus bens Foi deposto em 509 aC Quando foi expulso de Roma Tarquiacutenio
procurou a ajuda de Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para
declarar guerra agrave Roma No ano de 507 aC Porsena sitiou Roma cercando-a Mais
uma vez os detalhes dos acontecimentos natildeo satildeo mencionados por Virgiacutelio mas
apenas aludidos atraveacutes das figuras por ele elencadas Merece destaque a imagem
do cerco agrave Roma
(hex 646-651)
Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat accipere ingentique urbem obsidione premebat Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant Illum indignanti similem similemque minanti aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis
E ainda tambeacutem Porsena mandava receber o exilado Tarquiacutenio e sitiava a cidade com um enorme cerco Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade Se observares aquele semelhante ao indigno e semelhante ameaccedilador porque Cocles ousara destruir a ponte e Cleacutelia atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas
Nota-se que o vocaacutebulo ldquourbemrdquo cidade encontra-se entre a expressatildeo ldquoingenti
obsedionerdquo grande cerco remetendo-nos iconicamente agrave ideia de que a cidade estaacute
sitiada
ingentique urbem obsidione premebat
e sitiava a cidade com um enorme cerco
Em menccedilatildeo ao verso seguinte (hex 648)
Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant
Os descentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade
Conington (2008 p148) destaca a expressatildeo ldquoin ferrum ruererdquo (ldquocorrer ao
ferrorsquo) pois segundo ele desenha-se nesta passagem uma espeacutecie de espada Com
base nessa afirmaccedilatildeo observamos que a recorrecircncia do fonema vibrante r no final
142
do verso Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant mimetiza a ideia de um ranger de
espadas remetendo-nos portanto agrave ideia da batalha
Assim com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela
qual o inimigo iria atravessar o Tibre Diz-se tambeacutem que durante o cerco agrave Roma em
507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado A
imagem deste acontecimento tambeacutem foi aludida iconicamente
Et fluvium uinclis innaret Cloelia ruptis
E Clelia atravessara o rio com as correntes destruiacutedas
Nota-se que as correntes destruiacutedas aparecem figurativamente no verso pois
o vocaacutebulo ldquouinclisrdquo correntes estaacute apartado do vocaacutebulo ldquoruptisrdquo destruiacutedas
representando a ideia de ruptura e liberdade de Cleacutelia
O memoraacutevel escudo de Eneias traz ainda a figura de Marco Macircnlio cocircnsul
da Repuacuteblica Romana que defendeu Roma da invasatildeo gaulesa De acordo com os
comentaacuterios de Conington (2008 p 148) para os hexacircmetros 652 e 653
In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat
No alto o guardiatildeo de Tarpeia Macircnlio estava de peacute diante do templo
e defendia o alto do Capitoacutelio
O termo ldquoIn summordquo no alto refere-se ao topo do escudo de Eneias e Macircnlio
eacute representado pictoricamente ao lado da rocha Tarpeia como podemos observar
iconicamente no verso In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
No hexacircmetro 654 Conington (2008 p 148) afirma que ao utilizar o vocaacutebulo
ldquorecensrdquo Virgiacutelio assinala a arte de Vulcano no presente ofertado a Eneias jaacute que se
trata do recente palaacutecio acabado de ser entalhado no escudo
Romuleoque recens horrebat regia culmo
O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo
143
O hexacircmetro na visatildeo do criacutetico alude a renovaccedilatildeo constante da casa de
Rocircmulo nos tempos histoacutericos de Roma O termo ldquoRomuleordquo refere-se ao que se
manteve como era nos tempos de Rocircmulo Virgiacutelio usa a imagem do colmo ldquoculmordquo
a palha usada para cobrir as casas para descrever o palaacutecio de Rocircmulo e combinaacute-
lo de certa forma com o templo dourado de seu proacuteprio tempo Dessa forma constroacutei-
se para o leitor a imagem do Capitoacutelio
Ainda neste excerto chama-se a atenccedilatildeo dos romanos para um ataque noturno
dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno
no monte Capitolino
(hex 655-662)
Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat Galli per dumos aderant arcemque tenebant defensi tenebris et dono noctis opacae aurea caesaries ollis atque aurea uestis uirgatis lucent sagulis tum lactea colla auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant gaesa manu scutis protecti corpora longis
E aqui um ganso prateado voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita nas matildeos os dardos alpinos os corpos protegidos pelo longo escudo
Para Conington (2008 p149) o termo ldquouolitansrdquo particiacutepio presente que se
refere a accedilatildeo de voejar daacute-nos a imagem das asas vibrantes dos gansos
Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat
O que reforccedila essa ideia na verdade eacute a repeticcedilatildeo do fonema sibilante s nos
dois primeiros hexacircmetros que colaboram para a construccedilatildeo dessa imagem jaacute que
sugerem por meio da aliteraccedilatildeo em s a presenccedila do voo dos gansos no poema
Vulcano destaca ainda alguns elementos de cultura e entalha no escudo de
Eneias os saacutelios sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro
e os lupercus sacerdotes de Fauno que era uma divindade associada ao campo e agrave
144
fertilidade Os lupercus utilizavam chicotes feitos com couro de cabra que eram
chamados de barretes sacerdotais de latilde Destacam-se assim as cerimocircnias
sagradas
(hex 663-666)
Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo extuderat castae ducebant sacra per urbem pilentis matres in mollibus [hellip]
Aqui havia representado os saltitantes saacutelios e os lupercus nus os barretes sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados
De acordo com Heyne Peerlkamp e Ribbeck todos citados por Conington
(2008 p150) agrave primeira vista a introduccedilatildeo das regiotildees infernais nos hexacircmetros de
nuacutemero 666 a 670 parece fora de sintonia com o resto do contexto esculpido por
Vulcano mas devemos considerar como bem aponta-nos Conington que neste
pequeno excerto assim como em outros o objetivo de Virgiacutelio eacute narrar incidentes
pictoacutericos e entre eles a posiccedilatildeo de benfeitores e criminosos nacionais
(hex 666-670)
[hellip] Hinc procul addit Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis et scelerum poenas et te Catilina minaci pendentem scopulo Furiarumque ora trementem secretosque pios his dantem iura Catonem
Daqui ao longe acrescenta tambeacutem as moradas do Taacutertaro a alta porta de Dite e os castigos dos criminosos e tu oacute Catilina suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo havia ditado as leis
No pequeno excerto os inimigos de Ceacutesar satildeo colocados no mundo inferior o
Taacutertaro Dite eacute um dos nomes utilizados para se referir ao deus Plutatildeo que eacute
responsaacutevel pelo mundo inferior No Taacutertaro encontra-se Catilina um militar e senador
romano que queria destruir o poder oligaacuterquico do senado bem como as fuacuterias
divindades que viviam nas profundezas e eram responsaacuteveis pela tortura das almas
Ao traidor Catilina coube a agonia de cair do abismo enquanto a Catatildeo o Jovem ou
Catatildeo de Uacutetica poliacutetico romano ceacutelebre pela sua inflexibilidade e integridade moral
145
coube os Campos Eliacuteseos Na visatildeo de Conington (2008 p151) a figura de Catatildeo
apresenta-se nesta passagem em contraste com a figura de Catilina concluindo que
o caraacuteter de Catatildeo em vida fez dele um legislador para os mortos
Vulcano prossegue nos detalhes de sua obra com a imagem de um mar que
atravessa o escudo como um tipo de fronteira
(hex 671-674)
Haec inter tumidi late maris ibat imago aurea sed fluctu spumabant caerula cano et circum argento clari delphines in orbem aequora uerrebant caudis aestumque secabant
Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas ondas
Destaca-se desta passagem a figura dos golfinhos delphines O golfinho eacute um
animal marinho consagrado a Apolo pois seu nome lembra o santuaacuterio principal de
Apolo em Delfos Se lembrarmos portanto que Apolo foi adotado por Otaviano como
seu protetor pessoal e que o imperador atribuiacutea ao deus a sua vitoacuteria na batalha naval
contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra a presenccedila dos golfinhos abrindo o cenaacuterio da
batalha do Aacutecio faz alusatildeo agrave figura do deus Apolo bem como agrave proteccedilatildeo do deus aos
romanos (GRIMAL 2014 p33)
Assim no centro do escudo de Eneias detalha-se a Batalha do Aacutecio e coloca-
se a figura de Otaviano em destaque
(hex 675-688)
In medio classis aeratas Actia bella cernete erat totumque instructo Marte uideres feruere Leucaten auroque effulgere fluctus Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar cum patribus populoque penatibus et magnis dis stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus Parte alia uentis et dis Agrippa secundis arduos agmen agens cui belli insigne superbum tempora nauali fulgent rostrata corona Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis uictor ab Aurorae populis et litore rubro Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx
146
No meio via-se as armadas de bronze a guerra do Aacutecio via-se todo o Leucates a ferver com Marte preparado e as ondas resplandecerem com o brilho do ouro De um lado Ceacutesar Augusto conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e o povo os penates e os deuses maiores em peacute sobre a elevada popa a que o seu feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua cabeccedila Em outra parte Agripa com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas Antocircnio vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho transporta com ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra e eacute seguido pela esposa egiacutepcia
Representa-se neste excerto os dois rivais de um lado Otaacutevio Augusto o
senado o povo os Penates e os grandes deuses romanos de outro Marco Antocircnio
e Cleoacutepatra acompanhados de um exeacutercito de homens baacuterbaros e figuras divinas
monstruosas Com o fim da batalha haacute o triunfo de Otaacutevio sobre Marco Antocircnio e a
Alexandria Posteriormente sentado agrave entrada do templo de Apolo Otaacutevio recebe os
presentes das naccedilotildees vencidas O fim da guerra delimita o iniacutecio da pax romana
A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)
O escudo de Eneias como se viu traz episoacutedios centrais da histoacuteria de Roma
a loba que alimenta Rocircmulo e Remo o rapto das Sabinas o castigo da traiccedilatildeo de
Meacutecio por Tulo Hostiacutelio a invasatildeo de Porsena os feitos heroicos de Horaacutecio Cocles e
Cleacutelia a defesa do Capitoacutelio contra os gauleses saacutelios e lupercus e no centro a
batalha do Aacutecio Haacute tambeacutem a representaccedilatildeo do mundo inferior no Taacutertaro encontra-
se Catilina inimigo da paacutetria enquanto nos Campos Eliacuteseos lugar onde habitam os
justos Catatildeo aparece ditando as leis Condensados em poucos versos estes
episoacutedios revelam um modo peculiar de medir o tempo na narrativa jaacute que a
percepccedilatildeo de grandes mudanccedilas histoacutericas satildeo condensadas em um curto periacuteodo
contrariando a mediccedilatildeo cronoloacutegica do tempo Com relaccedilatildeo ao tempo da narrativa
147
portanto no escudo figura-se o futuro de Roma pois ele mostra a Eneias
acontecimentos que ainda natildeo aconteceram
O escudo de Eneias ganha especial descriccedilatildeo na narrativa Isso se deve agrave
peculiaridade que ele carrega o futuro de Roma Levando em conta a definiccedilatildeo do
dicionaacuterio de siacutembolos para o termo ldquoescudordquo encontramos
O escudo (broquel) eacute o siacutembolo da arma passiva defensiva protetora embora agraves vezes possa ser tambeacutem mortal Agrave sua proacutepria forccedila (como objeto de metal ou de couro) ele associa magicamente forccedilas figuradas Efetivamente o escudo eacute em muitos casos uma representaccedilatildeo do universo como se o guerreiro ao usaacute-lo opusesse o cosmo ao seu adversaacuterio e como se os golpes deste uacuteltimo atingissem muito aleacutem do combatente agrave sua frente e alcanccedilassem a proacutepria realidade representada nos ornatos do broquel O escudo de Aquiles eacute um singular exemplo disso Hefestos (Vulcano) cria nele uma decoraccedilatildeo muacuteltipla fruto de seus saacutebios pensamentos Ornamenta-o com figuras da terra do ceacuteu e do mar do sol infatigaacutevel e da lua cheia bem como de todos os outros astros que coroam o ceacuteu Tambeacutem satildeo figuradas duas cidades humanas ndash duas belas cidades Numa delas veem-se nuacutepcias festins Em torno da outra cidade acampam dois exeacutercitos cujos guerreiros rebrilham sob suas armaduras Os atacantes hesitam entre duas decisotildees a destruiccedilatildeo da cidade inteira ou a partilha de todas as riquezas que guarda dentro de seus muros a apraziacutevel cidade (HOMI 18 v 478 ndash 492 508 ndash 512) Nesse broquel Hefestos potildee ainda uma terra branda um campo feacutertil domiacutenios reais um vinhedo pesadamente carregado de uvas um rebanho de vacas de chifres altos uma pastagem de cabras uma praccedila de danccedila e por fim a forccedila pujante do rio Oceano a formar a beirada do soacutelido escudo Todas as razotildees de viver todas as belezas do universo todos os siacutembolos da forccedila da riqueza e da alegria estatildeo mobilizados e concentrados nesse broquel O escudo era grande o bastante para proteger o combatente de cima a baixo e eventualmente servir de padiola para carregar um morto ou um ferido (CHEVALIER GHEERBRANT 1999 p 387)
Com isso entende-se que o ldquoescudordquo no pequeno excerto vai aleacutem de um
termo aleatoacuterio Trata-se de um artefato beacutelico de uma forccedila milenar jaacute que ele
carrega a origem de Roma a Nova Troia bem como toda a descendecircncia do heroacutei
Eneias Pensando-se no tempo da narrativa as imagens ali esculpidas separam o
tempo de Eneias e o tempo do imperador Otaacutevio Augusto revelando-nos um passado
e um futuro
Vale destacar que as figuras gravadas no escudo apenas sugerem a accedilatildeo dos
personagens que deve portanto ser reconstituiacuteda pelo leitor No que diz respeito agrave
presenccedila do mito e sua narrativa sabe-se que entre os antigos o mito era associado
148
a algo verdadeiro divino e sagrado Inicialmente o mito era um relato sobre os
primoacuterdios ou sobre as accedilotildees heroicas ou fatos que tiveram ou natildeo uma intervenccedilatildeo
divina por isso eacute uma mateacuteria predominante e caracteriacutestica do gecircnero eacutepico Com
isso a poesia eacutepica experimenta o contato com o tempo passado
Procurou-se destacar no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise as
figuras representativas do cenaacuterio eacutepico e portanto a construccedilatildeo do texto em um
estilo grandiloquente Partindo do princiacutepio de que o estilo eacute efeito de sentido e uma
construccedilatildeo do discurso verificamos que o efeito grandiloquente emerge de uma
recorrecircncia figurativa
Neste excerto da Eneida o efeito de individuaccedilatildeo pretendido foi o sublime e a
rede de figuras deixaram entrever uma recorrecircncia de representaccedilatildeo a de um cenaacuterio
marcado pela figura do heroacutei que eacute agraciado pelos deuses com um presente especial
um artefato beacutelico que registra a histoacuteria de sua descendecircncia
As figuras destacadas portanto com especial atenccedilatildeo ao escudo de Eneias
engendram um cenaacuterio marcado por feitos heroicos que eacute mediado pela accedilatildeo vigorosa
do heroacutei e seu povo
A poesia eacutepica virgiliana em um tom vigoroso e portanto com destaque para
temas e figuras grandiloquentes colocou em relevo agraves faccedilanhas da Itaacutelia e os triunfos
romanos
149
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao compreendermos o estilo como efeito de sentido produzido pelo discurso
reconhecemos a importacircncia de se analisar a recorrecircncia de procedimentos temaacuteticos
e figurativos na construccedilatildeo do sentido
Para descrever um estilo devemos compreender a rede de temas e figuras que
configuram a totalidade discursiva entendendo-as como repertoacuterio deduziacutevel do texto
mas tambeacutem como um modo especiacutefico de uso desse repertoacuterio
Na anaacutelise de um determinado estilo devemos procurar portanto os temas e
figuras que estatildeo circunscritos no discurso a fim de depreendermos um especiacutefico
efeito de individuaccedilatildeo engendrado no texto
Como jaacute vimos a Roda de Virgiacutelio especifica quais seriam as figuras desejadas
para o contexto da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica pensando cada grupo de figuras
a partir de diferentes contextos seja do estilo simples (singelo) do meacutedio e do
grandiloquente Ao mapear os trecircs estilos da Antiga Retoacuterica o esquema circular
tripartido que foi difundido a partir do seacuteculo XII atraveacutes dos estudos de Joatildeo de
Garlacircndia natildeo aponta para uma classificaccedilatildeo entre os gecircneros bucoacutelico didaacutetico e
eacutepico pensando-os do baixo ao elevado mas sim para uma ideia de continuidade
temaacutetica da carreira literaacuteria de Virgiacutelio
Se uma roda como se sabe gira em torno de um eixo central podemos pensar
em Virgiacutelio como o eixo que mobiliza movimenta trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo As
Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida movimentam-se em torno do poeta que criou
diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo e personagens o pastor o agricultor e o heroacutei A partir
deles desenham-se as accedilotildees e a espacialidade para o pastor o campo a sombra
de uma frondosa faia para o agricultor o cultivo o campo lavrado as aacutervores
frutiacuteferas e para o heroacutei as batalhas e suas armas de guerra O cenaacuterio das Bucoacutelicas
traz um contorno humilde pois as figuras apresentadas satildeo de um universo temaacutetico
singelo ligado agrave natureza O cenaacuterio das Geoacutergicas traz um contorno diferenciado
pois as figuras abordam o cultivo das plantas e a criaccedilatildeo de animais ou seja trata-se
de um universo temaacutetico moderado em que satildeo apresentados alguns ensinamentos
relacionados agrave agricultura No cenaacuterio da Eneida o contorno eacute o sublime
grandiloquente pois o universo temaacutetico eacute outro o das guerras e batalhas em que
satildeo descritos os feitos dos heroacuteis
150
Ao analisar os trecircs tipos de estilo descritos na Roda de Virgiacutelio partimos do
princiacutepio de que todo estilo eacute um efeito de sentido e portanto uma construccedilatildeo do
discurso Acreditamos que esse efeito eacute determinado por recorrecircncias de
procedimentos na construccedilatildeo do discurso Quando falamos em recorrecircncia
estabelecemos como objeto de anaacutelise a isotopia figurativa presente nos textos que
eacute capaz de construir um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo
Haacute portanto nas Bucoacutelicas nas Geoacutergicas e na Eneida uma direcionalidade
previamente estabelecida uma vez que o cenaacuterio campesino do pastor na ldquoBucoacutelica
Vrdquo constroacutei-se a partir de Mopso e Menalcas personagens bucoacutelicos que cantam
sobre a morte e apoteose de Daacutefnis pastor por excelecircncia e lendaacuterio inventor do
gecircnero bucoacutelico O ambiente de atuaccedilatildeo dos personagens eacute a gruta e o campo
Percebe-se na leitura do poema uma recorrecircncia de figuras que nos remetem a uma
temaacutetica singela sobre o viver ruacutestico o oacutecio e o prazer do canto levando-nos a um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo a do estilo simples
Enquanto isso no Canto IV (hex 1-115) das Geoacutergicas com intencionalidade
instrutiva e portanto em um estilo meacutedio revela-se qual eacute o ambiente mais adequado
para o cultivo das abelhas Assim o campo os rios e as folhagens hospitaleiras
participam da construccedilatildeo deste cenaacuterio em que tambeacutem figuram andorinhas
melharucos e outras aves predadoras que segundo a voz didaacutetica que perpassa a
obra satildeo um risco para as abelhas Apresentam-se tambeacutem os materiais adequados
para a produccedilatildeo das caixas que abrigam as abelhas a corticcedila e o vime Tem-se ainda
a menccedilatildeo a Aristeu um pastor miacutetico mas que sabe teacutecnicas de apicultura Neste
excerto das Geoacutergicas eacute apresentada portanto uma narraccedilatildeo em que a voz poeacutetica
descreve qual o cenaacuterio mais adequado para a criaccedilatildeo de abelhas As figuras
presentes no fragmento revelam-nos o tema sobre os cuidados a serem tomados na
apicultura
Jaacute no Canto VIII (hex 612-731) da Eneida o estilo eacute o grandiloquente uma vez
que somos conduzidos a um cenaacuterio em que figuram o heroacutei com suas armas de
guerra Ao filho Eneias a deusa Vecircnus entrega o capacete as espadas a riacutegida
couraccedila as armaduras da perna a lanccedila e o inenarraacutevel escudo As figuras remetem-
nos ao tema das batalhas e posteriormente aos triunfos dos romanos
151
Se retomarmos as figuras presentes na Roda podemos entender que cada
estilo cria um modo individualizador de dizer gerando uma expectativa de
personagens accedilatildeo e ambientaccedilatildeo Observa-se uma recorrecircncia figurativa que resulta
em especiacuteficos efeitos de sentido Confirma-se assim que os diferentes papeacuteis
temaacuteticos presentes na constituiccedilatildeo de um estilo fundamentam a totalidade discursiva
As personagens e seus respectivos cenaacuterios de atuaccedilatildeo estatildeo pressupostos em cada
efeito de individuaccedilatildeo De cada estilo depreende-se dessa forma uma expectativa
do dizer
Pensando nos excertos das obras virgilianas aqui estudados para o humilis
stylus encontramos como personagens os pastores Mopso e Menalcas dentre os
animais representativos os cabritos aleacutem da flauta e o cajado como objetos coerentes
ao universo dos pastores Tambeacutem destacamos o campo a gruta e os olmeiros que
figuram como a espacialidade desejada para o cenaacuterio bucoacutelico descrito
Na Roda de Virgiacutelio as personagens mencionadas satildeo Tityrus e Meliboeus
figuras recorrentes nos idiacutelios de Teoacutecrito e que depois tambeacutem foram retomadas por
Virgiacutelio As outras figuras mencionadas as ovelhas o cajado o campo e a faia
tambeacutem satildeo coerentes ao universo bucoacutelico jaacute que contribuem para a previsibilidade
do cenaacuterio no contexto do humilis stylus
Para o mediocris stylus podemos destacar como personagem o pastor Aristeu
que sabe teacutecnicas de apicultura A menccedilatildeo a este personagem eacute feita nos hexacircmetros
281-294 315-558 do Canto IV das Geoacutergicas Embora ele natildeo apareccedila no excerto
aqui estudado podemos destacar sua presenccedila como personagem representativo
justamente por ser parte do contexto virgiliano Dentre os animais representativos
podem ser destacadas as abelhas pois o excerto aqui estudado aborda alguns
conselhos de apicultura colocando as abelhas portanto em maior destaque Aleacutem
disso as colmeias podem figurar como objeto representativo em uma alusatildeo agraves
caixas de corticcedila e vime destinadas ao abrigo das abelhas e que aparecem no texto
como um dos conselhos a ser seguido na apicultura Para a descriccedilatildeo do cenaacuterio vale
destacar o campo o rio e as folhagens hospitaleiras ambiente adequado para as
abelhas se alojarem
Na Roda virgiliana os personagens mencionados para o mediocris stylus satildeo
Triptolemus e Coelius (agraves vezes pode aparecer Caelius como jaacute mencionamos
anteriormente) Em Joatildeo de Garlacircndia aparece ainda Triptolemus e Ceres Segundo
152
Fowler (2012) Coelius e Triptolemus satildeo nomes comuns para a eacutepoca nomes
destinados aos proprietaacuterios da terra por exemplo embora a figura de Triptolemus
apareccedila em um dos Hinos Homeacutericos agrave Demeacuteter deusa grega da agricultura daiacute a
menccedilatildeo a Ceres equivalente romano para Demeacuteter feita por Garlacircndia Satildeo nomes
portanto que estariam dentro do contexto das Geoacutergicas mesmo natildeo sendo
personagens virgilianos seriam nomes equivalentes Logo o boi o arado o campo e
os pomares todos mencionados na Roda de Virgiacutelio figuram como elementos
previsiacuteveis neste contexto
No grauis stylus podemos destacar como personagens Eneias e Turno Como
protagonista da Eneida o heroi Eneias figura como o filho protegido da deusa Vecircnus
que eacute agraciado com artefatos beacutelicos feitos pelo deus das forjas Vulcano Turno o
seu rival na batalha aparece para fazer contraponto ao heroi Dentre os animais
representativos destacamos o cavalo que embora natildeo apareccedila no excerto aqui
estudado eacute uma figura recorrente no contexto eacutepico virgiliano Como objetos
representativos tecircm-se as espadas as armaduras a lanccedila e o escudo A accedilatildeo das
personagens remete agrave defesa das muralhas da cidade bem como agrave construccedilatildeo delas
e o louro figura como uma honraria destinada aos heroacuteis
Na Roda os personagens citados satildeo Hector e Ajax personagens recorrentes
na epopeia homeacuterica Em Homero um dos modelos utilizados por Virgiacutelio o estilo
grandiloquente portanto tambeacutem contribui para a compreensatildeo das personagens
sua atuaccedilatildeo e a espacialidade descrita
Queremos destacar assim que para cada estilo encontramos uma
homogeneizaccedilatildeo das figuras que corroboram para uma direcionalidade do discurso e
para a criaccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos
Para Norma Discini (2009 p 57) ldquoo estilo apresenta um ponto de vista sobre o
mundordquo Pensando-se nas obras de Virgiacutelio cada estilo simples meacutedio e
grandiloquente aponta para a recorrecircncia de um modo de dizer remetendo-nos a
diferentes discursos com diferentes pontos de vista
Segundo Discini (2009 p 59)
descrever um estilo eacute reconstruiacute-lo Para tanto reconstruiacutemos o ator da enunciaccedilatildeo esse sujeito cuja figura emerge como corpo como caraacuteter de uma totalidade enunciada Por isso o estilo eacute um efeito de sentido uma construccedilatildeo do discurso O efeito de estilo pressupotildee concretizada nas figuras da espacialidade temporalidade e actorialidade uma sistematizaccedilatildeo Trata-se de uma homogeneizaccedilatildeo
153
do sentido que confirma a coerecircncia global do estilo e confirma tambeacutem um equiliacutebrio necessaacuterio agrave economia geral da construccedilatildeo do sentido
Logo observa-se que esta homogeneizaccedilatildeo do sentido se apoia nas isotopias
figurativas sejam elas espaciais pensando-se na descriccedilatildeo do espaccedilo de atuaccedilatildeo
ou actoriais pensando-se nas personagens Em Virgiacutelio as personagens descritas
revelam trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o heroacutei) e a partir delas constroacutei-se
um modo de ser no texto uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa que coloca em
destaque uma identidade do discurso os especiacuteficos efeitos de individuaccedilatildeo os
estilos
Pensando-se na doutrina dos genera dicendi ou seja dos trecircs tipos de estilo
definidos pelos gramaacuteticos antigos podemos entendecirc-los como instrumentos para a
construccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos Cada estilo daacute uma direcionalidade
para o sentido de cada discurso Haacute nas trecircs obras virgilianas diferentes
personagens que marcam assim diferentes tipos sociais com diferentes ambientes e
accedilotildees
Para cada estilo destaca-se um personagem que a partir de seu papel temaacutetico
e figurativo aspectualiza-se no texto jaacute que a sua atuaccedilatildeo esquematiza um cenaacuterio
coerente
Portanto entendemos que os estilos simples meacutedio e grandiloquente que
perpassam as trecircs obras remetem-nos a uma mudanccedila de atuaccedilatildeo levando-nos a
especiacuteficas esquematizaccedilotildees figurativas seja do cenaacuterio das personagens ou das
accedilotildees circunscritas a cada estilo
Segundo Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 31)
Ao fazer girar ainda que muito de leve ldquoa roda de Virgiacuteliordquo ndash essa espeacutecie de hierarquia de estilos que os comentaristas da baixa latinidade identificaram nas obras do mantuano tomando respectivamente as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida como paradigmas dos trecircs tipos baacutesicos de estilo reconhecidos pelos antigos quais sejam o ldquosimplesrdquo (humilis stylus) o ldquotemperadordquo (mediocris stylus) e o ldquosublimerdquo (grauis stylus) ndash percebe-se que a expressatildeo num grande autor se sujeita por completo ao domiacutenio dos recursos da linguagem []
Procurou-se destacar com isso o modo como as figuras e temas se organizam
nas trecircs obras virgilianas Para tanto valemo-nos dos diferentes estilos e a partir
154
deles articulamos os personagens e seu ambiente de atuaccedilatildeo Procurou-se entender
como cada estilo determina a figuratividade presente nos textos agindo como um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo
A poesia atinge um alto grau de encantamento quando a palavra poeacutetica
alcanccedila um aacutepice de realizaccedilatildeo imageacutetica A poesia vale-se da linguagem
experimentando-a e revificando-a
Assim como proposta deste trabalho procurou-se descrever e compreender a
construccedilatildeo expressiva da linguagem artiacutestica Para isso buscou-se entender que a
palavra poeacutetica enquanto imagem soacute alcanccedila sua funccedilatildeo puramente representativa
e esteacutetica quando percebida como uma forma particular de construccedilatildeo Coube-nos a
partir destas consideraccedilotildees ler as obras de Virgiacutelio com a finalidade de reconhecer a
eficaacutecia do texto poeacutetico e a sua vocaccedilatildeo imageacutetica
Procurou-se investigar em excertos representativos das trecircs obras virgilianas
alguns dos recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico dos
textos Aleacutem disso na anaacutelise das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida debruccedilamo-
nos sobre os trecircs tipos de estilo reconhecidos pelos gramaacuteticos antigos a fim de
compreendecirc-los a partir da Poeacutetica e da Semioacutetica Literaacuteria
Verificou-se que a triacuteade das obras virgilianas passou a ser representativa dos
trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica Posteriormente Joatildeo de Garlacircndia
filologista do seacuteculo XIII mapeou as trecircs obras na chamada Roda de Virgiacutelio
classificaccedilatildeo medieval que seguiu assim a doutrina dos gramaacuteticos antigos
Nosso trabalho portanto com vistas agrave compreensatildeo dos estilos presentes nas
obras virgilianas procurou reconhecer nos poemas o modo de atuaccedilatildeo de cada estilo
pensando-os como efeitos especiacuteficos de individuaccedilatildeo depreensiacuteveis por diferentes
recorrecircncias figurativas
Apresentamos ainda as traduccedilotildees dos excertos das trecircs obras com as
necessaacuterias referecircncias culturais Para estas notas foram utilizados dicionaacuterios de
mitologia e os comentaristas tradicionais acerca da obra do poeta mantuano
Foi feito um levantamento da origem da Roda de Virgiacutelio e do pensamento
estruturado pelos gramaacuteticos antigos acerca dos trecircs tipos de estilo presentes nas trecircs
obras Natildeo nos prendemos agraves classificaccedilotildees de maneira exaustiva jaacute que nosso
objetivo natildeo foi catalogar mas sim entender o modo como esses estilos atuam nos
textos Pensando nisso procuramos por meio da moderna anaacutelise metodoloacutegica dar
155
ecircnfase ao entendimento do estilo como efeito de sentido partindo da compreensatildeo
da isotopia figurativa presente em cada obra
Quanto ao capiacutetulo destinado aos comentaacuterios sobre a obra de Virgiacutelio
destacamos aqueles que julgamos pertinentes para a compreensatildeo acerca da
estrutura dos textos Dedicamos tambeacutem um capiacutetulo para as definiccedilotildees de tema
figura figuratividade e os processos de estruturaccedilatildeo do texto com exemplos de
excertos da obra virgiliana
Atualizando a questatildeo dos trecircs estilos na obra de Virgiacutelio o trabalho pretendeu
contribuir assim para as reflexotildees acerca da figuratividade na poesia bucoacutelica
didaacutetica e eacutepica
156
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Figuras
Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III In PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de
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Figura 2 ndash A Roda Virgiliana da Poetria de Garlacircndia In CORTE Franceso della (org)
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Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia In GARLAND John of The Parisiana Poetria
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Yale University Press 1974 p 40-41
Figura 4 ndash A Roda de Virgiacutelio In GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo
Paulo Mestre Jou 1970 p 26
Figura 5 ndash Mopso e Menalcas In CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana vol
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Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus In CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa
Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica1998 p 22
Thalita Morato Ferreira
A RODA DE VIRGIacuteLIO um estudo da figuratividade na
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da Faculdade de Ciecircncias e Letras ndash UNESPAraraquara como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em Letras Linha de pesquisa Relaccedilotildees Intersemioacuteticas Orientador Prof Dr Maacutercio N Thamos
Data da defesa 30042020
MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA
Presidente e Orientador Prof Dr MAacuteRCIO THAMOS - Orientador Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias
e Letras de Araraquara
Membro Titular Prof Dr BRUNNO VINICIUS GONCcedilALVES VIEIRA Departamento de Linguiacutestica Literatura e Letras Claacutessicas UNESP - Faculdade de Ciecircncias
e Letras de Araraquara
Membro Titular Prof Dr ALEXANDRE SILVEIRA CAMPOS Departamento de Letras Modernas UNESP - Faculdade de Ciecircncias e Letras de Araraquara
Membro Titular Profa Dra ELAINE CRISTINA PRADO DOS SANTOS Centro de Comunicaccedilatildeo e Letras Universidade Presbiteriana Mackenzie
Membro Titular Profa Dra PATRIacuteCIA PRATA Departamento de Linguiacutestica Universidade Estadual de Campinas Local Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciecircncias e Letras UNESP ndash Cacircmpus de Araraquara
Para Luis Carlos Dhara e Theo que me ensinam todos os dias que viver eacute ir
tecendo naturalmente a trama da nossa histoacuteria
AGRADECIMENTOS
ldquoUm galo sozinho natildeo tece uma manhatilderdquo
Ao meu orientador Prof Dr Maacutercio Thamos quem me ensinou que Virgiacutelio noacutes natildeo
o descobrimos noacutes o merecemos agradeccedilo por ter acompanhado minha pesquisa
desde a Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica pela amizade e minha formaccedilatildeo acadecircmica poeacutetica e
humana
Agrave Profa Dra Ude Baldan e ao Prof Dr Brunno Vieira agradeccedilo pela leitura generosa
do meu trabalho e pelas valiosas contribuiccedilotildees em minha banca de qualificaccedilatildeo bem
como pela minha formaccedilatildeo
Ao meu esposo Luis Carlos Malimpensa que me incentivou a cada momento
agradeccedilo pelo amor companheirismo e por ter me encorajado a natildeo desistir do
caminho
Agrave Dhara minha filha que nasceu em 2018 trazendo vida nova e sadia agradeccedilo pelo
despertar e pela poesia do maternar
Ao Theo meu novo bebecirc que estaacute a caminho e completaraacute a poesia da nossa famiacutelia
Agrave madrinha Edna Batistela que cuidou da minha famiacutelia enquanto eu natildeo podia todo
o meu carinho amor e o meu afeto constante
Aos meus pais Joseacute de Arauacutejo Ferreira e Antonieta Morato do Amaral Ferreira
agradeccedilo pela vida amor e sincero apoio e tambeacutem ao meu irmatildeo Carlos Eduardo
pelo apoio e amizade
Agrave Camila Sabino que me auxiliou na leitura de artigos em inglecircs agradeccedilo pela
amizade e carinho
Agrave Unesp pelo compromisso e por ter me dado a chance e todas as ferramentas que
me permitiram chegar hoje ao final desse ciclo de maneira satisfatoacuteria
E por fim mas natildeo menos importante aos Orixaacutes que clareiam nossos caminhos
A todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formaccedilatildeo o meu muito
obrigado
O primado da forma o que significa eacute que por exemplo a poesia de Virgiacutelio eacute a porccedilatildeo da substacircncia Roma que a forma de Virgiacutelio o seu hexacircmetro recorta e
exprime Sem o hexacircmetro de Virgiacutelio Roma eacute histoacuteria civilizaccedilatildeo liacutengua latina metrificaccedilatildeo ateacute mas natildeo poema pelo menos natildeo como o lemos nas Bucoacutelicas e
na Eneida Alceu Dias Lima (1992 p 14)
RESUMO
O presente trabalho procura investigar a manifestaccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs
obras de Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Pretende-se por meio da
Semioacutetica Literaacuteria analisar os excertos das obras do ponto de vista da expressatildeo
com destaque para a vocaccedilatildeo imageacutetica dos textos a sua figuratividade Aleacutem disso
o trabalho debruccedila-se sobre o conceito de estilo ao investigar na chamada Roda de
Virgiacutelio os trecircs tipos de estilo descritos pela Retoacuterica Antiga a saber o estilo singelo
o estilo meacutedio e o estilo grandiloquente Trata-se de um esquema circular tripartido do
seacuteculo XIII que apresenta as Bucoacutelicas no estilo singelo as Geoacutergicas no meacutedio e a
Eneida no grandiloquente Com isso o esquema da Roda compreende para cada
texto virgiliano um cenaacuterio representativo diferente com diferentes caracteres O
presente estudo procura assim ampliar a compreensatildeo acerca dos trecircs estilos ao
entendecirc-los como efeitos de sentido engendrados nos textos ou seja como
especiacuteficos efeitos sugestionados nas obras a partir da predominacircncia de um
tratamento temaacutetico seguido de sua isotopia figurativa Apresentamos ainda uma
traduccedilatildeo dos excertos virgilianos aqui destacados para anaacutelise A pesquisa eacute um
estudo sobre a estrutura poeacutetica das obras virgilianas com destaque portanto para
a presenccedila da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica
Palavras-chave Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida Figuratividade Semioacutetica
ABSTRACT
The present study seeks to investigate the figurative manifestation in excerpts of
Virgilrsquos three works the Eclogues the Georgics and the Aeneid It is intended through
Literary Semiotics to analyze the excerpts of the works from the point of view of
expression with emphasis on the imagery vocation of the texts their figurativity In
addition the work focuses on the concept of style by investigating in the so-called
Virgils Wheel the three types of style described by Ancient Rhetoric namely the
simple style the medium style and the grandiloquent style It is a circular tripartite
scheme from the 13th century that presents the Eclogues in simple style the Georgics
in the middle and the Aeneid in the grandiloquent Thus the scheme of the Wheel
comprises a different representative scenario for each Virgilian text with different
characters The present study thus seeks to increase the understanding of the three
styles to understand them as meaning effects engendered in the texts that is as
specific effects suggested in the works from the predominance of a thematic treatment
followed by their figurative isotopy We also present a translation of the Virgilian
excerpts highlighted here for analysis The research is a study on the poetic structure
of Virgilian works with emphasis therefore on the presence of figurativity in bucolic
didactic and epic poetry
Keywords Eclogues Georgics Aeneid Figurativity Semiotics
Lista de Figuras e Tabelas
Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo IIIp 10
Figura 2 ndash A Roda Virgiliana p 11
Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia p27
Figura 4 ndash A Roda de Virgiacuteliop30
Figura 5 ndash Mopso e Menalcasp 75
Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnusp 91
Tabela 1 ndash The spokes of Virgilrsquos Wheelp 44
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 13
1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica 22
2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente 33
3 A criacutetica virgiliana46
31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da
Eneida46
32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho 53
4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto57
41 Textos temaacuteticos e figurativos57
42 A figuratividade e a leitura do poeacutetico 69
5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises
51 BUCOacuteLICA V ndash Mopso e Menalcas os pastores cantadores75
52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo81
53 Figuratividade na Bucoacutelica V ndash anaacutelise do texto86
54 GEOacuteRGICAS Canto IV (1-115) ndash descriccedilatildeo do lugar adequado para as
abelhas 99
55 Geoacutergicas Canto IV (1-115) Traduccedilatildeo e notas104
56 Figuratividade no Canto IV (1-115) ndash anaacutelise do texto 108
57 ENEIDA Canto VIII (612-731) ndash Eneias e as armas de guerra 121
58 Traduccedilatildeo e notas do Canto VIII (612-731)125
59 Figuratividade no Canto VIII (612-731) ndash anaacutelise do texto 131
6 Consideraccedilotildees Finais 149
Bibliografia 156
Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III
Fonte PEREIRA Maria H da R 2002 p 247
Figura 2 - A Roda Virgiliana
Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p592
Um claacutessico eacute um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha
para dizer (2007 p11)
Os claacutessicos satildeo livros que quanto mais pensamos conhecer por
ouvir dizer quando satildeo lidos de fato mais se revelam novos inesperados
ineacuteditos (2007 p 12)
[] os claacutessicos natildeo satildeo lidos por dever ou por respeito mas soacute por
amor (2007 p 12-13)
Italo Calvino (2007)
13
Introduccedilatildeo
Publius Vergilius Maro nasceu no ano 70 aC em Andes aldeia proacutexima a
Macircntua sob o primeiro consulado de Liciacutenio Crasso e de Pompeu Magno O poeta
deixou-nos trecircs grandes obras as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Seus textos
estatildeo entre os manuscritos (seacutecs II-III dC) mais antigos que possuiacutemos em papiro na
corrente de difusatildeo da Cultura Claacutessica
As fontes baacutesicas para a biografia do poeta satildeo os comentaacuterios de Valeacuterio
Probo (seacutec I dC) Donato (seacutec IV dC) Seacutervio (seacutec IV dC) Juacutenio Filargiacuterio (seacutec V
dC) e a Vita em verso do gramaacutetico Focas mais tardia e incompleta (seacutec IX) No
livro De poetis Suetocircnio (seacutec I dC) menciona a biografia de Virgiacutelio (Vita Vergilii) que
foi conservada graccedilas a Donato que a reproduziu em seu Comentarium ad Vergilium
O poeta morreu em 19 aC em Brindisi e seu corpo foi transportado para
Naacutepoles sendo sepultado em uma gruta proacutexima agrave estrada de Puteacuteolos1 Todos os
bioacutegrafos citam um diacutestico que o poeta teria supostamente redigido a si proacuteprio
Mantua me genuit Calabri rapuere tenet nunc Parthenope cecini pascua rura duces2
Macircntua me gerou na Calaacutebria arrebataram-me agora me tem o Partecircnope3 cantei as pastagens os campos e os heroacuteis
Segundo Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 30) a veneraccedilatildeo ao poeta comeccedilou
logo apoacutes sua morte Siacutelio Itaacutelico (26-101 dC) por exemplo em seu poema eacutepico
acerca da segunda guerra puacutenica (Punica) imitou de Virgiacutelio o estilo os episoacutedios o
maravilhoso mitoloacutegico e ateacute os recursos do gecircnero Aleacutem disso Eacutelio Lampriacutedio (seacutec
IV dC) um dos escritores da Histoacuteria Augusta conta que Alexandre Severo4 tinha no
palaacutecio a imagem de Virgiacutelio a quem chamava de ldquoPlatatildeo dos poetasrdquo na mesma
1 Atualmente Pozzuoli proviacutencia de Napoacuteles Era conhecida como Puteacuteolos no Periacuteodo Romano 2O termo ldquopascuardquo pastagens refere-se agraves Bucoacutelicas ldquorurardquo campos cultivadosrdquo agraves Geoacutergicas ldquoducesrdquo chefes ou heroacuteis agrave Eneida 3 Partecircnope eacute o nome poeacutetico da cidade de Naacutepoles Na mitologia conta-se que Partecircnope lanccedilou-se
ao mar com suas irmatildes sereias e as ondas atiraram seu corpo para as margens de Naacutepoles onde lhe foi erigido um monumento (cf GRIMAL 2014 p 357) Nos versos finais das Geoacutergicas Canto IV (hex 563-564) Virgiacutelio assim afirma Illo Vergilium me tempore dulcis alebatParthenope studiis florentem ignobilis oti ldquoNaquele tempo a doce Partecircnope nutria a mim Virgiacutelio que nos esforccedilos de um obscuro oacutecio floresciardquo 4 Alexandre Severo (222-235 dC) uacuteltimo imperador da Dinastiacutea Severa em Roma
14
galeria de Aquiles Ciacutecero e outros nomes ilustres Vale ressaltar tambeacutem que as
escavaccedilotildees arqueoloacutegicas de Pompeia forneceram ateacute hoje cerca de sessenta
grafitos virgilianos e uma quinzena deles eacute de citaccedilotildees ou reminiscecircncias das
Bucoacutelicas Segundo Mendes (1997 p 43) as Bucoacutelicas faziam parte da vida dos
habitantes de Pompeia pois os grafitos aparecem nos peristilos poacuterticos e muros
Enrico Rostagni (1931 p 5) assim exprime a benignidade do tempo para com a obra
de Virgiacutelio
AL MASSIMO POETA della Romanitagrave il tempo egrave stato in certo qual modo benigno perchegrave del texto delle sue Opere permise che ci giungessero esemplari insigni per lrsquoantichitagrave veneranda della scritura la quale nella sua maestagrave riflette per cosigrave dire la maestagrave del Poeta e della Gente per cui egli aveva cantato
A vitalidade das obras de Virgiacutelio eacute patente pelo modo como os seus principais
temas e enredos inspiraram e ainda inspiram poetas e demais artistas Mendes (1997
p 42) questiona-se acerca do valor dessa obra de arte para assim perdurar na
memoacuteria e nas matildeos de geraccedilotildees Ele entatildeo afirma que ldquouma obra literaacuteria impotildee-se
e permanece por sua concepccedilatildeo e novidade de conteuacutedo aliadas ao primor de
execuccedilatildeordquo
Como bem aponta-nos Joseph Brodsky (1994 p 97) poeta e criacutetico russo ldquoA
biografia dos poetas estaacute em suas vogais e sibilantes em sua meacutetrica suas rimas e
metaacuteforasrdquo e assim acreditamos que Virgiacutelio revive sempre em cada leitor aacutevido e
maravilhado pelas paacuteginas de indefiniacutevel Beleza As Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a
Eneida renascem constantemente naquele que mergulha em suas linhas e entrelinhas
(SANTOS 2007 p73)
Das obras virgilianas sabemos que a coleccedilatildeo de dez poemas pastoris que a
tradiccedilatildeo de estudos claacutessicos conhece sob o tiacutetulo de Bucoacutelicas foi composta
aproximadamente entre 42 e 37 aC Nesta obra ao buscar motivos nos Idiacutelios de
Teoacutecrito (310 ndash 250 aC) poeta siracusano de destaque no Periacuteodo Heleniacutestico
Virgiacutelio cria cenaacuterios e personagens campestres valendo-se de uma linguagem
repleta de elementos figurativos
As Geoacutergicas foram escritas entre 37 e 29 aC logo apoacutes as Bucoacutelicas A obra
configura-se de acordo com a tradiccedilatildeo claacutessica como um poema didaacutetico e eacute
composta por quatro livros (ou cantos) A obra traz como tema a terra e os encantos
da vida rural apresentando uma seacuterie de ensinamentos relacionados aos trabalhos
15
no campo No primeiro livro apresenta-se a lavoura no segundo a arboricultura
sobretudo a viticultura no terceiro a pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no
quarto a apicultura
Escrita entre 29 e 19 aC a Eneida eacute a eacutepica virgiliana Com doze livros (ou
cantos) a obra eacute considerada pela tradiccedilatildeo como um poema histoacuterico e mitoloacutegico
Ao colocar em cena os feitos de Eneias o filho protegido da deusa Vecircnus e o
responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino Virgiacutelio
trama um conjunto de situaccedilotildees e narrativas que propiciaram a fundaccedilatildeo de Roma
Pensando-se nos versos de Virgiacutelio eacute oportuno afirmar que sua poesia teve a
virtude de perpetuar-se e de registrar um povo e um momento da fala desse povo Ao
reconhecer o poeacutetico presente em suas obras compreendemos um fato de linguagem
com valor humano e portanto universal
Virgiacutelio como se sabe valeu-se do hexacircmetro datiacutelico como molde em suas
composiccedilotildees Este tipo de verso jaacute havia sido utilizado por Homero na produccedilatildeo da
Iliacuteada e da Odisseia O emprego do hexacircmetro nos poemas eacutepicos estendeu-se
tambeacutem agrave poesia didaacutetica com Hesiacuteodo e tambeacutem agrave poesia pastoril com Teoacutecrito
Adaptado agrave Literatura Latina o hexacircmetro datiacutelico foi escolhido por Virgiacutelio no texto
das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida
Sendo o hexacircmetro datiacutelico o uacutenico metro usado por Virgiacutelio em suas
composiccedilotildees cabe-nos mencionar suas especificaccedilotildees Natildeo se trata de um verso
com um nuacutemero fixo de siacutelabas pois em certos pontos uma vogal longa pode
substituir duas breves Na formaccedilatildeo de versos latinos natildeo satildeo as siacutelabas que satildeo
submetidas agrave regularidade meacutetrica mas sim o tempo nelas incorporado Logo intui-
se que o ritmo eacute determinado por um arranjo preciso entre siacutelabas de diferente
duraccedilatildeo Os vinte e quatro tempos de um hexacircmetro estatildeo reagrupados em seis
subunidades de quatro tempos Cada uma delas chamadas peacutes estatildeo enfileiradas
uma apoacutes a outra do primeiro ao sexto peacute na linha do hexacircmetro Trecircs satildeo os tipos
de peacutes meacutetricos o daacutetilo o espondeu e o troqueu
O daacutetilo eacute formado de duas partes a primeira representa os dois primeiros
tempos do peacute realizados sobre uma uacutenica siacutelaba que eacute marcada pela vogal longa A
segunda parte traz os dois uacuteltimos tempos do peacute realizados cada um sobre uma
siacutelaba sendo cada siacutelaba marcada por uma vogal breve O daacutetilo eacute representado por
( ˉ ˘ ˘ )
16
O espondeu tambeacutem eacute formado por duas partes Cada parte diferentemente
do daacutetilo eacute formada por duas siacutelabas longas O espondeu eacute graficamente
representado por ( ˉ ˉ )
A segunda parte de um daacutetilo marcada por duas vogais breves ( ˘ ˘) pode ser
substituiacuteda no verso por uma vogal longa pois uma vogal longa equivale a duas
breves Mas na praacutetica soacute os primeiros quatro peacutes do hexacircmetro podem ser
substituiacutedos por equivalentes espondeus pois o quinto peacute eacute normalmente um daacutetilo
que garante a base para que o verso seja chamado datiacutelico Quanto ao uacuteltimo ou seja
o sexto peacute chamado troqueu eacute constituiacutedo de duas siacutelabas A primeira eacute longa e a
segunda pode ser longa ou breve O uacuteltimo peacute eacute representado por ( ˉ ˘_)
Segundo Joatildeo Batista Toledo Prado (2012 p 109)
Para a consecuccedilatildeo do ritmo verbal no verso por exemplo num hexacircmetro datiacutelico (um verso de seis peacutes meacutetricos compostos ao menos idealmente por seis daacutetilos ou seja por sequecircncias trissilaacutebicas em que a primeira siacutelaba eacute longa e as duas outras que se lhe seguem satildeo breves) um daacutetilo poderaacute ser substituiacutedo em certas posiccedilotildees por um espondeu (peacute dissilaacutebico com ambas as siacutelabas longas)
Aleacutem disso a siacutelaba final que atua como pontuaccedilatildeo do verso eacute
fonologicamente neutralizada de tal forma que como se sabe o uacuteltimo peacute de um
hexacircmetro seraacute sempre um dissiacutelabo espondaico (quatro tempos) ou trocaico (trecircs
tempos) (PRADO 1997 p 171-172)
Com isso resulta o esquema geral do hexacircmetro
ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘
1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm
ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˘ ˘ ˉ ˉ
1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm
Acrescentaram-se na Antiguidade agraves trecircs obras canocircnicas de Virgiacutelio alguns
textos que hoje satildeo em sua maioria tidos como apoacutecrifos e considerados de autoria
duvidosa ou controversa pelos estudiosos Foi feita uma compilaccedilatildeo desses textos no
17
ano de 1572 com o tiacutetulo de Appendix Vergiliana pelo humanista francecircs J J
Escaliacutegero (1540 ndash 1609) No seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX vaacuterios estudiosos tais
como Rand (1919) e Frank (1930) afirmavam que os textos presentes na Appendix
Vergiliana eram todos (ou quase todos) da autoria de Virgiacutelio e passaram a consideraacute-
los como parte de um processo poeacutetico que culminaria nas trecircs obras consagradas do
poeta Mas em contrapartida tambeacutem havia nessa mesma eacutepoca quem apresentasse
um ponto de vista que se aproxima mais do consenso atual sobre a questatildeo ou seja
o de negar a autoria virgiliana dos textos presentes na Appendix O que vale destacar
para aleacutem da autoria destes textos eacute que as obras presentes na Appendix Vergiliana
constituem um material vasto e ainda pouco explorado
O presente trabalho procura focar assim nas trecircs principais produccedilotildees de
Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Ao investigar a manifestaccedilatildeo figurativa
presente em excertos representativos das trecircs obras procuramos destacar alguns dos
recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico de cada texto Os
excertos escolhidos satildeo representativos na medida em que alicerccedilam as
caracteriacutesticas dominantes da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Ao observar quais
satildeo as caracteriacutesticas predominantes em cada excerto o trabalho debruccedila-se sobre
os trecircs tipos de estilos descritos pela antiga retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio
e o grandiloquente que foram difundidos atraveacutes da chamada Rota Vergilli Roda de
Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que apresenta os principais caracteres dos trecircs
cenaacuterios criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico e o eacutepico atrelando cada um deles
a um tipo de estilo Ao compreender cada estilo como um efeito de sentido
sugestionado por meio de uma predominacircncia figurativa e temaacutetica presente em cada
excerto passamos a entender os estilos singelo meacutedio e grandiloquente presentes
na Roda como especiacuteficas construccedilotildees figurativas Para este entendimento o
presente estudo apoia-se no arcabouccedilo teoacuterico da Semioacutetica Literaacuteria
Pensando portanto em estilo como um efeito de sentido depreensiacutevel a partir
de uma totalidade discursiva o trabalho propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo
que os tratados de retoacuterica distinguiam Procurar-se-aacute observar assim a tessitura
poeacutetica de excertos das trecircs obras de Virgiacutelio valendo-se da caracterizaccedilatildeo figurativa
e da expressividade de cada estilo Ao descrever os procedimentos retoacutericos por meio
de princiacutepios mais amplos do que aqueles entatildeo utilizados pelos tratadistas antigos
pretendemos ampliar a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica a leitura do texto
claacutessico latino
18
O trabalho busca investigar a construccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs
principais produccedilotildees de Virgiacutelio e propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo
definidos pelos gramaacuteticos antigos ao entender cada estilo como parte da construccedilatildeo
figurativa presente nas trecircs obras O esquema da Roda de Virgiacutelio serviraacute assim
como base para os exemplos de figuras e temas encontrados nas Bucoacutelicas nas
Geoacutergicas e na Eneida e para o entendimento da construccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico
didaacutetico e eacutepico
Vale ressaltar que uma figura natildeo tem significado em si mesma Seu sentido
nasce do encadeamento com outras figuras presentes no discurso Se em um texto
tudo eacute relaccedilatildeo o que daraacute sentido a essas figuras eacute um tema Por isso para encontrar
o sentido de um conjunto de figuras que estatildeo encadeadas no discurso deve-se
perceber o tema subjacente a elas As figuras presentes em um texto formam uma
rede uma trama e por isso para depreendermos o tema de um texto figurativo eacute
preciso apreender primeiro as redes coerentes formadas pelas figuras No caso das
Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida eacute imprescindiacutevel que reconheccedilamos nos
excertos selecionados para anaacutelise o encadeamento e a rede de figuras Aliaacutes o que
garante a depreensatildeo dos temas por traacutes da rede de figuras eacute exatamente a coerecircncia
existente entre elas ou seja a predominacircncia figurativa afinal eacute a partir da coerecircncia
existente entre as figuras que podemos compreender a relaccedilatildeo solidaacuteria que elas
mantecircm entre si
Logo ao adentrarmos na dimensatildeo enunciativa e figurativa de cada excerto
virgiliano investigaremos a figuratividade que perpassa cada discurso destacando
como os estilos singelo meacutedio e grandiloquente satildeo expressos figurativamente nos
textos Pretendemos dessa maneira descrever cada estilo como um especiacutefico efeito
de sentido fruto da rede figurativa arquitetada pelo texto Assim procuramos
descrever os procedimentos retoacutericos atraveacutes de princiacutepios mais amplos para explicar
o fenocircmeno figurativo evidenciado na Roda Logo ao utilizarmos aqui o termo ldquofigurardquo
referimo-nos aos substantivos adjetivos e verbos de accedilatildeo presentes no texto e que
revestem uma ideia abstrata um tema A Retoacuterica seraacute lida entatildeo a partir de um olhar
Semioacutetico Apresentaremos ainda uma traduccedilatildeo dos excertos selecionados para
leitura e anaacutelise com as necessaacuterias notas de referecircncia (geograacuteficas mitoloacutegicas e
histoacutericas)
Os principais excertos selecionados para traduccedilatildeo e anaacutelise satildeo a Bucoacutelica V
a primeira parte do Canto IV das Geoacutergicas (hex 1-115) e o Canto VIII (hex 612-731)
19
da Eneida Estes excertos foram escolhidos pensando-se em seus esquemas
figurativos Satildeo trechos que alicerccedilam as caracteriacutesticas dominantes evidenciadas na
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica e que corroboram assim para o entendimento dos
estilos singelo meacutedio e grandiloquente descritos na Roda de Virgiacutelio Ao afirmarmos
com isso em nossas anaacutelises e comentaacuterios que determinado excerto eacute singelo
meacutedio ou grandiloquente o que se quer dizer eacute que estes trechos apresentam
predominantemente e natildeo exclusivamente caracteriacutesticas que alicerccedilam um
determinado efeito de sentido O que se observou nestes excertos escolhidos para
traduccedilatildeo e anaacutelise eacute que os efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente que
nos remetem respectivamente agrave poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica podem ser
depreendidos por uma rede coerente de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria
entre si
Aleacutem destes excertos outros apareceratildeo ao longo do trabalho para
complementarem o entendimento acerca dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente
e o modo como eles satildeo arquitetados por uma rede figurativa uma caracteriacutestica
dominante que alicerccedila o cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Vale ressaltar ainda que
todos os excertos traduzidos das obras virgilianas satildeo de autoria nossa assim como
os demais trechos em latim dos tratadistas antigos
O presente estudo procura portanto a partir de uma moderna anaacutelise
metodoloacutegica produzir um discurso metalinguiacutestico capaz de lanccedilar luz sobre os
recursos da figuratividade evidenciados na Roda de Virgiacutelio Com isso
compreendemos os trecircs estilos definidos pelos tratadistas antigos como efeitos de
sentido arquitetados por uma predominacircncia de figuras presente nos discursos
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
No primeiro capiacutetulo ldquoA Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela
Antiga Retoacutericardquo destacaremos brevemente o pensamento dos principais gramaacuteticos
latinos acerca da classificaccedilatildeo das obras de Virgiacutelio e com isso colocaremos em
relevo os trecircs tipos de estilo por eles descritos o singelo o meacutedio e o grandiloquente
Neste capiacutetulo ainda mencionaremos a Parisiana Poetria de Joatildeo de Garlacircndia e a
Rota Vergilii a Roda de Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que segue a doutrina dos
tratadistas antigos Procuraremos neste capiacutetulo esclarecer alguns pontos
importantes da doutrina dos genera dicendi os trecircs tipos de estilo descritos pelos
gramaacuteticos latinos e para isso faremos um levantamento dos pensamentos mais
relevantes para o tema Para esta etapa do trabalho utilizaremos como fonte os
20
gramaacuteticos latinos e outros estudiosos da aacuterea de estudos claacutessicos Dentre os
pensadores antigos destacamos Seacutervio Valeacuterio Probo Donato e Filargiacuterio
No segundo capiacutetulo ldquoUma leitura dos efeitos de sentido simples meacutedio e
grandiloquenterdquo procuramos analisar os trecircs estilos presentes da Roda de Virgiacutelio
como efeitos de sentido engendrados nos textos e que corroboram para o
entendimento dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico
e o eacutepico Busca-se entender dessa forma que cada estilo supotildee uma unidade de
interpretaccedilatildeo depreensiacutevel da recorrecircncia temaacutetica e figurativa presente em cada
discurso Para esse entendimento foram destacados os pensamentos de Antoine
Compagnon (2014) Norma Discini (2009) e Wilson-Okamura (2010) entre outros
No terceiro capiacutetulo ldquoA criacutetica virgilianardquo mencionamos as reflexotildees de
Katharina Volk (2008) que mapeia os principais criacuteticos da obra de Virgiacutelio a partir da
deacutecada de 70 sublinhando duas vertentes de leitura para a obra do poeta a ideoloacutegica
e a literaacuteria Mencionamos alguns comentaacuterios de Elaine C Prado dos Santos (2007)
Ruy Mayer (1948) entre outros Nesta etapa destacamos ainda o pensamento e
estudo de Andrew Laird (2010) sobre a recepccedilatildeo de Virgiacutelio
No quarto capiacutetulo ldquoA Figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um
textordquo falaremos de conceitos semioacuteticos como lsquotemarsquo lsquofigurarsquo e lsquofiguratividadersquo e
procuraremos demonstrar na leitura e anaacutelise de alguns excertos dos poemas de
Virgiacutelio como os temas e figuras participam da formaccedilatildeo textual Para esta reflexatildeo
teremos como respaldo os estudos de Poeacutetica e Semioacutetica Literaacuteria Destacam-se
nesta etapa as reflexotildees de Greimas (1975) (2011) Jakobson (1978) (1989) Barros
(2005) Fiorin (1995) (2011) e Bertrand (2003)
No quinto capiacutetulo ldquoTraduccedilotildees notas e anaacutelisesrdquo contaremos com os excertos
selecionados das trecircs obras virgilianas traduzidos e analisados O trabalho de
traduccedilatildeo seraacute acompanhado das necessaacuterias referecircncias culturais (geograacuteficas
mitoloacutegicas e histoacutericas) Neste capiacutetulo seraacute observada a dimensatildeo figurativa de cada
obra e para isso seratildeo destacadas as principais figuras e os temas recorrentes agrave
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Nas anaacutelises procuraremos abordar como as figuras
se organizam e asseguram um revestimento figurativo dos principais temas bucoacutelicos
didaacuteticos e eacutepicos Aleacutem disso tambeacutem levaremos em conta os estilos singelo meacutedio
e grandiloquente compreendendo-os como efeitos de sentido a partir principalmente
de sua estrutura figurativa Os textos latinos escolhidos para leitura traduccedilatildeo e
anaacutelise seratildeo os das ediccedilotildees Les Belles Lettres em cotejo com as ediccedilotildees
21
apresentadas por John Conington em The Works of Virgil e com as ediccedilotildees alematildes
da De Gruyter comentadas por Gian Biagio Conte
O presente estudo procura dessa forma analisar as obras de Virgiacutelio do ponto
de vista da expressatildeo procurando ampliar a percepccedilatildeo da leitura da poesia claacutessica
ao colocar em relevo os recursos da figuratividade do texto A anaacutelise dos elementos
de Retoacuterica a partir da Semioacutetica implica aqui em uma releitura ou seja em
descrever os procedimentos retoacutericos por meio de princiacutepios mais amplos do que
aqueles utilizados pelos gramaacuteticos antigos
22
1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga
Retoacuterica
Procurar entender um poema a partir de uma classificaccedilatildeo preacute-estabelecida
natildeo nos parece uma tarefa meritoacuteria pois ldquocada criaccedilatildeo poeacutetica eacute uma unidade
autossuficienterdquo e cada poema portanto ldquoeacute uacutenico irredutiacutevel e inigualaacutevelrdquo (PAZ
2012 p 23) Classificar catalogar reduzir a poesia a algumas poucas formas natildeo diz
nada sobre o poeacutetico em si nem sobre a expressividade do texto todavia buscar
compreender o porquecirc de uma classificaccedilatildeo e o modo como essa classificaccedilatildeo atua
pode nos auxiliar numa tarefa que vai aleacutem de uma mera ordenaccedilatildeo externa agrave obra
quando nos leva a entender alguns mecanismos de estruturaccedilatildeo poeacutetica Eacute oacutebvio que
apenas traccedilar as fronteiras de uma obra e descrevecirc-la levando em conta a
configuraccedilatildeo de um determinado estilo natildeo eacute capaz de esclarecer o poeacutetico que ali
atua Assim ao refletirmos sobre os trecircs estilos (singelo meacutedio e grandiloquente)
presentes nas obras de Virgiacutelio natildeo queremos com isso catalogaacute-las muito menos
hierarquizaacute-las mas sim adentrar o poeacutetico a expressividade do texto virgiliano a fim
de compreendermos natildeo apenas os assuntos tratados nos poemas mas sobretudo a
sua forma de expressatildeo
No iniacutecio da Bucoacutelica VI (hex 3-5) Virgiacutelio menciona as figuras representativas
do cenaacuterio bucoacutelico em contraponto agraves figuras eacutepicas
Cum canerem reges et proelia Cynthius aurem uellit et admonuit ltltPastorem Tityre pinguis pascere oportet ouis deductum dicere carmengtgt
Como eu cantasse reis e batalhas Ciacutentio5 puxou-me a orelha e advertiu-me ldquoAo pastor Tiacutetiro conveacutem apascentar gordas ovelhas e cantar um canto ruacutesticordquo
Haacute uma oposiccedilatildeo no excerto entre dois grupos de figuras De um lado lsquoreisrsquo e
lsquobatalhasrsquo e de outro lsquoo pastorrsquo as lsquogordas ovelhasrsquo e um lsquocanto ruacutesticorsquo Enquanto a
temaacutetica da eacutepica destina-se agrave narraccedilatildeo de grandes feitos de reis e batalhas a poesia
de gecircnero bucoacutelico eacute um canto de temaacutetica mais simples pois traz a figura do pastor
5 Ciacutentio outro nome para Apolo aqui citado como um deus pastoral identificado com agrave natureza
23
que apascenta as gordas ovelhas e canta um canto ruacutestico humilde singelo de
temaacutetica portanto diferente da eacutepica
Tambeacutem Camotildees no seacuteculo XVI na Invocaccedilatildeo drsquoOs Lusiacuteadas (I 5 v 1-4)
opocircs o cenaacuterio da eacutepica e da bucoacutelica
Dai-me uma fuacuteria grande e sonorosa E natildeo de agreste avena ou frauta ruda Mas de tuba canora e belicosa Que o peito acende e a cor ao gesto muda
A poesia bucoacutelica neste excerto eacute caracterizada pela ldquoagreste avenardquo ou
ldquofrauta rudardquo o instrumento do pastor-cantador protagonista do cenaacuterio bucoacutelico Jaacute
a poesia eacutepica aparece caracterizada pela lsquotuba canora e belicosarsquo Trata-se de uma
mudanccedila de cenaacuterio entre a bucoacutelica e a eacutepica muda-se o tema cantado e
consequentemente as figuras empregadas Entre os antigos a epopeia jaacute era descrita
por narrar os feitos de reis de chefes e as tristes guerras (cf Horaacutecio Arte Poeacutetica)
Augusto Epiphanio da Silva Dias (1910 p 6 nota 5) afirma que ldquoEm latim avena
lsquoaveiarsquo emprega-se tambeacutem por lsquocana de aveiarsquo e daiacute na poesia por lsquoflauta pastorilrsquo
A lsquoavenarsquo simboliza a poesia bucoacutelica assim como a lsquotubarsquo ou trombeta a poesia
eacutepicardquo
Enquanto as figuras representam no texto as coisas e os acontecimentos do
mundo natural os temas explicam os fatos que ocorrem Para criar determinado efeito
de sentido o autor de um texto escolhe figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria
entre si formando uma rede uma trama figurativa Ao identificarmos as figuras de um
texto devemos verificar portanto qual eacute a funccedilatildeo que elas desempenham no sentido
do texto Logo a depreensatildeo dos temas subjacentes a um texto figurativo soacute eacute
possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre figuras que se articulam e se encadeiam no
interior dele formando uma rede Como observamos nos exemplos acima o contraste
evidenciado entre a poesia bucoacutelica e eacutepica estaacute manifestado dessa maneira por
redes figurativas diferentes
Semelhante oposiccedilatildeo tambeacutem aparece com Antoacutenio Ferreira (2000 p 157) no
iniacutecio de sua ldquoEacutecloga Irdquo (v1-8)
No tempo qursquoo cruel e furioso Inimigo dos pastores e dos gados Da terra e das sementes belicoso
24
Marte segundo contam por pecados Do mundo contra o mundo tatildeo iroso Desceu que teacute os lugares mais sagrados Assi com ferro e fogo cometeu Que tudo de ira cinza e sangue encheu
A guerra no seguinte excerto eacute figurativizada pelo ldquobelicoso Marterdquo que se
mostra inimigo dos pastores e de todo cenaacuterio bucoacutelico pois a guerra quebra
necessariamente com a paz ideal presente no mundo pastoril
Haacute portanto uma oposiccedilatildeo temaacutetica entre a poesia de gecircnero bucoacutelico e a
poesia eacutepica O contraste evidenciado nos dois discursos eacute marcado por redes
figurativas especiacuteficas que apontam para temas distintos O efeito de sentido singelo
humilde eacute proacuteprio da bucoacutelica jaacute que a recorrecircncia figurativa pressupotildee o universo
dos pastores inseridos em um locus amoenus Enquanto isso o efeito de sentido
grandiloquente eacute proacuteprio do cenaacuterio eacutepico em que figuram heroacuteis em contexto de
grandes aventuras e batalhas Entende-se por efeito de sentido a construccedilatildeo de
significados que pode ser depreensiacutevel de um discurso Essa construccedilatildeo eacute arquitetada
em um texto por uma rede de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre si Logo
ao falarmos em efeito de sentido referimo-nos agrave trama de figuras presente em cada
discurso e ao modo como essa rede figurativa manifesta-se predominantemente no
discurso ao tecer significados No que diz respeito agrave poesia de gecircnero bucoacutelico e
eacutepico evidenciamos redes figurativas distintas e portanto diferentes efeitos de
sentido
Assim a partir do tema da accedilatildeo e da caracterizaccedilatildeo presentes nas trecircs obras
de Virgiacutelio - as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida ndash o trabalho procura observar as
mudanccedilas nos efeitos de sentido em cada obra Os estilos singelo meacutedio e
grandiloquente apresentam-se em cada obra virgiliana como efeitos de identidade do
texto sendo arquitetados a partir de um conjunto de procedimentos recorrentes na
construccedilatildeo de um sentido Analisar os estilos portanto significa investigar os
diferentes efeitos de individualidade presentes em cada texto
Valeacuterio Probo gramaacutetico romano da segunda metade do seacuteculo I dC In Vergilii
Bucolica et Georgica commentarius ao comparar a eacutepica e a bucoacutelica virgiliana
afirma que o ldquosublime e grandiloquenterdquo pertencem agrave Eneida enquanto agraves Bucoacutelicas
pertencem o que eacute ldquohumilde e ruacutesticordquo Diz o gramaacutetico
25
Sunt quaedam propria heroico carmini sublimia sed in bucolico humilia quae apte diuisse Vergilius notatus est
Algumas coisas satildeo apropriadas as sublimes ao poema heroico mas as humildes no bucoacutelico notou-se que Virgiacutelio as separou adequadamente
Essa distinccedilatildeo feita entre as obras deixa entrever a possibilidade de figuras que
podemos encontrar em cada uma delas Para a Eneida uma rede figurativa que nos
remete a um tema de caraacuteter grandioso enquanto para as Bucoacutelicas uma trama
figurativa que nos remete a assuntos mais singelos
Eacutelio Donato gramaacutetico e retoacuterico latino do seacuteculo IV dC menciona as trecircs
obras de Virgiacutelio e designa o modo de elocuccedilatildeo de cada gecircnero Para ele satildeo trecircs os
modos de elocuccedilatildeo o tecircnue (tenuis) para o gecircnero bucoacutelico o moderado (moderatus)
para o gecircnero didaacutetico e o vigoroso (ualidus) para o gecircnero eacutepico A elocuccedilatildeo
segundo a Retoacuterica refere-se agrave escrita do discurso ao estilo agrave expressatildeo Refere-se
pois ao trabalho com a linguagem e abrange assim o bom uso do leacutexico
Juacutenio Filargiacuterio comentarista de Virgiacutelio do seacuteculo V dC em Explanatio in
Bucolica Vergilli ao comparar as trecircs obras virgilianas acaba relacionando-as aos trecircs
genera dicendi
Humile medium magnum physica ethica logica Bucolica Georgica Aeneades naturalis moralis rationalis pastor operator bellator Physica ethica logica propter naturam propter usum propter doctrinam
Humilde meacutedio grande fiacutesica eacutetica loacutegica Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida natural moral racional pastor operaacuterio guerreiro Fiacutesica eacutetica loacutegica por causa da natureza por causa do uso por causa da doutrina
Dos pensadores aqui mencionados todos subordinam as Bucoacutelicas ao estilo
humilde (singelo) as Geoacutergicas ao meacutedio e a Eneida ao sublime grandiloquente
Com o auxiacutelio da Semioacutetica Literaacuteria entendemos que os trecircs estilos descritos
pelos tratadistas antigos podem ser lidos como diferentes efeitos de sentido presentes
nas trecircs obras virgilianas Estes efeitos estatildeo alicerccedilados nas diferentes tramas
figurativas tecidas por Virgiacutelio Pretende-se entender com isso o modo como os
principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica atuam no discurso Ao
compreender os trecircs estilos como construccedilotildees figurativas como efeitos de sentido
arquitetados em cada obra destacaremos como a significaccedilatildeo de uma determinada
26
figura estaacute sob o controle de um contexto no qual se encaixa com coerecircncia Pretende-
se investigar portanto a relaccedilatildeo solidaacuteria existente entre as figuras em contexto
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
A subordinaccedilatildeo das trecircs obras de Virgiacutelio aos trecircs genera dicendi aos trecircs
estilos descritos pelos gramaacuteticos latinos tambeacutem encontramos na Parisiana Poetria
de Joatildeo de Garlacircndia A Parisiana Poetria eacute um tratado sobre gramaacutetica e retoacuterica
escrito por Garlacircndia por volta de 1231 e 1235 Trata-se de um trabalho que registra
tipos de composiccedilatildeo escrita e aponta os cacircnones da retoacuterica Garlacircndia dessa forma
descreve uma teoria abrangente do estilo e para isso vale-se das Bucoacutelicas das
Geoacutergicas e da Eneida para criar a Roda de Virgiacutelio esquema circular tripartido em
que as obras virgilianas aparecem para descrever diferentes personagens temas
caracterizaccedilotildees e niacuteveis de estilo Assim ao mapear os estilos singelo meacutedio e
grandiloquente o filologista chama-nos a atenccedilatildeo para o fato de que Virgiacutelio registrou
diferentes tipos de estilo fixando modelos
De acordo com a Encyclopaedia Britannica (2009) John of Garland ou como
se diz tradicionalmente em portuguecircs Joatildeo de Garlacircndia (1180-1252) foi um
gramaacutetico e poeta inglecircs do seacuteculo XIII Seus escritos foram importantes no
desenvolvimento do latim medieval Aleacutem da Parisiana Poetria entre seus trabalhos
gramaticais estatildeo Compendium Grammatice (Esboccedilo de Gramaacutetica) Liber de
Constructionibus (Livro sobre Construccedilotildees) e um vocabulaacuterio latino Dois de seus
poemas mais conhecidos satildeo De triumphis ecclesiae (Sobre os triunfos da igreja) e
Epithalamium beatae Mariae Virginis (Canccedilatildeo nupcial da bem aventurada Virgem
Maria)
Ao arquitetar a Rota Vergilii Roda de Virgiacutelio seguindo a doutrina dos
gramaacuteticos latinos jaacute citados Joatildeo de Garlacircndia apresenta-nos a funccedilatildeo social de
cada personagem de Virgiacutelio o pastor o agricultor e o guerreiro
Segue portanto o esquema circular tripartido das trecircs obras virgilianas Cada
um dos aros concecircntricos da roda deixa entrever o personagem emblemaacutetico o
vegetal tiacutepico o ambiente de atuaccedilatildeo das personagens os objetos e os animais
representativos
27
Figura 3- A Roda Virgiliana de Garlacircndia
Fonte GARLAND John of 1974 p 40-41
Partindo desta divisatildeo entre as obras na Parisiana Poetria (1974 p38) Joatildeo
de Garlacircndia assim descreve
Item notandum quod in Rota Vergilii quam pre manibus habemus ordinantur tres columpne et in circuitu per multas circumferencias ordinantur tres stili In prima columpna comparationes continentur similitudines et nomina rerum ad humilem stilum pertinencium in secunda ad mediocrem in tercia ad grauem
Nota-se que na Roda de Virgiacutelio que temos em matildeos ordenam-se trecircs colunas e os trecircs estilos no circuito por meio de muitas circunferecircncias Na primeira coluna estatildeo contidas as comparaccedilotildees as imagens e os nomes das coisas pertinentes ao estilo humilde na segunda ao meacutedio na terceira ao grave
28
Vemos que o filologista segue a doutrina dos gramaacuteticos latinos apresentando-
nos em seu esquema tripartido as Bucoacutelicas na coluna do estilo singelo humilde as
Geoacutergicas na do meacutedio moderado e a Eneida na do grave grandiloquente
Na Enciclopedia Virgiliana organizada por Franceso della Corte (1996 p586)
encontramos um verbete para Rota Vergilii Neste verbete diz-se que as trecircs obras de
Virgiacutelio indicadas em uma figura circular satildeo exemplos dos trecircs estilos retoacutericos
(simples meacutedio e sublime) Menciona-se ali a documentaccedilatildeo da Poetria de Joatildeo de
Garlacircndia para quem Virgiacutelio apoacutes ter elegido sua mateacuteria poeacutetica tambeacutem elegeu
trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o guerreiro) a partir dos quais criou trecircs
cenaacuterios de atuaccedilatildeo
A Roda de Virgiacutelio segundo o verbete eacute uma emblemaacutetica correspondecircncia
dos trecircs genera dicendi os trecircs estilos defendidos pelos gramaacuteticos antigos e
configura-se como um esquema mnemocircnico que concentra a mateacuteria poeacutetica de cada
obra ou seja um breve panorama da criaccedilatildeo poeacutetica de Virgiacutelio A Roda eacute
interpretada assim como um cacircnone da arte retoacuterica
De acordo com Joatildeo Adolfo Hansen (2013 p26) ldquoStilus nome latino do estilete
com que se escrevia na tabuinha de cera passou a significar metaforicamente a
variaccedilatildeo da elocuccedilatildeo caracteriacutestica de um autor determinado proposto agrave emulaccedilatildeo
como auctoritasrdquo Segundo Hansen o termo lsquoestilorsquo refere-se agraves variaccedilotildees discursivas
das muitas elocuccedilotildees dos gecircneros Teofrasto disciacutepulo de Aristoacuteteles foi o primeiro
a fazer uma divisatildeo tripartida da elocuccedilatildeo dos estilos ndash simples temperado e nobre ndash
que corresponde na visatildeo de Hansen ao estilo humilde meacutedio e sublime
classificaccedilatildeo presente na chamada Rota Vergilii de Joatildeo de Garlacircndia como jaacute citado
anteriormente
Para Hansen (2013 p 26-27) a chamada Rota Vergilii do seacuteculo XIII
prescreve trecircs genera elocutionis que
satildeo exemplificados com as trecircs obras principais do poeta humilis ou humilde (Bucoacutelicas) mediocris ou meacutedio (Geoacutergicas) grauis ou alto (Eneida) Cada um deles corresponde agraves palavras especiacuteficas de lugares comuns as Bucoacutelicas o campo do pastor nomes proacuteprios de pastores as ovelhas as Geoacutergicas o campo do agricultor nomes proacuteprios de agricultores o boi a Eneida o campo do soldado nomes proacuteprios de soldados o cavalo e lugares comuns de objetos artificiais e coisas naturais ndash o cajado do pastor e a faia o arado do lavrador e a macieira a espada do soldado e o carvalho (ou loureiro) e na
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elocuccedilatildeo palavras simples e humildes nas Bucoacutelicas meacutedias e com poucos ornamentos nas Geoacutergicas elevadas e sublimes na Eneida
Ao compreendermos com o auxiacutelio da Semioacutetica os trecircs estilos como efeitos
de sentido engendrados em cada obra pressupomos o nuacutecleo temaacutetico e figurativo
de cada texto e o modo como figuras e temas se encadeiam coerentemente
Pierre Guiraud em A Estiliacutestica (1970) segue o modelo de Garlacircndia ao citar
os trecircs estilos elementares descritos pela Antiga Retoacuterica descrevendo-os e
apresentando-os em cada aro concecircntrico de sua Roda
Assim o camponecircs chama-se Caelius lavra seu campo plantado de aacutervores frutiacuteferas com seu arado puxado por bois mas o capitatildeo chama-se Hector estaacute coroado de louros tem agrave cinta um glaacutedio e percorre o acampamento em seu cavalo A vida do labrego seraacute contada em estilo simples ao passo que se usaratildeo estilo grave ou nobre para contar as faccedilanhas de Heitor (GUIRAUD 1970 p 27 grifos do autor)
Ao retomar a Roda de Garlacircndia Guiraud descreve trecircs diferentes contextos
de atuaccedilatildeo destacando as principais caracteriacutesticas de cada um deles Pode-se
compreender que os elementos por ele citados apesar da oscilaccedilatildeo possiacutevel dos seus
significados estatildeo articuladas no interior de cada texto remetendo-nos a diferentes
efeitos de sentido seja o simples (o singelo) o meacutedio ou o grandiloquente
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Figura 4 - A Roda de Virgiacutelio
Fonte GUIRAUD Pierre 1970 p 26
Como se lecirc no esquema circular tripartido para as Bucoacutelicas tem-se o Humilis
Stylus o estilo singelo e seu personagem representativo eacute o pastor otiosus o pastor
despreocupado Entre os nomes de pastores mais conhecidos estatildeo Tityrus e
Melibœus (cf Buc I) dos animais que figuram a ambientaccedilatildeo campestre destacam-
se as ovelhas (ovis) aleacutem disso como objetos representativos do pastor encontramos
o cajado (baculus) e a flauta Na descriccedilatildeo da espacialidade destacam-se os prados
(pascua) e a faia (fagus) com suas folhagens hospitaleiras que contribuem para a
descriccedilatildeo do locus amoenus ambientaccedilatildeo proacutepria ao universo bucoacutelico Os
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caracteres bucoacutelicos remetem-nos a assuntos tecircnues e por isso entendemos que
haja um efeito de sentido singelo que perpassa a obra
Para as Geoacutergicas temos o estilo meacutedio mediocrus stylus Como personagem
representativo encontramos o lavrador (agricola) e dentre os animais encontramos o
boi (bos) O arado (aratrum) serve para o cultivo do campo (ager) e na ambientaccedilatildeo
figuram aacutervores frutiacuteferas (pomus) Logo os assuntos satildeo moderados e destinam-se
agraves informaccedilotildees sobre a plantaccedilatildeo e a criaccedilatildeo de animais Entendemos com isso que
o cenaacuterio provoca um efeito de sentido mediano instrutivo
Para a Eneida destaca-se o estilo sublime (gravis stylus) Como personagem
tem-se o soldado vencedor (miles dominans) Entre os animais que aparecem estaacute o
cavalo (equus) A espada (gladius) figura como objeto representativo da personagem
e tanto a cidade (urbs) como a fortaleza de guerra ou o acampamento militar
(castrum) mapeiam o espaccedilo de atuaccedilatildeo Os caracteres eacutepicos destinam-se assim
aos assuntos grandiosos de reis e batalhas Logo pensando-se em termos
semioacuteticos cria-se um efeito de sentido grandiloquente
Eacute importante lembrar que a Roda natildeo esgota os elementos presentes nas
Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida ela apresenta apenas alguns dos aspectos gerais que
podem aparecer na caracterizaccedilatildeo de cada obra Eacute preciso que o leitor conheccedila o
texto de Virgiacutelio para depreender dessa forma as diferentes caracteriacutesticas bucoacutelicas
didaacuteticas e eacutepicas Entendemos neste trabalho que o esquema tripartido da Roda
serve para nortear a forma como Virgiacutelio valeu-se dos diferentes temas e como
conseguiu registraacute-los em suas obras
Na visatildeo de Guiraud (1970 p 27) ldquoas palavras guardam o reflexo das coisas
que designam ou dos ambientes em que satildeo empregadasrdquo Em se tratando das trecircs
obras de Virgiacutelio os cenaacuterios em contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico apresentam os
temas e figuras que lhe satildeo proacuteprios
As trecircs obras de Virgiacutelio dialogam com os trecircs tipos de estilo descritos pela
Antiga Retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Procuramos
entender esta divisatildeo como um esquema representativo das principais figuras e temas
presentes nas obras de Virgiacutelio Logo os trecircs estilos seratildeo aqui entendidos como
diferentes efeitos de sentido que aparecem na obra virgiliana Demonstraremos
atraveacutes de excertos do texto virgiliano como temas e figuras se comportam em
contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Compreendemos portanto o esquema tripartido
de Joatildeo de Garlacircndia com o auxiacutelio da moderna anaacutelise metodoloacutegica e com isso a
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leitura que se seguiraacute das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida apresentaraacute o estilo
como um efeito de sentido que perpassa as obras
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2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente
Estilo eacute efeito de individuaccedilatildeo dado por uma totalidade de discursos enunciados
Norma Discini 2009 p 27
Por meio da linguagem o emissor eacute capaz de expressar seus sentimentos
emoccedilotildees e modos de ser aleacutem de influenciar o seu receptor (o ouvinte ou leitor)
provocando assim uma determinada impressatildeo Foi pensando nisso que os gregos
antigos se valeram de diferentes loacutegicas argumentativas para convencer a plateia
sobre a veracidade de suas ideias Com isso a Greacutecia claacutessica levou a graus de
sutileza a preocupaccedilatildeo com a estrutura do discurso Entre os gregos inclusive foram
criadas disciplinas que melhor ensinassem as artes de domiacutenio da palavra tais como
a eloquecircncia a gramaacutetica e a retoacuterica (CITELLI 2002)
O surgimento da retoacuterica como disciplina especiacutefica contribuiu para uma
reflexatildeo sobre o aspecto discursivo da liacutengua bem como sobre o efeito que ela
provocava no receptor Na Idade Meacutedia a Retoacuterica apareceu no campo religioso pois
era comum os monges discutirem temas dogmaacuteticos com a finalidade de mostrar suas
habilidades argumentativas Na Idade Moderna com o advento do positivismo a
Retoacuterica foi deixada de lado jaacute que o importante passou a ser o conteuacutedo aquilo que
poderia ser comprovado e natildeo mais a expressividade Jaacute na Idade Contemporacircnea
a Retoacuterica retorna em duas grandes vertentes a teoria da argumentaccedilatildeo no discurso
cientiacutefico e a Estiliacutestica nos estudos linguiacutesticos (CITELLI 2002)
Levando em conta as dimensotildees da liacutengua e seu uso Mattoso Cacircmara (1978
p110) em seu Dicionaacuterio de Linguiacutestica e Gramaacutetica faz a seguinte afirmaccedilatildeo acerca
da Estiliacutestica ldquoDisciplina linguiacutestica que estuda a expressatildeo em seu sentido estrito de
expressividade da linguagem isto eacute a sua capacidade de emocionar e sugestionarrdquo
Pensando nessa capacidade de emocionar e sugerir Mattoso Cacircmara (1978
p 7 grifo nosso) define ldquoestilordquo nos seguintes termos
Em sentido lato estilo eacute a maneira tiacutepica pela qual nos exprimimos linguisticamente individualizando-nos em funccedilatildeo da nossa linguagem Para isso fazemos uma aplicaccedilatildeo metoacutedica dos elementos que a liacutengua ministra (Leo Spitzer) procedendo a uma escolha entre as possibilidades de expressatildeo que se apresentam na liacutengua (Marouzeau) Em sentido estrito no entanto essa caracteriacutestica decorre antes de tudo do nosso impulso emotivo e do propoacutesito claro ou subconsciente de sugestionar o proacuteximo
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Com isso podemos pensar em estilo como a individualidade de um discurso
como uma escolha entre os recursos de expressatildeo presentes na liacutengua e como um
efeito de sentido que eacute capaz de sugestionar determinadas impressotildees
Ao entendermos que um efeito de sentido soacute pode ser depreendido a partir de
uma rede coerente de figuras no interior do discurso concluiacutemos que toda trama de
figuras presente em um texto alicerccedila os significados ali tecidos Para depreendermos
portanto o efeito sugerido por determinada obra literaacuteria por exemplo devemos
adentrar a sua dimensatildeo temaacutetica e figurativa a fim de compreendermos a dominacircncia
dos elementos abstratos e concretos presentes no discurso
Como afirma Compagnon (2014 p164) a palavra estilo natildeo tem origem em
vocabulaacuterio especializado Aleacutem disso natildeo eacute um termo reservado apenas agrave literatura
e agrave liacutengua A ideia de estilo para Compagnon abrange numerosas aacutereas da atividade
humana Estilo denota a individualidade a singularidade de uma obra a necessidade
de uma escritura um gecircnero um periacuteodo ou um arsenal de procedimentos
expressivos de recursos a escolher Logo os aspectos da noccedilatildeo de estilo tanto
verbal como natildeo verbal hoje satildeo muito numerosos O estilo eacute citado por Compagnon
como norma pensando-se que o bom estilo eacute aquele que deve ser imitado o cacircnone
Aleacutem disso o estilo frequentemente aparece segundo ele como ornamento Essa
concepccedilatildeo eacute evidente na retoacuterica em que existem duas partes relacionadas agraves ideias
(invenccedilatildeo e disposiccedilatildeo) e uma terceira relativa agrave expressatildeo atraveacutes das palavras
(elocuccedilatildeo) Compagnon tambeacutem menciona o estilo no sentido de desvio pensando-
se na variaccedilatildeo estiliacutestica no desvio da liacutengua em relaccedilatildeo ao seu uso corrente na
substituiccedilatildeo de uma palavra por outra que oferece agrave elocuccedilatildeo uma forma mais
elevada uma marca diferenciada Tem-se assim de um lado uma elocuccedilatildeo clara ou
baixa e de outro uma elocuccedilatildeo elegante
Para Compagnon (2014 p 166) o ornamento e o desvio satildeo inseparaacuteveis da
noccedilatildeo de estilo Desde Aristoacuteteles entende-se o estilo como um ornamento formal
definido pela sua marca diferenciada em relaccedilatildeo ao uso comum da linguagem
Compagnon traz ainda a noccedilatildeo de estilo atrelada agrave ideia de gecircnero ou tipo
Para o criacutetico segundo a antiga retoacuterica o estilo enquanto escolha entre meios
expressivos estava ligado a noccedilatildeo de conveniecircncia jaacute que natildeo bastava possuir a
mateacuteria do discurso era preciso aleacutem disso falar segundo a necessidade da situaccedilatildeo
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O estilo dessa forma designava a propriedade do discurso a adaptaccedilatildeo da
expressatildeo a seus fins
Compagnon (2014 p 167) diz que
Os tratados de retoacuterica distinguiam tradicionalmente nem mais nem menos trecircs tipos de estilo o stylus humilis (simples) o stylus mediocris (moderado) e o stylus grauis (elevado ou sublime) Ciacutecero no Orator associava esses trecircs estilos agraves trecircs escolas de eloquecircncia (o asiatismo que se caracterizava pela abundacircncia ou empolaccedilatildeo o aticismo pelo gosto seguro e o gecircnero roacutedio gecircnero intermediaacuterio) Na Idade Meacutedia Diomedes identificou esses trecircs estilos aos grandes gecircneros depois Donato em seu comentaacuterio de Virgiacutelio relacionou-os aos temas das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida isto eacute agrave poesia pastoril agrave poesia didaacutetica e agrave epopeia Essa tipologia dos trecircs tipos de estilo difundida desde entatildeo com o nome Rota Vergilii ldquoRoda de Virgiacuteliordquo gozou de uma estabilidade de mais de mil anos Ela corresponde a uma hierarquia (familiar meacutedia nobre) que engloba o fundo a expressatildeo e a composiccedilatildeo Montaigne vai transgredi-la deliberadamente escrevendo sobre assuntos ldquomediacuteocresrdquo e eventualmente ldquosublimesrdquo no estilo ldquococircmico e privadordquo das letras e da conversaccedilatildeo Ora os trecircs tipos de estilo satildeo igualmente conhecidos sob o nome de genera dicendi assim eacute a noccedilatildeo de estilo que se acha na origem da noccedilatildeo de gecircnero ou mais exatamente eacute atraveacutes da noccedilatildeo de estilo (e a teoria dos trecircs estilos classifica os discursos e os textos) que as diferenccedilas geneacutericas foram tratadas por muito tempo
Pensando em estilo por meio da narratividade e do discurso Norma Discini em
sua obra O estilo nos textos (2009 p29) afirma
O estilo tambeacutem decorre de uma leitura homogeneizadora do mundo inerente ao efeito de individuaccedilatildeo de uma totalidade de discursos enunciados Tal leitura eacute identificaacutevel na anaacutelise de um estilo por meio da observaccedilatildeo do modo recorrente da referencializaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo no enunciado o que por sua vez supotildee uma unidade de avaliaccedilotildees e interpretaccedilotildees
Logo a leitura de um determinado estilo deve ser buscada na totalidade
enunciada da qual se depreende o ator da enunciaccedilatildeo o espaccedilo de atuaccedilatildeo e
consequentemente o efeito engendrado Para Discini (2009 p 30) ldquoestilo eacute corpo eacute
voz eacute caraacuteter de uma totalidaderdquo e portanto traz consigo um efeito de individualidade
que permite a construccedilatildeo de um cenaacuterio representativo em que figuram o ator a accedilatildeo
e o espaccedilo de atuaccedilatildeo Discini (2009) assim parte do princiacutepio de que o estilo eacute efeito
de sentido e portanto uma construccedilatildeo do discurso Segundo o pensamento da
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semioticista o efeito eacute determinado pela recorrecircncia de procedimentos na construccedilatildeo
do sentido o que deixa entrever do ponto de vista da produccedilatildeo do discurso como o
ator a accedilatildeo e o espaccedilo de atuaccedilatildeo satildeo tematizados e figurativizados
Os efeitos de sentido satildeo reveladores das intencionalidades presentes no
discurso Em virtude da presenccedila de determinados efeitos de sentido as figuras
presentes em um texto coadunam-se para concretizar sentidos especiacuteficos O efeito
de sentido portanto pode ser obtido atraveacutes de estrateacutegias discursivas como por
exemplo a referecircncia a pessoas a objetos a lugares e a caracteriacutesticas individuais
das personagens Estas estrateacutegias contribuem para a construccedilatildeo de diferentes
cenaacuterios que sugestionam efeitos especiacuteficos
Pensando-se nas trecircs obras de Virgiacutelio coacuterpus do nosso trabalho acreditamos
que a Roda de Virgiacutelio apresenta a partir dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente
os toacutepicos caracteriacutesticos de cada obra ou em termos semioacuteticos as principais
figuras e temas que caracterizam os trecircs cenaacuterios criados por Virgiacutelio
Ao entendermos o estilo como um fato diferencial e como um efeito de
individualidade que daacute voz e imprime uma singularidade ao discurso enunciado
podemos compreender como os diferentes estilos expostos pelos tratadistas antigos
podem ser lidos hoje a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica Para relembrar
dentre os antigos as obras eram classificadas a partir de trecircs tipos de elocuccedilatildeo a
tecircnue a moderada e a vigorosa que definiam respectivamente trecircs tipos de estilo o
singelo o meacutedio e o grandiloquente Virgiacutelio eacute conhecido por compor todos os trecircs
Nas Bucoacutelicas encontramos o humilde (singelo) nas Geoacutergicas o meacutedio e na Eneida
o grandiloquente A Roda de Virgiacutelio como jaacute citamos anteriormente eacute uma
classificaccedilatildeo medieval que mapeia portanto os trecircs tipos de estilo da Antiga Retoacuterica
deixando entrever os principais elementos dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por
Virgiacutelio Cabe-nos aqui avaliar como esses estilos satildeo engendrados em cada obra
deixando entrever efeitos de individuaccedilatildeo que lhe satildeo proacuteprios
No iniacutecio da primeira Bucoacutelica de Virgiacutelio Melibeu um pastor de gado fala a
Tiacutetiro outro pastor sobre o confisco de suas terras e sobre o fato de o amigo que
descansa agrave sombra de uma faia ter conseguido conservar as suas por ajuda de um
benfeitor
(Buc I hex 1-10) Meliboeus
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Tityre tu patulae recubans sub tegmine fagi siluestrem tenui Musam meditaris auena nos patriae finis et dulcia linquimus arua nos patriam fugimus tu Tityre lentus in umbra formosam resonare doces Amaryllida siluas
Tityrus
O Meliboee deus nobis haec otia fecit namque erit ille mihi semper deus illius aram saepe tener nostris ab ouilibus imbuet agnus ille meas errare boues ut cernis et ipsum ludere quae uellem calamo permisit agresti
Melibeu
Oacute Tiacutetiro tu reclinado agrave sombra de uma copada faia contemplas a musa silvestre na tecircnue flauta noacutes deixamos os limites da paacutetria e os doces campos da paacutetria noacutes fugimos tu oacute Tiacutetiro deitado agrave sombra ensinas os bosques a ressoar o nome da formosa Amariacutelis
Tiacutetiro
Oacute Melibeu um deus nos proporcionou este oacutecio De fato ele seraacute sempre um deus para mim seu altar sempre embeberaacute um tenro cordeiro de nossos apriscos Ele permitiu como vecircs que minhas vacas vagueassem e que eu tocasse na flauta agreste o que quisesse
A palavra bucoacutelica etimologicamente vem de boukolikaacute que em grego quer
dizer ldquocantos de boiadeirosrdquo Este era o nome dado agraves composiccedilotildees em que o
protagonista era o boieiro ou o vaqueiro A princiacutepio a composiccedilatildeo bucoacutelica
compreenderia como adverte Manuel de Paiva Boleacuteo (1936 p 16) uma forma de
poesia em que o boieiro ou vaqueiro seria o protagonista Nesse gecircnero figuram os
guardadores de gado os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas
sempre inseridos em um cenaacuterio ruacutestico campesino Fraguier (apud BOLEacuteO 1936 p
17) um dos teoacutericos sobre a poesia pastoril declara que os pastores satildeo homens do
campo que vivem singelamente que estatildeo sempre acompanhados de seus cajados e
rebanhos e que no momento de oacutecio ocupam-se de cantigas inocentes Com o
tempo os termos pastoral e pastoralismo tambeacutem passaram a designar as
composiccedilotildees que retratavam o pastor de cabras ou de ovelhas e por isso os termos
satildeo vistos como sinocircnimos de bucolismo O principal como menciona Boleacuteo (1936 p
18) eacute que esse tipo de composiccedilatildeo tenha uma essecircncia ou expressatildeo pastoril A
escolha do pastor como protagonista da cena bucoacutelica se deve ao fato de que cabe
ao pastor em seu momento de oacutecio os cantares singelos que expressam uma vida
essencialmente campestre
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O efeito de sentido singelo humilde estaacute presente neste excerto da primeira
bucoacutelica Vale destacar do seguinte excerto a expressatildeo ldquosub tegmine fagirdquo (agrave sombra
de uma copada faia) pois se refere ao costume que os pastores tecircm de nas eacutepocas
quentes protegerem-se do sol debaixo das aacutervores junto com os rebanhos O estilo
singelo eacute marcado dessa forma pela presenccedila dos pastores Tiacutetiro e Melibeu bem
como pela accedilatildeo de Tiacutetiro que se encontra deitado sob agrave sombra de uma frondosa
aacutervore enquanto toca na singela flauta uma muacutesica agreste Em resposta ao amigo
Melibeu Tiacutetiro afirma que pode desfrutar da sombra e do oacutecio enquanto suas vacas
vagueiam graccedilas a um deus que lhe proporcionou essa tranquilidade A temaacutetica
recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico diz respeito ao oacutecio dos pastores e estaacute
atrelada ao prazer do canto e ao locus amoenus lugar apraziacutevel em que figuram o
som da flauta as ovelhas cabras e aacutervores com sombras hospitaleiras
Eacute interessante que neste excerto da primeira bucoacutelica apareccedila na fala do
pastor Melibeu uma temaacutetica aparentemente contraacuteria agrave ideia de um lugar apraziacutevel
que eacute proposto pela poesia bucoacutelica Enquanto o pastor Tiacutetiro desfruta de um cenaacuterio
ameno Melibeu afirma que deixou os limites da paacutetria e os doces campos deixando
entrever que natildeo teve a mesma sorte que o feliz amigo Embora apareccedila uma temaacutetica
um pouco contraacuteria ao contexto singelo proposto pela poesia bucoacutelica devemos levar
em conta que toda depreensatildeo temaacutetica soacute eacute possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre as
figuras que se articulam e se encadeiam no interior do discurso formando uma rede
Com isso se pensarmos na trama figurativa de todo o poema bem como na
dominacircncia dos elementos notadamente bucoacutelicos podemos afirmar que o efeito
sugerido pelo contexto eacute predominantemente singelo
Logo observa-se que em um texto as muacuteltiplas significaccedilotildees de uma
determinada figura estatildeo sob o controle de um contexto em que se encaixam com
coerecircncia apenas algumas dessas possibilidades significativas
Pensando-se na totalidade discursiva foram destacados aqui os elementos que
datildeo corporalidade agrave voz simples do discurso bucoacutelico e que satildeo capazes de engendrar
a accedilatildeo dos atores bem como caracterizar o espaccedilo de atuaccedilatildeo das personagens O
efeito de individuaccedilatildeo pretendido eacute o humilde que se corporifica nas falas das
personagens bem como na espacialidade descrita
Com efeito o cenaacuterio presente na poesia pastoril difere do cenaacuterio encontrado
na poesia eacutepica Como observa Legrand (apud BOLEacuteO 1936 p 54-55) o ambiente
campestre pode contemplar um rochedo a espessura verde de um pequeno bosque
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uma fonte pinheiros olmos choupos carvalhos aves insetos etc Estas seratildeo
portanto figuras recorrentes na poesia de temaacutetica pastoril Mas eacute importante destacar
o modo como essas figuras se organizam e o modo como particularizam os temas que
abrangem a simplicidade e o viver ruacutestico do campo
Apoacutes a coleccedilatildeo de dez poemas de temaacutetica bucoacutelica Virgiacutelio compocircs as
Geoacutergicas obra classificada tradicionalmente como didaacutetica Mas ao compor um
poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo quis transmitir apenas conhecimentos
teacutecnicos sobre os trabalhos do campo tais como o tempo propiacutecio para realizar o
plantio e a colheita ou os procedimentos adequados para se castrar as colmeias Aliaacutes
se os criacuteticos da obra virgiliana se fixassem apenas nesse aspecto temaacutetico a obra
seria classificada como um tratado teacutecnico de agronomia todavia as Geoacutergicas
representam muito mais do que um simples compecircndio de aplicaccedilatildeo praacutetica sobre
meacutetodos a serem seguidos na agricultura jaacute que da totalidade de preceitos uacuteteis e
praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas aqueles que convecircm
agrave finalidade artiacutestica e poeacutetica
De acordo com Trevisam (2014 p 30) a palavra ldquodidaacuteticordquo remonta ao verbo
grego didaacutesco (lat doceo de mesma raiz indo-europeia) cujos sentidos oferecidos
em dicionaacuterio especializado incluem ldquoensinarrdquo e ldquoinstruirrdquo Assim de iniacutecio podemos
dizer que todo poema didaacutetico se compromete essencialmente com a instruccedilatildeo do
seu puacuteblico Os quatro cantos das Geoacutergicas satildeo organizados a partir de diferentes
temaacuteticas No primeiro livro fala-se da lavoura no segundo da arboricultura
sobretudo a viticultura no terceiro da pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no
quarto da apicultura como assim descreve Virgiacutelio no iniacutecio do Canto I
(Geo Canto I hex 1-5)
Quid faciat laetas segetes quo sidere terram uertere Maecenas ulmisque adiungere uitis conueniat quae cura boum qui cultus habendo sit pecori apibus quanta experientia parcis hinc canere incipiam
Agora comeccedilarei a celebrar o que faz as colheitas feacuterteis com que astros Mecenas conveacutem arar a terra e unir as videiras aos olmeiros que cuidados aos bois que conduta seguir para que seja mantido o rebanho quanta experiecircncia para as parcas abelhas
As Geoacutergicas apresentam um caraacuteter instrutivo proacuteprio do gecircnero da poesia
didaacutetica e empregam uma gama variada de modos discursivos tais como exposiccedilatildeo
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descriccedilatildeo narraccedilatildeo inserccedilatildeo de episoacutedios mitoloacutegicos faacutebulas etc aleacutem de contar
com a presenccedila de uma voz didaacutetica que se coloca como magister para ditar os
conhecimentos relativos agrave agricultura (TREVISAM 2014)
Pensando-se nessa temaacutetica de caraacuteter instrutivo os tratadistas antigos
nomearam para as Geoacutergicas o estilo meacutedio que eacute destinado a assuntos moderados
Logo o efeito de sentido mediano apoia-se dessa forma no conjunto de temas e
figuras utilizados Destacam-se alguns exemplos
(Geo I 176-177)
Possum multa tibi ueterum praecepta referre ni refugis tenuisque piget cognoscere curas
Posso contar-te muitos preceitos dos antigos se natildeo te esquivas nem te daacute fastio em conhecer pequenos cuidados
Nestes dois hexacircmetros antes de introduzir o tema dos cereais a voz poeacutetica
pede licenccedila para tratar de assuntos considerados menores e ainda no mesmo canto
essa voz continua a prever que se poderaacute achar despreziacutevel o toacutepico do cultivo da
lentilha da Peluacutesia
(Geo I 227-230)
Si uero uiciamque seres uilemque phaselum nec Pelusiacae curam aspernabere lentis haud obscura cadens mittet tibi signa Bootes incipe et ad medias sementem extende pruinas
Se plantares a ervilha e o humilde feijatildeo e natildeo desprezares cuidar da lentilha da Peluacutesia6 o Boieiro7 ao se pocircr dar-te-aacute sinais bem claros
comeccedila e prolonga a semeadura ateacute o meio das geadas Sobre o Canto I das Geoacutergicas aliaacutes vale destacar as palavras de Trevisam
(2014 p 190-191)
O livro I das Geoacutergicas virgilianas descortina ao leitor o espetaacuteculo da luta humana pela sobrevivecircncia diaacuteria fruto do trabalho de nossas matildeos segundo descrito pelo poeta eacute essa a parcela da obra em que se concentram preceitos didaacuteticos em nexo com o plantio dos campos cerealistas donde nos vem o patildeo siacutembolo por excelecircncia da vida material civilizada Nesse contexto como muitas e por vezes
6 Peluacutesio ou Boca Peluacutesia cidade antiga do baixo Egito 7 Boieiro uma constelaccedilatildeo do hemisfeacuterio celestial norte
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penosas satildeo descritas as vaacuterias operaccedilotildees de cultivo necessaacuterias a exemplo da primeira arada do solo (v 43-46) da escolha das sementes (v 197-200) da feitura de uma eira para debulha das espigas (v 176-186) e da adubaccedilatildeo (v 80)
Com efeito o cenaacuterio presente no Canto I das Geoacutergicas deixa entrever
sobretudo a importacircncia do trabalho e as teacutecnicas de cultivo desde o preparo do solo
ateacute sua adubaccedilatildeo e o iniacutecio do plantio A voz didaacutetica presente no texto coloca-se na
posiccedilatildeo de um magister que presta orientaccedilotildees sobre esse tema O efeito de sentido
engendrado eacute de caraacuteter instrutivo e os assuntos tratados satildeo considerados triviais O
estilo mediano portanto constroacutei-se a partir dessa recorrecircncia temaacutetica e das figuras
que lhe datildeo corporalidade no enunciado
Como marco da literatura latina a Eneida foi escrita a pedido do imperador
Otaviano8 Assim a epopeia de Virgiacutelio busca enaltecer Roma senhora do mundo e
consequentemente engrandecer a figura de Otaviano como princeps O estilo
reconheciacutevel eacute o sublime devido a recorrecircncia de temas e figuras que datildeo ao discurso
o efeito de sentido grandiloquente proacuteprio da eacutepica
(Eneida Canto I ndash hex 1- 11)
Arma uirumque cano Troiae qui primus ab oris Italiam fato profugus Lauinaque uenit litora ndash multum ille et terris iactatus et alto ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram multa quoque et bello passus dum conderet urbem inferretque deos Latio genus unde Latinum Albanique patres atque altae moenia Romae Musa mihi causas memora quo numine laeso quidue dolens regina deum tot uoluere casus insignem pietate uirum tot adire labores impulerit Tantaene animis caelestibus irae
Canto as armas e o varatildeo que impelido pelo destino primeiro veio das praias de Troia ateacute agrave Itaacutelia e ao litoral Laviacutenio ele foi muito perseguido tanto em terra como no mar e pela forccedila dos deuses e pela ira lembrada da cruel Juno ele sofreu muito na guerra ateacute que natildeo fundasse uma cidade e introduzisse os deuses no Laacutecio onde surgiriam a raccedila latina e os chefes Albanos e as muralhas da soberba Roma Oacute musa recorda-me as causas por que a divindade ofendida ou por qual maacutegoa a rainha dos deuses obrigou um varatildeo notaacutevel por
8 Caio Otaacutevio filho de famiacutelia senatorial tornou-se Caio Juacutelio Ceacutesar Otaviano herdeiro legal e poliacutetico de Ceacutesar em 27 aC jaacute firmemente estabelecido como senhor do mundo tornou-se Ceacutesar Augusto (BOWDER 1980 p42)
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sua piedade a correr tantos perigos e a enfrentar tantos trabalhos Por que tanta ira nos espiacuteritos celestes
A eacutepica eacute marcada como se vecirc no pequeno excerto pela figura do heroacutei e suas
aventuras Eneias o ilustre varatildeo cumpre seu destino ao sair das praias de Troia e
chegar ao litoral Laviacutenio na Itaacutelia onde se construiratildeo as muralhas da soberba Roma
A musa a ser lembrada eacute a da poesia eacutepica que inspira temas grandiosos sobre as
aventuras do heroacutei O efeito de individuaccedilatildeo apoia-se dessa forma na recorrecircncia de
figuras que contribuem para a corporalidade do eacutepico Depreende-se o estilo
grandiloquente a partir da imagem construiacuteda do heroacutei bem como por suas accedilotildees
desde que saiu das praias de Troia e deu iniacutecio agrave sua empreitada O estilo marca um
efeito de individualidade que pode ser captado pela recorrecircncia temaacutetica e figurativa
presente no discurso O efeito grandiloquente emerge portanto de um contexto que
lhe daacute corporalidade para existir
Ao falar em estilo falamos portanto em unidade pensando-se na recorrecircncia
temaacutetica e figurativa predominante nos discursos bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Para cada
estilo singelo meacutedio e grandiloquente haacute um efeito de individuaccedilatildeo marcado pela
recorrecircncia de temas e figuras e pelas relaccedilotildees de sentido detectadas que
permanecem no discurso e deixam entrever uma unidade A recorrecircncia de temas e
figuras engendram assim uma previsibilidade e um modo de ser dos textos
Nosso objetivo eacute enfim demonstrar que eacute possiacutevel descrever os trecircs estilos
singelo meacutedio e grandiloquente tendo como apoio teoacuterico a Semioacutetica Greimasiana
Para tanto buscaremos em excertos representativos das trecircs obras de Virgiacutelio a
recorrecircncia temaacutetica e figurativa que imprime assim um modo proacuteprio de dizer
configurando o efeito de individuaccedilatildeo de cada estilo
Em Virgil in the Renaissance Wilson-Okamura (2010 p 90) fala-nos sobre o
mito que cerca a Roda de Virgiacutelio O criacutetico menciona que a Roda tem origem
medieval pois sua expressatildeo se origina no iniacutecio do seacuteculo XIII com Joatildeo de
Garlacircndia mas para o criacutetico embora o termo ldquoRoda de Virgiacuteliordquo seja mencionado em
alguns estudos do Renascimento o uso ou a menccedilatildeo que se faz agrave Roda carece de
precisatildeo sobre o termo Segundo Wilson-Okamura muitos estudiosos escrevem
sobre a Roda como se ela fosse uma progressatildeo de gecircneros comeccedilando com o
gecircnero pastoral (Bucoacutelicas) passando pelo gecircnero didaacutetico (Geoacutergicas) e terminando
com o eacutepico (Eneida) Na opiniatildeo do criacutetico isso faz tanto sentido quanto dizer que
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uma roda de cores comeccedila com o vermelho e termina com o violeta jaacute que por
definiccedilatildeo as rodas natildeo tecircm pontos finais pois trazem uma ideia de continuidade de
um movimento circular ao redor de um eixo Wilson-Okamura (2010 p 91) esclarece-
nos assim que a Roda natildeo diz nada sobre gecircneros nem sobre uma progressatildeo entre
eles Os aros concecircntricos presentes na Roda satildeo organizados de acordo com os
estilos e natildeo de acordo com os gecircneros Aleacutem disso o objetivo da Roda para Wilson-
Okamura natildeo eacute ditar qual gecircnero deve aparecer primeiro mas sim mostrar como os
caracteres satildeo dispostos em diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo por exemplo os poemas
no estilo mediano natildeo devem apresentar espadas ou pastores porque espadas
pertencem ao contexto do estilo grave enquanto os pastores satildeo parte de um cenaacuterio
que eacute proacuteprio do estilo humilde
De acordo com Wilson-Okamura (2010) a Roda de Virgiacutelio natildeo eacute um termo
usado pelos autores no Renascimento pois se trata de uma concepccedilatildeo acerca da
carreira de Virgiacutelio como extensatildeo de todos os niacuteveis de estilo que ecoaram nos
comentaacuterios do Renascimento
Segundo o criacutetico Virgiacutelio criou os seus trecircs trabalhos em um triacuteplice estilo
Para as Bucoacutelicas ele caracteriza as coisas em um estilo delicado registrando o
cenaacuterio com caracteres amenos Nas Geoacutergicas o poeta vale-se de um estilo
mediano utilizando caracteres que registram um cenaacuterio moderado e na Eneida lanccedila
matildeo de caracteres graves para registrar o cenaacuterio das guerras e batalhas O que
define a carreira de Virgiacutelio para Wilson-Okamura (2010) eacute o domiacutenio dos trecircs estilos
pois o que define o sucesso de Virgiacutelio natildeo eacute a sequecircncia de gecircneros mas sim a
representaccedilatildeo que o poeta fez de cada estilo sendo por fim esta forma de
representaccedilatildeo e natildeo os gecircneros o que os poetas e criacuteticos modernos devem apreciar
na carreira de Virgiacutelio
Embora Wilson-Okamura fale de caracteres proacuteprios a cada estilo e natildeo
mencione termos semioacuteticos tais como recorrecircncia temaacutetica e figurativa o que ele
pretendeu destacar sobre os trecircs tipos de estilo vai ao encontro daquilo que
acreditamos o de que satildeo elementos engendrados no discurso e que mantecircm um
caraacuteter de individuaccedilatildeo Quando Wilson-Okamura muito bem destaca os diferentes
contextos de atuaccedilatildeo das personagens ele quer com isso mostrar a coerecircncia de
figuras que satildeo proacuteprias a cada discurso O criacutetico mostra ainda o conteuacutedo da Roda
arranjado verticalmente
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Tabela 1- The spokes of Virgilrsquos Wheel
Lowly (humilis) style Middle (mediocris) style Weighty (grauis) style
Shepherd at ease Farmer Soldier ruler
Tityrus Meliboeus Triptolemus Coelius Hector Ajax
Sheep Cow Horse
Crool Plow Sword
Pasture Field city camp
Beech apple pear Laurel cedar
Fonte Extraiacutedo de Wilson-Okamura 2010 p 91
Com isso Wilson-Okamura demonstra que as colunas da Roda satildeo
organizadas de acordo com os estilos e natildeo de acordo com os gecircneros jaacute que o
objetivo da roda natildeo eacute ditar qual gecircnero deve ser apresentado primeiro mas sim
ensinar o que eacute proacuteprio de cada cenaacuterio de atuaccedilatildeo
Concordamos portanto com o pensamento do criacutetico e destacamos ainda
que os caracteres por ele mencionados devem ser entendidos a partir da Semioacutetica
como figuras que se coadunam para atuaccedilatildeo em cenaacuterios especiacuteficos seja bucoacutelico
didaacutetico ou eacutepico
Embora o esquema circular tripartido de Joatildeo de Garlacircndia tenha recebido o
nome de A Roda de Virgiacutelio muito se tem discutido acerca dos elementos colocados
em seus trecircs aros concecircntricos
Em Literary Names Personal Names in English Literature Alastair Fowler
(2012 p29) discorre acerca dos nomes proacuteprios presentes na Roda de Virgiacutelio Os
nomes citados no estilo grave por exemplo satildeo Hector e Ajax personagens de
Homero (seacutec VIII aC) pois neste estilo cabem nomes lendaacuterios e histoacutericos Por isso
a Eneida a eacutepica virgiliana eacute associada a este estilo9 Enquanto isso Triptolemus e
Coelius (agraves vezes Caelius) nomes referenciados no estilo mediano satildeo nomes
comuns e que portanto de acordo com Fowler assemelham-se ao contexto de um
estilo moderado ainda que os nomes tenham alguma alusatildeo lendaacuteria como no caso
de Triptolemus heroacutei de Elecircusis - regiatildeo da Aacutetica Ocidental na Greacutecia - que foi
9 Aleacutem disso em Virgiacutelio haacute menccedilatildeo a Ajax no Canto I hex 41 e Canto II hex 414 A figura de Heitor (Hector) jaacute aparece em vaacuterios contextos Canto I- hex 99 483 750 Canto II ndash hex 270 275 282 522 Canto III- hex 312 319 343 Canto V- hex 371 Canto VI- hex 166 Canto IX- hex 155 Canto XI- hex 289 Canto XII- hex 440 Aleacutem de Hectoreus em Canto I ndash hex 273 Canto II- hex 543 Canto III- hex 304 488 Canto V- hex 190 634
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agraciado com o dom da agricultura no Hino Homeacuterico a Demeacuteter I10 Diz-se que em
Elecircusis aliaacutes era comum o culto agrave deusa agriacutecola Demeacuteter Triptolemus eacute um nome
portanto relacionado ao contexto da agricultura presente nas Geoacutergicas ainda que
natildeo seja necessariamente uma personagem de Virgiacutelio Em se tratando do estilo
simples seguindo o pensamento de Fowler Tiacutetiro e Melibeu satildeo nomes comuns de
pastores presentes tanto em Teoacutecrito (300-260 aC) poeta grego do Periacuteodo
Heleniacutestico como em Virgiacutelio Fowler aponta assim para o tipo de nomeaccedilatildeo
especiacutefica a partir de cada estilo e seu contexto correspondente o que vai ao encontro
da ideia exposta por Wilson-Okamura a de que os caracteres se moldam a partir de
seu contexto de atuaccedilatildeo
Podemos observar que as obras de Virgiacutelio foram identificadas com os trecircs
tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica A Roda de Virgiacutelio no seacuteculo XIII
mapeando essa identificaccedilatildeo aponta em cada um de seus aros concecircntricos os
caracteres coerentes para cada contexto de atuaccedilatildeo seja ele singelo meacutedio ou
grandiloquente o que deixa entrever que para cada cenaacuterio construiacutedo haacute figuras
especiacuteficas que lhe datildeo corporalidade Com isso entendemos cada estilo como um
efeito de individuaccedilatildeo como uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa depreensiacutevel do
discurso
10 Este eacute um dos quatro hinos homeacutericos mais extensos Satildeo chamados homeacutericos porque pertencem ao gecircnero eacutepico e por apresentarem uma teacutecnica de composiccedilatildeo anaacuteloga agrave obra homeacuterica Na realidade sua autoria eacute desconhecida
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3 A criacutetica virgiliana
31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida
Na introduccedilatildeo dos seus dois conjuntos de ensaios Vergilrsquos Eclogues e Vergilrsquos
Georgics publicados em 2008 Katharina Volk discorre sobre as diferentes
abordagens acadecircmicas acerca da vida e obra de Virgiacutelio Procuramos destacar aqui
os comentaacuterios que julgamos mais relevantes
Volk (2008) afirma assim que haacute leituras divergentes em relaccedilatildeo agraves trecircs obras
virgilianas e que realizar um panorama geral dos estudos virgilianos eacute uma tarefa
assustadora devido agraves inuacutemeras interpretaccedilotildees No entanto segundo a estudiosa a
discussatildeo da criacutetica virgiliana apesar de divergente e ampla merece destaque Ela
enfatiza entatildeo as abordagens acadecircmicas a partir da deacutecada de 70
Segundo Volk o estudo das Bucoacutelicas e das Geoacutergicas de Virgiacutelio ficaram um
bom tempo agrave margem dos estudos sobre Eneida pois eram obras citadas como
exemplo de menor gecircnero e fruto do trabalho de um poeta jovem As Bucoacutelicas
frequentemente eram citadas como um livro de preparaccedilatildeo para a grande eacutepica a
obra-prima em que a vida e o trabalho de Virgiacutelio alcanccedilaram segundo a criacutetica
tradicional o seu aacutepice Embora o gecircnero bucoacutelico tenha usufruiacutedo de acordo com
Volk periacuteodos de grande popularidade em vaacuterios pontos da histoacuteria da literatura
ocidental os poemas pastoris de Virgiacutelio eram estudados menos frequentemente que
a Eneida e segundo a especialista as publicaccedilotildees sobre a eacutepica virgiliana
ultrapassavam de longe os primeiros poemas Para Volk isso natildeo quer dizer no
entanto que natildeo se tenha nas Bucoacutelicas e Geoacutergicas um trabalho consideraacutevel Ela
destaca portanto os uacuteltimos trinta anos ou mais que foram contemplados com
publicaccedilotildees de grande criacutetica Dentre as publicaccedilotildees de destaque Volk menciona
Coleman (1977) Clausen (1994) e numerosos livros e artigos representativos de
ambas as obras virgilianas
O aumento de publicaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves duas obras consideradas ldquomenoresrdquo
de Virgiacutelio deve-se de acordo com Volk ao desenvolvimento e avanccedilo dos estudos
da Literatura Latina no final do seacuteculo XX e iniacutecio do seacuteculo XXI Hoje apesar da
multiplicidade de abordagens dificultar uma visatildeo geral acerca da obra virgiliana
parece possiacutevel segundo a especialista discernir ao menos duas principais vertentes
criacuteticas na obra do poeta mantuano
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A primeira vertente envolve as leituras que para Volk podem ser chamadas de
ldquoideoloacutegicasrdquo Satildeo as abordagens acadecircmicas baseadas na ideia de que os poemas
de Virgiacutelio foram concebidos para transmitir uma mensagem que o criacutetico de uma
certa forma esforccedila-se para descobrir Nesta mensagem subliminar pode-se
considerar a situaccedilatildeo social e poliacutetica em que a obra foi concebida ou avaliaccedilotildees
criacuteticas acerca da posiccedilatildeo social e poliacutetica de Virgiacutelio Ao poeta assim eacute creditada
uma visatildeo positiva ou otimista natildeo soacute para a vida pastoril apresentada em seu poema
como tambeacutem para a ascendecircncia de Otaviano
A partir da deacutecada de 70 os criacuteticos passaram a ver certa ambivalecircncia e ateacute
certo pessimismo nas Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida demonstrando que o poeta natildeo
era totalmente a favor da poliacutetica de Otaviano Segundo Virgiacutenia Soares (1984 p 173)
A criacutetica respeitante agrave obra de Virgiacutelio conta cerca de dois mil anos Cada eacutepoca procurou na Eneida o poema que se ajustava agraves suas vivecircncias Por isso tecircm sido tantas e tatildeo diferentes contraditoacuterias mesmo as abordagens interpretativas do poema Eacutepocas houve confiantes no futuro e na funccedilatildeo regeneradora de um estado providencial e organizado que na Eneida viram o poema da glorificaccedilatildeo de Augusto e da missatildeo civilizadora de Roma
Assim as leituras de vertente ldquoideoloacutegicardquo concentraram-se em determinar as
nuances ldquootimistasrdquo ou ldquopessimistasrdquo das obras de Virgiacutelio demonstrando se os
escritos do poeta eram coerentes ou natildeo com o programa poliacutetico de Otaviano No
entanto segundo Volk houve uma reavaliaccedilatildeo dos estudos virgilianos nos uacuteltimos
anos e os especialistas inclinaram-se mais a uma interpretaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a
Virgiacutelio e a poliacutetica de sua eacutepoca
A segunda vertente por fim envolve as ldquoleituras literaacuteriasrdquo das obras virgilianas
Finalmente para Volk as criacuteticas mais atuais passaram a dar enfoque agraves questotildees
de poeacutetica ou seja em como Virgiacutelio compromete-se a inscrever seus proacuteprios
esforccedilos dentro de uma particular tradiccedilatildeo literaacuteria Nesta abordagem estatildeo presentes
as discussotildees sobre os gecircneros dos poemas a intertextualidade e as diferentes
formas como cada obra se realiza
No entendimento de Volk as duas vertentes podem se complementar Enquanto
as leituras ideoloacutegicas preocupam-se com o papel do poeta e sua visatildeo poliacutetica a
vertente literaacuteria tem muito a dizer sobre os poemas em si Mas segundo ela muito
se tem a dizer ainda sobre a poesia de Virgiacutelio
48
Nos anos 70 houve um suacutebito florescimento dos estudos das Bucoacutelicas de
Virgiacutelio especialmente no mundo da Liacutengua Inglesa em que Putnam (1970) publicou
a primeira monografia e logo foi seguido por Berg (1974) Leach (1974) Van Sickle
(1978) e Alpers (1979) assim como a criacutetica de Coleman em 1977 Alguns fatores
contribuiacuteram segundo Volk para esse florescimento primeiro os estudos literaacuterios
assistiram a um aumento consideraacutevel de novas composiccedilotildees da poesia pastoril
(bucoacutelica) o que fez Eleanor W Leach a proclamar no prefaacutecio do seu livro em 1974
uma nova idade de ouro da criacutetica da poesia bucoacutelica segundo inspirados pelo New
Criticism os estudiosos encontraram nos enigmaacuteticos e complexos poemas pastoris
de Virgiacutelio um terreno feacutertil para interpretaccedilotildees simboacutelicas terceiro a leitura
pessimista que se fez da eacutepica virgiliana em relaccedilatildeo agrave poliacutetica de Otaviano na deacutecada
de 60 ampliou o interesse dos estudiosos pelas outras duas obras
Volk cita algumas leituras pessimistas das Bucoacutelicas e entre elas estatildeo
Putnam (1970) Leach (1974) e Segal (1981) com uma coleccedilatildeo de artigos bucoacutelicos
de Teoacutecrito e Virgiacutelio publicados originalmente entre 1965 e 1977 aleacutem de Boyle
(1986) e MOLee (1989) entre outros Estas obras segundo a especialista refletem
uma visatildeo das obras pastoris em geral e das Bucoacutelicas de Virgiacutelio trazem a ideia de
uma fantasia evasiva rural
A ideia de que Virgiacutelio nas Bucoacutelicas tenha criado uma espeacutecie de ldquopaisagem
espiritualrdquo que ele chamou de Arcaacutedia foi formulada por Bruno Snell em 1945 o que
influenciou muitos estudos Entre os pesquisadores representativos desse tipo de
visatildeo utoacutepica das Bucoacutelicas estaacute Friedrick Klinger que em 1967 publicou uma
monografia com seus estudos e reflexotildees acerca da obra de Virgiacutelio
Nas interpretaccedilotildees pessimistas no entanto as Bucoacutelicas nunca apresentam
um mundo bucoacutelico ideal mas sempre um que estaacute em perigo foi perdido ou estaacute
sendo abandonado Os criacuteticos aos poucos foram desconstruindo a visatildeo de Snell
chamando a atenccedilatildeo para contradiccedilotildees poliacuteticas apresentadas nos poemas pastoris
de Virgiacutelio Um latinista alematildeo Ernst Schmidit todavia ataca a Arcaacutedia por um
acircngulo diferente Na visatildeo de Schmidit qualquer leitura ideoloacutegica dos poemas de
Virgiacutelio baseava-se em mal-entendidos As Bucoacutelicas segundo ele natildeo satildeo
panegiacutericos poliacuteticos louvor do campo ou algum estado ideal de vida humana tal
como a Idade de Ouro ou a Arcaacutedia para Schmidit os poemas satildeo sobre a proacutepria
poesia
49
Muitas das publicaccedilotildees acadecircmicas das uacuteltimas deacutecadas segundo Volk
preocupavam-se mais com as Bucoacutelicas como poesia ou com o que a obra tem a dizer
sobre poesia do que o posicionamento poliacutetico do poeta Dentre as anaacutelises
formalistas sobre o estilo e a linguagem nas bucoacutelicas de Virgiacutelio incluem-se Lipka
(2001) os ensaios de RGNisbet (1991) e Rumpf (1999) Sobre o jogo etimoloacutegico
das Bucoacutelicas destaca-se ainda o trabalho de OrsquoHara (1996) Para Volk questotildees
acerca do gecircnero bucoacutelico tecircm sido sempre um foco de reflexatildeo nos estudos das
Bucoacutelicas Hubbard (1998 p18) insistindo na construccedilatildeo intertextual do poema
pastoril propocircs que o gecircnero bucoacutelico fosse constituiacutedo pelo posicionamento de cada
poeta diante de seu antecessor Aleacutem disso Volk tambeacutem destaca o estudo de Breed
(2006) que examina nas Bucoacutelicas a suposta cultura da oralidade dos seus pastores
protagonistas Dentre as obras de criacutetica sobre o gecircnero bucoacutelico tambeacutem
sublinhamos o estudo de Joatildeo Pedro Mendes em Construccedilatildeo e arte nas Bucoacutelicas de
Virgiacutelio assim como o trabalho de Alexandre Hasegawa em Os limites do gecircnero
bucoacutelico em Vergiacutelio
No que diz respeito agrave criacutetica das Geoacutergicas destacamos o pensamento de Ruy
Mayer (1948 p 15) que afirma que a exaltaccedilatildeo do trabalho e da prece eacute a essecircncia
filosoacutefica das Geoacutergicas jaacute que a obra
relaciona-se com um objetivo social ou antes poliacutetico restaurar o prestiacutegio da vida agriacutecola um dos pilares da ordem nova que Augusto se propunha a instituir e com um objetivo teacutecnico ensinar os bons preceitos agronocircmicos os meacutetodos racionais da cultura e da exploraccedilatildeo pecuaacuteria envolvendo a doutrina na delicada trama da poesia o meio de transmissatildeo mais apropriado para o gosto e para os usos da eacutepoca
Sublinha-se tambeacutem o pensamento de Santos (2007 p 17) que atesta que ao
cantar a terra e os encantos da vida rural Virgiacutelio talvez pudesse incentivar a volta ao
campo de milhares de camponeses que estavam desempregados na cidade e
consequentemente poder-se-ia ldquorestaurar a agricultura itaacutelica que se encontrava em
plano inferior devido agraves guerras civisrdquo
Mecenas o patrono das letras foi um auxiliar uacutetil e leal de Otaviano Atuando
como intermediaacuterio em vaacuterios assuntos ele foi encarregado da administraccedilatildeo de
Roma Segundo a tradiccedilatildeo foi ele quem sugeriu o poema das Geoacutergicas a Virgiacutelio
pois como afirma-nos Santos (2007 p18) isso corresponderia ao programa poliacutetico
50
de Otaviano o retorno agrave agricultura Na eacutepoca a celebraccedilatildeo do trabalho agriacutecola e do
ofiacutecio do lavrador eram bastante significativos jaacute que a agricultura era uma das bases
da grandeza de Roma pois ocupava importante posiccedilatildeo na economia do Oriente e
era uma fonte de riqueza importante para os conquistadores
Para La Penna (1988 p71-72 apud Santos 2007 p18) seria um erro supor
que a obra de Virgiacutelio serviria como guia para os agricultores da Itaacutelia pois o que se
desejava na verdade era um impulso ideal que favorecesse um retorno agrave terra com
confianccedila no trabalho e no Estado romano-itaacutelico Grimal (1992 p123) afirma ainda
que Mecenas eacute apenas o vento que empurra a embarcaccedilatildeo natildeo sendo portanto seu
piloto nem comandante O patrono das letras assim eacute destacado neste pequeno
excerto das Geoacutergicas (Canto II 39-41)
Tuque ades inceptumque una decurre laborem o decus o famae merito pars maxima nostrae Maecenas pelagoque uolans da uela patenti
E tu estaacutes presente e percorre o trabalho empreendido oacute honra Mecenas a melhor parte da minha fama com justiccedila voando daacute velas ao extenso mar
Segundo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos Mecenas mobilizava talentos como
Virgiacutelio e Horaacutecio a serviccedilo do regime propondo-lhes alguns temas Para Santos
(2007 p 21) talvez estes poetas ldquotivessem se agrupado ao redor de Mecenas por
encontrarem nele uma concepccedilatildeo de vida e de arte Provavelmente o novo regime
correspondesse agraves suas aspiraccedilotildeesrdquo
Na visatildeo de Ruy Mayer (1948 p19-20) em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo das
Geoacutergicas
eacute provaacutevel que o Poeta independente de qualquer incitamento sentisse a gravidade da decadecircncia agriacutecola da Itaacutelia e considerasse obra de utilidade nacional atrair agrave atividade agraacuteria muitos dos que a haviam deixado Mas como opina Skrine nem os propoacutesitos poliacuteticos de Augusto nem a intenccedilatildeo da iniciativa de Virgiacutelio de acudir ao agricultor romano explicam as Geoacutergicas O que explica esta incomparaacutevel obra de arte eacute o amor de Virgiacutelio pelo seu assunto o seu encanto pela Natureza a sua afeiccedilatildeo pelas fainas do campo a sua ternura pelos animais e pelas plantas tudo enfim quanto Saint-Beauve definiu magistralmente no capiacutetulo do seu ceacutelebre estudo que se intitula De quoi se compose le geacutenie et lrsquoart drsquoum Virgile
51
No que concerne agrave Eneida a eacutepica virgiliana tem sido considerada pela tradiccedilatildeo
como um canto aos novos tempos do Impeacuterio jaacute que desde o anuacutencio de sua
concepccedilatildeo Otaviano colocava grandes esperanccedilas em seu projeto
Foi na eacutepoca em que Otaviano foi nomeado Ceacutesar Augusto portanto que os
escritores encontraram o que Leoni (1969 p 65) chama de completa harmonia pois
com Otaviano ao poder Roma entrou numa eacutepoca de paz tatildeo almejada depois das
tormentas das guerras civis Os feitos do imperador bem como sua poliacutetica
equilibrada e pacificadora exerceram influecircncia nas artes e literatura Deve-se
destacar que
A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)
Segundo Funari (2001 p 100)
Virgiacutelio foi o grande poeta eacutepico latino tendo composto na eacutepoca do
imperador Augusto (seacuteculo I aC) a Eneida um poema que contava
as origens heroicas do povo romano descendente dos troianos Na
mesma eacutepoca Tito Liacutevio escrevia uma monumental Histoacuteria de Roma
desde a fundaccedilatildeo ateacute Augusto Em ambos os casos as obras
representavam bem os planos de Augusto para glorificar as origens e
a histoacuteria de expansatildeo e domiacutenio romano do mundo
Virgiacutelio trama portanto em sua eacutepica um conjunto de situaccedilotildees e histoacuterias
remetendo-nos agrave nostalgia de tempos lendaacuterios em Roma Narram-se assim as
aventuras de Eneias heroacutei que possui aleacutem da sua origem humana uma linhagem
divina pois sua matildee eacute Vecircnus a deusa do amor O heroacutei em suas aventuras eacute guiado
pelo fatum (destino) que o leva a experimentar e a enfrentar o que lhe eacute apresentado
ao longo do caminho Sabe-se por fim que
A fundaccedilatildeo da nova estirpe que daraacute origem a Roma e ao Impeacuterio eacute uma missatildeo querida pela providecircncia divina reservada a um heroacutei perfeito ao heroacutei piedoso e paciente que se resigna a perder a esposa na ruiacutena de Troia a renunciar ao amor de Dido a obedecer ponto por
52
ponto agraves ordens divinas a fim de ser porta-voz da vontade celeste (PARATORE 1983 p 402)
Desde a saiacuteda de Troia incendiada Eneias jaacute sabe que estaacute destinado a fundar
uma ldquoNova Troiardquo Ele seraacute o responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses
do lar em solo latino Portanto ao longo da narraccedilatildeo o heroacutei tenta fazer cumprir o
seu destino
Dividida em doze cantos a epopeia virgiliana segue o modelo da Iliacuteada e a
Odisseia de Homero Segundo Antonio Medina Rodrigues (2005 p13) embora
Homero tenha sido o modelo os guerreiros da Iliacuteada adotam uma postura narciacutesica
enquanto os guerreiros da Eneida satildeo marcados pela pietas de Eneias
Sobre isso vale aqui destacar o seguinte comentaacuterio de Andreacute Bellesort (1949
p 261 apud THAMOS 2011 p 49 nota 16)
A Eneida natildeo seria o grande poema de Roma e da civilizaccedilatildeo latina se natildeo tivesse um interesse universal Natildeo lhe compreendemos todas as belezas e toda a majestade que nos reportam agraves Antiguidades romanas e ao Impeacuterio mas afora circunstacircncias histoacutericas que poderiacuteamos desconhecer ela eacute uma dessas poucas obras nas quais a menos que a si mesma se renegue a humanidade se reconhece junto com a natureza e em que experimentamos um maravilhoso prazer contemplando o espetaacuteculo de nossas proacuteprias miseacuterias Ela nos oferece com os encantos da mais fina e vigorosa arte emoccedilotildees profundamente humanas
Assim a Eneida eacute ao lado da Iliacuteada e da Odisseia de Homero um dos maiores
eacutepicos da Literatura Universal Soares (1984) nomeia alguns dos estudos sobre a
Eneida The two voices of Virgils Aeneid (A PARRY) Linspiration tragique de
lEneacuteide (W S MAGUINNESS) The pessimism of the eighth Aeneid (CD S
WIESEN) An interpretation of the Aeneid (W CLAUSEN visatildeo pessimista) A study
of Vergils Aeneid (W R JOHNSON) Le poegraveme de linquieacutetude historique (J-P
BRISSON) A outra face de Eneias (W S MEDEIROS) Aeneas desairing (W W
DE GRUMMOND) Para a criacutetica a lista poderia se alongar e ainda assim os criacuteticos
natildeo esgotariam os temas presentes na epopeia latina Segundo a tradiccedilatildeo a eacutepica
virgiliana assim que foi publicada afirmou-se como a mais alta expressatildeo artiacutestica e
cultural que o mundo romano jamais produzira Sobre a poeacutetica de Virgiacutelio na Eneida
destacamos o estudo de Thamos As armas e o varatildeo (2011) Valendo-se dos
53
recursos da Poeacutetica o criacutetico analisa a obra de Virgiacutelio do ponto de vista da expressatildeo
buscando o entendimento acerca da vocaccedilatildeo imageacutetica do texto latino
O que pensar portanto desta rede de informaccedilotildees que os bioacutegrafos e
estudiosos de Virgiacutelio reuniram Apesar da curiosidade que a vida e o posicionamento
poliacutetico do poeta possam despertar acreditamos que um estudo sobre a obra de
Virgiacutelio contemplando-se a sua poeacutetica a construccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico
dos textos possa render discussotildees para aleacutem de enigmas e posicionamentos que
satildeo externos ao texto Embora natildeo desmereccedilamos os estudos da vertente ideoloacutegica
valemo-nos daqueles que nos auxiliam a pensar o texto claacutessico do ponto de vista da
expressatildeo contribuindo assim para a nossa leitura semioacutetica das obras virgilianas
32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho
Segundo Andrew Laird (2010 p 138) a partir de meados de 1600 a palavra
italiana para carreira carriera havia se associado a uma vida de trabalho muito antes
do seu equivalente em inglecircs adquirir o mesmo sentido no iniacutecio do seacuteculo XIX De
fato o primeiro uso atestado de carriera estava relacionado agrave carreira literaacuteria No
prefaacutecio do seu Trattato dellarte e dello stile del dialogo (1662) o historiador e poeta
Pietro Sforza Pallavicino expressou os seus agradecimentos ao Bispo de Fermo por
ter encorajado a sua infacircncia na carreira das letras (la mia puerizia nella carriera
delle lettere)
Carriera como o latim via carraria da qual deriva originalmente denotava uma
estrada de carruagem ou faixa para um veiacuteculo com rodas (carrus) Para Laird (2010
p138) este significado acaba por ter uma ligaccedilatildeo feliz com a ideia de carreira literaacuteria
e segundo o criacutetico eacute improvaacutevel que isso seja coincidecircncia jaacute que na Idade Meacutedia
a mais influente carreira literaacuteria de todas foi visualizada como uma roda - a Rota
Vergilii ou Rota Vergiliana (a Roda de Virgiacutelio) Como jaacute mencionado aqui trata-se
de um arranjo das obras de Virgiacutelio pensando-se em seus respectivos temas e estilos
em um diagrama circular que parece ter se desenvolvido a partir do uso de rota como
sineacutedoque para a imagem claacutessica da carruagem das Musas uma imagem mediada
pelos professores da antiguidade tardia Segundo a tradiccedilatildeo quando Virgiacutelio concebe
seu cursus poeacutetico como um triunfo militar na abertura do Canto III das Geoacutergicas ele
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se vecirc como um vencedor coroado com palmas que vai colocar cem carruagens em
movimento Trata-se de uma passagem em que Virgiacutelio reconhece a importacircncia da
cultura grega para a elevaccedilatildeo literaacuteria latina e tambeacutem anuncia a construccedilatildeo de um
templo para Ceacutesar Augusto
(Geo Canto III hex 10-18) primus ego in patriam mecum modo uita supersit Aonio rediens deducam uertice Musas primus Idumaeas referam tibi Mantua palmas et uiridi in campo templum de marmore ponam propter aquam tardis ingens ubi flexibus errat Mincius et tenera praetexit harundine ripas In medio mihi Caesar erit templumque tenebit illi uictor ego et Tyrio conspectus in ostro centum quadriiugos agitabo ad flumina currus
Serei eu o primeiro se a vida me restar a trazer para a minha paacutetria as musas dos cumes Aocircnios11 O primeiro a trazer para ti oacute Macircntua12 as palmas de Idumea13 Em um campo verdejante edificarei um templo de maacutermore proacuteximo agraves aacuteguas na ribeira onde o majestoso Miacutencio14 vagueia em vagarosas curvas e [que ele] adorna com a delicada cana No meio do meu templo estaraacute Ceacutesar o vencedor e eu revestido da puacuterpura de Tiro15 farei correr cem quadrigas pela margem do rio
Essa passagem foi retomada pela criacutetica como uma sugestatildeo de uma eacutepica
futura Como um todo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos tem apontado em suas
composiccedilotildees uma progressatildeo da poesia bucoacutelica para a didaacutetica e depois da didaacutetica
para a eacutepica Como jaacute pontuamos aqui por meio das palavras de Wilson-Okamura
(2010) embora seja apontada na Roda uma ideia de progressatildeo entre os gecircneros
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico a Roda aponta para uma sequecircncia de diferentes estilos
que configuram cenaacuterios particulares a partir de efeitos de individuaccedilatildeo especiacuteficos
que nos remetem portanto ao cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
Segundo Laird (2010 p139) os leitores medievais prontamente assumiram
como haviam feito os antigos bioacutegrafos de Virgiacutelio que o elevado gecircnero poeacutetico da
11 Referente agrave Aocircnia regiatildeo da Beoacutecia na Antiga Greacutecia Virgiacutelio aqui reconhece a importacircncia da cultura grega para a cultura latina 12 Proviacutencia romana da regiatildeo da Lombardia Cidade natal de Virgiacutelio 13 Regiatildeo entre o mar Morto e o golfo de Aqaba 14 Rio da Itaacutelia com 73 km de extensatildeo 15 Diz-se que a puacuterpura de Tiro da regiatildeo feniacutecia era uma tinta natural de coloraccedilatildeo vermelho-puacuterpura extraiacuteda dos caramujos
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epopeia representava o aacutepice da carreira do poeta Essa interpretaccedilatildeo se deve ao fato
de que o estilo grandiloquente presente na eacutepica deixa entrever imagens de um
cenaacuterio em que figuram temas sublimes e com personagens ilustres Todavia vale
destacar que em termos de expressatildeo as trecircs obras virgilianas estatildeo em peacute de
igualdade O que muda eacute o tratamento temaacutetico presente em cada obra e com isso
os efeitos de individuaccedilatildeo de cada discurso que configuram cenaacuterios especiacuteficos de
atuaccedilatildeo
Para Laird (2010 p 146) os antigos podiam perceber uma progressatildeo nas
obras de Virgiacutelio - ou pelo menos um aumento em sua importacircncia - das Bucoacutelicas
para as Geoacutergicas das Geoacutergicas para a Eneida Como jaacute mencionado aqui essa
progressatildeo na verdade pode ser lida como uma continuidade temaacutetica do curso
poeacutetico de Virgiacutelio se pensarmos na Roda como um diagrama circular em que estatildeo
dispostos os diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo nomeados por Virgiacutelio e que sugestionam
diferentes efeitos de sentido seja o singelo o meacutedio e o grandiloquente
Pensando-se na ideia de continuidade temaacutetica no lugar da ideia de
progressatildeo Laird (2010 p 158-159) afirma que considerar todas as composiccedilotildees de
Virgiacutelio como parte de um uacutenico livro eacute audacioso pois equivale a considerar toda a
sua obra como um texto uacutenico16 Mas isso pode natildeo ser injustificado se pensarmos no
sentido esteacutetico e poeacutetico dos textos a sua forma de expressatildeo Haacute nas trecircs obras
uma diferenccedila temaacutetica e notadamente diferentes efeitos de individuaccedilatildeo que
sugerem cenaacuterios especiacuteficos Todavia se considerarmos os termos da expressatildeo
presentes nas trecircs obras podemos afirmar que as Bucoacutelicas Georgicas e Eneida
constituem uma unidade Aleacutem disso a representaccedilatildeo na Rota Virgiliana de cada um
dos poemas de Virgiacutelio como uma parte de um ciacuterculo inteiro trecircs em um poderia ser
um reflexo da ideia de totalidade17
A Rota Virgiliana serviu portanto como ferramenta para retoacutericos e poetas que
procuraram lembrar e replicar os trecircs estilos virgilianos ao mesmo tempo em que
16 Theodorakopoulos (1997) oferece uma leitura do livro de Virgiacutelio como um texto uacutenico William Dominik tambeacutem discute essa ideia no artigo ldquoNatureza escuridatildeo e sombras no supertexto de Virgiacuteliordquo Phaos 9 17 Carruthers (2008) afirma que a lsquoRoda de Virgiacutelio era claramente um diagrama mnemocircnico que se mantinha desde John of Garland aquiacute referenciado como Joatildeo de Garlacircndia sendo provaacutevel que possa ser fisicamente manipulada como sugerem seus ciacuterculos concecircntricos Para Laird (2010 p 158) a figura da retoacuterica rota Virgili pode fornecer a conexatildeo entre a palavra latina rota roda e a frase em inglecircs pela rotardquo
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contribuiu para transmitir uma identidade subjacente agraves obras de Virgiacutelio Mas para
Laird (2010 p 159) a forma circular da Roda natildeo pocircde linearizar as Bucoacutelicas
Geoacutergicas e Eneida em uma sequecircncia temporal
A Roda de Virgiacutelio dessa forma colocou em movimento a carreira literaacuteria do
poeta do Seacuteculo de Ouro da Literatura Latina servindo como veiacuteculo para o
entendimento de suas obras
57
4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto
41 Textos temaacuteticos e figurativos
Temos por enquanto de trabalhar no sentido de ver como eacute que essa estruturaccedilatildeo atua () organizando o substrato figurativo a partir do qual o texto entrama molda enforma o
tema ou temas que o discurso potildee em andamento [] Ignaacutecio Assis Silva 1995 p 12
Ao colocar em relevo o texto como um objeto de significaccedilatildeo considerando-o
como um todo de sentido dotado de uma estrutura especiacutefica deve-se colocar em
destaque os procedimentos e mecanismos que satildeo responsaacuteveis por sua organizaccedilatildeo
e tessitura
Embora a Semioacutetica Francesa natildeo ignore que o texto seja um objeto histoacuterico
ela procura estudaacute-lo como objeto de significaccedilatildeo e por isso preocupa-se em estudar
os mecanismos e procedimentos que o estruturam e o tramam como uma totalidade
de sentido
De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (1995 p 165-166)
a palavra texto proveacutem do verbo latino texo is texui textum texere que quer dizer tecer Logo da mesma maneira que um tecido natildeo eacute um amontoado desorganizado de fios o texto natildeo eacute um amontoado de frases nem uma grande frase Tem ele uma estrutura que garante que o sentido seja apreendido em sua globalidade que o significado de cada uma de suas partes dependa do todo
A Semioacutetica Francesa concebe o processo de formaccedilatildeo de um texto como um
percurso gerativo que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto
em um processo de enriquecimento semacircntico Em um primeiro momento a
Semioacutetica examina o plano do conteuacutedo e soacute depois vai destacar as especificidades
da expressatildeo e sua relaccedilatildeo com o significado
Dois satildeo os tipos de texto temaacuteticos e figurativos Os primeiros satildeo compostos
predominantemente de temas termos abstratos enquanto os segundos apresentam
preponderantemente figuras ou seja termos concretos
Entende-se tema e figura como dois mecanismos de atuaccedilatildeo do discurso O
tema que eacute abstrato revela um discurso predominantemente natildeo-figurativo como
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satildeo os textos jornaliacutesticos dissertaccedilotildees etc O objetivo destes textos eacute o de informar
explicar ou ainda catalogar A figura por outro lado parte de um tema abstrato para
concretizaacute-lo e com isso produz um discurso predominantemente figurativo Exemplo
disso satildeo os textos literaacuterios e histoacutericos Tema remete-nos portanto ao que eacute da
ordem do abstrato e figura remete-nos agravequilo que eacute concreto
Os textos predominantemente temaacuteticos (textos jornaliacutesticos acadecircmicos)
procuram explicar classificar e ordenar enquanto os textos predominantemente
figurativos (literaacuterios histoacutericos) tecircm uma funccedilatildeo descritiva narrativa poeacutetica O tema
abstrato eacute um investimento semacircntico de ordem conceitual enquanto a figura
corresponde a tudo que eacute perceptiacutevel no mundo natural
Assim a Semioacutetica Greimasiana oferece modelos para a anaacutelise da
significaccedilatildeo na dimensatildeo do discurso procurando demonstrar como os percursos da
significaccedilatildeo se organizam e se combinam a partir de regras sintaacutexicas e semacircnticas
responsaacuteveis pela coerecircncia de um texto Agrave Semioacutetica cabe avaliar como um texto vai
se tornando mais concreto a partir da instalaccedilatildeo de personagens e a introduccedilatildeo de
iacutendices espaccedilotemporais O conteuacutedo de um texto eacute engendrado por um percurso que
vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto manifestando-se assim
por meio de um plano da expressatildeo
Os textos com funccedilatildeo utilitaacuteria informam convencem explicam e documentam
eles tecircm um compromisso com o conteuacutedo e a informaccedilatildeo Enquanto isso os textos
com funccedilatildeo esteacutetica comprometem-se com a expressatildeo
De acordo com Ignaacutecio Assis Silva (1995 p 44)
a semioacutetica natildeo estaacute preocupada com o sentido que eacute da ordem da evidecircncia com o sentido que estaacute aiacute e que natildeo eacute senatildeo efeito de sentido produto em suma A fim de poder passaacute-lo adiante de poder falar dele eacute preciso ver a produccedilatildeo que engendrou esse efeito de sentido ou o processo criador como prefere dizer Cassirer
Ao leitor atento cabe portanto notar que eacute na relaccedilatildeo entre conteuacutedo e
expressatildeo que satildeo gerados os efeitos estiliacutesticos que determinam os elementos
essenciais de um texto
Procuremos entender no pequeno excerto das Geoacutergicas de Virgiacutelio ldquoCanto IIrdquo
hexacircmetros 315 a 345 os procedimentos de figuraccedilatildeo
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Nec tibi tam prudens quisquam persuadeat auctor tellurem Borea rigidam spirante mouere rura gelu tum claudit hiems nec semine iacto concretam patitur radicem adfigere terrae optima uinetis satio cum uere rubenti candida uenit auis longis inuisa colubris prima uel autumni sub frigora cum rapidus Sol nondum hiemem contingit equis iam praeterit aestas uer adeo frondi nemorum uer utile siluis uere tument terrae et genitalia semina poscunt tum pater omnipotens fecundis imbribus Aether coniugis in gremium laetae descendit et omnis magnus alit magno commixtus corpore fetus auia tum resonant auibus uirgulta canoris et Venerem certis repetunt armenta diebus parturit almus ager Zephyrique tepentibus auris laxant arua sinus superat tener omnibus umor inque nouos soles audent se gramina tuto credere nec metuit surgentis pampinus Austros aut actum caelo magnis Aquilonibus imbrem sed trudit gemmas et frondes explicat omnis non alios prima crescentis origine mundi inluxisse dies aliumue habuisse tenorem
crediderim uer illud erat uer magnus agebat orbis et hibernis parcebant flatibus Euri cum primae lucem pecudes hausere uirumque terrea progenies duris caput extulit aruis immissaeque ferae siluis et sidera caelo nec res hunc tenerae possent perferre laborem si non tanta quies iret frigusque caloremque inter et exciperet caeli indulgentia terras
Que nenhum mestre tatildeo prudente te convenccedila a cavar a riacutegida Terra quando Boacutereas sopra18 Depois o inverno aperta os campos com a geada e nem com a semente lanccedilada permite que a espessa raiz se prenda agrave terra O melhor plantio para as vinhas eacute quando na roacutesea primavera chega a candida ave odiada pelas grandes serpentes sob os primeiros frios do outono quando o impetuoso sol com seus cavalos19 natildeo atingiu o inverno e jaacute o veratildeo ficou para traacutes Sobretudo a primavera uacutetil agrave folhagem dos bosques a primavera uacutetil agraves florestas na primavera as terras se intumescem e exigem as fecundas sementes20
18Ruy Mayer (1948 p 305) destaca em nota ao texto Prudens auctor eacute como se chama o sabichatildeo que sobre todos os assuntos daacute opiniatildeo Fazer a mobilizaccedilatildeo do solo quando sopra o vento Norte (Boacutereas) seria desastroso na Campacircnia onde esse vento eacute frio e violento e onde em terrenos soltos a aacutegua congela por camadas sucessivas tornando impossiacutevel semear ou plantar 19 Personificaccedilatildeo do sol que conduz seus cavalos luminosos para trazer o dia 20Para Ruy Mayer (1948 p 306) o presente excerto do Canto II das Geoacutergicas eacute um hino de maravilhosa perfeiccedilatildeo artiacutestica agraves energias criadoras da primavera apresentando uma elegacircncia e riqueza de formas incomparaacuteveis
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Entatildeo o pai onipotente Eacuteter21 com chuvas fecundas desce sob o colo da feacutertil esposa22 e unindo-se a esse grande corpo alimenta todos os filhos Entatildeo as ramagens dos lugares afastados ressoam com as melodiosas aves e os rebanhos reivindicam Vecircnus23 em dias certos O nutriz campo daacute agrave luz por causa da brisa morna de Zeacutefiro24 as pastagens relaxam os seios um liacutequido suave ultrapassa todas as coisas e com confianccedila as ervas ousam entregar-se aos novos soacuteis e nem o pacircmpano teme os Austros25 que surgem ou a chuva impelida do ceacuteu pelos fortes Aquilotildees26 mas faz brotar os rebentos e estende todas as folhagens Natildeo acreditei que outros dias tenham iluminado na primeira origem do mundo nascente ou que tenham tido outro curso aquilo era primavera no grande orbe vivia a primavera e os Euros27 cessavam os invernosos ventos quando os primeiros animais viram a luz e a teacuterrea progecircnie do homem ergueu a cabeccedila das duras terras as feras foram enviadas para as florestas e os astros para o ceacuteu
Os delicados seres natildeo podiam sofrer esta opressatildeo se tanta tranquilidade natildeo se refugiasse entre o frio e o calor e se a indulgecircncia do ceacuteu natildeo acolhesse as terras
Neste pequeno excerto Virgiacutelio abandona as recomendaccedilotildees acerca das
teacutecnicas de plantaccedilatildeo da vinha para cantar sobre a primavera a estaccedilatildeo do ano em
que a natureza se encontra apta a germinar Trata-se de uma das digressotildees
presentes no texto das Geoacutergicas As terras assim como eacute descrito pelo poeta longe
do frio do inverno e dos impetuosos raios do sol incham-se e preparam-se para
receber as fecundas sementes com a chegada da nova estaccedilatildeo
Ao referir-se agrave primavera o poeta atesta que ela eacute uacutetil agraves aacutervores agraves florestas
aos bosques Ela eacute a proacutepria reproduccedilatildeo o periacuteodo feacutertil da terra e de toda a natureza
A figura da primavera marca um tempo de prosperidade fecundidade e germinaccedilatildeo
Com a chegada da primavera ocorre a uniatildeo entre o Ceacuteu e a Terra e daiacute
nascem todos os seres vivos Nesta estaccedilatildeo ainda o Pai onipotente Eacuteter desce sob
a forma de chuvas fecundas Eacuteter nesta passagem associa-se a Juacutepiter jaacute que
ambos representam o ceacuteu superior assumindo a paternidade de todas as coisas
Podem-se destacar deste excerto algumas figuras que remetem ao tema do
amor da uniatildeo dos seres da fecundidade e a procriaccedilatildeo tais como genitalia semina
21 Eacuteter a personificaccedilatildeo do ceacuteu profundo 22 A terra 23 Vecircnus deusa do amor e da beleza 24 Zeacutefiro o vento da Primavera 25 Austros os ventos 26 Aquilotildees Ventos frios tempestuosos 27 Euro vento leste criador de tempestades
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- hex 324 (sementes fecundas) fecundis imbribus ndash hex 325 (chuvas fecundas)
coniugis laetae - hex 326 (esposa feacutertil)
Atraveacutes destas figuras tem-se a concretizaccedilatildeo de uma ideia abstrata o tema
da fertilidade e prosperidade da natureza No pequeno excerto a Terra e o Eacuteter satildeo
representados como dois amantes em uma relaccedilatildeo amorosa Unem-se para
produzirem a vida
Eacuteter eacute quem alimenta (alit ndash hex 327) ou seja impulsiona a vida e modela os
seres dando-lhes forma e a feacutertil esposa assim o recebe em um grande abraccedilo O
discurso figurativo aponta com isso para a imagem da Terra sendo fecundada
A partir daiacute as melodiosas aves cantam em celebraccedilatildeo a todos os elementos
da natureza e a terra que daacute agrave luz (Parturit ndash hex 330) relaxa com a brisa de Zeacutefiro
o vento da Primavera
Os rebanhos tambeacutem buscam Vecircnus a deusa do amor e da beleza nos dias
certos (Venerem certis repetunt armenta diebus ndash hex329) A figura de Vecircnus
representa aqui a ideia de uniatildeo o periacuteodo propiacutecio para a procriaccedilatildeo dos animais
Os brotos natildeo temem as chuvas nem as tempestades pois estatildeo acolhidos
crescem em seguranccedila e desabrocham A vida portanto eacute criada surgindo novos
ramos novas folhagens e novos seres O mundo nasce e se organiza graccedilas agrave
primavera Menciona-se ainda que na ldquoprimeira origem do mundo nascenterdquo (prima
crescentis origine mundi ndash hex 336) era a primavera que imperava Os primeiros
animais com isso viram a luz as feras povoaram as florestas e os astros o ceacuteu
Deixa-se entrever neste excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas o tema da
fertilidade e prosperidade da natureza pois o arranjo de figuras tais como
ldquoprimaverardquo ldquofecundas sementesrdquo ldquonutriz campordquo ldquoesposa feacutertilrdquo ldquochuvas fecundasrdquo
entre outras concretizam essa ideia A figura da primavera em especial torna o
cenaacuterio propiacutecio ao plantio e agrave procriaccedilatildeo dos animais destacando com isso a forma
como todo o cenaacuterio se modifica com a chegada da nova estaccedilatildeo
Logo as figuras satildeo os elementos concretos de um texto jaacute aos elementos
abstratos chamamos de temas Figura eacute o termo com que podemos designar algo
existente no mundo tais como ldquoprimaverardquo ldquovinhardquo ldquoflorestasrdquo ldquobosquesrdquo sementesrdquo
De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (2011 p 91) ldquoa figura eacute todo conteuacutedo de qualquer
liacutengua natural ou de qualquer sistema de representaccedilatildeo que tem um correspondente
perceptiacutevel no mundo naturalrdquo Mas o mundo natural e perceptiacutevel natildeo se refere
apenas ao mundo real mas tambeacutem aos ldquomundos fictiacutecios criados pela imaginaccedilatildeo
62
humanardquo As figuras podem ser dessa forma substantivos concretos verbos que
indicam accedilatildeo ou adjetivos que expressam um atributo fiacutesico das coisas e pessoas do
mundo percebido No que diz respeito ao Tema destaca-se que eacute o termo com que
designamos as palavras e expressotildees que satildeo responsaacuteveis pela explicaccedilatildeo de um
dado ou fato do mundo natural Trata-se de um ldquoinvestimento semacircntico de natureza
puramente conceptual que natildeo remete ao mundo naturalrdquo (FIORIN 2011 p 91) No
pequeno excerto a ideia de fertilidade prosperidade e germinaccedilatildeo da natureza eacute
depreendida pela cadeia de figuras que corroboram para este tema
Os textos figurativos como assinala Fiorin (2011 p 91) ldquocriam um efeito de
realidade jaacute que constroem um simulacro da realidade representando dessa forma
o mundordquo enquanto os textos temaacuteticos ldquoprocuram explicar a realidaderdquo Os discursos
figurativos satildeo eminentemente descritivos e narrativos enquanto os temaacuteticos satildeo
caracterizados pela explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do mundo perceptiacutevel
De acordo com Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 147-149) um texto
literaacuterio
tende a ser predominantemente descritivo ou narrativo afastando-se sponte sua do gecircnero dissertativo pois narraccedilatildeo e descriccedilatildeo pressupotildeem o desenvolvimento de um tema qualquer atraveacutes do recurso baacutesico da figuratividade enquanto a dissertaccedilatildeo procura ao contraacuterio o despojamento figurativo do enunciado a fim de dar relevo ao tema em si mesmo considerado Em outras palavras os gecircneros narrativo e descritivo exigem a manipulaccedilatildeo preponderante de termos concretos e particularizantes ao passo que o gecircnero dissertativo requer principalmente a adoccedilatildeo de conceitos abstratos e generalizantes na composiccedilatildeo do enunciado
Em um texto figurativo como o excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas que aqui
selecionamos encontramos sempre um tema que eacute subjacente agraves figuras instaladas
no discurso Toda figura eacute portanto a concretizaccedilatildeo de um determinado tema
abstrato No exemplo aqui citado todas as figuras coadunam-se com a ideia de
prosperidade e fertilidade da natureza remetendo-nos a este tema
Segundo Fiorin (2011 p 92) eacute o niacutevel temaacutetico que daacute sentido ao figurativo
Sobre isso Bertrand (2003 p 215) adverte que ldquoa significaccedilatildeo figurativa ultrapassa
com folga seus significados literais dotando-se de significaccedilotildees abstratas[]rdquo
Os textos que circulam em nossa sociedade satildeo temaacuteticos com algum recurso
figurativo esporaacutedico (discursos poliacuteticos textos filosoacuteficos) ou figurativos recobertos
assim em sua totalidade por figuras (textos literaacuterios e histoacutericos)
Greimas amp Courteacutes (2011 p 210) observam que
63
Quando se tenta classificar o conjunto de discursos em duas grandes classes discursos figurativos e natildeo-figurativos (ou abstratos) percebe-se que a quase totalidade dos textos ditos literaacuterios e histoacutericos pertencem agrave classe dos discursos figurativos Fica entendido entretanto que tal distinccedilatildeo eacute de certa forma ldquoidealrdquo que ela procura classificar as formas (figurativas e natildeo-figurativas) e natildeo os discursos-ocorrecircncias que natildeo apresentam praticamente nunca uma forma em estado puro
Enquanto os textos figurativos assim como vimos no exemplo do excerto das
Geoacutergicas aqui citado constroem cenaacuterios reais com a presenccedila de pessoas animais
cores etc os textos temaacuteticos ao explicarem os fatos do mundo visam agrave
interpretaccedilatildeo de uma dada realidade
De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros em Teoria Semioacutetica do Texto
(2005 p 69) ldquoAos textos de figuraccedilatildeo esporaacutedica opotildeem-se aqueles em que ocorrem
percursos figurativos duradouros que se espalham pelo discurso inteiro e recobrem
totalmente os percursos temaacuteticosrdquo
Em Elementos de Anaacutelise do Discurso Fiorin (2011 p 92) assinala que
ldquoquando se fala em textos figurativos ou temaacuteticos fala-se respectivamente em
textos predominantemente e natildeo exclusivamente figurativos e temaacuteticosrdquo
Ao lermos um texto figurativo observamos portanto que eacute um tema abstrato
que imprime sentido agraves figuras daiacute a necessidade de se encontrar o sentido de um
conjunto de figuras uma vez que estariacuteamos depreendendo o tema subjacente a elas
Com isso todo texto figurativo apresenta dados concretos que veiculam significados
mais abstratos Aleacutem disso uma figura sempre estaraacute relacionada a outras pois juntas
elas criaratildeo um percurso figurativo Logo uma figura por si soacute natildeo tem significado
definido uma vez tomada isoladamente pode sugerir diversas ideias O seu sentido
soacute aparece quando ela eacute combinada a outras figuras visto que em um texto tudo eacute
relaccedilatildeo
Logo para compreendermos o tema de um texto figurativo precisamos
perceber as redes coerentes formadas pelas figuras (isotopia) jaacute que eacute a coerecircncia
entre elas que permite a depreensatildeo do sentido A quebra do encadeamento entre as
figuras pode tornar o texto inverossiacutemil jaacute que seria uma quebra no efeito de sentido
construiacutedo no discurso a menos que o inverossiacutemil apareccedila como um dos efeitos de
sentido a ser suscitado no leitor
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Na anaacutelise de um texto um tema ou uma figura isolados de nada servem
Torna-se preciso assim que haja um conjunto ou encadeamento de figuras e temas
Dessa forma uma isotopia ou seja a recorrecircncia de temas e figuras na cadeia do
discurso eacute capaz de assegurar a coerecircncia de um texto oferecendo ao leitor um
projeto de leitura
Tendo em vista o excerto do Canto II da Eneida hexacircmetros 707-720
podemos depreender o tema do heroacutei piedoso A Eneida inicia-se in medias res e
Eneias encontra-se com suas naus em pleno Mediterracircneo sete anos apoacutes a queda
de Troia (Canto I) posteriormente eacute lanccedilado agraves costas africanas onde eacute recebido pela
rainha Dido (Canto II) Num banquete ofertado ao heroacutei a rainha pede que Eneias
narre os acontecimentos sobre a destruiccedilatildeo de Troia Tem-se a partir daiacute uma
recordaccedilatildeo de eventos jaacute passados Destacamos entatildeo do Canto II os hexacircmetros
em que o caraacuteter de Eneias aparece em relevo
ergo age care pater ceruici imponere nostrae ipse subibo umeris nec me labor iste quo rescumque cadente unum et commune una salus ambobus erit mihi paruus Iulus sit comes et longe seruet uestigia coniunx uos famuli quae dicam animus est urbe egressis tumulus templumque uestutum desertae Cereris iuxtaque antiqua cipressus religione patrum multos seruata per anos hanc ex diuerso sedem ueniemus in unam Tu genitor cape sacra manu patriosque penatis me bello e tanto digressum et caede recenti attrectare nefas donec me flumine uiuo abluero Agora querido pai vem se colocar em meu pescoccedilo Eu proacuteprio te alccedilarei sobre os ombros e este trabalho natildeo me afetaraacute Onde quer que a sorte caia um soacute e comum perigo uma salvaccedilatildeo haveraacute para ambos a mim o pequeno Iuacutelo28 acompanhe e ao longe a esposa29 siga os passos Voacutes servos com vossas almas atentai no que vou dizer saindo da cidade haacute um tuacutemulo e um velho templo de Ceres30 abandonado e junto um antigo cipreste A religiatildeo dos antepassados preservada por muitos anos Chegaremos neste ponto vindos de diferentes lugares Tu oacute pai carrega os objetos sagrados com a matildeo e os Paacutetrios Penates31 A mim saiacutedo de tatildeo dura guerra e de recente massacre natildeo eacute permitido tocar ateacute que num rio corrente me lave
28 Iuacutelo (Ascacircnio) filho de Eneias e Creuacutesa 29 Creuacutesa esposa de Eneias 30 Ceres deusa da vegetaccedilatildeo e da colheita 31 Paacutetrios Penates os deuses do lar
65
Tem-se assim um pequeno trecho do relato eacutepico da tomada de Troia a partir
da narraccedilatildeo de Eneias A perspectiva do heroacutei intensifica as accedilotildees que se passaram
jaacute que se trata da visatildeo daquele que foi vencido O testemunho de Eneias divide-se
em trecircs partes comeccedila-se pela descriccedilatildeo do cavalo de madeira que eacute levado para
dentro da cidade (hex 13- 249) fala-se da batalha noturna (hex 250-558) e
posteriormente da fuga da cidade de Troia (hex 559-803) O relato do heroacutei ao longo
da narrativa destaca o seu comprometimento com a paacutetria a famiacutelia e seu caraacuteter
piedoso No pequeno excerto que aqui mencionamos tem-se a fuga de Eneias
acompanhado do pai Anquises do filho Iuacutelo (Ascacircnio) e da esposa Creuacutesa Todo o
conjunto de figuras deste excerto figurativiza valores de piedade Aleacutem do cuidado
para com o pai carregando-o sobre os ombros pode-se ver a preocupaccedilatildeo com o
filho esposa e outras pessoas do grupo o que indica a dimensatildeo ciacutevica de sua
piedade que abarca tambeacutem os objetos sagrados e os Paacutetrios Penates com o respeito
de natildeo os tocar com a matildeo ensanguentada A presente cena que destacamos (hex
707-720) sintetiza as virtudes que o caraacuteter do heroacutei engloba A tradiccedilatildeo sobre Eneias
aponta que ldquoele era notaacutevel por sua devoccedilatildeo filialrdquo (PEREIRA 2009 p 261) e o
pequeno excerto apresenta figuras que contribuem para a compreensatildeo deste tema
A accedilatildeo de colocar o pai sobre os ombros a preocupaccedilatildeo com as pessoas de seu
grupo esposa e filho bem como o respeito para com os Paacutetrios Penates figurativizam
o caraacuteter do heroacutei que pode ser depreendido no excerto
Diana Luz Pessoa de Barros (2005 p 69) menciona as diferentes etapas da
estruturaccedilatildeo de um texto a figuraccedilatildeo responsaacutevel pela instalaccedilatildeo das figuras eacute o
primeiro niacutevel de especificaccedilatildeo figurativa do tema em que uma ideia abstrata recebe
um investimento figurativo A iconizaccedilatildeo nomeada como ldquoinvestimento figurativo
exaustivo finalrdquo seria a uacuteltima etapa da estruturaccedilatildeo textual e tem o objetivo de
produzir uma ilusatildeo referencial Nessa etapa de acordo com Maacutercio Thamos (2003
p 114) haacute uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem na qual ldquorelacionando o som
com o sentido o poeta procura colocar em relevo aquilo de que fala manifestando o
desejo de fazer que o poema se identifique concretamente com o proacuteprio referenterdquo
Vale ressaltar ainda que essas duas etapas (figuraccedilatildeo rarriconizaccedilatildeo) satildeo fases
da construccedilatildeo figurativa de um texto e que nem todo texto figurativo apresentaraacute esse
investimento particularizante suscetiacutevel de produzir uma ilusatildeo referencial
Para Barros (2005 p 70)
66
Na iconizaccedilatildeo mas tambeacutem nas demais etapas da figurativizaccedilatildeo o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciataacuterio a reconhecer ldquoimagens do mundordquo e a partir daiacute a acreditar na ldquoverdaderdquo do discurso O enunciataacuterio por sua vez crecirc ou natildeo no discurso graccedilas em grande parte ao reconhecimento de figuras do mundo O fazer-crer e o crer dependem de um contrato de veridicccedilatildeo que se estabelece entre enunciador e enunciataacuterio e que regulamenta entre outras coisas o reconhecimento das figuras
Cabe ao leitor atento depreender assim os efeitos de sentido de um texto
Para Fiorin (1995 p 175)
Quem ler os seguintes versos de Os Lusiacuteadas ldquoEm tempo de tormenta e vento esquivordquo ldquoDe tempestade escura e triste prantordquo (V 18 3-4) sem perceber a aliteraccedilatildeo de oclusivas e principalmente do ldquotrdquo teraacute perdido um elemento essencial do texto que eacute o efeito de sentido de fuacuteria da tormenta dado pela articulaccedilatildeo entre a aliteraccedilatildeo no plano da expressatildeo e o conteuacutedo manifestado
O texto literaacuterio apresenta dessa forma uma funccedilatildeo esteacutetica e sua
compreensatildeo exige que se entenda natildeo somente o conteuacutedo mas especialmente os
significados dos seus elementos de expressatildeo
Thamos (2011 p 150) ao mencionar as especificidades do texto figurativo
afirma
A vocaccedilatildeo imageacutetica do texto literaacuterio encontra pois as condiccedilotildees naturais para a sua realizaccedilatildeo quer na narraccedilatildeo quer na descriccedilatildeo que lhe oferecem sempre possibilidades conotativas a partir da figuratividade enquanto por outro lado a dissertaccedilatildeo se constitui na maneira ideal de desenvolvimento do discurso cientiacutefico no qual imperam necessidades denotativas na expressatildeo de um tema
Na leitura de um texto literaacuterio adentramos de imediato em sua figuratividade
pois nele delineiam-se figuras como personagens espaccedilo objetos valores Por meio
da figuratividade assim podemos depreender as dimensotildees figurativas do discurso e
o modo como satildeo engendrados os efeitos de sentido
Bertrand (2003 p 156) referindo-se agrave figuratividade assim esclarece-nos
Qualificaremos de figurativo todo significado todo conteuacutedo de uma liacutengua natural e de maneira mais abrangente de qualquer sistema de representaccedilatildeo (visual por exemplo) que tenha um correspondente no plano do significante (ou da expressatildeo) do mundo natural da realidade perceptiacutevel
67
Com vistas portanto aos recursos da figuratividade presentes na poesia
bucoacutelica didaacutetica e eacutepica procuramos investigar nas trecircs obras de Virgiacutelio o percurso
figurativo e a atuaccedilatildeo dos trecircs tipos de estilo descritos pelos tratadistas antigos o
estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Na Roda esquema circular tripartido das
obras virgilianas satildeo apresentadas as principais figuras que compotildeem o cenaacuterio da
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Logo procuramos entender como os diferentes
estilos atuam em cada poema e como eles podem ser depreendidos a partir da
recorrecircncia figurativa presente em cada obra deixando entrever um efeito particular
de individuaccedilatildeo Para isso na anaacutelise das obras virgilianas destacamos a presenccedila
de uma rede de figuras que sugerem um modo proacuteprio de ser e fazer de especiacuteficos
cenaacuterios de atuaccedilatildeo para as Bucoacutelicas o efeito tecircnue que configura um estilo singelo
para as Geoacutergicas o efeito moderado que configura um estilo meacutedio e para a Eneida
um efeito vigoroso que corrobora para a construccedilatildeo do estilo sublime grandiloquente
Assim nosso intento eacute o de compreender na dimensatildeo figurativa de cada excerto
selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise a atuaccedilatildeo dos estilos singelo meacutedio e
grandiloquente Virgiacutelio construiu segundo a tradiccedilatildeo trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo a partir
de trecircs estilos Cabe-nos aqui depreender a caracterizaccedilatildeo presente em cada obra
e com isso depreender os principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e
eacutepica
Entendemos que em termos de expressatildeo as trecircs obras apresentam um rico
trabalho com a linguagem Pensando-se primeiramente na caracterizaccedilatildeo presente
nas trecircs obras personagens accedilotildees e ambientaccedilatildeo destacaremos os principais temas
e figuras proacuteprios agraves Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Com isso procuramos
entender cada estilo como uma construccedilatildeo sistemaacutetica que deixa entrever um efeito
particular de sentido Natildeo perderemos de vista contudo o arranjo particular da
linguagem poeacutetica e portanto tambeacutem procuraremos analisar as obras a partir do seu
plano da expressatildeo
Os temas presentes na poesia eacutepica coadunam-se com um tom elevado
grandiloquente com figuras que deixam entrever um efeito de sentido grandiloquente
Alteram-se os temas altera-se o cenaacuterio e consequentemente o efeito de sentido
sugestionado o estilo Primeiro escolhe-se o tema a ser cantado e soacute entatildeo eacute definido
o cenaacuterio ldquoconvenienterdquo a esse tema O ambiente descrito na poesia eacutepica difere
68
portanto daquele que eacute apresentado em um tom mais singelo como eacute o caso da
poesia de gecircnero bucoacutelico Da Eneida selecionamos um excerto do ldquoVIII Cantordquo (612-
731) em que depreendemos o tema do heroacutei e suas armas de guerra atrelado ao
tema da fundaccedilatildeo e gloacuteria de Roma As figuras utilizadas neste fragmento tramam
cenaacuterios tipicamente eacutepicos em um tom solene
Na poesia bucoacutelica o tema muda e as figuras se alteram Logo altera-se o
efeito pretendido que seraacute tecircnue O locus amoenus pode aparecer na figura de um
rochedo na espessura verde de um pequeno bosque em uma fonte pinheiros olmos
choupos carvalhos cabras ovelhas etc Estas figuras recorrentes na poesia
bucoacutelica virgiliana organizam-se de modo expressivo e particularizam os temas que
abrangem a simplicidade o viver ruacutestico do campo e o oacutecio criativo dos pastores O
estilo singelo aparece portanto subjacente a esse arranjo de figuras A ldquoBucoacutelica Vrdquo
aqui selecionada para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise apresenta um cenaacuterio apraziacutevel para
que os pastores-cantadores Mopso e Menalcas possam cantar seus louvores a
Daacutefnis
Na poesia didaacutetica os temas abrangem um conteuacutedo instrucional e assumem
um tom e um contexto de atuaccedilatildeo moderados No excerto do ldquoIV Cantordquo (1-115) das
Geoacutergicas colocaremos em relevo portanto a ldquodescriccedilatildeo do lugar apraziacutevel para as
abelhasrdquo e o modo como as figuras selecionadas pelo poeta particularizam este tema
no contexto da poesia didaacutetica
Na anaacutelise dos poemas de Virgiacutelio seratildeo destacadas as principais figuras e
temas recorrentes agraves Bucoacutelicas agraves Geoacutergicas e agrave Eneida Aleacutem disso pretende-se
demonstrar o modo como essas figuras se organizam e asseguram um revestimento
figurativo e abstrato dos principais temas bucoacutelicos didaacuteticos e eacutepicos levando em
conta a formaccedilatildeo do sentido poeacutetico e esteacutetico de cada texto e os niacuteveis de estilo
definidos pelos tratadistas antigos pensando-os como efeitos de individuaccedilatildeo
engendrados em cada texto
69
42 A Figuratividade a leitura do poeacutetico
Com os poetas a escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo
que elas contamrdquo
(BRODSKY 1994 p 97)
O poeta e criacutetico russo Joseph Brodsky acredita que natildeo eacute do ofiacutecio do poeta
informar algo mas sim por meio de um arranjo expressivo da linguagem artiacutestica
suscitar no leitor um determinado efeito de sentido A poesia revela-se dessa forma
como ldquouma arte de referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo
(BRODSKY 1994 p 74) Roman Jakobson ao questionar-se sobre a expressividade
poeacutetica vai ao encontro desse raciociacutenio Assim a sua ceacutelebre pergunta ldquoQue eacute que
faz de uma mensagem verbal uma obra de arterdquo (JAKOBSON 1989 p 118-119)
leva-nos a acreditar que toda criaccedilatildeo poeacutetica apresenta um trabalho artiacutestico com a
linguagem jaacute que a palavra artiacutestica ultrapassa o uso comum e ganha um efeito
esteacutetico pois o poeta agrega valor agrave palavra seu elemento material concreto
Cabe-nos a partir disso avaliar quais satildeo os recursos expressivos
evidenciados na leitura de um texto e de que forma os procedimentos da figuraccedilatildeo e
iconizaccedilatildeo aliados a outros expedientes expressivos participam da formaccedilatildeo do
sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto
Para a Semioacutetica Greimasiana o sentido aparece intimamente relacionado com
a linguagem que o estrutura e eacute a partir do reconhecimento das formas presentes em
um texto que apreendemos o arranjo expressivo da linguagem Logo eacute o trabalho
artiacutestico com o plano da expressatildeo que particulariza um texto poeacutetico contrapondo-o
portanto aos outros discursos que possivelmente podem apresentar temas
semelhantes
O arranjo da linguagem poeacutetica longe de transmitir apenas ideias apresenta
recursos expressivos capazes de suscitar um determinado efeito esteacutetico no leitor
Em Linguiacutestica e Comunicaccedilatildeo Jakobson (1989 p 130) declara que ldquoA funccedilatildeo
poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de
combinaccedilatildeordquo Fica evidente portanto o destaque do linguista para a construccedilatildeo do
sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto Em que medida as figuras instaladas em um
discurso satildeo combinadas e revestidas de expressividade Aleacutem disso natildeo podemos
esquecer de que o poeacutetico se enquadra na esfera luacutedica em que o poeta modela as
palavras em uma espeacutecie de brincadeira artiacutestica para assim conferir-lhes um
sentido poeacutetico Para Huizinga (2007 p 133) a poesia
70
[] estaacute para aleacutem da seriedade naquele plano mais primitivo e originaacuterio a que pertencem a crianccedila o animal o selvagem e o visionaacuterio na regiatildeo do sonho do encantamento do ecircxtase do riso Para compreender a poesia precisamos ser capazes de envergar a alma da crianccedila como se fosse uma capa maacutegica e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto
Logo o arranjo das palavras quando manipuladas pelo artista pode suscitar
um determinado efeito de sentido no leitor Trata-se de uma brincadeira uma espeacutecie
de jogo com a palavra que em acircmbito poeacutetico pode metamorfosear-se em imagens
do mundo
Ao focalizar o processo de criaccedilatildeo de um texto artiacutestico e ressaltar o modo
como a palavra eacute trabalhada pelo artista deve-se compreender que a palavra poeacutetica
porta sempre um encantamento imageacutetico Acredita-se com isso que o poeta
encontra na palavra o elemento material concreto de que necessita para a criaccedilatildeo
de imagens
Como bem observa Thamos (2003 p 109)
Na busca de expressatildeo para determinado tema o poeta bem como o pintor constroacutei um texto em que a primazia da figura eacute bastante evidente o que potildee em relevo o seu desejo de concretude sua necessidade de procurar dar contorno plasticidade palpabilidade a sua criaccedilatildeo
Como ilustraccedilatildeo desses procedimentos vale destacar a ldquoBucoacutelica IVrdquo de
Virgiacutelio poema em que eacute celebrado o nascimento de uma crianccedila que seraacute o fator
determinante da renovaccedilatildeo dos tempos No poema a natureza alegra-se com esse
nascimento e o proacutespero ambiente campestre assim responde agrave chegada da crianccedila
(Buc IV 23-25)
Ipsae lacte domum referent distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores As cabritinhas por si mesmas levaratildeo agrave casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti oacute crianccedila o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores
71
Nesse exemplo observa-se que a disposiccedilatildeo dos sintagmas no hexacircmetro 25
Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores favorece de algum modo a figuratividade
da cena que estaacute sendo descrita uma vez que o termo ldquocunabulardquo (berccedilo) eacute
circundado por ldquoblandosrdquo e ldquofloresrdquo (delicadas flores) ilustrando portanto a ideia
expressa no verso a de que o berccedilo da crianccedila encontra-se ornado por delicadas
flores que nesse contexto podem ser vistas como sinocircnimo de encanto e beleza do
novo mundo que ressurge em consonacircncia ao nascimento dessa crianccedila O verso
destacado favorece agrave representaccedilatildeo icocircnica deixando entrever pelo arranjo particular
da linguagem a imagem de um berccedilo florido pela distribuiccedilatildeo dos termos no verso
Para Greimas (1975 p 12) podemos afirmar que
[] o significante sonoro ndash e graacutefico em menor proporccedilatildeo ndash entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a assumir como verdadeiras as proposiccedilotildees emitidas pelo discurso poeacutetico []
Lembra-nos Octavio Paz que ldquoo poema natildeo explica nem representa apresenta
Natildeo alude agrave realidade pretende ndash e agraves vezes consegue ndash recriaacute-la Portanto a poesia
eacute um penetrar um estar ou ser na realidaderdquo (2012 p 118)
A ilusatildeo ou impressatildeo referencial eacute o termo com que designamos a segunda
etapa dos procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto literaacuterio conhecida por
iconizaccedilatildeo Nesta etapa haacute uma espeacutecie de ecircnfase figurativa do discurso com vistas
a um expediente de criaccedilatildeo de imagens anaacutelogas agrave realidade
Pensando ainda na ldquoBucoacutelica IVrdquo e na exortaccedilatildeo ao nascimento da crianccedila
destacamos os seguintes versos
(Buc IV 60-63) Incipe parue puer risu cognoscere matrem (matri longa decem tulerunt fastidia menses) Incipe parue puer qui non risere parenti Nec deus hunc mensa dea nec dignata cubili est Comeccedila pequeno menino a conhecer a matildee com um sorriso Agrave ela dez meses causaram longos enjoos comeccedila pequeno menino aquele que natildeo sorriu para a matildee nem um deus o julgou digno da sua
mesa e nem uma deusa de seu leito
Os hexacircmetros 60 e 62 relacionam-se expressivamente pelo emprego do
paralelismo ou seja pela repeticcedilatildeo de incipe parue puer que reforccedila assim a
72
homenagem agrave crianccedila Aleacutem disso a aliteraccedilatildeo da oclusiva p em ldquoincipe parue
puerrdquo eacute um fato do plano da expressatildeo que associado ao paralelismo sugere uma
ideia de repeticcedilatildeo e balbucio da matildee para seu filho passando-nos a ideia de uma
cantiga de ninar um acalanto Esses versos pelo arranjo particular da linguagem
criam um efeito de sentido ldquorealidaderdquo ao sugerirem a cena familiar que estaacute sendo
descrita em um tom de ludismo e serenidade
Neste fragmento ao relacionar o som ao sentido o poeta pretende manipular
a linguagem para colocar em destaque aquilo de que fala de modo que a palavra
artiacutestica coincida concretamente com o proacuteprio referente Adverte Thamos (2003 p
114) que ldquoA iconizaccedilatildeo se dirige mais diretamente aos sentidos e estaacute assentada num
pressuposto de representaccedilatildeo realista assumido tanto pelo produtor quanto pelo
receptor do discurso figurativordquo Na ilusatildeo referencial destaca-se portanto a
apresentaccedilatildeo de um efeito esteacutetico evidenciado no texto em que neste caso ldquotoda a
massa sonora do poema eacute viva do ponto de vista criativordquo (LIMA apud THAMOS
2003 p115)
O poeta aacutercade Tomaacutes Antocircnio Gonzaga (2006 p 43 grifos nossos) em uma
evidente alusatildeo ao texto de Virgiacutelio compocircs
Que gosto natildeo teraacute a matildee que toca Quando o tem nos seus braccedilos crsquoo dedinho Nas faces graciosas e na boca Do inocente filhinho Quando Mariacutelia bela O tenro infante jaacute com risos mudos Comeccedila a conhececirc-la
Nesse pequeno trecho de Mariacutelia de Dirceu Parte I Lira XIX nota-se que o
ambiente familiar descrito por Virgiacutelio eacute aludido na liacuterica de Gonzaga que resgatou
algo da sugestatildeo do acalanto do poeta claacutessico
A repeticcedilatildeo quase seguida da oclusiva t nos dois primeiros versos do excerto
acompanhada das nasais n e m deixam entrever uma fala manhosa linguagem
inicial dos pais para com a crianccedila sempre carregada de afetuosidade Aleacutem disso
destaca-se a presenccedila de dois diminutivos que reforccedilam a ideia de uma fala mais
amorosa dentro deste contexto No poema de Gonzaga o jogo sonoro remete-nos agrave
cena que estaacute sendo descrita agrave imagem da matildee conversando com seu filho
A figuratividade eacute portanto uma categoria descritiva que ligada agrave teoria
esteacutetica abarca o figurativo e o natildeo-figurativo (ou abstrato) este uacuteltimo sempre
73
apareceraacute revestido por figuras que o particularizam Nesse sentido no processo de
estruturaccedilatildeo de um texto encontramos o niacutevel da figuraccedilatildeo em que um tema ou seja
um discurso abstrato eacute convertido em figuras e tambeacutem o niacutevel da iconizaccedilatildeo em
que as figuras utilizadas no discurso teriam o poder de se transformar em imagens do
mundo provocando uma ilusatildeo ou impressatildeo referencial que eacute definida como sendo
ldquo[] o resultado de um conjunto de procedimentos mobilizados para produzir efeito de
sentido ldquorealidade []rdquo (GREIMAS COURTEacuteS 2011 p 251)
Como observa Bertrand (2003 p 154) a figuratividade ldquosugere
espontaneamente a semelhanccedila a representaccedilatildeo a imitaccedilatildeo do mundo pela
disposiccedilatildeo das formas numa superfiacutecierdquo Assim um texto classificado como figurativo
vale-se de figuras capazes de representar verbal ou visualmente uma figura do
mundo natural O efeito sugerido por essa representaccedilatildeo pode transmitir ao leitor a
ideia de ldquorealidaderdquo ldquoirrealidaderdquo ou ateacute mesmo ldquosurrealidaderdquo - efeitos especiacuteficos
gerados pelo texto por meio de estrateacutegias discursivas e que satildeo capazes de criar
impressotildees referenciais
Sobre isso Bertrand (2003 p 157) afirma que
A figuratividade se define como todo conteuacutedo de um sistema de
representaccedilatildeo verbal visual auditivo ou misto que entra em
correlaccedilatildeo com uma figura significante do mundo percebido quando
ocorre sua assunccedilatildeo pelo discurso
Logo eacute pertinente observar o modo como as figuras presentes em um texto
podem gerar ilusotildees da realidade produzindo imagens capazes de representar o
mundo natural concreto
De acordo com o conceito de representaccedilatildeo aqui sugerido a figuratividade
incorporaria a criaccedilatildeo de um simulacro com a aparecircncia de verdadeiro estabelecendo
uma noccedilatildeo interdiscursiva entre a realidade e o texto literaacuterio Com vistas agrave dimensatildeo
enunciativa e figurativa da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica em Virgiacutelio foram
selecionados trechos representativos das trecircs obras em que o revestimento particular
da linguagem poeacutetica ganha relevo em que a funccedilatildeo poeacutetica portanto eacute dominante
Ao colocar em destaque a vocaccedilatildeo imageacutetica a poeticidade dos textos o
trabalho apoia-se portanto na noccedilatildeo de figuratividade e procura avaliar o modo como
as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida apresentam e combinam temas e figuras
Busca-se entender portanto os estilos (singelo meacutedio e grandiloquente) como efeitos
de sentido que configuram cenaacuterios de atuaccedilatildeo especiacuteficos
74
ldquoEnquanto manifestaccedilatildeo privilegiada do mais alto poder expressivo que
uma liacutengua pode alcanccedilar versos satildeo o testemunho irretorquiacutevel seja de
soacutelidas construccedilotildees neles plasmadas seja do proacuteprio sistema virtual
que as trouxe agrave vida Este fica por tal modo igualmente imortalizado
graccedilas agrave realizaccedilatildeo plaacutestica e riacutetmica que faculta ao sistema virtualrdquo
(Lima 2003 p100)
ldquoO poema sem deixar de ser palavra e histoacuteria transcende a histoacuteriardquo
(Octavio Paz 2012 p 31)
75
5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises
51 BUCOacuteLICA V ldquoMOPSO E MENALCAS OS PASTORES
CANTADORESrdquo
Figura 5 ndash Mopso e Menalcas
Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p 465
76
MENALCAS
Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo
tu calamos inflare leuis ego dicere uersus
hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
MOPSVS
Tu maior tibi me est aequom32 parere Menalca
siue sub incertas Zephyris motantibus umbras
siue antro potius succedimus Aspice ut antrum 5
siluestris raris sparsit labrusca racemis
MENALCAS
Montibus in nostris solus tibi certat Amyntas
MOPSVS
Quid si idem certet Phoebum superare canendo
MENALCAS
Incipe Mopse prior si quos aut Phyllidis ignis 10
aut Alconis habes laudes aut iurgia Codri
incipe pascentis seruabit Tityrus haedos
MOPSVS
32 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aequum Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1967
77
Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi
carmina descripsi et modulans alterna notaui
experiar tu deinde iubeto certet Amyntas 15
MENALCAS
Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae
puniceis humilis quantum saliunca rosetis
iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas
Sed tu desine plura puer successimus antro
MOPSVS
Exstinctum Nymphae crudeli funere Daphnim33 20
flebant (uos coryli testes et flumina Nymphis)
cum complexa sui corpus miserabile nati
atque deos atque astra uocat crudelia mater
Non ulli pastos illis egere diebus
frigida Daphni boues ad flumina nulla neque34 amnem 25
libauit quadrupes nec graminis attigit herbam
Daphni 35tuom Poenos etiam ingemuisse leones
interitum montesque feri siluaeque loquontur36
Daphnis et Armenias curru subiungere tigris
instituit Daphnis thiasos inducere37 Bacchi 30
et foliis lentas intexere mollibus hastas
Vitis ut arboribus decori est ut uitibus uuae
33 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin 34 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nec 35 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 36 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se loquuntur 37 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se et ducere
78
ut gregibus tauri segetes ut pinguibus aruis
tu decus omne tuis Postquam te fata tulerunt
ipsa Pales agros atque ipse reliquit Apollo 35
Grandia saepe quibus mandauimus hordea sulcis
infelix lolium et steriles nascuntur auenae
pro molli uiola pro purpureo narcisso
carduos38 et spinis surgit paliurus acutis
Spargite humum foliis inducite fontibus umbras 40
pastores (mandat fieri sibi talia Daphnis)
et tumulum facite et tumulo superaddite Carmen
DAPHNIS EGO IN SILVIS HINC VSQUE AD SIDERA NOTVS
FORMOSI PECORIS CVSTOS FORMOSIOR IPSE
MENALCAS
Tale tuom carmen nobis39 diuine poeta 45
quale sopor fessis in gramine quale per aestum
dulcis aquae saliente sitim restinguere riuo
Nec calamis solum aequiperas sed uoce magistrum
fortunate puer tu nunc eris alter ab illo
Nos tamen haec quocumque modo tibi nostra uicissim 50
dicemus Daphnim40que tuom41 tollemus ad Astra
Daphnim42 ad Astra feremus amauit nos quoque Daphnis
MOPSVS
An quicquam nobis tali sit munere maius
38 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se carduus 39 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se ldquoTale tuum nobis carmenrdquo 40 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphin 41 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 42 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin
79
Et puer ipse fuit cantari dignus et ista
iam pridem Stimichon laudauit carmina nobis 55
MENALCAS
Candidus insuetum miratur limen Olympi
sub pedibusque uidet nubes et sidera Daphnis
Ergo alacris siluas et cetera rura uoluptas
Panaque pastoresque tenet Dryadasque puellas
Nec lupus insidias pecori nec retia ceruis 60
ulla dolum meditantur amat bonus otia Daphnis
Ipsi laetitia uoces ad sidera iactant
intonsi montes ipsae iam carmina rupes
ipsa sonant arbusta laquo Deus deus ille Menalca raquo
Sis bonus o felixque tuis En quattuor aras 65
ecce duas tibi Daphni duas altaria Phoebo
Pocula bina nouo spumantia lacte quotannis
craterasque duo statuam tibi pinguis oliui
et multo in primis hilarans conuiuia Baccho
ante focum si frigus erit si messis in umbra 70
uina nouom43 fundam calathis Ariusia nectar
Cantabunt mihi Damoetas et Lyctius Aegon
saltantis Satyros imitabitur Alphesiboeus
Haec tibi semper erunt et cum sollemnia uota
reddemus Nymphis et cum lustrabimus agros 75
Dum iuga montis aper fluuios dum piscis amabit
dumque thymo pascentur apes dum rore cicadae
semper honos nomenque tuom44 laudesque manebunt
43 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nouum 44 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum
80
Vt Baccho Cererique tibi sic uota quotannis
agricolae facient damnabis tu quoque uotis 80
MOPSVS
Quae tibi quae tali reddam pro carmine dona
Nam neque me tantum uenientis sibilus Austri
nec percussa iuuant fluctu tam litora nec quae
saxosas inter decurrunt flumina uallis
MENALCAS
Hac te nos fragili donabimus ante cicuta 85
haec nos laquo Formosum Corydon ardebat Alexim45 raquo
haec eadem docuit laquo Cuium pecus an Meliboei raquo
MOPSVS
At tu sume pedum quod me cum saepe rogaret
non tulit Antigenes (et erat tum dignus amari)
formosum paribus nodis atque aere Menalca 90
45 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Alexin
81
52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo
V
Menalcas
Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar
os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre
os olmeiros46 misturados agraves aveleiras47
Mopso
Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo das
sombras incertas dos Zeacutefiros48 agitados ou melhor em uma gruta sigamos Vecirc como
a videira49 silvestre cobriu-a com cachos raros
Menalcas
Em nossos montes soacute Amintas50 disputa contigo
Mopso
Quecirc se o proacuteprio Amintas cantando se esforccedilaria para superar Febo51
46Olmeiro (ou Ulmeiro) aacutervore de grande porte que pode alcanccedilar ateacute 30m de altura sendo portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra 47 Aveleira aacutervore mediterracircnica 48Zeacutefiro Vento oeste responsaacutevel pela brisa suave 49Videira silvestre alusatildeo a Baco o deus do vinho Composiccedilatildeo do locus amoenus 50Amintas pastor e haacutebil muacutesico assim como Mopso e Menalcas 51Febo epiacuteteto para Apolo o deus-sol Filho de Juacutepiter e Latona eacute irmatildeo gecircmeo de Diana a deusa da caccedila Costuma ser lembrado como protetor das artes
82
Menalcas
Comeccedila Mopso primeiro jaacute que tens aquelas chamas de Fiacutelis52 os louvores
de Alcatildeo53 e as disputas de Codro54 Comeccedila Tiacutetiro55 guardaraacute os cabritos que
pastam
Mopso
Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na
casca verde de uma faia56 tu em seguida mandai que Amintas dispute comigo
Menalcas
Assim como o flexiacutevel salgueiro57 cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo
ceacuteltico58 cede agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti
Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta
Mopso
52 Fiacutelis princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado (Demoofonte rei dos atenienses) enforcou-se e foi transformada em amendoeira Conta-se que quando o esposo retornou e soube do ocorrido abraccedilou-se agrave aacutervore que ao perceber o retorno do amado passou a produzir folhas Fiacutelis tambeacutem eacute um nome de pastora que aparece como amada de Dametas e Menalcas na Eacutegloga III bem como de Tiacutersis na Eacutegloga VII 53Alcatildeo companheiro de Heacutercules haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu filho sem o ferir O louvor a Alcatildeo deixa entrever os elogios aos seus feitos natildeo sendo estranho ao gecircnero bucoacutelico pois tambeacutem se cantaraacute posteriormente os feitos do pastor Daacutefnis 54Codro rei ateniense que humildemente sacrificou-se pela paacutetria 55Tiacutetiro pastor 56A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos 57Salgueiro aacutervore de folhas longas 58 Nardo ceacuteltico espeacutecie de planta aromaacutetica conhecida como ldquovaleriana ceacutelticardquo
83
Morto Dafnis59 as Ninfas60 choravam com a cruel morte (voacutes aveleiras e rios
sois testemunhas das Ninfas) quando miseravelmente a matildee abraccedilada ao corpo do
filho chama de crueacuteis os deuses e os astros
Naqueles dias ningueacutem levou os bois para os pastos e para as frescas correntes
oacute Daacutefnis nenhum cavalo provou a aacutegua nem tocou as ervas do pasto
Os montes bravios e os bosques dizem que ateacute os leotildees cartagineses61 choraram
a tua morte Daacutefnis
Daacutefnis foi quem ensinou prender os tigres armecircnios62 no carro Daacutefnis conduziu
as danccedilas de Baco63 e cobriu as maleaacuteveis lanccedilas64 com delicadas folhas
Como as videiras satildeo as gloacuterias para as aacutervores como as uvas satildeo para as
videiras como os touros satildeo para os rebanhos como as searas satildeo para os feacuterteis
campos tu Daacutefnis eacutes a gloacuteria para todos os teus A proacutepria Pales65 e o proacuteprio Apolo66
deixaram os campos depois que os fados te levaram
Nos sulcos em que jogamos tantas vezes a cevada as aveias esteacutereis e o joio
improdutivo nascem Em lugar da delicada violeta e do purpuacutereo narciso67 surge o
paliuacutero pontiagudo68 os cardos e os espinheiros
Espalhai folhas ao chatildeo levai sombras agraves fontes pastores (Daacutefnis manda fazer
isto para si) e fazei um tuacutemulo e no tuacutemulo gravai os versos
Eu sou Daacutefnis conhecido nos bosques daqui ateacute aos astros Guardiatildeo de
formoso rebanho mais formoso sou
Menalcas
Os teus versos admiraacutevel poeta satildeo para noacutes tal como eacute o sono na relva aos
cansados tal como eacute pelo calor extinguir a sede no regato de aacutegua doce Natildeo soacute
59Daacutefnis pastor por excelecircncia e ceacutelebre inventor do gecircnero bucoacutelico Filho de Mercuacuterio e de uma Ninfa da Siciacutelia nasceu em um bosque de loureiros Mopso apresenta um lsquoelogio fuacutenebrersquo ao inventor da poesia pastoril 60 Ninfas divindades que habitam os bosques campos e aacuteguas figurativizam os elementos da natureza que compotildeem o cenaacuterio bucoacutelico 61Leotildees cartagineses leotildees africanos 62Tigres armecircnios o pastor Daacutefnis aparece como espeacutecie de lsquoheroacuteirsquo civilizador 63Baco filho de Semele e Juacutepiter eacute o deus do vinho do oacutecio e do prazer 64Maleaacuteveis lanccedilas lanccedilas enfeitadas com folhas de hera usadas pelas bacantes 65Pales deusa pastoral dos campos cultivados 66Apolo deus das pastagens eacute retomado como na figura de pastor quando apascentou os rebanhos do rei Admeto 67Purpuacutereo narciso planta de flores perfumadas 68Paliuacutero pontiagudo planta espinhosa
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igualas o mestre69 na flauta mas na voz oacute afortunado rapaz agora seraacutes um outro
como ele Mas por nossa vez cantaremos e elevaremos o teu Daacutefnis aos astros aos
astros levaremos Daacutefnis Daacutefnis tambeacutem nos amou
Mopso
Acaso haveraacute para noacutes algo maior do que semelhante daacutediva E o proacuteprio rapaz
foi digno de ser cantado e estes versos jaacute haacute muito tempo Estimicatildeo70 nos louvou
Menalcas
O cacircndido Daacutefnis admira o desconhecido limiar do Olimpo71 vecirc as nuvens e as
estrelas sob seus peacutes Por isso alegre prazer domina as florestas os campos
restantes Patilde72 os pastores e as jovens Driacuteades73 O lobo natildeo prepara ardis ao
rebanho nem as redes preparam algum engano aos cervos O bom Daacutefnis ama os
oacutecios Os proacuteprios montes agrestes com alegria proferem gritos para os astros As
proacuteprias pedras os proacuteprios bosques entoam versos Um deus ele eacute um deus
Menalcas Oacute que tu sejas bom e favoraacutevel para os teus Eis aqui quatro altares Dois
para ti oacute Daacutefnis dois mais altos para Febo Todo ano ofertarei para ti duas taccedilas
espumantes com leite fresco e duas tigelas com azeite abundante74 Sobretudo
alegrando os festins com transbordante Baco75 ante o fogo se frio estiver agrave sombra
durante colheitas Derramarei nos copos os vinhos ariuacutesos76 um fresco neacutectar
Cantaratildeo para mim Dametas77 e Eacutegatildeo de Licto78 Alfesibeu79 imitaraacute os saacutetiros80
saltitantes Estes ritos para ti sempre existiratildeo seja quando fizermos votos solenes agraves
69Mestre alusatildeo a Daacutefnis pastor e cantor por excelecircncia 70Estimicatildeo pastor 71Olimpo Monte entre a Tessaacutelia e a Macedocircnia onde se acreditava residirem os deuses oliacutempicos 72Patilde deus dos pastores da Arcaacutedia 73Driacuteades ninfas dos bosques 74Azeite abundante oferendas agrave nova entidade rural Daacutefnis aparece como mortal divinizado 75Baco vinho por metoniacutemia 76Vinho ariuacuteso vinho de um promontoacuterio em Quios ilha das Ciacuteclades 77Dametas pastor 78Eacutegatildeo pastor da ilha de Creta 79Alfesibeu pastor 80 Saacutetiros saltitantes entidades hiacutebridas figuras humanas com chifres e patas de bode Personificam a natureza selvagem e os instintos primitivos Acompanham Baco Patilde e as Ninfas
85
Ninfas seja quando purificarmos81 os campos Enquanto o javali amar os cimos do
monte enquanto o peixe amar os rios enquanto as abelhas alimentarem-se de
tomilho e as cigarras de orvalho a honra e o teu nome e os louvores sempre
permaneceratildeo Assim como a Baco e agrave Ceres82 todo ano os agricultores prestaratildeo
votos para ti Tu mesmo solicitaraacutes os votos
Mopso
O que oferecerei a ti que presente por tal canto Pois natildeo me agrada tanto o
silvo que vem do Austro83 nem as praias atingidas pela onda nem os rios que correm
entre vales pedregosos
Menalcas
Primeiro noacutes te presentearemos com esta fraacutegil flauta que nos ensinou que
ldquoCoacuteridon ardia pelo formoso Aleacutexis84rdquo bem como ldquoDe quem pertence o rebanho
Acaso eacute de Melibeu85rdquo
Mopso
E tu Menalcas recebe o cajado que eacute formoso com noacutes iguais e com bronze
o qual embora frequentemente me rogasse Antiacutegenes natildeo levou (e era entatildeo digno
de ser amado)
81 Purificaccedilatildeo dos campos celebraccedilotildees em honra de Ceres 82Ceres deusa protetora das colheitas 83Austro vento teacutepido do sul 84Aleacutexis objeto do desejo do pastor Coacuteridon (alusatildeo agrave Bucoacutelica II) 85Melibeu pastor (alusatildeo ao iniacutecio da Bucoacutelica III)
86
53 FIGURATIVIDADE NA BUCOacuteLICA V ndash anaacutelise do texto
A poesia de gecircnero bucoacutelico destina-se aos assuntos da vida campestre em
que estatildeo presentes a natureza os animais e o pastor de cabras ou ovelhas figura
recorrente e que estaacute em simbiose com o oacutecio e os prazeres do viver ruacutestico do campo
O termo boukolikaacute ldquobucoacutelicardquo em grego refere-se a cantos de boiadeiros No que diz
respeito ao termo έχλογή (eacutecloga ou eacutegloga) trata-se de um adjetivo substantivado
que significa laquoescolharaquo laquopoesia ou trecho escolhidoraquo Soacute na linguagem moderna eacute
que se comeccedilou a empregar este termo como sinocircnimo de idiacutelio isto eacute de composiccedilatildeo
pastoril (BOLEacuteO 1936 p 15) Para Boleacuteo isso se deve a uma influecircncia antiga de
uma etimologia errocircnea segundo a qual laquoeacuteclogaraquo viria de αίξ αιγός cabra e
significaria portanto qualquer coisa como laquocanto ou poema em que entram cabrasraquo
(quando eacute sabido que laquoeacuteclogaraquo vem do verbo έχ-λέγειν escolher) Hoje os dicionaacuterios
modernos referem-se ao vocaacutebulo eacutecloga como sinocircnimo de cantos dialogados entre
pastores
Seacutervio gramaacutetico latino do seacuteculo IV dC em seu In Vergilii Carmina
Commentarii tambeacutem discorre acerca da origem do poema bucoacutelico Para ele as
bucoacutelicas foram assim chamadas a partir dos guardadores de bois Seacutervio entatildeo
menciona que a origem deste tipo de poema estaacute atrelada aos hinos em louvor a Diana
e Apolo Nocircmio no tempo em que o deus apascentou os rebanhos de Admeto Seacutervio
afirma ainda que o poema bucoacutelico foi dedicado pelos pastores aos numes ruacutesticos
tais como Patilde faunos ninfas e saacutetiros
Assim na composiccedilatildeo bucoacutelica geralmente figuram os guardadores de gado
os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas que estatildeo sempre
inseridos em um cenaacuterio campesino Os pastores satildeo representados como homens
do campo que vivem singelamente e que estatildeo sempre acompanhados de seus
cajados e rebanhos Aleacutem disso no momento de oacutecio entoam cantigas inocentes na
singela flauta
Em Roma coube a Virgiacutelio as primeiras composiccedilotildees pastoris Nas Bucoacutelicas
coleccedilatildeo de poemas publicados entre 42 e 37 aC ao buscar motivos nos Idiacutelios de
Teoacutecrito poeta siracusano do Periacuteodo Heleniacutestico (seacutec III aC) tambeacutem conhecido
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tradicionalmente como o fundador do gecircnero bucoacutelico Virgiacutelio criou ambientaccedilotildees e
personagens valendo-se de uma linguagem repleta de elementos figurativos
A tradiccedilatildeo claacutessica atribui ao siracusano Teoacutecrito a origem do poema bucoacutelico
Girard (apud BOLEacuteO 1936 p 21) ao referir-se agrave poesia pastoril grega menciona o
nome de Teoacutecrito como criador de modelos Mas nos estudos de Boleacuteo afirma-se
que seria errocircneo pensar em Teoacutecrito como uacutenico criador da poesia de gecircnero
bucoacutelico jaacute que o poeta tal como Homero vale-se de uma reminiscecircncia literaacuteria
praticada na Greacutecia Com isso ao mencionar as origens remotas da poesia bucoacutelica
Boleacuteo (1936 p 33) lembra sobre a praacutetica da agricultura (referindo-se assim ao
campo e agrave natureza em geral) e da pastoriacutecia (referindo-se agrave simpatia pelo pastor)
como elemento fundamental para a caracterizaccedilatildeo do povo siciliano e da Siciacutelia tida
pelo criacutetico como a paacutetria por excelecircncia do gecircnero da poesia pastoril Somando-se a
isso Boacuteleo menciona que a poesia bucoacutelica teve na mitologia agreste especialmente
no mito de Daacutefnis sua principal fonte
Os poemas bucoacutelicos de Virgiacutelio apresentam um cenaacuterio em que estatildeo
presentes figuras coerentes ao contexto pastoril Mas Zeacutelia de Almeida Cardoso
(1989 p 66) afirma que ldquoApesar da simplicidade dos temas a linguagem de Virgiacutelio
nas Bucoacutelicas eacute bastante rica em figuras de estilo e elementos ornamentaisrdquo Isso
mostra que a expressatildeo tradicional ldquoestilo simplesrdquo para caracterizar o gecircnero bucoacutelico
pode induzir a conclusotildees precipitadas do ponto de vista da sofisticaccedilatildeo da linguagem
empregada nos poemas Ao nos referirmos ao estilo simples em relaccedilatildeo agrave poesia
bucoacutelica de Virgiacutelio queremos com isso destacar o efeito de sentido depreendido a
partir de uma coerecircncia discursiva O estilo simples se verifica dessa forma na
expectativa gerada pela rede de figuras que eacute recorrente no discurso sendo capaz de
construir um especiacutefico efeito de sentido partindo da caracterizaccedilatildeo do tipo de
personagens e ambientaccedilatildeo proacuteprios da poesia bucoacutelica
O pastor o protagonista do cenaacuterio bucoacutelico aleacutem de se deleitar com a vida
ruacutestica do campo desfrutando do oacutecio tambeacutem participa com seu engenho e arte da
composiccedilatildeo da cena pastoril Fontenelle (apud BOLEacuteO 1936 p 59) revela assim
que o poema bucoacutelico traz um elemento muito importante o aspecto musical
O costume de fazer acompanhar a poesia de muacutesica ou melhor o haacutebito de
compor versos para serem cantados e acompanhados de um instrumento musical
natildeo era soacute peculiar agrave poesia liacuterica mas agrave poesia em geral de tal forma que antes de
88
Hesiacuteodo e Piacutendaro a palavra ldquocriadorrdquo ou ldquopoetardquo era sinocircnimo de cantor de aedo []
(BOLEacuteO 1936 p 59)
Com isso os pastores na poesia de gecircnero bucoacutelico estatildeo ligados agrave terra e agrave
arte de bem dizer e portanto frequentemente aparecem como cantores Sabe-se que
o canto bucoacutelico eacute um dos elementos essenciais nos Idiacutelios pastoris de Teoacutecrito
servindo de modelo a Virgiacutelio na composiccedilatildeo das Bucoacutelicas de nuacutemero I III V VII e
IX
As bucoacutelicas iacutempares apresentam diaacutelogos de pastores com tonalidade
dramaacutetica A seacutetima bucoacutelica por exemplo vale-se de proacutelogos dirigidos ao auditoacuterio
assemelhando-se agraves comeacutedias de Plauto Assim como esta os outros poemas
tambeacutem trabalham com o apelo cecircnico revelando-se fortemente dramaacuteticas
E de Saint-Denis (apud MENDES 1997 p 144) cita algumas dessas
caracteriacutesticas e questiona a investigaccedilatildeo das Bucoacutelicas a partir da encenaccedilatildeo e da
muacutesica Com base em dados cecircnico-musicais o criacutetico procura elementos que
revelem a progressatildeo dramaacutetica que se desenvolve no cenaacuterio bucoacutelico
Para Joatildeo Pedro Mendes (1997 p144)
A muacutesica acompanha sempre a encenaccedilatildeo quer executada pela flauta dos pastores quer murmurada em surdina pela natureza envolvente quer ainda pelos recursos teacutecnicos do verso (anaacuteforas ecos ressonacircncias aliteraccedilotildees e assonacircncias no final do verso ou do hemistiacutequio)
O desafio poeacutetico de motivo liacuterico era praticado entre dois pastores O canto
dialogado constituiacutea o chamado canto amebeu ldquoque significa tomar uma coisa em
troca doutrardquo (BOLEacuteO 1936 p 61) Com o teacutermino dos cantos o pastor vitorioso
recebia um precircmio uma flauta pastoril ou um cajado por exemplo
Ao definir os antecedentes do desafio poeacutetico Luiacutes da Cacircmara Cascudo (2005)
tambeacutem menciona os versos improvisados que os romanos chamaram de
amoeboeum carmen ou seja canto amebeu que ldquoera alternado e os interlocutores
deviam responder com igual nuacutemero de versosrdquo (2005 p 185-186)
Em seu ensaio Virgiacutelio e os cantadores (2005) Mauro Mendes apresenta-nos
uma definiccedilatildeo para o concurso ou desafio poeacutetico entre pastores
Enquanto cuidavam dos rebanhos os pastores costumavam promover disputas entre si para ver quem era o melhor na arte de cantar e fazer versos Plessis sem nenhum preconceito chama a este tipo de
89
disputa de ldquoconcurso poeacuteticordquo (concours poeacutetique) o qual se realizava sob a observaccedilatildeo de um juiz Iniciada a disputa os dois rivais se alternavam cantando estrofes que deviam ter o mesmo nuacutemero de versos tendo o segundo improvisador a obrigaccedilatildeo de se manter dentro do tema proposto pelo primeiro quer o contradizendo quer o enriquecendo com variaccedilotildees O primeiro improvisador (repentista) tanto podia se manter dentro de um mesmo tema durante vaacuterias estrofes quanto podia mudaacute-lo bruscamente criando assim dificuldades para o segundo Este tipo de desafio era denominado canto ldquoamebeurdquo (canto alternado) (MENDES 2005 p 16-17)
A ldquoV Bucoacutelicardquo concentra-se no canto alternado entre dois amigos pastores
Menalcas e Mopso que se encontram em um cenaacuterio campestre para juntos
celebrarem o pastor miacutetico Daacutefnis e por extensatildeo o proacuteprio gecircnero bucoacutelico De
acordo com Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 236) o canto amebeu existe neste poema
todavia em um tom muito diferente pois natildeo haacute o compromisso da aposta entre os
dois pastores-cantadores Aleacutem disso apresentam-se trechos longos elaborados
que visam o mero prazer de recitar
Logo a composiccedilatildeo do universo pastoril seraacute feita gradualmente a partir da fala
dos personagens-pastores O poema inicia-se com a fala de Menalcas (hex 1-3) que
apresenta a descriccedilatildeo do locus amoenus
MENALCAS
Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo tu calamos inflare leuis ego dicere uersus hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre os olmeiros misturados agraves aveleiras
Nestes versos Menalcas convida o pastor Mopso para sentar-se entre os
olmeiros e as aveleiras O Olmeiro (ou Ulmeiro) eacute uma aacutervore de grande porte e
portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra Era comum aos pastores no
momento de oacutecio desfrutarem da sombra de uma frondosa faia enquanto tocavam a
singela flauta Trata-se de uma temaacutetica recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico A
descriccedilatildeo do lugar apraziacutevel e favoraacutevel portanto ao canto aparece iconicamente no
hexacircmetro 3
90
Hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
Aqui nos sentamos entre os olmeiros misturados agraves aveleiras
Destaca-se deste verso o verbo ldquoconsedimusrdquo (sentamos) que estaacute entre
ldquocorylisrdquo aveleiras e ldquoulmosrdquo olmeiros figurativizando o convite que Menalcas faz a
Mopso o de que deveriam se sentar entre as aveleiras e os olmeiros Nota-se que a
disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso favorece agrave impressatildeo referencial do cenaacuterio
bucoacutelico ou seja agrave percepccedilatildeo da imagem dos dois pastores que sentados entre as
aacutervores cantam a natureza que os cerca
O efeito de sentido simples eacute depreendido aqui a partir da descriccedilatildeo do cenaacuterio
bucoacutelico O lugar elegido pelos pastores eacute o chatildeo ruacutestico de onde se aproveitaraacute a
sombra do olmeiro que se encontra perto das aveleiras Dando continuidade agrave
construccedilatildeo desse efeito temos a fala de Mopso que em resposta a Menalcas (hex
4-7) procura sugerir um outro lugar para o encontro ampliando de tal forma a
descriccedilatildeo do cenaacuterio tipicamente bucoacutelico
MOPSVS
Tu maior tibi me est aequom parere Menalca Siue sub incertas Zephyris motantibus umbras Siue antro potius succedimus Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis
Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo
das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados ou melhor em uma gruta
sigamos Vecirc como a videira silvestre a cobriu com cachos raros
Da fala de Mopso merece destaque o hexacircmetro 5
Siue Sub incertaS ZephyriS motantibuS umbraS
Seja debaixo das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados
A repeticcedilatildeo do fonema s ao longo do verso deixa entrever uma sibilacircncia
significativa pois sugere a cena que estaacute sendo descrita a de que as sombras
91
proporcionadas pelas aacutervores satildeo inconstantes devido ao sopro dos ventos presente
figurativamente na repeticcedilatildeo da sibilante s O que se pode observar nesse trecho eacute
uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem em que o poeta relaciona o som ao sentido
e procura colocar em destaque agravequilo de que fala O discurso poeacutetico com isso
identifica-se com o proacuteprio referente As palavras de Joseacute Luiz Fiorin (1992 p 21)
vecircm ao encontro desse raciociacutenio
O conteuacutedo precisa unir-se a um plano de expressatildeo para manifestar-
se A expressatildeo principalmente no texto literaacuterio fornece tambeacutem
elementos dotados de valor significativo Esses elementos satildeo
basicamente os efeitos estiliacutesticos da expressatildeo ritmo aliteraccedilotildees
assonacircncias figuras de construccedilatildeo etc
Zeacutefiro eacute o vento oeste a personificaccedilatildeo do sopro sugerido pela aliteraccedilatildeo da
sibilante s no quinto hexacircmetro do poema de Virgiacutelio No quadro O Nascimento de
Vecircnus de Sandro Botticelli o sopro do Zeacutefiro permite que Vecircnus deusa do amor e da
beleza aproxime-se da Ilha de Chipre onde deveraacute ser recebida pelas Graccedilas
Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus
Fonte CUMMING Robert 1998 p 22
92
O sopro que em Virgiacutelio aparece como jogo aliterativo na concretude das
palavras dispostas no verso e na tentativa de homologaccedilatildeo do som ao sentido em
Botticelli aparece no movimento pictoacuterico sugerido pela ilusatildeo da presenccedila das ondas
no mar no manto e nos cabelos esvoaccedilantes aleacutem das flores que se desprendem
com o movimento desse sopro Enquanto Virgiacutelio extrai da palavra seu poder
figurador Botticelli exalta a plasticidade dos corpos e sugere a sensaccedilatildeo de
movimento as figuras estatildeo paradas enquanto as linhas se movimentam
Voltando agrave descriccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico da fala de Mopso ainda merecem
destaque os hexacircmetros 6 e 7
[] Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis
Vecirc como a videira silvestre cobriu a gruta com cachos raros
A disposiccedilatildeo dos sintagmas neste verso contribui para a construccedilatildeo figurativa
da cena que estaacute sendo descrita Nota-se que a videira silvestre ldquolabrusca siluestrisrdquo
estaacute entre os cachos raros ldquoraris racemisrdquo favorecendo agrave construccedilatildeo da imagem da
videira que estaacute circundada por cachos dispersos de uvas
A descriccedilatildeo do locus amoenus mais uma vez aparece na fala do pastor
remetendo-nos ao efeito de sentido simples proacuteprio da poesia bucoacutelica
No decorrer dos cantos alternados entre os amigos pastores o cenaacuterio bucoacutelico
vai sendo tecido ao abrigo de figuras que entrecruzadas favorecem agrave apreensatildeo
temaacutetica do ldquolouvor ao proacuteprio canto bucoacutelicordquo
Logo Menalcas (hex10-12) sugere a Mopso alguns temas mais elevados para
o canto bucoacutelico os louvores de Alcatildeo as disputas de Codro e a histoacuteria de Fiacutelis
afirmando que os cabritos seratildeo guardados por Tiacutetiro Alcatildeo era companheiro de
Heacutercules foi um haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu
filho sem o ferir Codro foi um rei ateniense que se sacrificou por sua paacutetria e Fiacutelis foi
uma princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado enforcou-
se e foi transformada em amendoeira Menalcas apresenta dessa forma alguns
temas um pouco mais elevados para abrir a inspiraccedilatildeo do amigo pastor Mas Mopso
se recorda da temaacutetica bucoacutelica e assim responde
93
(hex 13-15)
MOPSVS
Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi carmina descripsi et modulans alterna notaui experiar tu deinde iubeto certet Amyntas
Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na casca verde de uma faia tu em seguida mandai que Amintas dispute (comigo)
A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute
que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos
As figuras apresentadas remetem-nos portanto agrave descriccedilatildeo do espaccedilo
campestre que deve ser sempre um lugar apraziacutevel tanto ao oacutecio quanto ao canto
Aleacutem disso a fala de Mopso deixa entrever os temas singelos humildes proacuteprios da
poesia bucoacutelica o que corrobora para a construccedilatildeo do efeito de sentido simples
Menalcas nos hexacircmetros 16 a 19 cita outros elementos que compotildeem o
espaccedilo bucoacutelico e em seguida entra na gruta com Mopso
MENALCAS
Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae puniceis humilis quantum saliunca rosetis iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas Sed tu desine plura puer sucessimus antro
Assim como o flexiacutevel salgueiro cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo ceacuteltico (cede) agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta
O salgueiro citado por Menalcas eacute um arbusto de folhas delgadas com longos
e flexiacuteveis ramos que serviam para a confecccedilatildeo de cestas e outros objetos de uso
rural A oliveira no pequeno excerto ganha o epiacuteteto de paacutelida Isso se deve agrave cor de
sua folhagem jaacute que nos olivais prevalece o tom cinza As figuras apresentadas na
94
fala dos pastores ao tecer um cenaacuterio bucoacutelico por meio de recorrecircncias coerentes
vatildeo criando um efeito de sentido que caracteriza o estilo simples proacuteprio da poesia
pastoril
Tendo transferido o lugar do canto das sombras incertas para a gruta
circundada por cachos de uvas os pastores iniciam o canto O lugar apraziacutevel
escolhido pelos pastores pode ser definido como um iacutendice espacial em que figuram
os elementos responsaacuteveis pela caracterizaccedilatildeo do gecircnero da poesia pastoril Aleacutem
disso nota-se que o iacutendice temporal eacute estaacutetico jaacute que o ambiente e as personagens
tecircm avidez de presente Isso eacute previsto pelo equiliacutebrio sugerido pela composiccedilatildeo de
gecircnero bucoacutelico que natildeo comporta sobressaltos ou rupturas na descriccedilatildeo do locus
amoenus e no tempo que rege as personagens Os pastores exaltam a tranquilidade
que adveacutem da natureza e a partir dela entoam seus versos
Mopso entatildeo principia a celebraccedilatildeo de Daacutefnis em uma espeacutecie de hino
fuacutenebre em que canta o modo como a natureza pranteou o inventor do canto
bucoacutelico Nos hexacircmetros de nuacutemero 20 a 44 observa-se que as Ninfas divindades
que habitam as fontes montes e campos natildeo mais seratildeo lembradas pelo lendaacuterio
cantor bucoacutelico e por isso choram a sua morte Essas divindades figurativizam os
elementos da natureza que geralmente compotildeem todo o ambiente campestre O canto
de Mopso deixa entrever que a morte de Daacutefnis eacute responsaacutevel pela quebra da ordem
natural das coisas jaacute que nenhum animal tocou a erva do pasto ou provou a aacutegua do
regato Devido agrave morte de Daacutefnis os campos tornaram-se infeacuterteis e produziram
plantas esteacutereis e com espinhos o que demonstra a tristeza do cenaacuterio bucoacutelico
Afinal
Dafnis eacute um pastor ou antes o pastor por excelecircncia [] a divindade protectora dos pastores Eacute pastor [] tem um rebanho a seu cargo leva-o a pascer aos campos Aiacute enamoram-se decircle tocircdas as coisas tocircdas as criaturas desde as inanimadas ndash as pedras as aacutervores ndash ateacute aos animais A sua presenccedila anima a proacutepria natureza que vive e sente como um ser humano(BOLEacuteO 1936 p 31-2)
No canto de Menalcas (hex 56-80) tem-se a divinizaccedilatildeo do pastor Daacutefnis jaacute
que ele seraacute cantado agrave semelhanccedila de Baco o deus do vinho e de Ceres a deusa
da colheita Enquanto no canto de Mopso a natureza se entristece com a morte do
pastor no canto de Menalcas a mesma natureza alegra-se com sua divinizaccedilatildeo uma
95
vez que o lendaacuterio pastor seraacute instituiacutedo como divindade campestre devendo ser
lembrado pelos agricultores juntamente com Baco e Ceres
De acordo com Prado (1992 p 55)
Daacutefnis eacute Daacutefnis ou ainda aquele heroacutei dos pastores da Siciacutelia que segundo a lenda inventou o canto bucoacutelico do qual se tornou depois sua figura predileta e mais filho de Hermes e de uma ninfa nasceu no vale dos montes Ereus a matildee o deu agrave luz ou o expocircs num bosque de louros donde o seu nome tendo crescido tornou-se um pastor de rebanhos bovinos que lhe aprazia apascentar cantando e tocando sua flauta de Patilde era belo a ponto de ter sido amado por seres humanos e divinos tais como Patilde Priapo as Ninfas as Musas Apolo Aacutertemis etc ainda jovem veio a morrer e toda a natureza o pranteou haacute vaacuterias versotildees acerca da forma como morreu segundo a versatildeo mais antiga a de Estesiacutecoro apaixonou-se por uma ninfa (Neide Equeneide ou Lica) que o cegou para vingar-se de uma infidelidade por algum tempo Daacutefnis confortou-se com seu proacuteprio canto mas depois num momento de desespero precipitou-se do alto de uma rocha e foi levado aos ceacuteus por Hermes os pastores passaram a oferecer-lhe sacrifiacutecios anualmente no local onde ele teria se precipitado Tal eacute a resposta mais objetiva que se pode dar acerca da identidade de Daacutefnis
Ao questionarmo-nos sobre a escolha do mito de Daacutefnis na ldquoV Bucoacutelicardquo
chegamos em Teoacutecrito jaacute que em seu Idiacutelio I ldquoencontramos o pastor Thyrsis cantando
os infortuacutenios de Daacutefnis golpeado por Afrodite por um amor irresistiacutevel porque se
gabava de ser insensiacutevel a essa classe de paixatildeo Vaacuterias passagens daquele canto
e mesmo alguns versos inteiros foram reproduzidos por Virgiacutelio na Eacutegloga Vrdquo
(PRADO 1992 p 56)
Mas vale ressaltar que no idiacutelio de Teoacutecrito Daacutefnis natildeo eacute divinizado mas sim
ao contraacuterio jaacute que ele ldquobaixa agraves profundezas do Hades ateacute submergir ou dissolver-
se nas aacuteguas do rio Estiacutegio enquanto no relato do pastor virgiliano (vs 56-80) haacute uma
longa celebraccedilatildeo do novo status de Daacutefnis como deus []rdquo (PRADO 1992 p 56
grifo do autor)
Na visatildeo de Prado (1992 p 56-57) Virgiacutelio na ldquoV Bucoacutelicardquo distancia-se da
temaacutetica teocriteana para assim construir um novo mito calcado no discurso histoacuterico
e lendaacuterio dos feitos de Ceacutesar criando com isso uma atmosfera propiacutecia ao
Cesarismo que ficaria cristalizado posteriormente na figura de Otaviano
Segundo Prado (1992) Juacutelio Ceacutesar e Daacutefnis podem ser aproximados no
discurso poeacutetico de Virgiacutelio porque ambos podem ser vistos como heroacuteis lendaacuterios
96
aleacutem do que alguns indiacutecios da histoacuteria do general romano mostram que Ceacutesar
tambeacutem foi divinizado em 42 aC pelos triuacutenviros Aleacutem disso outro intertexto que
torna possiacutevel aliar a histoacuteria lendaacuteria de Ceacutesar com a de Daacutefnis segundo o criacutetico eacute
a sucessatildeo de eventos que se seguem apoacutes a morte do imperador mas descritos em
um texto posterior nas Geoacutergicas (Canto I hex-463-488)
Nas palavras de Prado (1992 p 57)
Quando ele morreu Virgiacutelio nos conta que o sol se escondeu e o povo julgou que fosse o fim dos tempos aleacutem do sol tambeacutem deram sinais a terra as aacuteguas do mar os catildees agourentos as aves mal astradas o Etna vomitou lava ouviram-se clamores de guerra na Germacircnia os Alpes tremeram vozes ressoaram na escuridatildeo da noite e fantasmas apareceram nos bosques animais falaram rios houve que transbordaram ou suspenderam o curso de suas aacuteguas e toda sorte de estranhos acontecimentos deram lugar agrave morte desse heroacutei de Roma
Logo segundo Prado todos esses fatos lendaacuterios quando somados deixam
entrever uma apropriaccedilatildeo de um aspecto cultural e poliacutetico do tempo de Virgiacutelio
Natildeo podemos perder de vista eacute claro que ldquoos noventa hexacircmetros datiacutelicos de
Virgiacutelio que a tradiccedilatildeo dos estudos claacutessicos nos transmite sob a designaccedilatildeo de
Eacutegloga V por vezes subintitulados Daphnis em boas ediccedilotildees satildeo como os de
qualquer uma das outras nove peccedilas da coletacircnea uma fala em liacutengua latinardquo (LIMA
1992 p 59 grifo do autor)
Na visatildeo de Lima (1992) neste canto liacuterico-pastoral de Virgiacutelio deixa-se
entrever um efeito de sentido logo no iniacutecio do primeiro hexacircmetro ndash Cur non
consedimus (Por que natildeo nos sentamos) Cur eacute responsaacutevel por causa de seu
valor latino de forma de interrogaccedilatildeo pelo efeito de sentido ldquoconversa entre
interlocutoresrsquo
com que Virgiacutelio finge poeticamente incorporar a uma simples fala de pastores aquilo que eacute mais propriamente efusatildeo liacuterica ao mesmo tempo em que se torna como que natural o prolongamento dessa efusatildeo graccedilas agrave economia simulada num jogo de pergunta e resposta entre parceiros No plano fonoloacutegico cur 1) antecipa e faz ressoarem as assonacircncias em liacutequidas intensificadas jaacute no hexacircmetro seguinte 2) acentua a oposiccedilatildeo entre a leveza da flauta ruacutestica que parece comunicar-se agrave liquidez natural do seu som simbolizada no fonema [l] e uma certa dureza das vibraccedilotildees do [r] da voz humana do pastor Menalcas tu calamos inflare leuis ego dicere uersus (LIMA 1992 p 63 grifos do autor)
97
Segundo Lima (1992) Daphnis eacute o vocaacutebulo de maior recorrecircncia na ldquoV
Bucoacutelicardquo jaacute que aparece 13 vezes pois tem um relevo especial Para o criacutetico natildeo
haacute duacutevida sobre a adesatildeo entusiasta do poeta em relaccedilatildeo agrave monarquia juliana Mas
se isso deve ser interpretado ldquocomo identificaccedilatildeo pura e simples de uma obra que eacute
produto do imaginaacuterio e do talento com a ideologia dos mortais interessados no ecircxito
de um evento poliacutetico e natildeo primeiro como transfiguraccedilatildeo poeacutetica da vida em
sociedade eacute uma questatildeo de gosto e de sensibilidaderdquo (LIMA 1992 p 63-64)
Com relaccedilatildeo aos expedientes figurativos presentes no poema podem-se
destacar ainda os hexacircmetros 83 e 84 da fala de Mopso que se emociona com o
canto de Menalcas e afirma que nem as aacuteguas que descem pelo vale o deleitam tanto
[] nec quae saxosas inter decurrunt flumina uallis
nem os rios que descem por entre vales escarpados
A distribuiccedilatildeo dos vocaacutebulos contribui iconicamente para a mimetizaccedilatildeo da
cena que estaacute sendo invocada jaacute que ldquofluminardquo rios aparece figurativamente entre
ldquouallis saxosasrdquo vales escarpados Temos dessa forma a imagem do rio construiacuteda
em meio ao vale
Ao apresentar o pastor Daacutefnis lendaacuterio inventor do canto bucoacutelico como tema
principal de toda a trama de figuras a ldquoV Bucoacutelicardquo deixa entrever o tema do ldquolouvor
ao proacuteprio gecircnero pastorilrdquo que eacute revestido por figuras que simbolizam todo o universo
campestre
O estilo pensado aqui como efeito de individuaccedilatildeo construiacutedo no poema eacute
depreendido pela coerecircncia discursiva ou seja pela rede de figuras que vatildeo criando
uma expectativa do dizer A recorrecircncia figurativa potencializa dessa forma o estilo
enunciado porque ele vai aparecer como um efeito de sentido depreendido pelo
contexto do poema Na ldquoV Bucoacutelicardquo portanto temos um estilo simples construiacutedo
como efeito a partir de um cenaacuterio campesino (com uma gruta coberta por cachos de
uvas um olmeiro uma frondosa faia) o canto alternado entre dois pastores (Mopso e
Menalcas) e a menccedilatildeo a deuses que se coadunam com o ambiente campestre
(Daacutefnis Ceres)
98
Buscou-se entender assim como o arranjo de figuras presentes no poema
contribui para a construccedilatildeo da verossimilhanccedila do cenaacuterio bucoacutelico o locus amoenus
o lugar apraziacutevel destinado ao canto e ao oacutecio dos poetas-pastores Ao destacarmos
o jogo aliterativo e posicional das palavras na produccedilatildeo de impressotildees referenciais
procuramos apreender tambeacutem a forma como Virgiacutelio trama as palavras que estatildeo em
andamento no poema remetendo-nos ao sentido poeacutetico e esteacutetico do texto
99
54 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) ldquodescriccedilatildeo do lugar adequado
para as abelhasrdquo
Protinus aerii mellis caelestia dona
exsequar hanc etiam Maecenas adspice partem
Admiranda tibi leuim spetacula rerum
magnanimosque duces totiusque ordine gentis
mores et studia et populos et proelia dicam 5
In tenui labor at tenuis non gloria si quem
numina laeua sinunt auditque uocatus Apollo
Principio sedes apibus statioque petenda
quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti
ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci 10
floribus insultent aut errans bubula campo
decutiat rorem et surgentis atterat herbas
Absint et picti squalentia terga lacerti
pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolocres
et manibus Procne pectus signata cruentis 15
omnia nam late uastant ipsasque uolantis
ore ferunt dulcem nidis immitibus escam
At liquidi fontes et stagna uirentia musco
adsint et tenuis fugiens per graminha riuos
palmaque uestibulum aut igens oleaster inumbret 20
ut cum prima noui ducent examina reges
uere suo ludetque fauis emissa iuuentus
uicina inuitet decedere ripa calori
100
obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos
In medium seu stabit iners seu profluet umor 25
transuersas salices et grandia conice saxa
pontibus ut crebris possint consistere et alas
pandere ad aestiuom86 solem si forte morantis
sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus
Haec circum casiae uirides et olentia late 30
serpylla87 et grauiter spirantis copia thymbrae
floreat inriguom88que bibant uiolaria fontem
Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis
seu lento fuerint aluaria uimine texta
angustos habeant aditus nam frigore mella 35
cogit hiems eademque calor liquefacta remittit
Vtraque uis apibus pariter metuenda neque illae
nequiquam in tectis certatim tenuia cera
spiramenta linunt fucoque et floribus oras
explent conlectumque haec ipsa ad munera gluten 40
et uisco et Phrygiae seruant pice lentius Idae
Saepe etiam effosis si uera est fama latebris
sub terra fouere larem penitusque repertae
pumicibusque cauis exesaeque arboris antro
Tu tamen et leui rimosa cubilia limo 45
unge fouens circum et raras superinice frondis
86 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aestiuum Aquiacute optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1956 87 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se serpulla 88 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se inriguumque
101
neu propius tectis taxum sine neue rubentis
ure foco cancros altae neu crede paludi
aut ubi odor caeni grauis aut ubi concaua pulsu
saxa sonant uocisque ofensa resultat imago 50
Quod superest ubi pulsam hiemem sol aureus egit
sub terras caelumque aestiua luce reclusit
illae continuo saltus siluasque peragrant
purpureosque metunt flores et flumina libant
summa leues Hinc nescio qua dulcedine laetae 55
progeniem nidosque fouent hinc arte recentis
excudunt ceras et mella tenacia fingunt
Hinc ubi iam emissum caueis ad sidera caeli
nare per aestatem liquidam suspexeris agmen
obscuramque trahi uento mirabere nubem 60
contemplator aquas dulcis et frondea semper
tecta petunt Huc tu iussos adsperge sapores
trita melisphylla et cerinthae ignobile gramen
tinnitusque cie et Matris quate cymbala circum
ipsae consident medicatis sedibus ipsae 65
intima more suo sese in cunabula condent
Sin autem ad pugnam exierint ndash nam saepe duobus
regibus incessit magno discordia motu
continuoque animos uolgi89 et trepidantia bello
corda licet longe praesciscere namque morantis 70
89 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se uulgi
102
Martius ille aeris rauci canor increpat et uox
auditur fractos sonitus imitata tubarum
tum trepidae inter se coeunt pinnisque coruscant
spiculaque exacuunt rostris aptantque lacertos
et circa regem atque ipsa ad praetoria densae 75
miscentur magnisque uocant clamoribus hostem
ergo ubi uer nactae sudum camposque patentis
erumpunt portis concurritur aethere in alto
fit sonitus magnum mixtae glomerantur in orbem
praecipitesque cadunt non densior aere grando 80
nec de concussa tantum pluit ilice glandis
ipsi per medias acies insignibus alis
ingentis animos angusto in pectore uersant
usque adeo obnixi non cedere dum grauis aut hos
aut hos uersa fuga uictor dare terga subegit ndash 85
hi motus animorum atque haec certamina tanta
pulueris exigui iactu compressa quiescunt
Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo
deterior qui uisus eum ne prodigus obsit
dede neci melior uacua sine regnet in aula 90
Alter erit maculis auro squalentibus ardens
(nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore
et rutilis clarus squamis ille horridus alter
desidia latamque trahens inglorius aluom90
90 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se aluum
103
Vt binae regum facies ita corpora plebis 95
namque aliae turpes horrent ceu puluere ab alto
quom91 uenit et sicco terram spuit ore uiator
aridus elucent aliae et fulgore coruscant
ardentes auro et paribus lita corpora guttis
Haec potior suboles hinc caeli tempore certo 100
dulcia mella premes nec tantum dulcia quantum
et liquida et durum Bacchi domitura saporem
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt
contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont92
instabilis animos ludo prohibebis inani 105
Nec magnus prohibere labor tu regibus alas
eripe non illis quisquam cunctantibus altum
ire iter aut castris audebit uellere signa
Inuitent croceis halantes floribus horti
et custos furum atque auium cum falce saligna 110
Hellespontiaci seruet tutela Priapi
Ipse thymum pinosque93 ferens de montibus altis
tecta serat late circum quoi94 talia curae
ipse labore manum duro terat ipse feracis
figat humo plantas et amicos inriget imbris 115
91 Na estaccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cum 92 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se relinquunt 93 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tinosque 94 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cui
104
55 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) Traduccedilatildeo e notas
Continuadamente relatarei os dons celestes do aeacutereo mel95 Considera
tambeacutem Mecenas96 esta parte Para tua admiraccedilatildeo cantarei espetaacuteculos de breves
assuntos e em ordem magnacircnimos comandantes costumes ocupaccedilotildees povos e
combates de toda naccedilatildeo Pequeno o trabalho97 mas natildeo pequena a gloacuteria Se os
deuses contraacuterios o permitem e Apolo98 quando invocado ouve
Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que
natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem
as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo
agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes
Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos99 de ouriccedilados dorsos das feacuterteis
moradas e os melharucos100 outras aves e Procne101 marcada no peito com crueacuteis
matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes102
alimento doce para agrestes ninhos
Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos um
tecircnue riacho fluindo pela relva uma palmeira ou um alto zambujeiro103 sombreie o
vestiacutebulo104 para que quando os novos reis105 conduzirem os primeiros enxames de
abelhas em sua primavera106 e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma
margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com
folhagens hospitaleiras
No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados
salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir
95O mel era visto pelos antigos como um orvalho celeste 96Mecenas o patrono das artes na eacutepoca do reinado de Otaacutevio Augusto 97Trata-se de um assunto humilde Evidencia-se aqui a modeacutestia do tema 98Apolo o deus das artes 99Diz-se que o lagarto fica agrave espreita na entrada das colmeias sendo um de seus inimigos 100Melharuco (ou abelharuco) ave do tamanho de um sabiaacute que se nutre das abelhas e outros insetos 101Procne esposa de Tereu e irmatilde de Filomela Foi transformada em andorinha apoacutes matar o filho e servi-lo ao marido Diz-se que a mancha no peito da andorinha satildeo as marcas do sangue de Iacutetis 102 abelhas 103Zambujeiro oliveira brava 104 A entrada da colmeia 105Segundo o pensamento da eacutepoca as abelhas eram governadas por reis 106O adjetivo possessivo presente em ldquoVere suordquo indica que a primavera eacute a estaccedilatildeo das abelhas sendo mais favoraacutevel a elas
105
as asas ao sol de estio se por acaso Euro107 impetuoso tiver molhado ou submergido
em Netuno108 as que tardam
Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas109 e cheirosos serpotildees110
ao longe e uma abundacircncia de segurelha111 exalando fortemente e que os canteiros
de violetas bebam a uacutemida fonte
Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas
corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas
entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos112
Uma e outra forccedila igualmente deve ser temida pelas abelhas e natildeo sem motivo
agrave porfia113 elas revestem com cera114 as pequenas fendas de suas habitaccedilotildees e
vedam as extremidades com visco e flores e reunida para esses mesmos serviccedilos
[elas] conservam uma cola mais pegajosa do que o visgo e o pez do Ida Friacutegio115
Muitas vezes tambeacutem se eacute verdadeira a fama as abelhas aqueceram o lar em
tocas sob a terra e foram descobertas no interior de pedras porosas e na cavidade
de uma aacutervore carcomida116
Tu poreacutem unta as colmeias cheias de fenda com liso limo aquecendo ao
redor e lanccedila por cima raras117 folhagens E natildeo permitas o teixo perto dos tetos natildeo
queimes ao fogo os vermelhos caranguejos118 natildeo creias em profunda lagoa ou onde
eacute forte o odor da lama ou onde cocircncavas pedras ressoam com uma batida e resulta
o eco repercutido da voz119
107Euro vento do Leste capaz de alcanccedilar as abelhas perdidas (as que tardam) 108Netuno deus romano que preside os mares aqui representa a proacutepria agua 109 Manjerona planta aromaacutetica usada como condimento 110Serpatildeo (ou serpilho) planta aromaacutetica de pequeno porte 111Segurelha erva aromaacutetica planta ornamental tambeacutem usada como condimento 112Os excessos de calor e frio danificam o mel 113 As abelhas trabalham incansavelmente 114As abelhas revestem o interior das colmeias com proacutepolis O termo cera indica a qualidade do proacutepolis substacircncia escura e dura 115Ida friacutegio o monte Ida localizado na Friacutegia antiga regiatildeo no Oeste da Aacutesia Menor 116Diz-se que as abelhas tambeacutem se alojam em esconderijos em cavadas rochas ou nos buracos de aacutervores 117As folhagens natildeo devem ser muito longas pois o ar deve circular entre os ramos 118 Haacute diferentes remeacutedios que satildeo compostos com os caranguejos em brasa mas o odor desta preparaccedilatildeo eacute nocivo agraves abelhas 119As colmeias devem ser instaladas longe do barulho onde natildeo haacute mais eco
106
Quanto ao mais quando o aacuteureo sol expulsou o abatido inverno sob as terras120
e abriu o ceacuteu com luz de veratildeo imediatamente as abelhas percorrem os bosques e
as florestas recolhem as purpuacutereas flores e leves libam a superfiacutecie dos rios Assim
felizes eu natildeo sei por qual doccedilura aquecem os ninhos e a progecircnie depois elas
formam com arte novas ceras e produzem os licorosos meacuteis
Aiacute quando jaacute vires uma multidatildeo saiacuteda da colmeia voar pelo liacutempido estio ateacute
os astros do ceacuteu e admirares uma nuvem escura ser trazida pelo vento contempla
buscam sempre aacuteguas doces e abrigos cobertos de folhagens Espalha tu aiacute os
aromas determinados a melissa121 triturada e a erva comum do chupa-mel122 faze
ao redor soar zumbidos123 e agita os ciacutembalos da Matildee124 As proacuteprias abelhas
pousaratildeo nos lugares preparados125 elas mesmas abrigar-se-atildeo segundo seu
costume no interior da morada126
Mas se saiacuterem ao combate (porque muitas vezes a discoacuterdia de dois reis
sobreveio com grande alvoroccedilo) de longe se podem prever os acircnimos da turba e os
coraccedilotildees que vibram pela guerra127 porque aquele som marcial do rouco bronze
estimula as morosas e a voz que imita os ruidosos sons das trombetas eacute ouvida
Entatildeo agitadas entre si confrontam-se e batem as asas e afiam os ferrotildees com os
bicos e preparam as garras numerosas misturam-se ao redor do rei e ao mesmo
pretoacuterio o inimigo invocam com grandes clamores No momento em que tenham
encontrado clara primavera e descortinados campos lanccedilam-se pelas portas
combate-se Um barulho ressoa no alto ceacuteu misturadas aglomeram-se em um grande
orbe e caem precipitadas O granizo natildeo cai mais denso do ar nem tatildeo grande nuacutemero
de bolotas chove da sacudida azinheira
Os proacuteprios [reis] insignes pelas asas128 em meio aos exeacutercitos revolvem no
pequeno peito os ingentes acircnimos obstinados em natildeo ceder ateacute que o duro vencedor
120O inverno esconde-se nas entranhas da terra 121Mellisa folha para as abelhas ou para o mel 122 Chupa-mel erva de 30 a 50 cm de altura de cor roxa ou amarela cultivada em pastagens ou solo pedregoso 123 Para Virgiacutelio o barulho atrai as abelhas 124A ldquoMatildeerdquo eacute a deusa friacutegia Cibele a grande Matildee que preside toda a natureza Muitas vezes ela eacute representada com ciacutembalos 125 As abelhas entrariam na colmeia por si proacuteprias 126 Colmeia 127 Agitaccedilatildeo que se produz no enxame com a aproximaccedilatildeo do combate 128Os reis se distinguem das demais abelhas pela luminosidade de suas asas
107
obrigou estes ou aqueles a virar as costas na fuga Estes alvoroccedilos dos acircnimos e
estes tatildeo grandes combates se apaziguam reprimidos por um jato de bem pouco
poeira
Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele
que pareceu pior para que por consumir natildeo seja prejudicial deixe que o melhor
reine na desimpedida corte
Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de
ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor
aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre
Dois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo os corpos da plebe pois
umas satildeo disformes e horrendas como o viajante sedento quando vem da espessa
poeira e cospe terra de sua garganta seca outras reluzem e cintilam com fulgor
brilhantes do ouro em corpos mosqueados de manchas iguais
Essa eacute a melhor raccedila dela na estaccedilatildeo certa do ano extrairaacutes os doces meacuteis
natildeo tatildeo doces quanto puros para corrigir o aacutespero sabor de Baco
Mas quando incertos os enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os
favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o
fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles
imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do
acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e
a tutela de Priapo129 do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua
foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado
trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor
dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele
mesmo no solo enterre as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas
129 Priapo filho de Vecircnus e Baco o deus dos jardins Juno fez com que Priapo nascesse deformado Envergonhada Vecircnus mandou-o para Lacircmpsaco cidade da Miacutesia sobre o Helesponto
108
56 FIGURATIVIDADE NO CANTO IV (hex 1-115) anaacutelise do texto
Peter Toohey em seu estudo Epic Lessons an introduction to ancient didatic
poetry (1996) debruccedila-se sobre o tema da poesia didaacutetica grega e romana
demonstrando uma possiacutevel arqueologia da esteacutetica didaacutetica O autor busca assim
por meio de uma anaacutelise comparativa de um grupo de poemas uma certa regularidade
que segundo ele eacute caracteriacutestica da poesia didaacutetica Toohey observou as
composiccedilotildees de Hesiacuteodo Xenoacutefanes Parmecircnides Empeacutedocles Arato Nicandro
Ciacutecero Lucreacutecio Virgiacutelio Oviacutedio e Horaacutecio Segundo o criacutetico todos estes poetas
apresentam alguns traccedilos comuns tais como 1) uma voz forte singular e persuasiva
jaacute que segundo Toohey a poesia didaacutetica requer a presenccedila de uma voz direcionada
a um destinataacuterio 2) um assunto que seja atraente ou sensacional 3) o tipo de verso
pois para o autor o hexacircmetro datiacutelico seria um protoacutetipo da poesia didaacutetica 4) a
simplicidade conceitual e por fim 5) a extensatildeo referindo-se aos 828 versos de O
trabalho e os dias de Hesiacuteodo que se tornou segundo Toohey um modelo para um
livro de versos didaacuteticos
Tendo em vista que ldquotoda obra supotildee o horizonte de uma expectativa ou seja
um conjunto de regras preexistentes para orientar a compreensatildeo do leitor (do
puacuteblico) e permitir-lhe uma recepccedilatildeo apreciativardquo (JAUSS apud LIMA 1983 p 268)
nossa tarefa eacute a de pensar qual seria a expectativa de um discurso que se pretende
didaacutetico
O termo ldquodidaacuteticardquo remete-nos a um contexto de ensino-aprendizagem De
origem grega o termo eacute da famiacutelia do verbo διδάσκω cujo sentido principal eacute ldquofazer
aprender ensinar instruirrdquo
Desde Hesiacuteodo (750 - 650 aC) adotou-se o hexacircmetro datiacutelico como metro
convencional da poesia de gecircnero didaacutetico Todavia Oviacutedio (43 aC -18 dC) utiliza o
diacutestico elegiacuteaco em seus poemas Ars amatoria Medicamina faciei feminae e Remedia
amoris Estes textos colocaram alguns problemas agrave criacutetica tradicional pois satildeo obras
que mesclam caracteriacutesticas que satildeo proacuteprias da poesia didaacutetica com a poesia
elegiacuteaca Haacute por isso estudiosos que apresentam duacutevidas quanto agrave categorizaccedilatildeo
dessas obras ovidianas como pertencentes ao gecircnero da poesia didaacutetica sobretudo
a Ars amatoria e Remedia amoris O que se verifica eacute que uma variada gama de
109
intenccedilotildees didaacuteticas faz com que haja diferenccedilas em maior ou menor grau entre os
diferentes poemas didaacuteticos
Houve por isso vaacuterias tentativas por parte dos criacuteticos em criar uma taxonomia
do gecircnero da poesia didaacutetica130
Seacutervio no seacutec IV dC utiliza no iniacutecio do seu comentaacuterio agraves Geoacutergicas de
Virgiacutelio uma palavra de origem grega - didascalice - para se referir agrave poesia didaacutetica
et hi libri didascalici sunt unde necesse est ut ad aliquem scribantur nam praeceptum et doctoris et discipuli personam requirit unde ad Maecenatem scribit sicut Hesiodus ad Persen Lucretius ad Memmium Estes livros [das Geoacutergicas] satildeo didascaacutelicos por isso a necessidade de que para algueacutem sejam escritos uma vez que o preceito requer a pessoa do mestre e do disciacutepulo [Virgiacutelio] escreve para Mecenas
assim como Hesiacuteodo para Perses e Lucreacutecio para Mecircmio
Assim Virgiacutelio compocircs as Geoacutergicas entre 37 e 29 aC Segundo a tradiccedilatildeo dos
Estudos Claacutessicos a obra apresenta conteuacutedo instrucional sobre agricultura segundo
os pressupostos da poesia didaacutetica Algumas caracteriacutesticas do texto virgiliano dentre
elas o caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a
presenccedila de uma voz poeacutetica didaacutetica que se presta agrave instruccedilatildeo colaboraram para a
particularizaccedilatildeo da obra como gecircnero didaacutetico (TOOHEY 1996 p 15)
Sobre os modelos literaacuterios seguidos por Virgiacutelio sabe-se que as fontes satildeo
sobretudo gregas Hesiacuteodo Xenofonte Arato e Nicandro mas se constatam tambeacutem
as fontes latinas Catatildeo Varratildeo e Lucreacutecio (SANTOS 2007 p 23)
No que concerne agrave poesia didaacutetica e agrave literatura agraacuteria latina Aguilar (2006 p
247) assim expotildee
Por Literatura Agronoacutemica o Agriacutecola en el panorama literario greco-romano se entiende el conjunto de obras que tienen por objeto la exposicioacuten preceptiva de las labores y los trabajos propios de la vida en el aacutembito rural del ager y por tanto del hombre rusticus en oposicioacuten al urbanus Desde esta perspectiva se compreende sin problemas que las obras latinas De agricultura no se circunscriben estrictamente a la agricultura entendida soacutelo en sentido moderno como arte de cultivar la tierra sino que engloben tambieacuten otros
130 Conferir A Dalzell R Martin - J Gaillard Les genres litteacuteraires agrave Rome (Paris 1990) 199-200 Peter Toohey Epic lessons An introduction to ancient didactic poetry (London-New York 1996) Roy K Gibson lsquoDidactic poetry as lsquopopularrsquo form study of imperatival expressions in Latin didactic verse and prosersquo 67-69 In Catherine Atherton (ed) Form and content in didactic poetry (Bari 1997)
110
trabajos y atividades caracteriacutesticos de la economiacutea rural (la res rustica) como la arboricultura la ganaderiacutea la avicultura la apicultura o la administracioacuten misma de la uilla la finca en suelo ruacutestico (AGUILAR 2006 p247)
No Canto I das Geoacutergicas Virgiacutelio menciona a importacircncia do trabalho e a luta
obstinada com a terra No Canto II cantam-se as aacutervores e as vinhas e eacute destacado
o campo como um lugar de felicidade tranquila A terra produz frutos em troca do
esforccedilo despendido pelo homem O Canto III apresenta a raccedila dos animais e as artes
de criaccedilatildeo do gado e no Canto IV Virgiacutelio apresenta a apicultura em um quadro
agriacutecola
Na visatildeo de Elaine C Prado dos Santos (2007 p26)
Com os quatro cantos plantas aacutervores animais e abelhas o poema permite visualizar a gradaccedilatildeo dos niacuteveis da vida diferentes e hierarquizados mostrando que as criaturas se diferenciam Essa ideia eacute compatiacutevel com a filosofia epicurista ou seja agrave medida que se sobe na escala dos seres as criaturas vatildeo se diferenciando pois os organismos ficam mais complexos e compreendem um nuacutemero maior de aacutetomos diferenciados em combinaccedilotildees mais variadas
Vale ressaltar que ao compor um poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo
quis apenas transmitir alguns conhecimentos teacutecnicos sobre os trabalhos do campo
Se a criacutetica da obra virgiliana se prendesse apenas a esse aspecto temaacutetico
classificaria a obra do poeta mantuano como uma espeacutecie de tratado teacutecnico de
agronomia todavia as Geoacutergicas vatildeo muito aleacutem de um simples compecircndio de
aplicaccedilatildeo praacutetica sobre meacutetodos a serem seguidos na agricultura Aliaacutes dentro dos
preceitos uacuteteis e praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas
aqueles que se coadunam com a finalidade artiacutestica Essa seleccedilatildeo eacute portanto
significativa jaacute que estabelece a diferenccedila existente entre a poesia didaacutetica e os
tratados teacutecnicos sobre agricultura
O fiacuteloacutesofo e escritor Secircneca (4 aC-65 dC) tambeacutem opinou acerca da obra
virgiliana afirmando que ldquoO nosso poeta aliaacutes cuidava menos da verdade que da
beleza literaacuteria interessado como estava em proporcionar prazer aos seus leitores e
natildeo em dar liccedilotildees aos homens do campo rdquo (SEcircNECA 2004 p400)
O excerto do ldquoCanto IVrdquo das Geoacutergicas hexacircmetros de 1 a 115 aqui
selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise tem como tema principal a apicultura
mais precisamente a descriccedilatildeo do lugar adequado e seguro para as abelhas
111
Virgiacutelio nos hexacircmetros 1 a 7 faz uma invocaccedilatildeo a Mecenas o patrono das
letras e posteriormente nos hexacircmetros de 8 a 32 fala da situaccedilatildeo das colmeias e
da condiccedilatildeo necessaacuteria para se mantecirc-las em seguranccedila hexacircmetros 33 a 50
Menciona-se ainda o que deve ser feito pelo apicultor com a saiacuteda das abelhas para
pilhar enxamear ou combater hexacircmetros de 51 a 87 Posteriormente eacute destacada a
escolha dos reis quando duas satildeo as espeacutecies das abelhas hexacircmetros 88 a 102 e
como reter as abelhas em um jardim florido hexacircmetros 103 a 115 Seguindo o
pressuposto da poesia didaacutetica o de instruir Virgiacutelio discorre sobre o modo como se
deve cuidar das abelhas No entanto o modo como trama o texto deixa entrever um
trabalho artiacutestico primoroso com a linguagem
O estilo das Geoacutergicas eacute o meacutedio pois a obra trata de assuntos considerados
moderados destinados aos trabalhos no campo do cuidado para com as aacutervores e
plantas da criaccedilatildeo de animais de meacutedio e grande porte e por fim da apicultura Os
temas e figuras apresentados coadunam-se com um tom didaacutetico de ensinamento
Todavia o poema de Virgiacutelio natildeo se restringe apenas agrave instruccedilatildeo Haacute nas Geoacutergicas
um rico trabalho com a linguagem tanto no excerto selecionado para anaacutelise como
na segunda parte do ldquoCanto IVrdquo em que se tem a narrativa sobre Orfeu no mundo
inferior para resgatar a amada Euriacutedice (hex315-558) Deve-se levar em conta que
nas Geoacutergicas muito aleacutem de ldquoinstruirrdquo em um estilo meacutedio e portanto em um tom
didaacutetico Virgiacutelio tambeacutem se utiliza de digressotildees e procura envolvecirc-las
figurativamente em sua obra Dentre as muitas digressotildees jaacute destacamos a do ldquoCanto
IIrdquo em que Virgiacutelio faz uma pausa na descriccedilatildeo do cultivo agraves vinhas (hex259-419) para
realizar um elogio agrave primavera (315-345)
Ao mencionar o estilo meacutedio mediocris stylus fazemos alusatildeo agrave classificaccedilatildeo
feita pelos gramaacuteticos latinos em relaccedilatildeo agraves Geoacutergicas Enquanto as Bucoacutelicas
apresentam-se em um estilo simples humilis stylus tratando de assuntos destinados
ao pastor de cabra ou ovelhas as Geoacutergicas instruem o trabalho e o cultivo do campo
apresentando assuntos considerados moderados Entendemos com isso que os
temas e figuras que aparecem nas duas obras diferem quanto agrave sua funcionalidade
no texto Nos poemas bucoacutelicos encontramos quase sempre uma tematizaccedilatildeo
referente ao louvor do campo e da natureza de modo geral como vimos na ldquoBucoacutelica
Vrdquo Todas as figuras apresentadas nos poemas pastoris portanto coadunam-se com
a ideia de celebraccedilatildeo do ambiente campestre Jaacute nos poemas didaacuteticos das Geoacutergicas
o cenaacuterio ainda eacute o campo mas na tematizaccedilatildeo satildeo apresentadas a importacircncia do
112
trabalho e as diferentes teacutecnicas de cultivo As figuras didaacuteticas alinham-se assim
com o motivo da obra o de instruir
Tendo em vista que o estilo eacute um traccedilo diferencial depreensiacutevel no discurso
podemos afirmar que nas Geoacutergicas portanto a recorrecircncia figurativa que nos
transmite assuntos agriacutecolas por meio da voz de um magister deixa entrever um efeito
de individuaccedilatildeo proacuteprio da poesia didaacutetica o de instruir que permite assim a
manifestaccedilatildeo do estilo meacutedio Pensando-se na recorrecircncia figurativa presente nas
Geoacutergicas destacam-se No Canto I (hex 42-203) as figuras que nos remetem ao
trabalho para o cultivo dos cereais no Canto II (hex 9-258) destacam-se diferentes
tipos de cultivo o das plantas em geral bem como das videiras (hex 259-419) e o de
outras plantas de particular interesse como a oliveira e a macieira (hex420-540) No
Canto III menciona-se a criaccedilatildeo do gado de grande e pequeno porte (hex 49-283 e
284-566) e no Canto IV fala-se da criaccedilatildeo de abelhas e sua natureza (8-280)
No excerto selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise (Canto IV hex 1-115)
tem-se a descriccedilatildeo de um lugar seguro para as abelhas se alojarem Descreve-se
entatildeo uma espeacutecie de paraiacuteso terrestre lugar onde os ventos natildeo sopram as cabras
e ovelhas natildeo saltam a vaca natildeo esmaga as flores e os animais nocivos lagartos e
andorinhas estatildeo distantes Aleacutem disso as colmeias satildeo construiacutedas com meticuloso
cuidado contra os excessos do clima e de outros perigos (SANTOS 2007 p 33)
Com isso nos hexacircmetros de 8 a 32 o leitor eacute conduzido ao lugar mais
adequado para que as abelhas possam fundar a colocircnia Satildeo mencionadas neste
pequeno trecho algumas providecircncias que devem ser tomadas para dar agraves abelhas
as condiccedilotildees necessaacuterias para a produccedilatildeo de mel
(hex 8-32) Principio sedes apibus statioque petenda quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci floribus insultent aut errans bubula campo decutiat rorem et surgentis atterat herbas Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis omnia nam late uastant ipsasque uolantis ore ferunt dulcem nidis immitibus escam At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per graminha riuos
113
palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos In medium seu stabit iners seu profluet umor transuersas salices et grandia conice saxa pontibus ut crebris possint consistere et alas pandere ad aestiuom solem si forte morantis sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem
Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes alimento doce para agrestes ninhos Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames de abelhas em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir as asas ao sol de estio sepor acaso Euro impetuoso tiver molhado ou submergido em Netuno as que tardam Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e cheirosos serpotildees ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte
Os cinco primeiros versos do trecho selecionado para anaacutelise (hex 8-12)
trazem a imagem dos ventos que dificultam o trabalho das abelhas pois impedem que
elas carreguem os alimentos para a colmeia aleacutem disso o excerto traz as imagens
dos animais domeacutesticos que causam perturbaccedilatildeo no habitat (as ovelhas os bodes e
a novilha) o que pode comprometer as condiccedilotildees ideais agrave produccedilatildeo de mel Em
seguida satildeo citados os lagartos e as aves predadoras (melharuco e andorinhas) que
colocam em perigo a existecircncia das proacuteprias abelhas jaacute que se alimentam delas
114
A voz poeacutetica enumera assim os elementos que podem comprometer o
trabalho e a existecircncia das abelhas apresentando-nos a partir do conteuacutedo
instrucional segundo os pressupostos do gecircnero da poesia didaacutetica um conselho
sobre apicultura Dessa forma Virgiacutelio descreve o lugar adequado e seguro para que
as abelhas possam fundar a colocircnia
Dentre os elementos que ameaccedilam a existecircncia das abelhas encontramos
Procne entre as aves predadoras
(hex 13-15)
Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis
Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos
De acordo com a mitologia Procne era filha de Pandiatildeo rei de Atenas casou-
se com Tereu e dessa uniatildeo ela teve um filho Iacutetis mas ao descobrir que o marido
havia violentado sua irmatilde (Filomela) ela mata o filho e o serve ao marido Tereu
Procne entatildeo foge com a irmatilde Mas quando Tereu descobre o crime persegue as
duas mulheres que imploram aos deuses que as poupem Filomela eacute transformada
em rouxinol e Procne em andorinha (Cf GRIMAL 2014 verbete Filomela) Dizem
que as manchas no peito da andorinha satildeo traccedilos do sangue de Iacutetis que foi morto
pela matildee e servido ao pai ldquoEsse detalhe mostra a ferocidade da andorinha e assim
ela eacute um perigo para as abelhasrdquo (SANTOS 2007 p 109)
No hexacircmetro de Virgiacutelio a menccedilatildeo agrave Procne deixa entrever uma condensaccedilatildeo
imageacutetica pois o poeta sintetiza toda a histoacuteria de Procne em uma uacutenica passagem
um uacutenico verso Ao nomear a andorinha predadora como Procne Virgiacutelio resgata o
mito e faz da palavra uma figuraccedilatildeo miacutetica concreta De acordo com Cassirer (1972
p 115) ldquoNa perspectiva maacutegica do mundo em particular o encantamento verbal eacute
sempre acompanhado pelo encantamento imageacuteticordquo o que nos leva a crer nos
expedientes expressivos evidenciados na linguagem poeacutetica Logo a ferocidade da
andorinha natildeo eacute descrita mas sugerida pela menccedilatildeo ao mito A instruccedilatildeo sobre as
aves predadores ganha relevo nessa passagem do texto
115
De acordo com o relato de Virgiacutelio um grande enxame de abelhas segue o rei
para procurar uma nova casa e assim fundar a colocircnia Segundo o pensamento da
eacutepoca as abelhas eram governadas por reis e natildeo por rainhas (SANTOS 2007 p
110)
(Hex 18-24)
At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per gramina riuos palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos
Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames [de abelhas] em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras
O enxame assim deve pousar para se reagrupar em um lugar seguro longe
de ventos e tempestades pois a mudanccedila climaacutetica torna o trabalho das abelhas
impossiacutevel jaacute que elas natildeo satildeo adaptaacuteveis para voar no frio ou na chuva e precisam
de energia para enfrentar o mau tempo Confirmado o local seguro para abrigar a
colmeia longe da ferocidade de predadores lagartos andorinhas e outras aves o
proacuteximo passo eacute esquivar-se do calor pois o sol em excesso prejudica o trabalho
das abelhas O local ideal portanto deve ser o sombreado Eacute importante que em torno
das colmeias haja muitas aacutervores e folhas com capacidade de protegecirc-las das rajadas
fortes de vento e aleacutem disso a presenccedila de aacutegua eacute importante pois ela ajuda na
polinizaccedilatildeo das flores
De acordo com Huizinga em Homo Ludens (1971 p 149)
O que a linguagem poeacutetica faz eacute essencialmente jogar com as palavras Ordena-as de maneira harmoniosa e injeta misteacuterio em cada uma delas de modo tal que cada imagem passa a encerrar a soluccedilatildeo de um enigma
Levando em conta tais apontamentos merece destaque a seguinte passagem
116
(hex 19)
[] et tenuis fugiens per gramina riuos E um tecircnue riacho fluindo pela relva
Neste verso a ideia de que um tecircnue riacho passa pela relva fluindo por ela eacute
icocircnica jaacute que os termos ldquotecircnuerdquo (tenuis) e ldquoriachordquo (riuos) circundam a expressatildeo ldquoper
graminardquo (pela relva) deixando entrever o arranjo artiacutestico da linguagem poeacutetica
Como se vecirc haacute um jogo poeacutetico com as palavras um arranjo estrutural que nos suscita
uma imagem Com base no raciociacutenio tecido por Greimas (1975 p 12) podemos
afirmar que o significante graacutefico entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com
as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a
assumir como verdadeira a proposiccedilatildeo do discurso
Tambeacutem merece destaque os trecircs uacuteltimos hexacircmetros do excerto selecionado
(hex 30-32)Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e serpotildees que deitam bom cheiro ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte
Aqui Virgiacutelio nomeia trecircs ervas aromaacuteticas as verdejantes manjeronas (casiae
uirides) os serpotildees que deitam bom cheiro ao longe (olentia late serpylla) e uma
abundacircncia de segurelha exalando fortemente (grauiter spirantis copia thymbrae)
Para cada uma dessas ervas haacute uma amplitude descritiva que reforccedila imageticamente
a extensatildeo dos aromas presentes na cena Assim procurando lidar com a face mais
sensorial da palavra o poeta o artista literaacuterio deixa entrever um estiacutemulo sensorial
suscitado pela linguagem
Sobre os materiais que devem ser empregados pelo apicultor na confecccedilatildeo das
caixas das colmeias Virgiacutelio apresenta-nos
(hex 33-36) Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis
117
seu lento fuerint aluaria uimine texta angustos habeant aditus nam frigore mella
cogit hiems eademque calor liquefacta remittit
Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos
Observa-se neste excerto que dois materiais satildeo indicados para a confecccedilatildeo
das caixas que abrigam as abelhas (a corticcedila e o vime) Na descriccedilatildeo virgiliana natildeo
se faz uma distinccedilatildeo qualitativa destes materiais embora se soubesse na eacutepoca que
as caixas de corticcedila eram preferiacuteveis agraves de vime Estas informaccedilotildees natildeo escapavam
aos agrocircnomos da Antiguidade greco-latina sobretudo a Varratildeo no De Re Rustica
que eacute uma das fontes de Virgiacutelio Isso deixa entrever que a poesia didaacutetica virgiliana
longe de ser um manual com teacutecnicas de cultivo e cuidado ao campo natildeo tem o
compromisso com o detalhamento minucioso das informaccedilotildees teacutecnicas mas sim com
a forma literaacuteria
Recomenda-se ainda que a entrada das colmeias seja estreita pois isso
facilitaria o controle interno da temperatura evitando com isso o excessivo frio ou
calor Aleacutem disso a entrada estreita afastaria os invasores daninhos agraves abelhas
Nos hexacircmetros de nuacutemero 88 a 94 Virgiacutelio apresenta dois tipos de reis Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo deterior qui uisus eum ne prodigus obsit dede neci melior uacua sine regnet in aula Alter erit maculis auro squalentibus ardens (nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore et rutilis clarus squamis ille horridus alter desidia latamque trahens inglorius aluom
Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele que pareceu pior para que consumindo natildeo seja prejudicial deixa que o melhor reine na desimpedida corte Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre
O termo ldquoductoresrdquo liacutederes empregado no verso sugere uma imagem militar e
monaacuterquica identificando assim os reis das abelhas aos dos homens De um lado o
melior (hex90) ldquoo melhorrdquo aquele que ardens (hex91) ldquoque brilhardquo o que regnet in
118
aula (hex90) ldquoreina na corterdquo enquanto o pior ao contraacuterio eacute aquele que arrasta
latamquealuom (hex94) ldquoabundante ventrerdquo inglorius (hex94) ldquoingloacuteriordquo Esses
termos remetem ao gecircnero eacutepico sugerindo de acordo com alguns criacuteticos da obra
virgiliana relaccedilotildees entre o mundo das abelhas e a realidade histoacuterica do poeta mais
precisamente agrave batalha do Aacutecio Mas essa alegoria natildeo eacute um consenso entre os
pesquisadores
Nos hexacircmetros seguintes 95 a 102 Virgiacutelio faz uma comparaccedilatildeo entre dois
tipos de abelhas operaacuterias identificando-as ao seu respectivo rei Vt binae regum
facies ita corpora plebis (hex95) ldquoDois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo
os corpos da pleberdquo Neste verso fica assinalada a imagem humanizada das abelhas
como suacuteditos de reis
Os termos empregados neste excerto situam as duas espeacutecies de abelhas em
campos opostos as abelhas de tipo inferior turpes horrent (hex96) ldquosatildeo disformes e
horrendasrdquo e suas caracteriacutesticas apresentam-se por meio de uma comparaccedilatildeo jaacute
que elas satildeo apresentadas na descriccedilatildeo virgiliana ndash puluere ab alto quom uenit et
sicco terram spuit ore uiator aridus (hex96-98) ldquocomo o viajante sedento quando vem
da espessa poeira e cospe terra de sua garganta secardquo Com isso as abelhas de tipo
superior apresentam conotaccedilotildees positivas que as vinculam agrave figura do rei vencedor
elucent et fulgore coruscant (hex98) ldquoreluzem e cintilam com fulgorrdquo Nos trecircs
hexacircmetros finais (hex100-102) reforccedila-se a superioridade da primeira espeacutecie que
produz dulcia mella (hex101) ldquodoces meacuteisrdquo durum Bacchi domitura saporem
(hex102) ldquopara corrigir o aacutespero sabor de Bacordquo O termo mella (hex101) eacute um plural
poeacutetico O mel entre os antigos era tido como alimento celeste proveniente dos
deuses Virgiacutelio chama-o assim de aacuteereo mel aerii mellis caelestia dona (Geo IV 1)
ldquoos dons celestes do aeacutereo melrdquo pois de acordo com a crenccedila da eacutepoca o mel caiacutea
do ceacuteu com o orvalho sobre as flores de onde as abelhas o extraiacuteam No excerto o
mel atenua o sabor aacutespero do vinho de Baco pois era costume entre os antigos
preparar os vinhos amargos com mel
Nos hexacircmetros de nuacutemero 103 a 115 Virgiacutelio aconselha
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont instabilis animos ludo prohibebis inani Nec magnus prohibere labor tu regibus alas eripe non illis quisquam cunctantibus altum ire iter aut castris audebit uellere signa
119
Inuitent croceis halantes floribus horti et custos furum atque auium cum falce saligna Hellespontiaci seruet tutela Priapi Ipse thymum pinosque ferens de montibus altis tecta serat late circum quoi talia curae ipse labore manum duro terat ipse feracis figat humo plantas et amicos inriget imbris
Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e a tutela de Priapo do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele mesmo no solo enterre
as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas
Merece destaque deste excerto o hexacircmetro 103
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu
Os vocaacutebulos incerta e examina ldquoenxames incertosrdquo encontram-se entre os
vocaacutebulos uolant e ludunt respectivamente voam e brincam Tem-se assim a partir
da disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso a imagem dos enxames de abelhas voando e
brincando iconicamente no texto Trata-se de uma construccedilatildeo expressiva em que se
revela um trabalho artiacutestico com a linguagem
Selecionamos das Geoacutergicas os hexacircmetros de nuacutemero 1 a 115
Depreendemos deste excerto de modo geral o tema do lugar apraziacutevel a ser
modelado para as abelhas Desenvolve-se neste excerto o tema da apicultura
apresentando um conteuacutedo instrucional segundo os pressupostos da poesia didaacutetica
valendo-se de uma linguagem rica em procedimentos estiliacutesticos
Procurou-se observar como a estrutura poeacutetica atua e assim destacamos na
anaacutelise alguns hexacircmetros que consideramos mais expressivos
120
Nossa preocupaccedilatildeo eacute a de investigar o arranjo particular da linguagem poeacutetica
a construccedilatildeo expressiva do texto a sua dimensatildeo figurativa Fundamentamo-nos
para isso no conceito semioacutetico de figuratividade e na ideia explicitada por Joseph
Brodsky (1994 p 74) a de que ldquoa poesia eacute antes de mais nada uma arte de
referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo e de que ldquocom os poetas a
escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo que elas
contamrdquo (1994 p 97)
As Geoacutergicas pertencem de acordo com a tradiccedilatildeo ao gecircnero da poesia
didaacutetica Os traccedilos distintivos do poema didaacutetico iniciaram-se com Hesiacuteodo em O
trabalho e os dias seacuteculo VIII aC Durante os seacuteculos em que tal forma foi utilizada
algumas caracteriacutesticas contribuiacuteram para a especificaccedilatildeo do gecircnero tais como o
caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a presenccedila de
uma voz didaacutetica chamada de magister Os assuntos agraacuterios presentes nas
Geoacutergicas de caraacuteter instrucional como eacute proacuteprio ao gecircnero deixam entrever um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo remetendo-nos ao estilo meacutedio
Perutelli (2010 p 309-310) retomando o conceito didascaacutelico exposto por
Seacutervio assim afirma
[] o poema virgiliano contempla dois niacuteveis didaacuteticos o superficial o agriacutecola digamos recobre uma segunda mensagem mais profunda e articulada que eacute aquela da eacutetica da nova moral Dentro da linha do gecircnero didascaacutelico verifica-se a paradoxal situaccedilatildeo de um texto que tem um fim didaacutetico declarado ndash o agriacutecola ndash menos real do que outro natildeo declarado ndash o eacutetico
Na leitura traduccedilatildeo e anaacutelise do excerto selecionado das Geoacutergicas (Canto IV
hex 1-115) procuramos entender a instruccedilatildeo acerca do lugar apraziacutevel e ideal para
as abelhas fundarem sua colmeia como parte da caracterizaccedilatildeo da poesia de gecircnero
didaacutetico e de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo Logo observou-se que a voz
didaacutetica que perpassa o excerto deixa entrever a partir de um efeito de sentido
moderado figuras que nos remetem a um espaccedilo ideal a ser construiacutedo para as
abelhas Mas o assunto moderado natildeo retira assim a grandiosidade da expressatildeo
pois como atesta Virgiacutelio eacute pequeno o trabalho (in tenui labor-hex6) natildeo pequena a
gloacuteria (tenuis non gloria -hex6)
121
57 ENEIDA Canto VIII (hex 612-731) ldquoENEIAS E AS ARMAS DE GUERRArdquo
ldquoEn perfecta mei promissa coniugis arte
munera ne mox aut Laurentis nate superbos
aut acrem dubites in proelia poscere Turnumrdquo
Dixit et amplexus nati Cytherea petiuit 615
arma sub aduersa posuit radiantia quercu
Ille deae donis et tanto laetus honore
expleri nequit atque oculos per singula uoluit
miraturque interque manus et bracchia uersat
terribilem cristis galeam flammasque minantem131 620
fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem
sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes
solis inardescit radiis longeque refulget
tum leues ocreas electro auroque recocto
hastamque et clipei non enarrabile textum 625
Illic res Italas Romanorumque triumphos
haud uatum ignarus uenturique inscius aeui
fecerat ignipotens illic genus omne futurae
stirpis ab Ascanio pugnataque in ordine bella
Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro 630
procubuisse lupam geminos huic ubera circum
ludere pendentis pueros et lambere matrem
impauidos illam tereti ceruice reflexam
mulcere alternos et corpora fingere lingua
Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas 635
consessu caueae magnis Circensibus actis
131 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se uomentem Conington em The Works of Virgil (2008) tambeacutem chama a atenccedilatildeo para o termo uomentem embora coloque em notas ao texto as duas formas (uomentem e minantem) Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1957
122
addiderat subitoque nouom132 consuergere bellum
Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris
Post idem inter se posito certamine reges
armati Iouis ante aram paterasque tenentes 640
stabant et caesa iungebant foedera porca
Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae
distulerant (at tu dictis Albane maneres)
raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus
per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres 645
Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat
accipere ingentique urbem obsidione premebat
Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant
Illum indignanti similem similemque minanti
aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles 650
et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis
In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat
Romuleoque recens horrebat regia culmo
Atque hic auratis uolitans argenteus anser 655
porticibus Gallos in limine adesse canebat
Galli per dumos aderant arcemque tenebant
defensi tenebris et dono noctis opacae
aurea caesaries ollis atque aurea uestis
uirgatis lucent sagulis tum lactea colla 660
auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant
gaesa manu scutis protecti corpora longis
Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos
lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo
extuderat castae ducebant sacra per urbem 665
pilentis matres in mollibus Hinc procul addit
Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis
et scelerum poenas et te Catilina minaci
132 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se nouum
123
pendentem scopulo Furiarumque ora trementem
secretosque pios his dantem iura Catonem 670
Haec inter tumidi late maris ibat imago
aurea sed fluctu spumabant caerula cano
et circum argento clari delphines in orbem
aequora uerrebant caudis aestumque secabant
In medio classis aeratas Actia bella 675
cernete erat totumque instructo Marte uideres
feruere Leucaten auroque effulgere fluctus
Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar
cum patribus populoque penatibus et magnis dis
stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas 680
laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus
Parte alia uentis et dis Agrippa secundis
arduos133 agmen agens cui belli insigne superbum
tempora nauali fulgent rostrata corona
Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis 685
uictor ab Aurorae populis et litore rubro
Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum
Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx
Vna omnes ruere ac totum spumare reductis
conuolsum remis rostrisque tridentibus aequor 690
Alta petunt pelago credas innare reuolsas
Cycladas aut montis concurrere montibus altos
tanta mole uiri turritis puppibus instant
Stuppea flamma manu telisque uolatile ferrum
spargitur arua noua Neptunia caede rubescunt 695
Regina in mediis patrio uocat agmina sistro
necdum etiam geminos a tergo respicit anguis
Niligenumque134 deum monstra et latrator Anubis
contra Neptunum et Venerem contraque Mineruam
tela tenent Saeuit medio in certamine Mauors 700
133 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se arduus 134 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se ominigenunque
124
caelatus ferro tristesque ex aethere Dirae
et scissa gaudens uadit Discordia palla
quam cum sanguineo sequitur Bellona flagello
Actius haec cernens arcum intendebat Apollo
desuper omnis eo terrore Aegyptus et Indi 705
omnis Arabs omnes uertebant terga Sabaei
Ipsa uidebatur uentis regina uocatis
uela dare et laxos iam iamque immittere funis
Illam inter caedes pallentem morte futura
fecerat ignipotens undis et Iapyge ferri 710
contra autem magno maerentem corpore Nilum
pandentemque sinus et tota ueste uocantem
caeruleum in gremium latebrosaque flumina uictos
At Caesar triplici inuectus Romana triumpho
moenia dis Italis uotum immortale sacrabat 715
maxima ter centum totam delubra per urbem
Laetitia ludisque uiae plausuque fremebant
omnibus in templis matrum chorus omnibus arae
ante aras terram caesi strauere iuuenci
Ipse sedens niueo candentis limine Phoebi 720
dona recognoscit populorum aptatque superbis
postibus incedunt uictae longo ordine gentes
quam uariae linguis habitu tam uestis et armis
Hic Nomadum genus et discinctos Mulciber Afros
hic Lelegas Carasque sagittiferosque Gelonos 725
finxerat Euphrates ibat iam mollior undis
extremique hominum Morini Rhenusque bicornis
indomitique Dahae et pontem indignatus Araxes
Talia per clipeum Volcani dona parentis
miratur rerumque ignarus imagine gaudet 730
attollens umero famamque et fata nepotum
125
58 Traduccedilatildeo e notas do CANTO VIII (hex 612-731)
ldquoEis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo135 Filho natildeo duvides
em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos136 ou o vigoroso Turno137rdquo
Citereia138 disse e recebeu os abraccedilos de seu filho colocou as brilhantes armas sob
um carvalho em frente Ele alegre com os presentes da deusa e com tatildeo grande honra
natildeo pocircde se satisfazer e volveu os olhos por cada coisa
[Eneias] admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus
penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze
imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios
do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro
refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo
Ali139 o deus do fogo140 que natildeo ignora os vates nem desconhece o tempo futuro
havia colocado os feitos da Itaacutelia e os triunfos dos romanos ali havia colocado toda a
origem de toda a geraccedilatildeo futura de Ascacircnio141 e sucessivamente as guerras
combatidas
E havia colocado a feacutertil loba142 deitada no antro verde de Marte143 e suspensos em
volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela
voltada para traacutes com a cabeccedila torneada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus
corpos com a liacutengua
Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas144 sem o direito na
assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se
135Vulcano o deus das forjas esposo de Vecircnus a deusa do Amor 136 Laurentinos povo de Laurento cidade da Antiga Roma situada no Laacutecio entre Ostia e Laviacutenio 137Turno heroacutei itaacutelico rei dos Ruacutetulos povo da Itaacutelia Central ldquoEacute o proacuteprio Turno quem provoca a guerra contra os troianosrdquo (GRIMAL 2014 p 457) Era noivo de Laviacutenia antes do rei Latino dar a matildeo da filha a Eneias 138 Citereia outro nome para Vecircnus 139 Refere-se agrave descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente da deusa Vecircnus 140Vulcano o deus das forjas 141Ascacircnio filho de Eneias e Creuacutesa 142Remete-se agrave histoacuteria de Rocircmulo e Remo 143Marte deus da Guerra mas tambeacutem aparece como um deus ligado agrave vegetaccedilatildeo 144 O Rapto das Sabinas eacute um dos episoacutedios lendaacuterios da origem de Roma Quando a cidade foi fundada Rocircmulo preocupou-se em povoaacute-la especialmente com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de Rocircmulo raptaram todas as jovens (TITO LIacuteVIO 1989 p 31)
126
uma nova guerra entre os Romulidas145 e o velho Taacutecio146 rei dos severos habitantes
de Cures
Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do
altar de Juacutepiter147 segurando as paacuteteras148 e faziam um tratado de alianccedila com a
porca imolada
Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio149 em sentidos
contraacuterios (mas tu oacute Albano150 natildeo manterias teus dizeres) e Tulo151 arrastava as
viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue
escorriam
E ainda tambeacutem Porsena152 mandava receber o exilado Tarquiacutenio153 e sitiava a cidade
com um enorme cerco154 Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade
Se considerares quem eacute semelhante ao indigno ameaccedilador porque Cocles155 ousara
destruir a ponte e Cleacutelia156 atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas
No alto o guardiatildeo de Tarpeia157 Macircnlio158 estava de peacute diante do templo e defendia
o alto do Capitoacutelio O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo159 E aqui
145Os Romulidas o povo que Rocircmulo havia reunido em Roma 146Titus Tatius o rei dos Sabinos Apoacutes o rapto das Sabinas diz-se que Taacutecio organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas segundo conta-nos Tito Liacutevio (cf Ab Urbe Condita) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos 147Conta-se que que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo fez um pedido a Juacutepiter o grande deus do panteatildeo romano e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse de feiccedilatildeo 148Espeacutecie de taccedila usada em sacrifiacutecios antigos 149Mettus Fufetius o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Diz-se que ele recusou ajuda a Roma em um conflito traindo-a 150Referecircncia a Meacutecio Fufeacutecio uacuteltimo rei albano que quebra o acordo com Roma 151Tullus Hostillius o terceiro rei lendaacuterio de Roma responsaacutevel pela destruiccedilatildeo de Alba Longa cidade vizinha a Roma 152Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia 153Lucius Tarquinius Superbus Tarquiacutenio o Soberbo eacute responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que quando tomou o poder no senado Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio confiscando seus bens Foi deposto em 509 aC Expulso de Roma Tarquiacutenio procurou Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para declarar guerra agrave Roma 154 Porsena no ano de 507 aC sitiou Roma cercando-a 155Com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela qual o inimigo iria atravessar o Tibre 156 Durante o cerco agrave Roma em 507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado 157Apoacutes o rapto das sabinas Tito Taacutecio liderou os sabinos contra Roma Diz-se que Tarpeia atraiacuteda pelo ouro dos sabinos traiu Roma deixando entrar os sabinos na citadela Posteriormente ela foi assassinada e o monte onde ela foi sepultada foi chamado com seu nome No texto assim Tarpeia refere-se agrave rocha Tarpeia no monte Capitolino 158 Marco Macircnlio cocircnsul da Repuacuteblica Romana defendeu Roma da invasatildeo gaulesa 159Colmo haste das gramiacuteneas palha longa usada para cobrir as casas Entende-se nesta passagem que o palaacutecio de Rocircmulo ericcedilava-se com um teto de palha
127
um ganso prateado160 voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os
gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e
ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus
cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus
pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita com a matildeo os
dardos alpinos os corpos protegidos pelos longos escudos
Aqui havia representado os saltitantes saacutelios161 e os lupercus162 nus os barretes
sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela
cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados Daqui ao longe acrescenta
tambeacutem as moradas do Taacutertaro163 a alta porta de Dite164 e os castigos dos criminosos
e tu oacute Catilina165 suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias166
e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo167 havia ditado as leis
Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe
mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata
em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas
ondas No meio viam-se as armadas de bronze a batalha do Aacutecio168 via-se todo o
Leucates169 a ferver com Marte170 preparado e as ondas resplandecerem com o brilho
do ouro
160Chama-se a atenccedilatildeo dos romamos para um ataque noturno dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno no monte Capitolino 161Os saacutelios eram sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro 162Os lupercus eram sacerdotes de Fauno divindade associada ao campo e tambeacutem agrave fertilidade Conta-se que os lupercus usavam chicotes feitos com couro de cabra (barretes sacerdotais de latilde) 163 Taacutertaro o mundo inferior 164 Dite um dos nomes de Plutatildeo deus responsaacutevel pelo mundo inferior 165Lucius Sergius Catilina militar e senador romano queria destruir o poder oligaacuterquico do senado 166Fuacuterias divindades que viviam nas profundezas do Taacutertaro e eram responsaacuteveis pela tortura das almas 167 De acordo com Seacutervio seria o Catatildeo (o Velho ou Catatildeo Sapiente) poliacutetico e escritor de Roma eleito cocircnsul em 195 aC mas para Conington (2008) Virgiacutelio teria pretendido o Catatildeo de Uacutetica (o Jovem) (95-16 aC) poliacutetico romano ceacutelebre pela sua integridade moral para destacar o contraste em relaccedilatildeo a Catilina 168 A batalha do Aacutecio em 31 aC foi um confronto naval entre Marco Antocircnio e Otaacutevio Augusto Enquanto a frota de Otaacutevio era comandada por Agripa a frota de Marco Antocircnio era apoiada pela rainha do Egito Cleoacutepatra Com a vitoacuteria de Otaacutevio inicia-se o Impeacuterio e ele passa a ser conhecido como Ceacutesar Augusto 169 O monte Leucates Conta-se que Leucates era um jovem muito amado por Apolo e que ao escapar da perseguiccedilatildeo do deus lanccedilou-se ao mar do alto de uma encosta iacutengreme A ilha recebeu assim o nome de Lecircucade (GRIMAL 2014 p 276) 170Marte o deus guerreiro
128
De um lado Ceacutesar Augusto171 conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e
o povo os penates e os deuses maiores172 em peacute sobre a elevada popa a que o seu
feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua
cabeccedila173
Em outra parte Agripa174 com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o
exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros175
da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas
Antocircnio176 vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho177 transporta com
ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra178 e eacute seguido pela esposa
egiacutepcia179 Ao mesmo tempo todos se precipitaram e toda a superfiacutecie do mar espuma
sob os remos e os tridentes dos rostros que o afastam Dirigem-se a alto mar creia
que as Ciacuteclades180 arrancadas flutuavam sob a aacutegua ou que as altas montanhas se
chocavam contra as outras montanhas os varotildees se aproximavam das popas
torreadas com tanta massa A chama da estopa eacute espalhada pela matildeo e o volaacutetil ferro
pelos dardos os campos de Netuno181 avermelham-se com a nova carnificina No
centro a Rainha182 invoca os batalhotildees com o sistro183 paacutetrio e ainda natildeo voltou a
vista para as duas serpentes atraacutes
171Otaacutevio Augusto que apoacutes a vitoacuteria na batalha do Aacutecio receberia o nome de Ceacutesar Augusto A vitoacuteria contra Marco Antocircnio seria o iniacutecio do Impeacuterio em Roma 172Os penates satildeo os deuses do lar adorados por romanos e etruscos Os deuses maiores satildeo os representantes do Grande Olimpo Otaacutevio contava com a proteccedilatildeo dos deuses na batalha do Aacutecio 173 Em 42 aC Otaacutevio erigiu o Templo do Divino Juacutelio adicionando o termo ldquoFilho do Divinordquo a seu nome o que fortaleceria seus laccedilos poliacuteticos com os soldados de Ceacutesar (GRIMAL 2014 cf verbete Apolo) 174Marcus Vipsanius Agrippa principal comandante de Otaacutevio guiou as frotas de Roma contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra na Batalha do Aacutecio (BOWDER 1980) 175Rostro esporatildeo colocado na proa dos navios antigos para perfurar o casco dos outros nas batalhas 176Marco Antocircnio foi aliado de Ceacutesar durante a conquista da Gaacutelia e tambeacutem na guerra civil contra Pompeu Aliou-se mais tarde a Otaacutevio e Leacutepido formando com eles o Segundo Triunvirato (BOWDER 1980) 177Marco Antocircnio venceu os habitantes da Aacutesia (ldquopovos de aurorardquo) do Egito (do famoso Nilo) e da Bactriana no Afeganistatildeo (BECHARA SPINA 1973 p 89) 178 Bactra regiatildeo da Aacutesia Central 179Marco Antocircnio alia-se a Cleoacutepatra desprezando sua esposa romana Otaacutevia irmatilde de Otaacutevio Augusto (BECHARA SPINA 1973 p 89) 180Ciacuteclades grupo de ilhas no sul do mar Egeu 181Netuno deus dos mares 182 Cleoacutepatra (69-30 aC) rainha egiacutepcia da dinastia de Ptolomeu 183Sistro antigo instrumento egiacutepcio de percussatildeo que produzia som agudo e prolongado
129
Monstros de deuses de toda espeacutecie e o ladrador Anuacutebis184 mantecircm as armas contra
Netuno e Vecircnus185 e contra Minerva186 Marte gravado em ferro enfurece-se no meio
da batalha e as crueacuteis Fuacuterias descem pelo ar e com o manto rasgado a Discoacuterdia187
alegre caminha e eacute seguida por Belona188 com seu chicote ensanguentado
Ao ver isto de cima Apolo Aacutecio189 retesava o arco Com horror todo o Egito Indianos
todos os araacutebes e todos os sabeus viravam as costas A proacutepria rainha parecia dar
velas aos invocados ventos e a soltar cada vez mais as frouxas amarras O deus do
fogo190 colocara-a entre a carnificina paacutelida pela morte futura arrastada pelas ondas
e pelo Iaacutepige191 em frente tambeacutem colocara o Nilo192 com seu vasto corpo abrindo as
pregas de todo o seu traje e chamando os vencidos para o seu colo azul e para os
seus secretos rios
E Ceacutesar193 levado pelo triacuteplice triunfo agraves muralhas romanas consagrava aos deuses
da Itaacutelia um voto imortal trezentos templos maacuteximos por toda a cidade As ruas
retumbavam de alegria com jogos e aplausos em todos os templos o coro das matildees
todos tinham altares e diante deles os novilhos imolados cobriram a terra Ele proacuteprio
sentado no limiar da neve do candente Febo194 examina os presentes dos povos e os
coloca nas soberbas portas as naccedilotildees vencidas avanccedilam em longa fila tatildeo variadas
no modo de vestir e nas armas quanto nas vaacuterias liacutenguas
Aqui Mulciacutebero195 representara a raccedila dos nocircmades196 e os africanos de vestes
soltas neste lugar os leacutelegos197 os caacuterios198 e os gelonos199 armados de setas o
184Anuacutebis deus egiacutepcio protetor e guia dos mortos comumente representado com a cabeccedila de um chacal animal de caccedila relacionado aos lobos daiacute o nome ladrador 185Vecircnus deusa do amor matildee de Eneias e protetora dos romanos 186Minerva deusa romana das artes e sabedoria tambeacutem rege as estrateacutegias de guerra 187Discoacuterdia a matildee dos males diz-se que acompanhava Marte nas batalhas 188Belona eacute a fuacuteria da guerra e carnificina deusa de origem etrusca 189O arco do deus Apolo dispara dardos letais 190Vulcano deus das forjas responsaacutevel por colocar todas as presentes histoacuterias no escudo de Eneias 191Iaacutepige filho de Deacutedalo eacute um vento que sopra de oeste-noroeste 192O rio Nilo foi o principal fator para o desenvolvimento da sociedade egiacutepcia Hapi era cultuado como o deus das aacuteguas do Nilo sendo responsaacutevel pela prosperidade advinda do rio Diz-se que este deus eacute representado segurando talos de Papiros e flores de Loacutetus 193Otaacutevio agora nomeado Ceacutesar Augusto depois da vitoacuteria na batalha do Aacutecio 194Febo deus romano equivalente ao grego Apolo representa a luz a muacutesica e as artes eacute irmatildeo de Diana 195Mulciacutebero outro nome para Vulcano o deus das forjas 196 Nocircmades gente do ocidente de Cartago 197 Leleacutegos povo do sudoeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor 198Caacuterios povo do oeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor Caacuterios e leleacutegos eram muito proacuteximos 199Gelonos povos da Ciacutentia ou da Traacutecia
130
Eufrates200 jaacute corria mais calmo com suas ondas e os moacuterios201 os mais afastados
dos homens e o Reno202 de duas barras os indomaacuteveis dahas203 e o Araxes204
indignado com a ponte
[Eneias] admira tais coisas atraveacutes do escudo de Vulcano presente da sua matildee e
estranho aos assuntos regozija-se com a imagem carregando sobre o ombro a gloacuteria
e a fama dos seus descendentes
200 Eufrates rio que passa pela Armecircnia e Mesopotacircmia 201Moacuterios povos da Beacutelgica Os romanos chamavam-lhes de uacuteltimos porque aleacutem deles natildeo conheciam mais povos 202Reno rio da Alemanha era parte da fronteira setentrional do Impeacuterio Romano 203Dahas povo da Ciacutentia 204O rio Araxes nasce nos montes da Armecircnia e desaacutegua no mar Caacutespio Xerxes lhe fez uma ponte e Alexandre outra mas as enchentes do rio a destruiacuteram Otaacutevio entatildeo subjugou-o com outra ponte mais firme (LEITAtildeO 1819 p 75)
131
59 FIGURATIVIDADE NO CANTO VIII (hex 612-731) anaacutelise do
texto
Baseando-se nos poemas eacutepicos da Antiguidade Grimal (1992 p 185) assim
esclarece
Esses poemas satildeo ldquoeacutepicosrdquo na medida em que contam feitos de caraacuteter sobre-humano realizados por alguma das personagens pertencentes agrave ldquomemoacuteria coletivardquo das cidades que estatildeo em relaccedilatildeo com as divindades - das quais se originaram e pelas quais satildeo inspiradas - e que vivem em tempos em que o divino e o humano ainda natildeo se distinguiam claramente eacute o tempo dos ldquoheroacuteisrdquo dos semi-deuses
Para Hegel (1993 p 572-573) na Esteacutetica a epopeia propriamente dita
Representa o espiritual concreto sob uma forma individual e a epopeia quando narra alguma coisa tem por objeto uma accedilatildeo que por todas as circunstacircncias que a acompanham e as condiccedilotildees nas quais se realiza apresenta inumeraacuteveis ramificaccedilotildees pelas quais contacta com o mundo total de uma naccedilatildeo ou de uma eacutepoca Eacute portanto o conjunto da concepccedilatildeo do mundo e da vida de uma naccedilatildeo que apresentado sob uma forma objetiva de acontecimentos reais constitui o conteuacutedo e determina a forma do eacutepico propriamente dito Desta totalidade fazem parte por um lado a consciecircncia religiosa de todas as verdades profundas do espiacuterito humano e por outro lado a vida concreta a vida poliacutetica e domeacutestica e ateacute as necessidades que a vida exterior comporta e os meios de satisfazer
Assim a poesia de gecircnero eacutepico eacute uma celebraccedilatildeo narrativa da histoacuteria paacutetria
acompanhada pela glorificaccedilatildeo de heroacuteis nacionais Hegel menciona ainda outros
elementos constitutivos do gecircnero Entre eles vale destacar a objetividade e o conflito
da guerra que eacute conveniente agrave temaacutetica eacutepica e ao desenvolvimento da accedilatildeo
Segundo Montagner (2014) a eacutepica nasce na oralidade ancestral grega O
termo lsquoeacutepicarsquo proveacutem do grego eacutepos e significa de modo mais amplo lsquopalavrarsquo
lsquodiscursorsquo De modo restrito os gregos assim denominavam a poesia em hexacircmetro
a partir de epeacute plural de eacutepos Na eacutepoca claacutessica greco-latina seraacute o hexacircmetro
datiacutelico segundo o criacutetico o verso proacuteprio desse gecircnero Todavia aleacutem do verso
caracteriacutestico haacute outra marca o caraacuteter narrativo ou expositivo que assinala suas
manifestaccedilotildees
132
A Eneida a eacutepica virgiliana possui doze cantos (ou livros) escritos em
hexacircmetros datiacutelicos Em sua ceacutelebre epopeia Virgiacutelio narra os memoraacuteveis feitos
romanos Vemos as aventuras do heroacutei Eneias filho protegido da deusa Vecircnus em
luta para firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino A histoacuteria
comeccedila (in medias res) com Eneias e suas naus em pleno Mediterracircneo jaacute no seacutetimo
ano apoacutes a queda de Troia O heroacutei sofre um naufraacutegio arquitetado pela deusa Juno
e eacute lanccedilado agrave costa africana Desenrolam-se a partir daiacute os acontecimentos e accedilotildees
que faratildeo de Eneias um iacutecone romano o fundador da Nova Troia Logo a personagem
Eneias bem como suas accedilotildees e portanto seu papel figurativo no texto apoia-se na
previsibilidade narrativa que fundamenta a expectativa das figuras no contexto da
poesia eacutepica Trata-se de um heroacutei cujo destino eacute grandioso pois nele repousa o futuro
da raccedila troiana Todos estes elementos seratildeo desenvolvidos por Virgiacutelio ao retomar o
quadro da lenda romana Assim no engendramento do estilo grandiloquente
encontramos recorrecircncias figurativas que nos levam a um especiacutefico efeito de
individuaccedilatildeo no texto
Segundo Pedro Paulo Funari (2001 p 66)
Apoacutes a vitoacuteria dos gregos sobre os troianos Eneias vagou pelo Mediterracircneo ateacute chegar ao Laacutecio onde reinou por alguns anos Depois de morto foi adorado como Juacutepiter Indiges Seu filho Ascacircnio fundou Alba Longa e seu descendente Numitor pai de Reacuteia Siacutelvia foi pois avocirc de Rocircmulo Por essas lendas Roma ligava-se ao deus da guerra Marte e agrave deusa da fertilidade Vecircnus
Para Antocircnio Medina Rodrigues (2005 p10) a Eneida eacute ldquoum cacircntico aos novos
tempos do Impeacuterio eacute tambeacutem a nostalgia dos tempos lendaacuterios e primeiros haacute muito
sepultados sob as guerras civis e de conquista tempos de Rocircmulo e da chegada dos
troianos aos litorais itaacutelicos tempos da fundaccedilatildeo de Romardquo Virgiacutelio mescla histoacuteria
mito e um conjunto de situaccedilotildees que jaacute eram conhecidas pelos romanos
Como marco da Literatura Latina a Eneida confere agrave naccedilatildeo romana uma
identidade cultural A obra faz parte da chamada Idade de Ouro de Augusto e
segundo Funari (2001 p 66) para os romanos era importante considerar que seu
destino estava ligado aos deuses pois estas nobres origens legitimavam seu poder
sobre outros povos e servia como propaganda de suas qualidades
No canto VIII no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise hexacircmetros 612
a 731 temos a descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente forjado por Vulcano e
133
ofertado pela deusa Vecircnus ao heroacutei No escudo Vulcano desenhou os eventos da
futura Roma e entre estes eventos estatildeo a loba alimentando Rocircmulo e Remo o rapto
das Sabinas e no centro a batalha do Aacutecio As imagens esculpidas por Vulcano no
escudo de Eneias refletem toda a histoacuteria de Roma incluindo episoacutedios miacuteticos que
se mesclaram aos eventos histoacutericos Aleacutem disso vale ressaltar tambeacutem a figura de
Otaviano na centralidade do escudo jaacute que o governante passou a ser o centro do
cenaacuterio poliacutetico e social de Roma Segundo Pierre Grimal (1992 p 192) ldquoO heroacutei do
poema seraacute Eneacuteias claro mas este se ergueraacute antes de Roma no alto de uma
linhagem que de condutor de homens a triunfador vem dar em Otaacuteviordquo
Na descriccedilatildeo do escudo natildeo se observam detalhes das accedilotildees dos
personagens em seus respectivos cenaacuterios Ao descrever a batalha do Aacutecio por
exemplo vemos os oponentes de um lado e Otaviano de outro enquanto as
estrateacutegias beacutelicas e o combate soacute satildeo sugeridos Cabe ao leitor assim reconstituir
os eventos
As diferentes histoacuterias aludidas no escudo satildeo narrativas lendaacuterias e histoacutericas
desde a fundaccedilatildeo de Roma Pensando que o estilo eacute depreensiacutevel pelas recorrecircncias
figurativas do discurso podemos pensar nessas narrativas como parte do programa
figurativo que engendra o efeito de sentido grandiloquente
Nos hexacircmetros 619 e 625 vemos a descriccedilatildeo das armas de guerra presentes
ofertados pela deusa Vecircnus ao filho Eneias
miraturque interque manus et bracchia uersat terribilem cristis galeam flammasque minantem fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes solis inardescit radiis longeque refulget tum leuis ocreas electro auroque recocto hastamque et clipei non enarrabile textum
admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo
O capacete de crista vermelha a riacutegida couraccedila de bronze as armaduras da
perna a lanccedila e o exuberante escudo compotildeem a imagem do guerreiro Estas figuras
contribuem para a caracterizaccedilatildeo de Eneias que desde os Poemas Homeacutericos ldquosurge
134
como um heroacutei protegido pelos deuses aos quais obedece respeitosamente estando-
lhe reservado um destino grandioso nele repousa o futuro da raccedila troianardquo (GRIMAL
2014 p 135) Diferentemente do pastor que no cenaacuterio bucoacutelico eacute representado pelo
cajado e a flauta aqui o guerreiro alia-se aos artefatos beacutelicos em um cenaacuterio de
estrateacutegias de combate Tem-se portanto a descriccedilatildeo de objetos representativos do
contexto da poesia eacutepica
Conington (2008 p145) em seus comentaacuterios ao texto de Virgiacutelio aponta para
o termo ldquobracchiardquo (braccedilos) do seguinte excerto Segundo o criacutetico a accedilatildeo de virar
entre as matildeos e os braccedilos deixa entrever o tamanho das diferentes partes da
armadura que enchem os braccedilos quando levantadas
Miraturque interque manus et bracchia uersat
e admira e vira entre as matildeos e os braccedilos
A grandiosidade dos presentes forjados pelo deus do fogo na visatildeo de
Conington (2008 p145) aparece com o vocaacutebulo ldquominantemrdquo verbo depoente que
indica a accedilatildeo de ldquoameaccedilarrdquo sugerindo o aceno da crista do capacete que resplandece
ao ser manuseado e admirado por Eneias
Terribilem cristis galeam flammasque minantem
o tremendo capacete que ameaccedila com suas cristas e chamas
No Canto VII Eneias chega agrave regiatildeo do Tibre onde governa o rei Latino que
havia recebido dos deuses o aviso da chegada de Eneias futuro esposo de sua filha
Laviacutenia O chefe dos troianos envia uma comitiva ao rei Latino para que seja feito um
acordo de paz mas a terriacutevel Juno envia a deusa infernal Alecto responsaacutevel pela
guerra e pelas desgraccedilas para semear a discoacuterdia entre os dois povos
No Canto VIII com agrave iminecircncia da batalha Eneias encontra-se preocupado
com o porvir Agrave noite entatildeo ao permitir-se o descanso necessaacuterio o heroacutei eacute
surpreendido pelo rio Tibre que se personifica e comeccedila a falar O Tibre conta ao
troiano quem entatildeo poderaacute auxiliaacute-lo na guerra contra Turno trata-se de Palante ndash
filho de Evandro rei dos Aacutercades Percorrendo o curso do rio e ouvindo-o Eneias
alcanccedila a regiatildeo onde Evandro lidera e tem a oportunidade de falar com o rei e
confirmar a alianccedila predestinada
135
Paralelo a isso mostra-se a preocupaccedilatildeo de Vecircnus com a iminecircncia da guerra
Por esse motivo a deusa queixa-se a Vulcano pedindo-lhe ajuda na confecccedilatildeo de
artefatos beacutelicos que seratildeo indispensaacuteveis ao filho Eneias Com o pedido da esposa
Vulcano promete confeccionar as armas e pede a seus colaboradores na forja para
que produzam uma arma de caraacuteter singular
(hex 369-385) Nox ruit et fuscis tellurem amplectitur alis At Venus haud animo nequiquam exterrita mater 370 Laurentumque minis et duro mota tumultu Volcanum adloquitur thalamoque haec coniugis aureo incipit et dictis diuinum aspirat amorem ldquoDum bello Argolici uastabant Pergama reges debita casurasque inimicis ignibus arces 375 non ullum auxilium miseris non arma rogaui artis opisque tuae nec te carissime coniunx incassumue tuos uolui exercere labores quamuis et Priami deberem plurima natis et durum Aeneae fleuissem saepe laborem 380 Nunc Iouis imperiis Rutulorum constitit oris ergo eadem supplex uenio et sanctum mihi numen arma rogo genetrix nato Te filia Nerei te potuit lacrimis Tithonia flectere coniunx Aspice qui coeant populi quae moenia clausis 385 ferrum acuant portis in me excidiumque meorum
A noite impele e abraccedila a terra com as suas sombrias asas Poreacutem
Vecircnus matildee natildeo apavorada de coraccedilatildeo perturbada com as ameaccedilas
dos laurentinos e com o duro tumulto dirige-se a Vulcano e no leito
nupcial de ouro de seu esposo comeccedila com estas palavras e infunde-
lhe o divino amor ldquoEnquanto os reis argoacutelicos devastavam Peacutergamo
com a guerra condenada e as cidadelas sucumbiam pelas inimigas
chamas nenhum auxiacutelio pedi para os infelizes nem armas do poder
da tua arte cariacutessimo esposo nem quis que tu exercesses teus
trabalhos em vatildeo e ainda que eu devesse grande quantidade de
coisas aos filhos de Priamo e muitas vezes lamentasse o duro
trabalho de Eneias Agora por ordens de Jove deteve-se agrave entrada
dos ruacutetulos por isso eu mesma suplicante venho e eu como matildee
rogo por seu veneraacutevel poder armas para o meu filho A filha de Nereu
e a esposa de Titono puderam te comover com suas laacutegrimas
Considera que os povos se reuacutenem e que muralhas com as suas
portas fechadas aguccedilam o ferro contra mim e para a destruiccedilatildeo dos
meusrdquo
Atendendo ao pedido da esposa Vulcano confecciona um instrumento beacutelico
que garantiraacute a seguranccedila de Eneias Aleacutem disso o deus representaraacute neste artefato
136
o futuro da descendecircncia do heroacutei Apoacutes a confecccedilatildeo das armas de guerra Vecircnus
presenteia o filho A passagem inicia-se com as palavras da deusa
(hex 612 ndash 614) En perfecta mei promissa coniugis arte munera ne mox aut Laurentis nate superbos aut acrem dubites in proelia poscere Turnum Eis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo Filho natildeo duvides em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos ou o vigoroso Turno
A partir dessas palavras desenham-se por meio do olhar do narrador
mesclado ao olhar de Eneias os utensiacutelios beacutelicos As armas de guerra satildeo descritas
e para cada uma delas eacute apresentada uma caracteriacutestica especiacutefica Por meio da
descriccedilatildeo das armas podemos acompanhar o olhar de Eneias e a partir desse olhar
tambeacutem admirar a arte produzida por Vulcano
A exposiccedilatildeo dos artefatos beacutelicos eacute minuciosa mas breve (hex 619 ndash 625)
Virgiacutelio mostra cada uma das armas qualificando-as O poeta apresenta cada uma o
capacete que conteacutem um penacho e que eacute responsaacutevel por despertar o terror no
oponente uma espada que leva agrave morte uma couraccedila riacutegida com uma tonalidade cor
de sangue botas de eletro feitas de metal compostas de ouro e prata uma lanccedila e
por fim um escudo que eacute inenarraacutevel
Ressalta-se para cada uma das armas apresentadas pelo poeta uma
particular estrutura descritiva nomeia-se a arma de guerra e posteriormente ela eacute
qualificada Quanto agrave essa forma de descriccedilatildeo nota-se que o uacutenico artefato beacutelico que
natildeo possui um qualificativo eacute a lanccedila A omissatildeo da caracteriacutestica da lanccedila colocaraacute
assim o escudo em um relevo especial jaacute que este utensiacutelio beacutelico eacute tatildeo importante
para o desenvolvimento da narrativa virgiliana que ganha uma descriccedilatildeo mais
detalhada
As figuras em cenaacuterio eacutepico natildeo revestem uma temaacutetica humilde mas sim uma
temaacutetica sublime por isso se reconhece na eacutepica o estilo grandiloquente Para Grimal
(1992 p 187) ldquoo tom da epopeia eacute o mais elevado possiacutevel eacute ldquosublimerdquo por
excelecircncia pois refere-se aos assuntos mais grandiosos e aos interesses mais
altos()rdquo
137
Com vistas agrave percepccedilatildeo de um estilo grandiloquente nos versos seguintes
hexacircmetros 612 a 731 procuramos analisar a descriccedilatildeo particular do escudo de
Eneias instrumento em que o deus do fogo Vulcano esculpiu os feitos da Itaacutelia e os
triunfos dos romanos No poema o escudo de Eneias eacute transformado em objeto
artiacutestico jaacute que nele se desenham os acontecimentos histoacutericos de Roma desde a
sua fundaccedilatildeo O escudo permite que o leitor veja o destino grandioso da Nova Troia
que seraacute fundada no Laacutecio Observa-se no excerto uma rede de figuras coerentes
ao contexto da poesia eacutepica porque supotildeem uma unidade do discurso levando-nos
ao entendimento de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo o grandiloquente Vale
ressaltar tambeacutem o modo como Virgiacutelio desenhou a histoacuteria de Roma valendo-se da
palavra poeacutetica
O escudo comeccedila a ser descrito pela figura lendaacuteria da loba alimentando
Rocircmulo e Remo (hex 630-634)
Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro procubuisse lupam geminos huic ubera circum ludere pendentis pueros et lambere matrem impauidos illam tereti ceruice reflexam mulcere alternos et corpora fingere lingua
E havia colocado a feacutertil loba deitada no antro verde de Marte e suspensos em volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela voltada para traacutes de cabeccedila arredondada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus corpos com a liacutengua
Nesta passagem a figura da loba aparece deitada no antro verde de Marte
uma gruta destinada ao deus e que eacute recoberta por plantas Sabe-se que o deus Marte
aparece em Roma como o deus da Guerra mas ele tambeacutem eacute visto como o deus da
vegetaccedilatildeo ou seja um deus da Primavera jaacute que a eacutepoca da guerra comeccedila com o
fim do Inverno Eacute ele assim quem guia os jovens que emigram das cidades sabinas
para fundar novas cidades e encontrar novos locais para se estabelecerem (GRIMAL
2014 p 293) Ao costume de deixar o velho local em procura de outro chamava-se
ldquover sacrumrdquo ldquoa primavera sagradardquo No trajeto ao novo local os jovens eram guiados
pelo piccedilanccedilo ave passeriforme ou pelo lobo dois animais consagrados a Marte Daiacute
o papel da loba no campo verde de Marte O tempo do verbo ldquoprocubuisserdquo perfeito
ativo do infinitivo segundo Conington indica a accedilatildeo da loba que jaacute havia se deitado
quando os gecircmeos se posicionaram para beber o leite
138
procubuisse lupam geminos huic ubera circum
a loba deitada os gecircmeos ao redor das tetas
A figura da loba aleacutem de lendaacuteria mesclou-se agrave histoacuteria e tem um lugar de
destaque no pequeno excerto Nota-se ainda que a histoacuteria de Rocircmulo e Remo eacute
sugerida a partir da imagem da feacutertil loba e deve portanto ser completada pelo leitor
Trata-se de um mito acerca da histoacuteria da fundaccedilatildeo de Roma em que os gecircmeos
Rocircmulo e Remo filhos do deus Marte com Reacuteia Silvia descendente da estirpe de
Eneias foram amamentados por uma loba
A feacutertil loba passa-nos portanto a ideia de abundacircncia eacute ela que supre os
gecircmeos Na ldquoIV Bucoacutelicardquo de Virgiacutelio quando eacute mencionado o Retorno da Idade de
Ouro e o nascimento de uma crianccedila toda natureza tambeacutem aparece apta a servir
(hex 60-63)
Ipsae lacte domum referente distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundente cunabula flores
As cabritinhas por si mesmas levaratildeo a casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti (crianccedila) o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores
No pequeno excerto da ldquoIV Bucoacutelicardquo como visto acima a natureza modifica-
se para receber a crianccedila que havia acabado de nascer e paralelamente neste
pequeno excerto do ldquoVIII Cantordquo da Eneida a feacutertil loba encontra-se apta a servir
alimentar os gecircmeos receacutem-nascidos A natureza nos dois casos encanta-se com a
crianccedila que traz boas novas
Apoacutes a figura da loba mostra-se o episoacutedio do rapto das Sabinas entalhado
no escudo como marca lendaacuteria de um dos eventos que se seguiram agrave fundaccedilatildeo de
Roma Mais uma vez trata-se de um episoacutedio que eacute apenas sugerido jaacute que os
detalhes do acontecimento natildeo satildeo mencionados pois eles devem ser reconstituiacutedos
pelo leitor No excerto satildeo citadas as Raptadas Sabinas e a guerra entre os
Romulidas e o Velho Taacutecio Quando Roma foi fundada soacute existiam homens e Rocircmulo
preocupou-se em povoaacute-la com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas
139
dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos
durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de
Rocircmulo os Romulidas raptaram todas as jovens O Velho Taacutecio o rei dos Sabinos
apoacutes o rapto das Sabinas organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas
segundo conta-nos Tito Liacutevio (1989 p 31) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em
meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos
assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos (GRIMAL 2014 p 409)
Diz-se que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo dirigiu a Juacutepiter um
pedido e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse
de feiccedilatildeo Cessada a batalha foi construiacutedo o templo de Iupiter Stator (Juacutepiter que
deteacutem) edificado no local onde mais tarde foi construiacutedo o arco de Tito na Via Sacra
(GRIMAL 2014 p 409) A figura do templo de Juacutepiter bem como das paacuteteras taccedilas
usadas em sacrifiacutecios e da porca imolada deixam entrever a comunhatildeo entre
Romulidas e Sabinos com o fim da guerra Conington (2008 p147) revela-nos que
era antigo o costume de se sacrificar um suiacuteno em tratados de paz
(hex 635-641)
Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas consessu caueae magnis Circensibus actis addiderat subitoque nouom consuergere bellum Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris Post idem inter se posito certamine reges armati Iouis ante aram paterasque tenentes stabant et caesa iungebant foedera porca
Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas sem o haacutebito na assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se uma nova guerra entre os Romulidas e o velho Taacutecio rei dos severos habitantes de Cures Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do altar de Juacutepiter segurando as paacuteteras e faziam um tratado de alianccedila com a porca imolada
Outro episoacutedio entalhado no escudo eacute o esquartejamento de Meacutecio No
pequeno excerto temos o vocaacutebulo ldquoMettumrdquo Meacutecio entre os vocaacutebulos ldquocitaerdquo e
ldquoquadrigaerdquo raacutepidas quadrigas remetendo-nos iconicamente agrave ideia do
esquartejamento do rei albano Reforccedila ainda esta ideia os outros vocaacutebulos que
fazem alusatildeo a Meacutecio mas que aparecem distantes espalhados nos versos
seguintes como ldquoAlbanerdquo Albano ldquouirirdquo homem ldquomendacisrdquo mentiroso e ldquouiscerardquo
140
viacutesceras levando-nos a ideia jaacute expressa nos versos a de que as raacutepidas quadrigas
esquartejaram Meacutecio em sentidos contraacuterios
(hex 642-645)
Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae distulerant (at tu dictis Albane maneres) raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres
Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio em sentidos contraacuterios (mas tu oacute Albano natildeo manterias teus dizeres) e Tulo arrastava as viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue escorriam
Meacutecio Fufeacutecio foi o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Conta-se que ele fez um
acordo com Tulo o terceiro rei lendaacuterio de Roma Os romanos haviam declarado
guerra contra os albanos mas Tulo e o rei de Alba Longa Meacutecio fizeram um acordo
para evitar o excessivo derramamento de sangue Como os dois exeacutercitos tinham um
conjunto de irmatildeos trigecircmeos foi decidido que esses irmatildeos lutariam entre si Os
irmatildeos Horaacutecios lutariam pelo lado romano enquanto os Curiaacutecios lutariam pelos
albanos Roma saiu vitoriosa e Alba Longa foi submetida ao Estado romano
Posteriormente quando Meacutecio se recusou a ajudar Roma em um conflito traindo-a
diz-se que foi esquartejado por duas quadrigas lanccediladas em direccedilotildees opostas
Tito Liacutevio (59 aC ndash 17 dC) historiador romano em Ab urbe condita (1989 p
60) assim registrou esse acontecimento
Tulo entatildeo prosseguiu Meacutetio Fufeacutecio se pudesses aprender ainda a respeitar os juramentos e os tratados eu te pouparia a vida e seria eu proacuteprio o teu instrutor Mas como teu caraacuteter eacute irrecuperaacutevel que ao menos teu supliacutecio ensine os homens a considerarem sagrados os compromissos que violas e assim como ontem dividias tua alma entre Fidenas e Roma hoje eacute a vez de teu corpo ser tambeacutem dividido Mandou entatildeo que trouxessem duas quadrigas agraves quais fez amarrar Meacutetio com os membros distendidos Em seguida os cavalos foram impelidos em direccedilatildeo contraacuteria o corpo se dilacerou e os dois carros arrastaram os membros neles amarrados Todos os olhares se afastaram do horriacutevel espetaacuteculo (XXVIII)
Somando-se a este episoacutedio Vulcano coloca tambeacutem dois personagens
Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia e Tarquiacutenio o Soberbo
responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que ao tomar o
141
poder no senado romano Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio e
confiscou seus bens Foi deposto em 509 aC Quando foi expulso de Roma Tarquiacutenio
procurou a ajuda de Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para
declarar guerra agrave Roma No ano de 507 aC Porsena sitiou Roma cercando-a Mais
uma vez os detalhes dos acontecimentos natildeo satildeo mencionados por Virgiacutelio mas
apenas aludidos atraveacutes das figuras por ele elencadas Merece destaque a imagem
do cerco agrave Roma
(hex 646-651)
Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat accipere ingentique urbem obsidione premebat Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant Illum indignanti similem similemque minanti aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis
E ainda tambeacutem Porsena mandava receber o exilado Tarquiacutenio e sitiava a cidade com um enorme cerco Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade Se observares aquele semelhante ao indigno e semelhante ameaccedilador porque Cocles ousara destruir a ponte e Cleacutelia atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas
Nota-se que o vocaacutebulo ldquourbemrdquo cidade encontra-se entre a expressatildeo ldquoingenti
obsedionerdquo grande cerco remetendo-nos iconicamente agrave ideia de que a cidade estaacute
sitiada
ingentique urbem obsidione premebat
e sitiava a cidade com um enorme cerco
Em menccedilatildeo ao verso seguinte (hex 648)
Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant
Os descentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade
Conington (2008 p148) destaca a expressatildeo ldquoin ferrum ruererdquo (ldquocorrer ao
ferrorsquo) pois segundo ele desenha-se nesta passagem uma espeacutecie de espada Com
base nessa afirmaccedilatildeo observamos que a recorrecircncia do fonema vibrante r no final
142
do verso Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant mimetiza a ideia de um ranger de
espadas remetendo-nos portanto agrave ideia da batalha
Assim com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela
qual o inimigo iria atravessar o Tibre Diz-se tambeacutem que durante o cerco agrave Roma em
507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado A
imagem deste acontecimento tambeacutem foi aludida iconicamente
Et fluvium uinclis innaret Cloelia ruptis
E Clelia atravessara o rio com as correntes destruiacutedas
Nota-se que as correntes destruiacutedas aparecem figurativamente no verso pois
o vocaacutebulo ldquouinclisrdquo correntes estaacute apartado do vocaacutebulo ldquoruptisrdquo destruiacutedas
representando a ideia de ruptura e liberdade de Cleacutelia
O memoraacutevel escudo de Eneias traz ainda a figura de Marco Macircnlio cocircnsul
da Repuacuteblica Romana que defendeu Roma da invasatildeo gaulesa De acordo com os
comentaacuterios de Conington (2008 p 148) para os hexacircmetros 652 e 653
In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat
No alto o guardiatildeo de Tarpeia Macircnlio estava de peacute diante do templo
e defendia o alto do Capitoacutelio
O termo ldquoIn summordquo no alto refere-se ao topo do escudo de Eneias e Macircnlio
eacute representado pictoricamente ao lado da rocha Tarpeia como podemos observar
iconicamente no verso In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
No hexacircmetro 654 Conington (2008 p 148) afirma que ao utilizar o vocaacutebulo
ldquorecensrdquo Virgiacutelio assinala a arte de Vulcano no presente ofertado a Eneias jaacute que se
trata do recente palaacutecio acabado de ser entalhado no escudo
Romuleoque recens horrebat regia culmo
O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo
143
O hexacircmetro na visatildeo do criacutetico alude a renovaccedilatildeo constante da casa de
Rocircmulo nos tempos histoacutericos de Roma O termo ldquoRomuleordquo refere-se ao que se
manteve como era nos tempos de Rocircmulo Virgiacutelio usa a imagem do colmo ldquoculmordquo
a palha usada para cobrir as casas para descrever o palaacutecio de Rocircmulo e combinaacute-
lo de certa forma com o templo dourado de seu proacuteprio tempo Dessa forma constroacutei-
se para o leitor a imagem do Capitoacutelio
Ainda neste excerto chama-se a atenccedilatildeo dos romanos para um ataque noturno
dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno
no monte Capitolino
(hex 655-662)
Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat Galli per dumos aderant arcemque tenebant defensi tenebris et dono noctis opacae aurea caesaries ollis atque aurea uestis uirgatis lucent sagulis tum lactea colla auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant gaesa manu scutis protecti corpora longis
E aqui um ganso prateado voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita nas matildeos os dardos alpinos os corpos protegidos pelo longo escudo
Para Conington (2008 p149) o termo ldquouolitansrdquo particiacutepio presente que se
refere a accedilatildeo de voejar daacute-nos a imagem das asas vibrantes dos gansos
Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat
O que reforccedila essa ideia na verdade eacute a repeticcedilatildeo do fonema sibilante s nos
dois primeiros hexacircmetros que colaboram para a construccedilatildeo dessa imagem jaacute que
sugerem por meio da aliteraccedilatildeo em s a presenccedila do voo dos gansos no poema
Vulcano destaca ainda alguns elementos de cultura e entalha no escudo de
Eneias os saacutelios sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro
e os lupercus sacerdotes de Fauno que era uma divindade associada ao campo e agrave
144
fertilidade Os lupercus utilizavam chicotes feitos com couro de cabra que eram
chamados de barretes sacerdotais de latilde Destacam-se assim as cerimocircnias
sagradas
(hex 663-666)
Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo extuderat castae ducebant sacra per urbem pilentis matres in mollibus [hellip]
Aqui havia representado os saltitantes saacutelios e os lupercus nus os barretes sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados
De acordo com Heyne Peerlkamp e Ribbeck todos citados por Conington
(2008 p150) agrave primeira vista a introduccedilatildeo das regiotildees infernais nos hexacircmetros de
nuacutemero 666 a 670 parece fora de sintonia com o resto do contexto esculpido por
Vulcano mas devemos considerar como bem aponta-nos Conington que neste
pequeno excerto assim como em outros o objetivo de Virgiacutelio eacute narrar incidentes
pictoacutericos e entre eles a posiccedilatildeo de benfeitores e criminosos nacionais
(hex 666-670)
[hellip] Hinc procul addit Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis et scelerum poenas et te Catilina minaci pendentem scopulo Furiarumque ora trementem secretosque pios his dantem iura Catonem
Daqui ao longe acrescenta tambeacutem as moradas do Taacutertaro a alta porta de Dite e os castigos dos criminosos e tu oacute Catilina suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo havia ditado as leis
No pequeno excerto os inimigos de Ceacutesar satildeo colocados no mundo inferior o
Taacutertaro Dite eacute um dos nomes utilizados para se referir ao deus Plutatildeo que eacute
responsaacutevel pelo mundo inferior No Taacutertaro encontra-se Catilina um militar e senador
romano que queria destruir o poder oligaacuterquico do senado bem como as fuacuterias
divindades que viviam nas profundezas e eram responsaacuteveis pela tortura das almas
Ao traidor Catilina coube a agonia de cair do abismo enquanto a Catatildeo o Jovem ou
Catatildeo de Uacutetica poliacutetico romano ceacutelebre pela sua inflexibilidade e integridade moral
145
coube os Campos Eliacuteseos Na visatildeo de Conington (2008 p151) a figura de Catatildeo
apresenta-se nesta passagem em contraste com a figura de Catilina concluindo que
o caraacuteter de Catatildeo em vida fez dele um legislador para os mortos
Vulcano prossegue nos detalhes de sua obra com a imagem de um mar que
atravessa o escudo como um tipo de fronteira
(hex 671-674)
Haec inter tumidi late maris ibat imago aurea sed fluctu spumabant caerula cano et circum argento clari delphines in orbem aequora uerrebant caudis aestumque secabant
Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas ondas
Destaca-se desta passagem a figura dos golfinhos delphines O golfinho eacute um
animal marinho consagrado a Apolo pois seu nome lembra o santuaacuterio principal de
Apolo em Delfos Se lembrarmos portanto que Apolo foi adotado por Otaviano como
seu protetor pessoal e que o imperador atribuiacutea ao deus a sua vitoacuteria na batalha naval
contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra a presenccedila dos golfinhos abrindo o cenaacuterio da
batalha do Aacutecio faz alusatildeo agrave figura do deus Apolo bem como agrave proteccedilatildeo do deus aos
romanos (GRIMAL 2014 p33)
Assim no centro do escudo de Eneias detalha-se a Batalha do Aacutecio e coloca-
se a figura de Otaviano em destaque
(hex 675-688)
In medio classis aeratas Actia bella cernete erat totumque instructo Marte uideres feruere Leucaten auroque effulgere fluctus Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar cum patribus populoque penatibus et magnis dis stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus Parte alia uentis et dis Agrippa secundis arduos agmen agens cui belli insigne superbum tempora nauali fulgent rostrata corona Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis uictor ab Aurorae populis et litore rubro Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx
146
No meio via-se as armadas de bronze a guerra do Aacutecio via-se todo o Leucates a ferver com Marte preparado e as ondas resplandecerem com o brilho do ouro De um lado Ceacutesar Augusto conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e o povo os penates e os deuses maiores em peacute sobre a elevada popa a que o seu feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua cabeccedila Em outra parte Agripa com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas Antocircnio vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho transporta com ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra e eacute seguido pela esposa egiacutepcia
Representa-se neste excerto os dois rivais de um lado Otaacutevio Augusto o
senado o povo os Penates e os grandes deuses romanos de outro Marco Antocircnio
e Cleoacutepatra acompanhados de um exeacutercito de homens baacuterbaros e figuras divinas
monstruosas Com o fim da batalha haacute o triunfo de Otaacutevio sobre Marco Antocircnio e a
Alexandria Posteriormente sentado agrave entrada do templo de Apolo Otaacutevio recebe os
presentes das naccedilotildees vencidas O fim da guerra delimita o iniacutecio da pax romana
A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)
O escudo de Eneias como se viu traz episoacutedios centrais da histoacuteria de Roma
a loba que alimenta Rocircmulo e Remo o rapto das Sabinas o castigo da traiccedilatildeo de
Meacutecio por Tulo Hostiacutelio a invasatildeo de Porsena os feitos heroicos de Horaacutecio Cocles e
Cleacutelia a defesa do Capitoacutelio contra os gauleses saacutelios e lupercus e no centro a
batalha do Aacutecio Haacute tambeacutem a representaccedilatildeo do mundo inferior no Taacutertaro encontra-
se Catilina inimigo da paacutetria enquanto nos Campos Eliacuteseos lugar onde habitam os
justos Catatildeo aparece ditando as leis Condensados em poucos versos estes
episoacutedios revelam um modo peculiar de medir o tempo na narrativa jaacute que a
percepccedilatildeo de grandes mudanccedilas histoacutericas satildeo condensadas em um curto periacuteodo
contrariando a mediccedilatildeo cronoloacutegica do tempo Com relaccedilatildeo ao tempo da narrativa
147
portanto no escudo figura-se o futuro de Roma pois ele mostra a Eneias
acontecimentos que ainda natildeo aconteceram
O escudo de Eneias ganha especial descriccedilatildeo na narrativa Isso se deve agrave
peculiaridade que ele carrega o futuro de Roma Levando em conta a definiccedilatildeo do
dicionaacuterio de siacutembolos para o termo ldquoescudordquo encontramos
O escudo (broquel) eacute o siacutembolo da arma passiva defensiva protetora embora agraves vezes possa ser tambeacutem mortal Agrave sua proacutepria forccedila (como objeto de metal ou de couro) ele associa magicamente forccedilas figuradas Efetivamente o escudo eacute em muitos casos uma representaccedilatildeo do universo como se o guerreiro ao usaacute-lo opusesse o cosmo ao seu adversaacuterio e como se os golpes deste uacuteltimo atingissem muito aleacutem do combatente agrave sua frente e alcanccedilassem a proacutepria realidade representada nos ornatos do broquel O escudo de Aquiles eacute um singular exemplo disso Hefestos (Vulcano) cria nele uma decoraccedilatildeo muacuteltipla fruto de seus saacutebios pensamentos Ornamenta-o com figuras da terra do ceacuteu e do mar do sol infatigaacutevel e da lua cheia bem como de todos os outros astros que coroam o ceacuteu Tambeacutem satildeo figuradas duas cidades humanas ndash duas belas cidades Numa delas veem-se nuacutepcias festins Em torno da outra cidade acampam dois exeacutercitos cujos guerreiros rebrilham sob suas armaduras Os atacantes hesitam entre duas decisotildees a destruiccedilatildeo da cidade inteira ou a partilha de todas as riquezas que guarda dentro de seus muros a apraziacutevel cidade (HOMI 18 v 478 ndash 492 508 ndash 512) Nesse broquel Hefestos potildee ainda uma terra branda um campo feacutertil domiacutenios reais um vinhedo pesadamente carregado de uvas um rebanho de vacas de chifres altos uma pastagem de cabras uma praccedila de danccedila e por fim a forccedila pujante do rio Oceano a formar a beirada do soacutelido escudo Todas as razotildees de viver todas as belezas do universo todos os siacutembolos da forccedila da riqueza e da alegria estatildeo mobilizados e concentrados nesse broquel O escudo era grande o bastante para proteger o combatente de cima a baixo e eventualmente servir de padiola para carregar um morto ou um ferido (CHEVALIER GHEERBRANT 1999 p 387)
Com isso entende-se que o ldquoescudordquo no pequeno excerto vai aleacutem de um
termo aleatoacuterio Trata-se de um artefato beacutelico de uma forccedila milenar jaacute que ele
carrega a origem de Roma a Nova Troia bem como toda a descendecircncia do heroacutei
Eneias Pensando-se no tempo da narrativa as imagens ali esculpidas separam o
tempo de Eneias e o tempo do imperador Otaacutevio Augusto revelando-nos um passado
e um futuro
Vale destacar que as figuras gravadas no escudo apenas sugerem a accedilatildeo dos
personagens que deve portanto ser reconstituiacuteda pelo leitor No que diz respeito agrave
presenccedila do mito e sua narrativa sabe-se que entre os antigos o mito era associado
148
a algo verdadeiro divino e sagrado Inicialmente o mito era um relato sobre os
primoacuterdios ou sobre as accedilotildees heroicas ou fatos que tiveram ou natildeo uma intervenccedilatildeo
divina por isso eacute uma mateacuteria predominante e caracteriacutestica do gecircnero eacutepico Com
isso a poesia eacutepica experimenta o contato com o tempo passado
Procurou-se destacar no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise as
figuras representativas do cenaacuterio eacutepico e portanto a construccedilatildeo do texto em um
estilo grandiloquente Partindo do princiacutepio de que o estilo eacute efeito de sentido e uma
construccedilatildeo do discurso verificamos que o efeito grandiloquente emerge de uma
recorrecircncia figurativa
Neste excerto da Eneida o efeito de individuaccedilatildeo pretendido foi o sublime e a
rede de figuras deixaram entrever uma recorrecircncia de representaccedilatildeo a de um cenaacuterio
marcado pela figura do heroacutei que eacute agraciado pelos deuses com um presente especial
um artefato beacutelico que registra a histoacuteria de sua descendecircncia
As figuras destacadas portanto com especial atenccedilatildeo ao escudo de Eneias
engendram um cenaacuterio marcado por feitos heroicos que eacute mediado pela accedilatildeo vigorosa
do heroacutei e seu povo
A poesia eacutepica virgiliana em um tom vigoroso e portanto com destaque para
temas e figuras grandiloquentes colocou em relevo agraves faccedilanhas da Itaacutelia e os triunfos
romanos
149
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao compreendermos o estilo como efeito de sentido produzido pelo discurso
reconhecemos a importacircncia de se analisar a recorrecircncia de procedimentos temaacuteticos
e figurativos na construccedilatildeo do sentido
Para descrever um estilo devemos compreender a rede de temas e figuras que
configuram a totalidade discursiva entendendo-as como repertoacuterio deduziacutevel do texto
mas tambeacutem como um modo especiacutefico de uso desse repertoacuterio
Na anaacutelise de um determinado estilo devemos procurar portanto os temas e
figuras que estatildeo circunscritos no discurso a fim de depreendermos um especiacutefico
efeito de individuaccedilatildeo engendrado no texto
Como jaacute vimos a Roda de Virgiacutelio especifica quais seriam as figuras desejadas
para o contexto da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica pensando cada grupo de figuras
a partir de diferentes contextos seja do estilo simples (singelo) do meacutedio e do
grandiloquente Ao mapear os trecircs estilos da Antiga Retoacuterica o esquema circular
tripartido que foi difundido a partir do seacuteculo XII atraveacutes dos estudos de Joatildeo de
Garlacircndia natildeo aponta para uma classificaccedilatildeo entre os gecircneros bucoacutelico didaacutetico e
eacutepico pensando-os do baixo ao elevado mas sim para uma ideia de continuidade
temaacutetica da carreira literaacuteria de Virgiacutelio
Se uma roda como se sabe gira em torno de um eixo central podemos pensar
em Virgiacutelio como o eixo que mobiliza movimenta trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo As
Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida movimentam-se em torno do poeta que criou
diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo e personagens o pastor o agricultor e o heroacutei A partir
deles desenham-se as accedilotildees e a espacialidade para o pastor o campo a sombra
de uma frondosa faia para o agricultor o cultivo o campo lavrado as aacutervores
frutiacuteferas e para o heroacutei as batalhas e suas armas de guerra O cenaacuterio das Bucoacutelicas
traz um contorno humilde pois as figuras apresentadas satildeo de um universo temaacutetico
singelo ligado agrave natureza O cenaacuterio das Geoacutergicas traz um contorno diferenciado
pois as figuras abordam o cultivo das plantas e a criaccedilatildeo de animais ou seja trata-se
de um universo temaacutetico moderado em que satildeo apresentados alguns ensinamentos
relacionados agrave agricultura No cenaacuterio da Eneida o contorno eacute o sublime
grandiloquente pois o universo temaacutetico eacute outro o das guerras e batalhas em que
satildeo descritos os feitos dos heroacuteis
150
Ao analisar os trecircs tipos de estilo descritos na Roda de Virgiacutelio partimos do
princiacutepio de que todo estilo eacute um efeito de sentido e portanto uma construccedilatildeo do
discurso Acreditamos que esse efeito eacute determinado por recorrecircncias de
procedimentos na construccedilatildeo do discurso Quando falamos em recorrecircncia
estabelecemos como objeto de anaacutelise a isotopia figurativa presente nos textos que
eacute capaz de construir um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo
Haacute portanto nas Bucoacutelicas nas Geoacutergicas e na Eneida uma direcionalidade
previamente estabelecida uma vez que o cenaacuterio campesino do pastor na ldquoBucoacutelica
Vrdquo constroacutei-se a partir de Mopso e Menalcas personagens bucoacutelicos que cantam
sobre a morte e apoteose de Daacutefnis pastor por excelecircncia e lendaacuterio inventor do
gecircnero bucoacutelico O ambiente de atuaccedilatildeo dos personagens eacute a gruta e o campo
Percebe-se na leitura do poema uma recorrecircncia de figuras que nos remetem a uma
temaacutetica singela sobre o viver ruacutestico o oacutecio e o prazer do canto levando-nos a um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo a do estilo simples
Enquanto isso no Canto IV (hex 1-115) das Geoacutergicas com intencionalidade
instrutiva e portanto em um estilo meacutedio revela-se qual eacute o ambiente mais adequado
para o cultivo das abelhas Assim o campo os rios e as folhagens hospitaleiras
participam da construccedilatildeo deste cenaacuterio em que tambeacutem figuram andorinhas
melharucos e outras aves predadoras que segundo a voz didaacutetica que perpassa a
obra satildeo um risco para as abelhas Apresentam-se tambeacutem os materiais adequados
para a produccedilatildeo das caixas que abrigam as abelhas a corticcedila e o vime Tem-se ainda
a menccedilatildeo a Aristeu um pastor miacutetico mas que sabe teacutecnicas de apicultura Neste
excerto das Geoacutergicas eacute apresentada portanto uma narraccedilatildeo em que a voz poeacutetica
descreve qual o cenaacuterio mais adequado para a criaccedilatildeo de abelhas As figuras
presentes no fragmento revelam-nos o tema sobre os cuidados a serem tomados na
apicultura
Jaacute no Canto VIII (hex 612-731) da Eneida o estilo eacute o grandiloquente uma vez
que somos conduzidos a um cenaacuterio em que figuram o heroacutei com suas armas de
guerra Ao filho Eneias a deusa Vecircnus entrega o capacete as espadas a riacutegida
couraccedila as armaduras da perna a lanccedila e o inenarraacutevel escudo As figuras remetem-
nos ao tema das batalhas e posteriormente aos triunfos dos romanos
151
Se retomarmos as figuras presentes na Roda podemos entender que cada
estilo cria um modo individualizador de dizer gerando uma expectativa de
personagens accedilatildeo e ambientaccedilatildeo Observa-se uma recorrecircncia figurativa que resulta
em especiacuteficos efeitos de sentido Confirma-se assim que os diferentes papeacuteis
temaacuteticos presentes na constituiccedilatildeo de um estilo fundamentam a totalidade discursiva
As personagens e seus respectivos cenaacuterios de atuaccedilatildeo estatildeo pressupostos em cada
efeito de individuaccedilatildeo De cada estilo depreende-se dessa forma uma expectativa
do dizer
Pensando nos excertos das obras virgilianas aqui estudados para o humilis
stylus encontramos como personagens os pastores Mopso e Menalcas dentre os
animais representativos os cabritos aleacutem da flauta e o cajado como objetos coerentes
ao universo dos pastores Tambeacutem destacamos o campo a gruta e os olmeiros que
figuram como a espacialidade desejada para o cenaacuterio bucoacutelico descrito
Na Roda de Virgiacutelio as personagens mencionadas satildeo Tityrus e Meliboeus
figuras recorrentes nos idiacutelios de Teoacutecrito e que depois tambeacutem foram retomadas por
Virgiacutelio As outras figuras mencionadas as ovelhas o cajado o campo e a faia
tambeacutem satildeo coerentes ao universo bucoacutelico jaacute que contribuem para a previsibilidade
do cenaacuterio no contexto do humilis stylus
Para o mediocris stylus podemos destacar como personagem o pastor Aristeu
que sabe teacutecnicas de apicultura A menccedilatildeo a este personagem eacute feita nos hexacircmetros
281-294 315-558 do Canto IV das Geoacutergicas Embora ele natildeo apareccedila no excerto
aqui estudado podemos destacar sua presenccedila como personagem representativo
justamente por ser parte do contexto virgiliano Dentre os animais representativos
podem ser destacadas as abelhas pois o excerto aqui estudado aborda alguns
conselhos de apicultura colocando as abelhas portanto em maior destaque Aleacutem
disso as colmeias podem figurar como objeto representativo em uma alusatildeo agraves
caixas de corticcedila e vime destinadas ao abrigo das abelhas e que aparecem no texto
como um dos conselhos a ser seguido na apicultura Para a descriccedilatildeo do cenaacuterio vale
destacar o campo o rio e as folhagens hospitaleiras ambiente adequado para as
abelhas se alojarem
Na Roda virgiliana os personagens mencionados para o mediocris stylus satildeo
Triptolemus e Coelius (agraves vezes pode aparecer Caelius como jaacute mencionamos
anteriormente) Em Joatildeo de Garlacircndia aparece ainda Triptolemus e Ceres Segundo
152
Fowler (2012) Coelius e Triptolemus satildeo nomes comuns para a eacutepoca nomes
destinados aos proprietaacuterios da terra por exemplo embora a figura de Triptolemus
apareccedila em um dos Hinos Homeacutericos agrave Demeacuteter deusa grega da agricultura daiacute a
menccedilatildeo a Ceres equivalente romano para Demeacuteter feita por Garlacircndia Satildeo nomes
portanto que estariam dentro do contexto das Geoacutergicas mesmo natildeo sendo
personagens virgilianos seriam nomes equivalentes Logo o boi o arado o campo e
os pomares todos mencionados na Roda de Virgiacutelio figuram como elementos
previsiacuteveis neste contexto
No grauis stylus podemos destacar como personagens Eneias e Turno Como
protagonista da Eneida o heroi Eneias figura como o filho protegido da deusa Vecircnus
que eacute agraciado com artefatos beacutelicos feitos pelo deus das forjas Vulcano Turno o
seu rival na batalha aparece para fazer contraponto ao heroi Dentre os animais
representativos destacamos o cavalo que embora natildeo apareccedila no excerto aqui
estudado eacute uma figura recorrente no contexto eacutepico virgiliano Como objetos
representativos tecircm-se as espadas as armaduras a lanccedila e o escudo A accedilatildeo das
personagens remete agrave defesa das muralhas da cidade bem como agrave construccedilatildeo delas
e o louro figura como uma honraria destinada aos heroacuteis
Na Roda os personagens citados satildeo Hector e Ajax personagens recorrentes
na epopeia homeacuterica Em Homero um dos modelos utilizados por Virgiacutelio o estilo
grandiloquente portanto tambeacutem contribui para a compreensatildeo das personagens
sua atuaccedilatildeo e a espacialidade descrita
Queremos destacar assim que para cada estilo encontramos uma
homogeneizaccedilatildeo das figuras que corroboram para uma direcionalidade do discurso e
para a criaccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos
Para Norma Discini (2009 p 57) ldquoo estilo apresenta um ponto de vista sobre o
mundordquo Pensando-se nas obras de Virgiacutelio cada estilo simples meacutedio e
grandiloquente aponta para a recorrecircncia de um modo de dizer remetendo-nos a
diferentes discursos com diferentes pontos de vista
Segundo Discini (2009 p 59)
descrever um estilo eacute reconstruiacute-lo Para tanto reconstruiacutemos o ator da enunciaccedilatildeo esse sujeito cuja figura emerge como corpo como caraacuteter de uma totalidade enunciada Por isso o estilo eacute um efeito de sentido uma construccedilatildeo do discurso O efeito de estilo pressupotildee concretizada nas figuras da espacialidade temporalidade e actorialidade uma sistematizaccedilatildeo Trata-se de uma homogeneizaccedilatildeo
153
do sentido que confirma a coerecircncia global do estilo e confirma tambeacutem um equiliacutebrio necessaacuterio agrave economia geral da construccedilatildeo do sentido
Logo observa-se que esta homogeneizaccedilatildeo do sentido se apoia nas isotopias
figurativas sejam elas espaciais pensando-se na descriccedilatildeo do espaccedilo de atuaccedilatildeo
ou actoriais pensando-se nas personagens Em Virgiacutelio as personagens descritas
revelam trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o heroacutei) e a partir delas constroacutei-se
um modo de ser no texto uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa que coloca em
destaque uma identidade do discurso os especiacuteficos efeitos de individuaccedilatildeo os
estilos
Pensando-se na doutrina dos genera dicendi ou seja dos trecircs tipos de estilo
definidos pelos gramaacuteticos antigos podemos entendecirc-los como instrumentos para a
construccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos Cada estilo daacute uma direcionalidade
para o sentido de cada discurso Haacute nas trecircs obras virgilianas diferentes
personagens que marcam assim diferentes tipos sociais com diferentes ambientes e
accedilotildees
Para cada estilo destaca-se um personagem que a partir de seu papel temaacutetico
e figurativo aspectualiza-se no texto jaacute que a sua atuaccedilatildeo esquematiza um cenaacuterio
coerente
Portanto entendemos que os estilos simples meacutedio e grandiloquente que
perpassam as trecircs obras remetem-nos a uma mudanccedila de atuaccedilatildeo levando-nos a
especiacuteficas esquematizaccedilotildees figurativas seja do cenaacuterio das personagens ou das
accedilotildees circunscritas a cada estilo
Segundo Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 31)
Ao fazer girar ainda que muito de leve ldquoa roda de Virgiacuteliordquo ndash essa espeacutecie de hierarquia de estilos que os comentaristas da baixa latinidade identificaram nas obras do mantuano tomando respectivamente as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida como paradigmas dos trecircs tipos baacutesicos de estilo reconhecidos pelos antigos quais sejam o ldquosimplesrdquo (humilis stylus) o ldquotemperadordquo (mediocris stylus) e o ldquosublimerdquo (grauis stylus) ndash percebe-se que a expressatildeo num grande autor se sujeita por completo ao domiacutenio dos recursos da linguagem []
Procurou-se destacar com isso o modo como as figuras e temas se organizam
nas trecircs obras virgilianas Para tanto valemo-nos dos diferentes estilos e a partir
154
deles articulamos os personagens e seu ambiente de atuaccedilatildeo Procurou-se entender
como cada estilo determina a figuratividade presente nos textos agindo como um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo
A poesia atinge um alto grau de encantamento quando a palavra poeacutetica
alcanccedila um aacutepice de realizaccedilatildeo imageacutetica A poesia vale-se da linguagem
experimentando-a e revificando-a
Assim como proposta deste trabalho procurou-se descrever e compreender a
construccedilatildeo expressiva da linguagem artiacutestica Para isso buscou-se entender que a
palavra poeacutetica enquanto imagem soacute alcanccedila sua funccedilatildeo puramente representativa
e esteacutetica quando percebida como uma forma particular de construccedilatildeo Coube-nos a
partir destas consideraccedilotildees ler as obras de Virgiacutelio com a finalidade de reconhecer a
eficaacutecia do texto poeacutetico e a sua vocaccedilatildeo imageacutetica
Procurou-se investigar em excertos representativos das trecircs obras virgilianas
alguns dos recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico dos
textos Aleacutem disso na anaacutelise das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida debruccedilamo-
nos sobre os trecircs tipos de estilo reconhecidos pelos gramaacuteticos antigos a fim de
compreendecirc-los a partir da Poeacutetica e da Semioacutetica Literaacuteria
Verificou-se que a triacuteade das obras virgilianas passou a ser representativa dos
trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica Posteriormente Joatildeo de Garlacircndia
filologista do seacuteculo XIII mapeou as trecircs obras na chamada Roda de Virgiacutelio
classificaccedilatildeo medieval que seguiu assim a doutrina dos gramaacuteticos antigos
Nosso trabalho portanto com vistas agrave compreensatildeo dos estilos presentes nas
obras virgilianas procurou reconhecer nos poemas o modo de atuaccedilatildeo de cada estilo
pensando-os como efeitos especiacuteficos de individuaccedilatildeo depreensiacuteveis por diferentes
recorrecircncias figurativas
Apresentamos ainda as traduccedilotildees dos excertos das trecircs obras com as
necessaacuterias referecircncias culturais Para estas notas foram utilizados dicionaacuterios de
mitologia e os comentaristas tradicionais acerca da obra do poeta mantuano
Foi feito um levantamento da origem da Roda de Virgiacutelio e do pensamento
estruturado pelos gramaacuteticos antigos acerca dos trecircs tipos de estilo presentes nas trecircs
obras Natildeo nos prendemos agraves classificaccedilotildees de maneira exaustiva jaacute que nosso
objetivo natildeo foi catalogar mas sim entender o modo como esses estilos atuam nos
textos Pensando nisso procuramos por meio da moderna anaacutelise metodoloacutegica dar
155
ecircnfase ao entendimento do estilo como efeito de sentido partindo da compreensatildeo
da isotopia figurativa presente em cada obra
Quanto ao capiacutetulo destinado aos comentaacuterios sobre a obra de Virgiacutelio
destacamos aqueles que julgamos pertinentes para a compreensatildeo acerca da
estrutura dos textos Dedicamos tambeacutem um capiacutetulo para as definiccedilotildees de tema
figura figuratividade e os processos de estruturaccedilatildeo do texto com exemplos de
excertos da obra virgiliana
Atualizando a questatildeo dos trecircs estilos na obra de Virgiacutelio o trabalho pretendeu
contribuir assim para as reflexotildees acerca da figuratividade na poesia bucoacutelica
didaacutetica e eacutepica
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Figura 2 ndash A Roda Virgiliana da Poetria de Garlacircndia In CORTE Franceso della (org)
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Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia In GARLAND John of The Parisiana Poetria
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Yale University Press 1974 p 40-41
Figura 4 ndash A Roda de Virgiacutelio In GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo
Paulo Mestre Jou 1970 p 26
Figura 5 ndash Mopso e Menalcas In CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana vol
IV 1996 p 465
Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus In CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa
Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica1998 p 22
Para Luis Carlos Dhara e Theo que me ensinam todos os dias que viver eacute ir
tecendo naturalmente a trama da nossa histoacuteria
AGRADECIMENTOS
ldquoUm galo sozinho natildeo tece uma manhatilderdquo
Ao meu orientador Prof Dr Maacutercio Thamos quem me ensinou que Virgiacutelio noacutes natildeo
o descobrimos noacutes o merecemos agradeccedilo por ter acompanhado minha pesquisa
desde a Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica pela amizade e minha formaccedilatildeo acadecircmica poeacutetica e
humana
Agrave Profa Dra Ude Baldan e ao Prof Dr Brunno Vieira agradeccedilo pela leitura generosa
do meu trabalho e pelas valiosas contribuiccedilotildees em minha banca de qualificaccedilatildeo bem
como pela minha formaccedilatildeo
Ao meu esposo Luis Carlos Malimpensa que me incentivou a cada momento
agradeccedilo pelo amor companheirismo e por ter me encorajado a natildeo desistir do
caminho
Agrave Dhara minha filha que nasceu em 2018 trazendo vida nova e sadia agradeccedilo pelo
despertar e pela poesia do maternar
Ao Theo meu novo bebecirc que estaacute a caminho e completaraacute a poesia da nossa famiacutelia
Agrave madrinha Edna Batistela que cuidou da minha famiacutelia enquanto eu natildeo podia todo
o meu carinho amor e o meu afeto constante
Aos meus pais Joseacute de Arauacutejo Ferreira e Antonieta Morato do Amaral Ferreira
agradeccedilo pela vida amor e sincero apoio e tambeacutem ao meu irmatildeo Carlos Eduardo
pelo apoio e amizade
Agrave Camila Sabino que me auxiliou na leitura de artigos em inglecircs agradeccedilo pela
amizade e carinho
Agrave Unesp pelo compromisso e por ter me dado a chance e todas as ferramentas que
me permitiram chegar hoje ao final desse ciclo de maneira satisfatoacuteria
E por fim mas natildeo menos importante aos Orixaacutes que clareiam nossos caminhos
A todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formaccedilatildeo o meu muito
obrigado
O primado da forma o que significa eacute que por exemplo a poesia de Virgiacutelio eacute a porccedilatildeo da substacircncia Roma que a forma de Virgiacutelio o seu hexacircmetro recorta e
exprime Sem o hexacircmetro de Virgiacutelio Roma eacute histoacuteria civilizaccedilatildeo liacutengua latina metrificaccedilatildeo ateacute mas natildeo poema pelo menos natildeo como o lemos nas Bucoacutelicas e
na Eneida Alceu Dias Lima (1992 p 14)
RESUMO
O presente trabalho procura investigar a manifestaccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs
obras de Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Pretende-se por meio da
Semioacutetica Literaacuteria analisar os excertos das obras do ponto de vista da expressatildeo
com destaque para a vocaccedilatildeo imageacutetica dos textos a sua figuratividade Aleacutem disso
o trabalho debruccedila-se sobre o conceito de estilo ao investigar na chamada Roda de
Virgiacutelio os trecircs tipos de estilo descritos pela Retoacuterica Antiga a saber o estilo singelo
o estilo meacutedio e o estilo grandiloquente Trata-se de um esquema circular tripartido do
seacuteculo XIII que apresenta as Bucoacutelicas no estilo singelo as Geoacutergicas no meacutedio e a
Eneida no grandiloquente Com isso o esquema da Roda compreende para cada
texto virgiliano um cenaacuterio representativo diferente com diferentes caracteres O
presente estudo procura assim ampliar a compreensatildeo acerca dos trecircs estilos ao
entendecirc-los como efeitos de sentido engendrados nos textos ou seja como
especiacuteficos efeitos sugestionados nas obras a partir da predominacircncia de um
tratamento temaacutetico seguido de sua isotopia figurativa Apresentamos ainda uma
traduccedilatildeo dos excertos virgilianos aqui destacados para anaacutelise A pesquisa eacute um
estudo sobre a estrutura poeacutetica das obras virgilianas com destaque portanto para
a presenccedila da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica
Palavras-chave Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida Figuratividade Semioacutetica
ABSTRACT
The present study seeks to investigate the figurative manifestation in excerpts of
Virgilrsquos three works the Eclogues the Georgics and the Aeneid It is intended through
Literary Semiotics to analyze the excerpts of the works from the point of view of
expression with emphasis on the imagery vocation of the texts their figurativity In
addition the work focuses on the concept of style by investigating in the so-called
Virgils Wheel the three types of style described by Ancient Rhetoric namely the
simple style the medium style and the grandiloquent style It is a circular tripartite
scheme from the 13th century that presents the Eclogues in simple style the Georgics
in the middle and the Aeneid in the grandiloquent Thus the scheme of the Wheel
comprises a different representative scenario for each Virgilian text with different
characters The present study thus seeks to increase the understanding of the three
styles to understand them as meaning effects engendered in the texts that is as
specific effects suggested in the works from the predominance of a thematic treatment
followed by their figurative isotopy We also present a translation of the Virgilian
excerpts highlighted here for analysis The research is a study on the poetic structure
of Virgilian works with emphasis therefore on the presence of figurativity in bucolic
didactic and epic poetry
Keywords Eclogues Georgics Aeneid Figurativity Semiotics
Lista de Figuras e Tabelas
Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo IIIp 10
Figura 2 ndash A Roda Virgiliana p 11
Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia p27
Figura 4 ndash A Roda de Virgiacuteliop30
Figura 5 ndash Mopso e Menalcasp 75
Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnusp 91
Tabela 1 ndash The spokes of Virgilrsquos Wheelp 44
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 13
1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica 22
2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente 33
3 A criacutetica virgiliana46
31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da
Eneida46
32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho 53
4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto57
41 Textos temaacuteticos e figurativos57
42 A figuratividade e a leitura do poeacutetico 69
5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises
51 BUCOacuteLICA V ndash Mopso e Menalcas os pastores cantadores75
52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo81
53 Figuratividade na Bucoacutelica V ndash anaacutelise do texto86
54 GEOacuteRGICAS Canto IV (1-115) ndash descriccedilatildeo do lugar adequado para as
abelhas 99
55 Geoacutergicas Canto IV (1-115) Traduccedilatildeo e notas104
56 Figuratividade no Canto IV (1-115) ndash anaacutelise do texto 108
57 ENEIDA Canto VIII (612-731) ndash Eneias e as armas de guerra 121
58 Traduccedilatildeo e notas do Canto VIII (612-731)125
59 Figuratividade no Canto VIII (612-731) ndash anaacutelise do texto 131
6 Consideraccedilotildees Finais 149
Bibliografia 156
Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III
Fonte PEREIRA Maria H da R 2002 p 247
Figura 2 - A Roda Virgiliana
Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p592
Um claacutessico eacute um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha
para dizer (2007 p11)
Os claacutessicos satildeo livros que quanto mais pensamos conhecer por
ouvir dizer quando satildeo lidos de fato mais se revelam novos inesperados
ineacuteditos (2007 p 12)
[] os claacutessicos natildeo satildeo lidos por dever ou por respeito mas soacute por
amor (2007 p 12-13)
Italo Calvino (2007)
13
Introduccedilatildeo
Publius Vergilius Maro nasceu no ano 70 aC em Andes aldeia proacutexima a
Macircntua sob o primeiro consulado de Liciacutenio Crasso e de Pompeu Magno O poeta
deixou-nos trecircs grandes obras as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Seus textos
estatildeo entre os manuscritos (seacutecs II-III dC) mais antigos que possuiacutemos em papiro na
corrente de difusatildeo da Cultura Claacutessica
As fontes baacutesicas para a biografia do poeta satildeo os comentaacuterios de Valeacuterio
Probo (seacutec I dC) Donato (seacutec IV dC) Seacutervio (seacutec IV dC) Juacutenio Filargiacuterio (seacutec V
dC) e a Vita em verso do gramaacutetico Focas mais tardia e incompleta (seacutec IX) No
livro De poetis Suetocircnio (seacutec I dC) menciona a biografia de Virgiacutelio (Vita Vergilii) que
foi conservada graccedilas a Donato que a reproduziu em seu Comentarium ad Vergilium
O poeta morreu em 19 aC em Brindisi e seu corpo foi transportado para
Naacutepoles sendo sepultado em uma gruta proacutexima agrave estrada de Puteacuteolos1 Todos os
bioacutegrafos citam um diacutestico que o poeta teria supostamente redigido a si proacuteprio
Mantua me genuit Calabri rapuere tenet nunc Parthenope cecini pascua rura duces2
Macircntua me gerou na Calaacutebria arrebataram-me agora me tem o Partecircnope3 cantei as pastagens os campos e os heroacuteis
Segundo Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 30) a veneraccedilatildeo ao poeta comeccedilou
logo apoacutes sua morte Siacutelio Itaacutelico (26-101 dC) por exemplo em seu poema eacutepico
acerca da segunda guerra puacutenica (Punica) imitou de Virgiacutelio o estilo os episoacutedios o
maravilhoso mitoloacutegico e ateacute os recursos do gecircnero Aleacutem disso Eacutelio Lampriacutedio (seacutec
IV dC) um dos escritores da Histoacuteria Augusta conta que Alexandre Severo4 tinha no
palaacutecio a imagem de Virgiacutelio a quem chamava de ldquoPlatatildeo dos poetasrdquo na mesma
1 Atualmente Pozzuoli proviacutencia de Napoacuteles Era conhecida como Puteacuteolos no Periacuteodo Romano 2O termo ldquopascuardquo pastagens refere-se agraves Bucoacutelicas ldquorurardquo campos cultivadosrdquo agraves Geoacutergicas ldquoducesrdquo chefes ou heroacuteis agrave Eneida 3 Partecircnope eacute o nome poeacutetico da cidade de Naacutepoles Na mitologia conta-se que Partecircnope lanccedilou-se
ao mar com suas irmatildes sereias e as ondas atiraram seu corpo para as margens de Naacutepoles onde lhe foi erigido um monumento (cf GRIMAL 2014 p 357) Nos versos finais das Geoacutergicas Canto IV (hex 563-564) Virgiacutelio assim afirma Illo Vergilium me tempore dulcis alebatParthenope studiis florentem ignobilis oti ldquoNaquele tempo a doce Partecircnope nutria a mim Virgiacutelio que nos esforccedilos de um obscuro oacutecio floresciardquo 4 Alexandre Severo (222-235 dC) uacuteltimo imperador da Dinastiacutea Severa em Roma
14
galeria de Aquiles Ciacutecero e outros nomes ilustres Vale ressaltar tambeacutem que as
escavaccedilotildees arqueoloacutegicas de Pompeia forneceram ateacute hoje cerca de sessenta
grafitos virgilianos e uma quinzena deles eacute de citaccedilotildees ou reminiscecircncias das
Bucoacutelicas Segundo Mendes (1997 p 43) as Bucoacutelicas faziam parte da vida dos
habitantes de Pompeia pois os grafitos aparecem nos peristilos poacuterticos e muros
Enrico Rostagni (1931 p 5) assim exprime a benignidade do tempo para com a obra
de Virgiacutelio
AL MASSIMO POETA della Romanitagrave il tempo egrave stato in certo qual modo benigno perchegrave del texto delle sue Opere permise che ci giungessero esemplari insigni per lrsquoantichitagrave veneranda della scritura la quale nella sua maestagrave riflette per cosigrave dire la maestagrave del Poeta e della Gente per cui egli aveva cantato
A vitalidade das obras de Virgiacutelio eacute patente pelo modo como os seus principais
temas e enredos inspiraram e ainda inspiram poetas e demais artistas Mendes (1997
p 42) questiona-se acerca do valor dessa obra de arte para assim perdurar na
memoacuteria e nas matildeos de geraccedilotildees Ele entatildeo afirma que ldquouma obra literaacuteria impotildee-se
e permanece por sua concepccedilatildeo e novidade de conteuacutedo aliadas ao primor de
execuccedilatildeordquo
Como bem aponta-nos Joseph Brodsky (1994 p 97) poeta e criacutetico russo ldquoA
biografia dos poetas estaacute em suas vogais e sibilantes em sua meacutetrica suas rimas e
metaacuteforasrdquo e assim acreditamos que Virgiacutelio revive sempre em cada leitor aacutevido e
maravilhado pelas paacuteginas de indefiniacutevel Beleza As Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a
Eneida renascem constantemente naquele que mergulha em suas linhas e entrelinhas
(SANTOS 2007 p73)
Das obras virgilianas sabemos que a coleccedilatildeo de dez poemas pastoris que a
tradiccedilatildeo de estudos claacutessicos conhece sob o tiacutetulo de Bucoacutelicas foi composta
aproximadamente entre 42 e 37 aC Nesta obra ao buscar motivos nos Idiacutelios de
Teoacutecrito (310 ndash 250 aC) poeta siracusano de destaque no Periacuteodo Heleniacutestico
Virgiacutelio cria cenaacuterios e personagens campestres valendo-se de uma linguagem
repleta de elementos figurativos
As Geoacutergicas foram escritas entre 37 e 29 aC logo apoacutes as Bucoacutelicas A obra
configura-se de acordo com a tradiccedilatildeo claacutessica como um poema didaacutetico e eacute
composta por quatro livros (ou cantos) A obra traz como tema a terra e os encantos
da vida rural apresentando uma seacuterie de ensinamentos relacionados aos trabalhos
15
no campo No primeiro livro apresenta-se a lavoura no segundo a arboricultura
sobretudo a viticultura no terceiro a pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no
quarto a apicultura
Escrita entre 29 e 19 aC a Eneida eacute a eacutepica virgiliana Com doze livros (ou
cantos) a obra eacute considerada pela tradiccedilatildeo como um poema histoacuterico e mitoloacutegico
Ao colocar em cena os feitos de Eneias o filho protegido da deusa Vecircnus e o
responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino Virgiacutelio
trama um conjunto de situaccedilotildees e narrativas que propiciaram a fundaccedilatildeo de Roma
Pensando-se nos versos de Virgiacutelio eacute oportuno afirmar que sua poesia teve a
virtude de perpetuar-se e de registrar um povo e um momento da fala desse povo Ao
reconhecer o poeacutetico presente em suas obras compreendemos um fato de linguagem
com valor humano e portanto universal
Virgiacutelio como se sabe valeu-se do hexacircmetro datiacutelico como molde em suas
composiccedilotildees Este tipo de verso jaacute havia sido utilizado por Homero na produccedilatildeo da
Iliacuteada e da Odisseia O emprego do hexacircmetro nos poemas eacutepicos estendeu-se
tambeacutem agrave poesia didaacutetica com Hesiacuteodo e tambeacutem agrave poesia pastoril com Teoacutecrito
Adaptado agrave Literatura Latina o hexacircmetro datiacutelico foi escolhido por Virgiacutelio no texto
das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida
Sendo o hexacircmetro datiacutelico o uacutenico metro usado por Virgiacutelio em suas
composiccedilotildees cabe-nos mencionar suas especificaccedilotildees Natildeo se trata de um verso
com um nuacutemero fixo de siacutelabas pois em certos pontos uma vogal longa pode
substituir duas breves Na formaccedilatildeo de versos latinos natildeo satildeo as siacutelabas que satildeo
submetidas agrave regularidade meacutetrica mas sim o tempo nelas incorporado Logo intui-
se que o ritmo eacute determinado por um arranjo preciso entre siacutelabas de diferente
duraccedilatildeo Os vinte e quatro tempos de um hexacircmetro estatildeo reagrupados em seis
subunidades de quatro tempos Cada uma delas chamadas peacutes estatildeo enfileiradas
uma apoacutes a outra do primeiro ao sexto peacute na linha do hexacircmetro Trecircs satildeo os tipos
de peacutes meacutetricos o daacutetilo o espondeu e o troqueu
O daacutetilo eacute formado de duas partes a primeira representa os dois primeiros
tempos do peacute realizados sobre uma uacutenica siacutelaba que eacute marcada pela vogal longa A
segunda parte traz os dois uacuteltimos tempos do peacute realizados cada um sobre uma
siacutelaba sendo cada siacutelaba marcada por uma vogal breve O daacutetilo eacute representado por
( ˉ ˘ ˘ )
16
O espondeu tambeacutem eacute formado por duas partes Cada parte diferentemente
do daacutetilo eacute formada por duas siacutelabas longas O espondeu eacute graficamente
representado por ( ˉ ˉ )
A segunda parte de um daacutetilo marcada por duas vogais breves ( ˘ ˘) pode ser
substituiacuteda no verso por uma vogal longa pois uma vogal longa equivale a duas
breves Mas na praacutetica soacute os primeiros quatro peacutes do hexacircmetro podem ser
substituiacutedos por equivalentes espondeus pois o quinto peacute eacute normalmente um daacutetilo
que garante a base para que o verso seja chamado datiacutelico Quanto ao uacuteltimo ou seja
o sexto peacute chamado troqueu eacute constituiacutedo de duas siacutelabas A primeira eacute longa e a
segunda pode ser longa ou breve O uacuteltimo peacute eacute representado por ( ˉ ˘_)
Segundo Joatildeo Batista Toledo Prado (2012 p 109)
Para a consecuccedilatildeo do ritmo verbal no verso por exemplo num hexacircmetro datiacutelico (um verso de seis peacutes meacutetricos compostos ao menos idealmente por seis daacutetilos ou seja por sequecircncias trissilaacutebicas em que a primeira siacutelaba eacute longa e as duas outras que se lhe seguem satildeo breves) um daacutetilo poderaacute ser substituiacutedo em certas posiccedilotildees por um espondeu (peacute dissilaacutebico com ambas as siacutelabas longas)
Aleacutem disso a siacutelaba final que atua como pontuaccedilatildeo do verso eacute
fonologicamente neutralizada de tal forma que como se sabe o uacuteltimo peacute de um
hexacircmetro seraacute sempre um dissiacutelabo espondaico (quatro tempos) ou trocaico (trecircs
tempos) (PRADO 1997 p 171-172)
Com isso resulta o esquema geral do hexacircmetro
ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘
1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm
ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˘ ˘ ˉ ˉ
1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm
Acrescentaram-se na Antiguidade agraves trecircs obras canocircnicas de Virgiacutelio alguns
textos que hoje satildeo em sua maioria tidos como apoacutecrifos e considerados de autoria
duvidosa ou controversa pelos estudiosos Foi feita uma compilaccedilatildeo desses textos no
17
ano de 1572 com o tiacutetulo de Appendix Vergiliana pelo humanista francecircs J J
Escaliacutegero (1540 ndash 1609) No seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX vaacuterios estudiosos tais
como Rand (1919) e Frank (1930) afirmavam que os textos presentes na Appendix
Vergiliana eram todos (ou quase todos) da autoria de Virgiacutelio e passaram a consideraacute-
los como parte de um processo poeacutetico que culminaria nas trecircs obras consagradas do
poeta Mas em contrapartida tambeacutem havia nessa mesma eacutepoca quem apresentasse
um ponto de vista que se aproxima mais do consenso atual sobre a questatildeo ou seja
o de negar a autoria virgiliana dos textos presentes na Appendix O que vale destacar
para aleacutem da autoria destes textos eacute que as obras presentes na Appendix Vergiliana
constituem um material vasto e ainda pouco explorado
O presente trabalho procura focar assim nas trecircs principais produccedilotildees de
Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Ao investigar a manifestaccedilatildeo figurativa
presente em excertos representativos das trecircs obras procuramos destacar alguns dos
recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico de cada texto Os
excertos escolhidos satildeo representativos na medida em que alicerccedilam as
caracteriacutesticas dominantes da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Ao observar quais
satildeo as caracteriacutesticas predominantes em cada excerto o trabalho debruccedila-se sobre
os trecircs tipos de estilos descritos pela antiga retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio
e o grandiloquente que foram difundidos atraveacutes da chamada Rota Vergilli Roda de
Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que apresenta os principais caracteres dos trecircs
cenaacuterios criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico e o eacutepico atrelando cada um deles
a um tipo de estilo Ao compreender cada estilo como um efeito de sentido
sugestionado por meio de uma predominacircncia figurativa e temaacutetica presente em cada
excerto passamos a entender os estilos singelo meacutedio e grandiloquente presentes
na Roda como especiacuteficas construccedilotildees figurativas Para este entendimento o
presente estudo apoia-se no arcabouccedilo teoacuterico da Semioacutetica Literaacuteria
Pensando portanto em estilo como um efeito de sentido depreensiacutevel a partir
de uma totalidade discursiva o trabalho propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo
que os tratados de retoacuterica distinguiam Procurar-se-aacute observar assim a tessitura
poeacutetica de excertos das trecircs obras de Virgiacutelio valendo-se da caracterizaccedilatildeo figurativa
e da expressividade de cada estilo Ao descrever os procedimentos retoacutericos por meio
de princiacutepios mais amplos do que aqueles entatildeo utilizados pelos tratadistas antigos
pretendemos ampliar a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica a leitura do texto
claacutessico latino
18
O trabalho busca investigar a construccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs
principais produccedilotildees de Virgiacutelio e propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo
definidos pelos gramaacuteticos antigos ao entender cada estilo como parte da construccedilatildeo
figurativa presente nas trecircs obras O esquema da Roda de Virgiacutelio serviraacute assim
como base para os exemplos de figuras e temas encontrados nas Bucoacutelicas nas
Geoacutergicas e na Eneida e para o entendimento da construccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico
didaacutetico e eacutepico
Vale ressaltar que uma figura natildeo tem significado em si mesma Seu sentido
nasce do encadeamento com outras figuras presentes no discurso Se em um texto
tudo eacute relaccedilatildeo o que daraacute sentido a essas figuras eacute um tema Por isso para encontrar
o sentido de um conjunto de figuras que estatildeo encadeadas no discurso deve-se
perceber o tema subjacente a elas As figuras presentes em um texto formam uma
rede uma trama e por isso para depreendermos o tema de um texto figurativo eacute
preciso apreender primeiro as redes coerentes formadas pelas figuras No caso das
Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida eacute imprescindiacutevel que reconheccedilamos nos
excertos selecionados para anaacutelise o encadeamento e a rede de figuras Aliaacutes o que
garante a depreensatildeo dos temas por traacutes da rede de figuras eacute exatamente a coerecircncia
existente entre elas ou seja a predominacircncia figurativa afinal eacute a partir da coerecircncia
existente entre as figuras que podemos compreender a relaccedilatildeo solidaacuteria que elas
mantecircm entre si
Logo ao adentrarmos na dimensatildeo enunciativa e figurativa de cada excerto
virgiliano investigaremos a figuratividade que perpassa cada discurso destacando
como os estilos singelo meacutedio e grandiloquente satildeo expressos figurativamente nos
textos Pretendemos dessa maneira descrever cada estilo como um especiacutefico efeito
de sentido fruto da rede figurativa arquitetada pelo texto Assim procuramos
descrever os procedimentos retoacutericos atraveacutes de princiacutepios mais amplos para explicar
o fenocircmeno figurativo evidenciado na Roda Logo ao utilizarmos aqui o termo ldquofigurardquo
referimo-nos aos substantivos adjetivos e verbos de accedilatildeo presentes no texto e que
revestem uma ideia abstrata um tema A Retoacuterica seraacute lida entatildeo a partir de um olhar
Semioacutetico Apresentaremos ainda uma traduccedilatildeo dos excertos selecionados para
leitura e anaacutelise com as necessaacuterias notas de referecircncia (geograacuteficas mitoloacutegicas e
histoacutericas)
Os principais excertos selecionados para traduccedilatildeo e anaacutelise satildeo a Bucoacutelica V
a primeira parte do Canto IV das Geoacutergicas (hex 1-115) e o Canto VIII (hex 612-731)
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da Eneida Estes excertos foram escolhidos pensando-se em seus esquemas
figurativos Satildeo trechos que alicerccedilam as caracteriacutesticas dominantes evidenciadas na
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica e que corroboram assim para o entendimento dos
estilos singelo meacutedio e grandiloquente descritos na Roda de Virgiacutelio Ao afirmarmos
com isso em nossas anaacutelises e comentaacuterios que determinado excerto eacute singelo
meacutedio ou grandiloquente o que se quer dizer eacute que estes trechos apresentam
predominantemente e natildeo exclusivamente caracteriacutesticas que alicerccedilam um
determinado efeito de sentido O que se observou nestes excertos escolhidos para
traduccedilatildeo e anaacutelise eacute que os efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente que
nos remetem respectivamente agrave poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica podem ser
depreendidos por uma rede coerente de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria
entre si
Aleacutem destes excertos outros apareceratildeo ao longo do trabalho para
complementarem o entendimento acerca dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente
e o modo como eles satildeo arquitetados por uma rede figurativa uma caracteriacutestica
dominante que alicerccedila o cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Vale ressaltar ainda que
todos os excertos traduzidos das obras virgilianas satildeo de autoria nossa assim como
os demais trechos em latim dos tratadistas antigos
O presente estudo procura portanto a partir de uma moderna anaacutelise
metodoloacutegica produzir um discurso metalinguiacutestico capaz de lanccedilar luz sobre os
recursos da figuratividade evidenciados na Roda de Virgiacutelio Com isso
compreendemos os trecircs estilos definidos pelos tratadistas antigos como efeitos de
sentido arquitetados por uma predominacircncia de figuras presente nos discursos
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
No primeiro capiacutetulo ldquoA Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela
Antiga Retoacutericardquo destacaremos brevemente o pensamento dos principais gramaacuteticos
latinos acerca da classificaccedilatildeo das obras de Virgiacutelio e com isso colocaremos em
relevo os trecircs tipos de estilo por eles descritos o singelo o meacutedio e o grandiloquente
Neste capiacutetulo ainda mencionaremos a Parisiana Poetria de Joatildeo de Garlacircndia e a
Rota Vergilii a Roda de Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que segue a doutrina dos
tratadistas antigos Procuraremos neste capiacutetulo esclarecer alguns pontos
importantes da doutrina dos genera dicendi os trecircs tipos de estilo descritos pelos
gramaacuteticos latinos e para isso faremos um levantamento dos pensamentos mais
relevantes para o tema Para esta etapa do trabalho utilizaremos como fonte os
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gramaacuteticos latinos e outros estudiosos da aacuterea de estudos claacutessicos Dentre os
pensadores antigos destacamos Seacutervio Valeacuterio Probo Donato e Filargiacuterio
No segundo capiacutetulo ldquoUma leitura dos efeitos de sentido simples meacutedio e
grandiloquenterdquo procuramos analisar os trecircs estilos presentes da Roda de Virgiacutelio
como efeitos de sentido engendrados nos textos e que corroboram para o
entendimento dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico
e o eacutepico Busca-se entender dessa forma que cada estilo supotildee uma unidade de
interpretaccedilatildeo depreensiacutevel da recorrecircncia temaacutetica e figurativa presente em cada
discurso Para esse entendimento foram destacados os pensamentos de Antoine
Compagnon (2014) Norma Discini (2009) e Wilson-Okamura (2010) entre outros
No terceiro capiacutetulo ldquoA criacutetica virgilianardquo mencionamos as reflexotildees de
Katharina Volk (2008) que mapeia os principais criacuteticos da obra de Virgiacutelio a partir da
deacutecada de 70 sublinhando duas vertentes de leitura para a obra do poeta a ideoloacutegica
e a literaacuteria Mencionamos alguns comentaacuterios de Elaine C Prado dos Santos (2007)
Ruy Mayer (1948) entre outros Nesta etapa destacamos ainda o pensamento e
estudo de Andrew Laird (2010) sobre a recepccedilatildeo de Virgiacutelio
No quarto capiacutetulo ldquoA Figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um
textordquo falaremos de conceitos semioacuteticos como lsquotemarsquo lsquofigurarsquo e lsquofiguratividadersquo e
procuraremos demonstrar na leitura e anaacutelise de alguns excertos dos poemas de
Virgiacutelio como os temas e figuras participam da formaccedilatildeo textual Para esta reflexatildeo
teremos como respaldo os estudos de Poeacutetica e Semioacutetica Literaacuteria Destacam-se
nesta etapa as reflexotildees de Greimas (1975) (2011) Jakobson (1978) (1989) Barros
(2005) Fiorin (1995) (2011) e Bertrand (2003)
No quinto capiacutetulo ldquoTraduccedilotildees notas e anaacutelisesrdquo contaremos com os excertos
selecionados das trecircs obras virgilianas traduzidos e analisados O trabalho de
traduccedilatildeo seraacute acompanhado das necessaacuterias referecircncias culturais (geograacuteficas
mitoloacutegicas e histoacutericas) Neste capiacutetulo seraacute observada a dimensatildeo figurativa de cada
obra e para isso seratildeo destacadas as principais figuras e os temas recorrentes agrave
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Nas anaacutelises procuraremos abordar como as figuras
se organizam e asseguram um revestimento figurativo dos principais temas bucoacutelicos
didaacuteticos e eacutepicos Aleacutem disso tambeacutem levaremos em conta os estilos singelo meacutedio
e grandiloquente compreendendo-os como efeitos de sentido a partir principalmente
de sua estrutura figurativa Os textos latinos escolhidos para leitura traduccedilatildeo e
anaacutelise seratildeo os das ediccedilotildees Les Belles Lettres em cotejo com as ediccedilotildees
21
apresentadas por John Conington em The Works of Virgil e com as ediccedilotildees alematildes
da De Gruyter comentadas por Gian Biagio Conte
O presente estudo procura dessa forma analisar as obras de Virgiacutelio do ponto
de vista da expressatildeo procurando ampliar a percepccedilatildeo da leitura da poesia claacutessica
ao colocar em relevo os recursos da figuratividade do texto A anaacutelise dos elementos
de Retoacuterica a partir da Semioacutetica implica aqui em uma releitura ou seja em
descrever os procedimentos retoacutericos por meio de princiacutepios mais amplos do que
aqueles utilizados pelos gramaacuteticos antigos
22
1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga
Retoacuterica
Procurar entender um poema a partir de uma classificaccedilatildeo preacute-estabelecida
natildeo nos parece uma tarefa meritoacuteria pois ldquocada criaccedilatildeo poeacutetica eacute uma unidade
autossuficienterdquo e cada poema portanto ldquoeacute uacutenico irredutiacutevel e inigualaacutevelrdquo (PAZ
2012 p 23) Classificar catalogar reduzir a poesia a algumas poucas formas natildeo diz
nada sobre o poeacutetico em si nem sobre a expressividade do texto todavia buscar
compreender o porquecirc de uma classificaccedilatildeo e o modo como essa classificaccedilatildeo atua
pode nos auxiliar numa tarefa que vai aleacutem de uma mera ordenaccedilatildeo externa agrave obra
quando nos leva a entender alguns mecanismos de estruturaccedilatildeo poeacutetica Eacute oacutebvio que
apenas traccedilar as fronteiras de uma obra e descrevecirc-la levando em conta a
configuraccedilatildeo de um determinado estilo natildeo eacute capaz de esclarecer o poeacutetico que ali
atua Assim ao refletirmos sobre os trecircs estilos (singelo meacutedio e grandiloquente)
presentes nas obras de Virgiacutelio natildeo queremos com isso catalogaacute-las muito menos
hierarquizaacute-las mas sim adentrar o poeacutetico a expressividade do texto virgiliano a fim
de compreendermos natildeo apenas os assuntos tratados nos poemas mas sobretudo a
sua forma de expressatildeo
No iniacutecio da Bucoacutelica VI (hex 3-5) Virgiacutelio menciona as figuras representativas
do cenaacuterio bucoacutelico em contraponto agraves figuras eacutepicas
Cum canerem reges et proelia Cynthius aurem uellit et admonuit ltltPastorem Tityre pinguis pascere oportet ouis deductum dicere carmengtgt
Como eu cantasse reis e batalhas Ciacutentio5 puxou-me a orelha e advertiu-me ldquoAo pastor Tiacutetiro conveacutem apascentar gordas ovelhas e cantar um canto ruacutesticordquo
Haacute uma oposiccedilatildeo no excerto entre dois grupos de figuras De um lado lsquoreisrsquo e
lsquobatalhasrsquo e de outro lsquoo pastorrsquo as lsquogordas ovelhasrsquo e um lsquocanto ruacutesticorsquo Enquanto a
temaacutetica da eacutepica destina-se agrave narraccedilatildeo de grandes feitos de reis e batalhas a poesia
de gecircnero bucoacutelico eacute um canto de temaacutetica mais simples pois traz a figura do pastor
5 Ciacutentio outro nome para Apolo aqui citado como um deus pastoral identificado com agrave natureza
23
que apascenta as gordas ovelhas e canta um canto ruacutestico humilde singelo de
temaacutetica portanto diferente da eacutepica
Tambeacutem Camotildees no seacuteculo XVI na Invocaccedilatildeo drsquoOs Lusiacuteadas (I 5 v 1-4)
opocircs o cenaacuterio da eacutepica e da bucoacutelica
Dai-me uma fuacuteria grande e sonorosa E natildeo de agreste avena ou frauta ruda Mas de tuba canora e belicosa Que o peito acende e a cor ao gesto muda
A poesia bucoacutelica neste excerto eacute caracterizada pela ldquoagreste avenardquo ou
ldquofrauta rudardquo o instrumento do pastor-cantador protagonista do cenaacuterio bucoacutelico Jaacute
a poesia eacutepica aparece caracterizada pela lsquotuba canora e belicosarsquo Trata-se de uma
mudanccedila de cenaacuterio entre a bucoacutelica e a eacutepica muda-se o tema cantado e
consequentemente as figuras empregadas Entre os antigos a epopeia jaacute era descrita
por narrar os feitos de reis de chefes e as tristes guerras (cf Horaacutecio Arte Poeacutetica)
Augusto Epiphanio da Silva Dias (1910 p 6 nota 5) afirma que ldquoEm latim avena
lsquoaveiarsquo emprega-se tambeacutem por lsquocana de aveiarsquo e daiacute na poesia por lsquoflauta pastorilrsquo
A lsquoavenarsquo simboliza a poesia bucoacutelica assim como a lsquotubarsquo ou trombeta a poesia
eacutepicardquo
Enquanto as figuras representam no texto as coisas e os acontecimentos do
mundo natural os temas explicam os fatos que ocorrem Para criar determinado efeito
de sentido o autor de um texto escolhe figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria
entre si formando uma rede uma trama figurativa Ao identificarmos as figuras de um
texto devemos verificar portanto qual eacute a funccedilatildeo que elas desempenham no sentido
do texto Logo a depreensatildeo dos temas subjacentes a um texto figurativo soacute eacute
possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre figuras que se articulam e se encadeiam no
interior dele formando uma rede Como observamos nos exemplos acima o contraste
evidenciado entre a poesia bucoacutelica e eacutepica estaacute manifestado dessa maneira por
redes figurativas diferentes
Semelhante oposiccedilatildeo tambeacutem aparece com Antoacutenio Ferreira (2000 p 157) no
iniacutecio de sua ldquoEacutecloga Irdquo (v1-8)
No tempo qursquoo cruel e furioso Inimigo dos pastores e dos gados Da terra e das sementes belicoso
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Marte segundo contam por pecados Do mundo contra o mundo tatildeo iroso Desceu que teacute os lugares mais sagrados Assi com ferro e fogo cometeu Que tudo de ira cinza e sangue encheu
A guerra no seguinte excerto eacute figurativizada pelo ldquobelicoso Marterdquo que se
mostra inimigo dos pastores e de todo cenaacuterio bucoacutelico pois a guerra quebra
necessariamente com a paz ideal presente no mundo pastoril
Haacute portanto uma oposiccedilatildeo temaacutetica entre a poesia de gecircnero bucoacutelico e a
poesia eacutepica O contraste evidenciado nos dois discursos eacute marcado por redes
figurativas especiacuteficas que apontam para temas distintos O efeito de sentido singelo
humilde eacute proacuteprio da bucoacutelica jaacute que a recorrecircncia figurativa pressupotildee o universo
dos pastores inseridos em um locus amoenus Enquanto isso o efeito de sentido
grandiloquente eacute proacuteprio do cenaacuterio eacutepico em que figuram heroacuteis em contexto de
grandes aventuras e batalhas Entende-se por efeito de sentido a construccedilatildeo de
significados que pode ser depreensiacutevel de um discurso Essa construccedilatildeo eacute arquitetada
em um texto por uma rede de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre si Logo
ao falarmos em efeito de sentido referimo-nos agrave trama de figuras presente em cada
discurso e ao modo como essa rede figurativa manifesta-se predominantemente no
discurso ao tecer significados No que diz respeito agrave poesia de gecircnero bucoacutelico e
eacutepico evidenciamos redes figurativas distintas e portanto diferentes efeitos de
sentido
Assim a partir do tema da accedilatildeo e da caracterizaccedilatildeo presentes nas trecircs obras
de Virgiacutelio - as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida ndash o trabalho procura observar as
mudanccedilas nos efeitos de sentido em cada obra Os estilos singelo meacutedio e
grandiloquente apresentam-se em cada obra virgiliana como efeitos de identidade do
texto sendo arquitetados a partir de um conjunto de procedimentos recorrentes na
construccedilatildeo de um sentido Analisar os estilos portanto significa investigar os
diferentes efeitos de individualidade presentes em cada texto
Valeacuterio Probo gramaacutetico romano da segunda metade do seacuteculo I dC In Vergilii
Bucolica et Georgica commentarius ao comparar a eacutepica e a bucoacutelica virgiliana
afirma que o ldquosublime e grandiloquenterdquo pertencem agrave Eneida enquanto agraves Bucoacutelicas
pertencem o que eacute ldquohumilde e ruacutesticordquo Diz o gramaacutetico
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Sunt quaedam propria heroico carmini sublimia sed in bucolico humilia quae apte diuisse Vergilius notatus est
Algumas coisas satildeo apropriadas as sublimes ao poema heroico mas as humildes no bucoacutelico notou-se que Virgiacutelio as separou adequadamente
Essa distinccedilatildeo feita entre as obras deixa entrever a possibilidade de figuras que
podemos encontrar em cada uma delas Para a Eneida uma rede figurativa que nos
remete a um tema de caraacuteter grandioso enquanto para as Bucoacutelicas uma trama
figurativa que nos remete a assuntos mais singelos
Eacutelio Donato gramaacutetico e retoacuterico latino do seacuteculo IV dC menciona as trecircs
obras de Virgiacutelio e designa o modo de elocuccedilatildeo de cada gecircnero Para ele satildeo trecircs os
modos de elocuccedilatildeo o tecircnue (tenuis) para o gecircnero bucoacutelico o moderado (moderatus)
para o gecircnero didaacutetico e o vigoroso (ualidus) para o gecircnero eacutepico A elocuccedilatildeo
segundo a Retoacuterica refere-se agrave escrita do discurso ao estilo agrave expressatildeo Refere-se
pois ao trabalho com a linguagem e abrange assim o bom uso do leacutexico
Juacutenio Filargiacuterio comentarista de Virgiacutelio do seacuteculo V dC em Explanatio in
Bucolica Vergilli ao comparar as trecircs obras virgilianas acaba relacionando-as aos trecircs
genera dicendi
Humile medium magnum physica ethica logica Bucolica Georgica Aeneades naturalis moralis rationalis pastor operator bellator Physica ethica logica propter naturam propter usum propter doctrinam
Humilde meacutedio grande fiacutesica eacutetica loacutegica Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida natural moral racional pastor operaacuterio guerreiro Fiacutesica eacutetica loacutegica por causa da natureza por causa do uso por causa da doutrina
Dos pensadores aqui mencionados todos subordinam as Bucoacutelicas ao estilo
humilde (singelo) as Geoacutergicas ao meacutedio e a Eneida ao sublime grandiloquente
Com o auxiacutelio da Semioacutetica Literaacuteria entendemos que os trecircs estilos descritos
pelos tratadistas antigos podem ser lidos como diferentes efeitos de sentido presentes
nas trecircs obras virgilianas Estes efeitos estatildeo alicerccedilados nas diferentes tramas
figurativas tecidas por Virgiacutelio Pretende-se entender com isso o modo como os
principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica atuam no discurso Ao
compreender os trecircs estilos como construccedilotildees figurativas como efeitos de sentido
arquitetados em cada obra destacaremos como a significaccedilatildeo de uma determinada
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figura estaacute sob o controle de um contexto no qual se encaixa com coerecircncia Pretende-
se investigar portanto a relaccedilatildeo solidaacuteria existente entre as figuras em contexto
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
A subordinaccedilatildeo das trecircs obras de Virgiacutelio aos trecircs genera dicendi aos trecircs
estilos descritos pelos gramaacuteticos latinos tambeacutem encontramos na Parisiana Poetria
de Joatildeo de Garlacircndia A Parisiana Poetria eacute um tratado sobre gramaacutetica e retoacuterica
escrito por Garlacircndia por volta de 1231 e 1235 Trata-se de um trabalho que registra
tipos de composiccedilatildeo escrita e aponta os cacircnones da retoacuterica Garlacircndia dessa forma
descreve uma teoria abrangente do estilo e para isso vale-se das Bucoacutelicas das
Geoacutergicas e da Eneida para criar a Roda de Virgiacutelio esquema circular tripartido em
que as obras virgilianas aparecem para descrever diferentes personagens temas
caracterizaccedilotildees e niacuteveis de estilo Assim ao mapear os estilos singelo meacutedio e
grandiloquente o filologista chama-nos a atenccedilatildeo para o fato de que Virgiacutelio registrou
diferentes tipos de estilo fixando modelos
De acordo com a Encyclopaedia Britannica (2009) John of Garland ou como
se diz tradicionalmente em portuguecircs Joatildeo de Garlacircndia (1180-1252) foi um
gramaacutetico e poeta inglecircs do seacuteculo XIII Seus escritos foram importantes no
desenvolvimento do latim medieval Aleacutem da Parisiana Poetria entre seus trabalhos
gramaticais estatildeo Compendium Grammatice (Esboccedilo de Gramaacutetica) Liber de
Constructionibus (Livro sobre Construccedilotildees) e um vocabulaacuterio latino Dois de seus
poemas mais conhecidos satildeo De triumphis ecclesiae (Sobre os triunfos da igreja) e
Epithalamium beatae Mariae Virginis (Canccedilatildeo nupcial da bem aventurada Virgem
Maria)
Ao arquitetar a Rota Vergilii Roda de Virgiacutelio seguindo a doutrina dos
gramaacuteticos latinos jaacute citados Joatildeo de Garlacircndia apresenta-nos a funccedilatildeo social de
cada personagem de Virgiacutelio o pastor o agricultor e o guerreiro
Segue portanto o esquema circular tripartido das trecircs obras virgilianas Cada
um dos aros concecircntricos da roda deixa entrever o personagem emblemaacutetico o
vegetal tiacutepico o ambiente de atuaccedilatildeo das personagens os objetos e os animais
representativos
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Figura 3- A Roda Virgiliana de Garlacircndia
Fonte GARLAND John of 1974 p 40-41
Partindo desta divisatildeo entre as obras na Parisiana Poetria (1974 p38) Joatildeo
de Garlacircndia assim descreve
Item notandum quod in Rota Vergilii quam pre manibus habemus ordinantur tres columpne et in circuitu per multas circumferencias ordinantur tres stili In prima columpna comparationes continentur similitudines et nomina rerum ad humilem stilum pertinencium in secunda ad mediocrem in tercia ad grauem
Nota-se que na Roda de Virgiacutelio que temos em matildeos ordenam-se trecircs colunas e os trecircs estilos no circuito por meio de muitas circunferecircncias Na primeira coluna estatildeo contidas as comparaccedilotildees as imagens e os nomes das coisas pertinentes ao estilo humilde na segunda ao meacutedio na terceira ao grave
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Vemos que o filologista segue a doutrina dos gramaacuteticos latinos apresentando-
nos em seu esquema tripartido as Bucoacutelicas na coluna do estilo singelo humilde as
Geoacutergicas na do meacutedio moderado e a Eneida na do grave grandiloquente
Na Enciclopedia Virgiliana organizada por Franceso della Corte (1996 p586)
encontramos um verbete para Rota Vergilii Neste verbete diz-se que as trecircs obras de
Virgiacutelio indicadas em uma figura circular satildeo exemplos dos trecircs estilos retoacutericos
(simples meacutedio e sublime) Menciona-se ali a documentaccedilatildeo da Poetria de Joatildeo de
Garlacircndia para quem Virgiacutelio apoacutes ter elegido sua mateacuteria poeacutetica tambeacutem elegeu
trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o guerreiro) a partir dos quais criou trecircs
cenaacuterios de atuaccedilatildeo
A Roda de Virgiacutelio segundo o verbete eacute uma emblemaacutetica correspondecircncia
dos trecircs genera dicendi os trecircs estilos defendidos pelos gramaacuteticos antigos e
configura-se como um esquema mnemocircnico que concentra a mateacuteria poeacutetica de cada
obra ou seja um breve panorama da criaccedilatildeo poeacutetica de Virgiacutelio A Roda eacute
interpretada assim como um cacircnone da arte retoacuterica
De acordo com Joatildeo Adolfo Hansen (2013 p26) ldquoStilus nome latino do estilete
com que se escrevia na tabuinha de cera passou a significar metaforicamente a
variaccedilatildeo da elocuccedilatildeo caracteriacutestica de um autor determinado proposto agrave emulaccedilatildeo
como auctoritasrdquo Segundo Hansen o termo lsquoestilorsquo refere-se agraves variaccedilotildees discursivas
das muitas elocuccedilotildees dos gecircneros Teofrasto disciacutepulo de Aristoacuteteles foi o primeiro
a fazer uma divisatildeo tripartida da elocuccedilatildeo dos estilos ndash simples temperado e nobre ndash
que corresponde na visatildeo de Hansen ao estilo humilde meacutedio e sublime
classificaccedilatildeo presente na chamada Rota Vergilii de Joatildeo de Garlacircndia como jaacute citado
anteriormente
Para Hansen (2013 p 26-27) a chamada Rota Vergilii do seacuteculo XIII
prescreve trecircs genera elocutionis que
satildeo exemplificados com as trecircs obras principais do poeta humilis ou humilde (Bucoacutelicas) mediocris ou meacutedio (Geoacutergicas) grauis ou alto (Eneida) Cada um deles corresponde agraves palavras especiacuteficas de lugares comuns as Bucoacutelicas o campo do pastor nomes proacuteprios de pastores as ovelhas as Geoacutergicas o campo do agricultor nomes proacuteprios de agricultores o boi a Eneida o campo do soldado nomes proacuteprios de soldados o cavalo e lugares comuns de objetos artificiais e coisas naturais ndash o cajado do pastor e a faia o arado do lavrador e a macieira a espada do soldado e o carvalho (ou loureiro) e na
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elocuccedilatildeo palavras simples e humildes nas Bucoacutelicas meacutedias e com poucos ornamentos nas Geoacutergicas elevadas e sublimes na Eneida
Ao compreendermos com o auxiacutelio da Semioacutetica os trecircs estilos como efeitos
de sentido engendrados em cada obra pressupomos o nuacutecleo temaacutetico e figurativo
de cada texto e o modo como figuras e temas se encadeiam coerentemente
Pierre Guiraud em A Estiliacutestica (1970) segue o modelo de Garlacircndia ao citar
os trecircs estilos elementares descritos pela Antiga Retoacuterica descrevendo-os e
apresentando-os em cada aro concecircntrico de sua Roda
Assim o camponecircs chama-se Caelius lavra seu campo plantado de aacutervores frutiacuteferas com seu arado puxado por bois mas o capitatildeo chama-se Hector estaacute coroado de louros tem agrave cinta um glaacutedio e percorre o acampamento em seu cavalo A vida do labrego seraacute contada em estilo simples ao passo que se usaratildeo estilo grave ou nobre para contar as faccedilanhas de Heitor (GUIRAUD 1970 p 27 grifos do autor)
Ao retomar a Roda de Garlacircndia Guiraud descreve trecircs diferentes contextos
de atuaccedilatildeo destacando as principais caracteriacutesticas de cada um deles Pode-se
compreender que os elementos por ele citados apesar da oscilaccedilatildeo possiacutevel dos seus
significados estatildeo articuladas no interior de cada texto remetendo-nos a diferentes
efeitos de sentido seja o simples (o singelo) o meacutedio ou o grandiloquente
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Figura 4 - A Roda de Virgiacutelio
Fonte GUIRAUD Pierre 1970 p 26
Como se lecirc no esquema circular tripartido para as Bucoacutelicas tem-se o Humilis
Stylus o estilo singelo e seu personagem representativo eacute o pastor otiosus o pastor
despreocupado Entre os nomes de pastores mais conhecidos estatildeo Tityrus e
Melibœus (cf Buc I) dos animais que figuram a ambientaccedilatildeo campestre destacam-
se as ovelhas (ovis) aleacutem disso como objetos representativos do pastor encontramos
o cajado (baculus) e a flauta Na descriccedilatildeo da espacialidade destacam-se os prados
(pascua) e a faia (fagus) com suas folhagens hospitaleiras que contribuem para a
descriccedilatildeo do locus amoenus ambientaccedilatildeo proacutepria ao universo bucoacutelico Os
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caracteres bucoacutelicos remetem-nos a assuntos tecircnues e por isso entendemos que
haja um efeito de sentido singelo que perpassa a obra
Para as Geoacutergicas temos o estilo meacutedio mediocrus stylus Como personagem
representativo encontramos o lavrador (agricola) e dentre os animais encontramos o
boi (bos) O arado (aratrum) serve para o cultivo do campo (ager) e na ambientaccedilatildeo
figuram aacutervores frutiacuteferas (pomus) Logo os assuntos satildeo moderados e destinam-se
agraves informaccedilotildees sobre a plantaccedilatildeo e a criaccedilatildeo de animais Entendemos com isso que
o cenaacuterio provoca um efeito de sentido mediano instrutivo
Para a Eneida destaca-se o estilo sublime (gravis stylus) Como personagem
tem-se o soldado vencedor (miles dominans) Entre os animais que aparecem estaacute o
cavalo (equus) A espada (gladius) figura como objeto representativo da personagem
e tanto a cidade (urbs) como a fortaleza de guerra ou o acampamento militar
(castrum) mapeiam o espaccedilo de atuaccedilatildeo Os caracteres eacutepicos destinam-se assim
aos assuntos grandiosos de reis e batalhas Logo pensando-se em termos
semioacuteticos cria-se um efeito de sentido grandiloquente
Eacute importante lembrar que a Roda natildeo esgota os elementos presentes nas
Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida ela apresenta apenas alguns dos aspectos gerais que
podem aparecer na caracterizaccedilatildeo de cada obra Eacute preciso que o leitor conheccedila o
texto de Virgiacutelio para depreender dessa forma as diferentes caracteriacutesticas bucoacutelicas
didaacuteticas e eacutepicas Entendemos neste trabalho que o esquema tripartido da Roda
serve para nortear a forma como Virgiacutelio valeu-se dos diferentes temas e como
conseguiu registraacute-los em suas obras
Na visatildeo de Guiraud (1970 p 27) ldquoas palavras guardam o reflexo das coisas
que designam ou dos ambientes em que satildeo empregadasrdquo Em se tratando das trecircs
obras de Virgiacutelio os cenaacuterios em contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico apresentam os
temas e figuras que lhe satildeo proacuteprios
As trecircs obras de Virgiacutelio dialogam com os trecircs tipos de estilo descritos pela
Antiga Retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Procuramos
entender esta divisatildeo como um esquema representativo das principais figuras e temas
presentes nas obras de Virgiacutelio Logo os trecircs estilos seratildeo aqui entendidos como
diferentes efeitos de sentido que aparecem na obra virgiliana Demonstraremos
atraveacutes de excertos do texto virgiliano como temas e figuras se comportam em
contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Compreendemos portanto o esquema tripartido
de Joatildeo de Garlacircndia com o auxiacutelio da moderna anaacutelise metodoloacutegica e com isso a
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leitura que se seguiraacute das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida apresentaraacute o estilo
como um efeito de sentido que perpassa as obras
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2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente
Estilo eacute efeito de individuaccedilatildeo dado por uma totalidade de discursos enunciados
Norma Discini 2009 p 27
Por meio da linguagem o emissor eacute capaz de expressar seus sentimentos
emoccedilotildees e modos de ser aleacutem de influenciar o seu receptor (o ouvinte ou leitor)
provocando assim uma determinada impressatildeo Foi pensando nisso que os gregos
antigos se valeram de diferentes loacutegicas argumentativas para convencer a plateia
sobre a veracidade de suas ideias Com isso a Greacutecia claacutessica levou a graus de
sutileza a preocupaccedilatildeo com a estrutura do discurso Entre os gregos inclusive foram
criadas disciplinas que melhor ensinassem as artes de domiacutenio da palavra tais como
a eloquecircncia a gramaacutetica e a retoacuterica (CITELLI 2002)
O surgimento da retoacuterica como disciplina especiacutefica contribuiu para uma
reflexatildeo sobre o aspecto discursivo da liacutengua bem como sobre o efeito que ela
provocava no receptor Na Idade Meacutedia a Retoacuterica apareceu no campo religioso pois
era comum os monges discutirem temas dogmaacuteticos com a finalidade de mostrar suas
habilidades argumentativas Na Idade Moderna com o advento do positivismo a
Retoacuterica foi deixada de lado jaacute que o importante passou a ser o conteuacutedo aquilo que
poderia ser comprovado e natildeo mais a expressividade Jaacute na Idade Contemporacircnea
a Retoacuterica retorna em duas grandes vertentes a teoria da argumentaccedilatildeo no discurso
cientiacutefico e a Estiliacutestica nos estudos linguiacutesticos (CITELLI 2002)
Levando em conta as dimensotildees da liacutengua e seu uso Mattoso Cacircmara (1978
p110) em seu Dicionaacuterio de Linguiacutestica e Gramaacutetica faz a seguinte afirmaccedilatildeo acerca
da Estiliacutestica ldquoDisciplina linguiacutestica que estuda a expressatildeo em seu sentido estrito de
expressividade da linguagem isto eacute a sua capacidade de emocionar e sugestionarrdquo
Pensando nessa capacidade de emocionar e sugerir Mattoso Cacircmara (1978
p 7 grifo nosso) define ldquoestilordquo nos seguintes termos
Em sentido lato estilo eacute a maneira tiacutepica pela qual nos exprimimos linguisticamente individualizando-nos em funccedilatildeo da nossa linguagem Para isso fazemos uma aplicaccedilatildeo metoacutedica dos elementos que a liacutengua ministra (Leo Spitzer) procedendo a uma escolha entre as possibilidades de expressatildeo que se apresentam na liacutengua (Marouzeau) Em sentido estrito no entanto essa caracteriacutestica decorre antes de tudo do nosso impulso emotivo e do propoacutesito claro ou subconsciente de sugestionar o proacuteximo
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Com isso podemos pensar em estilo como a individualidade de um discurso
como uma escolha entre os recursos de expressatildeo presentes na liacutengua e como um
efeito de sentido que eacute capaz de sugestionar determinadas impressotildees
Ao entendermos que um efeito de sentido soacute pode ser depreendido a partir de
uma rede coerente de figuras no interior do discurso concluiacutemos que toda trama de
figuras presente em um texto alicerccedila os significados ali tecidos Para depreendermos
portanto o efeito sugerido por determinada obra literaacuteria por exemplo devemos
adentrar a sua dimensatildeo temaacutetica e figurativa a fim de compreendermos a dominacircncia
dos elementos abstratos e concretos presentes no discurso
Como afirma Compagnon (2014 p164) a palavra estilo natildeo tem origem em
vocabulaacuterio especializado Aleacutem disso natildeo eacute um termo reservado apenas agrave literatura
e agrave liacutengua A ideia de estilo para Compagnon abrange numerosas aacutereas da atividade
humana Estilo denota a individualidade a singularidade de uma obra a necessidade
de uma escritura um gecircnero um periacuteodo ou um arsenal de procedimentos
expressivos de recursos a escolher Logo os aspectos da noccedilatildeo de estilo tanto
verbal como natildeo verbal hoje satildeo muito numerosos O estilo eacute citado por Compagnon
como norma pensando-se que o bom estilo eacute aquele que deve ser imitado o cacircnone
Aleacutem disso o estilo frequentemente aparece segundo ele como ornamento Essa
concepccedilatildeo eacute evidente na retoacuterica em que existem duas partes relacionadas agraves ideias
(invenccedilatildeo e disposiccedilatildeo) e uma terceira relativa agrave expressatildeo atraveacutes das palavras
(elocuccedilatildeo) Compagnon tambeacutem menciona o estilo no sentido de desvio pensando-
se na variaccedilatildeo estiliacutestica no desvio da liacutengua em relaccedilatildeo ao seu uso corrente na
substituiccedilatildeo de uma palavra por outra que oferece agrave elocuccedilatildeo uma forma mais
elevada uma marca diferenciada Tem-se assim de um lado uma elocuccedilatildeo clara ou
baixa e de outro uma elocuccedilatildeo elegante
Para Compagnon (2014 p 166) o ornamento e o desvio satildeo inseparaacuteveis da
noccedilatildeo de estilo Desde Aristoacuteteles entende-se o estilo como um ornamento formal
definido pela sua marca diferenciada em relaccedilatildeo ao uso comum da linguagem
Compagnon traz ainda a noccedilatildeo de estilo atrelada agrave ideia de gecircnero ou tipo
Para o criacutetico segundo a antiga retoacuterica o estilo enquanto escolha entre meios
expressivos estava ligado a noccedilatildeo de conveniecircncia jaacute que natildeo bastava possuir a
mateacuteria do discurso era preciso aleacutem disso falar segundo a necessidade da situaccedilatildeo
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O estilo dessa forma designava a propriedade do discurso a adaptaccedilatildeo da
expressatildeo a seus fins
Compagnon (2014 p 167) diz que
Os tratados de retoacuterica distinguiam tradicionalmente nem mais nem menos trecircs tipos de estilo o stylus humilis (simples) o stylus mediocris (moderado) e o stylus grauis (elevado ou sublime) Ciacutecero no Orator associava esses trecircs estilos agraves trecircs escolas de eloquecircncia (o asiatismo que se caracterizava pela abundacircncia ou empolaccedilatildeo o aticismo pelo gosto seguro e o gecircnero roacutedio gecircnero intermediaacuterio) Na Idade Meacutedia Diomedes identificou esses trecircs estilos aos grandes gecircneros depois Donato em seu comentaacuterio de Virgiacutelio relacionou-os aos temas das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida isto eacute agrave poesia pastoril agrave poesia didaacutetica e agrave epopeia Essa tipologia dos trecircs tipos de estilo difundida desde entatildeo com o nome Rota Vergilii ldquoRoda de Virgiacuteliordquo gozou de uma estabilidade de mais de mil anos Ela corresponde a uma hierarquia (familiar meacutedia nobre) que engloba o fundo a expressatildeo e a composiccedilatildeo Montaigne vai transgredi-la deliberadamente escrevendo sobre assuntos ldquomediacuteocresrdquo e eventualmente ldquosublimesrdquo no estilo ldquococircmico e privadordquo das letras e da conversaccedilatildeo Ora os trecircs tipos de estilo satildeo igualmente conhecidos sob o nome de genera dicendi assim eacute a noccedilatildeo de estilo que se acha na origem da noccedilatildeo de gecircnero ou mais exatamente eacute atraveacutes da noccedilatildeo de estilo (e a teoria dos trecircs estilos classifica os discursos e os textos) que as diferenccedilas geneacutericas foram tratadas por muito tempo
Pensando em estilo por meio da narratividade e do discurso Norma Discini em
sua obra O estilo nos textos (2009 p29) afirma
O estilo tambeacutem decorre de uma leitura homogeneizadora do mundo inerente ao efeito de individuaccedilatildeo de uma totalidade de discursos enunciados Tal leitura eacute identificaacutevel na anaacutelise de um estilo por meio da observaccedilatildeo do modo recorrente da referencializaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo no enunciado o que por sua vez supotildee uma unidade de avaliaccedilotildees e interpretaccedilotildees
Logo a leitura de um determinado estilo deve ser buscada na totalidade
enunciada da qual se depreende o ator da enunciaccedilatildeo o espaccedilo de atuaccedilatildeo e
consequentemente o efeito engendrado Para Discini (2009 p 30) ldquoestilo eacute corpo eacute
voz eacute caraacuteter de uma totalidaderdquo e portanto traz consigo um efeito de individualidade
que permite a construccedilatildeo de um cenaacuterio representativo em que figuram o ator a accedilatildeo
e o espaccedilo de atuaccedilatildeo Discini (2009) assim parte do princiacutepio de que o estilo eacute efeito
de sentido e portanto uma construccedilatildeo do discurso Segundo o pensamento da
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semioticista o efeito eacute determinado pela recorrecircncia de procedimentos na construccedilatildeo
do sentido o que deixa entrever do ponto de vista da produccedilatildeo do discurso como o
ator a accedilatildeo e o espaccedilo de atuaccedilatildeo satildeo tematizados e figurativizados
Os efeitos de sentido satildeo reveladores das intencionalidades presentes no
discurso Em virtude da presenccedila de determinados efeitos de sentido as figuras
presentes em um texto coadunam-se para concretizar sentidos especiacuteficos O efeito
de sentido portanto pode ser obtido atraveacutes de estrateacutegias discursivas como por
exemplo a referecircncia a pessoas a objetos a lugares e a caracteriacutesticas individuais
das personagens Estas estrateacutegias contribuem para a construccedilatildeo de diferentes
cenaacuterios que sugestionam efeitos especiacuteficos
Pensando-se nas trecircs obras de Virgiacutelio coacuterpus do nosso trabalho acreditamos
que a Roda de Virgiacutelio apresenta a partir dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente
os toacutepicos caracteriacutesticos de cada obra ou em termos semioacuteticos as principais
figuras e temas que caracterizam os trecircs cenaacuterios criados por Virgiacutelio
Ao entendermos o estilo como um fato diferencial e como um efeito de
individualidade que daacute voz e imprime uma singularidade ao discurso enunciado
podemos compreender como os diferentes estilos expostos pelos tratadistas antigos
podem ser lidos hoje a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica Para relembrar
dentre os antigos as obras eram classificadas a partir de trecircs tipos de elocuccedilatildeo a
tecircnue a moderada e a vigorosa que definiam respectivamente trecircs tipos de estilo o
singelo o meacutedio e o grandiloquente Virgiacutelio eacute conhecido por compor todos os trecircs
Nas Bucoacutelicas encontramos o humilde (singelo) nas Geoacutergicas o meacutedio e na Eneida
o grandiloquente A Roda de Virgiacutelio como jaacute citamos anteriormente eacute uma
classificaccedilatildeo medieval que mapeia portanto os trecircs tipos de estilo da Antiga Retoacuterica
deixando entrever os principais elementos dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por
Virgiacutelio Cabe-nos aqui avaliar como esses estilos satildeo engendrados em cada obra
deixando entrever efeitos de individuaccedilatildeo que lhe satildeo proacuteprios
No iniacutecio da primeira Bucoacutelica de Virgiacutelio Melibeu um pastor de gado fala a
Tiacutetiro outro pastor sobre o confisco de suas terras e sobre o fato de o amigo que
descansa agrave sombra de uma faia ter conseguido conservar as suas por ajuda de um
benfeitor
(Buc I hex 1-10) Meliboeus
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Tityre tu patulae recubans sub tegmine fagi siluestrem tenui Musam meditaris auena nos patriae finis et dulcia linquimus arua nos patriam fugimus tu Tityre lentus in umbra formosam resonare doces Amaryllida siluas
Tityrus
O Meliboee deus nobis haec otia fecit namque erit ille mihi semper deus illius aram saepe tener nostris ab ouilibus imbuet agnus ille meas errare boues ut cernis et ipsum ludere quae uellem calamo permisit agresti
Melibeu
Oacute Tiacutetiro tu reclinado agrave sombra de uma copada faia contemplas a musa silvestre na tecircnue flauta noacutes deixamos os limites da paacutetria e os doces campos da paacutetria noacutes fugimos tu oacute Tiacutetiro deitado agrave sombra ensinas os bosques a ressoar o nome da formosa Amariacutelis
Tiacutetiro
Oacute Melibeu um deus nos proporcionou este oacutecio De fato ele seraacute sempre um deus para mim seu altar sempre embeberaacute um tenro cordeiro de nossos apriscos Ele permitiu como vecircs que minhas vacas vagueassem e que eu tocasse na flauta agreste o que quisesse
A palavra bucoacutelica etimologicamente vem de boukolikaacute que em grego quer
dizer ldquocantos de boiadeirosrdquo Este era o nome dado agraves composiccedilotildees em que o
protagonista era o boieiro ou o vaqueiro A princiacutepio a composiccedilatildeo bucoacutelica
compreenderia como adverte Manuel de Paiva Boleacuteo (1936 p 16) uma forma de
poesia em que o boieiro ou vaqueiro seria o protagonista Nesse gecircnero figuram os
guardadores de gado os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas
sempre inseridos em um cenaacuterio ruacutestico campesino Fraguier (apud BOLEacuteO 1936 p
17) um dos teoacutericos sobre a poesia pastoril declara que os pastores satildeo homens do
campo que vivem singelamente que estatildeo sempre acompanhados de seus cajados e
rebanhos e que no momento de oacutecio ocupam-se de cantigas inocentes Com o
tempo os termos pastoral e pastoralismo tambeacutem passaram a designar as
composiccedilotildees que retratavam o pastor de cabras ou de ovelhas e por isso os termos
satildeo vistos como sinocircnimos de bucolismo O principal como menciona Boleacuteo (1936 p
18) eacute que esse tipo de composiccedilatildeo tenha uma essecircncia ou expressatildeo pastoril A
escolha do pastor como protagonista da cena bucoacutelica se deve ao fato de que cabe
ao pastor em seu momento de oacutecio os cantares singelos que expressam uma vida
essencialmente campestre
38
O efeito de sentido singelo humilde estaacute presente neste excerto da primeira
bucoacutelica Vale destacar do seguinte excerto a expressatildeo ldquosub tegmine fagirdquo (agrave sombra
de uma copada faia) pois se refere ao costume que os pastores tecircm de nas eacutepocas
quentes protegerem-se do sol debaixo das aacutervores junto com os rebanhos O estilo
singelo eacute marcado dessa forma pela presenccedila dos pastores Tiacutetiro e Melibeu bem
como pela accedilatildeo de Tiacutetiro que se encontra deitado sob agrave sombra de uma frondosa
aacutervore enquanto toca na singela flauta uma muacutesica agreste Em resposta ao amigo
Melibeu Tiacutetiro afirma que pode desfrutar da sombra e do oacutecio enquanto suas vacas
vagueiam graccedilas a um deus que lhe proporcionou essa tranquilidade A temaacutetica
recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico diz respeito ao oacutecio dos pastores e estaacute
atrelada ao prazer do canto e ao locus amoenus lugar apraziacutevel em que figuram o
som da flauta as ovelhas cabras e aacutervores com sombras hospitaleiras
Eacute interessante que neste excerto da primeira bucoacutelica apareccedila na fala do
pastor Melibeu uma temaacutetica aparentemente contraacuteria agrave ideia de um lugar apraziacutevel
que eacute proposto pela poesia bucoacutelica Enquanto o pastor Tiacutetiro desfruta de um cenaacuterio
ameno Melibeu afirma que deixou os limites da paacutetria e os doces campos deixando
entrever que natildeo teve a mesma sorte que o feliz amigo Embora apareccedila uma temaacutetica
um pouco contraacuteria ao contexto singelo proposto pela poesia bucoacutelica devemos levar
em conta que toda depreensatildeo temaacutetica soacute eacute possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre as
figuras que se articulam e se encadeiam no interior do discurso formando uma rede
Com isso se pensarmos na trama figurativa de todo o poema bem como na
dominacircncia dos elementos notadamente bucoacutelicos podemos afirmar que o efeito
sugerido pelo contexto eacute predominantemente singelo
Logo observa-se que em um texto as muacuteltiplas significaccedilotildees de uma
determinada figura estatildeo sob o controle de um contexto em que se encaixam com
coerecircncia apenas algumas dessas possibilidades significativas
Pensando-se na totalidade discursiva foram destacados aqui os elementos que
datildeo corporalidade agrave voz simples do discurso bucoacutelico e que satildeo capazes de engendrar
a accedilatildeo dos atores bem como caracterizar o espaccedilo de atuaccedilatildeo das personagens O
efeito de individuaccedilatildeo pretendido eacute o humilde que se corporifica nas falas das
personagens bem como na espacialidade descrita
Com efeito o cenaacuterio presente na poesia pastoril difere do cenaacuterio encontrado
na poesia eacutepica Como observa Legrand (apud BOLEacuteO 1936 p 54-55) o ambiente
campestre pode contemplar um rochedo a espessura verde de um pequeno bosque
39
uma fonte pinheiros olmos choupos carvalhos aves insetos etc Estas seratildeo
portanto figuras recorrentes na poesia de temaacutetica pastoril Mas eacute importante destacar
o modo como essas figuras se organizam e o modo como particularizam os temas que
abrangem a simplicidade e o viver ruacutestico do campo
Apoacutes a coleccedilatildeo de dez poemas de temaacutetica bucoacutelica Virgiacutelio compocircs as
Geoacutergicas obra classificada tradicionalmente como didaacutetica Mas ao compor um
poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo quis transmitir apenas conhecimentos
teacutecnicos sobre os trabalhos do campo tais como o tempo propiacutecio para realizar o
plantio e a colheita ou os procedimentos adequados para se castrar as colmeias Aliaacutes
se os criacuteticos da obra virgiliana se fixassem apenas nesse aspecto temaacutetico a obra
seria classificada como um tratado teacutecnico de agronomia todavia as Geoacutergicas
representam muito mais do que um simples compecircndio de aplicaccedilatildeo praacutetica sobre
meacutetodos a serem seguidos na agricultura jaacute que da totalidade de preceitos uacuteteis e
praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas aqueles que convecircm
agrave finalidade artiacutestica e poeacutetica
De acordo com Trevisam (2014 p 30) a palavra ldquodidaacuteticordquo remonta ao verbo
grego didaacutesco (lat doceo de mesma raiz indo-europeia) cujos sentidos oferecidos
em dicionaacuterio especializado incluem ldquoensinarrdquo e ldquoinstruirrdquo Assim de iniacutecio podemos
dizer que todo poema didaacutetico se compromete essencialmente com a instruccedilatildeo do
seu puacuteblico Os quatro cantos das Geoacutergicas satildeo organizados a partir de diferentes
temaacuteticas No primeiro livro fala-se da lavoura no segundo da arboricultura
sobretudo a viticultura no terceiro da pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no
quarto da apicultura como assim descreve Virgiacutelio no iniacutecio do Canto I
(Geo Canto I hex 1-5)
Quid faciat laetas segetes quo sidere terram uertere Maecenas ulmisque adiungere uitis conueniat quae cura boum qui cultus habendo sit pecori apibus quanta experientia parcis hinc canere incipiam
Agora comeccedilarei a celebrar o que faz as colheitas feacuterteis com que astros Mecenas conveacutem arar a terra e unir as videiras aos olmeiros que cuidados aos bois que conduta seguir para que seja mantido o rebanho quanta experiecircncia para as parcas abelhas
As Geoacutergicas apresentam um caraacuteter instrutivo proacuteprio do gecircnero da poesia
didaacutetica e empregam uma gama variada de modos discursivos tais como exposiccedilatildeo
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descriccedilatildeo narraccedilatildeo inserccedilatildeo de episoacutedios mitoloacutegicos faacutebulas etc aleacutem de contar
com a presenccedila de uma voz didaacutetica que se coloca como magister para ditar os
conhecimentos relativos agrave agricultura (TREVISAM 2014)
Pensando-se nessa temaacutetica de caraacuteter instrutivo os tratadistas antigos
nomearam para as Geoacutergicas o estilo meacutedio que eacute destinado a assuntos moderados
Logo o efeito de sentido mediano apoia-se dessa forma no conjunto de temas e
figuras utilizados Destacam-se alguns exemplos
(Geo I 176-177)
Possum multa tibi ueterum praecepta referre ni refugis tenuisque piget cognoscere curas
Posso contar-te muitos preceitos dos antigos se natildeo te esquivas nem te daacute fastio em conhecer pequenos cuidados
Nestes dois hexacircmetros antes de introduzir o tema dos cereais a voz poeacutetica
pede licenccedila para tratar de assuntos considerados menores e ainda no mesmo canto
essa voz continua a prever que se poderaacute achar despreziacutevel o toacutepico do cultivo da
lentilha da Peluacutesia
(Geo I 227-230)
Si uero uiciamque seres uilemque phaselum nec Pelusiacae curam aspernabere lentis haud obscura cadens mittet tibi signa Bootes incipe et ad medias sementem extende pruinas
Se plantares a ervilha e o humilde feijatildeo e natildeo desprezares cuidar da lentilha da Peluacutesia6 o Boieiro7 ao se pocircr dar-te-aacute sinais bem claros
comeccedila e prolonga a semeadura ateacute o meio das geadas Sobre o Canto I das Geoacutergicas aliaacutes vale destacar as palavras de Trevisam
(2014 p 190-191)
O livro I das Geoacutergicas virgilianas descortina ao leitor o espetaacuteculo da luta humana pela sobrevivecircncia diaacuteria fruto do trabalho de nossas matildeos segundo descrito pelo poeta eacute essa a parcela da obra em que se concentram preceitos didaacuteticos em nexo com o plantio dos campos cerealistas donde nos vem o patildeo siacutembolo por excelecircncia da vida material civilizada Nesse contexto como muitas e por vezes
6 Peluacutesio ou Boca Peluacutesia cidade antiga do baixo Egito 7 Boieiro uma constelaccedilatildeo do hemisfeacuterio celestial norte
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penosas satildeo descritas as vaacuterias operaccedilotildees de cultivo necessaacuterias a exemplo da primeira arada do solo (v 43-46) da escolha das sementes (v 197-200) da feitura de uma eira para debulha das espigas (v 176-186) e da adubaccedilatildeo (v 80)
Com efeito o cenaacuterio presente no Canto I das Geoacutergicas deixa entrever
sobretudo a importacircncia do trabalho e as teacutecnicas de cultivo desde o preparo do solo
ateacute sua adubaccedilatildeo e o iniacutecio do plantio A voz didaacutetica presente no texto coloca-se na
posiccedilatildeo de um magister que presta orientaccedilotildees sobre esse tema O efeito de sentido
engendrado eacute de caraacuteter instrutivo e os assuntos tratados satildeo considerados triviais O
estilo mediano portanto constroacutei-se a partir dessa recorrecircncia temaacutetica e das figuras
que lhe datildeo corporalidade no enunciado
Como marco da literatura latina a Eneida foi escrita a pedido do imperador
Otaviano8 Assim a epopeia de Virgiacutelio busca enaltecer Roma senhora do mundo e
consequentemente engrandecer a figura de Otaviano como princeps O estilo
reconheciacutevel eacute o sublime devido a recorrecircncia de temas e figuras que datildeo ao discurso
o efeito de sentido grandiloquente proacuteprio da eacutepica
(Eneida Canto I ndash hex 1- 11)
Arma uirumque cano Troiae qui primus ab oris Italiam fato profugus Lauinaque uenit litora ndash multum ille et terris iactatus et alto ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram multa quoque et bello passus dum conderet urbem inferretque deos Latio genus unde Latinum Albanique patres atque altae moenia Romae Musa mihi causas memora quo numine laeso quidue dolens regina deum tot uoluere casus insignem pietate uirum tot adire labores impulerit Tantaene animis caelestibus irae
Canto as armas e o varatildeo que impelido pelo destino primeiro veio das praias de Troia ateacute agrave Itaacutelia e ao litoral Laviacutenio ele foi muito perseguido tanto em terra como no mar e pela forccedila dos deuses e pela ira lembrada da cruel Juno ele sofreu muito na guerra ateacute que natildeo fundasse uma cidade e introduzisse os deuses no Laacutecio onde surgiriam a raccedila latina e os chefes Albanos e as muralhas da soberba Roma Oacute musa recorda-me as causas por que a divindade ofendida ou por qual maacutegoa a rainha dos deuses obrigou um varatildeo notaacutevel por
8 Caio Otaacutevio filho de famiacutelia senatorial tornou-se Caio Juacutelio Ceacutesar Otaviano herdeiro legal e poliacutetico de Ceacutesar em 27 aC jaacute firmemente estabelecido como senhor do mundo tornou-se Ceacutesar Augusto (BOWDER 1980 p42)
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sua piedade a correr tantos perigos e a enfrentar tantos trabalhos Por que tanta ira nos espiacuteritos celestes
A eacutepica eacute marcada como se vecirc no pequeno excerto pela figura do heroacutei e suas
aventuras Eneias o ilustre varatildeo cumpre seu destino ao sair das praias de Troia e
chegar ao litoral Laviacutenio na Itaacutelia onde se construiratildeo as muralhas da soberba Roma
A musa a ser lembrada eacute a da poesia eacutepica que inspira temas grandiosos sobre as
aventuras do heroacutei O efeito de individuaccedilatildeo apoia-se dessa forma na recorrecircncia de
figuras que contribuem para a corporalidade do eacutepico Depreende-se o estilo
grandiloquente a partir da imagem construiacuteda do heroacutei bem como por suas accedilotildees
desde que saiu das praias de Troia e deu iniacutecio agrave sua empreitada O estilo marca um
efeito de individualidade que pode ser captado pela recorrecircncia temaacutetica e figurativa
presente no discurso O efeito grandiloquente emerge portanto de um contexto que
lhe daacute corporalidade para existir
Ao falar em estilo falamos portanto em unidade pensando-se na recorrecircncia
temaacutetica e figurativa predominante nos discursos bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Para cada
estilo singelo meacutedio e grandiloquente haacute um efeito de individuaccedilatildeo marcado pela
recorrecircncia de temas e figuras e pelas relaccedilotildees de sentido detectadas que
permanecem no discurso e deixam entrever uma unidade A recorrecircncia de temas e
figuras engendram assim uma previsibilidade e um modo de ser dos textos
Nosso objetivo eacute enfim demonstrar que eacute possiacutevel descrever os trecircs estilos
singelo meacutedio e grandiloquente tendo como apoio teoacuterico a Semioacutetica Greimasiana
Para tanto buscaremos em excertos representativos das trecircs obras de Virgiacutelio a
recorrecircncia temaacutetica e figurativa que imprime assim um modo proacuteprio de dizer
configurando o efeito de individuaccedilatildeo de cada estilo
Em Virgil in the Renaissance Wilson-Okamura (2010 p 90) fala-nos sobre o
mito que cerca a Roda de Virgiacutelio O criacutetico menciona que a Roda tem origem
medieval pois sua expressatildeo se origina no iniacutecio do seacuteculo XIII com Joatildeo de
Garlacircndia mas para o criacutetico embora o termo ldquoRoda de Virgiacuteliordquo seja mencionado em
alguns estudos do Renascimento o uso ou a menccedilatildeo que se faz agrave Roda carece de
precisatildeo sobre o termo Segundo Wilson-Okamura muitos estudiosos escrevem
sobre a Roda como se ela fosse uma progressatildeo de gecircneros comeccedilando com o
gecircnero pastoral (Bucoacutelicas) passando pelo gecircnero didaacutetico (Geoacutergicas) e terminando
com o eacutepico (Eneida) Na opiniatildeo do criacutetico isso faz tanto sentido quanto dizer que
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uma roda de cores comeccedila com o vermelho e termina com o violeta jaacute que por
definiccedilatildeo as rodas natildeo tecircm pontos finais pois trazem uma ideia de continuidade de
um movimento circular ao redor de um eixo Wilson-Okamura (2010 p 91) esclarece-
nos assim que a Roda natildeo diz nada sobre gecircneros nem sobre uma progressatildeo entre
eles Os aros concecircntricos presentes na Roda satildeo organizados de acordo com os
estilos e natildeo de acordo com os gecircneros Aleacutem disso o objetivo da Roda para Wilson-
Okamura natildeo eacute ditar qual gecircnero deve aparecer primeiro mas sim mostrar como os
caracteres satildeo dispostos em diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo por exemplo os poemas
no estilo mediano natildeo devem apresentar espadas ou pastores porque espadas
pertencem ao contexto do estilo grave enquanto os pastores satildeo parte de um cenaacuterio
que eacute proacuteprio do estilo humilde
De acordo com Wilson-Okamura (2010) a Roda de Virgiacutelio natildeo eacute um termo
usado pelos autores no Renascimento pois se trata de uma concepccedilatildeo acerca da
carreira de Virgiacutelio como extensatildeo de todos os niacuteveis de estilo que ecoaram nos
comentaacuterios do Renascimento
Segundo o criacutetico Virgiacutelio criou os seus trecircs trabalhos em um triacuteplice estilo
Para as Bucoacutelicas ele caracteriza as coisas em um estilo delicado registrando o
cenaacuterio com caracteres amenos Nas Geoacutergicas o poeta vale-se de um estilo
mediano utilizando caracteres que registram um cenaacuterio moderado e na Eneida lanccedila
matildeo de caracteres graves para registrar o cenaacuterio das guerras e batalhas O que
define a carreira de Virgiacutelio para Wilson-Okamura (2010) eacute o domiacutenio dos trecircs estilos
pois o que define o sucesso de Virgiacutelio natildeo eacute a sequecircncia de gecircneros mas sim a
representaccedilatildeo que o poeta fez de cada estilo sendo por fim esta forma de
representaccedilatildeo e natildeo os gecircneros o que os poetas e criacuteticos modernos devem apreciar
na carreira de Virgiacutelio
Embora Wilson-Okamura fale de caracteres proacuteprios a cada estilo e natildeo
mencione termos semioacuteticos tais como recorrecircncia temaacutetica e figurativa o que ele
pretendeu destacar sobre os trecircs tipos de estilo vai ao encontro daquilo que
acreditamos o de que satildeo elementos engendrados no discurso e que mantecircm um
caraacuteter de individuaccedilatildeo Quando Wilson-Okamura muito bem destaca os diferentes
contextos de atuaccedilatildeo das personagens ele quer com isso mostrar a coerecircncia de
figuras que satildeo proacuteprias a cada discurso O criacutetico mostra ainda o conteuacutedo da Roda
arranjado verticalmente
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Tabela 1- The spokes of Virgilrsquos Wheel
Lowly (humilis) style Middle (mediocris) style Weighty (grauis) style
Shepherd at ease Farmer Soldier ruler
Tityrus Meliboeus Triptolemus Coelius Hector Ajax
Sheep Cow Horse
Crool Plow Sword
Pasture Field city camp
Beech apple pear Laurel cedar
Fonte Extraiacutedo de Wilson-Okamura 2010 p 91
Com isso Wilson-Okamura demonstra que as colunas da Roda satildeo
organizadas de acordo com os estilos e natildeo de acordo com os gecircneros jaacute que o
objetivo da roda natildeo eacute ditar qual gecircnero deve ser apresentado primeiro mas sim
ensinar o que eacute proacuteprio de cada cenaacuterio de atuaccedilatildeo
Concordamos portanto com o pensamento do criacutetico e destacamos ainda
que os caracteres por ele mencionados devem ser entendidos a partir da Semioacutetica
como figuras que se coadunam para atuaccedilatildeo em cenaacuterios especiacuteficos seja bucoacutelico
didaacutetico ou eacutepico
Embora o esquema circular tripartido de Joatildeo de Garlacircndia tenha recebido o
nome de A Roda de Virgiacutelio muito se tem discutido acerca dos elementos colocados
em seus trecircs aros concecircntricos
Em Literary Names Personal Names in English Literature Alastair Fowler
(2012 p29) discorre acerca dos nomes proacuteprios presentes na Roda de Virgiacutelio Os
nomes citados no estilo grave por exemplo satildeo Hector e Ajax personagens de
Homero (seacutec VIII aC) pois neste estilo cabem nomes lendaacuterios e histoacutericos Por isso
a Eneida a eacutepica virgiliana eacute associada a este estilo9 Enquanto isso Triptolemus e
Coelius (agraves vezes Caelius) nomes referenciados no estilo mediano satildeo nomes
comuns e que portanto de acordo com Fowler assemelham-se ao contexto de um
estilo moderado ainda que os nomes tenham alguma alusatildeo lendaacuteria como no caso
de Triptolemus heroacutei de Elecircusis - regiatildeo da Aacutetica Ocidental na Greacutecia - que foi
9 Aleacutem disso em Virgiacutelio haacute menccedilatildeo a Ajax no Canto I hex 41 e Canto II hex 414 A figura de Heitor (Hector) jaacute aparece em vaacuterios contextos Canto I- hex 99 483 750 Canto II ndash hex 270 275 282 522 Canto III- hex 312 319 343 Canto V- hex 371 Canto VI- hex 166 Canto IX- hex 155 Canto XI- hex 289 Canto XII- hex 440 Aleacutem de Hectoreus em Canto I ndash hex 273 Canto II- hex 543 Canto III- hex 304 488 Canto V- hex 190 634
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agraciado com o dom da agricultura no Hino Homeacuterico a Demeacuteter I10 Diz-se que em
Elecircusis aliaacutes era comum o culto agrave deusa agriacutecola Demeacuteter Triptolemus eacute um nome
portanto relacionado ao contexto da agricultura presente nas Geoacutergicas ainda que
natildeo seja necessariamente uma personagem de Virgiacutelio Em se tratando do estilo
simples seguindo o pensamento de Fowler Tiacutetiro e Melibeu satildeo nomes comuns de
pastores presentes tanto em Teoacutecrito (300-260 aC) poeta grego do Periacuteodo
Heleniacutestico como em Virgiacutelio Fowler aponta assim para o tipo de nomeaccedilatildeo
especiacutefica a partir de cada estilo e seu contexto correspondente o que vai ao encontro
da ideia exposta por Wilson-Okamura a de que os caracteres se moldam a partir de
seu contexto de atuaccedilatildeo
Podemos observar que as obras de Virgiacutelio foram identificadas com os trecircs
tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica A Roda de Virgiacutelio no seacuteculo XIII
mapeando essa identificaccedilatildeo aponta em cada um de seus aros concecircntricos os
caracteres coerentes para cada contexto de atuaccedilatildeo seja ele singelo meacutedio ou
grandiloquente o que deixa entrever que para cada cenaacuterio construiacutedo haacute figuras
especiacuteficas que lhe datildeo corporalidade Com isso entendemos cada estilo como um
efeito de individuaccedilatildeo como uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa depreensiacutevel do
discurso
10 Este eacute um dos quatro hinos homeacutericos mais extensos Satildeo chamados homeacutericos porque pertencem ao gecircnero eacutepico e por apresentarem uma teacutecnica de composiccedilatildeo anaacuteloga agrave obra homeacuterica Na realidade sua autoria eacute desconhecida
46
3 A criacutetica virgiliana
31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida
Na introduccedilatildeo dos seus dois conjuntos de ensaios Vergilrsquos Eclogues e Vergilrsquos
Georgics publicados em 2008 Katharina Volk discorre sobre as diferentes
abordagens acadecircmicas acerca da vida e obra de Virgiacutelio Procuramos destacar aqui
os comentaacuterios que julgamos mais relevantes
Volk (2008) afirma assim que haacute leituras divergentes em relaccedilatildeo agraves trecircs obras
virgilianas e que realizar um panorama geral dos estudos virgilianos eacute uma tarefa
assustadora devido agraves inuacutemeras interpretaccedilotildees No entanto segundo a estudiosa a
discussatildeo da criacutetica virgiliana apesar de divergente e ampla merece destaque Ela
enfatiza entatildeo as abordagens acadecircmicas a partir da deacutecada de 70
Segundo Volk o estudo das Bucoacutelicas e das Geoacutergicas de Virgiacutelio ficaram um
bom tempo agrave margem dos estudos sobre Eneida pois eram obras citadas como
exemplo de menor gecircnero e fruto do trabalho de um poeta jovem As Bucoacutelicas
frequentemente eram citadas como um livro de preparaccedilatildeo para a grande eacutepica a
obra-prima em que a vida e o trabalho de Virgiacutelio alcanccedilaram segundo a criacutetica
tradicional o seu aacutepice Embora o gecircnero bucoacutelico tenha usufruiacutedo de acordo com
Volk periacuteodos de grande popularidade em vaacuterios pontos da histoacuteria da literatura
ocidental os poemas pastoris de Virgiacutelio eram estudados menos frequentemente que
a Eneida e segundo a especialista as publicaccedilotildees sobre a eacutepica virgiliana
ultrapassavam de longe os primeiros poemas Para Volk isso natildeo quer dizer no
entanto que natildeo se tenha nas Bucoacutelicas e Geoacutergicas um trabalho consideraacutevel Ela
destaca portanto os uacuteltimos trinta anos ou mais que foram contemplados com
publicaccedilotildees de grande criacutetica Dentre as publicaccedilotildees de destaque Volk menciona
Coleman (1977) Clausen (1994) e numerosos livros e artigos representativos de
ambas as obras virgilianas
O aumento de publicaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves duas obras consideradas ldquomenoresrdquo
de Virgiacutelio deve-se de acordo com Volk ao desenvolvimento e avanccedilo dos estudos
da Literatura Latina no final do seacuteculo XX e iniacutecio do seacuteculo XXI Hoje apesar da
multiplicidade de abordagens dificultar uma visatildeo geral acerca da obra virgiliana
parece possiacutevel segundo a especialista discernir ao menos duas principais vertentes
criacuteticas na obra do poeta mantuano
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A primeira vertente envolve as leituras que para Volk podem ser chamadas de
ldquoideoloacutegicasrdquo Satildeo as abordagens acadecircmicas baseadas na ideia de que os poemas
de Virgiacutelio foram concebidos para transmitir uma mensagem que o criacutetico de uma
certa forma esforccedila-se para descobrir Nesta mensagem subliminar pode-se
considerar a situaccedilatildeo social e poliacutetica em que a obra foi concebida ou avaliaccedilotildees
criacuteticas acerca da posiccedilatildeo social e poliacutetica de Virgiacutelio Ao poeta assim eacute creditada
uma visatildeo positiva ou otimista natildeo soacute para a vida pastoril apresentada em seu poema
como tambeacutem para a ascendecircncia de Otaviano
A partir da deacutecada de 70 os criacuteticos passaram a ver certa ambivalecircncia e ateacute
certo pessimismo nas Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida demonstrando que o poeta natildeo
era totalmente a favor da poliacutetica de Otaviano Segundo Virgiacutenia Soares (1984 p 173)
A criacutetica respeitante agrave obra de Virgiacutelio conta cerca de dois mil anos Cada eacutepoca procurou na Eneida o poema que se ajustava agraves suas vivecircncias Por isso tecircm sido tantas e tatildeo diferentes contraditoacuterias mesmo as abordagens interpretativas do poema Eacutepocas houve confiantes no futuro e na funccedilatildeo regeneradora de um estado providencial e organizado que na Eneida viram o poema da glorificaccedilatildeo de Augusto e da missatildeo civilizadora de Roma
Assim as leituras de vertente ldquoideoloacutegicardquo concentraram-se em determinar as
nuances ldquootimistasrdquo ou ldquopessimistasrdquo das obras de Virgiacutelio demonstrando se os
escritos do poeta eram coerentes ou natildeo com o programa poliacutetico de Otaviano No
entanto segundo Volk houve uma reavaliaccedilatildeo dos estudos virgilianos nos uacuteltimos
anos e os especialistas inclinaram-se mais a uma interpretaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a
Virgiacutelio e a poliacutetica de sua eacutepoca
A segunda vertente por fim envolve as ldquoleituras literaacuteriasrdquo das obras virgilianas
Finalmente para Volk as criacuteticas mais atuais passaram a dar enfoque agraves questotildees
de poeacutetica ou seja em como Virgiacutelio compromete-se a inscrever seus proacuteprios
esforccedilos dentro de uma particular tradiccedilatildeo literaacuteria Nesta abordagem estatildeo presentes
as discussotildees sobre os gecircneros dos poemas a intertextualidade e as diferentes
formas como cada obra se realiza
No entendimento de Volk as duas vertentes podem se complementar Enquanto
as leituras ideoloacutegicas preocupam-se com o papel do poeta e sua visatildeo poliacutetica a
vertente literaacuteria tem muito a dizer sobre os poemas em si Mas segundo ela muito
se tem a dizer ainda sobre a poesia de Virgiacutelio
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Nos anos 70 houve um suacutebito florescimento dos estudos das Bucoacutelicas de
Virgiacutelio especialmente no mundo da Liacutengua Inglesa em que Putnam (1970) publicou
a primeira monografia e logo foi seguido por Berg (1974) Leach (1974) Van Sickle
(1978) e Alpers (1979) assim como a criacutetica de Coleman em 1977 Alguns fatores
contribuiacuteram segundo Volk para esse florescimento primeiro os estudos literaacuterios
assistiram a um aumento consideraacutevel de novas composiccedilotildees da poesia pastoril
(bucoacutelica) o que fez Eleanor W Leach a proclamar no prefaacutecio do seu livro em 1974
uma nova idade de ouro da criacutetica da poesia bucoacutelica segundo inspirados pelo New
Criticism os estudiosos encontraram nos enigmaacuteticos e complexos poemas pastoris
de Virgiacutelio um terreno feacutertil para interpretaccedilotildees simboacutelicas terceiro a leitura
pessimista que se fez da eacutepica virgiliana em relaccedilatildeo agrave poliacutetica de Otaviano na deacutecada
de 60 ampliou o interesse dos estudiosos pelas outras duas obras
Volk cita algumas leituras pessimistas das Bucoacutelicas e entre elas estatildeo
Putnam (1970) Leach (1974) e Segal (1981) com uma coleccedilatildeo de artigos bucoacutelicos
de Teoacutecrito e Virgiacutelio publicados originalmente entre 1965 e 1977 aleacutem de Boyle
(1986) e MOLee (1989) entre outros Estas obras segundo a especialista refletem
uma visatildeo das obras pastoris em geral e das Bucoacutelicas de Virgiacutelio trazem a ideia de
uma fantasia evasiva rural
A ideia de que Virgiacutelio nas Bucoacutelicas tenha criado uma espeacutecie de ldquopaisagem
espiritualrdquo que ele chamou de Arcaacutedia foi formulada por Bruno Snell em 1945 o que
influenciou muitos estudos Entre os pesquisadores representativos desse tipo de
visatildeo utoacutepica das Bucoacutelicas estaacute Friedrick Klinger que em 1967 publicou uma
monografia com seus estudos e reflexotildees acerca da obra de Virgiacutelio
Nas interpretaccedilotildees pessimistas no entanto as Bucoacutelicas nunca apresentam
um mundo bucoacutelico ideal mas sempre um que estaacute em perigo foi perdido ou estaacute
sendo abandonado Os criacuteticos aos poucos foram desconstruindo a visatildeo de Snell
chamando a atenccedilatildeo para contradiccedilotildees poliacuteticas apresentadas nos poemas pastoris
de Virgiacutelio Um latinista alematildeo Ernst Schmidit todavia ataca a Arcaacutedia por um
acircngulo diferente Na visatildeo de Schmidit qualquer leitura ideoloacutegica dos poemas de
Virgiacutelio baseava-se em mal-entendidos As Bucoacutelicas segundo ele natildeo satildeo
panegiacutericos poliacuteticos louvor do campo ou algum estado ideal de vida humana tal
como a Idade de Ouro ou a Arcaacutedia para Schmidit os poemas satildeo sobre a proacutepria
poesia
49
Muitas das publicaccedilotildees acadecircmicas das uacuteltimas deacutecadas segundo Volk
preocupavam-se mais com as Bucoacutelicas como poesia ou com o que a obra tem a dizer
sobre poesia do que o posicionamento poliacutetico do poeta Dentre as anaacutelises
formalistas sobre o estilo e a linguagem nas bucoacutelicas de Virgiacutelio incluem-se Lipka
(2001) os ensaios de RGNisbet (1991) e Rumpf (1999) Sobre o jogo etimoloacutegico
das Bucoacutelicas destaca-se ainda o trabalho de OrsquoHara (1996) Para Volk questotildees
acerca do gecircnero bucoacutelico tecircm sido sempre um foco de reflexatildeo nos estudos das
Bucoacutelicas Hubbard (1998 p18) insistindo na construccedilatildeo intertextual do poema
pastoril propocircs que o gecircnero bucoacutelico fosse constituiacutedo pelo posicionamento de cada
poeta diante de seu antecessor Aleacutem disso Volk tambeacutem destaca o estudo de Breed
(2006) que examina nas Bucoacutelicas a suposta cultura da oralidade dos seus pastores
protagonistas Dentre as obras de criacutetica sobre o gecircnero bucoacutelico tambeacutem
sublinhamos o estudo de Joatildeo Pedro Mendes em Construccedilatildeo e arte nas Bucoacutelicas de
Virgiacutelio assim como o trabalho de Alexandre Hasegawa em Os limites do gecircnero
bucoacutelico em Vergiacutelio
No que diz respeito agrave criacutetica das Geoacutergicas destacamos o pensamento de Ruy
Mayer (1948 p 15) que afirma que a exaltaccedilatildeo do trabalho e da prece eacute a essecircncia
filosoacutefica das Geoacutergicas jaacute que a obra
relaciona-se com um objetivo social ou antes poliacutetico restaurar o prestiacutegio da vida agriacutecola um dos pilares da ordem nova que Augusto se propunha a instituir e com um objetivo teacutecnico ensinar os bons preceitos agronocircmicos os meacutetodos racionais da cultura e da exploraccedilatildeo pecuaacuteria envolvendo a doutrina na delicada trama da poesia o meio de transmissatildeo mais apropriado para o gosto e para os usos da eacutepoca
Sublinha-se tambeacutem o pensamento de Santos (2007 p 17) que atesta que ao
cantar a terra e os encantos da vida rural Virgiacutelio talvez pudesse incentivar a volta ao
campo de milhares de camponeses que estavam desempregados na cidade e
consequentemente poder-se-ia ldquorestaurar a agricultura itaacutelica que se encontrava em
plano inferior devido agraves guerras civisrdquo
Mecenas o patrono das letras foi um auxiliar uacutetil e leal de Otaviano Atuando
como intermediaacuterio em vaacuterios assuntos ele foi encarregado da administraccedilatildeo de
Roma Segundo a tradiccedilatildeo foi ele quem sugeriu o poema das Geoacutergicas a Virgiacutelio
pois como afirma-nos Santos (2007 p18) isso corresponderia ao programa poliacutetico
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de Otaviano o retorno agrave agricultura Na eacutepoca a celebraccedilatildeo do trabalho agriacutecola e do
ofiacutecio do lavrador eram bastante significativos jaacute que a agricultura era uma das bases
da grandeza de Roma pois ocupava importante posiccedilatildeo na economia do Oriente e
era uma fonte de riqueza importante para os conquistadores
Para La Penna (1988 p71-72 apud Santos 2007 p18) seria um erro supor
que a obra de Virgiacutelio serviria como guia para os agricultores da Itaacutelia pois o que se
desejava na verdade era um impulso ideal que favorecesse um retorno agrave terra com
confianccedila no trabalho e no Estado romano-itaacutelico Grimal (1992 p123) afirma ainda
que Mecenas eacute apenas o vento que empurra a embarcaccedilatildeo natildeo sendo portanto seu
piloto nem comandante O patrono das letras assim eacute destacado neste pequeno
excerto das Geoacutergicas (Canto II 39-41)
Tuque ades inceptumque una decurre laborem o decus o famae merito pars maxima nostrae Maecenas pelagoque uolans da uela patenti
E tu estaacutes presente e percorre o trabalho empreendido oacute honra Mecenas a melhor parte da minha fama com justiccedila voando daacute velas ao extenso mar
Segundo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos Mecenas mobilizava talentos como
Virgiacutelio e Horaacutecio a serviccedilo do regime propondo-lhes alguns temas Para Santos
(2007 p 21) talvez estes poetas ldquotivessem se agrupado ao redor de Mecenas por
encontrarem nele uma concepccedilatildeo de vida e de arte Provavelmente o novo regime
correspondesse agraves suas aspiraccedilotildeesrdquo
Na visatildeo de Ruy Mayer (1948 p19-20) em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo das
Geoacutergicas
eacute provaacutevel que o Poeta independente de qualquer incitamento sentisse a gravidade da decadecircncia agriacutecola da Itaacutelia e considerasse obra de utilidade nacional atrair agrave atividade agraacuteria muitos dos que a haviam deixado Mas como opina Skrine nem os propoacutesitos poliacuteticos de Augusto nem a intenccedilatildeo da iniciativa de Virgiacutelio de acudir ao agricultor romano explicam as Geoacutergicas O que explica esta incomparaacutevel obra de arte eacute o amor de Virgiacutelio pelo seu assunto o seu encanto pela Natureza a sua afeiccedilatildeo pelas fainas do campo a sua ternura pelos animais e pelas plantas tudo enfim quanto Saint-Beauve definiu magistralmente no capiacutetulo do seu ceacutelebre estudo que se intitula De quoi se compose le geacutenie et lrsquoart drsquoum Virgile
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No que concerne agrave Eneida a eacutepica virgiliana tem sido considerada pela tradiccedilatildeo
como um canto aos novos tempos do Impeacuterio jaacute que desde o anuacutencio de sua
concepccedilatildeo Otaviano colocava grandes esperanccedilas em seu projeto
Foi na eacutepoca em que Otaviano foi nomeado Ceacutesar Augusto portanto que os
escritores encontraram o que Leoni (1969 p 65) chama de completa harmonia pois
com Otaviano ao poder Roma entrou numa eacutepoca de paz tatildeo almejada depois das
tormentas das guerras civis Os feitos do imperador bem como sua poliacutetica
equilibrada e pacificadora exerceram influecircncia nas artes e literatura Deve-se
destacar que
A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)
Segundo Funari (2001 p 100)
Virgiacutelio foi o grande poeta eacutepico latino tendo composto na eacutepoca do
imperador Augusto (seacuteculo I aC) a Eneida um poema que contava
as origens heroicas do povo romano descendente dos troianos Na
mesma eacutepoca Tito Liacutevio escrevia uma monumental Histoacuteria de Roma
desde a fundaccedilatildeo ateacute Augusto Em ambos os casos as obras
representavam bem os planos de Augusto para glorificar as origens e
a histoacuteria de expansatildeo e domiacutenio romano do mundo
Virgiacutelio trama portanto em sua eacutepica um conjunto de situaccedilotildees e histoacuterias
remetendo-nos agrave nostalgia de tempos lendaacuterios em Roma Narram-se assim as
aventuras de Eneias heroacutei que possui aleacutem da sua origem humana uma linhagem
divina pois sua matildee eacute Vecircnus a deusa do amor O heroacutei em suas aventuras eacute guiado
pelo fatum (destino) que o leva a experimentar e a enfrentar o que lhe eacute apresentado
ao longo do caminho Sabe-se por fim que
A fundaccedilatildeo da nova estirpe que daraacute origem a Roma e ao Impeacuterio eacute uma missatildeo querida pela providecircncia divina reservada a um heroacutei perfeito ao heroacutei piedoso e paciente que se resigna a perder a esposa na ruiacutena de Troia a renunciar ao amor de Dido a obedecer ponto por
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ponto agraves ordens divinas a fim de ser porta-voz da vontade celeste (PARATORE 1983 p 402)
Desde a saiacuteda de Troia incendiada Eneias jaacute sabe que estaacute destinado a fundar
uma ldquoNova Troiardquo Ele seraacute o responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses
do lar em solo latino Portanto ao longo da narraccedilatildeo o heroacutei tenta fazer cumprir o
seu destino
Dividida em doze cantos a epopeia virgiliana segue o modelo da Iliacuteada e a
Odisseia de Homero Segundo Antonio Medina Rodrigues (2005 p13) embora
Homero tenha sido o modelo os guerreiros da Iliacuteada adotam uma postura narciacutesica
enquanto os guerreiros da Eneida satildeo marcados pela pietas de Eneias
Sobre isso vale aqui destacar o seguinte comentaacuterio de Andreacute Bellesort (1949
p 261 apud THAMOS 2011 p 49 nota 16)
A Eneida natildeo seria o grande poema de Roma e da civilizaccedilatildeo latina se natildeo tivesse um interesse universal Natildeo lhe compreendemos todas as belezas e toda a majestade que nos reportam agraves Antiguidades romanas e ao Impeacuterio mas afora circunstacircncias histoacutericas que poderiacuteamos desconhecer ela eacute uma dessas poucas obras nas quais a menos que a si mesma se renegue a humanidade se reconhece junto com a natureza e em que experimentamos um maravilhoso prazer contemplando o espetaacuteculo de nossas proacuteprias miseacuterias Ela nos oferece com os encantos da mais fina e vigorosa arte emoccedilotildees profundamente humanas
Assim a Eneida eacute ao lado da Iliacuteada e da Odisseia de Homero um dos maiores
eacutepicos da Literatura Universal Soares (1984) nomeia alguns dos estudos sobre a
Eneida The two voices of Virgils Aeneid (A PARRY) Linspiration tragique de
lEneacuteide (W S MAGUINNESS) The pessimism of the eighth Aeneid (CD S
WIESEN) An interpretation of the Aeneid (W CLAUSEN visatildeo pessimista) A study
of Vergils Aeneid (W R JOHNSON) Le poegraveme de linquieacutetude historique (J-P
BRISSON) A outra face de Eneias (W S MEDEIROS) Aeneas desairing (W W
DE GRUMMOND) Para a criacutetica a lista poderia se alongar e ainda assim os criacuteticos
natildeo esgotariam os temas presentes na epopeia latina Segundo a tradiccedilatildeo a eacutepica
virgiliana assim que foi publicada afirmou-se como a mais alta expressatildeo artiacutestica e
cultural que o mundo romano jamais produzira Sobre a poeacutetica de Virgiacutelio na Eneida
destacamos o estudo de Thamos As armas e o varatildeo (2011) Valendo-se dos
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recursos da Poeacutetica o criacutetico analisa a obra de Virgiacutelio do ponto de vista da expressatildeo
buscando o entendimento acerca da vocaccedilatildeo imageacutetica do texto latino
O que pensar portanto desta rede de informaccedilotildees que os bioacutegrafos e
estudiosos de Virgiacutelio reuniram Apesar da curiosidade que a vida e o posicionamento
poliacutetico do poeta possam despertar acreditamos que um estudo sobre a obra de
Virgiacutelio contemplando-se a sua poeacutetica a construccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico
dos textos possa render discussotildees para aleacutem de enigmas e posicionamentos que
satildeo externos ao texto Embora natildeo desmereccedilamos os estudos da vertente ideoloacutegica
valemo-nos daqueles que nos auxiliam a pensar o texto claacutessico do ponto de vista da
expressatildeo contribuindo assim para a nossa leitura semioacutetica das obras virgilianas
32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho
Segundo Andrew Laird (2010 p 138) a partir de meados de 1600 a palavra
italiana para carreira carriera havia se associado a uma vida de trabalho muito antes
do seu equivalente em inglecircs adquirir o mesmo sentido no iniacutecio do seacuteculo XIX De
fato o primeiro uso atestado de carriera estava relacionado agrave carreira literaacuteria No
prefaacutecio do seu Trattato dellarte e dello stile del dialogo (1662) o historiador e poeta
Pietro Sforza Pallavicino expressou os seus agradecimentos ao Bispo de Fermo por
ter encorajado a sua infacircncia na carreira das letras (la mia puerizia nella carriera
delle lettere)
Carriera como o latim via carraria da qual deriva originalmente denotava uma
estrada de carruagem ou faixa para um veiacuteculo com rodas (carrus) Para Laird (2010
p138) este significado acaba por ter uma ligaccedilatildeo feliz com a ideia de carreira literaacuteria
e segundo o criacutetico eacute improvaacutevel que isso seja coincidecircncia jaacute que na Idade Meacutedia
a mais influente carreira literaacuteria de todas foi visualizada como uma roda - a Rota
Vergilii ou Rota Vergiliana (a Roda de Virgiacutelio) Como jaacute mencionado aqui trata-se
de um arranjo das obras de Virgiacutelio pensando-se em seus respectivos temas e estilos
em um diagrama circular que parece ter se desenvolvido a partir do uso de rota como
sineacutedoque para a imagem claacutessica da carruagem das Musas uma imagem mediada
pelos professores da antiguidade tardia Segundo a tradiccedilatildeo quando Virgiacutelio concebe
seu cursus poeacutetico como um triunfo militar na abertura do Canto III das Geoacutergicas ele
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se vecirc como um vencedor coroado com palmas que vai colocar cem carruagens em
movimento Trata-se de uma passagem em que Virgiacutelio reconhece a importacircncia da
cultura grega para a elevaccedilatildeo literaacuteria latina e tambeacutem anuncia a construccedilatildeo de um
templo para Ceacutesar Augusto
(Geo Canto III hex 10-18) primus ego in patriam mecum modo uita supersit Aonio rediens deducam uertice Musas primus Idumaeas referam tibi Mantua palmas et uiridi in campo templum de marmore ponam propter aquam tardis ingens ubi flexibus errat Mincius et tenera praetexit harundine ripas In medio mihi Caesar erit templumque tenebit illi uictor ego et Tyrio conspectus in ostro centum quadriiugos agitabo ad flumina currus
Serei eu o primeiro se a vida me restar a trazer para a minha paacutetria as musas dos cumes Aocircnios11 O primeiro a trazer para ti oacute Macircntua12 as palmas de Idumea13 Em um campo verdejante edificarei um templo de maacutermore proacuteximo agraves aacuteguas na ribeira onde o majestoso Miacutencio14 vagueia em vagarosas curvas e [que ele] adorna com a delicada cana No meio do meu templo estaraacute Ceacutesar o vencedor e eu revestido da puacuterpura de Tiro15 farei correr cem quadrigas pela margem do rio
Essa passagem foi retomada pela criacutetica como uma sugestatildeo de uma eacutepica
futura Como um todo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos tem apontado em suas
composiccedilotildees uma progressatildeo da poesia bucoacutelica para a didaacutetica e depois da didaacutetica
para a eacutepica Como jaacute pontuamos aqui por meio das palavras de Wilson-Okamura
(2010) embora seja apontada na Roda uma ideia de progressatildeo entre os gecircneros
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico a Roda aponta para uma sequecircncia de diferentes estilos
que configuram cenaacuterios particulares a partir de efeitos de individuaccedilatildeo especiacuteficos
que nos remetem portanto ao cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
Segundo Laird (2010 p139) os leitores medievais prontamente assumiram
como haviam feito os antigos bioacutegrafos de Virgiacutelio que o elevado gecircnero poeacutetico da
11 Referente agrave Aocircnia regiatildeo da Beoacutecia na Antiga Greacutecia Virgiacutelio aqui reconhece a importacircncia da cultura grega para a cultura latina 12 Proviacutencia romana da regiatildeo da Lombardia Cidade natal de Virgiacutelio 13 Regiatildeo entre o mar Morto e o golfo de Aqaba 14 Rio da Itaacutelia com 73 km de extensatildeo 15 Diz-se que a puacuterpura de Tiro da regiatildeo feniacutecia era uma tinta natural de coloraccedilatildeo vermelho-puacuterpura extraiacuteda dos caramujos
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epopeia representava o aacutepice da carreira do poeta Essa interpretaccedilatildeo se deve ao fato
de que o estilo grandiloquente presente na eacutepica deixa entrever imagens de um
cenaacuterio em que figuram temas sublimes e com personagens ilustres Todavia vale
destacar que em termos de expressatildeo as trecircs obras virgilianas estatildeo em peacute de
igualdade O que muda eacute o tratamento temaacutetico presente em cada obra e com isso
os efeitos de individuaccedilatildeo de cada discurso que configuram cenaacuterios especiacuteficos de
atuaccedilatildeo
Para Laird (2010 p 146) os antigos podiam perceber uma progressatildeo nas
obras de Virgiacutelio - ou pelo menos um aumento em sua importacircncia - das Bucoacutelicas
para as Geoacutergicas das Geoacutergicas para a Eneida Como jaacute mencionado aqui essa
progressatildeo na verdade pode ser lida como uma continuidade temaacutetica do curso
poeacutetico de Virgiacutelio se pensarmos na Roda como um diagrama circular em que estatildeo
dispostos os diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo nomeados por Virgiacutelio e que sugestionam
diferentes efeitos de sentido seja o singelo o meacutedio e o grandiloquente
Pensando-se na ideia de continuidade temaacutetica no lugar da ideia de
progressatildeo Laird (2010 p 158-159) afirma que considerar todas as composiccedilotildees de
Virgiacutelio como parte de um uacutenico livro eacute audacioso pois equivale a considerar toda a
sua obra como um texto uacutenico16 Mas isso pode natildeo ser injustificado se pensarmos no
sentido esteacutetico e poeacutetico dos textos a sua forma de expressatildeo Haacute nas trecircs obras
uma diferenccedila temaacutetica e notadamente diferentes efeitos de individuaccedilatildeo que
sugerem cenaacuterios especiacuteficos Todavia se considerarmos os termos da expressatildeo
presentes nas trecircs obras podemos afirmar que as Bucoacutelicas Georgicas e Eneida
constituem uma unidade Aleacutem disso a representaccedilatildeo na Rota Virgiliana de cada um
dos poemas de Virgiacutelio como uma parte de um ciacuterculo inteiro trecircs em um poderia ser
um reflexo da ideia de totalidade17
A Rota Virgiliana serviu portanto como ferramenta para retoacutericos e poetas que
procuraram lembrar e replicar os trecircs estilos virgilianos ao mesmo tempo em que
16 Theodorakopoulos (1997) oferece uma leitura do livro de Virgiacutelio como um texto uacutenico William Dominik tambeacutem discute essa ideia no artigo ldquoNatureza escuridatildeo e sombras no supertexto de Virgiacuteliordquo Phaos 9 17 Carruthers (2008) afirma que a lsquoRoda de Virgiacutelio era claramente um diagrama mnemocircnico que se mantinha desde John of Garland aquiacute referenciado como Joatildeo de Garlacircndia sendo provaacutevel que possa ser fisicamente manipulada como sugerem seus ciacuterculos concecircntricos Para Laird (2010 p 158) a figura da retoacuterica rota Virgili pode fornecer a conexatildeo entre a palavra latina rota roda e a frase em inglecircs pela rotardquo
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contribuiu para transmitir uma identidade subjacente agraves obras de Virgiacutelio Mas para
Laird (2010 p 159) a forma circular da Roda natildeo pocircde linearizar as Bucoacutelicas
Geoacutergicas e Eneida em uma sequecircncia temporal
A Roda de Virgiacutelio dessa forma colocou em movimento a carreira literaacuteria do
poeta do Seacuteculo de Ouro da Literatura Latina servindo como veiacuteculo para o
entendimento de suas obras
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4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto
41 Textos temaacuteticos e figurativos
Temos por enquanto de trabalhar no sentido de ver como eacute que essa estruturaccedilatildeo atua () organizando o substrato figurativo a partir do qual o texto entrama molda enforma o
tema ou temas que o discurso potildee em andamento [] Ignaacutecio Assis Silva 1995 p 12
Ao colocar em relevo o texto como um objeto de significaccedilatildeo considerando-o
como um todo de sentido dotado de uma estrutura especiacutefica deve-se colocar em
destaque os procedimentos e mecanismos que satildeo responsaacuteveis por sua organizaccedilatildeo
e tessitura
Embora a Semioacutetica Francesa natildeo ignore que o texto seja um objeto histoacuterico
ela procura estudaacute-lo como objeto de significaccedilatildeo e por isso preocupa-se em estudar
os mecanismos e procedimentos que o estruturam e o tramam como uma totalidade
de sentido
De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (1995 p 165-166)
a palavra texto proveacutem do verbo latino texo is texui textum texere que quer dizer tecer Logo da mesma maneira que um tecido natildeo eacute um amontoado desorganizado de fios o texto natildeo eacute um amontoado de frases nem uma grande frase Tem ele uma estrutura que garante que o sentido seja apreendido em sua globalidade que o significado de cada uma de suas partes dependa do todo
A Semioacutetica Francesa concebe o processo de formaccedilatildeo de um texto como um
percurso gerativo que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto
em um processo de enriquecimento semacircntico Em um primeiro momento a
Semioacutetica examina o plano do conteuacutedo e soacute depois vai destacar as especificidades
da expressatildeo e sua relaccedilatildeo com o significado
Dois satildeo os tipos de texto temaacuteticos e figurativos Os primeiros satildeo compostos
predominantemente de temas termos abstratos enquanto os segundos apresentam
preponderantemente figuras ou seja termos concretos
Entende-se tema e figura como dois mecanismos de atuaccedilatildeo do discurso O
tema que eacute abstrato revela um discurso predominantemente natildeo-figurativo como
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satildeo os textos jornaliacutesticos dissertaccedilotildees etc O objetivo destes textos eacute o de informar
explicar ou ainda catalogar A figura por outro lado parte de um tema abstrato para
concretizaacute-lo e com isso produz um discurso predominantemente figurativo Exemplo
disso satildeo os textos literaacuterios e histoacutericos Tema remete-nos portanto ao que eacute da
ordem do abstrato e figura remete-nos agravequilo que eacute concreto
Os textos predominantemente temaacuteticos (textos jornaliacutesticos acadecircmicos)
procuram explicar classificar e ordenar enquanto os textos predominantemente
figurativos (literaacuterios histoacutericos) tecircm uma funccedilatildeo descritiva narrativa poeacutetica O tema
abstrato eacute um investimento semacircntico de ordem conceitual enquanto a figura
corresponde a tudo que eacute perceptiacutevel no mundo natural
Assim a Semioacutetica Greimasiana oferece modelos para a anaacutelise da
significaccedilatildeo na dimensatildeo do discurso procurando demonstrar como os percursos da
significaccedilatildeo se organizam e se combinam a partir de regras sintaacutexicas e semacircnticas
responsaacuteveis pela coerecircncia de um texto Agrave Semioacutetica cabe avaliar como um texto vai
se tornando mais concreto a partir da instalaccedilatildeo de personagens e a introduccedilatildeo de
iacutendices espaccedilotemporais O conteuacutedo de um texto eacute engendrado por um percurso que
vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto manifestando-se assim
por meio de um plano da expressatildeo
Os textos com funccedilatildeo utilitaacuteria informam convencem explicam e documentam
eles tecircm um compromisso com o conteuacutedo e a informaccedilatildeo Enquanto isso os textos
com funccedilatildeo esteacutetica comprometem-se com a expressatildeo
De acordo com Ignaacutecio Assis Silva (1995 p 44)
a semioacutetica natildeo estaacute preocupada com o sentido que eacute da ordem da evidecircncia com o sentido que estaacute aiacute e que natildeo eacute senatildeo efeito de sentido produto em suma A fim de poder passaacute-lo adiante de poder falar dele eacute preciso ver a produccedilatildeo que engendrou esse efeito de sentido ou o processo criador como prefere dizer Cassirer
Ao leitor atento cabe portanto notar que eacute na relaccedilatildeo entre conteuacutedo e
expressatildeo que satildeo gerados os efeitos estiliacutesticos que determinam os elementos
essenciais de um texto
Procuremos entender no pequeno excerto das Geoacutergicas de Virgiacutelio ldquoCanto IIrdquo
hexacircmetros 315 a 345 os procedimentos de figuraccedilatildeo
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Nec tibi tam prudens quisquam persuadeat auctor tellurem Borea rigidam spirante mouere rura gelu tum claudit hiems nec semine iacto concretam patitur radicem adfigere terrae optima uinetis satio cum uere rubenti candida uenit auis longis inuisa colubris prima uel autumni sub frigora cum rapidus Sol nondum hiemem contingit equis iam praeterit aestas uer adeo frondi nemorum uer utile siluis uere tument terrae et genitalia semina poscunt tum pater omnipotens fecundis imbribus Aether coniugis in gremium laetae descendit et omnis magnus alit magno commixtus corpore fetus auia tum resonant auibus uirgulta canoris et Venerem certis repetunt armenta diebus parturit almus ager Zephyrique tepentibus auris laxant arua sinus superat tener omnibus umor inque nouos soles audent se gramina tuto credere nec metuit surgentis pampinus Austros aut actum caelo magnis Aquilonibus imbrem sed trudit gemmas et frondes explicat omnis non alios prima crescentis origine mundi inluxisse dies aliumue habuisse tenorem
crediderim uer illud erat uer magnus agebat orbis et hibernis parcebant flatibus Euri cum primae lucem pecudes hausere uirumque terrea progenies duris caput extulit aruis immissaeque ferae siluis et sidera caelo nec res hunc tenerae possent perferre laborem si non tanta quies iret frigusque caloremque inter et exciperet caeli indulgentia terras
Que nenhum mestre tatildeo prudente te convenccedila a cavar a riacutegida Terra quando Boacutereas sopra18 Depois o inverno aperta os campos com a geada e nem com a semente lanccedilada permite que a espessa raiz se prenda agrave terra O melhor plantio para as vinhas eacute quando na roacutesea primavera chega a candida ave odiada pelas grandes serpentes sob os primeiros frios do outono quando o impetuoso sol com seus cavalos19 natildeo atingiu o inverno e jaacute o veratildeo ficou para traacutes Sobretudo a primavera uacutetil agrave folhagem dos bosques a primavera uacutetil agraves florestas na primavera as terras se intumescem e exigem as fecundas sementes20
18Ruy Mayer (1948 p 305) destaca em nota ao texto Prudens auctor eacute como se chama o sabichatildeo que sobre todos os assuntos daacute opiniatildeo Fazer a mobilizaccedilatildeo do solo quando sopra o vento Norte (Boacutereas) seria desastroso na Campacircnia onde esse vento eacute frio e violento e onde em terrenos soltos a aacutegua congela por camadas sucessivas tornando impossiacutevel semear ou plantar 19 Personificaccedilatildeo do sol que conduz seus cavalos luminosos para trazer o dia 20Para Ruy Mayer (1948 p 306) o presente excerto do Canto II das Geoacutergicas eacute um hino de maravilhosa perfeiccedilatildeo artiacutestica agraves energias criadoras da primavera apresentando uma elegacircncia e riqueza de formas incomparaacuteveis
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Entatildeo o pai onipotente Eacuteter21 com chuvas fecundas desce sob o colo da feacutertil esposa22 e unindo-se a esse grande corpo alimenta todos os filhos Entatildeo as ramagens dos lugares afastados ressoam com as melodiosas aves e os rebanhos reivindicam Vecircnus23 em dias certos O nutriz campo daacute agrave luz por causa da brisa morna de Zeacutefiro24 as pastagens relaxam os seios um liacutequido suave ultrapassa todas as coisas e com confianccedila as ervas ousam entregar-se aos novos soacuteis e nem o pacircmpano teme os Austros25 que surgem ou a chuva impelida do ceacuteu pelos fortes Aquilotildees26 mas faz brotar os rebentos e estende todas as folhagens Natildeo acreditei que outros dias tenham iluminado na primeira origem do mundo nascente ou que tenham tido outro curso aquilo era primavera no grande orbe vivia a primavera e os Euros27 cessavam os invernosos ventos quando os primeiros animais viram a luz e a teacuterrea progecircnie do homem ergueu a cabeccedila das duras terras as feras foram enviadas para as florestas e os astros para o ceacuteu
Os delicados seres natildeo podiam sofrer esta opressatildeo se tanta tranquilidade natildeo se refugiasse entre o frio e o calor e se a indulgecircncia do ceacuteu natildeo acolhesse as terras
Neste pequeno excerto Virgiacutelio abandona as recomendaccedilotildees acerca das
teacutecnicas de plantaccedilatildeo da vinha para cantar sobre a primavera a estaccedilatildeo do ano em
que a natureza se encontra apta a germinar Trata-se de uma das digressotildees
presentes no texto das Geoacutergicas As terras assim como eacute descrito pelo poeta longe
do frio do inverno e dos impetuosos raios do sol incham-se e preparam-se para
receber as fecundas sementes com a chegada da nova estaccedilatildeo
Ao referir-se agrave primavera o poeta atesta que ela eacute uacutetil agraves aacutervores agraves florestas
aos bosques Ela eacute a proacutepria reproduccedilatildeo o periacuteodo feacutertil da terra e de toda a natureza
A figura da primavera marca um tempo de prosperidade fecundidade e germinaccedilatildeo
Com a chegada da primavera ocorre a uniatildeo entre o Ceacuteu e a Terra e daiacute
nascem todos os seres vivos Nesta estaccedilatildeo ainda o Pai onipotente Eacuteter desce sob
a forma de chuvas fecundas Eacuteter nesta passagem associa-se a Juacutepiter jaacute que
ambos representam o ceacuteu superior assumindo a paternidade de todas as coisas
Podem-se destacar deste excerto algumas figuras que remetem ao tema do
amor da uniatildeo dos seres da fecundidade e a procriaccedilatildeo tais como genitalia semina
21 Eacuteter a personificaccedilatildeo do ceacuteu profundo 22 A terra 23 Vecircnus deusa do amor e da beleza 24 Zeacutefiro o vento da Primavera 25 Austros os ventos 26 Aquilotildees Ventos frios tempestuosos 27 Euro vento leste criador de tempestades
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- hex 324 (sementes fecundas) fecundis imbribus ndash hex 325 (chuvas fecundas)
coniugis laetae - hex 326 (esposa feacutertil)
Atraveacutes destas figuras tem-se a concretizaccedilatildeo de uma ideia abstrata o tema
da fertilidade e prosperidade da natureza No pequeno excerto a Terra e o Eacuteter satildeo
representados como dois amantes em uma relaccedilatildeo amorosa Unem-se para
produzirem a vida
Eacuteter eacute quem alimenta (alit ndash hex 327) ou seja impulsiona a vida e modela os
seres dando-lhes forma e a feacutertil esposa assim o recebe em um grande abraccedilo O
discurso figurativo aponta com isso para a imagem da Terra sendo fecundada
A partir daiacute as melodiosas aves cantam em celebraccedilatildeo a todos os elementos
da natureza e a terra que daacute agrave luz (Parturit ndash hex 330) relaxa com a brisa de Zeacutefiro
o vento da Primavera
Os rebanhos tambeacutem buscam Vecircnus a deusa do amor e da beleza nos dias
certos (Venerem certis repetunt armenta diebus ndash hex329) A figura de Vecircnus
representa aqui a ideia de uniatildeo o periacuteodo propiacutecio para a procriaccedilatildeo dos animais
Os brotos natildeo temem as chuvas nem as tempestades pois estatildeo acolhidos
crescem em seguranccedila e desabrocham A vida portanto eacute criada surgindo novos
ramos novas folhagens e novos seres O mundo nasce e se organiza graccedilas agrave
primavera Menciona-se ainda que na ldquoprimeira origem do mundo nascenterdquo (prima
crescentis origine mundi ndash hex 336) era a primavera que imperava Os primeiros
animais com isso viram a luz as feras povoaram as florestas e os astros o ceacuteu
Deixa-se entrever neste excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas o tema da
fertilidade e prosperidade da natureza pois o arranjo de figuras tais como
ldquoprimaverardquo ldquofecundas sementesrdquo ldquonutriz campordquo ldquoesposa feacutertilrdquo ldquochuvas fecundasrdquo
entre outras concretizam essa ideia A figura da primavera em especial torna o
cenaacuterio propiacutecio ao plantio e agrave procriaccedilatildeo dos animais destacando com isso a forma
como todo o cenaacuterio se modifica com a chegada da nova estaccedilatildeo
Logo as figuras satildeo os elementos concretos de um texto jaacute aos elementos
abstratos chamamos de temas Figura eacute o termo com que podemos designar algo
existente no mundo tais como ldquoprimaverardquo ldquovinhardquo ldquoflorestasrdquo ldquobosquesrdquo sementesrdquo
De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (2011 p 91) ldquoa figura eacute todo conteuacutedo de qualquer
liacutengua natural ou de qualquer sistema de representaccedilatildeo que tem um correspondente
perceptiacutevel no mundo naturalrdquo Mas o mundo natural e perceptiacutevel natildeo se refere
apenas ao mundo real mas tambeacutem aos ldquomundos fictiacutecios criados pela imaginaccedilatildeo
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humanardquo As figuras podem ser dessa forma substantivos concretos verbos que
indicam accedilatildeo ou adjetivos que expressam um atributo fiacutesico das coisas e pessoas do
mundo percebido No que diz respeito ao Tema destaca-se que eacute o termo com que
designamos as palavras e expressotildees que satildeo responsaacuteveis pela explicaccedilatildeo de um
dado ou fato do mundo natural Trata-se de um ldquoinvestimento semacircntico de natureza
puramente conceptual que natildeo remete ao mundo naturalrdquo (FIORIN 2011 p 91) No
pequeno excerto a ideia de fertilidade prosperidade e germinaccedilatildeo da natureza eacute
depreendida pela cadeia de figuras que corroboram para este tema
Os textos figurativos como assinala Fiorin (2011 p 91) ldquocriam um efeito de
realidade jaacute que constroem um simulacro da realidade representando dessa forma
o mundordquo enquanto os textos temaacuteticos ldquoprocuram explicar a realidaderdquo Os discursos
figurativos satildeo eminentemente descritivos e narrativos enquanto os temaacuteticos satildeo
caracterizados pela explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do mundo perceptiacutevel
De acordo com Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 147-149) um texto
literaacuterio
tende a ser predominantemente descritivo ou narrativo afastando-se sponte sua do gecircnero dissertativo pois narraccedilatildeo e descriccedilatildeo pressupotildeem o desenvolvimento de um tema qualquer atraveacutes do recurso baacutesico da figuratividade enquanto a dissertaccedilatildeo procura ao contraacuterio o despojamento figurativo do enunciado a fim de dar relevo ao tema em si mesmo considerado Em outras palavras os gecircneros narrativo e descritivo exigem a manipulaccedilatildeo preponderante de termos concretos e particularizantes ao passo que o gecircnero dissertativo requer principalmente a adoccedilatildeo de conceitos abstratos e generalizantes na composiccedilatildeo do enunciado
Em um texto figurativo como o excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas que aqui
selecionamos encontramos sempre um tema que eacute subjacente agraves figuras instaladas
no discurso Toda figura eacute portanto a concretizaccedilatildeo de um determinado tema
abstrato No exemplo aqui citado todas as figuras coadunam-se com a ideia de
prosperidade e fertilidade da natureza remetendo-nos a este tema
Segundo Fiorin (2011 p 92) eacute o niacutevel temaacutetico que daacute sentido ao figurativo
Sobre isso Bertrand (2003 p 215) adverte que ldquoa significaccedilatildeo figurativa ultrapassa
com folga seus significados literais dotando-se de significaccedilotildees abstratas[]rdquo
Os textos que circulam em nossa sociedade satildeo temaacuteticos com algum recurso
figurativo esporaacutedico (discursos poliacuteticos textos filosoacuteficos) ou figurativos recobertos
assim em sua totalidade por figuras (textos literaacuterios e histoacutericos)
Greimas amp Courteacutes (2011 p 210) observam que
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Quando se tenta classificar o conjunto de discursos em duas grandes classes discursos figurativos e natildeo-figurativos (ou abstratos) percebe-se que a quase totalidade dos textos ditos literaacuterios e histoacutericos pertencem agrave classe dos discursos figurativos Fica entendido entretanto que tal distinccedilatildeo eacute de certa forma ldquoidealrdquo que ela procura classificar as formas (figurativas e natildeo-figurativas) e natildeo os discursos-ocorrecircncias que natildeo apresentam praticamente nunca uma forma em estado puro
Enquanto os textos figurativos assim como vimos no exemplo do excerto das
Geoacutergicas aqui citado constroem cenaacuterios reais com a presenccedila de pessoas animais
cores etc os textos temaacuteticos ao explicarem os fatos do mundo visam agrave
interpretaccedilatildeo de uma dada realidade
De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros em Teoria Semioacutetica do Texto
(2005 p 69) ldquoAos textos de figuraccedilatildeo esporaacutedica opotildeem-se aqueles em que ocorrem
percursos figurativos duradouros que se espalham pelo discurso inteiro e recobrem
totalmente os percursos temaacuteticosrdquo
Em Elementos de Anaacutelise do Discurso Fiorin (2011 p 92) assinala que
ldquoquando se fala em textos figurativos ou temaacuteticos fala-se respectivamente em
textos predominantemente e natildeo exclusivamente figurativos e temaacuteticosrdquo
Ao lermos um texto figurativo observamos portanto que eacute um tema abstrato
que imprime sentido agraves figuras daiacute a necessidade de se encontrar o sentido de um
conjunto de figuras uma vez que estariacuteamos depreendendo o tema subjacente a elas
Com isso todo texto figurativo apresenta dados concretos que veiculam significados
mais abstratos Aleacutem disso uma figura sempre estaraacute relacionada a outras pois juntas
elas criaratildeo um percurso figurativo Logo uma figura por si soacute natildeo tem significado
definido uma vez tomada isoladamente pode sugerir diversas ideias O seu sentido
soacute aparece quando ela eacute combinada a outras figuras visto que em um texto tudo eacute
relaccedilatildeo
Logo para compreendermos o tema de um texto figurativo precisamos
perceber as redes coerentes formadas pelas figuras (isotopia) jaacute que eacute a coerecircncia
entre elas que permite a depreensatildeo do sentido A quebra do encadeamento entre as
figuras pode tornar o texto inverossiacutemil jaacute que seria uma quebra no efeito de sentido
construiacutedo no discurso a menos que o inverossiacutemil apareccedila como um dos efeitos de
sentido a ser suscitado no leitor
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Na anaacutelise de um texto um tema ou uma figura isolados de nada servem
Torna-se preciso assim que haja um conjunto ou encadeamento de figuras e temas
Dessa forma uma isotopia ou seja a recorrecircncia de temas e figuras na cadeia do
discurso eacute capaz de assegurar a coerecircncia de um texto oferecendo ao leitor um
projeto de leitura
Tendo em vista o excerto do Canto II da Eneida hexacircmetros 707-720
podemos depreender o tema do heroacutei piedoso A Eneida inicia-se in medias res e
Eneias encontra-se com suas naus em pleno Mediterracircneo sete anos apoacutes a queda
de Troia (Canto I) posteriormente eacute lanccedilado agraves costas africanas onde eacute recebido pela
rainha Dido (Canto II) Num banquete ofertado ao heroacutei a rainha pede que Eneias
narre os acontecimentos sobre a destruiccedilatildeo de Troia Tem-se a partir daiacute uma
recordaccedilatildeo de eventos jaacute passados Destacamos entatildeo do Canto II os hexacircmetros
em que o caraacuteter de Eneias aparece em relevo
ergo age care pater ceruici imponere nostrae ipse subibo umeris nec me labor iste quo rescumque cadente unum et commune una salus ambobus erit mihi paruus Iulus sit comes et longe seruet uestigia coniunx uos famuli quae dicam animus est urbe egressis tumulus templumque uestutum desertae Cereris iuxtaque antiqua cipressus religione patrum multos seruata per anos hanc ex diuerso sedem ueniemus in unam Tu genitor cape sacra manu patriosque penatis me bello e tanto digressum et caede recenti attrectare nefas donec me flumine uiuo abluero Agora querido pai vem se colocar em meu pescoccedilo Eu proacuteprio te alccedilarei sobre os ombros e este trabalho natildeo me afetaraacute Onde quer que a sorte caia um soacute e comum perigo uma salvaccedilatildeo haveraacute para ambos a mim o pequeno Iuacutelo28 acompanhe e ao longe a esposa29 siga os passos Voacutes servos com vossas almas atentai no que vou dizer saindo da cidade haacute um tuacutemulo e um velho templo de Ceres30 abandonado e junto um antigo cipreste A religiatildeo dos antepassados preservada por muitos anos Chegaremos neste ponto vindos de diferentes lugares Tu oacute pai carrega os objetos sagrados com a matildeo e os Paacutetrios Penates31 A mim saiacutedo de tatildeo dura guerra e de recente massacre natildeo eacute permitido tocar ateacute que num rio corrente me lave
28 Iuacutelo (Ascacircnio) filho de Eneias e Creuacutesa 29 Creuacutesa esposa de Eneias 30 Ceres deusa da vegetaccedilatildeo e da colheita 31 Paacutetrios Penates os deuses do lar
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Tem-se assim um pequeno trecho do relato eacutepico da tomada de Troia a partir
da narraccedilatildeo de Eneias A perspectiva do heroacutei intensifica as accedilotildees que se passaram
jaacute que se trata da visatildeo daquele que foi vencido O testemunho de Eneias divide-se
em trecircs partes comeccedila-se pela descriccedilatildeo do cavalo de madeira que eacute levado para
dentro da cidade (hex 13- 249) fala-se da batalha noturna (hex 250-558) e
posteriormente da fuga da cidade de Troia (hex 559-803) O relato do heroacutei ao longo
da narrativa destaca o seu comprometimento com a paacutetria a famiacutelia e seu caraacuteter
piedoso No pequeno excerto que aqui mencionamos tem-se a fuga de Eneias
acompanhado do pai Anquises do filho Iuacutelo (Ascacircnio) e da esposa Creuacutesa Todo o
conjunto de figuras deste excerto figurativiza valores de piedade Aleacutem do cuidado
para com o pai carregando-o sobre os ombros pode-se ver a preocupaccedilatildeo com o
filho esposa e outras pessoas do grupo o que indica a dimensatildeo ciacutevica de sua
piedade que abarca tambeacutem os objetos sagrados e os Paacutetrios Penates com o respeito
de natildeo os tocar com a matildeo ensanguentada A presente cena que destacamos (hex
707-720) sintetiza as virtudes que o caraacuteter do heroacutei engloba A tradiccedilatildeo sobre Eneias
aponta que ldquoele era notaacutevel por sua devoccedilatildeo filialrdquo (PEREIRA 2009 p 261) e o
pequeno excerto apresenta figuras que contribuem para a compreensatildeo deste tema
A accedilatildeo de colocar o pai sobre os ombros a preocupaccedilatildeo com as pessoas de seu
grupo esposa e filho bem como o respeito para com os Paacutetrios Penates figurativizam
o caraacuteter do heroacutei que pode ser depreendido no excerto
Diana Luz Pessoa de Barros (2005 p 69) menciona as diferentes etapas da
estruturaccedilatildeo de um texto a figuraccedilatildeo responsaacutevel pela instalaccedilatildeo das figuras eacute o
primeiro niacutevel de especificaccedilatildeo figurativa do tema em que uma ideia abstrata recebe
um investimento figurativo A iconizaccedilatildeo nomeada como ldquoinvestimento figurativo
exaustivo finalrdquo seria a uacuteltima etapa da estruturaccedilatildeo textual e tem o objetivo de
produzir uma ilusatildeo referencial Nessa etapa de acordo com Maacutercio Thamos (2003
p 114) haacute uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem na qual ldquorelacionando o som
com o sentido o poeta procura colocar em relevo aquilo de que fala manifestando o
desejo de fazer que o poema se identifique concretamente com o proacuteprio referenterdquo
Vale ressaltar ainda que essas duas etapas (figuraccedilatildeo rarriconizaccedilatildeo) satildeo fases
da construccedilatildeo figurativa de um texto e que nem todo texto figurativo apresentaraacute esse
investimento particularizante suscetiacutevel de produzir uma ilusatildeo referencial
Para Barros (2005 p 70)
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Na iconizaccedilatildeo mas tambeacutem nas demais etapas da figurativizaccedilatildeo o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciataacuterio a reconhecer ldquoimagens do mundordquo e a partir daiacute a acreditar na ldquoverdaderdquo do discurso O enunciataacuterio por sua vez crecirc ou natildeo no discurso graccedilas em grande parte ao reconhecimento de figuras do mundo O fazer-crer e o crer dependem de um contrato de veridicccedilatildeo que se estabelece entre enunciador e enunciataacuterio e que regulamenta entre outras coisas o reconhecimento das figuras
Cabe ao leitor atento depreender assim os efeitos de sentido de um texto
Para Fiorin (1995 p 175)
Quem ler os seguintes versos de Os Lusiacuteadas ldquoEm tempo de tormenta e vento esquivordquo ldquoDe tempestade escura e triste prantordquo (V 18 3-4) sem perceber a aliteraccedilatildeo de oclusivas e principalmente do ldquotrdquo teraacute perdido um elemento essencial do texto que eacute o efeito de sentido de fuacuteria da tormenta dado pela articulaccedilatildeo entre a aliteraccedilatildeo no plano da expressatildeo e o conteuacutedo manifestado
O texto literaacuterio apresenta dessa forma uma funccedilatildeo esteacutetica e sua
compreensatildeo exige que se entenda natildeo somente o conteuacutedo mas especialmente os
significados dos seus elementos de expressatildeo
Thamos (2011 p 150) ao mencionar as especificidades do texto figurativo
afirma
A vocaccedilatildeo imageacutetica do texto literaacuterio encontra pois as condiccedilotildees naturais para a sua realizaccedilatildeo quer na narraccedilatildeo quer na descriccedilatildeo que lhe oferecem sempre possibilidades conotativas a partir da figuratividade enquanto por outro lado a dissertaccedilatildeo se constitui na maneira ideal de desenvolvimento do discurso cientiacutefico no qual imperam necessidades denotativas na expressatildeo de um tema
Na leitura de um texto literaacuterio adentramos de imediato em sua figuratividade
pois nele delineiam-se figuras como personagens espaccedilo objetos valores Por meio
da figuratividade assim podemos depreender as dimensotildees figurativas do discurso e
o modo como satildeo engendrados os efeitos de sentido
Bertrand (2003 p 156) referindo-se agrave figuratividade assim esclarece-nos
Qualificaremos de figurativo todo significado todo conteuacutedo de uma liacutengua natural e de maneira mais abrangente de qualquer sistema de representaccedilatildeo (visual por exemplo) que tenha um correspondente no plano do significante (ou da expressatildeo) do mundo natural da realidade perceptiacutevel
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Com vistas portanto aos recursos da figuratividade presentes na poesia
bucoacutelica didaacutetica e eacutepica procuramos investigar nas trecircs obras de Virgiacutelio o percurso
figurativo e a atuaccedilatildeo dos trecircs tipos de estilo descritos pelos tratadistas antigos o
estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Na Roda esquema circular tripartido das
obras virgilianas satildeo apresentadas as principais figuras que compotildeem o cenaacuterio da
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Logo procuramos entender como os diferentes
estilos atuam em cada poema e como eles podem ser depreendidos a partir da
recorrecircncia figurativa presente em cada obra deixando entrever um efeito particular
de individuaccedilatildeo Para isso na anaacutelise das obras virgilianas destacamos a presenccedila
de uma rede de figuras que sugerem um modo proacuteprio de ser e fazer de especiacuteficos
cenaacuterios de atuaccedilatildeo para as Bucoacutelicas o efeito tecircnue que configura um estilo singelo
para as Geoacutergicas o efeito moderado que configura um estilo meacutedio e para a Eneida
um efeito vigoroso que corrobora para a construccedilatildeo do estilo sublime grandiloquente
Assim nosso intento eacute o de compreender na dimensatildeo figurativa de cada excerto
selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise a atuaccedilatildeo dos estilos singelo meacutedio e
grandiloquente Virgiacutelio construiu segundo a tradiccedilatildeo trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo a partir
de trecircs estilos Cabe-nos aqui depreender a caracterizaccedilatildeo presente em cada obra
e com isso depreender os principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e
eacutepica
Entendemos que em termos de expressatildeo as trecircs obras apresentam um rico
trabalho com a linguagem Pensando-se primeiramente na caracterizaccedilatildeo presente
nas trecircs obras personagens accedilotildees e ambientaccedilatildeo destacaremos os principais temas
e figuras proacuteprios agraves Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Com isso procuramos
entender cada estilo como uma construccedilatildeo sistemaacutetica que deixa entrever um efeito
particular de sentido Natildeo perderemos de vista contudo o arranjo particular da
linguagem poeacutetica e portanto tambeacutem procuraremos analisar as obras a partir do seu
plano da expressatildeo
Os temas presentes na poesia eacutepica coadunam-se com um tom elevado
grandiloquente com figuras que deixam entrever um efeito de sentido grandiloquente
Alteram-se os temas altera-se o cenaacuterio e consequentemente o efeito de sentido
sugestionado o estilo Primeiro escolhe-se o tema a ser cantado e soacute entatildeo eacute definido
o cenaacuterio ldquoconvenienterdquo a esse tema O ambiente descrito na poesia eacutepica difere
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portanto daquele que eacute apresentado em um tom mais singelo como eacute o caso da
poesia de gecircnero bucoacutelico Da Eneida selecionamos um excerto do ldquoVIII Cantordquo (612-
731) em que depreendemos o tema do heroacutei e suas armas de guerra atrelado ao
tema da fundaccedilatildeo e gloacuteria de Roma As figuras utilizadas neste fragmento tramam
cenaacuterios tipicamente eacutepicos em um tom solene
Na poesia bucoacutelica o tema muda e as figuras se alteram Logo altera-se o
efeito pretendido que seraacute tecircnue O locus amoenus pode aparecer na figura de um
rochedo na espessura verde de um pequeno bosque em uma fonte pinheiros olmos
choupos carvalhos cabras ovelhas etc Estas figuras recorrentes na poesia
bucoacutelica virgiliana organizam-se de modo expressivo e particularizam os temas que
abrangem a simplicidade o viver ruacutestico do campo e o oacutecio criativo dos pastores O
estilo singelo aparece portanto subjacente a esse arranjo de figuras A ldquoBucoacutelica Vrdquo
aqui selecionada para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise apresenta um cenaacuterio apraziacutevel para
que os pastores-cantadores Mopso e Menalcas possam cantar seus louvores a
Daacutefnis
Na poesia didaacutetica os temas abrangem um conteuacutedo instrucional e assumem
um tom e um contexto de atuaccedilatildeo moderados No excerto do ldquoIV Cantordquo (1-115) das
Geoacutergicas colocaremos em relevo portanto a ldquodescriccedilatildeo do lugar apraziacutevel para as
abelhasrdquo e o modo como as figuras selecionadas pelo poeta particularizam este tema
no contexto da poesia didaacutetica
Na anaacutelise dos poemas de Virgiacutelio seratildeo destacadas as principais figuras e
temas recorrentes agraves Bucoacutelicas agraves Geoacutergicas e agrave Eneida Aleacutem disso pretende-se
demonstrar o modo como essas figuras se organizam e asseguram um revestimento
figurativo e abstrato dos principais temas bucoacutelicos didaacuteticos e eacutepicos levando em
conta a formaccedilatildeo do sentido poeacutetico e esteacutetico de cada texto e os niacuteveis de estilo
definidos pelos tratadistas antigos pensando-os como efeitos de individuaccedilatildeo
engendrados em cada texto
69
42 A Figuratividade a leitura do poeacutetico
Com os poetas a escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo
que elas contamrdquo
(BRODSKY 1994 p 97)
O poeta e criacutetico russo Joseph Brodsky acredita que natildeo eacute do ofiacutecio do poeta
informar algo mas sim por meio de um arranjo expressivo da linguagem artiacutestica
suscitar no leitor um determinado efeito de sentido A poesia revela-se dessa forma
como ldquouma arte de referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo
(BRODSKY 1994 p 74) Roman Jakobson ao questionar-se sobre a expressividade
poeacutetica vai ao encontro desse raciociacutenio Assim a sua ceacutelebre pergunta ldquoQue eacute que
faz de uma mensagem verbal uma obra de arterdquo (JAKOBSON 1989 p 118-119)
leva-nos a acreditar que toda criaccedilatildeo poeacutetica apresenta um trabalho artiacutestico com a
linguagem jaacute que a palavra artiacutestica ultrapassa o uso comum e ganha um efeito
esteacutetico pois o poeta agrega valor agrave palavra seu elemento material concreto
Cabe-nos a partir disso avaliar quais satildeo os recursos expressivos
evidenciados na leitura de um texto e de que forma os procedimentos da figuraccedilatildeo e
iconizaccedilatildeo aliados a outros expedientes expressivos participam da formaccedilatildeo do
sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto
Para a Semioacutetica Greimasiana o sentido aparece intimamente relacionado com
a linguagem que o estrutura e eacute a partir do reconhecimento das formas presentes em
um texto que apreendemos o arranjo expressivo da linguagem Logo eacute o trabalho
artiacutestico com o plano da expressatildeo que particulariza um texto poeacutetico contrapondo-o
portanto aos outros discursos que possivelmente podem apresentar temas
semelhantes
O arranjo da linguagem poeacutetica longe de transmitir apenas ideias apresenta
recursos expressivos capazes de suscitar um determinado efeito esteacutetico no leitor
Em Linguiacutestica e Comunicaccedilatildeo Jakobson (1989 p 130) declara que ldquoA funccedilatildeo
poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de
combinaccedilatildeordquo Fica evidente portanto o destaque do linguista para a construccedilatildeo do
sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto Em que medida as figuras instaladas em um
discurso satildeo combinadas e revestidas de expressividade Aleacutem disso natildeo podemos
esquecer de que o poeacutetico se enquadra na esfera luacutedica em que o poeta modela as
palavras em uma espeacutecie de brincadeira artiacutestica para assim conferir-lhes um
sentido poeacutetico Para Huizinga (2007 p 133) a poesia
70
[] estaacute para aleacutem da seriedade naquele plano mais primitivo e originaacuterio a que pertencem a crianccedila o animal o selvagem e o visionaacuterio na regiatildeo do sonho do encantamento do ecircxtase do riso Para compreender a poesia precisamos ser capazes de envergar a alma da crianccedila como se fosse uma capa maacutegica e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto
Logo o arranjo das palavras quando manipuladas pelo artista pode suscitar
um determinado efeito de sentido no leitor Trata-se de uma brincadeira uma espeacutecie
de jogo com a palavra que em acircmbito poeacutetico pode metamorfosear-se em imagens
do mundo
Ao focalizar o processo de criaccedilatildeo de um texto artiacutestico e ressaltar o modo
como a palavra eacute trabalhada pelo artista deve-se compreender que a palavra poeacutetica
porta sempre um encantamento imageacutetico Acredita-se com isso que o poeta
encontra na palavra o elemento material concreto de que necessita para a criaccedilatildeo
de imagens
Como bem observa Thamos (2003 p 109)
Na busca de expressatildeo para determinado tema o poeta bem como o pintor constroacutei um texto em que a primazia da figura eacute bastante evidente o que potildee em relevo o seu desejo de concretude sua necessidade de procurar dar contorno plasticidade palpabilidade a sua criaccedilatildeo
Como ilustraccedilatildeo desses procedimentos vale destacar a ldquoBucoacutelica IVrdquo de
Virgiacutelio poema em que eacute celebrado o nascimento de uma crianccedila que seraacute o fator
determinante da renovaccedilatildeo dos tempos No poema a natureza alegra-se com esse
nascimento e o proacutespero ambiente campestre assim responde agrave chegada da crianccedila
(Buc IV 23-25)
Ipsae lacte domum referent distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores As cabritinhas por si mesmas levaratildeo agrave casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti oacute crianccedila o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores
71
Nesse exemplo observa-se que a disposiccedilatildeo dos sintagmas no hexacircmetro 25
Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores favorece de algum modo a figuratividade
da cena que estaacute sendo descrita uma vez que o termo ldquocunabulardquo (berccedilo) eacute
circundado por ldquoblandosrdquo e ldquofloresrdquo (delicadas flores) ilustrando portanto a ideia
expressa no verso a de que o berccedilo da crianccedila encontra-se ornado por delicadas
flores que nesse contexto podem ser vistas como sinocircnimo de encanto e beleza do
novo mundo que ressurge em consonacircncia ao nascimento dessa crianccedila O verso
destacado favorece agrave representaccedilatildeo icocircnica deixando entrever pelo arranjo particular
da linguagem a imagem de um berccedilo florido pela distribuiccedilatildeo dos termos no verso
Para Greimas (1975 p 12) podemos afirmar que
[] o significante sonoro ndash e graacutefico em menor proporccedilatildeo ndash entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a assumir como verdadeiras as proposiccedilotildees emitidas pelo discurso poeacutetico []
Lembra-nos Octavio Paz que ldquoo poema natildeo explica nem representa apresenta
Natildeo alude agrave realidade pretende ndash e agraves vezes consegue ndash recriaacute-la Portanto a poesia
eacute um penetrar um estar ou ser na realidaderdquo (2012 p 118)
A ilusatildeo ou impressatildeo referencial eacute o termo com que designamos a segunda
etapa dos procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto literaacuterio conhecida por
iconizaccedilatildeo Nesta etapa haacute uma espeacutecie de ecircnfase figurativa do discurso com vistas
a um expediente de criaccedilatildeo de imagens anaacutelogas agrave realidade
Pensando ainda na ldquoBucoacutelica IVrdquo e na exortaccedilatildeo ao nascimento da crianccedila
destacamos os seguintes versos
(Buc IV 60-63) Incipe parue puer risu cognoscere matrem (matri longa decem tulerunt fastidia menses) Incipe parue puer qui non risere parenti Nec deus hunc mensa dea nec dignata cubili est Comeccedila pequeno menino a conhecer a matildee com um sorriso Agrave ela dez meses causaram longos enjoos comeccedila pequeno menino aquele que natildeo sorriu para a matildee nem um deus o julgou digno da sua
mesa e nem uma deusa de seu leito
Os hexacircmetros 60 e 62 relacionam-se expressivamente pelo emprego do
paralelismo ou seja pela repeticcedilatildeo de incipe parue puer que reforccedila assim a
72
homenagem agrave crianccedila Aleacutem disso a aliteraccedilatildeo da oclusiva p em ldquoincipe parue
puerrdquo eacute um fato do plano da expressatildeo que associado ao paralelismo sugere uma
ideia de repeticcedilatildeo e balbucio da matildee para seu filho passando-nos a ideia de uma
cantiga de ninar um acalanto Esses versos pelo arranjo particular da linguagem
criam um efeito de sentido ldquorealidaderdquo ao sugerirem a cena familiar que estaacute sendo
descrita em um tom de ludismo e serenidade
Neste fragmento ao relacionar o som ao sentido o poeta pretende manipular
a linguagem para colocar em destaque aquilo de que fala de modo que a palavra
artiacutestica coincida concretamente com o proacuteprio referente Adverte Thamos (2003 p
114) que ldquoA iconizaccedilatildeo se dirige mais diretamente aos sentidos e estaacute assentada num
pressuposto de representaccedilatildeo realista assumido tanto pelo produtor quanto pelo
receptor do discurso figurativordquo Na ilusatildeo referencial destaca-se portanto a
apresentaccedilatildeo de um efeito esteacutetico evidenciado no texto em que neste caso ldquotoda a
massa sonora do poema eacute viva do ponto de vista criativordquo (LIMA apud THAMOS
2003 p115)
O poeta aacutercade Tomaacutes Antocircnio Gonzaga (2006 p 43 grifos nossos) em uma
evidente alusatildeo ao texto de Virgiacutelio compocircs
Que gosto natildeo teraacute a matildee que toca Quando o tem nos seus braccedilos crsquoo dedinho Nas faces graciosas e na boca Do inocente filhinho Quando Mariacutelia bela O tenro infante jaacute com risos mudos Comeccedila a conhececirc-la
Nesse pequeno trecho de Mariacutelia de Dirceu Parte I Lira XIX nota-se que o
ambiente familiar descrito por Virgiacutelio eacute aludido na liacuterica de Gonzaga que resgatou
algo da sugestatildeo do acalanto do poeta claacutessico
A repeticcedilatildeo quase seguida da oclusiva t nos dois primeiros versos do excerto
acompanhada das nasais n e m deixam entrever uma fala manhosa linguagem
inicial dos pais para com a crianccedila sempre carregada de afetuosidade Aleacutem disso
destaca-se a presenccedila de dois diminutivos que reforccedilam a ideia de uma fala mais
amorosa dentro deste contexto No poema de Gonzaga o jogo sonoro remete-nos agrave
cena que estaacute sendo descrita agrave imagem da matildee conversando com seu filho
A figuratividade eacute portanto uma categoria descritiva que ligada agrave teoria
esteacutetica abarca o figurativo e o natildeo-figurativo (ou abstrato) este uacuteltimo sempre
73
apareceraacute revestido por figuras que o particularizam Nesse sentido no processo de
estruturaccedilatildeo de um texto encontramos o niacutevel da figuraccedilatildeo em que um tema ou seja
um discurso abstrato eacute convertido em figuras e tambeacutem o niacutevel da iconizaccedilatildeo em
que as figuras utilizadas no discurso teriam o poder de se transformar em imagens do
mundo provocando uma ilusatildeo ou impressatildeo referencial que eacute definida como sendo
ldquo[] o resultado de um conjunto de procedimentos mobilizados para produzir efeito de
sentido ldquorealidade []rdquo (GREIMAS COURTEacuteS 2011 p 251)
Como observa Bertrand (2003 p 154) a figuratividade ldquosugere
espontaneamente a semelhanccedila a representaccedilatildeo a imitaccedilatildeo do mundo pela
disposiccedilatildeo das formas numa superfiacutecierdquo Assim um texto classificado como figurativo
vale-se de figuras capazes de representar verbal ou visualmente uma figura do
mundo natural O efeito sugerido por essa representaccedilatildeo pode transmitir ao leitor a
ideia de ldquorealidaderdquo ldquoirrealidaderdquo ou ateacute mesmo ldquosurrealidaderdquo - efeitos especiacuteficos
gerados pelo texto por meio de estrateacutegias discursivas e que satildeo capazes de criar
impressotildees referenciais
Sobre isso Bertrand (2003 p 157) afirma que
A figuratividade se define como todo conteuacutedo de um sistema de
representaccedilatildeo verbal visual auditivo ou misto que entra em
correlaccedilatildeo com uma figura significante do mundo percebido quando
ocorre sua assunccedilatildeo pelo discurso
Logo eacute pertinente observar o modo como as figuras presentes em um texto
podem gerar ilusotildees da realidade produzindo imagens capazes de representar o
mundo natural concreto
De acordo com o conceito de representaccedilatildeo aqui sugerido a figuratividade
incorporaria a criaccedilatildeo de um simulacro com a aparecircncia de verdadeiro estabelecendo
uma noccedilatildeo interdiscursiva entre a realidade e o texto literaacuterio Com vistas agrave dimensatildeo
enunciativa e figurativa da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica em Virgiacutelio foram
selecionados trechos representativos das trecircs obras em que o revestimento particular
da linguagem poeacutetica ganha relevo em que a funccedilatildeo poeacutetica portanto eacute dominante
Ao colocar em destaque a vocaccedilatildeo imageacutetica a poeticidade dos textos o
trabalho apoia-se portanto na noccedilatildeo de figuratividade e procura avaliar o modo como
as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida apresentam e combinam temas e figuras
Busca-se entender portanto os estilos (singelo meacutedio e grandiloquente) como efeitos
de sentido que configuram cenaacuterios de atuaccedilatildeo especiacuteficos
74
ldquoEnquanto manifestaccedilatildeo privilegiada do mais alto poder expressivo que
uma liacutengua pode alcanccedilar versos satildeo o testemunho irretorquiacutevel seja de
soacutelidas construccedilotildees neles plasmadas seja do proacuteprio sistema virtual
que as trouxe agrave vida Este fica por tal modo igualmente imortalizado
graccedilas agrave realizaccedilatildeo plaacutestica e riacutetmica que faculta ao sistema virtualrdquo
(Lima 2003 p100)
ldquoO poema sem deixar de ser palavra e histoacuteria transcende a histoacuteriardquo
(Octavio Paz 2012 p 31)
75
5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises
51 BUCOacuteLICA V ldquoMOPSO E MENALCAS OS PASTORES
CANTADORESrdquo
Figura 5 ndash Mopso e Menalcas
Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p 465
76
MENALCAS
Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo
tu calamos inflare leuis ego dicere uersus
hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
MOPSVS
Tu maior tibi me est aequom32 parere Menalca
siue sub incertas Zephyris motantibus umbras
siue antro potius succedimus Aspice ut antrum 5
siluestris raris sparsit labrusca racemis
MENALCAS
Montibus in nostris solus tibi certat Amyntas
MOPSVS
Quid si idem certet Phoebum superare canendo
MENALCAS
Incipe Mopse prior si quos aut Phyllidis ignis 10
aut Alconis habes laudes aut iurgia Codri
incipe pascentis seruabit Tityrus haedos
MOPSVS
32 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aequum Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1967
77
Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi
carmina descripsi et modulans alterna notaui
experiar tu deinde iubeto certet Amyntas 15
MENALCAS
Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae
puniceis humilis quantum saliunca rosetis
iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas
Sed tu desine plura puer successimus antro
MOPSVS
Exstinctum Nymphae crudeli funere Daphnim33 20
flebant (uos coryli testes et flumina Nymphis)
cum complexa sui corpus miserabile nati
atque deos atque astra uocat crudelia mater
Non ulli pastos illis egere diebus
frigida Daphni boues ad flumina nulla neque34 amnem 25
libauit quadrupes nec graminis attigit herbam
Daphni 35tuom Poenos etiam ingemuisse leones
interitum montesque feri siluaeque loquontur36
Daphnis et Armenias curru subiungere tigris
instituit Daphnis thiasos inducere37 Bacchi 30
et foliis lentas intexere mollibus hastas
Vitis ut arboribus decori est ut uitibus uuae
33 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin 34 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nec 35 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 36 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se loquuntur 37 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se et ducere
78
ut gregibus tauri segetes ut pinguibus aruis
tu decus omne tuis Postquam te fata tulerunt
ipsa Pales agros atque ipse reliquit Apollo 35
Grandia saepe quibus mandauimus hordea sulcis
infelix lolium et steriles nascuntur auenae
pro molli uiola pro purpureo narcisso
carduos38 et spinis surgit paliurus acutis
Spargite humum foliis inducite fontibus umbras 40
pastores (mandat fieri sibi talia Daphnis)
et tumulum facite et tumulo superaddite Carmen
DAPHNIS EGO IN SILVIS HINC VSQUE AD SIDERA NOTVS
FORMOSI PECORIS CVSTOS FORMOSIOR IPSE
MENALCAS
Tale tuom carmen nobis39 diuine poeta 45
quale sopor fessis in gramine quale per aestum
dulcis aquae saliente sitim restinguere riuo
Nec calamis solum aequiperas sed uoce magistrum
fortunate puer tu nunc eris alter ab illo
Nos tamen haec quocumque modo tibi nostra uicissim 50
dicemus Daphnim40que tuom41 tollemus ad Astra
Daphnim42 ad Astra feremus amauit nos quoque Daphnis
MOPSVS
An quicquam nobis tali sit munere maius
38 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se carduus 39 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se ldquoTale tuum nobis carmenrdquo 40 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphin 41 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 42 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin
79
Et puer ipse fuit cantari dignus et ista
iam pridem Stimichon laudauit carmina nobis 55
MENALCAS
Candidus insuetum miratur limen Olympi
sub pedibusque uidet nubes et sidera Daphnis
Ergo alacris siluas et cetera rura uoluptas
Panaque pastoresque tenet Dryadasque puellas
Nec lupus insidias pecori nec retia ceruis 60
ulla dolum meditantur amat bonus otia Daphnis
Ipsi laetitia uoces ad sidera iactant
intonsi montes ipsae iam carmina rupes
ipsa sonant arbusta laquo Deus deus ille Menalca raquo
Sis bonus o felixque tuis En quattuor aras 65
ecce duas tibi Daphni duas altaria Phoebo
Pocula bina nouo spumantia lacte quotannis
craterasque duo statuam tibi pinguis oliui
et multo in primis hilarans conuiuia Baccho
ante focum si frigus erit si messis in umbra 70
uina nouom43 fundam calathis Ariusia nectar
Cantabunt mihi Damoetas et Lyctius Aegon
saltantis Satyros imitabitur Alphesiboeus
Haec tibi semper erunt et cum sollemnia uota
reddemus Nymphis et cum lustrabimus agros 75
Dum iuga montis aper fluuios dum piscis amabit
dumque thymo pascentur apes dum rore cicadae
semper honos nomenque tuom44 laudesque manebunt
43 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nouum 44 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum
80
Vt Baccho Cererique tibi sic uota quotannis
agricolae facient damnabis tu quoque uotis 80
MOPSVS
Quae tibi quae tali reddam pro carmine dona
Nam neque me tantum uenientis sibilus Austri
nec percussa iuuant fluctu tam litora nec quae
saxosas inter decurrunt flumina uallis
MENALCAS
Hac te nos fragili donabimus ante cicuta 85
haec nos laquo Formosum Corydon ardebat Alexim45 raquo
haec eadem docuit laquo Cuium pecus an Meliboei raquo
MOPSVS
At tu sume pedum quod me cum saepe rogaret
non tulit Antigenes (et erat tum dignus amari)
formosum paribus nodis atque aere Menalca 90
45 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Alexin
81
52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo
V
Menalcas
Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar
os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre
os olmeiros46 misturados agraves aveleiras47
Mopso
Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo das
sombras incertas dos Zeacutefiros48 agitados ou melhor em uma gruta sigamos Vecirc como
a videira49 silvestre cobriu-a com cachos raros
Menalcas
Em nossos montes soacute Amintas50 disputa contigo
Mopso
Quecirc se o proacuteprio Amintas cantando se esforccedilaria para superar Febo51
46Olmeiro (ou Ulmeiro) aacutervore de grande porte que pode alcanccedilar ateacute 30m de altura sendo portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra 47 Aveleira aacutervore mediterracircnica 48Zeacutefiro Vento oeste responsaacutevel pela brisa suave 49Videira silvestre alusatildeo a Baco o deus do vinho Composiccedilatildeo do locus amoenus 50Amintas pastor e haacutebil muacutesico assim como Mopso e Menalcas 51Febo epiacuteteto para Apolo o deus-sol Filho de Juacutepiter e Latona eacute irmatildeo gecircmeo de Diana a deusa da caccedila Costuma ser lembrado como protetor das artes
82
Menalcas
Comeccedila Mopso primeiro jaacute que tens aquelas chamas de Fiacutelis52 os louvores
de Alcatildeo53 e as disputas de Codro54 Comeccedila Tiacutetiro55 guardaraacute os cabritos que
pastam
Mopso
Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na
casca verde de uma faia56 tu em seguida mandai que Amintas dispute comigo
Menalcas
Assim como o flexiacutevel salgueiro57 cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo
ceacuteltico58 cede agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti
Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta
Mopso
52 Fiacutelis princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado (Demoofonte rei dos atenienses) enforcou-se e foi transformada em amendoeira Conta-se que quando o esposo retornou e soube do ocorrido abraccedilou-se agrave aacutervore que ao perceber o retorno do amado passou a produzir folhas Fiacutelis tambeacutem eacute um nome de pastora que aparece como amada de Dametas e Menalcas na Eacutegloga III bem como de Tiacutersis na Eacutegloga VII 53Alcatildeo companheiro de Heacutercules haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu filho sem o ferir O louvor a Alcatildeo deixa entrever os elogios aos seus feitos natildeo sendo estranho ao gecircnero bucoacutelico pois tambeacutem se cantaraacute posteriormente os feitos do pastor Daacutefnis 54Codro rei ateniense que humildemente sacrificou-se pela paacutetria 55Tiacutetiro pastor 56A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos 57Salgueiro aacutervore de folhas longas 58 Nardo ceacuteltico espeacutecie de planta aromaacutetica conhecida como ldquovaleriana ceacutelticardquo
83
Morto Dafnis59 as Ninfas60 choravam com a cruel morte (voacutes aveleiras e rios
sois testemunhas das Ninfas) quando miseravelmente a matildee abraccedilada ao corpo do
filho chama de crueacuteis os deuses e os astros
Naqueles dias ningueacutem levou os bois para os pastos e para as frescas correntes
oacute Daacutefnis nenhum cavalo provou a aacutegua nem tocou as ervas do pasto
Os montes bravios e os bosques dizem que ateacute os leotildees cartagineses61 choraram
a tua morte Daacutefnis
Daacutefnis foi quem ensinou prender os tigres armecircnios62 no carro Daacutefnis conduziu
as danccedilas de Baco63 e cobriu as maleaacuteveis lanccedilas64 com delicadas folhas
Como as videiras satildeo as gloacuterias para as aacutervores como as uvas satildeo para as
videiras como os touros satildeo para os rebanhos como as searas satildeo para os feacuterteis
campos tu Daacutefnis eacutes a gloacuteria para todos os teus A proacutepria Pales65 e o proacuteprio Apolo66
deixaram os campos depois que os fados te levaram
Nos sulcos em que jogamos tantas vezes a cevada as aveias esteacutereis e o joio
improdutivo nascem Em lugar da delicada violeta e do purpuacutereo narciso67 surge o
paliuacutero pontiagudo68 os cardos e os espinheiros
Espalhai folhas ao chatildeo levai sombras agraves fontes pastores (Daacutefnis manda fazer
isto para si) e fazei um tuacutemulo e no tuacutemulo gravai os versos
Eu sou Daacutefnis conhecido nos bosques daqui ateacute aos astros Guardiatildeo de
formoso rebanho mais formoso sou
Menalcas
Os teus versos admiraacutevel poeta satildeo para noacutes tal como eacute o sono na relva aos
cansados tal como eacute pelo calor extinguir a sede no regato de aacutegua doce Natildeo soacute
59Daacutefnis pastor por excelecircncia e ceacutelebre inventor do gecircnero bucoacutelico Filho de Mercuacuterio e de uma Ninfa da Siciacutelia nasceu em um bosque de loureiros Mopso apresenta um lsquoelogio fuacutenebrersquo ao inventor da poesia pastoril 60 Ninfas divindades que habitam os bosques campos e aacuteguas figurativizam os elementos da natureza que compotildeem o cenaacuterio bucoacutelico 61Leotildees cartagineses leotildees africanos 62Tigres armecircnios o pastor Daacutefnis aparece como espeacutecie de lsquoheroacuteirsquo civilizador 63Baco filho de Semele e Juacutepiter eacute o deus do vinho do oacutecio e do prazer 64Maleaacuteveis lanccedilas lanccedilas enfeitadas com folhas de hera usadas pelas bacantes 65Pales deusa pastoral dos campos cultivados 66Apolo deus das pastagens eacute retomado como na figura de pastor quando apascentou os rebanhos do rei Admeto 67Purpuacutereo narciso planta de flores perfumadas 68Paliuacutero pontiagudo planta espinhosa
84
igualas o mestre69 na flauta mas na voz oacute afortunado rapaz agora seraacutes um outro
como ele Mas por nossa vez cantaremos e elevaremos o teu Daacutefnis aos astros aos
astros levaremos Daacutefnis Daacutefnis tambeacutem nos amou
Mopso
Acaso haveraacute para noacutes algo maior do que semelhante daacutediva E o proacuteprio rapaz
foi digno de ser cantado e estes versos jaacute haacute muito tempo Estimicatildeo70 nos louvou
Menalcas
O cacircndido Daacutefnis admira o desconhecido limiar do Olimpo71 vecirc as nuvens e as
estrelas sob seus peacutes Por isso alegre prazer domina as florestas os campos
restantes Patilde72 os pastores e as jovens Driacuteades73 O lobo natildeo prepara ardis ao
rebanho nem as redes preparam algum engano aos cervos O bom Daacutefnis ama os
oacutecios Os proacuteprios montes agrestes com alegria proferem gritos para os astros As
proacuteprias pedras os proacuteprios bosques entoam versos Um deus ele eacute um deus
Menalcas Oacute que tu sejas bom e favoraacutevel para os teus Eis aqui quatro altares Dois
para ti oacute Daacutefnis dois mais altos para Febo Todo ano ofertarei para ti duas taccedilas
espumantes com leite fresco e duas tigelas com azeite abundante74 Sobretudo
alegrando os festins com transbordante Baco75 ante o fogo se frio estiver agrave sombra
durante colheitas Derramarei nos copos os vinhos ariuacutesos76 um fresco neacutectar
Cantaratildeo para mim Dametas77 e Eacutegatildeo de Licto78 Alfesibeu79 imitaraacute os saacutetiros80
saltitantes Estes ritos para ti sempre existiratildeo seja quando fizermos votos solenes agraves
69Mestre alusatildeo a Daacutefnis pastor e cantor por excelecircncia 70Estimicatildeo pastor 71Olimpo Monte entre a Tessaacutelia e a Macedocircnia onde se acreditava residirem os deuses oliacutempicos 72Patilde deus dos pastores da Arcaacutedia 73Driacuteades ninfas dos bosques 74Azeite abundante oferendas agrave nova entidade rural Daacutefnis aparece como mortal divinizado 75Baco vinho por metoniacutemia 76Vinho ariuacuteso vinho de um promontoacuterio em Quios ilha das Ciacuteclades 77Dametas pastor 78Eacutegatildeo pastor da ilha de Creta 79Alfesibeu pastor 80 Saacutetiros saltitantes entidades hiacutebridas figuras humanas com chifres e patas de bode Personificam a natureza selvagem e os instintos primitivos Acompanham Baco Patilde e as Ninfas
85
Ninfas seja quando purificarmos81 os campos Enquanto o javali amar os cimos do
monte enquanto o peixe amar os rios enquanto as abelhas alimentarem-se de
tomilho e as cigarras de orvalho a honra e o teu nome e os louvores sempre
permaneceratildeo Assim como a Baco e agrave Ceres82 todo ano os agricultores prestaratildeo
votos para ti Tu mesmo solicitaraacutes os votos
Mopso
O que oferecerei a ti que presente por tal canto Pois natildeo me agrada tanto o
silvo que vem do Austro83 nem as praias atingidas pela onda nem os rios que correm
entre vales pedregosos
Menalcas
Primeiro noacutes te presentearemos com esta fraacutegil flauta que nos ensinou que
ldquoCoacuteridon ardia pelo formoso Aleacutexis84rdquo bem como ldquoDe quem pertence o rebanho
Acaso eacute de Melibeu85rdquo
Mopso
E tu Menalcas recebe o cajado que eacute formoso com noacutes iguais e com bronze
o qual embora frequentemente me rogasse Antiacutegenes natildeo levou (e era entatildeo digno
de ser amado)
81 Purificaccedilatildeo dos campos celebraccedilotildees em honra de Ceres 82Ceres deusa protetora das colheitas 83Austro vento teacutepido do sul 84Aleacutexis objeto do desejo do pastor Coacuteridon (alusatildeo agrave Bucoacutelica II) 85Melibeu pastor (alusatildeo ao iniacutecio da Bucoacutelica III)
86
53 FIGURATIVIDADE NA BUCOacuteLICA V ndash anaacutelise do texto
A poesia de gecircnero bucoacutelico destina-se aos assuntos da vida campestre em
que estatildeo presentes a natureza os animais e o pastor de cabras ou ovelhas figura
recorrente e que estaacute em simbiose com o oacutecio e os prazeres do viver ruacutestico do campo
O termo boukolikaacute ldquobucoacutelicardquo em grego refere-se a cantos de boiadeiros No que diz
respeito ao termo έχλογή (eacutecloga ou eacutegloga) trata-se de um adjetivo substantivado
que significa laquoescolharaquo laquopoesia ou trecho escolhidoraquo Soacute na linguagem moderna eacute
que se comeccedilou a empregar este termo como sinocircnimo de idiacutelio isto eacute de composiccedilatildeo
pastoril (BOLEacuteO 1936 p 15) Para Boleacuteo isso se deve a uma influecircncia antiga de
uma etimologia errocircnea segundo a qual laquoeacuteclogaraquo viria de αίξ αιγός cabra e
significaria portanto qualquer coisa como laquocanto ou poema em que entram cabrasraquo
(quando eacute sabido que laquoeacuteclogaraquo vem do verbo έχ-λέγειν escolher) Hoje os dicionaacuterios
modernos referem-se ao vocaacutebulo eacutecloga como sinocircnimo de cantos dialogados entre
pastores
Seacutervio gramaacutetico latino do seacuteculo IV dC em seu In Vergilii Carmina
Commentarii tambeacutem discorre acerca da origem do poema bucoacutelico Para ele as
bucoacutelicas foram assim chamadas a partir dos guardadores de bois Seacutervio entatildeo
menciona que a origem deste tipo de poema estaacute atrelada aos hinos em louvor a Diana
e Apolo Nocircmio no tempo em que o deus apascentou os rebanhos de Admeto Seacutervio
afirma ainda que o poema bucoacutelico foi dedicado pelos pastores aos numes ruacutesticos
tais como Patilde faunos ninfas e saacutetiros
Assim na composiccedilatildeo bucoacutelica geralmente figuram os guardadores de gado
os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas que estatildeo sempre
inseridos em um cenaacuterio campesino Os pastores satildeo representados como homens
do campo que vivem singelamente e que estatildeo sempre acompanhados de seus
cajados e rebanhos Aleacutem disso no momento de oacutecio entoam cantigas inocentes na
singela flauta
Em Roma coube a Virgiacutelio as primeiras composiccedilotildees pastoris Nas Bucoacutelicas
coleccedilatildeo de poemas publicados entre 42 e 37 aC ao buscar motivos nos Idiacutelios de
Teoacutecrito poeta siracusano do Periacuteodo Heleniacutestico (seacutec III aC) tambeacutem conhecido
87
tradicionalmente como o fundador do gecircnero bucoacutelico Virgiacutelio criou ambientaccedilotildees e
personagens valendo-se de uma linguagem repleta de elementos figurativos
A tradiccedilatildeo claacutessica atribui ao siracusano Teoacutecrito a origem do poema bucoacutelico
Girard (apud BOLEacuteO 1936 p 21) ao referir-se agrave poesia pastoril grega menciona o
nome de Teoacutecrito como criador de modelos Mas nos estudos de Boleacuteo afirma-se
que seria errocircneo pensar em Teoacutecrito como uacutenico criador da poesia de gecircnero
bucoacutelico jaacute que o poeta tal como Homero vale-se de uma reminiscecircncia literaacuteria
praticada na Greacutecia Com isso ao mencionar as origens remotas da poesia bucoacutelica
Boleacuteo (1936 p 33) lembra sobre a praacutetica da agricultura (referindo-se assim ao
campo e agrave natureza em geral) e da pastoriacutecia (referindo-se agrave simpatia pelo pastor)
como elemento fundamental para a caracterizaccedilatildeo do povo siciliano e da Siciacutelia tida
pelo criacutetico como a paacutetria por excelecircncia do gecircnero da poesia pastoril Somando-se a
isso Boacuteleo menciona que a poesia bucoacutelica teve na mitologia agreste especialmente
no mito de Daacutefnis sua principal fonte
Os poemas bucoacutelicos de Virgiacutelio apresentam um cenaacuterio em que estatildeo
presentes figuras coerentes ao contexto pastoril Mas Zeacutelia de Almeida Cardoso
(1989 p 66) afirma que ldquoApesar da simplicidade dos temas a linguagem de Virgiacutelio
nas Bucoacutelicas eacute bastante rica em figuras de estilo e elementos ornamentaisrdquo Isso
mostra que a expressatildeo tradicional ldquoestilo simplesrdquo para caracterizar o gecircnero bucoacutelico
pode induzir a conclusotildees precipitadas do ponto de vista da sofisticaccedilatildeo da linguagem
empregada nos poemas Ao nos referirmos ao estilo simples em relaccedilatildeo agrave poesia
bucoacutelica de Virgiacutelio queremos com isso destacar o efeito de sentido depreendido a
partir de uma coerecircncia discursiva O estilo simples se verifica dessa forma na
expectativa gerada pela rede de figuras que eacute recorrente no discurso sendo capaz de
construir um especiacutefico efeito de sentido partindo da caracterizaccedilatildeo do tipo de
personagens e ambientaccedilatildeo proacuteprios da poesia bucoacutelica
O pastor o protagonista do cenaacuterio bucoacutelico aleacutem de se deleitar com a vida
ruacutestica do campo desfrutando do oacutecio tambeacutem participa com seu engenho e arte da
composiccedilatildeo da cena pastoril Fontenelle (apud BOLEacuteO 1936 p 59) revela assim
que o poema bucoacutelico traz um elemento muito importante o aspecto musical
O costume de fazer acompanhar a poesia de muacutesica ou melhor o haacutebito de
compor versos para serem cantados e acompanhados de um instrumento musical
natildeo era soacute peculiar agrave poesia liacuterica mas agrave poesia em geral de tal forma que antes de
88
Hesiacuteodo e Piacutendaro a palavra ldquocriadorrdquo ou ldquopoetardquo era sinocircnimo de cantor de aedo []
(BOLEacuteO 1936 p 59)
Com isso os pastores na poesia de gecircnero bucoacutelico estatildeo ligados agrave terra e agrave
arte de bem dizer e portanto frequentemente aparecem como cantores Sabe-se que
o canto bucoacutelico eacute um dos elementos essenciais nos Idiacutelios pastoris de Teoacutecrito
servindo de modelo a Virgiacutelio na composiccedilatildeo das Bucoacutelicas de nuacutemero I III V VII e
IX
As bucoacutelicas iacutempares apresentam diaacutelogos de pastores com tonalidade
dramaacutetica A seacutetima bucoacutelica por exemplo vale-se de proacutelogos dirigidos ao auditoacuterio
assemelhando-se agraves comeacutedias de Plauto Assim como esta os outros poemas
tambeacutem trabalham com o apelo cecircnico revelando-se fortemente dramaacuteticas
E de Saint-Denis (apud MENDES 1997 p 144) cita algumas dessas
caracteriacutesticas e questiona a investigaccedilatildeo das Bucoacutelicas a partir da encenaccedilatildeo e da
muacutesica Com base em dados cecircnico-musicais o criacutetico procura elementos que
revelem a progressatildeo dramaacutetica que se desenvolve no cenaacuterio bucoacutelico
Para Joatildeo Pedro Mendes (1997 p144)
A muacutesica acompanha sempre a encenaccedilatildeo quer executada pela flauta dos pastores quer murmurada em surdina pela natureza envolvente quer ainda pelos recursos teacutecnicos do verso (anaacuteforas ecos ressonacircncias aliteraccedilotildees e assonacircncias no final do verso ou do hemistiacutequio)
O desafio poeacutetico de motivo liacuterico era praticado entre dois pastores O canto
dialogado constituiacutea o chamado canto amebeu ldquoque significa tomar uma coisa em
troca doutrardquo (BOLEacuteO 1936 p 61) Com o teacutermino dos cantos o pastor vitorioso
recebia um precircmio uma flauta pastoril ou um cajado por exemplo
Ao definir os antecedentes do desafio poeacutetico Luiacutes da Cacircmara Cascudo (2005)
tambeacutem menciona os versos improvisados que os romanos chamaram de
amoeboeum carmen ou seja canto amebeu que ldquoera alternado e os interlocutores
deviam responder com igual nuacutemero de versosrdquo (2005 p 185-186)
Em seu ensaio Virgiacutelio e os cantadores (2005) Mauro Mendes apresenta-nos
uma definiccedilatildeo para o concurso ou desafio poeacutetico entre pastores
Enquanto cuidavam dos rebanhos os pastores costumavam promover disputas entre si para ver quem era o melhor na arte de cantar e fazer versos Plessis sem nenhum preconceito chama a este tipo de
89
disputa de ldquoconcurso poeacuteticordquo (concours poeacutetique) o qual se realizava sob a observaccedilatildeo de um juiz Iniciada a disputa os dois rivais se alternavam cantando estrofes que deviam ter o mesmo nuacutemero de versos tendo o segundo improvisador a obrigaccedilatildeo de se manter dentro do tema proposto pelo primeiro quer o contradizendo quer o enriquecendo com variaccedilotildees O primeiro improvisador (repentista) tanto podia se manter dentro de um mesmo tema durante vaacuterias estrofes quanto podia mudaacute-lo bruscamente criando assim dificuldades para o segundo Este tipo de desafio era denominado canto ldquoamebeurdquo (canto alternado) (MENDES 2005 p 16-17)
A ldquoV Bucoacutelicardquo concentra-se no canto alternado entre dois amigos pastores
Menalcas e Mopso que se encontram em um cenaacuterio campestre para juntos
celebrarem o pastor miacutetico Daacutefnis e por extensatildeo o proacuteprio gecircnero bucoacutelico De
acordo com Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 236) o canto amebeu existe neste poema
todavia em um tom muito diferente pois natildeo haacute o compromisso da aposta entre os
dois pastores-cantadores Aleacutem disso apresentam-se trechos longos elaborados
que visam o mero prazer de recitar
Logo a composiccedilatildeo do universo pastoril seraacute feita gradualmente a partir da fala
dos personagens-pastores O poema inicia-se com a fala de Menalcas (hex 1-3) que
apresenta a descriccedilatildeo do locus amoenus
MENALCAS
Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo tu calamos inflare leuis ego dicere uersus hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre os olmeiros misturados agraves aveleiras
Nestes versos Menalcas convida o pastor Mopso para sentar-se entre os
olmeiros e as aveleiras O Olmeiro (ou Ulmeiro) eacute uma aacutervore de grande porte e
portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra Era comum aos pastores no
momento de oacutecio desfrutarem da sombra de uma frondosa faia enquanto tocavam a
singela flauta Trata-se de uma temaacutetica recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico A
descriccedilatildeo do lugar apraziacutevel e favoraacutevel portanto ao canto aparece iconicamente no
hexacircmetro 3
90
Hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
Aqui nos sentamos entre os olmeiros misturados agraves aveleiras
Destaca-se deste verso o verbo ldquoconsedimusrdquo (sentamos) que estaacute entre
ldquocorylisrdquo aveleiras e ldquoulmosrdquo olmeiros figurativizando o convite que Menalcas faz a
Mopso o de que deveriam se sentar entre as aveleiras e os olmeiros Nota-se que a
disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso favorece agrave impressatildeo referencial do cenaacuterio
bucoacutelico ou seja agrave percepccedilatildeo da imagem dos dois pastores que sentados entre as
aacutervores cantam a natureza que os cerca
O efeito de sentido simples eacute depreendido aqui a partir da descriccedilatildeo do cenaacuterio
bucoacutelico O lugar elegido pelos pastores eacute o chatildeo ruacutestico de onde se aproveitaraacute a
sombra do olmeiro que se encontra perto das aveleiras Dando continuidade agrave
construccedilatildeo desse efeito temos a fala de Mopso que em resposta a Menalcas (hex
4-7) procura sugerir um outro lugar para o encontro ampliando de tal forma a
descriccedilatildeo do cenaacuterio tipicamente bucoacutelico
MOPSVS
Tu maior tibi me est aequom parere Menalca Siue sub incertas Zephyris motantibus umbras Siue antro potius succedimus Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis
Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo
das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados ou melhor em uma gruta
sigamos Vecirc como a videira silvestre a cobriu com cachos raros
Da fala de Mopso merece destaque o hexacircmetro 5
Siue Sub incertaS ZephyriS motantibuS umbraS
Seja debaixo das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados
A repeticcedilatildeo do fonema s ao longo do verso deixa entrever uma sibilacircncia
significativa pois sugere a cena que estaacute sendo descrita a de que as sombras
91
proporcionadas pelas aacutervores satildeo inconstantes devido ao sopro dos ventos presente
figurativamente na repeticcedilatildeo da sibilante s O que se pode observar nesse trecho eacute
uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem em que o poeta relaciona o som ao sentido
e procura colocar em destaque agravequilo de que fala O discurso poeacutetico com isso
identifica-se com o proacuteprio referente As palavras de Joseacute Luiz Fiorin (1992 p 21)
vecircm ao encontro desse raciociacutenio
O conteuacutedo precisa unir-se a um plano de expressatildeo para manifestar-
se A expressatildeo principalmente no texto literaacuterio fornece tambeacutem
elementos dotados de valor significativo Esses elementos satildeo
basicamente os efeitos estiliacutesticos da expressatildeo ritmo aliteraccedilotildees
assonacircncias figuras de construccedilatildeo etc
Zeacutefiro eacute o vento oeste a personificaccedilatildeo do sopro sugerido pela aliteraccedilatildeo da
sibilante s no quinto hexacircmetro do poema de Virgiacutelio No quadro O Nascimento de
Vecircnus de Sandro Botticelli o sopro do Zeacutefiro permite que Vecircnus deusa do amor e da
beleza aproxime-se da Ilha de Chipre onde deveraacute ser recebida pelas Graccedilas
Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus
Fonte CUMMING Robert 1998 p 22
92
O sopro que em Virgiacutelio aparece como jogo aliterativo na concretude das
palavras dispostas no verso e na tentativa de homologaccedilatildeo do som ao sentido em
Botticelli aparece no movimento pictoacuterico sugerido pela ilusatildeo da presenccedila das ondas
no mar no manto e nos cabelos esvoaccedilantes aleacutem das flores que se desprendem
com o movimento desse sopro Enquanto Virgiacutelio extrai da palavra seu poder
figurador Botticelli exalta a plasticidade dos corpos e sugere a sensaccedilatildeo de
movimento as figuras estatildeo paradas enquanto as linhas se movimentam
Voltando agrave descriccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico da fala de Mopso ainda merecem
destaque os hexacircmetros 6 e 7
[] Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis
Vecirc como a videira silvestre cobriu a gruta com cachos raros
A disposiccedilatildeo dos sintagmas neste verso contribui para a construccedilatildeo figurativa
da cena que estaacute sendo descrita Nota-se que a videira silvestre ldquolabrusca siluestrisrdquo
estaacute entre os cachos raros ldquoraris racemisrdquo favorecendo agrave construccedilatildeo da imagem da
videira que estaacute circundada por cachos dispersos de uvas
A descriccedilatildeo do locus amoenus mais uma vez aparece na fala do pastor
remetendo-nos ao efeito de sentido simples proacuteprio da poesia bucoacutelica
No decorrer dos cantos alternados entre os amigos pastores o cenaacuterio bucoacutelico
vai sendo tecido ao abrigo de figuras que entrecruzadas favorecem agrave apreensatildeo
temaacutetica do ldquolouvor ao proacuteprio canto bucoacutelicordquo
Logo Menalcas (hex10-12) sugere a Mopso alguns temas mais elevados para
o canto bucoacutelico os louvores de Alcatildeo as disputas de Codro e a histoacuteria de Fiacutelis
afirmando que os cabritos seratildeo guardados por Tiacutetiro Alcatildeo era companheiro de
Heacutercules foi um haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu
filho sem o ferir Codro foi um rei ateniense que se sacrificou por sua paacutetria e Fiacutelis foi
uma princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado enforcou-
se e foi transformada em amendoeira Menalcas apresenta dessa forma alguns
temas um pouco mais elevados para abrir a inspiraccedilatildeo do amigo pastor Mas Mopso
se recorda da temaacutetica bucoacutelica e assim responde
93
(hex 13-15)
MOPSVS
Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi carmina descripsi et modulans alterna notaui experiar tu deinde iubeto certet Amyntas
Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na casca verde de uma faia tu em seguida mandai que Amintas dispute (comigo)
A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute
que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos
As figuras apresentadas remetem-nos portanto agrave descriccedilatildeo do espaccedilo
campestre que deve ser sempre um lugar apraziacutevel tanto ao oacutecio quanto ao canto
Aleacutem disso a fala de Mopso deixa entrever os temas singelos humildes proacuteprios da
poesia bucoacutelica o que corrobora para a construccedilatildeo do efeito de sentido simples
Menalcas nos hexacircmetros 16 a 19 cita outros elementos que compotildeem o
espaccedilo bucoacutelico e em seguida entra na gruta com Mopso
MENALCAS
Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae puniceis humilis quantum saliunca rosetis iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas Sed tu desine plura puer sucessimus antro
Assim como o flexiacutevel salgueiro cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo ceacuteltico (cede) agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta
O salgueiro citado por Menalcas eacute um arbusto de folhas delgadas com longos
e flexiacuteveis ramos que serviam para a confecccedilatildeo de cestas e outros objetos de uso
rural A oliveira no pequeno excerto ganha o epiacuteteto de paacutelida Isso se deve agrave cor de
sua folhagem jaacute que nos olivais prevalece o tom cinza As figuras apresentadas na
94
fala dos pastores ao tecer um cenaacuterio bucoacutelico por meio de recorrecircncias coerentes
vatildeo criando um efeito de sentido que caracteriza o estilo simples proacuteprio da poesia
pastoril
Tendo transferido o lugar do canto das sombras incertas para a gruta
circundada por cachos de uvas os pastores iniciam o canto O lugar apraziacutevel
escolhido pelos pastores pode ser definido como um iacutendice espacial em que figuram
os elementos responsaacuteveis pela caracterizaccedilatildeo do gecircnero da poesia pastoril Aleacutem
disso nota-se que o iacutendice temporal eacute estaacutetico jaacute que o ambiente e as personagens
tecircm avidez de presente Isso eacute previsto pelo equiliacutebrio sugerido pela composiccedilatildeo de
gecircnero bucoacutelico que natildeo comporta sobressaltos ou rupturas na descriccedilatildeo do locus
amoenus e no tempo que rege as personagens Os pastores exaltam a tranquilidade
que adveacutem da natureza e a partir dela entoam seus versos
Mopso entatildeo principia a celebraccedilatildeo de Daacutefnis em uma espeacutecie de hino
fuacutenebre em que canta o modo como a natureza pranteou o inventor do canto
bucoacutelico Nos hexacircmetros de nuacutemero 20 a 44 observa-se que as Ninfas divindades
que habitam as fontes montes e campos natildeo mais seratildeo lembradas pelo lendaacuterio
cantor bucoacutelico e por isso choram a sua morte Essas divindades figurativizam os
elementos da natureza que geralmente compotildeem todo o ambiente campestre O canto
de Mopso deixa entrever que a morte de Daacutefnis eacute responsaacutevel pela quebra da ordem
natural das coisas jaacute que nenhum animal tocou a erva do pasto ou provou a aacutegua do
regato Devido agrave morte de Daacutefnis os campos tornaram-se infeacuterteis e produziram
plantas esteacutereis e com espinhos o que demonstra a tristeza do cenaacuterio bucoacutelico
Afinal
Dafnis eacute um pastor ou antes o pastor por excelecircncia [] a divindade protectora dos pastores Eacute pastor [] tem um rebanho a seu cargo leva-o a pascer aos campos Aiacute enamoram-se decircle tocircdas as coisas tocircdas as criaturas desde as inanimadas ndash as pedras as aacutervores ndash ateacute aos animais A sua presenccedila anima a proacutepria natureza que vive e sente como um ser humano(BOLEacuteO 1936 p 31-2)
No canto de Menalcas (hex 56-80) tem-se a divinizaccedilatildeo do pastor Daacutefnis jaacute
que ele seraacute cantado agrave semelhanccedila de Baco o deus do vinho e de Ceres a deusa
da colheita Enquanto no canto de Mopso a natureza se entristece com a morte do
pastor no canto de Menalcas a mesma natureza alegra-se com sua divinizaccedilatildeo uma
95
vez que o lendaacuterio pastor seraacute instituiacutedo como divindade campestre devendo ser
lembrado pelos agricultores juntamente com Baco e Ceres
De acordo com Prado (1992 p 55)
Daacutefnis eacute Daacutefnis ou ainda aquele heroacutei dos pastores da Siciacutelia que segundo a lenda inventou o canto bucoacutelico do qual se tornou depois sua figura predileta e mais filho de Hermes e de uma ninfa nasceu no vale dos montes Ereus a matildee o deu agrave luz ou o expocircs num bosque de louros donde o seu nome tendo crescido tornou-se um pastor de rebanhos bovinos que lhe aprazia apascentar cantando e tocando sua flauta de Patilde era belo a ponto de ter sido amado por seres humanos e divinos tais como Patilde Priapo as Ninfas as Musas Apolo Aacutertemis etc ainda jovem veio a morrer e toda a natureza o pranteou haacute vaacuterias versotildees acerca da forma como morreu segundo a versatildeo mais antiga a de Estesiacutecoro apaixonou-se por uma ninfa (Neide Equeneide ou Lica) que o cegou para vingar-se de uma infidelidade por algum tempo Daacutefnis confortou-se com seu proacuteprio canto mas depois num momento de desespero precipitou-se do alto de uma rocha e foi levado aos ceacuteus por Hermes os pastores passaram a oferecer-lhe sacrifiacutecios anualmente no local onde ele teria se precipitado Tal eacute a resposta mais objetiva que se pode dar acerca da identidade de Daacutefnis
Ao questionarmo-nos sobre a escolha do mito de Daacutefnis na ldquoV Bucoacutelicardquo
chegamos em Teoacutecrito jaacute que em seu Idiacutelio I ldquoencontramos o pastor Thyrsis cantando
os infortuacutenios de Daacutefnis golpeado por Afrodite por um amor irresistiacutevel porque se
gabava de ser insensiacutevel a essa classe de paixatildeo Vaacuterias passagens daquele canto
e mesmo alguns versos inteiros foram reproduzidos por Virgiacutelio na Eacutegloga Vrdquo
(PRADO 1992 p 56)
Mas vale ressaltar que no idiacutelio de Teoacutecrito Daacutefnis natildeo eacute divinizado mas sim
ao contraacuterio jaacute que ele ldquobaixa agraves profundezas do Hades ateacute submergir ou dissolver-
se nas aacuteguas do rio Estiacutegio enquanto no relato do pastor virgiliano (vs 56-80) haacute uma
longa celebraccedilatildeo do novo status de Daacutefnis como deus []rdquo (PRADO 1992 p 56
grifo do autor)
Na visatildeo de Prado (1992 p 56-57) Virgiacutelio na ldquoV Bucoacutelicardquo distancia-se da
temaacutetica teocriteana para assim construir um novo mito calcado no discurso histoacuterico
e lendaacuterio dos feitos de Ceacutesar criando com isso uma atmosfera propiacutecia ao
Cesarismo que ficaria cristalizado posteriormente na figura de Otaviano
Segundo Prado (1992) Juacutelio Ceacutesar e Daacutefnis podem ser aproximados no
discurso poeacutetico de Virgiacutelio porque ambos podem ser vistos como heroacuteis lendaacuterios
96
aleacutem do que alguns indiacutecios da histoacuteria do general romano mostram que Ceacutesar
tambeacutem foi divinizado em 42 aC pelos triuacutenviros Aleacutem disso outro intertexto que
torna possiacutevel aliar a histoacuteria lendaacuteria de Ceacutesar com a de Daacutefnis segundo o criacutetico eacute
a sucessatildeo de eventos que se seguem apoacutes a morte do imperador mas descritos em
um texto posterior nas Geoacutergicas (Canto I hex-463-488)
Nas palavras de Prado (1992 p 57)
Quando ele morreu Virgiacutelio nos conta que o sol se escondeu e o povo julgou que fosse o fim dos tempos aleacutem do sol tambeacutem deram sinais a terra as aacuteguas do mar os catildees agourentos as aves mal astradas o Etna vomitou lava ouviram-se clamores de guerra na Germacircnia os Alpes tremeram vozes ressoaram na escuridatildeo da noite e fantasmas apareceram nos bosques animais falaram rios houve que transbordaram ou suspenderam o curso de suas aacuteguas e toda sorte de estranhos acontecimentos deram lugar agrave morte desse heroacutei de Roma
Logo segundo Prado todos esses fatos lendaacuterios quando somados deixam
entrever uma apropriaccedilatildeo de um aspecto cultural e poliacutetico do tempo de Virgiacutelio
Natildeo podemos perder de vista eacute claro que ldquoos noventa hexacircmetros datiacutelicos de
Virgiacutelio que a tradiccedilatildeo dos estudos claacutessicos nos transmite sob a designaccedilatildeo de
Eacutegloga V por vezes subintitulados Daphnis em boas ediccedilotildees satildeo como os de
qualquer uma das outras nove peccedilas da coletacircnea uma fala em liacutengua latinardquo (LIMA
1992 p 59 grifo do autor)
Na visatildeo de Lima (1992) neste canto liacuterico-pastoral de Virgiacutelio deixa-se
entrever um efeito de sentido logo no iniacutecio do primeiro hexacircmetro ndash Cur non
consedimus (Por que natildeo nos sentamos) Cur eacute responsaacutevel por causa de seu
valor latino de forma de interrogaccedilatildeo pelo efeito de sentido ldquoconversa entre
interlocutoresrsquo
com que Virgiacutelio finge poeticamente incorporar a uma simples fala de pastores aquilo que eacute mais propriamente efusatildeo liacuterica ao mesmo tempo em que se torna como que natural o prolongamento dessa efusatildeo graccedilas agrave economia simulada num jogo de pergunta e resposta entre parceiros No plano fonoloacutegico cur 1) antecipa e faz ressoarem as assonacircncias em liacutequidas intensificadas jaacute no hexacircmetro seguinte 2) acentua a oposiccedilatildeo entre a leveza da flauta ruacutestica que parece comunicar-se agrave liquidez natural do seu som simbolizada no fonema [l] e uma certa dureza das vibraccedilotildees do [r] da voz humana do pastor Menalcas tu calamos inflare leuis ego dicere uersus (LIMA 1992 p 63 grifos do autor)
97
Segundo Lima (1992) Daphnis eacute o vocaacutebulo de maior recorrecircncia na ldquoV
Bucoacutelicardquo jaacute que aparece 13 vezes pois tem um relevo especial Para o criacutetico natildeo
haacute duacutevida sobre a adesatildeo entusiasta do poeta em relaccedilatildeo agrave monarquia juliana Mas
se isso deve ser interpretado ldquocomo identificaccedilatildeo pura e simples de uma obra que eacute
produto do imaginaacuterio e do talento com a ideologia dos mortais interessados no ecircxito
de um evento poliacutetico e natildeo primeiro como transfiguraccedilatildeo poeacutetica da vida em
sociedade eacute uma questatildeo de gosto e de sensibilidaderdquo (LIMA 1992 p 63-64)
Com relaccedilatildeo aos expedientes figurativos presentes no poema podem-se
destacar ainda os hexacircmetros 83 e 84 da fala de Mopso que se emociona com o
canto de Menalcas e afirma que nem as aacuteguas que descem pelo vale o deleitam tanto
[] nec quae saxosas inter decurrunt flumina uallis
nem os rios que descem por entre vales escarpados
A distribuiccedilatildeo dos vocaacutebulos contribui iconicamente para a mimetizaccedilatildeo da
cena que estaacute sendo invocada jaacute que ldquofluminardquo rios aparece figurativamente entre
ldquouallis saxosasrdquo vales escarpados Temos dessa forma a imagem do rio construiacuteda
em meio ao vale
Ao apresentar o pastor Daacutefnis lendaacuterio inventor do canto bucoacutelico como tema
principal de toda a trama de figuras a ldquoV Bucoacutelicardquo deixa entrever o tema do ldquolouvor
ao proacuteprio gecircnero pastorilrdquo que eacute revestido por figuras que simbolizam todo o universo
campestre
O estilo pensado aqui como efeito de individuaccedilatildeo construiacutedo no poema eacute
depreendido pela coerecircncia discursiva ou seja pela rede de figuras que vatildeo criando
uma expectativa do dizer A recorrecircncia figurativa potencializa dessa forma o estilo
enunciado porque ele vai aparecer como um efeito de sentido depreendido pelo
contexto do poema Na ldquoV Bucoacutelicardquo portanto temos um estilo simples construiacutedo
como efeito a partir de um cenaacuterio campesino (com uma gruta coberta por cachos de
uvas um olmeiro uma frondosa faia) o canto alternado entre dois pastores (Mopso e
Menalcas) e a menccedilatildeo a deuses que se coadunam com o ambiente campestre
(Daacutefnis Ceres)
98
Buscou-se entender assim como o arranjo de figuras presentes no poema
contribui para a construccedilatildeo da verossimilhanccedila do cenaacuterio bucoacutelico o locus amoenus
o lugar apraziacutevel destinado ao canto e ao oacutecio dos poetas-pastores Ao destacarmos
o jogo aliterativo e posicional das palavras na produccedilatildeo de impressotildees referenciais
procuramos apreender tambeacutem a forma como Virgiacutelio trama as palavras que estatildeo em
andamento no poema remetendo-nos ao sentido poeacutetico e esteacutetico do texto
99
54 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) ldquodescriccedilatildeo do lugar adequado
para as abelhasrdquo
Protinus aerii mellis caelestia dona
exsequar hanc etiam Maecenas adspice partem
Admiranda tibi leuim spetacula rerum
magnanimosque duces totiusque ordine gentis
mores et studia et populos et proelia dicam 5
In tenui labor at tenuis non gloria si quem
numina laeua sinunt auditque uocatus Apollo
Principio sedes apibus statioque petenda
quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti
ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci 10
floribus insultent aut errans bubula campo
decutiat rorem et surgentis atterat herbas
Absint et picti squalentia terga lacerti
pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolocres
et manibus Procne pectus signata cruentis 15
omnia nam late uastant ipsasque uolantis
ore ferunt dulcem nidis immitibus escam
At liquidi fontes et stagna uirentia musco
adsint et tenuis fugiens per graminha riuos
palmaque uestibulum aut igens oleaster inumbret 20
ut cum prima noui ducent examina reges
uere suo ludetque fauis emissa iuuentus
uicina inuitet decedere ripa calori
100
obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos
In medium seu stabit iners seu profluet umor 25
transuersas salices et grandia conice saxa
pontibus ut crebris possint consistere et alas
pandere ad aestiuom86 solem si forte morantis
sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus
Haec circum casiae uirides et olentia late 30
serpylla87 et grauiter spirantis copia thymbrae
floreat inriguom88que bibant uiolaria fontem
Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis
seu lento fuerint aluaria uimine texta
angustos habeant aditus nam frigore mella 35
cogit hiems eademque calor liquefacta remittit
Vtraque uis apibus pariter metuenda neque illae
nequiquam in tectis certatim tenuia cera
spiramenta linunt fucoque et floribus oras
explent conlectumque haec ipsa ad munera gluten 40
et uisco et Phrygiae seruant pice lentius Idae
Saepe etiam effosis si uera est fama latebris
sub terra fouere larem penitusque repertae
pumicibusque cauis exesaeque arboris antro
Tu tamen et leui rimosa cubilia limo 45
unge fouens circum et raras superinice frondis
86 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aestiuum Aquiacute optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1956 87 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se serpulla 88 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se inriguumque
101
neu propius tectis taxum sine neue rubentis
ure foco cancros altae neu crede paludi
aut ubi odor caeni grauis aut ubi concaua pulsu
saxa sonant uocisque ofensa resultat imago 50
Quod superest ubi pulsam hiemem sol aureus egit
sub terras caelumque aestiua luce reclusit
illae continuo saltus siluasque peragrant
purpureosque metunt flores et flumina libant
summa leues Hinc nescio qua dulcedine laetae 55
progeniem nidosque fouent hinc arte recentis
excudunt ceras et mella tenacia fingunt
Hinc ubi iam emissum caueis ad sidera caeli
nare per aestatem liquidam suspexeris agmen
obscuramque trahi uento mirabere nubem 60
contemplator aquas dulcis et frondea semper
tecta petunt Huc tu iussos adsperge sapores
trita melisphylla et cerinthae ignobile gramen
tinnitusque cie et Matris quate cymbala circum
ipsae consident medicatis sedibus ipsae 65
intima more suo sese in cunabula condent
Sin autem ad pugnam exierint ndash nam saepe duobus
regibus incessit magno discordia motu
continuoque animos uolgi89 et trepidantia bello
corda licet longe praesciscere namque morantis 70
89 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se uulgi
102
Martius ille aeris rauci canor increpat et uox
auditur fractos sonitus imitata tubarum
tum trepidae inter se coeunt pinnisque coruscant
spiculaque exacuunt rostris aptantque lacertos
et circa regem atque ipsa ad praetoria densae 75
miscentur magnisque uocant clamoribus hostem
ergo ubi uer nactae sudum camposque patentis
erumpunt portis concurritur aethere in alto
fit sonitus magnum mixtae glomerantur in orbem
praecipitesque cadunt non densior aere grando 80
nec de concussa tantum pluit ilice glandis
ipsi per medias acies insignibus alis
ingentis animos angusto in pectore uersant
usque adeo obnixi non cedere dum grauis aut hos
aut hos uersa fuga uictor dare terga subegit ndash 85
hi motus animorum atque haec certamina tanta
pulueris exigui iactu compressa quiescunt
Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo
deterior qui uisus eum ne prodigus obsit
dede neci melior uacua sine regnet in aula 90
Alter erit maculis auro squalentibus ardens
(nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore
et rutilis clarus squamis ille horridus alter
desidia latamque trahens inglorius aluom90
90 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se aluum
103
Vt binae regum facies ita corpora plebis 95
namque aliae turpes horrent ceu puluere ab alto
quom91 uenit et sicco terram spuit ore uiator
aridus elucent aliae et fulgore coruscant
ardentes auro et paribus lita corpora guttis
Haec potior suboles hinc caeli tempore certo 100
dulcia mella premes nec tantum dulcia quantum
et liquida et durum Bacchi domitura saporem
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt
contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont92
instabilis animos ludo prohibebis inani 105
Nec magnus prohibere labor tu regibus alas
eripe non illis quisquam cunctantibus altum
ire iter aut castris audebit uellere signa
Inuitent croceis halantes floribus horti
et custos furum atque auium cum falce saligna 110
Hellespontiaci seruet tutela Priapi
Ipse thymum pinosque93 ferens de montibus altis
tecta serat late circum quoi94 talia curae
ipse labore manum duro terat ipse feracis
figat humo plantas et amicos inriget imbris 115
91 Na estaccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cum 92 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se relinquunt 93 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tinosque 94 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cui
104
55 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) Traduccedilatildeo e notas
Continuadamente relatarei os dons celestes do aeacutereo mel95 Considera
tambeacutem Mecenas96 esta parte Para tua admiraccedilatildeo cantarei espetaacuteculos de breves
assuntos e em ordem magnacircnimos comandantes costumes ocupaccedilotildees povos e
combates de toda naccedilatildeo Pequeno o trabalho97 mas natildeo pequena a gloacuteria Se os
deuses contraacuterios o permitem e Apolo98 quando invocado ouve
Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que
natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem
as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo
agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes
Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos99 de ouriccedilados dorsos das feacuterteis
moradas e os melharucos100 outras aves e Procne101 marcada no peito com crueacuteis
matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes102
alimento doce para agrestes ninhos
Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos um
tecircnue riacho fluindo pela relva uma palmeira ou um alto zambujeiro103 sombreie o
vestiacutebulo104 para que quando os novos reis105 conduzirem os primeiros enxames de
abelhas em sua primavera106 e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma
margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com
folhagens hospitaleiras
No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados
salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir
95O mel era visto pelos antigos como um orvalho celeste 96Mecenas o patrono das artes na eacutepoca do reinado de Otaacutevio Augusto 97Trata-se de um assunto humilde Evidencia-se aqui a modeacutestia do tema 98Apolo o deus das artes 99Diz-se que o lagarto fica agrave espreita na entrada das colmeias sendo um de seus inimigos 100Melharuco (ou abelharuco) ave do tamanho de um sabiaacute que se nutre das abelhas e outros insetos 101Procne esposa de Tereu e irmatilde de Filomela Foi transformada em andorinha apoacutes matar o filho e servi-lo ao marido Diz-se que a mancha no peito da andorinha satildeo as marcas do sangue de Iacutetis 102 abelhas 103Zambujeiro oliveira brava 104 A entrada da colmeia 105Segundo o pensamento da eacutepoca as abelhas eram governadas por reis 106O adjetivo possessivo presente em ldquoVere suordquo indica que a primavera eacute a estaccedilatildeo das abelhas sendo mais favoraacutevel a elas
105
as asas ao sol de estio se por acaso Euro107 impetuoso tiver molhado ou submergido
em Netuno108 as que tardam
Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas109 e cheirosos serpotildees110
ao longe e uma abundacircncia de segurelha111 exalando fortemente e que os canteiros
de violetas bebam a uacutemida fonte
Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas
corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas
entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos112
Uma e outra forccedila igualmente deve ser temida pelas abelhas e natildeo sem motivo
agrave porfia113 elas revestem com cera114 as pequenas fendas de suas habitaccedilotildees e
vedam as extremidades com visco e flores e reunida para esses mesmos serviccedilos
[elas] conservam uma cola mais pegajosa do que o visgo e o pez do Ida Friacutegio115
Muitas vezes tambeacutem se eacute verdadeira a fama as abelhas aqueceram o lar em
tocas sob a terra e foram descobertas no interior de pedras porosas e na cavidade
de uma aacutervore carcomida116
Tu poreacutem unta as colmeias cheias de fenda com liso limo aquecendo ao
redor e lanccedila por cima raras117 folhagens E natildeo permitas o teixo perto dos tetos natildeo
queimes ao fogo os vermelhos caranguejos118 natildeo creias em profunda lagoa ou onde
eacute forte o odor da lama ou onde cocircncavas pedras ressoam com uma batida e resulta
o eco repercutido da voz119
107Euro vento do Leste capaz de alcanccedilar as abelhas perdidas (as que tardam) 108Netuno deus romano que preside os mares aqui representa a proacutepria agua 109 Manjerona planta aromaacutetica usada como condimento 110Serpatildeo (ou serpilho) planta aromaacutetica de pequeno porte 111Segurelha erva aromaacutetica planta ornamental tambeacutem usada como condimento 112Os excessos de calor e frio danificam o mel 113 As abelhas trabalham incansavelmente 114As abelhas revestem o interior das colmeias com proacutepolis O termo cera indica a qualidade do proacutepolis substacircncia escura e dura 115Ida friacutegio o monte Ida localizado na Friacutegia antiga regiatildeo no Oeste da Aacutesia Menor 116Diz-se que as abelhas tambeacutem se alojam em esconderijos em cavadas rochas ou nos buracos de aacutervores 117As folhagens natildeo devem ser muito longas pois o ar deve circular entre os ramos 118 Haacute diferentes remeacutedios que satildeo compostos com os caranguejos em brasa mas o odor desta preparaccedilatildeo eacute nocivo agraves abelhas 119As colmeias devem ser instaladas longe do barulho onde natildeo haacute mais eco
106
Quanto ao mais quando o aacuteureo sol expulsou o abatido inverno sob as terras120
e abriu o ceacuteu com luz de veratildeo imediatamente as abelhas percorrem os bosques e
as florestas recolhem as purpuacutereas flores e leves libam a superfiacutecie dos rios Assim
felizes eu natildeo sei por qual doccedilura aquecem os ninhos e a progecircnie depois elas
formam com arte novas ceras e produzem os licorosos meacuteis
Aiacute quando jaacute vires uma multidatildeo saiacuteda da colmeia voar pelo liacutempido estio ateacute
os astros do ceacuteu e admirares uma nuvem escura ser trazida pelo vento contempla
buscam sempre aacuteguas doces e abrigos cobertos de folhagens Espalha tu aiacute os
aromas determinados a melissa121 triturada e a erva comum do chupa-mel122 faze
ao redor soar zumbidos123 e agita os ciacutembalos da Matildee124 As proacuteprias abelhas
pousaratildeo nos lugares preparados125 elas mesmas abrigar-se-atildeo segundo seu
costume no interior da morada126
Mas se saiacuterem ao combate (porque muitas vezes a discoacuterdia de dois reis
sobreveio com grande alvoroccedilo) de longe se podem prever os acircnimos da turba e os
coraccedilotildees que vibram pela guerra127 porque aquele som marcial do rouco bronze
estimula as morosas e a voz que imita os ruidosos sons das trombetas eacute ouvida
Entatildeo agitadas entre si confrontam-se e batem as asas e afiam os ferrotildees com os
bicos e preparam as garras numerosas misturam-se ao redor do rei e ao mesmo
pretoacuterio o inimigo invocam com grandes clamores No momento em que tenham
encontrado clara primavera e descortinados campos lanccedilam-se pelas portas
combate-se Um barulho ressoa no alto ceacuteu misturadas aglomeram-se em um grande
orbe e caem precipitadas O granizo natildeo cai mais denso do ar nem tatildeo grande nuacutemero
de bolotas chove da sacudida azinheira
Os proacuteprios [reis] insignes pelas asas128 em meio aos exeacutercitos revolvem no
pequeno peito os ingentes acircnimos obstinados em natildeo ceder ateacute que o duro vencedor
120O inverno esconde-se nas entranhas da terra 121Mellisa folha para as abelhas ou para o mel 122 Chupa-mel erva de 30 a 50 cm de altura de cor roxa ou amarela cultivada em pastagens ou solo pedregoso 123 Para Virgiacutelio o barulho atrai as abelhas 124A ldquoMatildeerdquo eacute a deusa friacutegia Cibele a grande Matildee que preside toda a natureza Muitas vezes ela eacute representada com ciacutembalos 125 As abelhas entrariam na colmeia por si proacuteprias 126 Colmeia 127 Agitaccedilatildeo que se produz no enxame com a aproximaccedilatildeo do combate 128Os reis se distinguem das demais abelhas pela luminosidade de suas asas
107
obrigou estes ou aqueles a virar as costas na fuga Estes alvoroccedilos dos acircnimos e
estes tatildeo grandes combates se apaziguam reprimidos por um jato de bem pouco
poeira
Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele
que pareceu pior para que por consumir natildeo seja prejudicial deixe que o melhor
reine na desimpedida corte
Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de
ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor
aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre
Dois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo os corpos da plebe pois
umas satildeo disformes e horrendas como o viajante sedento quando vem da espessa
poeira e cospe terra de sua garganta seca outras reluzem e cintilam com fulgor
brilhantes do ouro em corpos mosqueados de manchas iguais
Essa eacute a melhor raccedila dela na estaccedilatildeo certa do ano extrairaacutes os doces meacuteis
natildeo tatildeo doces quanto puros para corrigir o aacutespero sabor de Baco
Mas quando incertos os enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os
favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o
fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles
imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do
acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e
a tutela de Priapo129 do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua
foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado
trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor
dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele
mesmo no solo enterre as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas
129 Priapo filho de Vecircnus e Baco o deus dos jardins Juno fez com que Priapo nascesse deformado Envergonhada Vecircnus mandou-o para Lacircmpsaco cidade da Miacutesia sobre o Helesponto
108
56 FIGURATIVIDADE NO CANTO IV (hex 1-115) anaacutelise do texto
Peter Toohey em seu estudo Epic Lessons an introduction to ancient didatic
poetry (1996) debruccedila-se sobre o tema da poesia didaacutetica grega e romana
demonstrando uma possiacutevel arqueologia da esteacutetica didaacutetica O autor busca assim
por meio de uma anaacutelise comparativa de um grupo de poemas uma certa regularidade
que segundo ele eacute caracteriacutestica da poesia didaacutetica Toohey observou as
composiccedilotildees de Hesiacuteodo Xenoacutefanes Parmecircnides Empeacutedocles Arato Nicandro
Ciacutecero Lucreacutecio Virgiacutelio Oviacutedio e Horaacutecio Segundo o criacutetico todos estes poetas
apresentam alguns traccedilos comuns tais como 1) uma voz forte singular e persuasiva
jaacute que segundo Toohey a poesia didaacutetica requer a presenccedila de uma voz direcionada
a um destinataacuterio 2) um assunto que seja atraente ou sensacional 3) o tipo de verso
pois para o autor o hexacircmetro datiacutelico seria um protoacutetipo da poesia didaacutetica 4) a
simplicidade conceitual e por fim 5) a extensatildeo referindo-se aos 828 versos de O
trabalho e os dias de Hesiacuteodo que se tornou segundo Toohey um modelo para um
livro de versos didaacuteticos
Tendo em vista que ldquotoda obra supotildee o horizonte de uma expectativa ou seja
um conjunto de regras preexistentes para orientar a compreensatildeo do leitor (do
puacuteblico) e permitir-lhe uma recepccedilatildeo apreciativardquo (JAUSS apud LIMA 1983 p 268)
nossa tarefa eacute a de pensar qual seria a expectativa de um discurso que se pretende
didaacutetico
O termo ldquodidaacuteticardquo remete-nos a um contexto de ensino-aprendizagem De
origem grega o termo eacute da famiacutelia do verbo διδάσκω cujo sentido principal eacute ldquofazer
aprender ensinar instruirrdquo
Desde Hesiacuteodo (750 - 650 aC) adotou-se o hexacircmetro datiacutelico como metro
convencional da poesia de gecircnero didaacutetico Todavia Oviacutedio (43 aC -18 dC) utiliza o
diacutestico elegiacuteaco em seus poemas Ars amatoria Medicamina faciei feminae e Remedia
amoris Estes textos colocaram alguns problemas agrave criacutetica tradicional pois satildeo obras
que mesclam caracteriacutesticas que satildeo proacuteprias da poesia didaacutetica com a poesia
elegiacuteaca Haacute por isso estudiosos que apresentam duacutevidas quanto agrave categorizaccedilatildeo
dessas obras ovidianas como pertencentes ao gecircnero da poesia didaacutetica sobretudo
a Ars amatoria e Remedia amoris O que se verifica eacute que uma variada gama de
109
intenccedilotildees didaacuteticas faz com que haja diferenccedilas em maior ou menor grau entre os
diferentes poemas didaacuteticos
Houve por isso vaacuterias tentativas por parte dos criacuteticos em criar uma taxonomia
do gecircnero da poesia didaacutetica130
Seacutervio no seacutec IV dC utiliza no iniacutecio do seu comentaacuterio agraves Geoacutergicas de
Virgiacutelio uma palavra de origem grega - didascalice - para se referir agrave poesia didaacutetica
et hi libri didascalici sunt unde necesse est ut ad aliquem scribantur nam praeceptum et doctoris et discipuli personam requirit unde ad Maecenatem scribit sicut Hesiodus ad Persen Lucretius ad Memmium Estes livros [das Geoacutergicas] satildeo didascaacutelicos por isso a necessidade de que para algueacutem sejam escritos uma vez que o preceito requer a pessoa do mestre e do disciacutepulo [Virgiacutelio] escreve para Mecenas
assim como Hesiacuteodo para Perses e Lucreacutecio para Mecircmio
Assim Virgiacutelio compocircs as Geoacutergicas entre 37 e 29 aC Segundo a tradiccedilatildeo dos
Estudos Claacutessicos a obra apresenta conteuacutedo instrucional sobre agricultura segundo
os pressupostos da poesia didaacutetica Algumas caracteriacutesticas do texto virgiliano dentre
elas o caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a
presenccedila de uma voz poeacutetica didaacutetica que se presta agrave instruccedilatildeo colaboraram para a
particularizaccedilatildeo da obra como gecircnero didaacutetico (TOOHEY 1996 p 15)
Sobre os modelos literaacuterios seguidos por Virgiacutelio sabe-se que as fontes satildeo
sobretudo gregas Hesiacuteodo Xenofonte Arato e Nicandro mas se constatam tambeacutem
as fontes latinas Catatildeo Varratildeo e Lucreacutecio (SANTOS 2007 p 23)
No que concerne agrave poesia didaacutetica e agrave literatura agraacuteria latina Aguilar (2006 p
247) assim expotildee
Por Literatura Agronoacutemica o Agriacutecola en el panorama literario greco-romano se entiende el conjunto de obras que tienen por objeto la exposicioacuten preceptiva de las labores y los trabajos propios de la vida en el aacutembito rural del ager y por tanto del hombre rusticus en oposicioacuten al urbanus Desde esta perspectiva se compreende sin problemas que las obras latinas De agricultura no se circunscriben estrictamente a la agricultura entendida soacutelo en sentido moderno como arte de cultivar la tierra sino que engloben tambieacuten otros
130 Conferir A Dalzell R Martin - J Gaillard Les genres litteacuteraires agrave Rome (Paris 1990) 199-200 Peter Toohey Epic lessons An introduction to ancient didactic poetry (London-New York 1996) Roy K Gibson lsquoDidactic poetry as lsquopopularrsquo form study of imperatival expressions in Latin didactic verse and prosersquo 67-69 In Catherine Atherton (ed) Form and content in didactic poetry (Bari 1997)
110
trabajos y atividades caracteriacutesticos de la economiacutea rural (la res rustica) como la arboricultura la ganaderiacutea la avicultura la apicultura o la administracioacuten misma de la uilla la finca en suelo ruacutestico (AGUILAR 2006 p247)
No Canto I das Geoacutergicas Virgiacutelio menciona a importacircncia do trabalho e a luta
obstinada com a terra No Canto II cantam-se as aacutervores e as vinhas e eacute destacado
o campo como um lugar de felicidade tranquila A terra produz frutos em troca do
esforccedilo despendido pelo homem O Canto III apresenta a raccedila dos animais e as artes
de criaccedilatildeo do gado e no Canto IV Virgiacutelio apresenta a apicultura em um quadro
agriacutecola
Na visatildeo de Elaine C Prado dos Santos (2007 p26)
Com os quatro cantos plantas aacutervores animais e abelhas o poema permite visualizar a gradaccedilatildeo dos niacuteveis da vida diferentes e hierarquizados mostrando que as criaturas se diferenciam Essa ideia eacute compatiacutevel com a filosofia epicurista ou seja agrave medida que se sobe na escala dos seres as criaturas vatildeo se diferenciando pois os organismos ficam mais complexos e compreendem um nuacutemero maior de aacutetomos diferenciados em combinaccedilotildees mais variadas
Vale ressaltar que ao compor um poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo
quis apenas transmitir alguns conhecimentos teacutecnicos sobre os trabalhos do campo
Se a criacutetica da obra virgiliana se prendesse apenas a esse aspecto temaacutetico
classificaria a obra do poeta mantuano como uma espeacutecie de tratado teacutecnico de
agronomia todavia as Geoacutergicas vatildeo muito aleacutem de um simples compecircndio de
aplicaccedilatildeo praacutetica sobre meacutetodos a serem seguidos na agricultura Aliaacutes dentro dos
preceitos uacuteteis e praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas
aqueles que se coadunam com a finalidade artiacutestica Essa seleccedilatildeo eacute portanto
significativa jaacute que estabelece a diferenccedila existente entre a poesia didaacutetica e os
tratados teacutecnicos sobre agricultura
O fiacuteloacutesofo e escritor Secircneca (4 aC-65 dC) tambeacutem opinou acerca da obra
virgiliana afirmando que ldquoO nosso poeta aliaacutes cuidava menos da verdade que da
beleza literaacuteria interessado como estava em proporcionar prazer aos seus leitores e
natildeo em dar liccedilotildees aos homens do campo rdquo (SEcircNECA 2004 p400)
O excerto do ldquoCanto IVrdquo das Geoacutergicas hexacircmetros de 1 a 115 aqui
selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise tem como tema principal a apicultura
mais precisamente a descriccedilatildeo do lugar adequado e seguro para as abelhas
111
Virgiacutelio nos hexacircmetros 1 a 7 faz uma invocaccedilatildeo a Mecenas o patrono das
letras e posteriormente nos hexacircmetros de 8 a 32 fala da situaccedilatildeo das colmeias e
da condiccedilatildeo necessaacuteria para se mantecirc-las em seguranccedila hexacircmetros 33 a 50
Menciona-se ainda o que deve ser feito pelo apicultor com a saiacuteda das abelhas para
pilhar enxamear ou combater hexacircmetros de 51 a 87 Posteriormente eacute destacada a
escolha dos reis quando duas satildeo as espeacutecies das abelhas hexacircmetros 88 a 102 e
como reter as abelhas em um jardim florido hexacircmetros 103 a 115 Seguindo o
pressuposto da poesia didaacutetica o de instruir Virgiacutelio discorre sobre o modo como se
deve cuidar das abelhas No entanto o modo como trama o texto deixa entrever um
trabalho artiacutestico primoroso com a linguagem
O estilo das Geoacutergicas eacute o meacutedio pois a obra trata de assuntos considerados
moderados destinados aos trabalhos no campo do cuidado para com as aacutervores e
plantas da criaccedilatildeo de animais de meacutedio e grande porte e por fim da apicultura Os
temas e figuras apresentados coadunam-se com um tom didaacutetico de ensinamento
Todavia o poema de Virgiacutelio natildeo se restringe apenas agrave instruccedilatildeo Haacute nas Geoacutergicas
um rico trabalho com a linguagem tanto no excerto selecionado para anaacutelise como
na segunda parte do ldquoCanto IVrdquo em que se tem a narrativa sobre Orfeu no mundo
inferior para resgatar a amada Euriacutedice (hex315-558) Deve-se levar em conta que
nas Geoacutergicas muito aleacutem de ldquoinstruirrdquo em um estilo meacutedio e portanto em um tom
didaacutetico Virgiacutelio tambeacutem se utiliza de digressotildees e procura envolvecirc-las
figurativamente em sua obra Dentre as muitas digressotildees jaacute destacamos a do ldquoCanto
IIrdquo em que Virgiacutelio faz uma pausa na descriccedilatildeo do cultivo agraves vinhas (hex259-419) para
realizar um elogio agrave primavera (315-345)
Ao mencionar o estilo meacutedio mediocris stylus fazemos alusatildeo agrave classificaccedilatildeo
feita pelos gramaacuteticos latinos em relaccedilatildeo agraves Geoacutergicas Enquanto as Bucoacutelicas
apresentam-se em um estilo simples humilis stylus tratando de assuntos destinados
ao pastor de cabra ou ovelhas as Geoacutergicas instruem o trabalho e o cultivo do campo
apresentando assuntos considerados moderados Entendemos com isso que os
temas e figuras que aparecem nas duas obras diferem quanto agrave sua funcionalidade
no texto Nos poemas bucoacutelicos encontramos quase sempre uma tematizaccedilatildeo
referente ao louvor do campo e da natureza de modo geral como vimos na ldquoBucoacutelica
Vrdquo Todas as figuras apresentadas nos poemas pastoris portanto coadunam-se com
a ideia de celebraccedilatildeo do ambiente campestre Jaacute nos poemas didaacuteticos das Geoacutergicas
o cenaacuterio ainda eacute o campo mas na tematizaccedilatildeo satildeo apresentadas a importacircncia do
112
trabalho e as diferentes teacutecnicas de cultivo As figuras didaacuteticas alinham-se assim
com o motivo da obra o de instruir
Tendo em vista que o estilo eacute um traccedilo diferencial depreensiacutevel no discurso
podemos afirmar que nas Geoacutergicas portanto a recorrecircncia figurativa que nos
transmite assuntos agriacutecolas por meio da voz de um magister deixa entrever um efeito
de individuaccedilatildeo proacuteprio da poesia didaacutetica o de instruir que permite assim a
manifestaccedilatildeo do estilo meacutedio Pensando-se na recorrecircncia figurativa presente nas
Geoacutergicas destacam-se No Canto I (hex 42-203) as figuras que nos remetem ao
trabalho para o cultivo dos cereais no Canto II (hex 9-258) destacam-se diferentes
tipos de cultivo o das plantas em geral bem como das videiras (hex 259-419) e o de
outras plantas de particular interesse como a oliveira e a macieira (hex420-540) No
Canto III menciona-se a criaccedilatildeo do gado de grande e pequeno porte (hex 49-283 e
284-566) e no Canto IV fala-se da criaccedilatildeo de abelhas e sua natureza (8-280)
No excerto selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise (Canto IV hex 1-115)
tem-se a descriccedilatildeo de um lugar seguro para as abelhas se alojarem Descreve-se
entatildeo uma espeacutecie de paraiacuteso terrestre lugar onde os ventos natildeo sopram as cabras
e ovelhas natildeo saltam a vaca natildeo esmaga as flores e os animais nocivos lagartos e
andorinhas estatildeo distantes Aleacutem disso as colmeias satildeo construiacutedas com meticuloso
cuidado contra os excessos do clima e de outros perigos (SANTOS 2007 p 33)
Com isso nos hexacircmetros de 8 a 32 o leitor eacute conduzido ao lugar mais
adequado para que as abelhas possam fundar a colocircnia Satildeo mencionadas neste
pequeno trecho algumas providecircncias que devem ser tomadas para dar agraves abelhas
as condiccedilotildees necessaacuterias para a produccedilatildeo de mel
(hex 8-32) Principio sedes apibus statioque petenda quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci floribus insultent aut errans bubula campo decutiat rorem et surgentis atterat herbas Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis omnia nam late uastant ipsasque uolantis ore ferunt dulcem nidis immitibus escam At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per graminha riuos
113
palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos In medium seu stabit iners seu profluet umor transuersas salices et grandia conice saxa pontibus ut crebris possint consistere et alas pandere ad aestiuom solem si forte morantis sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem
Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes alimento doce para agrestes ninhos Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames de abelhas em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir as asas ao sol de estio sepor acaso Euro impetuoso tiver molhado ou submergido em Netuno as que tardam Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e cheirosos serpotildees ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte
Os cinco primeiros versos do trecho selecionado para anaacutelise (hex 8-12)
trazem a imagem dos ventos que dificultam o trabalho das abelhas pois impedem que
elas carreguem os alimentos para a colmeia aleacutem disso o excerto traz as imagens
dos animais domeacutesticos que causam perturbaccedilatildeo no habitat (as ovelhas os bodes e
a novilha) o que pode comprometer as condiccedilotildees ideais agrave produccedilatildeo de mel Em
seguida satildeo citados os lagartos e as aves predadoras (melharuco e andorinhas) que
colocam em perigo a existecircncia das proacuteprias abelhas jaacute que se alimentam delas
114
A voz poeacutetica enumera assim os elementos que podem comprometer o
trabalho e a existecircncia das abelhas apresentando-nos a partir do conteuacutedo
instrucional segundo os pressupostos do gecircnero da poesia didaacutetica um conselho
sobre apicultura Dessa forma Virgiacutelio descreve o lugar adequado e seguro para que
as abelhas possam fundar a colocircnia
Dentre os elementos que ameaccedilam a existecircncia das abelhas encontramos
Procne entre as aves predadoras
(hex 13-15)
Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis
Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos
De acordo com a mitologia Procne era filha de Pandiatildeo rei de Atenas casou-
se com Tereu e dessa uniatildeo ela teve um filho Iacutetis mas ao descobrir que o marido
havia violentado sua irmatilde (Filomela) ela mata o filho e o serve ao marido Tereu
Procne entatildeo foge com a irmatilde Mas quando Tereu descobre o crime persegue as
duas mulheres que imploram aos deuses que as poupem Filomela eacute transformada
em rouxinol e Procne em andorinha (Cf GRIMAL 2014 verbete Filomela) Dizem
que as manchas no peito da andorinha satildeo traccedilos do sangue de Iacutetis que foi morto
pela matildee e servido ao pai ldquoEsse detalhe mostra a ferocidade da andorinha e assim
ela eacute um perigo para as abelhasrdquo (SANTOS 2007 p 109)
No hexacircmetro de Virgiacutelio a menccedilatildeo agrave Procne deixa entrever uma condensaccedilatildeo
imageacutetica pois o poeta sintetiza toda a histoacuteria de Procne em uma uacutenica passagem
um uacutenico verso Ao nomear a andorinha predadora como Procne Virgiacutelio resgata o
mito e faz da palavra uma figuraccedilatildeo miacutetica concreta De acordo com Cassirer (1972
p 115) ldquoNa perspectiva maacutegica do mundo em particular o encantamento verbal eacute
sempre acompanhado pelo encantamento imageacuteticordquo o que nos leva a crer nos
expedientes expressivos evidenciados na linguagem poeacutetica Logo a ferocidade da
andorinha natildeo eacute descrita mas sugerida pela menccedilatildeo ao mito A instruccedilatildeo sobre as
aves predadores ganha relevo nessa passagem do texto
115
De acordo com o relato de Virgiacutelio um grande enxame de abelhas segue o rei
para procurar uma nova casa e assim fundar a colocircnia Segundo o pensamento da
eacutepoca as abelhas eram governadas por reis e natildeo por rainhas (SANTOS 2007 p
110)
(Hex 18-24)
At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per gramina riuos palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos
Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames [de abelhas] em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras
O enxame assim deve pousar para se reagrupar em um lugar seguro longe
de ventos e tempestades pois a mudanccedila climaacutetica torna o trabalho das abelhas
impossiacutevel jaacute que elas natildeo satildeo adaptaacuteveis para voar no frio ou na chuva e precisam
de energia para enfrentar o mau tempo Confirmado o local seguro para abrigar a
colmeia longe da ferocidade de predadores lagartos andorinhas e outras aves o
proacuteximo passo eacute esquivar-se do calor pois o sol em excesso prejudica o trabalho
das abelhas O local ideal portanto deve ser o sombreado Eacute importante que em torno
das colmeias haja muitas aacutervores e folhas com capacidade de protegecirc-las das rajadas
fortes de vento e aleacutem disso a presenccedila de aacutegua eacute importante pois ela ajuda na
polinizaccedilatildeo das flores
De acordo com Huizinga em Homo Ludens (1971 p 149)
O que a linguagem poeacutetica faz eacute essencialmente jogar com as palavras Ordena-as de maneira harmoniosa e injeta misteacuterio em cada uma delas de modo tal que cada imagem passa a encerrar a soluccedilatildeo de um enigma
Levando em conta tais apontamentos merece destaque a seguinte passagem
116
(hex 19)
[] et tenuis fugiens per gramina riuos E um tecircnue riacho fluindo pela relva
Neste verso a ideia de que um tecircnue riacho passa pela relva fluindo por ela eacute
icocircnica jaacute que os termos ldquotecircnuerdquo (tenuis) e ldquoriachordquo (riuos) circundam a expressatildeo ldquoper
graminardquo (pela relva) deixando entrever o arranjo artiacutestico da linguagem poeacutetica
Como se vecirc haacute um jogo poeacutetico com as palavras um arranjo estrutural que nos suscita
uma imagem Com base no raciociacutenio tecido por Greimas (1975 p 12) podemos
afirmar que o significante graacutefico entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com
as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a
assumir como verdadeira a proposiccedilatildeo do discurso
Tambeacutem merece destaque os trecircs uacuteltimos hexacircmetros do excerto selecionado
(hex 30-32)Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e serpotildees que deitam bom cheiro ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte
Aqui Virgiacutelio nomeia trecircs ervas aromaacuteticas as verdejantes manjeronas (casiae
uirides) os serpotildees que deitam bom cheiro ao longe (olentia late serpylla) e uma
abundacircncia de segurelha exalando fortemente (grauiter spirantis copia thymbrae)
Para cada uma dessas ervas haacute uma amplitude descritiva que reforccedila imageticamente
a extensatildeo dos aromas presentes na cena Assim procurando lidar com a face mais
sensorial da palavra o poeta o artista literaacuterio deixa entrever um estiacutemulo sensorial
suscitado pela linguagem
Sobre os materiais que devem ser empregados pelo apicultor na confecccedilatildeo das
caixas das colmeias Virgiacutelio apresenta-nos
(hex 33-36) Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis
117
seu lento fuerint aluaria uimine texta angustos habeant aditus nam frigore mella
cogit hiems eademque calor liquefacta remittit
Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos
Observa-se neste excerto que dois materiais satildeo indicados para a confecccedilatildeo
das caixas que abrigam as abelhas (a corticcedila e o vime) Na descriccedilatildeo virgiliana natildeo
se faz uma distinccedilatildeo qualitativa destes materiais embora se soubesse na eacutepoca que
as caixas de corticcedila eram preferiacuteveis agraves de vime Estas informaccedilotildees natildeo escapavam
aos agrocircnomos da Antiguidade greco-latina sobretudo a Varratildeo no De Re Rustica
que eacute uma das fontes de Virgiacutelio Isso deixa entrever que a poesia didaacutetica virgiliana
longe de ser um manual com teacutecnicas de cultivo e cuidado ao campo natildeo tem o
compromisso com o detalhamento minucioso das informaccedilotildees teacutecnicas mas sim com
a forma literaacuteria
Recomenda-se ainda que a entrada das colmeias seja estreita pois isso
facilitaria o controle interno da temperatura evitando com isso o excessivo frio ou
calor Aleacutem disso a entrada estreita afastaria os invasores daninhos agraves abelhas
Nos hexacircmetros de nuacutemero 88 a 94 Virgiacutelio apresenta dois tipos de reis Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo deterior qui uisus eum ne prodigus obsit dede neci melior uacua sine regnet in aula Alter erit maculis auro squalentibus ardens (nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore et rutilis clarus squamis ille horridus alter desidia latamque trahens inglorius aluom
Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele que pareceu pior para que consumindo natildeo seja prejudicial deixa que o melhor reine na desimpedida corte Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre
O termo ldquoductoresrdquo liacutederes empregado no verso sugere uma imagem militar e
monaacuterquica identificando assim os reis das abelhas aos dos homens De um lado o
melior (hex90) ldquoo melhorrdquo aquele que ardens (hex91) ldquoque brilhardquo o que regnet in
118
aula (hex90) ldquoreina na corterdquo enquanto o pior ao contraacuterio eacute aquele que arrasta
latamquealuom (hex94) ldquoabundante ventrerdquo inglorius (hex94) ldquoingloacuteriordquo Esses
termos remetem ao gecircnero eacutepico sugerindo de acordo com alguns criacuteticos da obra
virgiliana relaccedilotildees entre o mundo das abelhas e a realidade histoacuterica do poeta mais
precisamente agrave batalha do Aacutecio Mas essa alegoria natildeo eacute um consenso entre os
pesquisadores
Nos hexacircmetros seguintes 95 a 102 Virgiacutelio faz uma comparaccedilatildeo entre dois
tipos de abelhas operaacuterias identificando-as ao seu respectivo rei Vt binae regum
facies ita corpora plebis (hex95) ldquoDois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo
os corpos da pleberdquo Neste verso fica assinalada a imagem humanizada das abelhas
como suacuteditos de reis
Os termos empregados neste excerto situam as duas espeacutecies de abelhas em
campos opostos as abelhas de tipo inferior turpes horrent (hex96) ldquosatildeo disformes e
horrendasrdquo e suas caracteriacutesticas apresentam-se por meio de uma comparaccedilatildeo jaacute
que elas satildeo apresentadas na descriccedilatildeo virgiliana ndash puluere ab alto quom uenit et
sicco terram spuit ore uiator aridus (hex96-98) ldquocomo o viajante sedento quando vem
da espessa poeira e cospe terra de sua garganta secardquo Com isso as abelhas de tipo
superior apresentam conotaccedilotildees positivas que as vinculam agrave figura do rei vencedor
elucent et fulgore coruscant (hex98) ldquoreluzem e cintilam com fulgorrdquo Nos trecircs
hexacircmetros finais (hex100-102) reforccedila-se a superioridade da primeira espeacutecie que
produz dulcia mella (hex101) ldquodoces meacuteisrdquo durum Bacchi domitura saporem
(hex102) ldquopara corrigir o aacutespero sabor de Bacordquo O termo mella (hex101) eacute um plural
poeacutetico O mel entre os antigos era tido como alimento celeste proveniente dos
deuses Virgiacutelio chama-o assim de aacuteereo mel aerii mellis caelestia dona (Geo IV 1)
ldquoos dons celestes do aeacutereo melrdquo pois de acordo com a crenccedila da eacutepoca o mel caiacutea
do ceacuteu com o orvalho sobre as flores de onde as abelhas o extraiacuteam No excerto o
mel atenua o sabor aacutespero do vinho de Baco pois era costume entre os antigos
preparar os vinhos amargos com mel
Nos hexacircmetros de nuacutemero 103 a 115 Virgiacutelio aconselha
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont instabilis animos ludo prohibebis inani Nec magnus prohibere labor tu regibus alas eripe non illis quisquam cunctantibus altum ire iter aut castris audebit uellere signa
119
Inuitent croceis halantes floribus horti et custos furum atque auium cum falce saligna Hellespontiaci seruet tutela Priapi Ipse thymum pinosque ferens de montibus altis tecta serat late circum quoi talia curae ipse labore manum duro terat ipse feracis figat humo plantas et amicos inriget imbris
Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e a tutela de Priapo do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele mesmo no solo enterre
as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas
Merece destaque deste excerto o hexacircmetro 103
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu
Os vocaacutebulos incerta e examina ldquoenxames incertosrdquo encontram-se entre os
vocaacutebulos uolant e ludunt respectivamente voam e brincam Tem-se assim a partir
da disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso a imagem dos enxames de abelhas voando e
brincando iconicamente no texto Trata-se de uma construccedilatildeo expressiva em que se
revela um trabalho artiacutestico com a linguagem
Selecionamos das Geoacutergicas os hexacircmetros de nuacutemero 1 a 115
Depreendemos deste excerto de modo geral o tema do lugar apraziacutevel a ser
modelado para as abelhas Desenvolve-se neste excerto o tema da apicultura
apresentando um conteuacutedo instrucional segundo os pressupostos da poesia didaacutetica
valendo-se de uma linguagem rica em procedimentos estiliacutesticos
Procurou-se observar como a estrutura poeacutetica atua e assim destacamos na
anaacutelise alguns hexacircmetros que consideramos mais expressivos
120
Nossa preocupaccedilatildeo eacute a de investigar o arranjo particular da linguagem poeacutetica
a construccedilatildeo expressiva do texto a sua dimensatildeo figurativa Fundamentamo-nos
para isso no conceito semioacutetico de figuratividade e na ideia explicitada por Joseph
Brodsky (1994 p 74) a de que ldquoa poesia eacute antes de mais nada uma arte de
referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo e de que ldquocom os poetas a
escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo que elas
contamrdquo (1994 p 97)
As Geoacutergicas pertencem de acordo com a tradiccedilatildeo ao gecircnero da poesia
didaacutetica Os traccedilos distintivos do poema didaacutetico iniciaram-se com Hesiacuteodo em O
trabalho e os dias seacuteculo VIII aC Durante os seacuteculos em que tal forma foi utilizada
algumas caracteriacutesticas contribuiacuteram para a especificaccedilatildeo do gecircnero tais como o
caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a presenccedila de
uma voz didaacutetica chamada de magister Os assuntos agraacuterios presentes nas
Geoacutergicas de caraacuteter instrucional como eacute proacuteprio ao gecircnero deixam entrever um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo remetendo-nos ao estilo meacutedio
Perutelli (2010 p 309-310) retomando o conceito didascaacutelico exposto por
Seacutervio assim afirma
[] o poema virgiliano contempla dois niacuteveis didaacuteticos o superficial o agriacutecola digamos recobre uma segunda mensagem mais profunda e articulada que eacute aquela da eacutetica da nova moral Dentro da linha do gecircnero didascaacutelico verifica-se a paradoxal situaccedilatildeo de um texto que tem um fim didaacutetico declarado ndash o agriacutecola ndash menos real do que outro natildeo declarado ndash o eacutetico
Na leitura traduccedilatildeo e anaacutelise do excerto selecionado das Geoacutergicas (Canto IV
hex 1-115) procuramos entender a instruccedilatildeo acerca do lugar apraziacutevel e ideal para
as abelhas fundarem sua colmeia como parte da caracterizaccedilatildeo da poesia de gecircnero
didaacutetico e de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo Logo observou-se que a voz
didaacutetica que perpassa o excerto deixa entrever a partir de um efeito de sentido
moderado figuras que nos remetem a um espaccedilo ideal a ser construiacutedo para as
abelhas Mas o assunto moderado natildeo retira assim a grandiosidade da expressatildeo
pois como atesta Virgiacutelio eacute pequeno o trabalho (in tenui labor-hex6) natildeo pequena a
gloacuteria (tenuis non gloria -hex6)
121
57 ENEIDA Canto VIII (hex 612-731) ldquoENEIAS E AS ARMAS DE GUERRArdquo
ldquoEn perfecta mei promissa coniugis arte
munera ne mox aut Laurentis nate superbos
aut acrem dubites in proelia poscere Turnumrdquo
Dixit et amplexus nati Cytherea petiuit 615
arma sub aduersa posuit radiantia quercu
Ille deae donis et tanto laetus honore
expleri nequit atque oculos per singula uoluit
miraturque interque manus et bracchia uersat
terribilem cristis galeam flammasque minantem131 620
fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem
sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes
solis inardescit radiis longeque refulget
tum leues ocreas electro auroque recocto
hastamque et clipei non enarrabile textum 625
Illic res Italas Romanorumque triumphos
haud uatum ignarus uenturique inscius aeui
fecerat ignipotens illic genus omne futurae
stirpis ab Ascanio pugnataque in ordine bella
Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro 630
procubuisse lupam geminos huic ubera circum
ludere pendentis pueros et lambere matrem
impauidos illam tereti ceruice reflexam
mulcere alternos et corpora fingere lingua
Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas 635
consessu caueae magnis Circensibus actis
131 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se uomentem Conington em The Works of Virgil (2008) tambeacutem chama a atenccedilatildeo para o termo uomentem embora coloque em notas ao texto as duas formas (uomentem e minantem) Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1957
122
addiderat subitoque nouom132 consuergere bellum
Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris
Post idem inter se posito certamine reges
armati Iouis ante aram paterasque tenentes 640
stabant et caesa iungebant foedera porca
Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae
distulerant (at tu dictis Albane maneres)
raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus
per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres 645
Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat
accipere ingentique urbem obsidione premebat
Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant
Illum indignanti similem similemque minanti
aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles 650
et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis
In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat
Romuleoque recens horrebat regia culmo
Atque hic auratis uolitans argenteus anser 655
porticibus Gallos in limine adesse canebat
Galli per dumos aderant arcemque tenebant
defensi tenebris et dono noctis opacae
aurea caesaries ollis atque aurea uestis
uirgatis lucent sagulis tum lactea colla 660
auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant
gaesa manu scutis protecti corpora longis
Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos
lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo
extuderat castae ducebant sacra per urbem 665
pilentis matres in mollibus Hinc procul addit
Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis
et scelerum poenas et te Catilina minaci
132 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se nouum
123
pendentem scopulo Furiarumque ora trementem
secretosque pios his dantem iura Catonem 670
Haec inter tumidi late maris ibat imago
aurea sed fluctu spumabant caerula cano
et circum argento clari delphines in orbem
aequora uerrebant caudis aestumque secabant
In medio classis aeratas Actia bella 675
cernete erat totumque instructo Marte uideres
feruere Leucaten auroque effulgere fluctus
Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar
cum patribus populoque penatibus et magnis dis
stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas 680
laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus
Parte alia uentis et dis Agrippa secundis
arduos133 agmen agens cui belli insigne superbum
tempora nauali fulgent rostrata corona
Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis 685
uictor ab Aurorae populis et litore rubro
Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum
Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx
Vna omnes ruere ac totum spumare reductis
conuolsum remis rostrisque tridentibus aequor 690
Alta petunt pelago credas innare reuolsas
Cycladas aut montis concurrere montibus altos
tanta mole uiri turritis puppibus instant
Stuppea flamma manu telisque uolatile ferrum
spargitur arua noua Neptunia caede rubescunt 695
Regina in mediis patrio uocat agmina sistro
necdum etiam geminos a tergo respicit anguis
Niligenumque134 deum monstra et latrator Anubis
contra Neptunum et Venerem contraque Mineruam
tela tenent Saeuit medio in certamine Mauors 700
133 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se arduus 134 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se ominigenunque
124
caelatus ferro tristesque ex aethere Dirae
et scissa gaudens uadit Discordia palla
quam cum sanguineo sequitur Bellona flagello
Actius haec cernens arcum intendebat Apollo
desuper omnis eo terrore Aegyptus et Indi 705
omnis Arabs omnes uertebant terga Sabaei
Ipsa uidebatur uentis regina uocatis
uela dare et laxos iam iamque immittere funis
Illam inter caedes pallentem morte futura
fecerat ignipotens undis et Iapyge ferri 710
contra autem magno maerentem corpore Nilum
pandentemque sinus et tota ueste uocantem
caeruleum in gremium latebrosaque flumina uictos
At Caesar triplici inuectus Romana triumpho
moenia dis Italis uotum immortale sacrabat 715
maxima ter centum totam delubra per urbem
Laetitia ludisque uiae plausuque fremebant
omnibus in templis matrum chorus omnibus arae
ante aras terram caesi strauere iuuenci
Ipse sedens niueo candentis limine Phoebi 720
dona recognoscit populorum aptatque superbis
postibus incedunt uictae longo ordine gentes
quam uariae linguis habitu tam uestis et armis
Hic Nomadum genus et discinctos Mulciber Afros
hic Lelegas Carasque sagittiferosque Gelonos 725
finxerat Euphrates ibat iam mollior undis
extremique hominum Morini Rhenusque bicornis
indomitique Dahae et pontem indignatus Araxes
Talia per clipeum Volcani dona parentis
miratur rerumque ignarus imagine gaudet 730
attollens umero famamque et fata nepotum
125
58 Traduccedilatildeo e notas do CANTO VIII (hex 612-731)
ldquoEis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo135 Filho natildeo duvides
em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos136 ou o vigoroso Turno137rdquo
Citereia138 disse e recebeu os abraccedilos de seu filho colocou as brilhantes armas sob
um carvalho em frente Ele alegre com os presentes da deusa e com tatildeo grande honra
natildeo pocircde se satisfazer e volveu os olhos por cada coisa
[Eneias] admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus
penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze
imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios
do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro
refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo
Ali139 o deus do fogo140 que natildeo ignora os vates nem desconhece o tempo futuro
havia colocado os feitos da Itaacutelia e os triunfos dos romanos ali havia colocado toda a
origem de toda a geraccedilatildeo futura de Ascacircnio141 e sucessivamente as guerras
combatidas
E havia colocado a feacutertil loba142 deitada no antro verde de Marte143 e suspensos em
volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela
voltada para traacutes com a cabeccedila torneada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus
corpos com a liacutengua
Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas144 sem o direito na
assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se
135Vulcano o deus das forjas esposo de Vecircnus a deusa do Amor 136 Laurentinos povo de Laurento cidade da Antiga Roma situada no Laacutecio entre Ostia e Laviacutenio 137Turno heroacutei itaacutelico rei dos Ruacutetulos povo da Itaacutelia Central ldquoEacute o proacuteprio Turno quem provoca a guerra contra os troianosrdquo (GRIMAL 2014 p 457) Era noivo de Laviacutenia antes do rei Latino dar a matildeo da filha a Eneias 138 Citereia outro nome para Vecircnus 139 Refere-se agrave descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente da deusa Vecircnus 140Vulcano o deus das forjas 141Ascacircnio filho de Eneias e Creuacutesa 142Remete-se agrave histoacuteria de Rocircmulo e Remo 143Marte deus da Guerra mas tambeacutem aparece como um deus ligado agrave vegetaccedilatildeo 144 O Rapto das Sabinas eacute um dos episoacutedios lendaacuterios da origem de Roma Quando a cidade foi fundada Rocircmulo preocupou-se em povoaacute-la especialmente com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de Rocircmulo raptaram todas as jovens (TITO LIacuteVIO 1989 p 31)
126
uma nova guerra entre os Romulidas145 e o velho Taacutecio146 rei dos severos habitantes
de Cures
Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do
altar de Juacutepiter147 segurando as paacuteteras148 e faziam um tratado de alianccedila com a
porca imolada
Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio149 em sentidos
contraacuterios (mas tu oacute Albano150 natildeo manterias teus dizeres) e Tulo151 arrastava as
viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue
escorriam
E ainda tambeacutem Porsena152 mandava receber o exilado Tarquiacutenio153 e sitiava a cidade
com um enorme cerco154 Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade
Se considerares quem eacute semelhante ao indigno ameaccedilador porque Cocles155 ousara
destruir a ponte e Cleacutelia156 atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas
No alto o guardiatildeo de Tarpeia157 Macircnlio158 estava de peacute diante do templo e defendia
o alto do Capitoacutelio O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo159 E aqui
145Os Romulidas o povo que Rocircmulo havia reunido em Roma 146Titus Tatius o rei dos Sabinos Apoacutes o rapto das Sabinas diz-se que Taacutecio organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas segundo conta-nos Tito Liacutevio (cf Ab Urbe Condita) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos 147Conta-se que que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo fez um pedido a Juacutepiter o grande deus do panteatildeo romano e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse de feiccedilatildeo 148Espeacutecie de taccedila usada em sacrifiacutecios antigos 149Mettus Fufetius o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Diz-se que ele recusou ajuda a Roma em um conflito traindo-a 150Referecircncia a Meacutecio Fufeacutecio uacuteltimo rei albano que quebra o acordo com Roma 151Tullus Hostillius o terceiro rei lendaacuterio de Roma responsaacutevel pela destruiccedilatildeo de Alba Longa cidade vizinha a Roma 152Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia 153Lucius Tarquinius Superbus Tarquiacutenio o Soberbo eacute responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que quando tomou o poder no senado Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio confiscando seus bens Foi deposto em 509 aC Expulso de Roma Tarquiacutenio procurou Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para declarar guerra agrave Roma 154 Porsena no ano de 507 aC sitiou Roma cercando-a 155Com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela qual o inimigo iria atravessar o Tibre 156 Durante o cerco agrave Roma em 507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado 157Apoacutes o rapto das sabinas Tito Taacutecio liderou os sabinos contra Roma Diz-se que Tarpeia atraiacuteda pelo ouro dos sabinos traiu Roma deixando entrar os sabinos na citadela Posteriormente ela foi assassinada e o monte onde ela foi sepultada foi chamado com seu nome No texto assim Tarpeia refere-se agrave rocha Tarpeia no monte Capitolino 158 Marco Macircnlio cocircnsul da Repuacuteblica Romana defendeu Roma da invasatildeo gaulesa 159Colmo haste das gramiacuteneas palha longa usada para cobrir as casas Entende-se nesta passagem que o palaacutecio de Rocircmulo ericcedilava-se com um teto de palha
127
um ganso prateado160 voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os
gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e
ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus
cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus
pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita com a matildeo os
dardos alpinos os corpos protegidos pelos longos escudos
Aqui havia representado os saltitantes saacutelios161 e os lupercus162 nus os barretes
sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela
cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados Daqui ao longe acrescenta
tambeacutem as moradas do Taacutertaro163 a alta porta de Dite164 e os castigos dos criminosos
e tu oacute Catilina165 suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias166
e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo167 havia ditado as leis
Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe
mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata
em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas
ondas No meio viam-se as armadas de bronze a batalha do Aacutecio168 via-se todo o
Leucates169 a ferver com Marte170 preparado e as ondas resplandecerem com o brilho
do ouro
160Chama-se a atenccedilatildeo dos romamos para um ataque noturno dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno no monte Capitolino 161Os saacutelios eram sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro 162Os lupercus eram sacerdotes de Fauno divindade associada ao campo e tambeacutem agrave fertilidade Conta-se que os lupercus usavam chicotes feitos com couro de cabra (barretes sacerdotais de latilde) 163 Taacutertaro o mundo inferior 164 Dite um dos nomes de Plutatildeo deus responsaacutevel pelo mundo inferior 165Lucius Sergius Catilina militar e senador romano queria destruir o poder oligaacuterquico do senado 166Fuacuterias divindades que viviam nas profundezas do Taacutertaro e eram responsaacuteveis pela tortura das almas 167 De acordo com Seacutervio seria o Catatildeo (o Velho ou Catatildeo Sapiente) poliacutetico e escritor de Roma eleito cocircnsul em 195 aC mas para Conington (2008) Virgiacutelio teria pretendido o Catatildeo de Uacutetica (o Jovem) (95-16 aC) poliacutetico romano ceacutelebre pela sua integridade moral para destacar o contraste em relaccedilatildeo a Catilina 168 A batalha do Aacutecio em 31 aC foi um confronto naval entre Marco Antocircnio e Otaacutevio Augusto Enquanto a frota de Otaacutevio era comandada por Agripa a frota de Marco Antocircnio era apoiada pela rainha do Egito Cleoacutepatra Com a vitoacuteria de Otaacutevio inicia-se o Impeacuterio e ele passa a ser conhecido como Ceacutesar Augusto 169 O monte Leucates Conta-se que Leucates era um jovem muito amado por Apolo e que ao escapar da perseguiccedilatildeo do deus lanccedilou-se ao mar do alto de uma encosta iacutengreme A ilha recebeu assim o nome de Lecircucade (GRIMAL 2014 p 276) 170Marte o deus guerreiro
128
De um lado Ceacutesar Augusto171 conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e
o povo os penates e os deuses maiores172 em peacute sobre a elevada popa a que o seu
feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua
cabeccedila173
Em outra parte Agripa174 com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o
exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros175
da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas
Antocircnio176 vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho177 transporta com
ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra178 e eacute seguido pela esposa
egiacutepcia179 Ao mesmo tempo todos se precipitaram e toda a superfiacutecie do mar espuma
sob os remos e os tridentes dos rostros que o afastam Dirigem-se a alto mar creia
que as Ciacuteclades180 arrancadas flutuavam sob a aacutegua ou que as altas montanhas se
chocavam contra as outras montanhas os varotildees se aproximavam das popas
torreadas com tanta massa A chama da estopa eacute espalhada pela matildeo e o volaacutetil ferro
pelos dardos os campos de Netuno181 avermelham-se com a nova carnificina No
centro a Rainha182 invoca os batalhotildees com o sistro183 paacutetrio e ainda natildeo voltou a
vista para as duas serpentes atraacutes
171Otaacutevio Augusto que apoacutes a vitoacuteria na batalha do Aacutecio receberia o nome de Ceacutesar Augusto A vitoacuteria contra Marco Antocircnio seria o iniacutecio do Impeacuterio em Roma 172Os penates satildeo os deuses do lar adorados por romanos e etruscos Os deuses maiores satildeo os representantes do Grande Olimpo Otaacutevio contava com a proteccedilatildeo dos deuses na batalha do Aacutecio 173 Em 42 aC Otaacutevio erigiu o Templo do Divino Juacutelio adicionando o termo ldquoFilho do Divinordquo a seu nome o que fortaleceria seus laccedilos poliacuteticos com os soldados de Ceacutesar (GRIMAL 2014 cf verbete Apolo) 174Marcus Vipsanius Agrippa principal comandante de Otaacutevio guiou as frotas de Roma contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra na Batalha do Aacutecio (BOWDER 1980) 175Rostro esporatildeo colocado na proa dos navios antigos para perfurar o casco dos outros nas batalhas 176Marco Antocircnio foi aliado de Ceacutesar durante a conquista da Gaacutelia e tambeacutem na guerra civil contra Pompeu Aliou-se mais tarde a Otaacutevio e Leacutepido formando com eles o Segundo Triunvirato (BOWDER 1980) 177Marco Antocircnio venceu os habitantes da Aacutesia (ldquopovos de aurorardquo) do Egito (do famoso Nilo) e da Bactriana no Afeganistatildeo (BECHARA SPINA 1973 p 89) 178 Bactra regiatildeo da Aacutesia Central 179Marco Antocircnio alia-se a Cleoacutepatra desprezando sua esposa romana Otaacutevia irmatilde de Otaacutevio Augusto (BECHARA SPINA 1973 p 89) 180Ciacuteclades grupo de ilhas no sul do mar Egeu 181Netuno deus dos mares 182 Cleoacutepatra (69-30 aC) rainha egiacutepcia da dinastia de Ptolomeu 183Sistro antigo instrumento egiacutepcio de percussatildeo que produzia som agudo e prolongado
129
Monstros de deuses de toda espeacutecie e o ladrador Anuacutebis184 mantecircm as armas contra
Netuno e Vecircnus185 e contra Minerva186 Marte gravado em ferro enfurece-se no meio
da batalha e as crueacuteis Fuacuterias descem pelo ar e com o manto rasgado a Discoacuterdia187
alegre caminha e eacute seguida por Belona188 com seu chicote ensanguentado
Ao ver isto de cima Apolo Aacutecio189 retesava o arco Com horror todo o Egito Indianos
todos os araacutebes e todos os sabeus viravam as costas A proacutepria rainha parecia dar
velas aos invocados ventos e a soltar cada vez mais as frouxas amarras O deus do
fogo190 colocara-a entre a carnificina paacutelida pela morte futura arrastada pelas ondas
e pelo Iaacutepige191 em frente tambeacutem colocara o Nilo192 com seu vasto corpo abrindo as
pregas de todo o seu traje e chamando os vencidos para o seu colo azul e para os
seus secretos rios
E Ceacutesar193 levado pelo triacuteplice triunfo agraves muralhas romanas consagrava aos deuses
da Itaacutelia um voto imortal trezentos templos maacuteximos por toda a cidade As ruas
retumbavam de alegria com jogos e aplausos em todos os templos o coro das matildees
todos tinham altares e diante deles os novilhos imolados cobriram a terra Ele proacuteprio
sentado no limiar da neve do candente Febo194 examina os presentes dos povos e os
coloca nas soberbas portas as naccedilotildees vencidas avanccedilam em longa fila tatildeo variadas
no modo de vestir e nas armas quanto nas vaacuterias liacutenguas
Aqui Mulciacutebero195 representara a raccedila dos nocircmades196 e os africanos de vestes
soltas neste lugar os leacutelegos197 os caacuterios198 e os gelonos199 armados de setas o
184Anuacutebis deus egiacutepcio protetor e guia dos mortos comumente representado com a cabeccedila de um chacal animal de caccedila relacionado aos lobos daiacute o nome ladrador 185Vecircnus deusa do amor matildee de Eneias e protetora dos romanos 186Minerva deusa romana das artes e sabedoria tambeacutem rege as estrateacutegias de guerra 187Discoacuterdia a matildee dos males diz-se que acompanhava Marte nas batalhas 188Belona eacute a fuacuteria da guerra e carnificina deusa de origem etrusca 189O arco do deus Apolo dispara dardos letais 190Vulcano deus das forjas responsaacutevel por colocar todas as presentes histoacuterias no escudo de Eneias 191Iaacutepige filho de Deacutedalo eacute um vento que sopra de oeste-noroeste 192O rio Nilo foi o principal fator para o desenvolvimento da sociedade egiacutepcia Hapi era cultuado como o deus das aacuteguas do Nilo sendo responsaacutevel pela prosperidade advinda do rio Diz-se que este deus eacute representado segurando talos de Papiros e flores de Loacutetus 193Otaacutevio agora nomeado Ceacutesar Augusto depois da vitoacuteria na batalha do Aacutecio 194Febo deus romano equivalente ao grego Apolo representa a luz a muacutesica e as artes eacute irmatildeo de Diana 195Mulciacutebero outro nome para Vulcano o deus das forjas 196 Nocircmades gente do ocidente de Cartago 197 Leleacutegos povo do sudoeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor 198Caacuterios povo do oeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor Caacuterios e leleacutegos eram muito proacuteximos 199Gelonos povos da Ciacutentia ou da Traacutecia
130
Eufrates200 jaacute corria mais calmo com suas ondas e os moacuterios201 os mais afastados
dos homens e o Reno202 de duas barras os indomaacuteveis dahas203 e o Araxes204
indignado com a ponte
[Eneias] admira tais coisas atraveacutes do escudo de Vulcano presente da sua matildee e
estranho aos assuntos regozija-se com a imagem carregando sobre o ombro a gloacuteria
e a fama dos seus descendentes
200 Eufrates rio que passa pela Armecircnia e Mesopotacircmia 201Moacuterios povos da Beacutelgica Os romanos chamavam-lhes de uacuteltimos porque aleacutem deles natildeo conheciam mais povos 202Reno rio da Alemanha era parte da fronteira setentrional do Impeacuterio Romano 203Dahas povo da Ciacutentia 204O rio Araxes nasce nos montes da Armecircnia e desaacutegua no mar Caacutespio Xerxes lhe fez uma ponte e Alexandre outra mas as enchentes do rio a destruiacuteram Otaacutevio entatildeo subjugou-o com outra ponte mais firme (LEITAtildeO 1819 p 75)
131
59 FIGURATIVIDADE NO CANTO VIII (hex 612-731) anaacutelise do
texto
Baseando-se nos poemas eacutepicos da Antiguidade Grimal (1992 p 185) assim
esclarece
Esses poemas satildeo ldquoeacutepicosrdquo na medida em que contam feitos de caraacuteter sobre-humano realizados por alguma das personagens pertencentes agrave ldquomemoacuteria coletivardquo das cidades que estatildeo em relaccedilatildeo com as divindades - das quais se originaram e pelas quais satildeo inspiradas - e que vivem em tempos em que o divino e o humano ainda natildeo se distinguiam claramente eacute o tempo dos ldquoheroacuteisrdquo dos semi-deuses
Para Hegel (1993 p 572-573) na Esteacutetica a epopeia propriamente dita
Representa o espiritual concreto sob uma forma individual e a epopeia quando narra alguma coisa tem por objeto uma accedilatildeo que por todas as circunstacircncias que a acompanham e as condiccedilotildees nas quais se realiza apresenta inumeraacuteveis ramificaccedilotildees pelas quais contacta com o mundo total de uma naccedilatildeo ou de uma eacutepoca Eacute portanto o conjunto da concepccedilatildeo do mundo e da vida de uma naccedilatildeo que apresentado sob uma forma objetiva de acontecimentos reais constitui o conteuacutedo e determina a forma do eacutepico propriamente dito Desta totalidade fazem parte por um lado a consciecircncia religiosa de todas as verdades profundas do espiacuterito humano e por outro lado a vida concreta a vida poliacutetica e domeacutestica e ateacute as necessidades que a vida exterior comporta e os meios de satisfazer
Assim a poesia de gecircnero eacutepico eacute uma celebraccedilatildeo narrativa da histoacuteria paacutetria
acompanhada pela glorificaccedilatildeo de heroacuteis nacionais Hegel menciona ainda outros
elementos constitutivos do gecircnero Entre eles vale destacar a objetividade e o conflito
da guerra que eacute conveniente agrave temaacutetica eacutepica e ao desenvolvimento da accedilatildeo
Segundo Montagner (2014) a eacutepica nasce na oralidade ancestral grega O
termo lsquoeacutepicarsquo proveacutem do grego eacutepos e significa de modo mais amplo lsquopalavrarsquo
lsquodiscursorsquo De modo restrito os gregos assim denominavam a poesia em hexacircmetro
a partir de epeacute plural de eacutepos Na eacutepoca claacutessica greco-latina seraacute o hexacircmetro
datiacutelico segundo o criacutetico o verso proacuteprio desse gecircnero Todavia aleacutem do verso
caracteriacutestico haacute outra marca o caraacuteter narrativo ou expositivo que assinala suas
manifestaccedilotildees
132
A Eneida a eacutepica virgiliana possui doze cantos (ou livros) escritos em
hexacircmetros datiacutelicos Em sua ceacutelebre epopeia Virgiacutelio narra os memoraacuteveis feitos
romanos Vemos as aventuras do heroacutei Eneias filho protegido da deusa Vecircnus em
luta para firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino A histoacuteria
comeccedila (in medias res) com Eneias e suas naus em pleno Mediterracircneo jaacute no seacutetimo
ano apoacutes a queda de Troia O heroacutei sofre um naufraacutegio arquitetado pela deusa Juno
e eacute lanccedilado agrave costa africana Desenrolam-se a partir daiacute os acontecimentos e accedilotildees
que faratildeo de Eneias um iacutecone romano o fundador da Nova Troia Logo a personagem
Eneias bem como suas accedilotildees e portanto seu papel figurativo no texto apoia-se na
previsibilidade narrativa que fundamenta a expectativa das figuras no contexto da
poesia eacutepica Trata-se de um heroacutei cujo destino eacute grandioso pois nele repousa o futuro
da raccedila troiana Todos estes elementos seratildeo desenvolvidos por Virgiacutelio ao retomar o
quadro da lenda romana Assim no engendramento do estilo grandiloquente
encontramos recorrecircncias figurativas que nos levam a um especiacutefico efeito de
individuaccedilatildeo no texto
Segundo Pedro Paulo Funari (2001 p 66)
Apoacutes a vitoacuteria dos gregos sobre os troianos Eneias vagou pelo Mediterracircneo ateacute chegar ao Laacutecio onde reinou por alguns anos Depois de morto foi adorado como Juacutepiter Indiges Seu filho Ascacircnio fundou Alba Longa e seu descendente Numitor pai de Reacuteia Siacutelvia foi pois avocirc de Rocircmulo Por essas lendas Roma ligava-se ao deus da guerra Marte e agrave deusa da fertilidade Vecircnus
Para Antocircnio Medina Rodrigues (2005 p10) a Eneida eacute ldquoum cacircntico aos novos
tempos do Impeacuterio eacute tambeacutem a nostalgia dos tempos lendaacuterios e primeiros haacute muito
sepultados sob as guerras civis e de conquista tempos de Rocircmulo e da chegada dos
troianos aos litorais itaacutelicos tempos da fundaccedilatildeo de Romardquo Virgiacutelio mescla histoacuteria
mito e um conjunto de situaccedilotildees que jaacute eram conhecidas pelos romanos
Como marco da Literatura Latina a Eneida confere agrave naccedilatildeo romana uma
identidade cultural A obra faz parte da chamada Idade de Ouro de Augusto e
segundo Funari (2001 p 66) para os romanos era importante considerar que seu
destino estava ligado aos deuses pois estas nobres origens legitimavam seu poder
sobre outros povos e servia como propaganda de suas qualidades
No canto VIII no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise hexacircmetros 612
a 731 temos a descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente forjado por Vulcano e
133
ofertado pela deusa Vecircnus ao heroacutei No escudo Vulcano desenhou os eventos da
futura Roma e entre estes eventos estatildeo a loba alimentando Rocircmulo e Remo o rapto
das Sabinas e no centro a batalha do Aacutecio As imagens esculpidas por Vulcano no
escudo de Eneias refletem toda a histoacuteria de Roma incluindo episoacutedios miacuteticos que
se mesclaram aos eventos histoacutericos Aleacutem disso vale ressaltar tambeacutem a figura de
Otaviano na centralidade do escudo jaacute que o governante passou a ser o centro do
cenaacuterio poliacutetico e social de Roma Segundo Pierre Grimal (1992 p 192) ldquoO heroacutei do
poema seraacute Eneacuteias claro mas este se ergueraacute antes de Roma no alto de uma
linhagem que de condutor de homens a triunfador vem dar em Otaacuteviordquo
Na descriccedilatildeo do escudo natildeo se observam detalhes das accedilotildees dos
personagens em seus respectivos cenaacuterios Ao descrever a batalha do Aacutecio por
exemplo vemos os oponentes de um lado e Otaviano de outro enquanto as
estrateacutegias beacutelicas e o combate soacute satildeo sugeridos Cabe ao leitor assim reconstituir
os eventos
As diferentes histoacuterias aludidas no escudo satildeo narrativas lendaacuterias e histoacutericas
desde a fundaccedilatildeo de Roma Pensando que o estilo eacute depreensiacutevel pelas recorrecircncias
figurativas do discurso podemos pensar nessas narrativas como parte do programa
figurativo que engendra o efeito de sentido grandiloquente
Nos hexacircmetros 619 e 625 vemos a descriccedilatildeo das armas de guerra presentes
ofertados pela deusa Vecircnus ao filho Eneias
miraturque interque manus et bracchia uersat terribilem cristis galeam flammasque minantem fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes solis inardescit radiis longeque refulget tum leuis ocreas electro auroque recocto hastamque et clipei non enarrabile textum
admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo
O capacete de crista vermelha a riacutegida couraccedila de bronze as armaduras da
perna a lanccedila e o exuberante escudo compotildeem a imagem do guerreiro Estas figuras
contribuem para a caracterizaccedilatildeo de Eneias que desde os Poemas Homeacutericos ldquosurge
134
como um heroacutei protegido pelos deuses aos quais obedece respeitosamente estando-
lhe reservado um destino grandioso nele repousa o futuro da raccedila troianardquo (GRIMAL
2014 p 135) Diferentemente do pastor que no cenaacuterio bucoacutelico eacute representado pelo
cajado e a flauta aqui o guerreiro alia-se aos artefatos beacutelicos em um cenaacuterio de
estrateacutegias de combate Tem-se portanto a descriccedilatildeo de objetos representativos do
contexto da poesia eacutepica
Conington (2008 p145) em seus comentaacuterios ao texto de Virgiacutelio aponta para
o termo ldquobracchiardquo (braccedilos) do seguinte excerto Segundo o criacutetico a accedilatildeo de virar
entre as matildeos e os braccedilos deixa entrever o tamanho das diferentes partes da
armadura que enchem os braccedilos quando levantadas
Miraturque interque manus et bracchia uersat
e admira e vira entre as matildeos e os braccedilos
A grandiosidade dos presentes forjados pelo deus do fogo na visatildeo de
Conington (2008 p145) aparece com o vocaacutebulo ldquominantemrdquo verbo depoente que
indica a accedilatildeo de ldquoameaccedilarrdquo sugerindo o aceno da crista do capacete que resplandece
ao ser manuseado e admirado por Eneias
Terribilem cristis galeam flammasque minantem
o tremendo capacete que ameaccedila com suas cristas e chamas
No Canto VII Eneias chega agrave regiatildeo do Tibre onde governa o rei Latino que
havia recebido dos deuses o aviso da chegada de Eneias futuro esposo de sua filha
Laviacutenia O chefe dos troianos envia uma comitiva ao rei Latino para que seja feito um
acordo de paz mas a terriacutevel Juno envia a deusa infernal Alecto responsaacutevel pela
guerra e pelas desgraccedilas para semear a discoacuterdia entre os dois povos
No Canto VIII com agrave iminecircncia da batalha Eneias encontra-se preocupado
com o porvir Agrave noite entatildeo ao permitir-se o descanso necessaacuterio o heroacutei eacute
surpreendido pelo rio Tibre que se personifica e comeccedila a falar O Tibre conta ao
troiano quem entatildeo poderaacute auxiliaacute-lo na guerra contra Turno trata-se de Palante ndash
filho de Evandro rei dos Aacutercades Percorrendo o curso do rio e ouvindo-o Eneias
alcanccedila a regiatildeo onde Evandro lidera e tem a oportunidade de falar com o rei e
confirmar a alianccedila predestinada
135
Paralelo a isso mostra-se a preocupaccedilatildeo de Vecircnus com a iminecircncia da guerra
Por esse motivo a deusa queixa-se a Vulcano pedindo-lhe ajuda na confecccedilatildeo de
artefatos beacutelicos que seratildeo indispensaacuteveis ao filho Eneias Com o pedido da esposa
Vulcano promete confeccionar as armas e pede a seus colaboradores na forja para
que produzam uma arma de caraacuteter singular
(hex 369-385) Nox ruit et fuscis tellurem amplectitur alis At Venus haud animo nequiquam exterrita mater 370 Laurentumque minis et duro mota tumultu Volcanum adloquitur thalamoque haec coniugis aureo incipit et dictis diuinum aspirat amorem ldquoDum bello Argolici uastabant Pergama reges debita casurasque inimicis ignibus arces 375 non ullum auxilium miseris non arma rogaui artis opisque tuae nec te carissime coniunx incassumue tuos uolui exercere labores quamuis et Priami deberem plurima natis et durum Aeneae fleuissem saepe laborem 380 Nunc Iouis imperiis Rutulorum constitit oris ergo eadem supplex uenio et sanctum mihi numen arma rogo genetrix nato Te filia Nerei te potuit lacrimis Tithonia flectere coniunx Aspice qui coeant populi quae moenia clausis 385 ferrum acuant portis in me excidiumque meorum
A noite impele e abraccedila a terra com as suas sombrias asas Poreacutem
Vecircnus matildee natildeo apavorada de coraccedilatildeo perturbada com as ameaccedilas
dos laurentinos e com o duro tumulto dirige-se a Vulcano e no leito
nupcial de ouro de seu esposo comeccedila com estas palavras e infunde-
lhe o divino amor ldquoEnquanto os reis argoacutelicos devastavam Peacutergamo
com a guerra condenada e as cidadelas sucumbiam pelas inimigas
chamas nenhum auxiacutelio pedi para os infelizes nem armas do poder
da tua arte cariacutessimo esposo nem quis que tu exercesses teus
trabalhos em vatildeo e ainda que eu devesse grande quantidade de
coisas aos filhos de Priamo e muitas vezes lamentasse o duro
trabalho de Eneias Agora por ordens de Jove deteve-se agrave entrada
dos ruacutetulos por isso eu mesma suplicante venho e eu como matildee
rogo por seu veneraacutevel poder armas para o meu filho A filha de Nereu
e a esposa de Titono puderam te comover com suas laacutegrimas
Considera que os povos se reuacutenem e que muralhas com as suas
portas fechadas aguccedilam o ferro contra mim e para a destruiccedilatildeo dos
meusrdquo
Atendendo ao pedido da esposa Vulcano confecciona um instrumento beacutelico
que garantiraacute a seguranccedila de Eneias Aleacutem disso o deus representaraacute neste artefato
136
o futuro da descendecircncia do heroacutei Apoacutes a confecccedilatildeo das armas de guerra Vecircnus
presenteia o filho A passagem inicia-se com as palavras da deusa
(hex 612 ndash 614) En perfecta mei promissa coniugis arte munera ne mox aut Laurentis nate superbos aut acrem dubites in proelia poscere Turnum Eis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo Filho natildeo duvides em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos ou o vigoroso Turno
A partir dessas palavras desenham-se por meio do olhar do narrador
mesclado ao olhar de Eneias os utensiacutelios beacutelicos As armas de guerra satildeo descritas
e para cada uma delas eacute apresentada uma caracteriacutestica especiacutefica Por meio da
descriccedilatildeo das armas podemos acompanhar o olhar de Eneias e a partir desse olhar
tambeacutem admirar a arte produzida por Vulcano
A exposiccedilatildeo dos artefatos beacutelicos eacute minuciosa mas breve (hex 619 ndash 625)
Virgiacutelio mostra cada uma das armas qualificando-as O poeta apresenta cada uma o
capacete que conteacutem um penacho e que eacute responsaacutevel por despertar o terror no
oponente uma espada que leva agrave morte uma couraccedila riacutegida com uma tonalidade cor
de sangue botas de eletro feitas de metal compostas de ouro e prata uma lanccedila e
por fim um escudo que eacute inenarraacutevel
Ressalta-se para cada uma das armas apresentadas pelo poeta uma
particular estrutura descritiva nomeia-se a arma de guerra e posteriormente ela eacute
qualificada Quanto agrave essa forma de descriccedilatildeo nota-se que o uacutenico artefato beacutelico que
natildeo possui um qualificativo eacute a lanccedila A omissatildeo da caracteriacutestica da lanccedila colocaraacute
assim o escudo em um relevo especial jaacute que este utensiacutelio beacutelico eacute tatildeo importante
para o desenvolvimento da narrativa virgiliana que ganha uma descriccedilatildeo mais
detalhada
As figuras em cenaacuterio eacutepico natildeo revestem uma temaacutetica humilde mas sim uma
temaacutetica sublime por isso se reconhece na eacutepica o estilo grandiloquente Para Grimal
(1992 p 187) ldquoo tom da epopeia eacute o mais elevado possiacutevel eacute ldquosublimerdquo por
excelecircncia pois refere-se aos assuntos mais grandiosos e aos interesses mais
altos()rdquo
137
Com vistas agrave percepccedilatildeo de um estilo grandiloquente nos versos seguintes
hexacircmetros 612 a 731 procuramos analisar a descriccedilatildeo particular do escudo de
Eneias instrumento em que o deus do fogo Vulcano esculpiu os feitos da Itaacutelia e os
triunfos dos romanos No poema o escudo de Eneias eacute transformado em objeto
artiacutestico jaacute que nele se desenham os acontecimentos histoacutericos de Roma desde a
sua fundaccedilatildeo O escudo permite que o leitor veja o destino grandioso da Nova Troia
que seraacute fundada no Laacutecio Observa-se no excerto uma rede de figuras coerentes
ao contexto da poesia eacutepica porque supotildeem uma unidade do discurso levando-nos
ao entendimento de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo o grandiloquente Vale
ressaltar tambeacutem o modo como Virgiacutelio desenhou a histoacuteria de Roma valendo-se da
palavra poeacutetica
O escudo comeccedila a ser descrito pela figura lendaacuteria da loba alimentando
Rocircmulo e Remo (hex 630-634)
Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro procubuisse lupam geminos huic ubera circum ludere pendentis pueros et lambere matrem impauidos illam tereti ceruice reflexam mulcere alternos et corpora fingere lingua
E havia colocado a feacutertil loba deitada no antro verde de Marte e suspensos em volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela voltada para traacutes de cabeccedila arredondada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus corpos com a liacutengua
Nesta passagem a figura da loba aparece deitada no antro verde de Marte
uma gruta destinada ao deus e que eacute recoberta por plantas Sabe-se que o deus Marte
aparece em Roma como o deus da Guerra mas ele tambeacutem eacute visto como o deus da
vegetaccedilatildeo ou seja um deus da Primavera jaacute que a eacutepoca da guerra comeccedila com o
fim do Inverno Eacute ele assim quem guia os jovens que emigram das cidades sabinas
para fundar novas cidades e encontrar novos locais para se estabelecerem (GRIMAL
2014 p 293) Ao costume de deixar o velho local em procura de outro chamava-se
ldquover sacrumrdquo ldquoa primavera sagradardquo No trajeto ao novo local os jovens eram guiados
pelo piccedilanccedilo ave passeriforme ou pelo lobo dois animais consagrados a Marte Daiacute
o papel da loba no campo verde de Marte O tempo do verbo ldquoprocubuisserdquo perfeito
ativo do infinitivo segundo Conington indica a accedilatildeo da loba que jaacute havia se deitado
quando os gecircmeos se posicionaram para beber o leite
138
procubuisse lupam geminos huic ubera circum
a loba deitada os gecircmeos ao redor das tetas
A figura da loba aleacutem de lendaacuteria mesclou-se agrave histoacuteria e tem um lugar de
destaque no pequeno excerto Nota-se ainda que a histoacuteria de Rocircmulo e Remo eacute
sugerida a partir da imagem da feacutertil loba e deve portanto ser completada pelo leitor
Trata-se de um mito acerca da histoacuteria da fundaccedilatildeo de Roma em que os gecircmeos
Rocircmulo e Remo filhos do deus Marte com Reacuteia Silvia descendente da estirpe de
Eneias foram amamentados por uma loba
A feacutertil loba passa-nos portanto a ideia de abundacircncia eacute ela que supre os
gecircmeos Na ldquoIV Bucoacutelicardquo de Virgiacutelio quando eacute mencionado o Retorno da Idade de
Ouro e o nascimento de uma crianccedila toda natureza tambeacutem aparece apta a servir
(hex 60-63)
Ipsae lacte domum referente distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundente cunabula flores
As cabritinhas por si mesmas levaratildeo a casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti (crianccedila) o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores
No pequeno excerto da ldquoIV Bucoacutelicardquo como visto acima a natureza modifica-
se para receber a crianccedila que havia acabado de nascer e paralelamente neste
pequeno excerto do ldquoVIII Cantordquo da Eneida a feacutertil loba encontra-se apta a servir
alimentar os gecircmeos receacutem-nascidos A natureza nos dois casos encanta-se com a
crianccedila que traz boas novas
Apoacutes a figura da loba mostra-se o episoacutedio do rapto das Sabinas entalhado
no escudo como marca lendaacuteria de um dos eventos que se seguiram agrave fundaccedilatildeo de
Roma Mais uma vez trata-se de um episoacutedio que eacute apenas sugerido jaacute que os
detalhes do acontecimento natildeo satildeo mencionados pois eles devem ser reconstituiacutedos
pelo leitor No excerto satildeo citadas as Raptadas Sabinas e a guerra entre os
Romulidas e o Velho Taacutecio Quando Roma foi fundada soacute existiam homens e Rocircmulo
preocupou-se em povoaacute-la com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas
139
dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos
durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de
Rocircmulo os Romulidas raptaram todas as jovens O Velho Taacutecio o rei dos Sabinos
apoacutes o rapto das Sabinas organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas
segundo conta-nos Tito Liacutevio (1989 p 31) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em
meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos
assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos (GRIMAL 2014 p 409)
Diz-se que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo dirigiu a Juacutepiter um
pedido e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse
de feiccedilatildeo Cessada a batalha foi construiacutedo o templo de Iupiter Stator (Juacutepiter que
deteacutem) edificado no local onde mais tarde foi construiacutedo o arco de Tito na Via Sacra
(GRIMAL 2014 p 409) A figura do templo de Juacutepiter bem como das paacuteteras taccedilas
usadas em sacrifiacutecios e da porca imolada deixam entrever a comunhatildeo entre
Romulidas e Sabinos com o fim da guerra Conington (2008 p147) revela-nos que
era antigo o costume de se sacrificar um suiacuteno em tratados de paz
(hex 635-641)
Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas consessu caueae magnis Circensibus actis addiderat subitoque nouom consuergere bellum Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris Post idem inter se posito certamine reges armati Iouis ante aram paterasque tenentes stabant et caesa iungebant foedera porca
Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas sem o haacutebito na assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se uma nova guerra entre os Romulidas e o velho Taacutecio rei dos severos habitantes de Cures Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do altar de Juacutepiter segurando as paacuteteras e faziam um tratado de alianccedila com a porca imolada
Outro episoacutedio entalhado no escudo eacute o esquartejamento de Meacutecio No
pequeno excerto temos o vocaacutebulo ldquoMettumrdquo Meacutecio entre os vocaacutebulos ldquocitaerdquo e
ldquoquadrigaerdquo raacutepidas quadrigas remetendo-nos iconicamente agrave ideia do
esquartejamento do rei albano Reforccedila ainda esta ideia os outros vocaacutebulos que
fazem alusatildeo a Meacutecio mas que aparecem distantes espalhados nos versos
seguintes como ldquoAlbanerdquo Albano ldquouirirdquo homem ldquomendacisrdquo mentiroso e ldquouiscerardquo
140
viacutesceras levando-nos a ideia jaacute expressa nos versos a de que as raacutepidas quadrigas
esquartejaram Meacutecio em sentidos contraacuterios
(hex 642-645)
Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae distulerant (at tu dictis Albane maneres) raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres
Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio em sentidos contraacuterios (mas tu oacute Albano natildeo manterias teus dizeres) e Tulo arrastava as viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue escorriam
Meacutecio Fufeacutecio foi o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Conta-se que ele fez um
acordo com Tulo o terceiro rei lendaacuterio de Roma Os romanos haviam declarado
guerra contra os albanos mas Tulo e o rei de Alba Longa Meacutecio fizeram um acordo
para evitar o excessivo derramamento de sangue Como os dois exeacutercitos tinham um
conjunto de irmatildeos trigecircmeos foi decidido que esses irmatildeos lutariam entre si Os
irmatildeos Horaacutecios lutariam pelo lado romano enquanto os Curiaacutecios lutariam pelos
albanos Roma saiu vitoriosa e Alba Longa foi submetida ao Estado romano
Posteriormente quando Meacutecio se recusou a ajudar Roma em um conflito traindo-a
diz-se que foi esquartejado por duas quadrigas lanccediladas em direccedilotildees opostas
Tito Liacutevio (59 aC ndash 17 dC) historiador romano em Ab urbe condita (1989 p
60) assim registrou esse acontecimento
Tulo entatildeo prosseguiu Meacutetio Fufeacutecio se pudesses aprender ainda a respeitar os juramentos e os tratados eu te pouparia a vida e seria eu proacuteprio o teu instrutor Mas como teu caraacuteter eacute irrecuperaacutevel que ao menos teu supliacutecio ensine os homens a considerarem sagrados os compromissos que violas e assim como ontem dividias tua alma entre Fidenas e Roma hoje eacute a vez de teu corpo ser tambeacutem dividido Mandou entatildeo que trouxessem duas quadrigas agraves quais fez amarrar Meacutetio com os membros distendidos Em seguida os cavalos foram impelidos em direccedilatildeo contraacuteria o corpo se dilacerou e os dois carros arrastaram os membros neles amarrados Todos os olhares se afastaram do horriacutevel espetaacuteculo (XXVIII)
Somando-se a este episoacutedio Vulcano coloca tambeacutem dois personagens
Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia e Tarquiacutenio o Soberbo
responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que ao tomar o
141
poder no senado romano Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio e
confiscou seus bens Foi deposto em 509 aC Quando foi expulso de Roma Tarquiacutenio
procurou a ajuda de Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para
declarar guerra agrave Roma No ano de 507 aC Porsena sitiou Roma cercando-a Mais
uma vez os detalhes dos acontecimentos natildeo satildeo mencionados por Virgiacutelio mas
apenas aludidos atraveacutes das figuras por ele elencadas Merece destaque a imagem
do cerco agrave Roma
(hex 646-651)
Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat accipere ingentique urbem obsidione premebat Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant Illum indignanti similem similemque minanti aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis
E ainda tambeacutem Porsena mandava receber o exilado Tarquiacutenio e sitiava a cidade com um enorme cerco Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade Se observares aquele semelhante ao indigno e semelhante ameaccedilador porque Cocles ousara destruir a ponte e Cleacutelia atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas
Nota-se que o vocaacutebulo ldquourbemrdquo cidade encontra-se entre a expressatildeo ldquoingenti
obsedionerdquo grande cerco remetendo-nos iconicamente agrave ideia de que a cidade estaacute
sitiada
ingentique urbem obsidione premebat
e sitiava a cidade com um enorme cerco
Em menccedilatildeo ao verso seguinte (hex 648)
Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant
Os descentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade
Conington (2008 p148) destaca a expressatildeo ldquoin ferrum ruererdquo (ldquocorrer ao
ferrorsquo) pois segundo ele desenha-se nesta passagem uma espeacutecie de espada Com
base nessa afirmaccedilatildeo observamos que a recorrecircncia do fonema vibrante r no final
142
do verso Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant mimetiza a ideia de um ranger de
espadas remetendo-nos portanto agrave ideia da batalha
Assim com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela
qual o inimigo iria atravessar o Tibre Diz-se tambeacutem que durante o cerco agrave Roma em
507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado A
imagem deste acontecimento tambeacutem foi aludida iconicamente
Et fluvium uinclis innaret Cloelia ruptis
E Clelia atravessara o rio com as correntes destruiacutedas
Nota-se que as correntes destruiacutedas aparecem figurativamente no verso pois
o vocaacutebulo ldquouinclisrdquo correntes estaacute apartado do vocaacutebulo ldquoruptisrdquo destruiacutedas
representando a ideia de ruptura e liberdade de Cleacutelia
O memoraacutevel escudo de Eneias traz ainda a figura de Marco Macircnlio cocircnsul
da Repuacuteblica Romana que defendeu Roma da invasatildeo gaulesa De acordo com os
comentaacuterios de Conington (2008 p 148) para os hexacircmetros 652 e 653
In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat
No alto o guardiatildeo de Tarpeia Macircnlio estava de peacute diante do templo
e defendia o alto do Capitoacutelio
O termo ldquoIn summordquo no alto refere-se ao topo do escudo de Eneias e Macircnlio
eacute representado pictoricamente ao lado da rocha Tarpeia como podemos observar
iconicamente no verso In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
No hexacircmetro 654 Conington (2008 p 148) afirma que ao utilizar o vocaacutebulo
ldquorecensrdquo Virgiacutelio assinala a arte de Vulcano no presente ofertado a Eneias jaacute que se
trata do recente palaacutecio acabado de ser entalhado no escudo
Romuleoque recens horrebat regia culmo
O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo
143
O hexacircmetro na visatildeo do criacutetico alude a renovaccedilatildeo constante da casa de
Rocircmulo nos tempos histoacutericos de Roma O termo ldquoRomuleordquo refere-se ao que se
manteve como era nos tempos de Rocircmulo Virgiacutelio usa a imagem do colmo ldquoculmordquo
a palha usada para cobrir as casas para descrever o palaacutecio de Rocircmulo e combinaacute-
lo de certa forma com o templo dourado de seu proacuteprio tempo Dessa forma constroacutei-
se para o leitor a imagem do Capitoacutelio
Ainda neste excerto chama-se a atenccedilatildeo dos romanos para um ataque noturno
dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno
no monte Capitolino
(hex 655-662)
Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat Galli per dumos aderant arcemque tenebant defensi tenebris et dono noctis opacae aurea caesaries ollis atque aurea uestis uirgatis lucent sagulis tum lactea colla auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant gaesa manu scutis protecti corpora longis
E aqui um ganso prateado voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita nas matildeos os dardos alpinos os corpos protegidos pelo longo escudo
Para Conington (2008 p149) o termo ldquouolitansrdquo particiacutepio presente que se
refere a accedilatildeo de voejar daacute-nos a imagem das asas vibrantes dos gansos
Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat
O que reforccedila essa ideia na verdade eacute a repeticcedilatildeo do fonema sibilante s nos
dois primeiros hexacircmetros que colaboram para a construccedilatildeo dessa imagem jaacute que
sugerem por meio da aliteraccedilatildeo em s a presenccedila do voo dos gansos no poema
Vulcano destaca ainda alguns elementos de cultura e entalha no escudo de
Eneias os saacutelios sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro
e os lupercus sacerdotes de Fauno que era uma divindade associada ao campo e agrave
144
fertilidade Os lupercus utilizavam chicotes feitos com couro de cabra que eram
chamados de barretes sacerdotais de latilde Destacam-se assim as cerimocircnias
sagradas
(hex 663-666)
Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo extuderat castae ducebant sacra per urbem pilentis matres in mollibus [hellip]
Aqui havia representado os saltitantes saacutelios e os lupercus nus os barretes sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados
De acordo com Heyne Peerlkamp e Ribbeck todos citados por Conington
(2008 p150) agrave primeira vista a introduccedilatildeo das regiotildees infernais nos hexacircmetros de
nuacutemero 666 a 670 parece fora de sintonia com o resto do contexto esculpido por
Vulcano mas devemos considerar como bem aponta-nos Conington que neste
pequeno excerto assim como em outros o objetivo de Virgiacutelio eacute narrar incidentes
pictoacutericos e entre eles a posiccedilatildeo de benfeitores e criminosos nacionais
(hex 666-670)
[hellip] Hinc procul addit Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis et scelerum poenas et te Catilina minaci pendentem scopulo Furiarumque ora trementem secretosque pios his dantem iura Catonem
Daqui ao longe acrescenta tambeacutem as moradas do Taacutertaro a alta porta de Dite e os castigos dos criminosos e tu oacute Catilina suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo havia ditado as leis
No pequeno excerto os inimigos de Ceacutesar satildeo colocados no mundo inferior o
Taacutertaro Dite eacute um dos nomes utilizados para se referir ao deus Plutatildeo que eacute
responsaacutevel pelo mundo inferior No Taacutertaro encontra-se Catilina um militar e senador
romano que queria destruir o poder oligaacuterquico do senado bem como as fuacuterias
divindades que viviam nas profundezas e eram responsaacuteveis pela tortura das almas
Ao traidor Catilina coube a agonia de cair do abismo enquanto a Catatildeo o Jovem ou
Catatildeo de Uacutetica poliacutetico romano ceacutelebre pela sua inflexibilidade e integridade moral
145
coube os Campos Eliacuteseos Na visatildeo de Conington (2008 p151) a figura de Catatildeo
apresenta-se nesta passagem em contraste com a figura de Catilina concluindo que
o caraacuteter de Catatildeo em vida fez dele um legislador para os mortos
Vulcano prossegue nos detalhes de sua obra com a imagem de um mar que
atravessa o escudo como um tipo de fronteira
(hex 671-674)
Haec inter tumidi late maris ibat imago aurea sed fluctu spumabant caerula cano et circum argento clari delphines in orbem aequora uerrebant caudis aestumque secabant
Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas ondas
Destaca-se desta passagem a figura dos golfinhos delphines O golfinho eacute um
animal marinho consagrado a Apolo pois seu nome lembra o santuaacuterio principal de
Apolo em Delfos Se lembrarmos portanto que Apolo foi adotado por Otaviano como
seu protetor pessoal e que o imperador atribuiacutea ao deus a sua vitoacuteria na batalha naval
contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra a presenccedila dos golfinhos abrindo o cenaacuterio da
batalha do Aacutecio faz alusatildeo agrave figura do deus Apolo bem como agrave proteccedilatildeo do deus aos
romanos (GRIMAL 2014 p33)
Assim no centro do escudo de Eneias detalha-se a Batalha do Aacutecio e coloca-
se a figura de Otaviano em destaque
(hex 675-688)
In medio classis aeratas Actia bella cernete erat totumque instructo Marte uideres feruere Leucaten auroque effulgere fluctus Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar cum patribus populoque penatibus et magnis dis stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus Parte alia uentis et dis Agrippa secundis arduos agmen agens cui belli insigne superbum tempora nauali fulgent rostrata corona Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis uictor ab Aurorae populis et litore rubro Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx
146
No meio via-se as armadas de bronze a guerra do Aacutecio via-se todo o Leucates a ferver com Marte preparado e as ondas resplandecerem com o brilho do ouro De um lado Ceacutesar Augusto conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e o povo os penates e os deuses maiores em peacute sobre a elevada popa a que o seu feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua cabeccedila Em outra parte Agripa com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas Antocircnio vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho transporta com ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra e eacute seguido pela esposa egiacutepcia
Representa-se neste excerto os dois rivais de um lado Otaacutevio Augusto o
senado o povo os Penates e os grandes deuses romanos de outro Marco Antocircnio
e Cleoacutepatra acompanhados de um exeacutercito de homens baacuterbaros e figuras divinas
monstruosas Com o fim da batalha haacute o triunfo de Otaacutevio sobre Marco Antocircnio e a
Alexandria Posteriormente sentado agrave entrada do templo de Apolo Otaacutevio recebe os
presentes das naccedilotildees vencidas O fim da guerra delimita o iniacutecio da pax romana
A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)
O escudo de Eneias como se viu traz episoacutedios centrais da histoacuteria de Roma
a loba que alimenta Rocircmulo e Remo o rapto das Sabinas o castigo da traiccedilatildeo de
Meacutecio por Tulo Hostiacutelio a invasatildeo de Porsena os feitos heroicos de Horaacutecio Cocles e
Cleacutelia a defesa do Capitoacutelio contra os gauleses saacutelios e lupercus e no centro a
batalha do Aacutecio Haacute tambeacutem a representaccedilatildeo do mundo inferior no Taacutertaro encontra-
se Catilina inimigo da paacutetria enquanto nos Campos Eliacuteseos lugar onde habitam os
justos Catatildeo aparece ditando as leis Condensados em poucos versos estes
episoacutedios revelam um modo peculiar de medir o tempo na narrativa jaacute que a
percepccedilatildeo de grandes mudanccedilas histoacutericas satildeo condensadas em um curto periacuteodo
contrariando a mediccedilatildeo cronoloacutegica do tempo Com relaccedilatildeo ao tempo da narrativa
147
portanto no escudo figura-se o futuro de Roma pois ele mostra a Eneias
acontecimentos que ainda natildeo aconteceram
O escudo de Eneias ganha especial descriccedilatildeo na narrativa Isso se deve agrave
peculiaridade que ele carrega o futuro de Roma Levando em conta a definiccedilatildeo do
dicionaacuterio de siacutembolos para o termo ldquoescudordquo encontramos
O escudo (broquel) eacute o siacutembolo da arma passiva defensiva protetora embora agraves vezes possa ser tambeacutem mortal Agrave sua proacutepria forccedila (como objeto de metal ou de couro) ele associa magicamente forccedilas figuradas Efetivamente o escudo eacute em muitos casos uma representaccedilatildeo do universo como se o guerreiro ao usaacute-lo opusesse o cosmo ao seu adversaacuterio e como se os golpes deste uacuteltimo atingissem muito aleacutem do combatente agrave sua frente e alcanccedilassem a proacutepria realidade representada nos ornatos do broquel O escudo de Aquiles eacute um singular exemplo disso Hefestos (Vulcano) cria nele uma decoraccedilatildeo muacuteltipla fruto de seus saacutebios pensamentos Ornamenta-o com figuras da terra do ceacuteu e do mar do sol infatigaacutevel e da lua cheia bem como de todos os outros astros que coroam o ceacuteu Tambeacutem satildeo figuradas duas cidades humanas ndash duas belas cidades Numa delas veem-se nuacutepcias festins Em torno da outra cidade acampam dois exeacutercitos cujos guerreiros rebrilham sob suas armaduras Os atacantes hesitam entre duas decisotildees a destruiccedilatildeo da cidade inteira ou a partilha de todas as riquezas que guarda dentro de seus muros a apraziacutevel cidade (HOMI 18 v 478 ndash 492 508 ndash 512) Nesse broquel Hefestos potildee ainda uma terra branda um campo feacutertil domiacutenios reais um vinhedo pesadamente carregado de uvas um rebanho de vacas de chifres altos uma pastagem de cabras uma praccedila de danccedila e por fim a forccedila pujante do rio Oceano a formar a beirada do soacutelido escudo Todas as razotildees de viver todas as belezas do universo todos os siacutembolos da forccedila da riqueza e da alegria estatildeo mobilizados e concentrados nesse broquel O escudo era grande o bastante para proteger o combatente de cima a baixo e eventualmente servir de padiola para carregar um morto ou um ferido (CHEVALIER GHEERBRANT 1999 p 387)
Com isso entende-se que o ldquoescudordquo no pequeno excerto vai aleacutem de um
termo aleatoacuterio Trata-se de um artefato beacutelico de uma forccedila milenar jaacute que ele
carrega a origem de Roma a Nova Troia bem como toda a descendecircncia do heroacutei
Eneias Pensando-se no tempo da narrativa as imagens ali esculpidas separam o
tempo de Eneias e o tempo do imperador Otaacutevio Augusto revelando-nos um passado
e um futuro
Vale destacar que as figuras gravadas no escudo apenas sugerem a accedilatildeo dos
personagens que deve portanto ser reconstituiacuteda pelo leitor No que diz respeito agrave
presenccedila do mito e sua narrativa sabe-se que entre os antigos o mito era associado
148
a algo verdadeiro divino e sagrado Inicialmente o mito era um relato sobre os
primoacuterdios ou sobre as accedilotildees heroicas ou fatos que tiveram ou natildeo uma intervenccedilatildeo
divina por isso eacute uma mateacuteria predominante e caracteriacutestica do gecircnero eacutepico Com
isso a poesia eacutepica experimenta o contato com o tempo passado
Procurou-se destacar no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise as
figuras representativas do cenaacuterio eacutepico e portanto a construccedilatildeo do texto em um
estilo grandiloquente Partindo do princiacutepio de que o estilo eacute efeito de sentido e uma
construccedilatildeo do discurso verificamos que o efeito grandiloquente emerge de uma
recorrecircncia figurativa
Neste excerto da Eneida o efeito de individuaccedilatildeo pretendido foi o sublime e a
rede de figuras deixaram entrever uma recorrecircncia de representaccedilatildeo a de um cenaacuterio
marcado pela figura do heroacutei que eacute agraciado pelos deuses com um presente especial
um artefato beacutelico que registra a histoacuteria de sua descendecircncia
As figuras destacadas portanto com especial atenccedilatildeo ao escudo de Eneias
engendram um cenaacuterio marcado por feitos heroicos que eacute mediado pela accedilatildeo vigorosa
do heroacutei e seu povo
A poesia eacutepica virgiliana em um tom vigoroso e portanto com destaque para
temas e figuras grandiloquentes colocou em relevo agraves faccedilanhas da Itaacutelia e os triunfos
romanos
149
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao compreendermos o estilo como efeito de sentido produzido pelo discurso
reconhecemos a importacircncia de se analisar a recorrecircncia de procedimentos temaacuteticos
e figurativos na construccedilatildeo do sentido
Para descrever um estilo devemos compreender a rede de temas e figuras que
configuram a totalidade discursiva entendendo-as como repertoacuterio deduziacutevel do texto
mas tambeacutem como um modo especiacutefico de uso desse repertoacuterio
Na anaacutelise de um determinado estilo devemos procurar portanto os temas e
figuras que estatildeo circunscritos no discurso a fim de depreendermos um especiacutefico
efeito de individuaccedilatildeo engendrado no texto
Como jaacute vimos a Roda de Virgiacutelio especifica quais seriam as figuras desejadas
para o contexto da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica pensando cada grupo de figuras
a partir de diferentes contextos seja do estilo simples (singelo) do meacutedio e do
grandiloquente Ao mapear os trecircs estilos da Antiga Retoacuterica o esquema circular
tripartido que foi difundido a partir do seacuteculo XII atraveacutes dos estudos de Joatildeo de
Garlacircndia natildeo aponta para uma classificaccedilatildeo entre os gecircneros bucoacutelico didaacutetico e
eacutepico pensando-os do baixo ao elevado mas sim para uma ideia de continuidade
temaacutetica da carreira literaacuteria de Virgiacutelio
Se uma roda como se sabe gira em torno de um eixo central podemos pensar
em Virgiacutelio como o eixo que mobiliza movimenta trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo As
Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida movimentam-se em torno do poeta que criou
diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo e personagens o pastor o agricultor e o heroacutei A partir
deles desenham-se as accedilotildees e a espacialidade para o pastor o campo a sombra
de uma frondosa faia para o agricultor o cultivo o campo lavrado as aacutervores
frutiacuteferas e para o heroacutei as batalhas e suas armas de guerra O cenaacuterio das Bucoacutelicas
traz um contorno humilde pois as figuras apresentadas satildeo de um universo temaacutetico
singelo ligado agrave natureza O cenaacuterio das Geoacutergicas traz um contorno diferenciado
pois as figuras abordam o cultivo das plantas e a criaccedilatildeo de animais ou seja trata-se
de um universo temaacutetico moderado em que satildeo apresentados alguns ensinamentos
relacionados agrave agricultura No cenaacuterio da Eneida o contorno eacute o sublime
grandiloquente pois o universo temaacutetico eacute outro o das guerras e batalhas em que
satildeo descritos os feitos dos heroacuteis
150
Ao analisar os trecircs tipos de estilo descritos na Roda de Virgiacutelio partimos do
princiacutepio de que todo estilo eacute um efeito de sentido e portanto uma construccedilatildeo do
discurso Acreditamos que esse efeito eacute determinado por recorrecircncias de
procedimentos na construccedilatildeo do discurso Quando falamos em recorrecircncia
estabelecemos como objeto de anaacutelise a isotopia figurativa presente nos textos que
eacute capaz de construir um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo
Haacute portanto nas Bucoacutelicas nas Geoacutergicas e na Eneida uma direcionalidade
previamente estabelecida uma vez que o cenaacuterio campesino do pastor na ldquoBucoacutelica
Vrdquo constroacutei-se a partir de Mopso e Menalcas personagens bucoacutelicos que cantam
sobre a morte e apoteose de Daacutefnis pastor por excelecircncia e lendaacuterio inventor do
gecircnero bucoacutelico O ambiente de atuaccedilatildeo dos personagens eacute a gruta e o campo
Percebe-se na leitura do poema uma recorrecircncia de figuras que nos remetem a uma
temaacutetica singela sobre o viver ruacutestico o oacutecio e o prazer do canto levando-nos a um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo a do estilo simples
Enquanto isso no Canto IV (hex 1-115) das Geoacutergicas com intencionalidade
instrutiva e portanto em um estilo meacutedio revela-se qual eacute o ambiente mais adequado
para o cultivo das abelhas Assim o campo os rios e as folhagens hospitaleiras
participam da construccedilatildeo deste cenaacuterio em que tambeacutem figuram andorinhas
melharucos e outras aves predadoras que segundo a voz didaacutetica que perpassa a
obra satildeo um risco para as abelhas Apresentam-se tambeacutem os materiais adequados
para a produccedilatildeo das caixas que abrigam as abelhas a corticcedila e o vime Tem-se ainda
a menccedilatildeo a Aristeu um pastor miacutetico mas que sabe teacutecnicas de apicultura Neste
excerto das Geoacutergicas eacute apresentada portanto uma narraccedilatildeo em que a voz poeacutetica
descreve qual o cenaacuterio mais adequado para a criaccedilatildeo de abelhas As figuras
presentes no fragmento revelam-nos o tema sobre os cuidados a serem tomados na
apicultura
Jaacute no Canto VIII (hex 612-731) da Eneida o estilo eacute o grandiloquente uma vez
que somos conduzidos a um cenaacuterio em que figuram o heroacutei com suas armas de
guerra Ao filho Eneias a deusa Vecircnus entrega o capacete as espadas a riacutegida
couraccedila as armaduras da perna a lanccedila e o inenarraacutevel escudo As figuras remetem-
nos ao tema das batalhas e posteriormente aos triunfos dos romanos
151
Se retomarmos as figuras presentes na Roda podemos entender que cada
estilo cria um modo individualizador de dizer gerando uma expectativa de
personagens accedilatildeo e ambientaccedilatildeo Observa-se uma recorrecircncia figurativa que resulta
em especiacuteficos efeitos de sentido Confirma-se assim que os diferentes papeacuteis
temaacuteticos presentes na constituiccedilatildeo de um estilo fundamentam a totalidade discursiva
As personagens e seus respectivos cenaacuterios de atuaccedilatildeo estatildeo pressupostos em cada
efeito de individuaccedilatildeo De cada estilo depreende-se dessa forma uma expectativa
do dizer
Pensando nos excertos das obras virgilianas aqui estudados para o humilis
stylus encontramos como personagens os pastores Mopso e Menalcas dentre os
animais representativos os cabritos aleacutem da flauta e o cajado como objetos coerentes
ao universo dos pastores Tambeacutem destacamos o campo a gruta e os olmeiros que
figuram como a espacialidade desejada para o cenaacuterio bucoacutelico descrito
Na Roda de Virgiacutelio as personagens mencionadas satildeo Tityrus e Meliboeus
figuras recorrentes nos idiacutelios de Teoacutecrito e que depois tambeacutem foram retomadas por
Virgiacutelio As outras figuras mencionadas as ovelhas o cajado o campo e a faia
tambeacutem satildeo coerentes ao universo bucoacutelico jaacute que contribuem para a previsibilidade
do cenaacuterio no contexto do humilis stylus
Para o mediocris stylus podemos destacar como personagem o pastor Aristeu
que sabe teacutecnicas de apicultura A menccedilatildeo a este personagem eacute feita nos hexacircmetros
281-294 315-558 do Canto IV das Geoacutergicas Embora ele natildeo apareccedila no excerto
aqui estudado podemos destacar sua presenccedila como personagem representativo
justamente por ser parte do contexto virgiliano Dentre os animais representativos
podem ser destacadas as abelhas pois o excerto aqui estudado aborda alguns
conselhos de apicultura colocando as abelhas portanto em maior destaque Aleacutem
disso as colmeias podem figurar como objeto representativo em uma alusatildeo agraves
caixas de corticcedila e vime destinadas ao abrigo das abelhas e que aparecem no texto
como um dos conselhos a ser seguido na apicultura Para a descriccedilatildeo do cenaacuterio vale
destacar o campo o rio e as folhagens hospitaleiras ambiente adequado para as
abelhas se alojarem
Na Roda virgiliana os personagens mencionados para o mediocris stylus satildeo
Triptolemus e Coelius (agraves vezes pode aparecer Caelius como jaacute mencionamos
anteriormente) Em Joatildeo de Garlacircndia aparece ainda Triptolemus e Ceres Segundo
152
Fowler (2012) Coelius e Triptolemus satildeo nomes comuns para a eacutepoca nomes
destinados aos proprietaacuterios da terra por exemplo embora a figura de Triptolemus
apareccedila em um dos Hinos Homeacutericos agrave Demeacuteter deusa grega da agricultura daiacute a
menccedilatildeo a Ceres equivalente romano para Demeacuteter feita por Garlacircndia Satildeo nomes
portanto que estariam dentro do contexto das Geoacutergicas mesmo natildeo sendo
personagens virgilianos seriam nomes equivalentes Logo o boi o arado o campo e
os pomares todos mencionados na Roda de Virgiacutelio figuram como elementos
previsiacuteveis neste contexto
No grauis stylus podemos destacar como personagens Eneias e Turno Como
protagonista da Eneida o heroi Eneias figura como o filho protegido da deusa Vecircnus
que eacute agraciado com artefatos beacutelicos feitos pelo deus das forjas Vulcano Turno o
seu rival na batalha aparece para fazer contraponto ao heroi Dentre os animais
representativos destacamos o cavalo que embora natildeo apareccedila no excerto aqui
estudado eacute uma figura recorrente no contexto eacutepico virgiliano Como objetos
representativos tecircm-se as espadas as armaduras a lanccedila e o escudo A accedilatildeo das
personagens remete agrave defesa das muralhas da cidade bem como agrave construccedilatildeo delas
e o louro figura como uma honraria destinada aos heroacuteis
Na Roda os personagens citados satildeo Hector e Ajax personagens recorrentes
na epopeia homeacuterica Em Homero um dos modelos utilizados por Virgiacutelio o estilo
grandiloquente portanto tambeacutem contribui para a compreensatildeo das personagens
sua atuaccedilatildeo e a espacialidade descrita
Queremos destacar assim que para cada estilo encontramos uma
homogeneizaccedilatildeo das figuras que corroboram para uma direcionalidade do discurso e
para a criaccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos
Para Norma Discini (2009 p 57) ldquoo estilo apresenta um ponto de vista sobre o
mundordquo Pensando-se nas obras de Virgiacutelio cada estilo simples meacutedio e
grandiloquente aponta para a recorrecircncia de um modo de dizer remetendo-nos a
diferentes discursos com diferentes pontos de vista
Segundo Discini (2009 p 59)
descrever um estilo eacute reconstruiacute-lo Para tanto reconstruiacutemos o ator da enunciaccedilatildeo esse sujeito cuja figura emerge como corpo como caraacuteter de uma totalidade enunciada Por isso o estilo eacute um efeito de sentido uma construccedilatildeo do discurso O efeito de estilo pressupotildee concretizada nas figuras da espacialidade temporalidade e actorialidade uma sistematizaccedilatildeo Trata-se de uma homogeneizaccedilatildeo
153
do sentido que confirma a coerecircncia global do estilo e confirma tambeacutem um equiliacutebrio necessaacuterio agrave economia geral da construccedilatildeo do sentido
Logo observa-se que esta homogeneizaccedilatildeo do sentido se apoia nas isotopias
figurativas sejam elas espaciais pensando-se na descriccedilatildeo do espaccedilo de atuaccedilatildeo
ou actoriais pensando-se nas personagens Em Virgiacutelio as personagens descritas
revelam trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o heroacutei) e a partir delas constroacutei-se
um modo de ser no texto uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa que coloca em
destaque uma identidade do discurso os especiacuteficos efeitos de individuaccedilatildeo os
estilos
Pensando-se na doutrina dos genera dicendi ou seja dos trecircs tipos de estilo
definidos pelos gramaacuteticos antigos podemos entendecirc-los como instrumentos para a
construccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos Cada estilo daacute uma direcionalidade
para o sentido de cada discurso Haacute nas trecircs obras virgilianas diferentes
personagens que marcam assim diferentes tipos sociais com diferentes ambientes e
accedilotildees
Para cada estilo destaca-se um personagem que a partir de seu papel temaacutetico
e figurativo aspectualiza-se no texto jaacute que a sua atuaccedilatildeo esquematiza um cenaacuterio
coerente
Portanto entendemos que os estilos simples meacutedio e grandiloquente que
perpassam as trecircs obras remetem-nos a uma mudanccedila de atuaccedilatildeo levando-nos a
especiacuteficas esquematizaccedilotildees figurativas seja do cenaacuterio das personagens ou das
accedilotildees circunscritas a cada estilo
Segundo Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 31)
Ao fazer girar ainda que muito de leve ldquoa roda de Virgiacuteliordquo ndash essa espeacutecie de hierarquia de estilos que os comentaristas da baixa latinidade identificaram nas obras do mantuano tomando respectivamente as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida como paradigmas dos trecircs tipos baacutesicos de estilo reconhecidos pelos antigos quais sejam o ldquosimplesrdquo (humilis stylus) o ldquotemperadordquo (mediocris stylus) e o ldquosublimerdquo (grauis stylus) ndash percebe-se que a expressatildeo num grande autor se sujeita por completo ao domiacutenio dos recursos da linguagem []
Procurou-se destacar com isso o modo como as figuras e temas se organizam
nas trecircs obras virgilianas Para tanto valemo-nos dos diferentes estilos e a partir
154
deles articulamos os personagens e seu ambiente de atuaccedilatildeo Procurou-se entender
como cada estilo determina a figuratividade presente nos textos agindo como um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo
A poesia atinge um alto grau de encantamento quando a palavra poeacutetica
alcanccedila um aacutepice de realizaccedilatildeo imageacutetica A poesia vale-se da linguagem
experimentando-a e revificando-a
Assim como proposta deste trabalho procurou-se descrever e compreender a
construccedilatildeo expressiva da linguagem artiacutestica Para isso buscou-se entender que a
palavra poeacutetica enquanto imagem soacute alcanccedila sua funccedilatildeo puramente representativa
e esteacutetica quando percebida como uma forma particular de construccedilatildeo Coube-nos a
partir destas consideraccedilotildees ler as obras de Virgiacutelio com a finalidade de reconhecer a
eficaacutecia do texto poeacutetico e a sua vocaccedilatildeo imageacutetica
Procurou-se investigar em excertos representativos das trecircs obras virgilianas
alguns dos recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico dos
textos Aleacutem disso na anaacutelise das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida debruccedilamo-
nos sobre os trecircs tipos de estilo reconhecidos pelos gramaacuteticos antigos a fim de
compreendecirc-los a partir da Poeacutetica e da Semioacutetica Literaacuteria
Verificou-se que a triacuteade das obras virgilianas passou a ser representativa dos
trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica Posteriormente Joatildeo de Garlacircndia
filologista do seacuteculo XIII mapeou as trecircs obras na chamada Roda de Virgiacutelio
classificaccedilatildeo medieval que seguiu assim a doutrina dos gramaacuteticos antigos
Nosso trabalho portanto com vistas agrave compreensatildeo dos estilos presentes nas
obras virgilianas procurou reconhecer nos poemas o modo de atuaccedilatildeo de cada estilo
pensando-os como efeitos especiacuteficos de individuaccedilatildeo depreensiacuteveis por diferentes
recorrecircncias figurativas
Apresentamos ainda as traduccedilotildees dos excertos das trecircs obras com as
necessaacuterias referecircncias culturais Para estas notas foram utilizados dicionaacuterios de
mitologia e os comentaristas tradicionais acerca da obra do poeta mantuano
Foi feito um levantamento da origem da Roda de Virgiacutelio e do pensamento
estruturado pelos gramaacuteticos antigos acerca dos trecircs tipos de estilo presentes nas trecircs
obras Natildeo nos prendemos agraves classificaccedilotildees de maneira exaustiva jaacute que nosso
objetivo natildeo foi catalogar mas sim entender o modo como esses estilos atuam nos
textos Pensando nisso procuramos por meio da moderna anaacutelise metodoloacutegica dar
155
ecircnfase ao entendimento do estilo como efeito de sentido partindo da compreensatildeo
da isotopia figurativa presente em cada obra
Quanto ao capiacutetulo destinado aos comentaacuterios sobre a obra de Virgiacutelio
destacamos aqueles que julgamos pertinentes para a compreensatildeo acerca da
estrutura dos textos Dedicamos tambeacutem um capiacutetulo para as definiccedilotildees de tema
figura figuratividade e os processos de estruturaccedilatildeo do texto com exemplos de
excertos da obra virgiliana
Atualizando a questatildeo dos trecircs estilos na obra de Virgiacutelio o trabalho pretendeu
contribuir assim para as reflexotildees acerca da figuratividade na poesia bucoacutelica
didaacutetica e eacutepica
156
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Fernandes Araraquara FCL-UNESP Laboratoacuterio Editorial Satildeo Paulo Cultura Acadecircmica
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TOOHEY Peter Epic Lessons An Introduction to ancient Didactic Poetry London and New
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TORRINHA Francisco Dicionaacuterio latino-portuguecircs 2 ed Porto Porto 1998
TREVISAM Matheus Poesia didaacutetica Virgiacutelio Ouviacutedio e Lucreacutecio Campinas SP Ed
Unicamp 2014
VIEIRA Brunno Vinicius Gonccedilalves Farsaacutelia de Lucano (I a V) Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e
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VIRGILE Bucoliques Texte eacutetabli et traduit par Henri Goelzer Paris Les Belles Lettres
1956
VIRGILE Bucoliques Texte eacutetabli et traduit par E de Saint-Denis Paris Les Belles Lettres
1967
VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e notas de Peacutericles Eugecircnio da Silva Ramos Introd Nogueira
Coutinho Satildeo Paulo Melhoramentos Ed Universidade de Brasiacutelia 1982
VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Trad e comentaacuterio Raimundo Carvalho em apecircndice traduccedilatildeo de
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VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Traduccedilatildeo de Maria Isabel Rebelo Gonccedilalves Lisboa Verbo 1996
VIRGIacuteLIO Bucoacutelicas Manuel Odorico Mendes traduccedilatildeo ediccedilatildeo anotada e comentada pelo
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VIRGIacuteLIO As Geoacutergicas Trad Antonio Feliciano de Castilho com anotaccedilotildees de Othoniel
Motta Satildeo Paulo Heros Graphica Editora 1930
VIRGILE Eacuteneacuteide Trad Andreacute Bellessort 9ordf ed e 6ordf ed Paris Les Belles Lettres
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VIRGIacuteLIO Eneida Trad Tassilo Orpheu Spalding Satildeo Paulo Cultrix 1990-92
VIRGIacuteLIO GeoacutergicasEneida Trad Antonio F de Carvalho Manuel O Mendes
Satildeo Paulo W M Jackson Inc 1948
VIRGIacuteLIO La Eneida Traduccioacuten D Eugenio de Ochoa Buenos Aires Jose
Ballesta Editor 1946
VIRGIacuteLIO Eneida Trad e notas Odorico Mendes Apresentaccedilatildeo Antonio Medina
Estabelecimento do texto notas e glossaacuterio Luiz Alberto Machado Cabral Cotia SP Ateliecirc
Editorial 2005
VOLK Katharina et al Vergilrsquos Eclogues New York Oxford University Press 2008
VOLK Katharina et al Vergilrsquos Georgics New York Oxford University Press 2008
WILSON-OKAMURA David Scott Virgil in the Renaissance Cambridge University Press
Cambridge New-York 2010
Figuras
Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III In PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de
histoacuteria da cultura claacutessica cultura romana (vol II) 3 ed Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste
Gulbenkian 2002 p247
Figura 2 ndash A Roda Virgiliana da Poetria de Garlacircndia In CORTE Franceso della (org)
Enciclopedia Virgiliana vol IV 1996 p592
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Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia In GARLAND John of The Parisiana Poetria
Edited with introduction translation and notes by Traugott Lawler New Haven and London
Yale University Press 1974 p 40-41
Figura 4 ndash A Roda de Virgiacutelio In GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo
Paulo Mestre Jou 1970 p 26
Figura 5 ndash Mopso e Menalcas In CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana vol
IV 1996 p 465
Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus In CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa
Mara Lando Satildeo Paulo Aacutetica1998 p 22
AGRADECIMENTOS
ldquoUm galo sozinho natildeo tece uma manhatilderdquo
Ao meu orientador Prof Dr Maacutercio Thamos quem me ensinou que Virgiacutelio noacutes natildeo
o descobrimos noacutes o merecemos agradeccedilo por ter acompanhado minha pesquisa
desde a Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica pela amizade e minha formaccedilatildeo acadecircmica poeacutetica e
humana
Agrave Profa Dra Ude Baldan e ao Prof Dr Brunno Vieira agradeccedilo pela leitura generosa
do meu trabalho e pelas valiosas contribuiccedilotildees em minha banca de qualificaccedilatildeo bem
como pela minha formaccedilatildeo
Ao meu esposo Luis Carlos Malimpensa que me incentivou a cada momento
agradeccedilo pelo amor companheirismo e por ter me encorajado a natildeo desistir do
caminho
Agrave Dhara minha filha que nasceu em 2018 trazendo vida nova e sadia agradeccedilo pelo
despertar e pela poesia do maternar
Ao Theo meu novo bebecirc que estaacute a caminho e completaraacute a poesia da nossa famiacutelia
Agrave madrinha Edna Batistela que cuidou da minha famiacutelia enquanto eu natildeo podia todo
o meu carinho amor e o meu afeto constante
Aos meus pais Joseacute de Arauacutejo Ferreira e Antonieta Morato do Amaral Ferreira
agradeccedilo pela vida amor e sincero apoio e tambeacutem ao meu irmatildeo Carlos Eduardo
pelo apoio e amizade
Agrave Camila Sabino que me auxiliou na leitura de artigos em inglecircs agradeccedilo pela
amizade e carinho
Agrave Unesp pelo compromisso e por ter me dado a chance e todas as ferramentas que
me permitiram chegar hoje ao final desse ciclo de maneira satisfatoacuteria
E por fim mas natildeo menos importante aos Orixaacutes que clareiam nossos caminhos
A todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formaccedilatildeo o meu muito
obrigado
O primado da forma o que significa eacute que por exemplo a poesia de Virgiacutelio eacute a porccedilatildeo da substacircncia Roma que a forma de Virgiacutelio o seu hexacircmetro recorta e
exprime Sem o hexacircmetro de Virgiacutelio Roma eacute histoacuteria civilizaccedilatildeo liacutengua latina metrificaccedilatildeo ateacute mas natildeo poema pelo menos natildeo como o lemos nas Bucoacutelicas e
na Eneida Alceu Dias Lima (1992 p 14)
RESUMO
O presente trabalho procura investigar a manifestaccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs
obras de Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Pretende-se por meio da
Semioacutetica Literaacuteria analisar os excertos das obras do ponto de vista da expressatildeo
com destaque para a vocaccedilatildeo imageacutetica dos textos a sua figuratividade Aleacutem disso
o trabalho debruccedila-se sobre o conceito de estilo ao investigar na chamada Roda de
Virgiacutelio os trecircs tipos de estilo descritos pela Retoacuterica Antiga a saber o estilo singelo
o estilo meacutedio e o estilo grandiloquente Trata-se de um esquema circular tripartido do
seacuteculo XIII que apresenta as Bucoacutelicas no estilo singelo as Geoacutergicas no meacutedio e a
Eneida no grandiloquente Com isso o esquema da Roda compreende para cada
texto virgiliano um cenaacuterio representativo diferente com diferentes caracteres O
presente estudo procura assim ampliar a compreensatildeo acerca dos trecircs estilos ao
entendecirc-los como efeitos de sentido engendrados nos textos ou seja como
especiacuteficos efeitos sugestionados nas obras a partir da predominacircncia de um
tratamento temaacutetico seguido de sua isotopia figurativa Apresentamos ainda uma
traduccedilatildeo dos excertos virgilianos aqui destacados para anaacutelise A pesquisa eacute um
estudo sobre a estrutura poeacutetica das obras virgilianas com destaque portanto para
a presenccedila da figuratividade na poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica
Palavras-chave Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida Figuratividade Semioacutetica
ABSTRACT
The present study seeks to investigate the figurative manifestation in excerpts of
Virgilrsquos three works the Eclogues the Georgics and the Aeneid It is intended through
Literary Semiotics to analyze the excerpts of the works from the point of view of
expression with emphasis on the imagery vocation of the texts their figurativity In
addition the work focuses on the concept of style by investigating in the so-called
Virgils Wheel the three types of style described by Ancient Rhetoric namely the
simple style the medium style and the grandiloquent style It is a circular tripartite
scheme from the 13th century that presents the Eclogues in simple style the Georgics
in the middle and the Aeneid in the grandiloquent Thus the scheme of the Wheel
comprises a different representative scenario for each Virgilian text with different
characters The present study thus seeks to increase the understanding of the three
styles to understand them as meaning effects engendered in the texts that is as
specific effects suggested in the works from the predominance of a thematic treatment
followed by their figurative isotopy We also present a translation of the Virgilian
excerpts highlighted here for analysis The research is a study on the poetic structure
of Virgilian works with emphasis therefore on the presence of figurativity in bucolic
didactic and epic poetry
Keywords Eclogues Georgics Aeneid Figurativity Semiotics
Lista de Figuras e Tabelas
Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo IIIp 10
Figura 2 ndash A Roda Virgiliana p 11
Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia p27
Figura 4 ndash A Roda de Virgiacuteliop30
Figura 5 ndash Mopso e Menalcasp 75
Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnusp 91
Tabela 1 ndash The spokes of Virgilrsquos Wheelp 44
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 13
1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica 22
2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente 33
3 A criacutetica virgiliana46
31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da
Eneida46
32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho 53
4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto57
41 Textos temaacuteticos e figurativos57
42 A figuratividade e a leitura do poeacutetico 69
5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises
51 BUCOacuteLICA V ndash Mopso e Menalcas os pastores cantadores75
52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo81
53 Figuratividade na Bucoacutelica V ndash anaacutelise do texto86
54 GEOacuteRGICAS Canto IV (1-115) ndash descriccedilatildeo do lugar adequado para as
abelhas 99
55 Geoacutergicas Canto IV (1-115) Traduccedilatildeo e notas104
56 Figuratividade no Canto IV (1-115) ndash anaacutelise do texto 108
57 ENEIDA Canto VIII (612-731) ndash Eneias e as armas de guerra 121
58 Traduccedilatildeo e notas do Canto VIII (612-731)125
59 Figuratividade no Canto VIII (612-731) ndash anaacutelise do texto 131
6 Consideraccedilotildees Finais 149
Bibliografia 156
Figura 1 ndash Mosaico Romano do seacuteculo III
Fonte PEREIRA Maria H da R 2002 p 247
Figura 2 - A Roda Virgiliana
Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p592
Um claacutessico eacute um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha
para dizer (2007 p11)
Os claacutessicos satildeo livros que quanto mais pensamos conhecer por
ouvir dizer quando satildeo lidos de fato mais se revelam novos inesperados
ineacuteditos (2007 p 12)
[] os claacutessicos natildeo satildeo lidos por dever ou por respeito mas soacute por
amor (2007 p 12-13)
Italo Calvino (2007)
13
Introduccedilatildeo
Publius Vergilius Maro nasceu no ano 70 aC em Andes aldeia proacutexima a
Macircntua sob o primeiro consulado de Liciacutenio Crasso e de Pompeu Magno O poeta
deixou-nos trecircs grandes obras as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Seus textos
estatildeo entre os manuscritos (seacutecs II-III dC) mais antigos que possuiacutemos em papiro na
corrente de difusatildeo da Cultura Claacutessica
As fontes baacutesicas para a biografia do poeta satildeo os comentaacuterios de Valeacuterio
Probo (seacutec I dC) Donato (seacutec IV dC) Seacutervio (seacutec IV dC) Juacutenio Filargiacuterio (seacutec V
dC) e a Vita em verso do gramaacutetico Focas mais tardia e incompleta (seacutec IX) No
livro De poetis Suetocircnio (seacutec I dC) menciona a biografia de Virgiacutelio (Vita Vergilii) que
foi conservada graccedilas a Donato que a reproduziu em seu Comentarium ad Vergilium
O poeta morreu em 19 aC em Brindisi e seu corpo foi transportado para
Naacutepoles sendo sepultado em uma gruta proacutexima agrave estrada de Puteacuteolos1 Todos os
bioacutegrafos citam um diacutestico que o poeta teria supostamente redigido a si proacuteprio
Mantua me genuit Calabri rapuere tenet nunc Parthenope cecini pascua rura duces2
Macircntua me gerou na Calaacutebria arrebataram-me agora me tem o Partecircnope3 cantei as pastagens os campos e os heroacuteis
Segundo Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 30) a veneraccedilatildeo ao poeta comeccedilou
logo apoacutes sua morte Siacutelio Itaacutelico (26-101 dC) por exemplo em seu poema eacutepico
acerca da segunda guerra puacutenica (Punica) imitou de Virgiacutelio o estilo os episoacutedios o
maravilhoso mitoloacutegico e ateacute os recursos do gecircnero Aleacutem disso Eacutelio Lampriacutedio (seacutec
IV dC) um dos escritores da Histoacuteria Augusta conta que Alexandre Severo4 tinha no
palaacutecio a imagem de Virgiacutelio a quem chamava de ldquoPlatatildeo dos poetasrdquo na mesma
1 Atualmente Pozzuoli proviacutencia de Napoacuteles Era conhecida como Puteacuteolos no Periacuteodo Romano 2O termo ldquopascuardquo pastagens refere-se agraves Bucoacutelicas ldquorurardquo campos cultivadosrdquo agraves Geoacutergicas ldquoducesrdquo chefes ou heroacuteis agrave Eneida 3 Partecircnope eacute o nome poeacutetico da cidade de Naacutepoles Na mitologia conta-se que Partecircnope lanccedilou-se
ao mar com suas irmatildes sereias e as ondas atiraram seu corpo para as margens de Naacutepoles onde lhe foi erigido um monumento (cf GRIMAL 2014 p 357) Nos versos finais das Geoacutergicas Canto IV (hex 563-564) Virgiacutelio assim afirma Illo Vergilium me tempore dulcis alebatParthenope studiis florentem ignobilis oti ldquoNaquele tempo a doce Partecircnope nutria a mim Virgiacutelio que nos esforccedilos de um obscuro oacutecio floresciardquo 4 Alexandre Severo (222-235 dC) uacuteltimo imperador da Dinastiacutea Severa em Roma
14
galeria de Aquiles Ciacutecero e outros nomes ilustres Vale ressaltar tambeacutem que as
escavaccedilotildees arqueoloacutegicas de Pompeia forneceram ateacute hoje cerca de sessenta
grafitos virgilianos e uma quinzena deles eacute de citaccedilotildees ou reminiscecircncias das
Bucoacutelicas Segundo Mendes (1997 p 43) as Bucoacutelicas faziam parte da vida dos
habitantes de Pompeia pois os grafitos aparecem nos peristilos poacuterticos e muros
Enrico Rostagni (1931 p 5) assim exprime a benignidade do tempo para com a obra
de Virgiacutelio
AL MASSIMO POETA della Romanitagrave il tempo egrave stato in certo qual modo benigno perchegrave del texto delle sue Opere permise che ci giungessero esemplari insigni per lrsquoantichitagrave veneranda della scritura la quale nella sua maestagrave riflette per cosigrave dire la maestagrave del Poeta e della Gente per cui egli aveva cantato
A vitalidade das obras de Virgiacutelio eacute patente pelo modo como os seus principais
temas e enredos inspiraram e ainda inspiram poetas e demais artistas Mendes (1997
p 42) questiona-se acerca do valor dessa obra de arte para assim perdurar na
memoacuteria e nas matildeos de geraccedilotildees Ele entatildeo afirma que ldquouma obra literaacuteria impotildee-se
e permanece por sua concepccedilatildeo e novidade de conteuacutedo aliadas ao primor de
execuccedilatildeordquo
Como bem aponta-nos Joseph Brodsky (1994 p 97) poeta e criacutetico russo ldquoA
biografia dos poetas estaacute em suas vogais e sibilantes em sua meacutetrica suas rimas e
metaacuteforasrdquo e assim acreditamos que Virgiacutelio revive sempre em cada leitor aacutevido e
maravilhado pelas paacuteginas de indefiniacutevel Beleza As Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a
Eneida renascem constantemente naquele que mergulha em suas linhas e entrelinhas
(SANTOS 2007 p73)
Das obras virgilianas sabemos que a coleccedilatildeo de dez poemas pastoris que a
tradiccedilatildeo de estudos claacutessicos conhece sob o tiacutetulo de Bucoacutelicas foi composta
aproximadamente entre 42 e 37 aC Nesta obra ao buscar motivos nos Idiacutelios de
Teoacutecrito (310 ndash 250 aC) poeta siracusano de destaque no Periacuteodo Heleniacutestico
Virgiacutelio cria cenaacuterios e personagens campestres valendo-se de uma linguagem
repleta de elementos figurativos
As Geoacutergicas foram escritas entre 37 e 29 aC logo apoacutes as Bucoacutelicas A obra
configura-se de acordo com a tradiccedilatildeo claacutessica como um poema didaacutetico e eacute
composta por quatro livros (ou cantos) A obra traz como tema a terra e os encantos
da vida rural apresentando uma seacuterie de ensinamentos relacionados aos trabalhos
15
no campo No primeiro livro apresenta-se a lavoura no segundo a arboricultura
sobretudo a viticultura no terceiro a pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no
quarto a apicultura
Escrita entre 29 e 19 aC a Eneida eacute a eacutepica virgiliana Com doze livros (ou
cantos) a obra eacute considerada pela tradiccedilatildeo como um poema histoacuterico e mitoloacutegico
Ao colocar em cena os feitos de Eneias o filho protegido da deusa Vecircnus e o
responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino Virgiacutelio
trama um conjunto de situaccedilotildees e narrativas que propiciaram a fundaccedilatildeo de Roma
Pensando-se nos versos de Virgiacutelio eacute oportuno afirmar que sua poesia teve a
virtude de perpetuar-se e de registrar um povo e um momento da fala desse povo Ao
reconhecer o poeacutetico presente em suas obras compreendemos um fato de linguagem
com valor humano e portanto universal
Virgiacutelio como se sabe valeu-se do hexacircmetro datiacutelico como molde em suas
composiccedilotildees Este tipo de verso jaacute havia sido utilizado por Homero na produccedilatildeo da
Iliacuteada e da Odisseia O emprego do hexacircmetro nos poemas eacutepicos estendeu-se
tambeacutem agrave poesia didaacutetica com Hesiacuteodo e tambeacutem agrave poesia pastoril com Teoacutecrito
Adaptado agrave Literatura Latina o hexacircmetro datiacutelico foi escolhido por Virgiacutelio no texto
das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida
Sendo o hexacircmetro datiacutelico o uacutenico metro usado por Virgiacutelio em suas
composiccedilotildees cabe-nos mencionar suas especificaccedilotildees Natildeo se trata de um verso
com um nuacutemero fixo de siacutelabas pois em certos pontos uma vogal longa pode
substituir duas breves Na formaccedilatildeo de versos latinos natildeo satildeo as siacutelabas que satildeo
submetidas agrave regularidade meacutetrica mas sim o tempo nelas incorporado Logo intui-
se que o ritmo eacute determinado por um arranjo preciso entre siacutelabas de diferente
duraccedilatildeo Os vinte e quatro tempos de um hexacircmetro estatildeo reagrupados em seis
subunidades de quatro tempos Cada uma delas chamadas peacutes estatildeo enfileiradas
uma apoacutes a outra do primeiro ao sexto peacute na linha do hexacircmetro Trecircs satildeo os tipos
de peacutes meacutetricos o daacutetilo o espondeu e o troqueu
O daacutetilo eacute formado de duas partes a primeira representa os dois primeiros
tempos do peacute realizados sobre uma uacutenica siacutelaba que eacute marcada pela vogal longa A
segunda parte traz os dois uacuteltimos tempos do peacute realizados cada um sobre uma
siacutelaba sendo cada siacutelaba marcada por uma vogal breve O daacutetilo eacute representado por
( ˉ ˘ ˘ )
16
O espondeu tambeacutem eacute formado por duas partes Cada parte diferentemente
do daacutetilo eacute formada por duas siacutelabas longas O espondeu eacute graficamente
representado por ( ˉ ˉ )
A segunda parte de um daacutetilo marcada por duas vogais breves ( ˘ ˘) pode ser
substituiacuteda no verso por uma vogal longa pois uma vogal longa equivale a duas
breves Mas na praacutetica soacute os primeiros quatro peacutes do hexacircmetro podem ser
substituiacutedos por equivalentes espondeus pois o quinto peacute eacute normalmente um daacutetilo
que garante a base para que o verso seja chamado datiacutelico Quanto ao uacuteltimo ou seja
o sexto peacute chamado troqueu eacute constituiacutedo de duas siacutelabas A primeira eacute longa e a
segunda pode ser longa ou breve O uacuteltimo peacute eacute representado por ( ˉ ˘_)
Segundo Joatildeo Batista Toledo Prado (2012 p 109)
Para a consecuccedilatildeo do ritmo verbal no verso por exemplo num hexacircmetro datiacutelico (um verso de seis peacutes meacutetricos compostos ao menos idealmente por seis daacutetilos ou seja por sequecircncias trissilaacutebicas em que a primeira siacutelaba eacute longa e as duas outras que se lhe seguem satildeo breves) um daacutetilo poderaacute ser substituiacutedo em certas posiccedilotildees por um espondeu (peacute dissilaacutebico com ambas as siacutelabas longas)
Aleacutem disso a siacutelaba final que atua como pontuaccedilatildeo do verso eacute
fonologicamente neutralizada de tal forma que como se sabe o uacuteltimo peacute de um
hexacircmetro seraacute sempre um dissiacutelabo espondaico (quatro tempos) ou trocaico (trecircs
tempos) (PRADO 1997 p 171-172)
Com isso resulta o esquema geral do hexacircmetro
ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘ ˘ ˉ ˘
1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm
ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˉ ˘ ˘ ˉ ˉ
1ordm 2ordm 3ordm 4ordm 5ordm 6ordm
Acrescentaram-se na Antiguidade agraves trecircs obras canocircnicas de Virgiacutelio alguns
textos que hoje satildeo em sua maioria tidos como apoacutecrifos e considerados de autoria
duvidosa ou controversa pelos estudiosos Foi feita uma compilaccedilatildeo desses textos no
17
ano de 1572 com o tiacutetulo de Appendix Vergiliana pelo humanista francecircs J J
Escaliacutegero (1540 ndash 1609) No seacuteculo XIX e iniacutecio do seacuteculo XX vaacuterios estudiosos tais
como Rand (1919) e Frank (1930) afirmavam que os textos presentes na Appendix
Vergiliana eram todos (ou quase todos) da autoria de Virgiacutelio e passaram a consideraacute-
los como parte de um processo poeacutetico que culminaria nas trecircs obras consagradas do
poeta Mas em contrapartida tambeacutem havia nessa mesma eacutepoca quem apresentasse
um ponto de vista que se aproxima mais do consenso atual sobre a questatildeo ou seja
o de negar a autoria virgiliana dos textos presentes na Appendix O que vale destacar
para aleacutem da autoria destes textos eacute que as obras presentes na Appendix Vergiliana
constituem um material vasto e ainda pouco explorado
O presente trabalho procura focar assim nas trecircs principais produccedilotildees de
Virgiacutelio as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Ao investigar a manifestaccedilatildeo figurativa
presente em excertos representativos das trecircs obras procuramos destacar alguns dos
recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico de cada texto Os
excertos escolhidos satildeo representativos na medida em que alicerccedilam as
caracteriacutesticas dominantes da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Ao observar quais
satildeo as caracteriacutesticas predominantes em cada excerto o trabalho debruccedila-se sobre
os trecircs tipos de estilos descritos pela antiga retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio
e o grandiloquente que foram difundidos atraveacutes da chamada Rota Vergilli Roda de
Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que apresenta os principais caracteres dos trecircs
cenaacuterios criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico e o eacutepico atrelando cada um deles
a um tipo de estilo Ao compreender cada estilo como um efeito de sentido
sugestionado por meio de uma predominacircncia figurativa e temaacutetica presente em cada
excerto passamos a entender os estilos singelo meacutedio e grandiloquente presentes
na Roda como especiacuteficas construccedilotildees figurativas Para este entendimento o
presente estudo apoia-se no arcabouccedilo teoacuterico da Semioacutetica Literaacuteria
Pensando portanto em estilo como um efeito de sentido depreensiacutevel a partir
de uma totalidade discursiva o trabalho propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo
que os tratados de retoacuterica distinguiam Procurar-se-aacute observar assim a tessitura
poeacutetica de excertos das trecircs obras de Virgiacutelio valendo-se da caracterizaccedilatildeo figurativa
e da expressividade de cada estilo Ao descrever os procedimentos retoacutericos por meio
de princiacutepios mais amplos do que aqueles entatildeo utilizados pelos tratadistas antigos
pretendemos ampliar a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica a leitura do texto
claacutessico latino
18
O trabalho busca investigar a construccedilatildeo figurativa em excertos das trecircs
principais produccedilotildees de Virgiacutelio e propotildee uma releitura dos trecircs tipos de estilo
definidos pelos gramaacuteticos antigos ao entender cada estilo como parte da construccedilatildeo
figurativa presente nas trecircs obras O esquema da Roda de Virgiacutelio serviraacute assim
como base para os exemplos de figuras e temas encontrados nas Bucoacutelicas nas
Geoacutergicas e na Eneida e para o entendimento da construccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico
didaacutetico e eacutepico
Vale ressaltar que uma figura natildeo tem significado em si mesma Seu sentido
nasce do encadeamento com outras figuras presentes no discurso Se em um texto
tudo eacute relaccedilatildeo o que daraacute sentido a essas figuras eacute um tema Por isso para encontrar
o sentido de um conjunto de figuras que estatildeo encadeadas no discurso deve-se
perceber o tema subjacente a elas As figuras presentes em um texto formam uma
rede uma trama e por isso para depreendermos o tema de um texto figurativo eacute
preciso apreender primeiro as redes coerentes formadas pelas figuras No caso das
Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida eacute imprescindiacutevel que reconheccedilamos nos
excertos selecionados para anaacutelise o encadeamento e a rede de figuras Aliaacutes o que
garante a depreensatildeo dos temas por traacutes da rede de figuras eacute exatamente a coerecircncia
existente entre elas ou seja a predominacircncia figurativa afinal eacute a partir da coerecircncia
existente entre as figuras que podemos compreender a relaccedilatildeo solidaacuteria que elas
mantecircm entre si
Logo ao adentrarmos na dimensatildeo enunciativa e figurativa de cada excerto
virgiliano investigaremos a figuratividade que perpassa cada discurso destacando
como os estilos singelo meacutedio e grandiloquente satildeo expressos figurativamente nos
textos Pretendemos dessa maneira descrever cada estilo como um especiacutefico efeito
de sentido fruto da rede figurativa arquitetada pelo texto Assim procuramos
descrever os procedimentos retoacutericos atraveacutes de princiacutepios mais amplos para explicar
o fenocircmeno figurativo evidenciado na Roda Logo ao utilizarmos aqui o termo ldquofigurardquo
referimo-nos aos substantivos adjetivos e verbos de accedilatildeo presentes no texto e que
revestem uma ideia abstrata um tema A Retoacuterica seraacute lida entatildeo a partir de um olhar
Semioacutetico Apresentaremos ainda uma traduccedilatildeo dos excertos selecionados para
leitura e anaacutelise com as necessaacuterias notas de referecircncia (geograacuteficas mitoloacutegicas e
histoacutericas)
Os principais excertos selecionados para traduccedilatildeo e anaacutelise satildeo a Bucoacutelica V
a primeira parte do Canto IV das Geoacutergicas (hex 1-115) e o Canto VIII (hex 612-731)
19
da Eneida Estes excertos foram escolhidos pensando-se em seus esquemas
figurativos Satildeo trechos que alicerccedilam as caracteriacutesticas dominantes evidenciadas na
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica e que corroboram assim para o entendimento dos
estilos singelo meacutedio e grandiloquente descritos na Roda de Virgiacutelio Ao afirmarmos
com isso em nossas anaacutelises e comentaacuterios que determinado excerto eacute singelo
meacutedio ou grandiloquente o que se quer dizer eacute que estes trechos apresentam
predominantemente e natildeo exclusivamente caracteriacutesticas que alicerccedilam um
determinado efeito de sentido O que se observou nestes excertos escolhidos para
traduccedilatildeo e anaacutelise eacute que os efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente que
nos remetem respectivamente agrave poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica podem ser
depreendidos por uma rede coerente de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria
entre si
Aleacutem destes excertos outros apareceratildeo ao longo do trabalho para
complementarem o entendimento acerca dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente
e o modo como eles satildeo arquitetados por uma rede figurativa uma caracteriacutestica
dominante que alicerccedila o cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Vale ressaltar ainda que
todos os excertos traduzidos das obras virgilianas satildeo de autoria nossa assim como
os demais trechos em latim dos tratadistas antigos
O presente estudo procura portanto a partir de uma moderna anaacutelise
metodoloacutegica produzir um discurso metalinguiacutestico capaz de lanccedilar luz sobre os
recursos da figuratividade evidenciados na Roda de Virgiacutelio Com isso
compreendemos os trecircs estilos definidos pelos tratadistas antigos como efeitos de
sentido arquitetados por uma predominacircncia de figuras presente nos discursos
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
No primeiro capiacutetulo ldquoA Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela
Antiga Retoacutericardquo destacaremos brevemente o pensamento dos principais gramaacuteticos
latinos acerca da classificaccedilatildeo das obras de Virgiacutelio e com isso colocaremos em
relevo os trecircs tipos de estilo por eles descritos o singelo o meacutedio e o grandiloquente
Neste capiacutetulo ainda mencionaremos a Parisiana Poetria de Joatildeo de Garlacircndia e a
Rota Vergilii a Roda de Virgiacutelio classificaccedilatildeo medieval que segue a doutrina dos
tratadistas antigos Procuraremos neste capiacutetulo esclarecer alguns pontos
importantes da doutrina dos genera dicendi os trecircs tipos de estilo descritos pelos
gramaacuteticos latinos e para isso faremos um levantamento dos pensamentos mais
relevantes para o tema Para esta etapa do trabalho utilizaremos como fonte os
20
gramaacuteticos latinos e outros estudiosos da aacuterea de estudos claacutessicos Dentre os
pensadores antigos destacamos Seacutervio Valeacuterio Probo Donato e Filargiacuterio
No segundo capiacutetulo ldquoUma leitura dos efeitos de sentido simples meacutedio e
grandiloquenterdquo procuramos analisar os trecircs estilos presentes da Roda de Virgiacutelio
como efeitos de sentido engendrados nos textos e que corroboram para o
entendimento dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por Virgiacutelio o bucoacutelico o didaacutetico
e o eacutepico Busca-se entender dessa forma que cada estilo supotildee uma unidade de
interpretaccedilatildeo depreensiacutevel da recorrecircncia temaacutetica e figurativa presente em cada
discurso Para esse entendimento foram destacados os pensamentos de Antoine
Compagnon (2014) Norma Discini (2009) e Wilson-Okamura (2010) entre outros
No terceiro capiacutetulo ldquoA criacutetica virgilianardquo mencionamos as reflexotildees de
Katharina Volk (2008) que mapeia os principais criacuteticos da obra de Virgiacutelio a partir da
deacutecada de 70 sublinhando duas vertentes de leitura para a obra do poeta a ideoloacutegica
e a literaacuteria Mencionamos alguns comentaacuterios de Elaine C Prado dos Santos (2007)
Ruy Mayer (1948) entre outros Nesta etapa destacamos ainda o pensamento e
estudo de Andrew Laird (2010) sobre a recepccedilatildeo de Virgiacutelio
No quarto capiacutetulo ldquoA Figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um
textordquo falaremos de conceitos semioacuteticos como lsquotemarsquo lsquofigurarsquo e lsquofiguratividadersquo e
procuraremos demonstrar na leitura e anaacutelise de alguns excertos dos poemas de
Virgiacutelio como os temas e figuras participam da formaccedilatildeo textual Para esta reflexatildeo
teremos como respaldo os estudos de Poeacutetica e Semioacutetica Literaacuteria Destacam-se
nesta etapa as reflexotildees de Greimas (1975) (2011) Jakobson (1978) (1989) Barros
(2005) Fiorin (1995) (2011) e Bertrand (2003)
No quinto capiacutetulo ldquoTraduccedilotildees notas e anaacutelisesrdquo contaremos com os excertos
selecionados das trecircs obras virgilianas traduzidos e analisados O trabalho de
traduccedilatildeo seraacute acompanhado das necessaacuterias referecircncias culturais (geograacuteficas
mitoloacutegicas e histoacutericas) Neste capiacutetulo seraacute observada a dimensatildeo figurativa de cada
obra e para isso seratildeo destacadas as principais figuras e os temas recorrentes agrave
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Nas anaacutelises procuraremos abordar como as figuras
se organizam e asseguram um revestimento figurativo dos principais temas bucoacutelicos
didaacuteticos e eacutepicos Aleacutem disso tambeacutem levaremos em conta os estilos singelo meacutedio
e grandiloquente compreendendo-os como efeitos de sentido a partir principalmente
de sua estrutura figurativa Os textos latinos escolhidos para leitura traduccedilatildeo e
anaacutelise seratildeo os das ediccedilotildees Les Belles Lettres em cotejo com as ediccedilotildees
21
apresentadas por John Conington em The Works of Virgil e com as ediccedilotildees alematildes
da De Gruyter comentadas por Gian Biagio Conte
O presente estudo procura dessa forma analisar as obras de Virgiacutelio do ponto
de vista da expressatildeo procurando ampliar a percepccedilatildeo da leitura da poesia claacutessica
ao colocar em relevo os recursos da figuratividade do texto A anaacutelise dos elementos
de Retoacuterica a partir da Semioacutetica implica aqui em uma releitura ou seja em
descrever os procedimentos retoacutericos por meio de princiacutepios mais amplos do que
aqueles utilizados pelos gramaacuteticos antigos
22
1 A Roda de Virgiacutelio e os trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga
Retoacuterica
Procurar entender um poema a partir de uma classificaccedilatildeo preacute-estabelecida
natildeo nos parece uma tarefa meritoacuteria pois ldquocada criaccedilatildeo poeacutetica eacute uma unidade
autossuficienterdquo e cada poema portanto ldquoeacute uacutenico irredutiacutevel e inigualaacutevelrdquo (PAZ
2012 p 23) Classificar catalogar reduzir a poesia a algumas poucas formas natildeo diz
nada sobre o poeacutetico em si nem sobre a expressividade do texto todavia buscar
compreender o porquecirc de uma classificaccedilatildeo e o modo como essa classificaccedilatildeo atua
pode nos auxiliar numa tarefa que vai aleacutem de uma mera ordenaccedilatildeo externa agrave obra
quando nos leva a entender alguns mecanismos de estruturaccedilatildeo poeacutetica Eacute oacutebvio que
apenas traccedilar as fronteiras de uma obra e descrevecirc-la levando em conta a
configuraccedilatildeo de um determinado estilo natildeo eacute capaz de esclarecer o poeacutetico que ali
atua Assim ao refletirmos sobre os trecircs estilos (singelo meacutedio e grandiloquente)
presentes nas obras de Virgiacutelio natildeo queremos com isso catalogaacute-las muito menos
hierarquizaacute-las mas sim adentrar o poeacutetico a expressividade do texto virgiliano a fim
de compreendermos natildeo apenas os assuntos tratados nos poemas mas sobretudo a
sua forma de expressatildeo
No iniacutecio da Bucoacutelica VI (hex 3-5) Virgiacutelio menciona as figuras representativas
do cenaacuterio bucoacutelico em contraponto agraves figuras eacutepicas
Cum canerem reges et proelia Cynthius aurem uellit et admonuit ltltPastorem Tityre pinguis pascere oportet ouis deductum dicere carmengtgt
Como eu cantasse reis e batalhas Ciacutentio5 puxou-me a orelha e advertiu-me ldquoAo pastor Tiacutetiro conveacutem apascentar gordas ovelhas e cantar um canto ruacutesticordquo
Haacute uma oposiccedilatildeo no excerto entre dois grupos de figuras De um lado lsquoreisrsquo e
lsquobatalhasrsquo e de outro lsquoo pastorrsquo as lsquogordas ovelhasrsquo e um lsquocanto ruacutesticorsquo Enquanto a
temaacutetica da eacutepica destina-se agrave narraccedilatildeo de grandes feitos de reis e batalhas a poesia
de gecircnero bucoacutelico eacute um canto de temaacutetica mais simples pois traz a figura do pastor
5 Ciacutentio outro nome para Apolo aqui citado como um deus pastoral identificado com agrave natureza
23
que apascenta as gordas ovelhas e canta um canto ruacutestico humilde singelo de
temaacutetica portanto diferente da eacutepica
Tambeacutem Camotildees no seacuteculo XVI na Invocaccedilatildeo drsquoOs Lusiacuteadas (I 5 v 1-4)
opocircs o cenaacuterio da eacutepica e da bucoacutelica
Dai-me uma fuacuteria grande e sonorosa E natildeo de agreste avena ou frauta ruda Mas de tuba canora e belicosa Que o peito acende e a cor ao gesto muda
A poesia bucoacutelica neste excerto eacute caracterizada pela ldquoagreste avenardquo ou
ldquofrauta rudardquo o instrumento do pastor-cantador protagonista do cenaacuterio bucoacutelico Jaacute
a poesia eacutepica aparece caracterizada pela lsquotuba canora e belicosarsquo Trata-se de uma
mudanccedila de cenaacuterio entre a bucoacutelica e a eacutepica muda-se o tema cantado e
consequentemente as figuras empregadas Entre os antigos a epopeia jaacute era descrita
por narrar os feitos de reis de chefes e as tristes guerras (cf Horaacutecio Arte Poeacutetica)
Augusto Epiphanio da Silva Dias (1910 p 6 nota 5) afirma que ldquoEm latim avena
lsquoaveiarsquo emprega-se tambeacutem por lsquocana de aveiarsquo e daiacute na poesia por lsquoflauta pastorilrsquo
A lsquoavenarsquo simboliza a poesia bucoacutelica assim como a lsquotubarsquo ou trombeta a poesia
eacutepicardquo
Enquanto as figuras representam no texto as coisas e os acontecimentos do
mundo natural os temas explicam os fatos que ocorrem Para criar determinado efeito
de sentido o autor de um texto escolhe figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria
entre si formando uma rede uma trama figurativa Ao identificarmos as figuras de um
texto devemos verificar portanto qual eacute a funccedilatildeo que elas desempenham no sentido
do texto Logo a depreensatildeo dos temas subjacentes a um texto figurativo soacute eacute
possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre figuras que se articulam e se encadeiam no
interior dele formando uma rede Como observamos nos exemplos acima o contraste
evidenciado entre a poesia bucoacutelica e eacutepica estaacute manifestado dessa maneira por
redes figurativas diferentes
Semelhante oposiccedilatildeo tambeacutem aparece com Antoacutenio Ferreira (2000 p 157) no
iniacutecio de sua ldquoEacutecloga Irdquo (v1-8)
No tempo qursquoo cruel e furioso Inimigo dos pastores e dos gados Da terra e das sementes belicoso
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Marte segundo contam por pecados Do mundo contra o mundo tatildeo iroso Desceu que teacute os lugares mais sagrados Assi com ferro e fogo cometeu Que tudo de ira cinza e sangue encheu
A guerra no seguinte excerto eacute figurativizada pelo ldquobelicoso Marterdquo que se
mostra inimigo dos pastores e de todo cenaacuterio bucoacutelico pois a guerra quebra
necessariamente com a paz ideal presente no mundo pastoril
Haacute portanto uma oposiccedilatildeo temaacutetica entre a poesia de gecircnero bucoacutelico e a
poesia eacutepica O contraste evidenciado nos dois discursos eacute marcado por redes
figurativas especiacuteficas que apontam para temas distintos O efeito de sentido singelo
humilde eacute proacuteprio da bucoacutelica jaacute que a recorrecircncia figurativa pressupotildee o universo
dos pastores inseridos em um locus amoenus Enquanto isso o efeito de sentido
grandiloquente eacute proacuteprio do cenaacuterio eacutepico em que figuram heroacuteis em contexto de
grandes aventuras e batalhas Entende-se por efeito de sentido a construccedilatildeo de
significados que pode ser depreensiacutevel de um discurso Essa construccedilatildeo eacute arquitetada
em um texto por uma rede de figuras que mantecircm uma relaccedilatildeo solidaacuteria entre si Logo
ao falarmos em efeito de sentido referimo-nos agrave trama de figuras presente em cada
discurso e ao modo como essa rede figurativa manifesta-se predominantemente no
discurso ao tecer significados No que diz respeito agrave poesia de gecircnero bucoacutelico e
eacutepico evidenciamos redes figurativas distintas e portanto diferentes efeitos de
sentido
Assim a partir do tema da accedilatildeo e da caracterizaccedilatildeo presentes nas trecircs obras
de Virgiacutelio - as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida ndash o trabalho procura observar as
mudanccedilas nos efeitos de sentido em cada obra Os estilos singelo meacutedio e
grandiloquente apresentam-se em cada obra virgiliana como efeitos de identidade do
texto sendo arquitetados a partir de um conjunto de procedimentos recorrentes na
construccedilatildeo de um sentido Analisar os estilos portanto significa investigar os
diferentes efeitos de individualidade presentes em cada texto
Valeacuterio Probo gramaacutetico romano da segunda metade do seacuteculo I dC In Vergilii
Bucolica et Georgica commentarius ao comparar a eacutepica e a bucoacutelica virgiliana
afirma que o ldquosublime e grandiloquenterdquo pertencem agrave Eneida enquanto agraves Bucoacutelicas
pertencem o que eacute ldquohumilde e ruacutesticordquo Diz o gramaacutetico
25
Sunt quaedam propria heroico carmini sublimia sed in bucolico humilia quae apte diuisse Vergilius notatus est
Algumas coisas satildeo apropriadas as sublimes ao poema heroico mas as humildes no bucoacutelico notou-se que Virgiacutelio as separou adequadamente
Essa distinccedilatildeo feita entre as obras deixa entrever a possibilidade de figuras que
podemos encontrar em cada uma delas Para a Eneida uma rede figurativa que nos
remete a um tema de caraacuteter grandioso enquanto para as Bucoacutelicas uma trama
figurativa que nos remete a assuntos mais singelos
Eacutelio Donato gramaacutetico e retoacuterico latino do seacuteculo IV dC menciona as trecircs
obras de Virgiacutelio e designa o modo de elocuccedilatildeo de cada gecircnero Para ele satildeo trecircs os
modos de elocuccedilatildeo o tecircnue (tenuis) para o gecircnero bucoacutelico o moderado (moderatus)
para o gecircnero didaacutetico e o vigoroso (ualidus) para o gecircnero eacutepico A elocuccedilatildeo
segundo a Retoacuterica refere-se agrave escrita do discurso ao estilo agrave expressatildeo Refere-se
pois ao trabalho com a linguagem e abrange assim o bom uso do leacutexico
Juacutenio Filargiacuterio comentarista de Virgiacutelio do seacuteculo V dC em Explanatio in
Bucolica Vergilli ao comparar as trecircs obras virgilianas acaba relacionando-as aos trecircs
genera dicendi
Humile medium magnum physica ethica logica Bucolica Georgica Aeneades naturalis moralis rationalis pastor operator bellator Physica ethica logica propter naturam propter usum propter doctrinam
Humilde meacutedio grande fiacutesica eacutetica loacutegica Bucoacutelicas Geoacutergicas Eneida natural moral racional pastor operaacuterio guerreiro Fiacutesica eacutetica loacutegica por causa da natureza por causa do uso por causa da doutrina
Dos pensadores aqui mencionados todos subordinam as Bucoacutelicas ao estilo
humilde (singelo) as Geoacutergicas ao meacutedio e a Eneida ao sublime grandiloquente
Com o auxiacutelio da Semioacutetica Literaacuteria entendemos que os trecircs estilos descritos
pelos tratadistas antigos podem ser lidos como diferentes efeitos de sentido presentes
nas trecircs obras virgilianas Estes efeitos estatildeo alicerccedilados nas diferentes tramas
figurativas tecidas por Virgiacutelio Pretende-se entender com isso o modo como os
principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica atuam no discurso Ao
compreender os trecircs estilos como construccedilotildees figurativas como efeitos de sentido
arquitetados em cada obra destacaremos como a significaccedilatildeo de uma determinada
26
figura estaacute sob o controle de um contexto no qual se encaixa com coerecircncia Pretende-
se investigar portanto a relaccedilatildeo solidaacuteria existente entre as figuras em contexto
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
A subordinaccedilatildeo das trecircs obras de Virgiacutelio aos trecircs genera dicendi aos trecircs
estilos descritos pelos gramaacuteticos latinos tambeacutem encontramos na Parisiana Poetria
de Joatildeo de Garlacircndia A Parisiana Poetria eacute um tratado sobre gramaacutetica e retoacuterica
escrito por Garlacircndia por volta de 1231 e 1235 Trata-se de um trabalho que registra
tipos de composiccedilatildeo escrita e aponta os cacircnones da retoacuterica Garlacircndia dessa forma
descreve uma teoria abrangente do estilo e para isso vale-se das Bucoacutelicas das
Geoacutergicas e da Eneida para criar a Roda de Virgiacutelio esquema circular tripartido em
que as obras virgilianas aparecem para descrever diferentes personagens temas
caracterizaccedilotildees e niacuteveis de estilo Assim ao mapear os estilos singelo meacutedio e
grandiloquente o filologista chama-nos a atenccedilatildeo para o fato de que Virgiacutelio registrou
diferentes tipos de estilo fixando modelos
De acordo com a Encyclopaedia Britannica (2009) John of Garland ou como
se diz tradicionalmente em portuguecircs Joatildeo de Garlacircndia (1180-1252) foi um
gramaacutetico e poeta inglecircs do seacuteculo XIII Seus escritos foram importantes no
desenvolvimento do latim medieval Aleacutem da Parisiana Poetria entre seus trabalhos
gramaticais estatildeo Compendium Grammatice (Esboccedilo de Gramaacutetica) Liber de
Constructionibus (Livro sobre Construccedilotildees) e um vocabulaacuterio latino Dois de seus
poemas mais conhecidos satildeo De triumphis ecclesiae (Sobre os triunfos da igreja) e
Epithalamium beatae Mariae Virginis (Canccedilatildeo nupcial da bem aventurada Virgem
Maria)
Ao arquitetar a Rota Vergilii Roda de Virgiacutelio seguindo a doutrina dos
gramaacuteticos latinos jaacute citados Joatildeo de Garlacircndia apresenta-nos a funccedilatildeo social de
cada personagem de Virgiacutelio o pastor o agricultor e o guerreiro
Segue portanto o esquema circular tripartido das trecircs obras virgilianas Cada
um dos aros concecircntricos da roda deixa entrever o personagem emblemaacutetico o
vegetal tiacutepico o ambiente de atuaccedilatildeo das personagens os objetos e os animais
representativos
27
Figura 3- A Roda Virgiliana de Garlacircndia
Fonte GARLAND John of 1974 p 40-41
Partindo desta divisatildeo entre as obras na Parisiana Poetria (1974 p38) Joatildeo
de Garlacircndia assim descreve
Item notandum quod in Rota Vergilii quam pre manibus habemus ordinantur tres columpne et in circuitu per multas circumferencias ordinantur tres stili In prima columpna comparationes continentur similitudines et nomina rerum ad humilem stilum pertinencium in secunda ad mediocrem in tercia ad grauem
Nota-se que na Roda de Virgiacutelio que temos em matildeos ordenam-se trecircs colunas e os trecircs estilos no circuito por meio de muitas circunferecircncias Na primeira coluna estatildeo contidas as comparaccedilotildees as imagens e os nomes das coisas pertinentes ao estilo humilde na segunda ao meacutedio na terceira ao grave
28
Vemos que o filologista segue a doutrina dos gramaacuteticos latinos apresentando-
nos em seu esquema tripartido as Bucoacutelicas na coluna do estilo singelo humilde as
Geoacutergicas na do meacutedio moderado e a Eneida na do grave grandiloquente
Na Enciclopedia Virgiliana organizada por Franceso della Corte (1996 p586)
encontramos um verbete para Rota Vergilii Neste verbete diz-se que as trecircs obras de
Virgiacutelio indicadas em uma figura circular satildeo exemplos dos trecircs estilos retoacutericos
(simples meacutedio e sublime) Menciona-se ali a documentaccedilatildeo da Poetria de Joatildeo de
Garlacircndia para quem Virgiacutelio apoacutes ter elegido sua mateacuteria poeacutetica tambeacutem elegeu
trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o guerreiro) a partir dos quais criou trecircs
cenaacuterios de atuaccedilatildeo
A Roda de Virgiacutelio segundo o verbete eacute uma emblemaacutetica correspondecircncia
dos trecircs genera dicendi os trecircs estilos defendidos pelos gramaacuteticos antigos e
configura-se como um esquema mnemocircnico que concentra a mateacuteria poeacutetica de cada
obra ou seja um breve panorama da criaccedilatildeo poeacutetica de Virgiacutelio A Roda eacute
interpretada assim como um cacircnone da arte retoacuterica
De acordo com Joatildeo Adolfo Hansen (2013 p26) ldquoStilus nome latino do estilete
com que se escrevia na tabuinha de cera passou a significar metaforicamente a
variaccedilatildeo da elocuccedilatildeo caracteriacutestica de um autor determinado proposto agrave emulaccedilatildeo
como auctoritasrdquo Segundo Hansen o termo lsquoestilorsquo refere-se agraves variaccedilotildees discursivas
das muitas elocuccedilotildees dos gecircneros Teofrasto disciacutepulo de Aristoacuteteles foi o primeiro
a fazer uma divisatildeo tripartida da elocuccedilatildeo dos estilos ndash simples temperado e nobre ndash
que corresponde na visatildeo de Hansen ao estilo humilde meacutedio e sublime
classificaccedilatildeo presente na chamada Rota Vergilii de Joatildeo de Garlacircndia como jaacute citado
anteriormente
Para Hansen (2013 p 26-27) a chamada Rota Vergilii do seacuteculo XIII
prescreve trecircs genera elocutionis que
satildeo exemplificados com as trecircs obras principais do poeta humilis ou humilde (Bucoacutelicas) mediocris ou meacutedio (Geoacutergicas) grauis ou alto (Eneida) Cada um deles corresponde agraves palavras especiacuteficas de lugares comuns as Bucoacutelicas o campo do pastor nomes proacuteprios de pastores as ovelhas as Geoacutergicas o campo do agricultor nomes proacuteprios de agricultores o boi a Eneida o campo do soldado nomes proacuteprios de soldados o cavalo e lugares comuns de objetos artificiais e coisas naturais ndash o cajado do pastor e a faia o arado do lavrador e a macieira a espada do soldado e o carvalho (ou loureiro) e na
29
elocuccedilatildeo palavras simples e humildes nas Bucoacutelicas meacutedias e com poucos ornamentos nas Geoacutergicas elevadas e sublimes na Eneida
Ao compreendermos com o auxiacutelio da Semioacutetica os trecircs estilos como efeitos
de sentido engendrados em cada obra pressupomos o nuacutecleo temaacutetico e figurativo
de cada texto e o modo como figuras e temas se encadeiam coerentemente
Pierre Guiraud em A Estiliacutestica (1970) segue o modelo de Garlacircndia ao citar
os trecircs estilos elementares descritos pela Antiga Retoacuterica descrevendo-os e
apresentando-os em cada aro concecircntrico de sua Roda
Assim o camponecircs chama-se Caelius lavra seu campo plantado de aacutervores frutiacuteferas com seu arado puxado por bois mas o capitatildeo chama-se Hector estaacute coroado de louros tem agrave cinta um glaacutedio e percorre o acampamento em seu cavalo A vida do labrego seraacute contada em estilo simples ao passo que se usaratildeo estilo grave ou nobre para contar as faccedilanhas de Heitor (GUIRAUD 1970 p 27 grifos do autor)
Ao retomar a Roda de Garlacircndia Guiraud descreve trecircs diferentes contextos
de atuaccedilatildeo destacando as principais caracteriacutesticas de cada um deles Pode-se
compreender que os elementos por ele citados apesar da oscilaccedilatildeo possiacutevel dos seus
significados estatildeo articuladas no interior de cada texto remetendo-nos a diferentes
efeitos de sentido seja o simples (o singelo) o meacutedio ou o grandiloquente
30
Figura 4 - A Roda de Virgiacutelio
Fonte GUIRAUD Pierre 1970 p 26
Como se lecirc no esquema circular tripartido para as Bucoacutelicas tem-se o Humilis
Stylus o estilo singelo e seu personagem representativo eacute o pastor otiosus o pastor
despreocupado Entre os nomes de pastores mais conhecidos estatildeo Tityrus e
Melibœus (cf Buc I) dos animais que figuram a ambientaccedilatildeo campestre destacam-
se as ovelhas (ovis) aleacutem disso como objetos representativos do pastor encontramos
o cajado (baculus) e a flauta Na descriccedilatildeo da espacialidade destacam-se os prados
(pascua) e a faia (fagus) com suas folhagens hospitaleiras que contribuem para a
descriccedilatildeo do locus amoenus ambientaccedilatildeo proacutepria ao universo bucoacutelico Os
31
caracteres bucoacutelicos remetem-nos a assuntos tecircnues e por isso entendemos que
haja um efeito de sentido singelo que perpassa a obra
Para as Geoacutergicas temos o estilo meacutedio mediocrus stylus Como personagem
representativo encontramos o lavrador (agricola) e dentre os animais encontramos o
boi (bos) O arado (aratrum) serve para o cultivo do campo (ager) e na ambientaccedilatildeo
figuram aacutervores frutiacuteferas (pomus) Logo os assuntos satildeo moderados e destinam-se
agraves informaccedilotildees sobre a plantaccedilatildeo e a criaccedilatildeo de animais Entendemos com isso que
o cenaacuterio provoca um efeito de sentido mediano instrutivo
Para a Eneida destaca-se o estilo sublime (gravis stylus) Como personagem
tem-se o soldado vencedor (miles dominans) Entre os animais que aparecem estaacute o
cavalo (equus) A espada (gladius) figura como objeto representativo da personagem
e tanto a cidade (urbs) como a fortaleza de guerra ou o acampamento militar
(castrum) mapeiam o espaccedilo de atuaccedilatildeo Os caracteres eacutepicos destinam-se assim
aos assuntos grandiosos de reis e batalhas Logo pensando-se em termos
semioacuteticos cria-se um efeito de sentido grandiloquente
Eacute importante lembrar que a Roda natildeo esgota os elementos presentes nas
Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida ela apresenta apenas alguns dos aspectos gerais que
podem aparecer na caracterizaccedilatildeo de cada obra Eacute preciso que o leitor conheccedila o
texto de Virgiacutelio para depreender dessa forma as diferentes caracteriacutesticas bucoacutelicas
didaacuteticas e eacutepicas Entendemos neste trabalho que o esquema tripartido da Roda
serve para nortear a forma como Virgiacutelio valeu-se dos diferentes temas e como
conseguiu registraacute-los em suas obras
Na visatildeo de Guiraud (1970 p 27) ldquoas palavras guardam o reflexo das coisas
que designam ou dos ambientes em que satildeo empregadasrdquo Em se tratando das trecircs
obras de Virgiacutelio os cenaacuterios em contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico apresentam os
temas e figuras que lhe satildeo proacuteprios
As trecircs obras de Virgiacutelio dialogam com os trecircs tipos de estilo descritos pela
Antiga Retoacuterica a saber o estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Procuramos
entender esta divisatildeo como um esquema representativo das principais figuras e temas
presentes nas obras de Virgiacutelio Logo os trecircs estilos seratildeo aqui entendidos como
diferentes efeitos de sentido que aparecem na obra virgiliana Demonstraremos
atraveacutes de excertos do texto virgiliano como temas e figuras se comportam em
contexto bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Compreendemos portanto o esquema tripartido
de Joatildeo de Garlacircndia com o auxiacutelio da moderna anaacutelise metodoloacutegica e com isso a
32
leitura que se seguiraacute das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida apresentaraacute o estilo
como um efeito de sentido que perpassa as obras
33
2 Uma leitura dos efeitos de sentido singelo meacutedio e grandiloquente
Estilo eacute efeito de individuaccedilatildeo dado por uma totalidade de discursos enunciados
Norma Discini 2009 p 27
Por meio da linguagem o emissor eacute capaz de expressar seus sentimentos
emoccedilotildees e modos de ser aleacutem de influenciar o seu receptor (o ouvinte ou leitor)
provocando assim uma determinada impressatildeo Foi pensando nisso que os gregos
antigos se valeram de diferentes loacutegicas argumentativas para convencer a plateia
sobre a veracidade de suas ideias Com isso a Greacutecia claacutessica levou a graus de
sutileza a preocupaccedilatildeo com a estrutura do discurso Entre os gregos inclusive foram
criadas disciplinas que melhor ensinassem as artes de domiacutenio da palavra tais como
a eloquecircncia a gramaacutetica e a retoacuterica (CITELLI 2002)
O surgimento da retoacuterica como disciplina especiacutefica contribuiu para uma
reflexatildeo sobre o aspecto discursivo da liacutengua bem como sobre o efeito que ela
provocava no receptor Na Idade Meacutedia a Retoacuterica apareceu no campo religioso pois
era comum os monges discutirem temas dogmaacuteticos com a finalidade de mostrar suas
habilidades argumentativas Na Idade Moderna com o advento do positivismo a
Retoacuterica foi deixada de lado jaacute que o importante passou a ser o conteuacutedo aquilo que
poderia ser comprovado e natildeo mais a expressividade Jaacute na Idade Contemporacircnea
a Retoacuterica retorna em duas grandes vertentes a teoria da argumentaccedilatildeo no discurso
cientiacutefico e a Estiliacutestica nos estudos linguiacutesticos (CITELLI 2002)
Levando em conta as dimensotildees da liacutengua e seu uso Mattoso Cacircmara (1978
p110) em seu Dicionaacuterio de Linguiacutestica e Gramaacutetica faz a seguinte afirmaccedilatildeo acerca
da Estiliacutestica ldquoDisciplina linguiacutestica que estuda a expressatildeo em seu sentido estrito de
expressividade da linguagem isto eacute a sua capacidade de emocionar e sugestionarrdquo
Pensando nessa capacidade de emocionar e sugerir Mattoso Cacircmara (1978
p 7 grifo nosso) define ldquoestilordquo nos seguintes termos
Em sentido lato estilo eacute a maneira tiacutepica pela qual nos exprimimos linguisticamente individualizando-nos em funccedilatildeo da nossa linguagem Para isso fazemos uma aplicaccedilatildeo metoacutedica dos elementos que a liacutengua ministra (Leo Spitzer) procedendo a uma escolha entre as possibilidades de expressatildeo que se apresentam na liacutengua (Marouzeau) Em sentido estrito no entanto essa caracteriacutestica decorre antes de tudo do nosso impulso emotivo e do propoacutesito claro ou subconsciente de sugestionar o proacuteximo
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Com isso podemos pensar em estilo como a individualidade de um discurso
como uma escolha entre os recursos de expressatildeo presentes na liacutengua e como um
efeito de sentido que eacute capaz de sugestionar determinadas impressotildees
Ao entendermos que um efeito de sentido soacute pode ser depreendido a partir de
uma rede coerente de figuras no interior do discurso concluiacutemos que toda trama de
figuras presente em um texto alicerccedila os significados ali tecidos Para depreendermos
portanto o efeito sugerido por determinada obra literaacuteria por exemplo devemos
adentrar a sua dimensatildeo temaacutetica e figurativa a fim de compreendermos a dominacircncia
dos elementos abstratos e concretos presentes no discurso
Como afirma Compagnon (2014 p164) a palavra estilo natildeo tem origem em
vocabulaacuterio especializado Aleacutem disso natildeo eacute um termo reservado apenas agrave literatura
e agrave liacutengua A ideia de estilo para Compagnon abrange numerosas aacutereas da atividade
humana Estilo denota a individualidade a singularidade de uma obra a necessidade
de uma escritura um gecircnero um periacuteodo ou um arsenal de procedimentos
expressivos de recursos a escolher Logo os aspectos da noccedilatildeo de estilo tanto
verbal como natildeo verbal hoje satildeo muito numerosos O estilo eacute citado por Compagnon
como norma pensando-se que o bom estilo eacute aquele que deve ser imitado o cacircnone
Aleacutem disso o estilo frequentemente aparece segundo ele como ornamento Essa
concepccedilatildeo eacute evidente na retoacuterica em que existem duas partes relacionadas agraves ideias
(invenccedilatildeo e disposiccedilatildeo) e uma terceira relativa agrave expressatildeo atraveacutes das palavras
(elocuccedilatildeo) Compagnon tambeacutem menciona o estilo no sentido de desvio pensando-
se na variaccedilatildeo estiliacutestica no desvio da liacutengua em relaccedilatildeo ao seu uso corrente na
substituiccedilatildeo de uma palavra por outra que oferece agrave elocuccedilatildeo uma forma mais
elevada uma marca diferenciada Tem-se assim de um lado uma elocuccedilatildeo clara ou
baixa e de outro uma elocuccedilatildeo elegante
Para Compagnon (2014 p 166) o ornamento e o desvio satildeo inseparaacuteveis da
noccedilatildeo de estilo Desde Aristoacuteteles entende-se o estilo como um ornamento formal
definido pela sua marca diferenciada em relaccedilatildeo ao uso comum da linguagem
Compagnon traz ainda a noccedilatildeo de estilo atrelada agrave ideia de gecircnero ou tipo
Para o criacutetico segundo a antiga retoacuterica o estilo enquanto escolha entre meios
expressivos estava ligado a noccedilatildeo de conveniecircncia jaacute que natildeo bastava possuir a
mateacuteria do discurso era preciso aleacutem disso falar segundo a necessidade da situaccedilatildeo
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O estilo dessa forma designava a propriedade do discurso a adaptaccedilatildeo da
expressatildeo a seus fins
Compagnon (2014 p 167) diz que
Os tratados de retoacuterica distinguiam tradicionalmente nem mais nem menos trecircs tipos de estilo o stylus humilis (simples) o stylus mediocris (moderado) e o stylus grauis (elevado ou sublime) Ciacutecero no Orator associava esses trecircs estilos agraves trecircs escolas de eloquecircncia (o asiatismo que se caracterizava pela abundacircncia ou empolaccedilatildeo o aticismo pelo gosto seguro e o gecircnero roacutedio gecircnero intermediaacuterio) Na Idade Meacutedia Diomedes identificou esses trecircs estilos aos grandes gecircneros depois Donato em seu comentaacuterio de Virgiacutelio relacionou-os aos temas das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida isto eacute agrave poesia pastoril agrave poesia didaacutetica e agrave epopeia Essa tipologia dos trecircs tipos de estilo difundida desde entatildeo com o nome Rota Vergilii ldquoRoda de Virgiacuteliordquo gozou de uma estabilidade de mais de mil anos Ela corresponde a uma hierarquia (familiar meacutedia nobre) que engloba o fundo a expressatildeo e a composiccedilatildeo Montaigne vai transgredi-la deliberadamente escrevendo sobre assuntos ldquomediacuteocresrdquo e eventualmente ldquosublimesrdquo no estilo ldquococircmico e privadordquo das letras e da conversaccedilatildeo Ora os trecircs tipos de estilo satildeo igualmente conhecidos sob o nome de genera dicendi assim eacute a noccedilatildeo de estilo que se acha na origem da noccedilatildeo de gecircnero ou mais exatamente eacute atraveacutes da noccedilatildeo de estilo (e a teoria dos trecircs estilos classifica os discursos e os textos) que as diferenccedilas geneacutericas foram tratadas por muito tempo
Pensando em estilo por meio da narratividade e do discurso Norma Discini em
sua obra O estilo nos textos (2009 p29) afirma
O estilo tambeacutem decorre de uma leitura homogeneizadora do mundo inerente ao efeito de individuaccedilatildeo de uma totalidade de discursos enunciados Tal leitura eacute identificaacutevel na anaacutelise de um estilo por meio da observaccedilatildeo do modo recorrente da referencializaccedilatildeo da enunciaccedilatildeo no enunciado o que por sua vez supotildee uma unidade de avaliaccedilotildees e interpretaccedilotildees
Logo a leitura de um determinado estilo deve ser buscada na totalidade
enunciada da qual se depreende o ator da enunciaccedilatildeo o espaccedilo de atuaccedilatildeo e
consequentemente o efeito engendrado Para Discini (2009 p 30) ldquoestilo eacute corpo eacute
voz eacute caraacuteter de uma totalidaderdquo e portanto traz consigo um efeito de individualidade
que permite a construccedilatildeo de um cenaacuterio representativo em que figuram o ator a accedilatildeo
e o espaccedilo de atuaccedilatildeo Discini (2009) assim parte do princiacutepio de que o estilo eacute efeito
de sentido e portanto uma construccedilatildeo do discurso Segundo o pensamento da
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semioticista o efeito eacute determinado pela recorrecircncia de procedimentos na construccedilatildeo
do sentido o que deixa entrever do ponto de vista da produccedilatildeo do discurso como o
ator a accedilatildeo e o espaccedilo de atuaccedilatildeo satildeo tematizados e figurativizados
Os efeitos de sentido satildeo reveladores das intencionalidades presentes no
discurso Em virtude da presenccedila de determinados efeitos de sentido as figuras
presentes em um texto coadunam-se para concretizar sentidos especiacuteficos O efeito
de sentido portanto pode ser obtido atraveacutes de estrateacutegias discursivas como por
exemplo a referecircncia a pessoas a objetos a lugares e a caracteriacutesticas individuais
das personagens Estas estrateacutegias contribuem para a construccedilatildeo de diferentes
cenaacuterios que sugestionam efeitos especiacuteficos
Pensando-se nas trecircs obras de Virgiacutelio coacuterpus do nosso trabalho acreditamos
que a Roda de Virgiacutelio apresenta a partir dos estilos singelo meacutedio e grandiloquente
os toacutepicos caracteriacutesticos de cada obra ou em termos semioacuteticos as principais
figuras e temas que caracterizam os trecircs cenaacuterios criados por Virgiacutelio
Ao entendermos o estilo como um fato diferencial e como um efeito de
individualidade que daacute voz e imprime uma singularidade ao discurso enunciado
podemos compreender como os diferentes estilos expostos pelos tratadistas antigos
podem ser lidos hoje a partir da moderna anaacutelise metodoloacutegica Para relembrar
dentre os antigos as obras eram classificadas a partir de trecircs tipos de elocuccedilatildeo a
tecircnue a moderada e a vigorosa que definiam respectivamente trecircs tipos de estilo o
singelo o meacutedio e o grandiloquente Virgiacutelio eacute conhecido por compor todos os trecircs
Nas Bucoacutelicas encontramos o humilde (singelo) nas Geoacutergicas o meacutedio e na Eneida
o grandiloquente A Roda de Virgiacutelio como jaacute citamos anteriormente eacute uma
classificaccedilatildeo medieval que mapeia portanto os trecircs tipos de estilo da Antiga Retoacuterica
deixando entrever os principais elementos dos trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo criados por
Virgiacutelio Cabe-nos aqui avaliar como esses estilos satildeo engendrados em cada obra
deixando entrever efeitos de individuaccedilatildeo que lhe satildeo proacuteprios
No iniacutecio da primeira Bucoacutelica de Virgiacutelio Melibeu um pastor de gado fala a
Tiacutetiro outro pastor sobre o confisco de suas terras e sobre o fato de o amigo que
descansa agrave sombra de uma faia ter conseguido conservar as suas por ajuda de um
benfeitor
(Buc I hex 1-10) Meliboeus
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Tityre tu patulae recubans sub tegmine fagi siluestrem tenui Musam meditaris auena nos patriae finis et dulcia linquimus arua nos patriam fugimus tu Tityre lentus in umbra formosam resonare doces Amaryllida siluas
Tityrus
O Meliboee deus nobis haec otia fecit namque erit ille mihi semper deus illius aram saepe tener nostris ab ouilibus imbuet agnus ille meas errare boues ut cernis et ipsum ludere quae uellem calamo permisit agresti
Melibeu
Oacute Tiacutetiro tu reclinado agrave sombra de uma copada faia contemplas a musa silvestre na tecircnue flauta noacutes deixamos os limites da paacutetria e os doces campos da paacutetria noacutes fugimos tu oacute Tiacutetiro deitado agrave sombra ensinas os bosques a ressoar o nome da formosa Amariacutelis
Tiacutetiro
Oacute Melibeu um deus nos proporcionou este oacutecio De fato ele seraacute sempre um deus para mim seu altar sempre embeberaacute um tenro cordeiro de nossos apriscos Ele permitiu como vecircs que minhas vacas vagueassem e que eu tocasse na flauta agreste o que quisesse
A palavra bucoacutelica etimologicamente vem de boukolikaacute que em grego quer
dizer ldquocantos de boiadeirosrdquo Este era o nome dado agraves composiccedilotildees em que o
protagonista era o boieiro ou o vaqueiro A princiacutepio a composiccedilatildeo bucoacutelica
compreenderia como adverte Manuel de Paiva Boleacuteo (1936 p 16) uma forma de
poesia em que o boieiro ou vaqueiro seria o protagonista Nesse gecircnero figuram os
guardadores de gado os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas
sempre inseridos em um cenaacuterio ruacutestico campesino Fraguier (apud BOLEacuteO 1936 p
17) um dos teoacutericos sobre a poesia pastoril declara que os pastores satildeo homens do
campo que vivem singelamente que estatildeo sempre acompanhados de seus cajados e
rebanhos e que no momento de oacutecio ocupam-se de cantigas inocentes Com o
tempo os termos pastoral e pastoralismo tambeacutem passaram a designar as
composiccedilotildees que retratavam o pastor de cabras ou de ovelhas e por isso os termos
satildeo vistos como sinocircnimos de bucolismo O principal como menciona Boleacuteo (1936 p
18) eacute que esse tipo de composiccedilatildeo tenha uma essecircncia ou expressatildeo pastoril A
escolha do pastor como protagonista da cena bucoacutelica se deve ao fato de que cabe
ao pastor em seu momento de oacutecio os cantares singelos que expressam uma vida
essencialmente campestre
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O efeito de sentido singelo humilde estaacute presente neste excerto da primeira
bucoacutelica Vale destacar do seguinte excerto a expressatildeo ldquosub tegmine fagirdquo (agrave sombra
de uma copada faia) pois se refere ao costume que os pastores tecircm de nas eacutepocas
quentes protegerem-se do sol debaixo das aacutervores junto com os rebanhos O estilo
singelo eacute marcado dessa forma pela presenccedila dos pastores Tiacutetiro e Melibeu bem
como pela accedilatildeo de Tiacutetiro que se encontra deitado sob agrave sombra de uma frondosa
aacutervore enquanto toca na singela flauta uma muacutesica agreste Em resposta ao amigo
Melibeu Tiacutetiro afirma que pode desfrutar da sombra e do oacutecio enquanto suas vacas
vagueiam graccedilas a um deus que lhe proporcionou essa tranquilidade A temaacutetica
recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico diz respeito ao oacutecio dos pastores e estaacute
atrelada ao prazer do canto e ao locus amoenus lugar apraziacutevel em que figuram o
som da flauta as ovelhas cabras e aacutervores com sombras hospitaleiras
Eacute interessante que neste excerto da primeira bucoacutelica apareccedila na fala do
pastor Melibeu uma temaacutetica aparentemente contraacuteria agrave ideia de um lugar apraziacutevel
que eacute proposto pela poesia bucoacutelica Enquanto o pastor Tiacutetiro desfruta de um cenaacuterio
ameno Melibeu afirma que deixou os limites da paacutetria e os doces campos deixando
entrever que natildeo teve a mesma sorte que o feliz amigo Embora apareccedila uma temaacutetica
um pouco contraacuteria ao contexto singelo proposto pela poesia bucoacutelica devemos levar
em conta que toda depreensatildeo temaacutetica soacute eacute possiacutevel a partir da associaccedilatildeo entre as
figuras que se articulam e se encadeiam no interior do discurso formando uma rede
Com isso se pensarmos na trama figurativa de todo o poema bem como na
dominacircncia dos elementos notadamente bucoacutelicos podemos afirmar que o efeito
sugerido pelo contexto eacute predominantemente singelo
Logo observa-se que em um texto as muacuteltiplas significaccedilotildees de uma
determinada figura estatildeo sob o controle de um contexto em que se encaixam com
coerecircncia apenas algumas dessas possibilidades significativas
Pensando-se na totalidade discursiva foram destacados aqui os elementos que
datildeo corporalidade agrave voz simples do discurso bucoacutelico e que satildeo capazes de engendrar
a accedilatildeo dos atores bem como caracterizar o espaccedilo de atuaccedilatildeo das personagens O
efeito de individuaccedilatildeo pretendido eacute o humilde que se corporifica nas falas das
personagens bem como na espacialidade descrita
Com efeito o cenaacuterio presente na poesia pastoril difere do cenaacuterio encontrado
na poesia eacutepica Como observa Legrand (apud BOLEacuteO 1936 p 54-55) o ambiente
campestre pode contemplar um rochedo a espessura verde de um pequeno bosque
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uma fonte pinheiros olmos choupos carvalhos aves insetos etc Estas seratildeo
portanto figuras recorrentes na poesia de temaacutetica pastoril Mas eacute importante destacar
o modo como essas figuras se organizam e o modo como particularizam os temas que
abrangem a simplicidade e o viver ruacutestico do campo
Apoacutes a coleccedilatildeo de dez poemas de temaacutetica bucoacutelica Virgiacutelio compocircs as
Geoacutergicas obra classificada tradicionalmente como didaacutetica Mas ao compor um
poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo quis transmitir apenas conhecimentos
teacutecnicos sobre os trabalhos do campo tais como o tempo propiacutecio para realizar o
plantio e a colheita ou os procedimentos adequados para se castrar as colmeias Aliaacutes
se os criacuteticos da obra virgiliana se fixassem apenas nesse aspecto temaacutetico a obra
seria classificada como um tratado teacutecnico de agronomia todavia as Geoacutergicas
representam muito mais do que um simples compecircndio de aplicaccedilatildeo praacutetica sobre
meacutetodos a serem seguidos na agricultura jaacute que da totalidade de preceitos uacuteteis e
praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas aqueles que convecircm
agrave finalidade artiacutestica e poeacutetica
De acordo com Trevisam (2014 p 30) a palavra ldquodidaacuteticordquo remonta ao verbo
grego didaacutesco (lat doceo de mesma raiz indo-europeia) cujos sentidos oferecidos
em dicionaacuterio especializado incluem ldquoensinarrdquo e ldquoinstruirrdquo Assim de iniacutecio podemos
dizer que todo poema didaacutetico se compromete essencialmente com a instruccedilatildeo do
seu puacuteblico Os quatro cantos das Geoacutergicas satildeo organizados a partir de diferentes
temaacuteticas No primeiro livro fala-se da lavoura no segundo da arboricultura
sobretudo a viticultura no terceiro da pecuaacuteria de grandes e pequenos animais e no
quarto da apicultura como assim descreve Virgiacutelio no iniacutecio do Canto I
(Geo Canto I hex 1-5)
Quid faciat laetas segetes quo sidere terram uertere Maecenas ulmisque adiungere uitis conueniat quae cura boum qui cultus habendo sit pecori apibus quanta experientia parcis hinc canere incipiam
Agora comeccedilarei a celebrar o que faz as colheitas feacuterteis com que astros Mecenas conveacutem arar a terra e unir as videiras aos olmeiros que cuidados aos bois que conduta seguir para que seja mantido o rebanho quanta experiecircncia para as parcas abelhas
As Geoacutergicas apresentam um caraacuteter instrutivo proacuteprio do gecircnero da poesia
didaacutetica e empregam uma gama variada de modos discursivos tais como exposiccedilatildeo
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descriccedilatildeo narraccedilatildeo inserccedilatildeo de episoacutedios mitoloacutegicos faacutebulas etc aleacutem de contar
com a presenccedila de uma voz didaacutetica que se coloca como magister para ditar os
conhecimentos relativos agrave agricultura (TREVISAM 2014)
Pensando-se nessa temaacutetica de caraacuteter instrutivo os tratadistas antigos
nomearam para as Geoacutergicas o estilo meacutedio que eacute destinado a assuntos moderados
Logo o efeito de sentido mediano apoia-se dessa forma no conjunto de temas e
figuras utilizados Destacam-se alguns exemplos
(Geo I 176-177)
Possum multa tibi ueterum praecepta referre ni refugis tenuisque piget cognoscere curas
Posso contar-te muitos preceitos dos antigos se natildeo te esquivas nem te daacute fastio em conhecer pequenos cuidados
Nestes dois hexacircmetros antes de introduzir o tema dos cereais a voz poeacutetica
pede licenccedila para tratar de assuntos considerados menores e ainda no mesmo canto
essa voz continua a prever que se poderaacute achar despreziacutevel o toacutepico do cultivo da
lentilha da Peluacutesia
(Geo I 227-230)
Si uero uiciamque seres uilemque phaselum nec Pelusiacae curam aspernabere lentis haud obscura cadens mittet tibi signa Bootes incipe et ad medias sementem extende pruinas
Se plantares a ervilha e o humilde feijatildeo e natildeo desprezares cuidar da lentilha da Peluacutesia6 o Boieiro7 ao se pocircr dar-te-aacute sinais bem claros
comeccedila e prolonga a semeadura ateacute o meio das geadas Sobre o Canto I das Geoacutergicas aliaacutes vale destacar as palavras de Trevisam
(2014 p 190-191)
O livro I das Geoacutergicas virgilianas descortina ao leitor o espetaacuteculo da luta humana pela sobrevivecircncia diaacuteria fruto do trabalho de nossas matildeos segundo descrito pelo poeta eacute essa a parcela da obra em que se concentram preceitos didaacuteticos em nexo com o plantio dos campos cerealistas donde nos vem o patildeo siacutembolo por excelecircncia da vida material civilizada Nesse contexto como muitas e por vezes
6 Peluacutesio ou Boca Peluacutesia cidade antiga do baixo Egito 7 Boieiro uma constelaccedilatildeo do hemisfeacuterio celestial norte
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penosas satildeo descritas as vaacuterias operaccedilotildees de cultivo necessaacuterias a exemplo da primeira arada do solo (v 43-46) da escolha das sementes (v 197-200) da feitura de uma eira para debulha das espigas (v 176-186) e da adubaccedilatildeo (v 80)
Com efeito o cenaacuterio presente no Canto I das Geoacutergicas deixa entrever
sobretudo a importacircncia do trabalho e as teacutecnicas de cultivo desde o preparo do solo
ateacute sua adubaccedilatildeo e o iniacutecio do plantio A voz didaacutetica presente no texto coloca-se na
posiccedilatildeo de um magister que presta orientaccedilotildees sobre esse tema O efeito de sentido
engendrado eacute de caraacuteter instrutivo e os assuntos tratados satildeo considerados triviais O
estilo mediano portanto constroacutei-se a partir dessa recorrecircncia temaacutetica e das figuras
que lhe datildeo corporalidade no enunciado
Como marco da literatura latina a Eneida foi escrita a pedido do imperador
Otaviano8 Assim a epopeia de Virgiacutelio busca enaltecer Roma senhora do mundo e
consequentemente engrandecer a figura de Otaviano como princeps O estilo
reconheciacutevel eacute o sublime devido a recorrecircncia de temas e figuras que datildeo ao discurso
o efeito de sentido grandiloquente proacuteprio da eacutepica
(Eneida Canto I ndash hex 1- 11)
Arma uirumque cano Troiae qui primus ab oris Italiam fato profugus Lauinaque uenit litora ndash multum ille et terris iactatus et alto ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram multa quoque et bello passus dum conderet urbem inferretque deos Latio genus unde Latinum Albanique patres atque altae moenia Romae Musa mihi causas memora quo numine laeso quidue dolens regina deum tot uoluere casus insignem pietate uirum tot adire labores impulerit Tantaene animis caelestibus irae
Canto as armas e o varatildeo que impelido pelo destino primeiro veio das praias de Troia ateacute agrave Itaacutelia e ao litoral Laviacutenio ele foi muito perseguido tanto em terra como no mar e pela forccedila dos deuses e pela ira lembrada da cruel Juno ele sofreu muito na guerra ateacute que natildeo fundasse uma cidade e introduzisse os deuses no Laacutecio onde surgiriam a raccedila latina e os chefes Albanos e as muralhas da soberba Roma Oacute musa recorda-me as causas por que a divindade ofendida ou por qual maacutegoa a rainha dos deuses obrigou um varatildeo notaacutevel por
8 Caio Otaacutevio filho de famiacutelia senatorial tornou-se Caio Juacutelio Ceacutesar Otaviano herdeiro legal e poliacutetico de Ceacutesar em 27 aC jaacute firmemente estabelecido como senhor do mundo tornou-se Ceacutesar Augusto (BOWDER 1980 p42)
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sua piedade a correr tantos perigos e a enfrentar tantos trabalhos Por que tanta ira nos espiacuteritos celestes
A eacutepica eacute marcada como se vecirc no pequeno excerto pela figura do heroacutei e suas
aventuras Eneias o ilustre varatildeo cumpre seu destino ao sair das praias de Troia e
chegar ao litoral Laviacutenio na Itaacutelia onde se construiratildeo as muralhas da soberba Roma
A musa a ser lembrada eacute a da poesia eacutepica que inspira temas grandiosos sobre as
aventuras do heroacutei O efeito de individuaccedilatildeo apoia-se dessa forma na recorrecircncia de
figuras que contribuem para a corporalidade do eacutepico Depreende-se o estilo
grandiloquente a partir da imagem construiacuteda do heroacutei bem como por suas accedilotildees
desde que saiu das praias de Troia e deu iniacutecio agrave sua empreitada O estilo marca um
efeito de individualidade que pode ser captado pela recorrecircncia temaacutetica e figurativa
presente no discurso O efeito grandiloquente emerge portanto de um contexto que
lhe daacute corporalidade para existir
Ao falar em estilo falamos portanto em unidade pensando-se na recorrecircncia
temaacutetica e figurativa predominante nos discursos bucoacutelico didaacutetico e eacutepico Para cada
estilo singelo meacutedio e grandiloquente haacute um efeito de individuaccedilatildeo marcado pela
recorrecircncia de temas e figuras e pelas relaccedilotildees de sentido detectadas que
permanecem no discurso e deixam entrever uma unidade A recorrecircncia de temas e
figuras engendram assim uma previsibilidade e um modo de ser dos textos
Nosso objetivo eacute enfim demonstrar que eacute possiacutevel descrever os trecircs estilos
singelo meacutedio e grandiloquente tendo como apoio teoacuterico a Semioacutetica Greimasiana
Para tanto buscaremos em excertos representativos das trecircs obras de Virgiacutelio a
recorrecircncia temaacutetica e figurativa que imprime assim um modo proacuteprio de dizer
configurando o efeito de individuaccedilatildeo de cada estilo
Em Virgil in the Renaissance Wilson-Okamura (2010 p 90) fala-nos sobre o
mito que cerca a Roda de Virgiacutelio O criacutetico menciona que a Roda tem origem
medieval pois sua expressatildeo se origina no iniacutecio do seacuteculo XIII com Joatildeo de
Garlacircndia mas para o criacutetico embora o termo ldquoRoda de Virgiacuteliordquo seja mencionado em
alguns estudos do Renascimento o uso ou a menccedilatildeo que se faz agrave Roda carece de
precisatildeo sobre o termo Segundo Wilson-Okamura muitos estudiosos escrevem
sobre a Roda como se ela fosse uma progressatildeo de gecircneros comeccedilando com o
gecircnero pastoral (Bucoacutelicas) passando pelo gecircnero didaacutetico (Geoacutergicas) e terminando
com o eacutepico (Eneida) Na opiniatildeo do criacutetico isso faz tanto sentido quanto dizer que
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uma roda de cores comeccedila com o vermelho e termina com o violeta jaacute que por
definiccedilatildeo as rodas natildeo tecircm pontos finais pois trazem uma ideia de continuidade de
um movimento circular ao redor de um eixo Wilson-Okamura (2010 p 91) esclarece-
nos assim que a Roda natildeo diz nada sobre gecircneros nem sobre uma progressatildeo entre
eles Os aros concecircntricos presentes na Roda satildeo organizados de acordo com os
estilos e natildeo de acordo com os gecircneros Aleacutem disso o objetivo da Roda para Wilson-
Okamura natildeo eacute ditar qual gecircnero deve aparecer primeiro mas sim mostrar como os
caracteres satildeo dispostos em diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo por exemplo os poemas
no estilo mediano natildeo devem apresentar espadas ou pastores porque espadas
pertencem ao contexto do estilo grave enquanto os pastores satildeo parte de um cenaacuterio
que eacute proacuteprio do estilo humilde
De acordo com Wilson-Okamura (2010) a Roda de Virgiacutelio natildeo eacute um termo
usado pelos autores no Renascimento pois se trata de uma concepccedilatildeo acerca da
carreira de Virgiacutelio como extensatildeo de todos os niacuteveis de estilo que ecoaram nos
comentaacuterios do Renascimento
Segundo o criacutetico Virgiacutelio criou os seus trecircs trabalhos em um triacuteplice estilo
Para as Bucoacutelicas ele caracteriza as coisas em um estilo delicado registrando o
cenaacuterio com caracteres amenos Nas Geoacutergicas o poeta vale-se de um estilo
mediano utilizando caracteres que registram um cenaacuterio moderado e na Eneida lanccedila
matildeo de caracteres graves para registrar o cenaacuterio das guerras e batalhas O que
define a carreira de Virgiacutelio para Wilson-Okamura (2010) eacute o domiacutenio dos trecircs estilos
pois o que define o sucesso de Virgiacutelio natildeo eacute a sequecircncia de gecircneros mas sim a
representaccedilatildeo que o poeta fez de cada estilo sendo por fim esta forma de
representaccedilatildeo e natildeo os gecircneros o que os poetas e criacuteticos modernos devem apreciar
na carreira de Virgiacutelio
Embora Wilson-Okamura fale de caracteres proacuteprios a cada estilo e natildeo
mencione termos semioacuteticos tais como recorrecircncia temaacutetica e figurativa o que ele
pretendeu destacar sobre os trecircs tipos de estilo vai ao encontro daquilo que
acreditamos o de que satildeo elementos engendrados no discurso e que mantecircm um
caraacuteter de individuaccedilatildeo Quando Wilson-Okamura muito bem destaca os diferentes
contextos de atuaccedilatildeo das personagens ele quer com isso mostrar a coerecircncia de
figuras que satildeo proacuteprias a cada discurso O criacutetico mostra ainda o conteuacutedo da Roda
arranjado verticalmente
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Tabela 1- The spokes of Virgilrsquos Wheel
Lowly (humilis) style Middle (mediocris) style Weighty (grauis) style
Shepherd at ease Farmer Soldier ruler
Tityrus Meliboeus Triptolemus Coelius Hector Ajax
Sheep Cow Horse
Crool Plow Sword
Pasture Field city camp
Beech apple pear Laurel cedar
Fonte Extraiacutedo de Wilson-Okamura 2010 p 91
Com isso Wilson-Okamura demonstra que as colunas da Roda satildeo
organizadas de acordo com os estilos e natildeo de acordo com os gecircneros jaacute que o
objetivo da roda natildeo eacute ditar qual gecircnero deve ser apresentado primeiro mas sim
ensinar o que eacute proacuteprio de cada cenaacuterio de atuaccedilatildeo
Concordamos portanto com o pensamento do criacutetico e destacamos ainda
que os caracteres por ele mencionados devem ser entendidos a partir da Semioacutetica
como figuras que se coadunam para atuaccedilatildeo em cenaacuterios especiacuteficos seja bucoacutelico
didaacutetico ou eacutepico
Embora o esquema circular tripartido de Joatildeo de Garlacircndia tenha recebido o
nome de A Roda de Virgiacutelio muito se tem discutido acerca dos elementos colocados
em seus trecircs aros concecircntricos
Em Literary Names Personal Names in English Literature Alastair Fowler
(2012 p29) discorre acerca dos nomes proacuteprios presentes na Roda de Virgiacutelio Os
nomes citados no estilo grave por exemplo satildeo Hector e Ajax personagens de
Homero (seacutec VIII aC) pois neste estilo cabem nomes lendaacuterios e histoacutericos Por isso
a Eneida a eacutepica virgiliana eacute associada a este estilo9 Enquanto isso Triptolemus e
Coelius (agraves vezes Caelius) nomes referenciados no estilo mediano satildeo nomes
comuns e que portanto de acordo com Fowler assemelham-se ao contexto de um
estilo moderado ainda que os nomes tenham alguma alusatildeo lendaacuteria como no caso
de Triptolemus heroacutei de Elecircusis - regiatildeo da Aacutetica Ocidental na Greacutecia - que foi
9 Aleacutem disso em Virgiacutelio haacute menccedilatildeo a Ajax no Canto I hex 41 e Canto II hex 414 A figura de Heitor (Hector) jaacute aparece em vaacuterios contextos Canto I- hex 99 483 750 Canto II ndash hex 270 275 282 522 Canto III- hex 312 319 343 Canto V- hex 371 Canto VI- hex 166 Canto IX- hex 155 Canto XI- hex 289 Canto XII- hex 440 Aleacutem de Hectoreus em Canto I ndash hex 273 Canto II- hex 543 Canto III- hex 304 488 Canto V- hex 190 634
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agraciado com o dom da agricultura no Hino Homeacuterico a Demeacuteter I10 Diz-se que em
Elecircusis aliaacutes era comum o culto agrave deusa agriacutecola Demeacuteter Triptolemus eacute um nome
portanto relacionado ao contexto da agricultura presente nas Geoacutergicas ainda que
natildeo seja necessariamente uma personagem de Virgiacutelio Em se tratando do estilo
simples seguindo o pensamento de Fowler Tiacutetiro e Melibeu satildeo nomes comuns de
pastores presentes tanto em Teoacutecrito (300-260 aC) poeta grego do Periacuteodo
Heleniacutestico como em Virgiacutelio Fowler aponta assim para o tipo de nomeaccedilatildeo
especiacutefica a partir de cada estilo e seu contexto correspondente o que vai ao encontro
da ideia exposta por Wilson-Okamura a de que os caracteres se moldam a partir de
seu contexto de atuaccedilatildeo
Podemos observar que as obras de Virgiacutelio foram identificadas com os trecircs
tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica A Roda de Virgiacutelio no seacuteculo XIII
mapeando essa identificaccedilatildeo aponta em cada um de seus aros concecircntricos os
caracteres coerentes para cada contexto de atuaccedilatildeo seja ele singelo meacutedio ou
grandiloquente o que deixa entrever que para cada cenaacuterio construiacutedo haacute figuras
especiacuteficas que lhe datildeo corporalidade Com isso entendemos cada estilo como um
efeito de individuaccedilatildeo como uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa depreensiacutevel do
discurso
10 Este eacute um dos quatro hinos homeacutericos mais extensos Satildeo chamados homeacutericos porque pertencem ao gecircnero eacutepico e por apresentarem uma teacutecnica de composiccedilatildeo anaacuteloga agrave obra homeacuterica Na realidade sua autoria eacute desconhecida
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3 A criacutetica virgiliana
31 Alguns comentaacuterios acerca das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida
Na introduccedilatildeo dos seus dois conjuntos de ensaios Vergilrsquos Eclogues e Vergilrsquos
Georgics publicados em 2008 Katharina Volk discorre sobre as diferentes
abordagens acadecircmicas acerca da vida e obra de Virgiacutelio Procuramos destacar aqui
os comentaacuterios que julgamos mais relevantes
Volk (2008) afirma assim que haacute leituras divergentes em relaccedilatildeo agraves trecircs obras
virgilianas e que realizar um panorama geral dos estudos virgilianos eacute uma tarefa
assustadora devido agraves inuacutemeras interpretaccedilotildees No entanto segundo a estudiosa a
discussatildeo da criacutetica virgiliana apesar de divergente e ampla merece destaque Ela
enfatiza entatildeo as abordagens acadecircmicas a partir da deacutecada de 70
Segundo Volk o estudo das Bucoacutelicas e das Geoacutergicas de Virgiacutelio ficaram um
bom tempo agrave margem dos estudos sobre Eneida pois eram obras citadas como
exemplo de menor gecircnero e fruto do trabalho de um poeta jovem As Bucoacutelicas
frequentemente eram citadas como um livro de preparaccedilatildeo para a grande eacutepica a
obra-prima em que a vida e o trabalho de Virgiacutelio alcanccedilaram segundo a criacutetica
tradicional o seu aacutepice Embora o gecircnero bucoacutelico tenha usufruiacutedo de acordo com
Volk periacuteodos de grande popularidade em vaacuterios pontos da histoacuteria da literatura
ocidental os poemas pastoris de Virgiacutelio eram estudados menos frequentemente que
a Eneida e segundo a especialista as publicaccedilotildees sobre a eacutepica virgiliana
ultrapassavam de longe os primeiros poemas Para Volk isso natildeo quer dizer no
entanto que natildeo se tenha nas Bucoacutelicas e Geoacutergicas um trabalho consideraacutevel Ela
destaca portanto os uacuteltimos trinta anos ou mais que foram contemplados com
publicaccedilotildees de grande criacutetica Dentre as publicaccedilotildees de destaque Volk menciona
Coleman (1977) Clausen (1994) e numerosos livros e artigos representativos de
ambas as obras virgilianas
O aumento de publicaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves duas obras consideradas ldquomenoresrdquo
de Virgiacutelio deve-se de acordo com Volk ao desenvolvimento e avanccedilo dos estudos
da Literatura Latina no final do seacuteculo XX e iniacutecio do seacuteculo XXI Hoje apesar da
multiplicidade de abordagens dificultar uma visatildeo geral acerca da obra virgiliana
parece possiacutevel segundo a especialista discernir ao menos duas principais vertentes
criacuteticas na obra do poeta mantuano
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A primeira vertente envolve as leituras que para Volk podem ser chamadas de
ldquoideoloacutegicasrdquo Satildeo as abordagens acadecircmicas baseadas na ideia de que os poemas
de Virgiacutelio foram concebidos para transmitir uma mensagem que o criacutetico de uma
certa forma esforccedila-se para descobrir Nesta mensagem subliminar pode-se
considerar a situaccedilatildeo social e poliacutetica em que a obra foi concebida ou avaliaccedilotildees
criacuteticas acerca da posiccedilatildeo social e poliacutetica de Virgiacutelio Ao poeta assim eacute creditada
uma visatildeo positiva ou otimista natildeo soacute para a vida pastoril apresentada em seu poema
como tambeacutem para a ascendecircncia de Otaviano
A partir da deacutecada de 70 os criacuteticos passaram a ver certa ambivalecircncia e ateacute
certo pessimismo nas Bucoacutelicas Geoacutergicas e Eneida demonstrando que o poeta natildeo
era totalmente a favor da poliacutetica de Otaviano Segundo Virgiacutenia Soares (1984 p 173)
A criacutetica respeitante agrave obra de Virgiacutelio conta cerca de dois mil anos Cada eacutepoca procurou na Eneida o poema que se ajustava agraves suas vivecircncias Por isso tecircm sido tantas e tatildeo diferentes contraditoacuterias mesmo as abordagens interpretativas do poema Eacutepocas houve confiantes no futuro e na funccedilatildeo regeneradora de um estado providencial e organizado que na Eneida viram o poema da glorificaccedilatildeo de Augusto e da missatildeo civilizadora de Roma
Assim as leituras de vertente ldquoideoloacutegicardquo concentraram-se em determinar as
nuances ldquootimistasrdquo ou ldquopessimistasrdquo das obras de Virgiacutelio demonstrando se os
escritos do poeta eram coerentes ou natildeo com o programa poliacutetico de Otaviano No
entanto segundo Volk houve uma reavaliaccedilatildeo dos estudos virgilianos nos uacuteltimos
anos e os especialistas inclinaram-se mais a uma interpretaccedilatildeo positiva em relaccedilatildeo a
Virgiacutelio e a poliacutetica de sua eacutepoca
A segunda vertente por fim envolve as ldquoleituras literaacuteriasrdquo das obras virgilianas
Finalmente para Volk as criacuteticas mais atuais passaram a dar enfoque agraves questotildees
de poeacutetica ou seja em como Virgiacutelio compromete-se a inscrever seus proacuteprios
esforccedilos dentro de uma particular tradiccedilatildeo literaacuteria Nesta abordagem estatildeo presentes
as discussotildees sobre os gecircneros dos poemas a intertextualidade e as diferentes
formas como cada obra se realiza
No entendimento de Volk as duas vertentes podem se complementar Enquanto
as leituras ideoloacutegicas preocupam-se com o papel do poeta e sua visatildeo poliacutetica a
vertente literaacuteria tem muito a dizer sobre os poemas em si Mas segundo ela muito
se tem a dizer ainda sobre a poesia de Virgiacutelio
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Nos anos 70 houve um suacutebito florescimento dos estudos das Bucoacutelicas de
Virgiacutelio especialmente no mundo da Liacutengua Inglesa em que Putnam (1970) publicou
a primeira monografia e logo foi seguido por Berg (1974) Leach (1974) Van Sickle
(1978) e Alpers (1979) assim como a criacutetica de Coleman em 1977 Alguns fatores
contribuiacuteram segundo Volk para esse florescimento primeiro os estudos literaacuterios
assistiram a um aumento consideraacutevel de novas composiccedilotildees da poesia pastoril
(bucoacutelica) o que fez Eleanor W Leach a proclamar no prefaacutecio do seu livro em 1974
uma nova idade de ouro da criacutetica da poesia bucoacutelica segundo inspirados pelo New
Criticism os estudiosos encontraram nos enigmaacuteticos e complexos poemas pastoris
de Virgiacutelio um terreno feacutertil para interpretaccedilotildees simboacutelicas terceiro a leitura
pessimista que se fez da eacutepica virgiliana em relaccedilatildeo agrave poliacutetica de Otaviano na deacutecada
de 60 ampliou o interesse dos estudiosos pelas outras duas obras
Volk cita algumas leituras pessimistas das Bucoacutelicas e entre elas estatildeo
Putnam (1970) Leach (1974) e Segal (1981) com uma coleccedilatildeo de artigos bucoacutelicos
de Teoacutecrito e Virgiacutelio publicados originalmente entre 1965 e 1977 aleacutem de Boyle
(1986) e MOLee (1989) entre outros Estas obras segundo a especialista refletem
uma visatildeo das obras pastoris em geral e das Bucoacutelicas de Virgiacutelio trazem a ideia de
uma fantasia evasiva rural
A ideia de que Virgiacutelio nas Bucoacutelicas tenha criado uma espeacutecie de ldquopaisagem
espiritualrdquo que ele chamou de Arcaacutedia foi formulada por Bruno Snell em 1945 o que
influenciou muitos estudos Entre os pesquisadores representativos desse tipo de
visatildeo utoacutepica das Bucoacutelicas estaacute Friedrick Klinger que em 1967 publicou uma
monografia com seus estudos e reflexotildees acerca da obra de Virgiacutelio
Nas interpretaccedilotildees pessimistas no entanto as Bucoacutelicas nunca apresentam
um mundo bucoacutelico ideal mas sempre um que estaacute em perigo foi perdido ou estaacute
sendo abandonado Os criacuteticos aos poucos foram desconstruindo a visatildeo de Snell
chamando a atenccedilatildeo para contradiccedilotildees poliacuteticas apresentadas nos poemas pastoris
de Virgiacutelio Um latinista alematildeo Ernst Schmidit todavia ataca a Arcaacutedia por um
acircngulo diferente Na visatildeo de Schmidit qualquer leitura ideoloacutegica dos poemas de
Virgiacutelio baseava-se em mal-entendidos As Bucoacutelicas segundo ele natildeo satildeo
panegiacutericos poliacuteticos louvor do campo ou algum estado ideal de vida humana tal
como a Idade de Ouro ou a Arcaacutedia para Schmidit os poemas satildeo sobre a proacutepria
poesia
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Muitas das publicaccedilotildees acadecircmicas das uacuteltimas deacutecadas segundo Volk
preocupavam-se mais com as Bucoacutelicas como poesia ou com o que a obra tem a dizer
sobre poesia do que o posicionamento poliacutetico do poeta Dentre as anaacutelises
formalistas sobre o estilo e a linguagem nas bucoacutelicas de Virgiacutelio incluem-se Lipka
(2001) os ensaios de RGNisbet (1991) e Rumpf (1999) Sobre o jogo etimoloacutegico
das Bucoacutelicas destaca-se ainda o trabalho de OrsquoHara (1996) Para Volk questotildees
acerca do gecircnero bucoacutelico tecircm sido sempre um foco de reflexatildeo nos estudos das
Bucoacutelicas Hubbard (1998 p18) insistindo na construccedilatildeo intertextual do poema
pastoril propocircs que o gecircnero bucoacutelico fosse constituiacutedo pelo posicionamento de cada
poeta diante de seu antecessor Aleacutem disso Volk tambeacutem destaca o estudo de Breed
(2006) que examina nas Bucoacutelicas a suposta cultura da oralidade dos seus pastores
protagonistas Dentre as obras de criacutetica sobre o gecircnero bucoacutelico tambeacutem
sublinhamos o estudo de Joatildeo Pedro Mendes em Construccedilatildeo e arte nas Bucoacutelicas de
Virgiacutelio assim como o trabalho de Alexandre Hasegawa em Os limites do gecircnero
bucoacutelico em Vergiacutelio
No que diz respeito agrave criacutetica das Geoacutergicas destacamos o pensamento de Ruy
Mayer (1948 p 15) que afirma que a exaltaccedilatildeo do trabalho e da prece eacute a essecircncia
filosoacutefica das Geoacutergicas jaacute que a obra
relaciona-se com um objetivo social ou antes poliacutetico restaurar o prestiacutegio da vida agriacutecola um dos pilares da ordem nova que Augusto se propunha a instituir e com um objetivo teacutecnico ensinar os bons preceitos agronocircmicos os meacutetodos racionais da cultura e da exploraccedilatildeo pecuaacuteria envolvendo a doutrina na delicada trama da poesia o meio de transmissatildeo mais apropriado para o gosto e para os usos da eacutepoca
Sublinha-se tambeacutem o pensamento de Santos (2007 p 17) que atesta que ao
cantar a terra e os encantos da vida rural Virgiacutelio talvez pudesse incentivar a volta ao
campo de milhares de camponeses que estavam desempregados na cidade e
consequentemente poder-se-ia ldquorestaurar a agricultura itaacutelica que se encontrava em
plano inferior devido agraves guerras civisrdquo
Mecenas o patrono das letras foi um auxiliar uacutetil e leal de Otaviano Atuando
como intermediaacuterio em vaacuterios assuntos ele foi encarregado da administraccedilatildeo de
Roma Segundo a tradiccedilatildeo foi ele quem sugeriu o poema das Geoacutergicas a Virgiacutelio
pois como afirma-nos Santos (2007 p18) isso corresponderia ao programa poliacutetico
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de Otaviano o retorno agrave agricultura Na eacutepoca a celebraccedilatildeo do trabalho agriacutecola e do
ofiacutecio do lavrador eram bastante significativos jaacute que a agricultura era uma das bases
da grandeza de Roma pois ocupava importante posiccedilatildeo na economia do Oriente e
era uma fonte de riqueza importante para os conquistadores
Para La Penna (1988 p71-72 apud Santos 2007 p18) seria um erro supor
que a obra de Virgiacutelio serviria como guia para os agricultores da Itaacutelia pois o que se
desejava na verdade era um impulso ideal que favorecesse um retorno agrave terra com
confianccedila no trabalho e no Estado romano-itaacutelico Grimal (1992 p123) afirma ainda
que Mecenas eacute apenas o vento que empurra a embarcaccedilatildeo natildeo sendo portanto seu
piloto nem comandante O patrono das letras assim eacute destacado neste pequeno
excerto das Geoacutergicas (Canto II 39-41)
Tuque ades inceptumque una decurre laborem o decus o famae merito pars maxima nostrae Maecenas pelagoque uolans da uela patenti
E tu estaacutes presente e percorre o trabalho empreendido oacute honra Mecenas a melhor parte da minha fama com justiccedila voando daacute velas ao extenso mar
Segundo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos Mecenas mobilizava talentos como
Virgiacutelio e Horaacutecio a serviccedilo do regime propondo-lhes alguns temas Para Santos
(2007 p 21) talvez estes poetas ldquotivessem se agrupado ao redor de Mecenas por
encontrarem nele uma concepccedilatildeo de vida e de arte Provavelmente o novo regime
correspondesse agraves suas aspiraccedilotildeesrdquo
Na visatildeo de Ruy Mayer (1948 p19-20) em relaccedilatildeo agrave composiccedilatildeo das
Geoacutergicas
eacute provaacutevel que o Poeta independente de qualquer incitamento sentisse a gravidade da decadecircncia agriacutecola da Itaacutelia e considerasse obra de utilidade nacional atrair agrave atividade agraacuteria muitos dos que a haviam deixado Mas como opina Skrine nem os propoacutesitos poliacuteticos de Augusto nem a intenccedilatildeo da iniciativa de Virgiacutelio de acudir ao agricultor romano explicam as Geoacutergicas O que explica esta incomparaacutevel obra de arte eacute o amor de Virgiacutelio pelo seu assunto o seu encanto pela Natureza a sua afeiccedilatildeo pelas fainas do campo a sua ternura pelos animais e pelas plantas tudo enfim quanto Saint-Beauve definiu magistralmente no capiacutetulo do seu ceacutelebre estudo que se intitula De quoi se compose le geacutenie et lrsquoart drsquoum Virgile
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No que concerne agrave Eneida a eacutepica virgiliana tem sido considerada pela tradiccedilatildeo
como um canto aos novos tempos do Impeacuterio jaacute que desde o anuacutencio de sua
concepccedilatildeo Otaviano colocava grandes esperanccedilas em seu projeto
Foi na eacutepoca em que Otaviano foi nomeado Ceacutesar Augusto portanto que os
escritores encontraram o que Leoni (1969 p 65) chama de completa harmonia pois
com Otaviano ao poder Roma entrou numa eacutepoca de paz tatildeo almejada depois das
tormentas das guerras civis Os feitos do imperador bem como sua poliacutetica
equilibrada e pacificadora exerceram influecircncia nas artes e literatura Deve-se
destacar que
A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)
Segundo Funari (2001 p 100)
Virgiacutelio foi o grande poeta eacutepico latino tendo composto na eacutepoca do
imperador Augusto (seacuteculo I aC) a Eneida um poema que contava
as origens heroicas do povo romano descendente dos troianos Na
mesma eacutepoca Tito Liacutevio escrevia uma monumental Histoacuteria de Roma
desde a fundaccedilatildeo ateacute Augusto Em ambos os casos as obras
representavam bem os planos de Augusto para glorificar as origens e
a histoacuteria de expansatildeo e domiacutenio romano do mundo
Virgiacutelio trama portanto em sua eacutepica um conjunto de situaccedilotildees e histoacuterias
remetendo-nos agrave nostalgia de tempos lendaacuterios em Roma Narram-se assim as
aventuras de Eneias heroacutei que possui aleacutem da sua origem humana uma linhagem
divina pois sua matildee eacute Vecircnus a deusa do amor O heroacutei em suas aventuras eacute guiado
pelo fatum (destino) que o leva a experimentar e a enfrentar o que lhe eacute apresentado
ao longo do caminho Sabe-se por fim que
A fundaccedilatildeo da nova estirpe que daraacute origem a Roma e ao Impeacuterio eacute uma missatildeo querida pela providecircncia divina reservada a um heroacutei perfeito ao heroacutei piedoso e paciente que se resigna a perder a esposa na ruiacutena de Troia a renunciar ao amor de Dido a obedecer ponto por
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ponto agraves ordens divinas a fim de ser porta-voz da vontade celeste (PARATORE 1983 p 402)
Desde a saiacuteda de Troia incendiada Eneias jaacute sabe que estaacute destinado a fundar
uma ldquoNova Troiardquo Ele seraacute o responsaacutevel por firmar os Penates troianos os deuses
do lar em solo latino Portanto ao longo da narraccedilatildeo o heroacutei tenta fazer cumprir o
seu destino
Dividida em doze cantos a epopeia virgiliana segue o modelo da Iliacuteada e a
Odisseia de Homero Segundo Antonio Medina Rodrigues (2005 p13) embora
Homero tenha sido o modelo os guerreiros da Iliacuteada adotam uma postura narciacutesica
enquanto os guerreiros da Eneida satildeo marcados pela pietas de Eneias
Sobre isso vale aqui destacar o seguinte comentaacuterio de Andreacute Bellesort (1949
p 261 apud THAMOS 2011 p 49 nota 16)
A Eneida natildeo seria o grande poema de Roma e da civilizaccedilatildeo latina se natildeo tivesse um interesse universal Natildeo lhe compreendemos todas as belezas e toda a majestade que nos reportam agraves Antiguidades romanas e ao Impeacuterio mas afora circunstacircncias histoacutericas que poderiacuteamos desconhecer ela eacute uma dessas poucas obras nas quais a menos que a si mesma se renegue a humanidade se reconhece junto com a natureza e em que experimentamos um maravilhoso prazer contemplando o espetaacuteculo de nossas proacuteprias miseacuterias Ela nos oferece com os encantos da mais fina e vigorosa arte emoccedilotildees profundamente humanas
Assim a Eneida eacute ao lado da Iliacuteada e da Odisseia de Homero um dos maiores
eacutepicos da Literatura Universal Soares (1984) nomeia alguns dos estudos sobre a
Eneida The two voices of Virgils Aeneid (A PARRY) Linspiration tragique de
lEneacuteide (W S MAGUINNESS) The pessimism of the eighth Aeneid (CD S
WIESEN) An interpretation of the Aeneid (W CLAUSEN visatildeo pessimista) A study
of Vergils Aeneid (W R JOHNSON) Le poegraveme de linquieacutetude historique (J-P
BRISSON) A outra face de Eneias (W S MEDEIROS) Aeneas desairing (W W
DE GRUMMOND) Para a criacutetica a lista poderia se alongar e ainda assim os criacuteticos
natildeo esgotariam os temas presentes na epopeia latina Segundo a tradiccedilatildeo a eacutepica
virgiliana assim que foi publicada afirmou-se como a mais alta expressatildeo artiacutestica e
cultural que o mundo romano jamais produzira Sobre a poeacutetica de Virgiacutelio na Eneida
destacamos o estudo de Thamos As armas e o varatildeo (2011) Valendo-se dos
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recursos da Poeacutetica o criacutetico analisa a obra de Virgiacutelio do ponto de vista da expressatildeo
buscando o entendimento acerca da vocaccedilatildeo imageacutetica do texto latino
O que pensar portanto desta rede de informaccedilotildees que os bioacutegrafos e
estudiosos de Virgiacutelio reuniram Apesar da curiosidade que a vida e o posicionamento
poliacutetico do poeta possam despertar acreditamos que um estudo sobre a obra de
Virgiacutelio contemplando-se a sua poeacutetica a construccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico
dos textos possa render discussotildees para aleacutem de enigmas e posicionamentos que
satildeo externos ao texto Embora natildeo desmereccedilamos os estudos da vertente ideoloacutegica
valemo-nos daqueles que nos auxiliam a pensar o texto claacutessico do ponto de vista da
expressatildeo contribuindo assim para a nossa leitura semioacutetica das obras virgilianas
32 Reinventando a Roda de Virgiacutelio o poeta e seu trabalho
Segundo Andrew Laird (2010 p 138) a partir de meados de 1600 a palavra
italiana para carreira carriera havia se associado a uma vida de trabalho muito antes
do seu equivalente em inglecircs adquirir o mesmo sentido no iniacutecio do seacuteculo XIX De
fato o primeiro uso atestado de carriera estava relacionado agrave carreira literaacuteria No
prefaacutecio do seu Trattato dellarte e dello stile del dialogo (1662) o historiador e poeta
Pietro Sforza Pallavicino expressou os seus agradecimentos ao Bispo de Fermo por
ter encorajado a sua infacircncia na carreira das letras (la mia puerizia nella carriera
delle lettere)
Carriera como o latim via carraria da qual deriva originalmente denotava uma
estrada de carruagem ou faixa para um veiacuteculo com rodas (carrus) Para Laird (2010
p138) este significado acaba por ter uma ligaccedilatildeo feliz com a ideia de carreira literaacuteria
e segundo o criacutetico eacute improvaacutevel que isso seja coincidecircncia jaacute que na Idade Meacutedia
a mais influente carreira literaacuteria de todas foi visualizada como uma roda - a Rota
Vergilii ou Rota Vergiliana (a Roda de Virgiacutelio) Como jaacute mencionado aqui trata-se
de um arranjo das obras de Virgiacutelio pensando-se em seus respectivos temas e estilos
em um diagrama circular que parece ter se desenvolvido a partir do uso de rota como
sineacutedoque para a imagem claacutessica da carruagem das Musas uma imagem mediada
pelos professores da antiguidade tardia Segundo a tradiccedilatildeo quando Virgiacutelio concebe
seu cursus poeacutetico como um triunfo militar na abertura do Canto III das Geoacutergicas ele
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se vecirc como um vencedor coroado com palmas que vai colocar cem carruagens em
movimento Trata-se de uma passagem em que Virgiacutelio reconhece a importacircncia da
cultura grega para a elevaccedilatildeo literaacuteria latina e tambeacutem anuncia a construccedilatildeo de um
templo para Ceacutesar Augusto
(Geo Canto III hex 10-18) primus ego in patriam mecum modo uita supersit Aonio rediens deducam uertice Musas primus Idumaeas referam tibi Mantua palmas et uiridi in campo templum de marmore ponam propter aquam tardis ingens ubi flexibus errat Mincius et tenera praetexit harundine ripas In medio mihi Caesar erit templumque tenebit illi uictor ego et Tyrio conspectus in ostro centum quadriiugos agitabo ad flumina currus
Serei eu o primeiro se a vida me restar a trazer para a minha paacutetria as musas dos cumes Aocircnios11 O primeiro a trazer para ti oacute Macircntua12 as palmas de Idumea13 Em um campo verdejante edificarei um templo de maacutermore proacuteximo agraves aacuteguas na ribeira onde o majestoso Miacutencio14 vagueia em vagarosas curvas e [que ele] adorna com a delicada cana No meio do meu templo estaraacute Ceacutesar o vencedor e eu revestido da puacuterpura de Tiro15 farei correr cem quadrigas pela margem do rio
Essa passagem foi retomada pela criacutetica como uma sugestatildeo de uma eacutepica
futura Como um todo a tradiccedilatildeo dos Estudos Claacutessicos tem apontado em suas
composiccedilotildees uma progressatildeo da poesia bucoacutelica para a didaacutetica e depois da didaacutetica
para a eacutepica Como jaacute pontuamos aqui por meio das palavras de Wilson-Okamura
(2010) embora seja apontada na Roda uma ideia de progressatildeo entre os gecircneros
bucoacutelico didaacutetico e eacutepico a Roda aponta para uma sequecircncia de diferentes estilos
que configuram cenaacuterios particulares a partir de efeitos de individuaccedilatildeo especiacuteficos
que nos remetem portanto ao cenaacuterio bucoacutelico didaacutetico e eacutepico
Segundo Laird (2010 p139) os leitores medievais prontamente assumiram
como haviam feito os antigos bioacutegrafos de Virgiacutelio que o elevado gecircnero poeacutetico da
11 Referente agrave Aocircnia regiatildeo da Beoacutecia na Antiga Greacutecia Virgiacutelio aqui reconhece a importacircncia da cultura grega para a cultura latina 12 Proviacutencia romana da regiatildeo da Lombardia Cidade natal de Virgiacutelio 13 Regiatildeo entre o mar Morto e o golfo de Aqaba 14 Rio da Itaacutelia com 73 km de extensatildeo 15 Diz-se que a puacuterpura de Tiro da regiatildeo feniacutecia era uma tinta natural de coloraccedilatildeo vermelho-puacuterpura extraiacuteda dos caramujos
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epopeia representava o aacutepice da carreira do poeta Essa interpretaccedilatildeo se deve ao fato
de que o estilo grandiloquente presente na eacutepica deixa entrever imagens de um
cenaacuterio em que figuram temas sublimes e com personagens ilustres Todavia vale
destacar que em termos de expressatildeo as trecircs obras virgilianas estatildeo em peacute de
igualdade O que muda eacute o tratamento temaacutetico presente em cada obra e com isso
os efeitos de individuaccedilatildeo de cada discurso que configuram cenaacuterios especiacuteficos de
atuaccedilatildeo
Para Laird (2010 p 146) os antigos podiam perceber uma progressatildeo nas
obras de Virgiacutelio - ou pelo menos um aumento em sua importacircncia - das Bucoacutelicas
para as Geoacutergicas das Geoacutergicas para a Eneida Como jaacute mencionado aqui essa
progressatildeo na verdade pode ser lida como uma continuidade temaacutetica do curso
poeacutetico de Virgiacutelio se pensarmos na Roda como um diagrama circular em que estatildeo
dispostos os diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo nomeados por Virgiacutelio e que sugestionam
diferentes efeitos de sentido seja o singelo o meacutedio e o grandiloquente
Pensando-se na ideia de continuidade temaacutetica no lugar da ideia de
progressatildeo Laird (2010 p 158-159) afirma que considerar todas as composiccedilotildees de
Virgiacutelio como parte de um uacutenico livro eacute audacioso pois equivale a considerar toda a
sua obra como um texto uacutenico16 Mas isso pode natildeo ser injustificado se pensarmos no
sentido esteacutetico e poeacutetico dos textos a sua forma de expressatildeo Haacute nas trecircs obras
uma diferenccedila temaacutetica e notadamente diferentes efeitos de individuaccedilatildeo que
sugerem cenaacuterios especiacuteficos Todavia se considerarmos os termos da expressatildeo
presentes nas trecircs obras podemos afirmar que as Bucoacutelicas Georgicas e Eneida
constituem uma unidade Aleacutem disso a representaccedilatildeo na Rota Virgiliana de cada um
dos poemas de Virgiacutelio como uma parte de um ciacuterculo inteiro trecircs em um poderia ser
um reflexo da ideia de totalidade17
A Rota Virgiliana serviu portanto como ferramenta para retoacutericos e poetas que
procuraram lembrar e replicar os trecircs estilos virgilianos ao mesmo tempo em que
16 Theodorakopoulos (1997) oferece uma leitura do livro de Virgiacutelio como um texto uacutenico William Dominik tambeacutem discute essa ideia no artigo ldquoNatureza escuridatildeo e sombras no supertexto de Virgiacuteliordquo Phaos 9 17 Carruthers (2008) afirma que a lsquoRoda de Virgiacutelio era claramente um diagrama mnemocircnico que se mantinha desde John of Garland aquiacute referenciado como Joatildeo de Garlacircndia sendo provaacutevel que possa ser fisicamente manipulada como sugerem seus ciacuterculos concecircntricos Para Laird (2010 p 158) a figura da retoacuterica rota Virgili pode fornecer a conexatildeo entre a palavra latina rota roda e a frase em inglecircs pela rotardquo
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contribuiu para transmitir uma identidade subjacente agraves obras de Virgiacutelio Mas para
Laird (2010 p 159) a forma circular da Roda natildeo pocircde linearizar as Bucoacutelicas
Geoacutergicas e Eneida em uma sequecircncia temporal
A Roda de Virgiacutelio dessa forma colocou em movimento a carreira literaacuteria do
poeta do Seacuteculo de Ouro da Literatura Latina servindo como veiacuteculo para o
entendimento de suas obras
57
4 A figuratividade os procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto
41 Textos temaacuteticos e figurativos
Temos por enquanto de trabalhar no sentido de ver como eacute que essa estruturaccedilatildeo atua () organizando o substrato figurativo a partir do qual o texto entrama molda enforma o
tema ou temas que o discurso potildee em andamento [] Ignaacutecio Assis Silva 1995 p 12
Ao colocar em relevo o texto como um objeto de significaccedilatildeo considerando-o
como um todo de sentido dotado de uma estrutura especiacutefica deve-se colocar em
destaque os procedimentos e mecanismos que satildeo responsaacuteveis por sua organizaccedilatildeo
e tessitura
Embora a Semioacutetica Francesa natildeo ignore que o texto seja um objeto histoacuterico
ela procura estudaacute-lo como objeto de significaccedilatildeo e por isso preocupa-se em estudar
os mecanismos e procedimentos que o estruturam e o tramam como uma totalidade
de sentido
De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (1995 p 165-166)
a palavra texto proveacutem do verbo latino texo is texui textum texere que quer dizer tecer Logo da mesma maneira que um tecido natildeo eacute um amontoado desorganizado de fios o texto natildeo eacute um amontoado de frases nem uma grande frase Tem ele uma estrutura que garante que o sentido seja apreendido em sua globalidade que o significado de cada uma de suas partes dependa do todo
A Semioacutetica Francesa concebe o processo de formaccedilatildeo de um texto como um
percurso gerativo que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto
em um processo de enriquecimento semacircntico Em um primeiro momento a
Semioacutetica examina o plano do conteuacutedo e soacute depois vai destacar as especificidades
da expressatildeo e sua relaccedilatildeo com o significado
Dois satildeo os tipos de texto temaacuteticos e figurativos Os primeiros satildeo compostos
predominantemente de temas termos abstratos enquanto os segundos apresentam
preponderantemente figuras ou seja termos concretos
Entende-se tema e figura como dois mecanismos de atuaccedilatildeo do discurso O
tema que eacute abstrato revela um discurso predominantemente natildeo-figurativo como
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satildeo os textos jornaliacutesticos dissertaccedilotildees etc O objetivo destes textos eacute o de informar
explicar ou ainda catalogar A figura por outro lado parte de um tema abstrato para
concretizaacute-lo e com isso produz um discurso predominantemente figurativo Exemplo
disso satildeo os textos literaacuterios e histoacutericos Tema remete-nos portanto ao que eacute da
ordem do abstrato e figura remete-nos agravequilo que eacute concreto
Os textos predominantemente temaacuteticos (textos jornaliacutesticos acadecircmicos)
procuram explicar classificar e ordenar enquanto os textos predominantemente
figurativos (literaacuterios histoacutericos) tecircm uma funccedilatildeo descritiva narrativa poeacutetica O tema
abstrato eacute um investimento semacircntico de ordem conceitual enquanto a figura
corresponde a tudo que eacute perceptiacutevel no mundo natural
Assim a Semioacutetica Greimasiana oferece modelos para a anaacutelise da
significaccedilatildeo na dimensatildeo do discurso procurando demonstrar como os percursos da
significaccedilatildeo se organizam e se combinam a partir de regras sintaacutexicas e semacircnticas
responsaacuteveis pela coerecircncia de um texto Agrave Semioacutetica cabe avaliar como um texto vai
se tornando mais concreto a partir da instalaccedilatildeo de personagens e a introduccedilatildeo de
iacutendices espaccedilotemporais O conteuacutedo de um texto eacute engendrado por um percurso que
vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto manifestando-se assim
por meio de um plano da expressatildeo
Os textos com funccedilatildeo utilitaacuteria informam convencem explicam e documentam
eles tecircm um compromisso com o conteuacutedo e a informaccedilatildeo Enquanto isso os textos
com funccedilatildeo esteacutetica comprometem-se com a expressatildeo
De acordo com Ignaacutecio Assis Silva (1995 p 44)
a semioacutetica natildeo estaacute preocupada com o sentido que eacute da ordem da evidecircncia com o sentido que estaacute aiacute e que natildeo eacute senatildeo efeito de sentido produto em suma A fim de poder passaacute-lo adiante de poder falar dele eacute preciso ver a produccedilatildeo que engendrou esse efeito de sentido ou o processo criador como prefere dizer Cassirer
Ao leitor atento cabe portanto notar que eacute na relaccedilatildeo entre conteuacutedo e
expressatildeo que satildeo gerados os efeitos estiliacutesticos que determinam os elementos
essenciais de um texto
Procuremos entender no pequeno excerto das Geoacutergicas de Virgiacutelio ldquoCanto IIrdquo
hexacircmetros 315 a 345 os procedimentos de figuraccedilatildeo
59
Nec tibi tam prudens quisquam persuadeat auctor tellurem Borea rigidam spirante mouere rura gelu tum claudit hiems nec semine iacto concretam patitur radicem adfigere terrae optima uinetis satio cum uere rubenti candida uenit auis longis inuisa colubris prima uel autumni sub frigora cum rapidus Sol nondum hiemem contingit equis iam praeterit aestas uer adeo frondi nemorum uer utile siluis uere tument terrae et genitalia semina poscunt tum pater omnipotens fecundis imbribus Aether coniugis in gremium laetae descendit et omnis magnus alit magno commixtus corpore fetus auia tum resonant auibus uirgulta canoris et Venerem certis repetunt armenta diebus parturit almus ager Zephyrique tepentibus auris laxant arua sinus superat tener omnibus umor inque nouos soles audent se gramina tuto credere nec metuit surgentis pampinus Austros aut actum caelo magnis Aquilonibus imbrem sed trudit gemmas et frondes explicat omnis non alios prima crescentis origine mundi inluxisse dies aliumue habuisse tenorem
crediderim uer illud erat uer magnus agebat orbis et hibernis parcebant flatibus Euri cum primae lucem pecudes hausere uirumque terrea progenies duris caput extulit aruis immissaeque ferae siluis et sidera caelo nec res hunc tenerae possent perferre laborem si non tanta quies iret frigusque caloremque inter et exciperet caeli indulgentia terras
Que nenhum mestre tatildeo prudente te convenccedila a cavar a riacutegida Terra quando Boacutereas sopra18 Depois o inverno aperta os campos com a geada e nem com a semente lanccedilada permite que a espessa raiz se prenda agrave terra O melhor plantio para as vinhas eacute quando na roacutesea primavera chega a candida ave odiada pelas grandes serpentes sob os primeiros frios do outono quando o impetuoso sol com seus cavalos19 natildeo atingiu o inverno e jaacute o veratildeo ficou para traacutes Sobretudo a primavera uacutetil agrave folhagem dos bosques a primavera uacutetil agraves florestas na primavera as terras se intumescem e exigem as fecundas sementes20
18Ruy Mayer (1948 p 305) destaca em nota ao texto Prudens auctor eacute como se chama o sabichatildeo que sobre todos os assuntos daacute opiniatildeo Fazer a mobilizaccedilatildeo do solo quando sopra o vento Norte (Boacutereas) seria desastroso na Campacircnia onde esse vento eacute frio e violento e onde em terrenos soltos a aacutegua congela por camadas sucessivas tornando impossiacutevel semear ou plantar 19 Personificaccedilatildeo do sol que conduz seus cavalos luminosos para trazer o dia 20Para Ruy Mayer (1948 p 306) o presente excerto do Canto II das Geoacutergicas eacute um hino de maravilhosa perfeiccedilatildeo artiacutestica agraves energias criadoras da primavera apresentando uma elegacircncia e riqueza de formas incomparaacuteveis
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Entatildeo o pai onipotente Eacuteter21 com chuvas fecundas desce sob o colo da feacutertil esposa22 e unindo-se a esse grande corpo alimenta todos os filhos Entatildeo as ramagens dos lugares afastados ressoam com as melodiosas aves e os rebanhos reivindicam Vecircnus23 em dias certos O nutriz campo daacute agrave luz por causa da brisa morna de Zeacutefiro24 as pastagens relaxam os seios um liacutequido suave ultrapassa todas as coisas e com confianccedila as ervas ousam entregar-se aos novos soacuteis e nem o pacircmpano teme os Austros25 que surgem ou a chuva impelida do ceacuteu pelos fortes Aquilotildees26 mas faz brotar os rebentos e estende todas as folhagens Natildeo acreditei que outros dias tenham iluminado na primeira origem do mundo nascente ou que tenham tido outro curso aquilo era primavera no grande orbe vivia a primavera e os Euros27 cessavam os invernosos ventos quando os primeiros animais viram a luz e a teacuterrea progecircnie do homem ergueu a cabeccedila das duras terras as feras foram enviadas para as florestas e os astros para o ceacuteu
Os delicados seres natildeo podiam sofrer esta opressatildeo se tanta tranquilidade natildeo se refugiasse entre o frio e o calor e se a indulgecircncia do ceacuteu natildeo acolhesse as terras
Neste pequeno excerto Virgiacutelio abandona as recomendaccedilotildees acerca das
teacutecnicas de plantaccedilatildeo da vinha para cantar sobre a primavera a estaccedilatildeo do ano em
que a natureza se encontra apta a germinar Trata-se de uma das digressotildees
presentes no texto das Geoacutergicas As terras assim como eacute descrito pelo poeta longe
do frio do inverno e dos impetuosos raios do sol incham-se e preparam-se para
receber as fecundas sementes com a chegada da nova estaccedilatildeo
Ao referir-se agrave primavera o poeta atesta que ela eacute uacutetil agraves aacutervores agraves florestas
aos bosques Ela eacute a proacutepria reproduccedilatildeo o periacuteodo feacutertil da terra e de toda a natureza
A figura da primavera marca um tempo de prosperidade fecundidade e germinaccedilatildeo
Com a chegada da primavera ocorre a uniatildeo entre o Ceacuteu e a Terra e daiacute
nascem todos os seres vivos Nesta estaccedilatildeo ainda o Pai onipotente Eacuteter desce sob
a forma de chuvas fecundas Eacuteter nesta passagem associa-se a Juacutepiter jaacute que
ambos representam o ceacuteu superior assumindo a paternidade de todas as coisas
Podem-se destacar deste excerto algumas figuras que remetem ao tema do
amor da uniatildeo dos seres da fecundidade e a procriaccedilatildeo tais como genitalia semina
21 Eacuteter a personificaccedilatildeo do ceacuteu profundo 22 A terra 23 Vecircnus deusa do amor e da beleza 24 Zeacutefiro o vento da Primavera 25 Austros os ventos 26 Aquilotildees Ventos frios tempestuosos 27 Euro vento leste criador de tempestades
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- hex 324 (sementes fecundas) fecundis imbribus ndash hex 325 (chuvas fecundas)
coniugis laetae - hex 326 (esposa feacutertil)
Atraveacutes destas figuras tem-se a concretizaccedilatildeo de uma ideia abstrata o tema
da fertilidade e prosperidade da natureza No pequeno excerto a Terra e o Eacuteter satildeo
representados como dois amantes em uma relaccedilatildeo amorosa Unem-se para
produzirem a vida
Eacuteter eacute quem alimenta (alit ndash hex 327) ou seja impulsiona a vida e modela os
seres dando-lhes forma e a feacutertil esposa assim o recebe em um grande abraccedilo O
discurso figurativo aponta com isso para a imagem da Terra sendo fecundada
A partir daiacute as melodiosas aves cantam em celebraccedilatildeo a todos os elementos
da natureza e a terra que daacute agrave luz (Parturit ndash hex 330) relaxa com a brisa de Zeacutefiro
o vento da Primavera
Os rebanhos tambeacutem buscam Vecircnus a deusa do amor e da beleza nos dias
certos (Venerem certis repetunt armenta diebus ndash hex329) A figura de Vecircnus
representa aqui a ideia de uniatildeo o periacuteodo propiacutecio para a procriaccedilatildeo dos animais
Os brotos natildeo temem as chuvas nem as tempestades pois estatildeo acolhidos
crescem em seguranccedila e desabrocham A vida portanto eacute criada surgindo novos
ramos novas folhagens e novos seres O mundo nasce e se organiza graccedilas agrave
primavera Menciona-se ainda que na ldquoprimeira origem do mundo nascenterdquo (prima
crescentis origine mundi ndash hex 336) era a primavera que imperava Os primeiros
animais com isso viram a luz as feras povoaram as florestas e os astros o ceacuteu
Deixa-se entrever neste excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas o tema da
fertilidade e prosperidade da natureza pois o arranjo de figuras tais como
ldquoprimaverardquo ldquofecundas sementesrdquo ldquonutriz campordquo ldquoesposa feacutertilrdquo ldquochuvas fecundasrdquo
entre outras concretizam essa ideia A figura da primavera em especial torna o
cenaacuterio propiacutecio ao plantio e agrave procriaccedilatildeo dos animais destacando com isso a forma
como todo o cenaacuterio se modifica com a chegada da nova estaccedilatildeo
Logo as figuras satildeo os elementos concretos de um texto jaacute aos elementos
abstratos chamamos de temas Figura eacute o termo com que podemos designar algo
existente no mundo tais como ldquoprimaverardquo ldquovinhardquo ldquoflorestasrdquo ldquobosquesrdquo sementesrdquo
De acordo com Joseacute Luiz Fiorin (2011 p 91) ldquoa figura eacute todo conteuacutedo de qualquer
liacutengua natural ou de qualquer sistema de representaccedilatildeo que tem um correspondente
perceptiacutevel no mundo naturalrdquo Mas o mundo natural e perceptiacutevel natildeo se refere
apenas ao mundo real mas tambeacutem aos ldquomundos fictiacutecios criados pela imaginaccedilatildeo
62
humanardquo As figuras podem ser dessa forma substantivos concretos verbos que
indicam accedilatildeo ou adjetivos que expressam um atributo fiacutesico das coisas e pessoas do
mundo percebido No que diz respeito ao Tema destaca-se que eacute o termo com que
designamos as palavras e expressotildees que satildeo responsaacuteveis pela explicaccedilatildeo de um
dado ou fato do mundo natural Trata-se de um ldquoinvestimento semacircntico de natureza
puramente conceptual que natildeo remete ao mundo naturalrdquo (FIORIN 2011 p 91) No
pequeno excerto a ideia de fertilidade prosperidade e germinaccedilatildeo da natureza eacute
depreendida pela cadeia de figuras que corroboram para este tema
Os textos figurativos como assinala Fiorin (2011 p 91) ldquocriam um efeito de
realidade jaacute que constroem um simulacro da realidade representando dessa forma
o mundordquo enquanto os textos temaacuteticos ldquoprocuram explicar a realidaderdquo Os discursos
figurativos satildeo eminentemente descritivos e narrativos enquanto os temaacuteticos satildeo
caracterizados pela explicaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo do mundo perceptiacutevel
De acordo com Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 147-149) um texto
literaacuterio
tende a ser predominantemente descritivo ou narrativo afastando-se sponte sua do gecircnero dissertativo pois narraccedilatildeo e descriccedilatildeo pressupotildeem o desenvolvimento de um tema qualquer atraveacutes do recurso baacutesico da figuratividade enquanto a dissertaccedilatildeo procura ao contraacuterio o despojamento figurativo do enunciado a fim de dar relevo ao tema em si mesmo considerado Em outras palavras os gecircneros narrativo e descritivo exigem a manipulaccedilatildeo preponderante de termos concretos e particularizantes ao passo que o gecircnero dissertativo requer principalmente a adoccedilatildeo de conceitos abstratos e generalizantes na composiccedilatildeo do enunciado
Em um texto figurativo como o excerto do ldquoCanto IIrdquo das Geoacutergicas que aqui
selecionamos encontramos sempre um tema que eacute subjacente agraves figuras instaladas
no discurso Toda figura eacute portanto a concretizaccedilatildeo de um determinado tema
abstrato No exemplo aqui citado todas as figuras coadunam-se com a ideia de
prosperidade e fertilidade da natureza remetendo-nos a este tema
Segundo Fiorin (2011 p 92) eacute o niacutevel temaacutetico que daacute sentido ao figurativo
Sobre isso Bertrand (2003 p 215) adverte que ldquoa significaccedilatildeo figurativa ultrapassa
com folga seus significados literais dotando-se de significaccedilotildees abstratas[]rdquo
Os textos que circulam em nossa sociedade satildeo temaacuteticos com algum recurso
figurativo esporaacutedico (discursos poliacuteticos textos filosoacuteficos) ou figurativos recobertos
assim em sua totalidade por figuras (textos literaacuterios e histoacutericos)
Greimas amp Courteacutes (2011 p 210) observam que
63
Quando se tenta classificar o conjunto de discursos em duas grandes classes discursos figurativos e natildeo-figurativos (ou abstratos) percebe-se que a quase totalidade dos textos ditos literaacuterios e histoacutericos pertencem agrave classe dos discursos figurativos Fica entendido entretanto que tal distinccedilatildeo eacute de certa forma ldquoidealrdquo que ela procura classificar as formas (figurativas e natildeo-figurativas) e natildeo os discursos-ocorrecircncias que natildeo apresentam praticamente nunca uma forma em estado puro
Enquanto os textos figurativos assim como vimos no exemplo do excerto das
Geoacutergicas aqui citado constroem cenaacuterios reais com a presenccedila de pessoas animais
cores etc os textos temaacuteticos ao explicarem os fatos do mundo visam agrave
interpretaccedilatildeo de uma dada realidade
De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros em Teoria Semioacutetica do Texto
(2005 p 69) ldquoAos textos de figuraccedilatildeo esporaacutedica opotildeem-se aqueles em que ocorrem
percursos figurativos duradouros que se espalham pelo discurso inteiro e recobrem
totalmente os percursos temaacuteticosrdquo
Em Elementos de Anaacutelise do Discurso Fiorin (2011 p 92) assinala que
ldquoquando se fala em textos figurativos ou temaacuteticos fala-se respectivamente em
textos predominantemente e natildeo exclusivamente figurativos e temaacuteticosrdquo
Ao lermos um texto figurativo observamos portanto que eacute um tema abstrato
que imprime sentido agraves figuras daiacute a necessidade de se encontrar o sentido de um
conjunto de figuras uma vez que estariacuteamos depreendendo o tema subjacente a elas
Com isso todo texto figurativo apresenta dados concretos que veiculam significados
mais abstratos Aleacutem disso uma figura sempre estaraacute relacionada a outras pois juntas
elas criaratildeo um percurso figurativo Logo uma figura por si soacute natildeo tem significado
definido uma vez tomada isoladamente pode sugerir diversas ideias O seu sentido
soacute aparece quando ela eacute combinada a outras figuras visto que em um texto tudo eacute
relaccedilatildeo
Logo para compreendermos o tema de um texto figurativo precisamos
perceber as redes coerentes formadas pelas figuras (isotopia) jaacute que eacute a coerecircncia
entre elas que permite a depreensatildeo do sentido A quebra do encadeamento entre as
figuras pode tornar o texto inverossiacutemil jaacute que seria uma quebra no efeito de sentido
construiacutedo no discurso a menos que o inverossiacutemil apareccedila como um dos efeitos de
sentido a ser suscitado no leitor
64
Na anaacutelise de um texto um tema ou uma figura isolados de nada servem
Torna-se preciso assim que haja um conjunto ou encadeamento de figuras e temas
Dessa forma uma isotopia ou seja a recorrecircncia de temas e figuras na cadeia do
discurso eacute capaz de assegurar a coerecircncia de um texto oferecendo ao leitor um
projeto de leitura
Tendo em vista o excerto do Canto II da Eneida hexacircmetros 707-720
podemos depreender o tema do heroacutei piedoso A Eneida inicia-se in medias res e
Eneias encontra-se com suas naus em pleno Mediterracircneo sete anos apoacutes a queda
de Troia (Canto I) posteriormente eacute lanccedilado agraves costas africanas onde eacute recebido pela
rainha Dido (Canto II) Num banquete ofertado ao heroacutei a rainha pede que Eneias
narre os acontecimentos sobre a destruiccedilatildeo de Troia Tem-se a partir daiacute uma
recordaccedilatildeo de eventos jaacute passados Destacamos entatildeo do Canto II os hexacircmetros
em que o caraacuteter de Eneias aparece em relevo
ergo age care pater ceruici imponere nostrae ipse subibo umeris nec me labor iste quo rescumque cadente unum et commune una salus ambobus erit mihi paruus Iulus sit comes et longe seruet uestigia coniunx uos famuli quae dicam animus est urbe egressis tumulus templumque uestutum desertae Cereris iuxtaque antiqua cipressus religione patrum multos seruata per anos hanc ex diuerso sedem ueniemus in unam Tu genitor cape sacra manu patriosque penatis me bello e tanto digressum et caede recenti attrectare nefas donec me flumine uiuo abluero Agora querido pai vem se colocar em meu pescoccedilo Eu proacuteprio te alccedilarei sobre os ombros e este trabalho natildeo me afetaraacute Onde quer que a sorte caia um soacute e comum perigo uma salvaccedilatildeo haveraacute para ambos a mim o pequeno Iuacutelo28 acompanhe e ao longe a esposa29 siga os passos Voacutes servos com vossas almas atentai no que vou dizer saindo da cidade haacute um tuacutemulo e um velho templo de Ceres30 abandonado e junto um antigo cipreste A religiatildeo dos antepassados preservada por muitos anos Chegaremos neste ponto vindos de diferentes lugares Tu oacute pai carrega os objetos sagrados com a matildeo e os Paacutetrios Penates31 A mim saiacutedo de tatildeo dura guerra e de recente massacre natildeo eacute permitido tocar ateacute que num rio corrente me lave
28 Iuacutelo (Ascacircnio) filho de Eneias e Creuacutesa 29 Creuacutesa esposa de Eneias 30 Ceres deusa da vegetaccedilatildeo e da colheita 31 Paacutetrios Penates os deuses do lar
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Tem-se assim um pequeno trecho do relato eacutepico da tomada de Troia a partir
da narraccedilatildeo de Eneias A perspectiva do heroacutei intensifica as accedilotildees que se passaram
jaacute que se trata da visatildeo daquele que foi vencido O testemunho de Eneias divide-se
em trecircs partes comeccedila-se pela descriccedilatildeo do cavalo de madeira que eacute levado para
dentro da cidade (hex 13- 249) fala-se da batalha noturna (hex 250-558) e
posteriormente da fuga da cidade de Troia (hex 559-803) O relato do heroacutei ao longo
da narrativa destaca o seu comprometimento com a paacutetria a famiacutelia e seu caraacuteter
piedoso No pequeno excerto que aqui mencionamos tem-se a fuga de Eneias
acompanhado do pai Anquises do filho Iuacutelo (Ascacircnio) e da esposa Creuacutesa Todo o
conjunto de figuras deste excerto figurativiza valores de piedade Aleacutem do cuidado
para com o pai carregando-o sobre os ombros pode-se ver a preocupaccedilatildeo com o
filho esposa e outras pessoas do grupo o que indica a dimensatildeo ciacutevica de sua
piedade que abarca tambeacutem os objetos sagrados e os Paacutetrios Penates com o respeito
de natildeo os tocar com a matildeo ensanguentada A presente cena que destacamos (hex
707-720) sintetiza as virtudes que o caraacuteter do heroacutei engloba A tradiccedilatildeo sobre Eneias
aponta que ldquoele era notaacutevel por sua devoccedilatildeo filialrdquo (PEREIRA 2009 p 261) e o
pequeno excerto apresenta figuras que contribuem para a compreensatildeo deste tema
A accedilatildeo de colocar o pai sobre os ombros a preocupaccedilatildeo com as pessoas de seu
grupo esposa e filho bem como o respeito para com os Paacutetrios Penates figurativizam
o caraacuteter do heroacutei que pode ser depreendido no excerto
Diana Luz Pessoa de Barros (2005 p 69) menciona as diferentes etapas da
estruturaccedilatildeo de um texto a figuraccedilatildeo responsaacutevel pela instalaccedilatildeo das figuras eacute o
primeiro niacutevel de especificaccedilatildeo figurativa do tema em que uma ideia abstrata recebe
um investimento figurativo A iconizaccedilatildeo nomeada como ldquoinvestimento figurativo
exaustivo finalrdquo seria a uacuteltima etapa da estruturaccedilatildeo textual e tem o objetivo de
produzir uma ilusatildeo referencial Nessa etapa de acordo com Maacutercio Thamos (2003
p 114) haacute uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem na qual ldquorelacionando o som
com o sentido o poeta procura colocar em relevo aquilo de que fala manifestando o
desejo de fazer que o poema se identifique concretamente com o proacuteprio referenterdquo
Vale ressaltar ainda que essas duas etapas (figuraccedilatildeo rarriconizaccedilatildeo) satildeo fases
da construccedilatildeo figurativa de um texto e que nem todo texto figurativo apresentaraacute esse
investimento particularizante suscetiacutevel de produzir uma ilusatildeo referencial
Para Barros (2005 p 70)
66
Na iconizaccedilatildeo mas tambeacutem nas demais etapas da figurativizaccedilatildeo o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciataacuterio a reconhecer ldquoimagens do mundordquo e a partir daiacute a acreditar na ldquoverdaderdquo do discurso O enunciataacuterio por sua vez crecirc ou natildeo no discurso graccedilas em grande parte ao reconhecimento de figuras do mundo O fazer-crer e o crer dependem de um contrato de veridicccedilatildeo que se estabelece entre enunciador e enunciataacuterio e que regulamenta entre outras coisas o reconhecimento das figuras
Cabe ao leitor atento depreender assim os efeitos de sentido de um texto
Para Fiorin (1995 p 175)
Quem ler os seguintes versos de Os Lusiacuteadas ldquoEm tempo de tormenta e vento esquivordquo ldquoDe tempestade escura e triste prantordquo (V 18 3-4) sem perceber a aliteraccedilatildeo de oclusivas e principalmente do ldquotrdquo teraacute perdido um elemento essencial do texto que eacute o efeito de sentido de fuacuteria da tormenta dado pela articulaccedilatildeo entre a aliteraccedilatildeo no plano da expressatildeo e o conteuacutedo manifestado
O texto literaacuterio apresenta dessa forma uma funccedilatildeo esteacutetica e sua
compreensatildeo exige que se entenda natildeo somente o conteuacutedo mas especialmente os
significados dos seus elementos de expressatildeo
Thamos (2011 p 150) ao mencionar as especificidades do texto figurativo
afirma
A vocaccedilatildeo imageacutetica do texto literaacuterio encontra pois as condiccedilotildees naturais para a sua realizaccedilatildeo quer na narraccedilatildeo quer na descriccedilatildeo que lhe oferecem sempre possibilidades conotativas a partir da figuratividade enquanto por outro lado a dissertaccedilatildeo se constitui na maneira ideal de desenvolvimento do discurso cientiacutefico no qual imperam necessidades denotativas na expressatildeo de um tema
Na leitura de um texto literaacuterio adentramos de imediato em sua figuratividade
pois nele delineiam-se figuras como personagens espaccedilo objetos valores Por meio
da figuratividade assim podemos depreender as dimensotildees figurativas do discurso e
o modo como satildeo engendrados os efeitos de sentido
Bertrand (2003 p 156) referindo-se agrave figuratividade assim esclarece-nos
Qualificaremos de figurativo todo significado todo conteuacutedo de uma liacutengua natural e de maneira mais abrangente de qualquer sistema de representaccedilatildeo (visual por exemplo) que tenha um correspondente no plano do significante (ou da expressatildeo) do mundo natural da realidade perceptiacutevel
67
Com vistas portanto aos recursos da figuratividade presentes na poesia
bucoacutelica didaacutetica e eacutepica procuramos investigar nas trecircs obras de Virgiacutelio o percurso
figurativo e a atuaccedilatildeo dos trecircs tipos de estilo descritos pelos tratadistas antigos o
estilo singelo o meacutedio e o grandiloquente Na Roda esquema circular tripartido das
obras virgilianas satildeo apresentadas as principais figuras que compotildeem o cenaacuterio da
poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica Logo procuramos entender como os diferentes
estilos atuam em cada poema e como eles podem ser depreendidos a partir da
recorrecircncia figurativa presente em cada obra deixando entrever um efeito particular
de individuaccedilatildeo Para isso na anaacutelise das obras virgilianas destacamos a presenccedila
de uma rede de figuras que sugerem um modo proacuteprio de ser e fazer de especiacuteficos
cenaacuterios de atuaccedilatildeo para as Bucoacutelicas o efeito tecircnue que configura um estilo singelo
para as Geoacutergicas o efeito moderado que configura um estilo meacutedio e para a Eneida
um efeito vigoroso que corrobora para a construccedilatildeo do estilo sublime grandiloquente
Assim nosso intento eacute o de compreender na dimensatildeo figurativa de cada excerto
selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise a atuaccedilatildeo dos estilos singelo meacutedio e
grandiloquente Virgiacutelio construiu segundo a tradiccedilatildeo trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo a partir
de trecircs estilos Cabe-nos aqui depreender a caracterizaccedilatildeo presente em cada obra
e com isso depreender os principais temas e figuras da poesia bucoacutelica didaacutetica e
eacutepica
Entendemos que em termos de expressatildeo as trecircs obras apresentam um rico
trabalho com a linguagem Pensando-se primeiramente na caracterizaccedilatildeo presente
nas trecircs obras personagens accedilotildees e ambientaccedilatildeo destacaremos os principais temas
e figuras proacuteprios agraves Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida Com isso procuramos
entender cada estilo como uma construccedilatildeo sistemaacutetica que deixa entrever um efeito
particular de sentido Natildeo perderemos de vista contudo o arranjo particular da
linguagem poeacutetica e portanto tambeacutem procuraremos analisar as obras a partir do seu
plano da expressatildeo
Os temas presentes na poesia eacutepica coadunam-se com um tom elevado
grandiloquente com figuras que deixam entrever um efeito de sentido grandiloquente
Alteram-se os temas altera-se o cenaacuterio e consequentemente o efeito de sentido
sugestionado o estilo Primeiro escolhe-se o tema a ser cantado e soacute entatildeo eacute definido
o cenaacuterio ldquoconvenienterdquo a esse tema O ambiente descrito na poesia eacutepica difere
68
portanto daquele que eacute apresentado em um tom mais singelo como eacute o caso da
poesia de gecircnero bucoacutelico Da Eneida selecionamos um excerto do ldquoVIII Cantordquo (612-
731) em que depreendemos o tema do heroacutei e suas armas de guerra atrelado ao
tema da fundaccedilatildeo e gloacuteria de Roma As figuras utilizadas neste fragmento tramam
cenaacuterios tipicamente eacutepicos em um tom solene
Na poesia bucoacutelica o tema muda e as figuras se alteram Logo altera-se o
efeito pretendido que seraacute tecircnue O locus amoenus pode aparecer na figura de um
rochedo na espessura verde de um pequeno bosque em uma fonte pinheiros olmos
choupos carvalhos cabras ovelhas etc Estas figuras recorrentes na poesia
bucoacutelica virgiliana organizam-se de modo expressivo e particularizam os temas que
abrangem a simplicidade o viver ruacutestico do campo e o oacutecio criativo dos pastores O
estilo singelo aparece portanto subjacente a esse arranjo de figuras A ldquoBucoacutelica Vrdquo
aqui selecionada para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise apresenta um cenaacuterio apraziacutevel para
que os pastores-cantadores Mopso e Menalcas possam cantar seus louvores a
Daacutefnis
Na poesia didaacutetica os temas abrangem um conteuacutedo instrucional e assumem
um tom e um contexto de atuaccedilatildeo moderados No excerto do ldquoIV Cantordquo (1-115) das
Geoacutergicas colocaremos em relevo portanto a ldquodescriccedilatildeo do lugar apraziacutevel para as
abelhasrdquo e o modo como as figuras selecionadas pelo poeta particularizam este tema
no contexto da poesia didaacutetica
Na anaacutelise dos poemas de Virgiacutelio seratildeo destacadas as principais figuras e
temas recorrentes agraves Bucoacutelicas agraves Geoacutergicas e agrave Eneida Aleacutem disso pretende-se
demonstrar o modo como essas figuras se organizam e asseguram um revestimento
figurativo e abstrato dos principais temas bucoacutelicos didaacuteticos e eacutepicos levando em
conta a formaccedilatildeo do sentido poeacutetico e esteacutetico de cada texto e os niacuteveis de estilo
definidos pelos tratadistas antigos pensando-os como efeitos de individuaccedilatildeo
engendrados em cada texto
69
42 A Figuratividade a leitura do poeacutetico
Com os poetas a escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo
que elas contamrdquo
(BRODSKY 1994 p 97)
O poeta e criacutetico russo Joseph Brodsky acredita que natildeo eacute do ofiacutecio do poeta
informar algo mas sim por meio de um arranjo expressivo da linguagem artiacutestica
suscitar no leitor um determinado efeito de sentido A poesia revela-se dessa forma
como ldquouma arte de referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo
(BRODSKY 1994 p 74) Roman Jakobson ao questionar-se sobre a expressividade
poeacutetica vai ao encontro desse raciociacutenio Assim a sua ceacutelebre pergunta ldquoQue eacute que
faz de uma mensagem verbal uma obra de arterdquo (JAKOBSON 1989 p 118-119)
leva-nos a acreditar que toda criaccedilatildeo poeacutetica apresenta um trabalho artiacutestico com a
linguagem jaacute que a palavra artiacutestica ultrapassa o uso comum e ganha um efeito
esteacutetico pois o poeta agrega valor agrave palavra seu elemento material concreto
Cabe-nos a partir disso avaliar quais satildeo os recursos expressivos
evidenciados na leitura de um texto e de que forma os procedimentos da figuraccedilatildeo e
iconizaccedilatildeo aliados a outros expedientes expressivos participam da formaccedilatildeo do
sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto
Para a Semioacutetica Greimasiana o sentido aparece intimamente relacionado com
a linguagem que o estrutura e eacute a partir do reconhecimento das formas presentes em
um texto que apreendemos o arranjo expressivo da linguagem Logo eacute o trabalho
artiacutestico com o plano da expressatildeo que particulariza um texto poeacutetico contrapondo-o
portanto aos outros discursos que possivelmente podem apresentar temas
semelhantes
O arranjo da linguagem poeacutetica longe de transmitir apenas ideias apresenta
recursos expressivos capazes de suscitar um determinado efeito esteacutetico no leitor
Em Linguiacutestica e Comunicaccedilatildeo Jakobson (1989 p 130) declara que ldquoA funccedilatildeo
poeacutetica projeta o princiacutepio de equivalecircncia do eixo de seleccedilatildeo sobre o eixo de
combinaccedilatildeordquo Fica evidente portanto o destaque do linguista para a construccedilatildeo do
sentido poeacutetico e esteacutetico de um texto Em que medida as figuras instaladas em um
discurso satildeo combinadas e revestidas de expressividade Aleacutem disso natildeo podemos
esquecer de que o poeacutetico se enquadra na esfera luacutedica em que o poeta modela as
palavras em uma espeacutecie de brincadeira artiacutestica para assim conferir-lhes um
sentido poeacutetico Para Huizinga (2007 p 133) a poesia
70
[] estaacute para aleacutem da seriedade naquele plano mais primitivo e originaacuterio a que pertencem a crianccedila o animal o selvagem e o visionaacuterio na regiatildeo do sonho do encantamento do ecircxtase do riso Para compreender a poesia precisamos ser capazes de envergar a alma da crianccedila como se fosse uma capa maacutegica e admitir a superioridade da sabedoria infantil sobre a do adulto
Logo o arranjo das palavras quando manipuladas pelo artista pode suscitar
um determinado efeito de sentido no leitor Trata-se de uma brincadeira uma espeacutecie
de jogo com a palavra que em acircmbito poeacutetico pode metamorfosear-se em imagens
do mundo
Ao focalizar o processo de criaccedilatildeo de um texto artiacutestico e ressaltar o modo
como a palavra eacute trabalhada pelo artista deve-se compreender que a palavra poeacutetica
porta sempre um encantamento imageacutetico Acredita-se com isso que o poeta
encontra na palavra o elemento material concreto de que necessita para a criaccedilatildeo
de imagens
Como bem observa Thamos (2003 p 109)
Na busca de expressatildeo para determinado tema o poeta bem como o pintor constroacutei um texto em que a primazia da figura eacute bastante evidente o que potildee em relevo o seu desejo de concretude sua necessidade de procurar dar contorno plasticidade palpabilidade a sua criaccedilatildeo
Como ilustraccedilatildeo desses procedimentos vale destacar a ldquoBucoacutelica IVrdquo de
Virgiacutelio poema em que eacute celebrado o nascimento de uma crianccedila que seraacute o fator
determinante da renovaccedilatildeo dos tempos No poema a natureza alegra-se com esse
nascimento e o proacutespero ambiente campestre assim responde agrave chegada da crianccedila
(Buc IV 23-25)
Ipsae lacte domum referent distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores As cabritinhas por si mesmas levaratildeo agrave casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti oacute crianccedila o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores
71
Nesse exemplo observa-se que a disposiccedilatildeo dos sintagmas no hexacircmetro 25
Ipsa tibi blandos fundent cunabula flores favorece de algum modo a figuratividade
da cena que estaacute sendo descrita uma vez que o termo ldquocunabulardquo (berccedilo) eacute
circundado por ldquoblandosrdquo e ldquofloresrdquo (delicadas flores) ilustrando portanto a ideia
expressa no verso a de que o berccedilo da crianccedila encontra-se ornado por delicadas
flores que nesse contexto podem ser vistas como sinocircnimo de encanto e beleza do
novo mundo que ressurge em consonacircncia ao nascimento dessa crianccedila O verso
destacado favorece agrave representaccedilatildeo icocircnica deixando entrever pelo arranjo particular
da linguagem a imagem de um berccedilo florido pela distribuiccedilatildeo dos termos no verso
Para Greimas (1975 p 12) podemos afirmar que
[] o significante sonoro ndash e graacutefico em menor proporccedilatildeo ndash entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a assumir como verdadeiras as proposiccedilotildees emitidas pelo discurso poeacutetico []
Lembra-nos Octavio Paz que ldquoo poema natildeo explica nem representa apresenta
Natildeo alude agrave realidade pretende ndash e agraves vezes consegue ndash recriaacute-la Portanto a poesia
eacute um penetrar um estar ou ser na realidaderdquo (2012 p 118)
A ilusatildeo ou impressatildeo referencial eacute o termo com que designamos a segunda
etapa dos procedimentos de estruturaccedilatildeo de um texto literaacuterio conhecida por
iconizaccedilatildeo Nesta etapa haacute uma espeacutecie de ecircnfase figurativa do discurso com vistas
a um expediente de criaccedilatildeo de imagens anaacutelogas agrave realidade
Pensando ainda na ldquoBucoacutelica IVrdquo e na exortaccedilatildeo ao nascimento da crianccedila
destacamos os seguintes versos
(Buc IV 60-63) Incipe parue puer risu cognoscere matrem (matri longa decem tulerunt fastidia menses) Incipe parue puer qui non risere parenti Nec deus hunc mensa dea nec dignata cubili est Comeccedila pequeno menino a conhecer a matildee com um sorriso Agrave ela dez meses causaram longos enjoos comeccedila pequeno menino aquele que natildeo sorriu para a matildee nem um deus o julgou digno da sua
mesa e nem uma deusa de seu leito
Os hexacircmetros 60 e 62 relacionam-se expressivamente pelo emprego do
paralelismo ou seja pela repeticcedilatildeo de incipe parue puer que reforccedila assim a
72
homenagem agrave crianccedila Aleacutem disso a aliteraccedilatildeo da oclusiva p em ldquoincipe parue
puerrdquo eacute um fato do plano da expressatildeo que associado ao paralelismo sugere uma
ideia de repeticcedilatildeo e balbucio da matildee para seu filho passando-nos a ideia de uma
cantiga de ninar um acalanto Esses versos pelo arranjo particular da linguagem
criam um efeito de sentido ldquorealidaderdquo ao sugerirem a cena familiar que estaacute sendo
descrita em um tom de ludismo e serenidade
Neste fragmento ao relacionar o som ao sentido o poeta pretende manipular
a linguagem para colocar em destaque aquilo de que fala de modo que a palavra
artiacutestica coincida concretamente com o proacuteprio referente Adverte Thamos (2003 p
114) que ldquoA iconizaccedilatildeo se dirige mais diretamente aos sentidos e estaacute assentada num
pressuposto de representaccedilatildeo realista assumido tanto pelo produtor quanto pelo
receptor do discurso figurativordquo Na ilusatildeo referencial destaca-se portanto a
apresentaccedilatildeo de um efeito esteacutetico evidenciado no texto em que neste caso ldquotoda a
massa sonora do poema eacute viva do ponto de vista criativordquo (LIMA apud THAMOS
2003 p115)
O poeta aacutercade Tomaacutes Antocircnio Gonzaga (2006 p 43 grifos nossos) em uma
evidente alusatildeo ao texto de Virgiacutelio compocircs
Que gosto natildeo teraacute a matildee que toca Quando o tem nos seus braccedilos crsquoo dedinho Nas faces graciosas e na boca Do inocente filhinho Quando Mariacutelia bela O tenro infante jaacute com risos mudos Comeccedila a conhececirc-la
Nesse pequeno trecho de Mariacutelia de Dirceu Parte I Lira XIX nota-se que o
ambiente familiar descrito por Virgiacutelio eacute aludido na liacuterica de Gonzaga que resgatou
algo da sugestatildeo do acalanto do poeta claacutessico
A repeticcedilatildeo quase seguida da oclusiva t nos dois primeiros versos do excerto
acompanhada das nasais n e m deixam entrever uma fala manhosa linguagem
inicial dos pais para com a crianccedila sempre carregada de afetuosidade Aleacutem disso
destaca-se a presenccedila de dois diminutivos que reforccedilam a ideia de uma fala mais
amorosa dentro deste contexto No poema de Gonzaga o jogo sonoro remete-nos agrave
cena que estaacute sendo descrita agrave imagem da matildee conversando com seu filho
A figuratividade eacute portanto uma categoria descritiva que ligada agrave teoria
esteacutetica abarca o figurativo e o natildeo-figurativo (ou abstrato) este uacuteltimo sempre
73
apareceraacute revestido por figuras que o particularizam Nesse sentido no processo de
estruturaccedilatildeo de um texto encontramos o niacutevel da figuraccedilatildeo em que um tema ou seja
um discurso abstrato eacute convertido em figuras e tambeacutem o niacutevel da iconizaccedilatildeo em
que as figuras utilizadas no discurso teriam o poder de se transformar em imagens do
mundo provocando uma ilusatildeo ou impressatildeo referencial que eacute definida como sendo
ldquo[] o resultado de um conjunto de procedimentos mobilizados para produzir efeito de
sentido ldquorealidade []rdquo (GREIMAS COURTEacuteS 2011 p 251)
Como observa Bertrand (2003 p 154) a figuratividade ldquosugere
espontaneamente a semelhanccedila a representaccedilatildeo a imitaccedilatildeo do mundo pela
disposiccedilatildeo das formas numa superfiacutecierdquo Assim um texto classificado como figurativo
vale-se de figuras capazes de representar verbal ou visualmente uma figura do
mundo natural O efeito sugerido por essa representaccedilatildeo pode transmitir ao leitor a
ideia de ldquorealidaderdquo ldquoirrealidaderdquo ou ateacute mesmo ldquosurrealidaderdquo - efeitos especiacuteficos
gerados pelo texto por meio de estrateacutegias discursivas e que satildeo capazes de criar
impressotildees referenciais
Sobre isso Bertrand (2003 p 157) afirma que
A figuratividade se define como todo conteuacutedo de um sistema de
representaccedilatildeo verbal visual auditivo ou misto que entra em
correlaccedilatildeo com uma figura significante do mundo percebido quando
ocorre sua assunccedilatildeo pelo discurso
Logo eacute pertinente observar o modo como as figuras presentes em um texto
podem gerar ilusotildees da realidade produzindo imagens capazes de representar o
mundo natural concreto
De acordo com o conceito de representaccedilatildeo aqui sugerido a figuratividade
incorporaria a criaccedilatildeo de um simulacro com a aparecircncia de verdadeiro estabelecendo
uma noccedilatildeo interdiscursiva entre a realidade e o texto literaacuterio Com vistas agrave dimensatildeo
enunciativa e figurativa da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica em Virgiacutelio foram
selecionados trechos representativos das trecircs obras em que o revestimento particular
da linguagem poeacutetica ganha relevo em que a funccedilatildeo poeacutetica portanto eacute dominante
Ao colocar em destaque a vocaccedilatildeo imageacutetica a poeticidade dos textos o
trabalho apoia-se portanto na noccedilatildeo de figuratividade e procura avaliar o modo como
as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida apresentam e combinam temas e figuras
Busca-se entender portanto os estilos (singelo meacutedio e grandiloquente) como efeitos
de sentido que configuram cenaacuterios de atuaccedilatildeo especiacuteficos
74
ldquoEnquanto manifestaccedilatildeo privilegiada do mais alto poder expressivo que
uma liacutengua pode alcanccedilar versos satildeo o testemunho irretorquiacutevel seja de
soacutelidas construccedilotildees neles plasmadas seja do proacuteprio sistema virtual
que as trouxe agrave vida Este fica por tal modo igualmente imortalizado
graccedilas agrave realizaccedilatildeo plaacutestica e riacutetmica que faculta ao sistema virtualrdquo
(Lima 2003 p100)
ldquoO poema sem deixar de ser palavra e histoacuteria transcende a histoacuteriardquo
(Octavio Paz 2012 p 31)
75
5 Traduccedilotildees notas e anaacutelises
51 BUCOacuteLICA V ldquoMOPSO E MENALCAS OS PASTORES
CANTADORESrdquo
Figura 5 ndash Mopso e Menalcas
Fonte DELLA CORTE Francesco 1996 p 465
76
MENALCAS
Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo
tu calamos inflare leuis ego dicere uersus
hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
MOPSVS
Tu maior tibi me est aequom32 parere Menalca
siue sub incertas Zephyris motantibus umbras
siue antro potius succedimus Aspice ut antrum 5
siluestris raris sparsit labrusca racemis
MENALCAS
Montibus in nostris solus tibi certat Amyntas
MOPSVS
Quid si idem certet Phoebum superare canendo
MENALCAS
Incipe Mopse prior si quos aut Phyllidis ignis 10
aut Alconis habes laudes aut iurgia Codri
incipe pascentis seruabit Tityrus haedos
MOPSVS
32 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aequum Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1967
77
Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi
carmina descripsi et modulans alterna notaui
experiar tu deinde iubeto certet Amyntas 15
MENALCAS
Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae
puniceis humilis quantum saliunca rosetis
iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas
Sed tu desine plura puer successimus antro
MOPSVS
Exstinctum Nymphae crudeli funere Daphnim33 20
flebant (uos coryli testes et flumina Nymphis)
cum complexa sui corpus miserabile nati
atque deos atque astra uocat crudelia mater
Non ulli pastos illis egere diebus
frigida Daphni boues ad flumina nulla neque34 amnem 25
libauit quadrupes nec graminis attigit herbam
Daphni 35tuom Poenos etiam ingemuisse leones
interitum montesque feri siluaeque loquontur36
Daphnis et Armenias curru subiungere tigris
instituit Daphnis thiasos inducere37 Bacchi 30
et foliis lentas intexere mollibus hastas
Vitis ut arboribus decori est ut uitibus uuae
33 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin 34 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nec 35 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 36 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se loquuntur 37 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se et ducere
78
ut gregibus tauri segetes ut pinguibus aruis
tu decus omne tuis Postquam te fata tulerunt
ipsa Pales agros atque ipse reliquit Apollo 35
Grandia saepe quibus mandauimus hordea sulcis
infelix lolium et steriles nascuntur auenae
pro molli uiola pro purpureo narcisso
carduos38 et spinis surgit paliurus acutis
Spargite humum foliis inducite fontibus umbras 40
pastores (mandat fieri sibi talia Daphnis)
et tumulum facite et tumulo superaddite Carmen
DAPHNIS EGO IN SILVIS HINC VSQUE AD SIDERA NOTVS
FORMOSI PECORIS CVSTOS FORMOSIOR IPSE
MENALCAS
Tale tuom carmen nobis39 diuine poeta 45
quale sopor fessis in gramine quale per aestum
dulcis aquae saliente sitim restinguere riuo
Nec calamis solum aequiperas sed uoce magistrum
fortunate puer tu nunc eris alter ab illo
Nos tamen haec quocumque modo tibi nostra uicissim 50
dicemus Daphnim40que tuom41 tollemus ad Astra
Daphnim42 ad Astra feremus amauit nos quoque Daphnis
MOPSVS
An quicquam nobis tali sit munere maius
38 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se carduus 39 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se ldquoTale tuum nobis carmenrdquo 40 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphin 41 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum 42 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Daphnin
79
Et puer ipse fuit cantari dignus et ista
iam pridem Stimichon laudauit carmina nobis 55
MENALCAS
Candidus insuetum miratur limen Olympi
sub pedibusque uidet nubes et sidera Daphnis
Ergo alacris siluas et cetera rura uoluptas
Panaque pastoresque tenet Dryadasque puellas
Nec lupus insidias pecori nec retia ceruis 60
ulla dolum meditantur amat bonus otia Daphnis
Ipsi laetitia uoces ad sidera iactant
intonsi montes ipsae iam carmina rupes
ipsa sonant arbusta laquo Deus deus ille Menalca raquo
Sis bonus o felixque tuis En quattuor aras 65
ecce duas tibi Daphni duas altaria Phoebo
Pocula bina nouo spumantia lacte quotannis
craterasque duo statuam tibi pinguis oliui
et multo in primis hilarans conuiuia Baccho
ante focum si frigus erit si messis in umbra 70
uina nouom43 fundam calathis Ariusia nectar
Cantabunt mihi Damoetas et Lyctius Aegon
saltantis Satyros imitabitur Alphesiboeus
Haec tibi semper erunt et cum sollemnia uota
reddemus Nymphis et cum lustrabimus agros 75
Dum iuga montis aper fluuios dum piscis amabit
dumque thymo pascentur apes dum rore cicadae
semper honos nomenque tuom44 laudesque manebunt
43 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se nouum 44 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tuum
80
Vt Baccho Cererique tibi sic uota quotannis
agricolae facient damnabis tu quoque uotis 80
MOPSVS
Quae tibi quae tali reddam pro carmine dona
Nam neque me tantum uenientis sibilus Austri
nec percussa iuuant fluctu tam litora nec quae
saxosas inter decurrunt flumina uallis
MENALCAS
Hac te nos fragili donabimus ante cicuta 85
haec nos laquo Formosum Corydon ardebat Alexim45 raquo
haec eadem docuit laquo Cuium pecus an Meliboei raquo
MOPSVS
At tu sume pedum quod me cum saepe rogaret
non tulit Antigenes (et erat tum dignus amari)
formosum paribus nodis atque aere Menalca 90
45 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se Alexin
81
52 Traduccedilatildeo e notas da ldquoBucoacutelica Vrdquo
V
Menalcas
Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar
os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre
os olmeiros46 misturados agraves aveleiras47
Mopso
Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo das
sombras incertas dos Zeacutefiros48 agitados ou melhor em uma gruta sigamos Vecirc como
a videira49 silvestre cobriu-a com cachos raros
Menalcas
Em nossos montes soacute Amintas50 disputa contigo
Mopso
Quecirc se o proacuteprio Amintas cantando se esforccedilaria para superar Febo51
46Olmeiro (ou Ulmeiro) aacutervore de grande porte que pode alcanccedilar ateacute 30m de altura sendo portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra 47 Aveleira aacutervore mediterracircnica 48Zeacutefiro Vento oeste responsaacutevel pela brisa suave 49Videira silvestre alusatildeo a Baco o deus do vinho Composiccedilatildeo do locus amoenus 50Amintas pastor e haacutebil muacutesico assim como Mopso e Menalcas 51Febo epiacuteteto para Apolo o deus-sol Filho de Juacutepiter e Latona eacute irmatildeo gecircmeo de Diana a deusa da caccedila Costuma ser lembrado como protetor das artes
82
Menalcas
Comeccedila Mopso primeiro jaacute que tens aquelas chamas de Fiacutelis52 os louvores
de Alcatildeo53 e as disputas de Codro54 Comeccedila Tiacutetiro55 guardaraacute os cabritos que
pastam
Mopso
Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na
casca verde de uma faia56 tu em seguida mandai que Amintas dispute comigo
Menalcas
Assim como o flexiacutevel salgueiro57 cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo
ceacuteltico58 cede agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti
Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta
Mopso
52 Fiacutelis princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado (Demoofonte rei dos atenienses) enforcou-se e foi transformada em amendoeira Conta-se que quando o esposo retornou e soube do ocorrido abraccedilou-se agrave aacutervore que ao perceber o retorno do amado passou a produzir folhas Fiacutelis tambeacutem eacute um nome de pastora que aparece como amada de Dametas e Menalcas na Eacutegloga III bem como de Tiacutersis na Eacutegloga VII 53Alcatildeo companheiro de Heacutercules haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu filho sem o ferir O louvor a Alcatildeo deixa entrever os elogios aos seus feitos natildeo sendo estranho ao gecircnero bucoacutelico pois tambeacutem se cantaraacute posteriormente os feitos do pastor Daacutefnis 54Codro rei ateniense que humildemente sacrificou-se pela paacutetria 55Tiacutetiro pastor 56A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos 57Salgueiro aacutervore de folhas longas 58 Nardo ceacuteltico espeacutecie de planta aromaacutetica conhecida como ldquovaleriana ceacutelticardquo
83
Morto Dafnis59 as Ninfas60 choravam com a cruel morte (voacutes aveleiras e rios
sois testemunhas das Ninfas) quando miseravelmente a matildee abraccedilada ao corpo do
filho chama de crueacuteis os deuses e os astros
Naqueles dias ningueacutem levou os bois para os pastos e para as frescas correntes
oacute Daacutefnis nenhum cavalo provou a aacutegua nem tocou as ervas do pasto
Os montes bravios e os bosques dizem que ateacute os leotildees cartagineses61 choraram
a tua morte Daacutefnis
Daacutefnis foi quem ensinou prender os tigres armecircnios62 no carro Daacutefnis conduziu
as danccedilas de Baco63 e cobriu as maleaacuteveis lanccedilas64 com delicadas folhas
Como as videiras satildeo as gloacuterias para as aacutervores como as uvas satildeo para as
videiras como os touros satildeo para os rebanhos como as searas satildeo para os feacuterteis
campos tu Daacutefnis eacutes a gloacuteria para todos os teus A proacutepria Pales65 e o proacuteprio Apolo66
deixaram os campos depois que os fados te levaram
Nos sulcos em que jogamos tantas vezes a cevada as aveias esteacutereis e o joio
improdutivo nascem Em lugar da delicada violeta e do purpuacutereo narciso67 surge o
paliuacutero pontiagudo68 os cardos e os espinheiros
Espalhai folhas ao chatildeo levai sombras agraves fontes pastores (Daacutefnis manda fazer
isto para si) e fazei um tuacutemulo e no tuacutemulo gravai os versos
Eu sou Daacutefnis conhecido nos bosques daqui ateacute aos astros Guardiatildeo de
formoso rebanho mais formoso sou
Menalcas
Os teus versos admiraacutevel poeta satildeo para noacutes tal como eacute o sono na relva aos
cansados tal como eacute pelo calor extinguir a sede no regato de aacutegua doce Natildeo soacute
59Daacutefnis pastor por excelecircncia e ceacutelebre inventor do gecircnero bucoacutelico Filho de Mercuacuterio e de uma Ninfa da Siciacutelia nasceu em um bosque de loureiros Mopso apresenta um lsquoelogio fuacutenebrersquo ao inventor da poesia pastoril 60 Ninfas divindades que habitam os bosques campos e aacuteguas figurativizam os elementos da natureza que compotildeem o cenaacuterio bucoacutelico 61Leotildees cartagineses leotildees africanos 62Tigres armecircnios o pastor Daacutefnis aparece como espeacutecie de lsquoheroacuteirsquo civilizador 63Baco filho de Semele e Juacutepiter eacute o deus do vinho do oacutecio e do prazer 64Maleaacuteveis lanccedilas lanccedilas enfeitadas com folhas de hera usadas pelas bacantes 65Pales deusa pastoral dos campos cultivados 66Apolo deus das pastagens eacute retomado como na figura de pastor quando apascentou os rebanhos do rei Admeto 67Purpuacutereo narciso planta de flores perfumadas 68Paliuacutero pontiagudo planta espinhosa
84
igualas o mestre69 na flauta mas na voz oacute afortunado rapaz agora seraacutes um outro
como ele Mas por nossa vez cantaremos e elevaremos o teu Daacutefnis aos astros aos
astros levaremos Daacutefnis Daacutefnis tambeacutem nos amou
Mopso
Acaso haveraacute para noacutes algo maior do que semelhante daacutediva E o proacuteprio rapaz
foi digno de ser cantado e estes versos jaacute haacute muito tempo Estimicatildeo70 nos louvou
Menalcas
O cacircndido Daacutefnis admira o desconhecido limiar do Olimpo71 vecirc as nuvens e as
estrelas sob seus peacutes Por isso alegre prazer domina as florestas os campos
restantes Patilde72 os pastores e as jovens Driacuteades73 O lobo natildeo prepara ardis ao
rebanho nem as redes preparam algum engano aos cervos O bom Daacutefnis ama os
oacutecios Os proacuteprios montes agrestes com alegria proferem gritos para os astros As
proacuteprias pedras os proacuteprios bosques entoam versos Um deus ele eacute um deus
Menalcas Oacute que tu sejas bom e favoraacutevel para os teus Eis aqui quatro altares Dois
para ti oacute Daacutefnis dois mais altos para Febo Todo ano ofertarei para ti duas taccedilas
espumantes com leite fresco e duas tigelas com azeite abundante74 Sobretudo
alegrando os festins com transbordante Baco75 ante o fogo se frio estiver agrave sombra
durante colheitas Derramarei nos copos os vinhos ariuacutesos76 um fresco neacutectar
Cantaratildeo para mim Dametas77 e Eacutegatildeo de Licto78 Alfesibeu79 imitaraacute os saacutetiros80
saltitantes Estes ritos para ti sempre existiratildeo seja quando fizermos votos solenes agraves
69Mestre alusatildeo a Daacutefnis pastor e cantor por excelecircncia 70Estimicatildeo pastor 71Olimpo Monte entre a Tessaacutelia e a Macedocircnia onde se acreditava residirem os deuses oliacutempicos 72Patilde deus dos pastores da Arcaacutedia 73Driacuteades ninfas dos bosques 74Azeite abundante oferendas agrave nova entidade rural Daacutefnis aparece como mortal divinizado 75Baco vinho por metoniacutemia 76Vinho ariuacuteso vinho de um promontoacuterio em Quios ilha das Ciacuteclades 77Dametas pastor 78Eacutegatildeo pastor da ilha de Creta 79Alfesibeu pastor 80 Saacutetiros saltitantes entidades hiacutebridas figuras humanas com chifres e patas de bode Personificam a natureza selvagem e os instintos primitivos Acompanham Baco Patilde e as Ninfas
85
Ninfas seja quando purificarmos81 os campos Enquanto o javali amar os cimos do
monte enquanto o peixe amar os rios enquanto as abelhas alimentarem-se de
tomilho e as cigarras de orvalho a honra e o teu nome e os louvores sempre
permaneceratildeo Assim como a Baco e agrave Ceres82 todo ano os agricultores prestaratildeo
votos para ti Tu mesmo solicitaraacutes os votos
Mopso
O que oferecerei a ti que presente por tal canto Pois natildeo me agrada tanto o
silvo que vem do Austro83 nem as praias atingidas pela onda nem os rios que correm
entre vales pedregosos
Menalcas
Primeiro noacutes te presentearemos com esta fraacutegil flauta que nos ensinou que
ldquoCoacuteridon ardia pelo formoso Aleacutexis84rdquo bem como ldquoDe quem pertence o rebanho
Acaso eacute de Melibeu85rdquo
Mopso
E tu Menalcas recebe o cajado que eacute formoso com noacutes iguais e com bronze
o qual embora frequentemente me rogasse Antiacutegenes natildeo levou (e era entatildeo digno
de ser amado)
81 Purificaccedilatildeo dos campos celebraccedilotildees em honra de Ceres 82Ceres deusa protetora das colheitas 83Austro vento teacutepido do sul 84Aleacutexis objeto do desejo do pastor Coacuteridon (alusatildeo agrave Bucoacutelica II) 85Melibeu pastor (alusatildeo ao iniacutecio da Bucoacutelica III)
86
53 FIGURATIVIDADE NA BUCOacuteLICA V ndash anaacutelise do texto
A poesia de gecircnero bucoacutelico destina-se aos assuntos da vida campestre em
que estatildeo presentes a natureza os animais e o pastor de cabras ou ovelhas figura
recorrente e que estaacute em simbiose com o oacutecio e os prazeres do viver ruacutestico do campo
O termo boukolikaacute ldquobucoacutelicardquo em grego refere-se a cantos de boiadeiros No que diz
respeito ao termo έχλογή (eacutecloga ou eacutegloga) trata-se de um adjetivo substantivado
que significa laquoescolharaquo laquopoesia ou trecho escolhidoraquo Soacute na linguagem moderna eacute
que se comeccedilou a empregar este termo como sinocircnimo de idiacutelio isto eacute de composiccedilatildeo
pastoril (BOLEacuteO 1936 p 15) Para Boleacuteo isso se deve a uma influecircncia antiga de
uma etimologia errocircnea segundo a qual laquoeacuteclogaraquo viria de αίξ αιγός cabra e
significaria portanto qualquer coisa como laquocanto ou poema em que entram cabrasraquo
(quando eacute sabido que laquoeacuteclogaraquo vem do verbo έχ-λέγειν escolher) Hoje os dicionaacuterios
modernos referem-se ao vocaacutebulo eacutecloga como sinocircnimo de cantos dialogados entre
pastores
Seacutervio gramaacutetico latino do seacuteculo IV dC em seu In Vergilii Carmina
Commentarii tambeacutem discorre acerca da origem do poema bucoacutelico Para ele as
bucoacutelicas foram assim chamadas a partir dos guardadores de bois Seacutervio entatildeo
menciona que a origem deste tipo de poema estaacute atrelada aos hinos em louvor a Diana
e Apolo Nocircmio no tempo em que o deus apascentou os rebanhos de Admeto Seacutervio
afirma ainda que o poema bucoacutelico foi dedicado pelos pastores aos numes ruacutesticos
tais como Patilde faunos ninfas e saacutetiros
Assim na composiccedilatildeo bucoacutelica geralmente figuram os guardadores de gado
os boieiros ou vaqueiros os pastores de cabra ou de ovelhas que estatildeo sempre
inseridos em um cenaacuterio campesino Os pastores satildeo representados como homens
do campo que vivem singelamente e que estatildeo sempre acompanhados de seus
cajados e rebanhos Aleacutem disso no momento de oacutecio entoam cantigas inocentes na
singela flauta
Em Roma coube a Virgiacutelio as primeiras composiccedilotildees pastoris Nas Bucoacutelicas
coleccedilatildeo de poemas publicados entre 42 e 37 aC ao buscar motivos nos Idiacutelios de
Teoacutecrito poeta siracusano do Periacuteodo Heleniacutestico (seacutec III aC) tambeacutem conhecido
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tradicionalmente como o fundador do gecircnero bucoacutelico Virgiacutelio criou ambientaccedilotildees e
personagens valendo-se de uma linguagem repleta de elementos figurativos
A tradiccedilatildeo claacutessica atribui ao siracusano Teoacutecrito a origem do poema bucoacutelico
Girard (apud BOLEacuteO 1936 p 21) ao referir-se agrave poesia pastoril grega menciona o
nome de Teoacutecrito como criador de modelos Mas nos estudos de Boleacuteo afirma-se
que seria errocircneo pensar em Teoacutecrito como uacutenico criador da poesia de gecircnero
bucoacutelico jaacute que o poeta tal como Homero vale-se de uma reminiscecircncia literaacuteria
praticada na Greacutecia Com isso ao mencionar as origens remotas da poesia bucoacutelica
Boleacuteo (1936 p 33) lembra sobre a praacutetica da agricultura (referindo-se assim ao
campo e agrave natureza em geral) e da pastoriacutecia (referindo-se agrave simpatia pelo pastor)
como elemento fundamental para a caracterizaccedilatildeo do povo siciliano e da Siciacutelia tida
pelo criacutetico como a paacutetria por excelecircncia do gecircnero da poesia pastoril Somando-se a
isso Boacuteleo menciona que a poesia bucoacutelica teve na mitologia agreste especialmente
no mito de Daacutefnis sua principal fonte
Os poemas bucoacutelicos de Virgiacutelio apresentam um cenaacuterio em que estatildeo
presentes figuras coerentes ao contexto pastoril Mas Zeacutelia de Almeida Cardoso
(1989 p 66) afirma que ldquoApesar da simplicidade dos temas a linguagem de Virgiacutelio
nas Bucoacutelicas eacute bastante rica em figuras de estilo e elementos ornamentaisrdquo Isso
mostra que a expressatildeo tradicional ldquoestilo simplesrdquo para caracterizar o gecircnero bucoacutelico
pode induzir a conclusotildees precipitadas do ponto de vista da sofisticaccedilatildeo da linguagem
empregada nos poemas Ao nos referirmos ao estilo simples em relaccedilatildeo agrave poesia
bucoacutelica de Virgiacutelio queremos com isso destacar o efeito de sentido depreendido a
partir de uma coerecircncia discursiva O estilo simples se verifica dessa forma na
expectativa gerada pela rede de figuras que eacute recorrente no discurso sendo capaz de
construir um especiacutefico efeito de sentido partindo da caracterizaccedilatildeo do tipo de
personagens e ambientaccedilatildeo proacuteprios da poesia bucoacutelica
O pastor o protagonista do cenaacuterio bucoacutelico aleacutem de se deleitar com a vida
ruacutestica do campo desfrutando do oacutecio tambeacutem participa com seu engenho e arte da
composiccedilatildeo da cena pastoril Fontenelle (apud BOLEacuteO 1936 p 59) revela assim
que o poema bucoacutelico traz um elemento muito importante o aspecto musical
O costume de fazer acompanhar a poesia de muacutesica ou melhor o haacutebito de
compor versos para serem cantados e acompanhados de um instrumento musical
natildeo era soacute peculiar agrave poesia liacuterica mas agrave poesia em geral de tal forma que antes de
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Hesiacuteodo e Piacutendaro a palavra ldquocriadorrdquo ou ldquopoetardquo era sinocircnimo de cantor de aedo []
(BOLEacuteO 1936 p 59)
Com isso os pastores na poesia de gecircnero bucoacutelico estatildeo ligados agrave terra e agrave
arte de bem dizer e portanto frequentemente aparecem como cantores Sabe-se que
o canto bucoacutelico eacute um dos elementos essenciais nos Idiacutelios pastoris de Teoacutecrito
servindo de modelo a Virgiacutelio na composiccedilatildeo das Bucoacutelicas de nuacutemero I III V VII e
IX
As bucoacutelicas iacutempares apresentam diaacutelogos de pastores com tonalidade
dramaacutetica A seacutetima bucoacutelica por exemplo vale-se de proacutelogos dirigidos ao auditoacuterio
assemelhando-se agraves comeacutedias de Plauto Assim como esta os outros poemas
tambeacutem trabalham com o apelo cecircnico revelando-se fortemente dramaacuteticas
E de Saint-Denis (apud MENDES 1997 p 144) cita algumas dessas
caracteriacutesticas e questiona a investigaccedilatildeo das Bucoacutelicas a partir da encenaccedilatildeo e da
muacutesica Com base em dados cecircnico-musicais o criacutetico procura elementos que
revelem a progressatildeo dramaacutetica que se desenvolve no cenaacuterio bucoacutelico
Para Joatildeo Pedro Mendes (1997 p144)
A muacutesica acompanha sempre a encenaccedilatildeo quer executada pela flauta dos pastores quer murmurada em surdina pela natureza envolvente quer ainda pelos recursos teacutecnicos do verso (anaacuteforas ecos ressonacircncias aliteraccedilotildees e assonacircncias no final do verso ou do hemistiacutequio)
O desafio poeacutetico de motivo liacuterico era praticado entre dois pastores O canto
dialogado constituiacutea o chamado canto amebeu ldquoque significa tomar uma coisa em
troca doutrardquo (BOLEacuteO 1936 p 61) Com o teacutermino dos cantos o pastor vitorioso
recebia um precircmio uma flauta pastoril ou um cajado por exemplo
Ao definir os antecedentes do desafio poeacutetico Luiacutes da Cacircmara Cascudo (2005)
tambeacutem menciona os versos improvisados que os romanos chamaram de
amoeboeum carmen ou seja canto amebeu que ldquoera alternado e os interlocutores
deviam responder com igual nuacutemero de versosrdquo (2005 p 185-186)
Em seu ensaio Virgiacutelio e os cantadores (2005) Mauro Mendes apresenta-nos
uma definiccedilatildeo para o concurso ou desafio poeacutetico entre pastores
Enquanto cuidavam dos rebanhos os pastores costumavam promover disputas entre si para ver quem era o melhor na arte de cantar e fazer versos Plessis sem nenhum preconceito chama a este tipo de
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disputa de ldquoconcurso poeacuteticordquo (concours poeacutetique) o qual se realizava sob a observaccedilatildeo de um juiz Iniciada a disputa os dois rivais se alternavam cantando estrofes que deviam ter o mesmo nuacutemero de versos tendo o segundo improvisador a obrigaccedilatildeo de se manter dentro do tema proposto pelo primeiro quer o contradizendo quer o enriquecendo com variaccedilotildees O primeiro improvisador (repentista) tanto podia se manter dentro de um mesmo tema durante vaacuterias estrofes quanto podia mudaacute-lo bruscamente criando assim dificuldades para o segundo Este tipo de desafio era denominado canto ldquoamebeurdquo (canto alternado) (MENDES 2005 p 16-17)
A ldquoV Bucoacutelicardquo concentra-se no canto alternado entre dois amigos pastores
Menalcas e Mopso que se encontram em um cenaacuterio campestre para juntos
celebrarem o pastor miacutetico Daacutefnis e por extensatildeo o proacuteprio gecircnero bucoacutelico De
acordo com Joatildeo Pedro Mendes (1997 p 236) o canto amebeu existe neste poema
todavia em um tom muito diferente pois natildeo haacute o compromisso da aposta entre os
dois pastores-cantadores Aleacutem disso apresentam-se trechos longos elaborados
que visam o mero prazer de recitar
Logo a composiccedilatildeo do universo pastoril seraacute feita gradualmente a partir da fala
dos personagens-pastores O poema inicia-se com a fala de Menalcas (hex 1-3) que
apresenta a descriccedilatildeo do locus amoenus
MENALCAS
Cur non Mopse boni quoniam conuenimus ambo tu calamos inflare leuis ego dicere uersus hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
Por que Mopso jaacute que nos encontramos e sendo bons os dois - tu em soprar os leves caniccedilos eu em dizer versos - natildeo nos reunimos e nos sentamos aqui entre os olmeiros misturados agraves aveleiras
Nestes versos Menalcas convida o pastor Mopso para sentar-se entre os
olmeiros e as aveleiras O Olmeiro (ou Ulmeiro) eacute uma aacutervore de grande porte e
portanto convidativa aos pastores devido agrave sombra Era comum aos pastores no
momento de oacutecio desfrutarem da sombra de uma frondosa faia enquanto tocavam a
singela flauta Trata-se de uma temaacutetica recorrente na poesia de gecircnero bucoacutelico A
descriccedilatildeo do lugar apraziacutevel e favoraacutevel portanto ao canto aparece iconicamente no
hexacircmetro 3
90
Hic corylis mixtas inter consedimus ulmos
Aqui nos sentamos entre os olmeiros misturados agraves aveleiras
Destaca-se deste verso o verbo ldquoconsedimusrdquo (sentamos) que estaacute entre
ldquocorylisrdquo aveleiras e ldquoulmosrdquo olmeiros figurativizando o convite que Menalcas faz a
Mopso o de que deveriam se sentar entre as aveleiras e os olmeiros Nota-se que a
disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso favorece agrave impressatildeo referencial do cenaacuterio
bucoacutelico ou seja agrave percepccedilatildeo da imagem dos dois pastores que sentados entre as
aacutervores cantam a natureza que os cerca
O efeito de sentido simples eacute depreendido aqui a partir da descriccedilatildeo do cenaacuterio
bucoacutelico O lugar elegido pelos pastores eacute o chatildeo ruacutestico de onde se aproveitaraacute a
sombra do olmeiro que se encontra perto das aveleiras Dando continuidade agrave
construccedilatildeo desse efeito temos a fala de Mopso que em resposta a Menalcas (hex
4-7) procura sugerir um outro lugar para o encontro ampliando de tal forma a
descriccedilatildeo do cenaacuterio tipicamente bucoacutelico
MOPSVS
Tu maior tibi me est aequom parere Menalca Siue sub incertas Zephyris motantibus umbras Siue antro potius succedimus Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis
Tu eacutes o mais velho eacute justo submeter-me a ti Menalcas seja debaixo
das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados ou melhor em uma gruta
sigamos Vecirc como a videira silvestre a cobriu com cachos raros
Da fala de Mopso merece destaque o hexacircmetro 5
Siue Sub incertaS ZephyriS motantibuS umbraS
Seja debaixo das sombras incertas dos Zeacutefiros agitados
A repeticcedilatildeo do fonema s ao longo do verso deixa entrever uma sibilacircncia
significativa pois sugere a cena que estaacute sendo descrita a de que as sombras
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proporcionadas pelas aacutervores satildeo inconstantes devido ao sopro dos ventos presente
figurativamente na repeticcedilatildeo da sibilante s O que se pode observar nesse trecho eacute
uma manipulaccedilatildeo artiacutestica da linguagem em que o poeta relaciona o som ao sentido
e procura colocar em destaque agravequilo de que fala O discurso poeacutetico com isso
identifica-se com o proacuteprio referente As palavras de Joseacute Luiz Fiorin (1992 p 21)
vecircm ao encontro desse raciociacutenio
O conteuacutedo precisa unir-se a um plano de expressatildeo para manifestar-
se A expressatildeo principalmente no texto literaacuterio fornece tambeacutem
elementos dotados de valor significativo Esses elementos satildeo
basicamente os efeitos estiliacutesticos da expressatildeo ritmo aliteraccedilotildees
assonacircncias figuras de construccedilatildeo etc
Zeacutefiro eacute o vento oeste a personificaccedilatildeo do sopro sugerido pela aliteraccedilatildeo da
sibilante s no quinto hexacircmetro do poema de Virgiacutelio No quadro O Nascimento de
Vecircnus de Sandro Botticelli o sopro do Zeacutefiro permite que Vecircnus deusa do amor e da
beleza aproxime-se da Ilha de Chipre onde deveraacute ser recebida pelas Graccedilas
Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus
Fonte CUMMING Robert 1998 p 22
92
O sopro que em Virgiacutelio aparece como jogo aliterativo na concretude das
palavras dispostas no verso e na tentativa de homologaccedilatildeo do som ao sentido em
Botticelli aparece no movimento pictoacuterico sugerido pela ilusatildeo da presenccedila das ondas
no mar no manto e nos cabelos esvoaccedilantes aleacutem das flores que se desprendem
com o movimento desse sopro Enquanto Virgiacutelio extrai da palavra seu poder
figurador Botticelli exalta a plasticidade dos corpos e sugere a sensaccedilatildeo de
movimento as figuras estatildeo paradas enquanto as linhas se movimentam
Voltando agrave descriccedilatildeo do cenaacuterio bucoacutelico da fala de Mopso ainda merecem
destaque os hexacircmetros 6 e 7
[] Aspice ut antrum Siluestris raris sparsit labrusca racemis
Vecirc como a videira silvestre cobriu a gruta com cachos raros
A disposiccedilatildeo dos sintagmas neste verso contribui para a construccedilatildeo figurativa
da cena que estaacute sendo descrita Nota-se que a videira silvestre ldquolabrusca siluestrisrdquo
estaacute entre os cachos raros ldquoraris racemisrdquo favorecendo agrave construccedilatildeo da imagem da
videira que estaacute circundada por cachos dispersos de uvas
A descriccedilatildeo do locus amoenus mais uma vez aparece na fala do pastor
remetendo-nos ao efeito de sentido simples proacuteprio da poesia bucoacutelica
No decorrer dos cantos alternados entre os amigos pastores o cenaacuterio bucoacutelico
vai sendo tecido ao abrigo de figuras que entrecruzadas favorecem agrave apreensatildeo
temaacutetica do ldquolouvor ao proacuteprio canto bucoacutelicordquo
Logo Menalcas (hex10-12) sugere a Mopso alguns temas mais elevados para
o canto bucoacutelico os louvores de Alcatildeo as disputas de Codro e a histoacuteria de Fiacutelis
afirmando que os cabritos seratildeo guardados por Tiacutetiro Alcatildeo era companheiro de
Heacutercules foi um haacutebil arqueiro que matou a serpente que estava enrolada em seu
filho sem o ferir Codro foi um rei ateniense que se sacrificou por sua paacutetria e Fiacutelis foi
uma princesa da Traacutecia que impaciente por natildeo ver regressar o seu amado enforcou-
se e foi transformada em amendoeira Menalcas apresenta dessa forma alguns
temas um pouco mais elevados para abrir a inspiraccedilatildeo do amigo pastor Mas Mopso
se recorda da temaacutetica bucoacutelica e assim responde
93
(hex 13-15)
MOPSVS
Immo haec in uiridi nuper quae cortice fagi carmina descripsi et modulans alterna notaui experiar tu deinde iubeto certet Amyntas
Longe disso cantando ensaiarei estes versos que haacute pouco escrevi e gravei na casca verde de uma faia tu em seguida mandai que Amintas dispute (comigo)
A casca verde da faia caracteriza o poema como proacuteprio do gecircnero bucoacutelico jaacute
que natildeo haacute lugar mais adequado para o pastor transcrever seus versos
As figuras apresentadas remetem-nos portanto agrave descriccedilatildeo do espaccedilo
campestre que deve ser sempre um lugar apraziacutevel tanto ao oacutecio quanto ao canto
Aleacutem disso a fala de Mopso deixa entrever os temas singelos humildes proacuteprios da
poesia bucoacutelica o que corrobora para a construccedilatildeo do efeito de sentido simples
Menalcas nos hexacircmetros 16 a 19 cita outros elementos que compotildeem o
espaccedilo bucoacutelico e em seguida entra na gruta com Mopso
MENALCAS
Lenta salix quantum pallenti cedit oliuae puniceis humilis quantum saliunca rosetis iudicio nostro tantum tibi cedit Amyntas Sed tu desine plura puer sucessimus antro
Assim como o flexiacutevel salgueiro cede agrave paacutelida oliveira o pequeno nardo ceacuteltico (cede) agraves roseiras puacuterpuras assim pelo nosso julgamento Amintas cede agrave ti Mas abandonas isso menino avancemos para a gruta
O salgueiro citado por Menalcas eacute um arbusto de folhas delgadas com longos
e flexiacuteveis ramos que serviam para a confecccedilatildeo de cestas e outros objetos de uso
rural A oliveira no pequeno excerto ganha o epiacuteteto de paacutelida Isso se deve agrave cor de
sua folhagem jaacute que nos olivais prevalece o tom cinza As figuras apresentadas na
94
fala dos pastores ao tecer um cenaacuterio bucoacutelico por meio de recorrecircncias coerentes
vatildeo criando um efeito de sentido que caracteriza o estilo simples proacuteprio da poesia
pastoril
Tendo transferido o lugar do canto das sombras incertas para a gruta
circundada por cachos de uvas os pastores iniciam o canto O lugar apraziacutevel
escolhido pelos pastores pode ser definido como um iacutendice espacial em que figuram
os elementos responsaacuteveis pela caracterizaccedilatildeo do gecircnero da poesia pastoril Aleacutem
disso nota-se que o iacutendice temporal eacute estaacutetico jaacute que o ambiente e as personagens
tecircm avidez de presente Isso eacute previsto pelo equiliacutebrio sugerido pela composiccedilatildeo de
gecircnero bucoacutelico que natildeo comporta sobressaltos ou rupturas na descriccedilatildeo do locus
amoenus e no tempo que rege as personagens Os pastores exaltam a tranquilidade
que adveacutem da natureza e a partir dela entoam seus versos
Mopso entatildeo principia a celebraccedilatildeo de Daacutefnis em uma espeacutecie de hino
fuacutenebre em que canta o modo como a natureza pranteou o inventor do canto
bucoacutelico Nos hexacircmetros de nuacutemero 20 a 44 observa-se que as Ninfas divindades
que habitam as fontes montes e campos natildeo mais seratildeo lembradas pelo lendaacuterio
cantor bucoacutelico e por isso choram a sua morte Essas divindades figurativizam os
elementos da natureza que geralmente compotildeem todo o ambiente campestre O canto
de Mopso deixa entrever que a morte de Daacutefnis eacute responsaacutevel pela quebra da ordem
natural das coisas jaacute que nenhum animal tocou a erva do pasto ou provou a aacutegua do
regato Devido agrave morte de Daacutefnis os campos tornaram-se infeacuterteis e produziram
plantas esteacutereis e com espinhos o que demonstra a tristeza do cenaacuterio bucoacutelico
Afinal
Dafnis eacute um pastor ou antes o pastor por excelecircncia [] a divindade protectora dos pastores Eacute pastor [] tem um rebanho a seu cargo leva-o a pascer aos campos Aiacute enamoram-se decircle tocircdas as coisas tocircdas as criaturas desde as inanimadas ndash as pedras as aacutervores ndash ateacute aos animais A sua presenccedila anima a proacutepria natureza que vive e sente como um ser humano(BOLEacuteO 1936 p 31-2)
No canto de Menalcas (hex 56-80) tem-se a divinizaccedilatildeo do pastor Daacutefnis jaacute
que ele seraacute cantado agrave semelhanccedila de Baco o deus do vinho e de Ceres a deusa
da colheita Enquanto no canto de Mopso a natureza se entristece com a morte do
pastor no canto de Menalcas a mesma natureza alegra-se com sua divinizaccedilatildeo uma
95
vez que o lendaacuterio pastor seraacute instituiacutedo como divindade campestre devendo ser
lembrado pelos agricultores juntamente com Baco e Ceres
De acordo com Prado (1992 p 55)
Daacutefnis eacute Daacutefnis ou ainda aquele heroacutei dos pastores da Siciacutelia que segundo a lenda inventou o canto bucoacutelico do qual se tornou depois sua figura predileta e mais filho de Hermes e de uma ninfa nasceu no vale dos montes Ereus a matildee o deu agrave luz ou o expocircs num bosque de louros donde o seu nome tendo crescido tornou-se um pastor de rebanhos bovinos que lhe aprazia apascentar cantando e tocando sua flauta de Patilde era belo a ponto de ter sido amado por seres humanos e divinos tais como Patilde Priapo as Ninfas as Musas Apolo Aacutertemis etc ainda jovem veio a morrer e toda a natureza o pranteou haacute vaacuterias versotildees acerca da forma como morreu segundo a versatildeo mais antiga a de Estesiacutecoro apaixonou-se por uma ninfa (Neide Equeneide ou Lica) que o cegou para vingar-se de uma infidelidade por algum tempo Daacutefnis confortou-se com seu proacuteprio canto mas depois num momento de desespero precipitou-se do alto de uma rocha e foi levado aos ceacuteus por Hermes os pastores passaram a oferecer-lhe sacrifiacutecios anualmente no local onde ele teria se precipitado Tal eacute a resposta mais objetiva que se pode dar acerca da identidade de Daacutefnis
Ao questionarmo-nos sobre a escolha do mito de Daacutefnis na ldquoV Bucoacutelicardquo
chegamos em Teoacutecrito jaacute que em seu Idiacutelio I ldquoencontramos o pastor Thyrsis cantando
os infortuacutenios de Daacutefnis golpeado por Afrodite por um amor irresistiacutevel porque se
gabava de ser insensiacutevel a essa classe de paixatildeo Vaacuterias passagens daquele canto
e mesmo alguns versos inteiros foram reproduzidos por Virgiacutelio na Eacutegloga Vrdquo
(PRADO 1992 p 56)
Mas vale ressaltar que no idiacutelio de Teoacutecrito Daacutefnis natildeo eacute divinizado mas sim
ao contraacuterio jaacute que ele ldquobaixa agraves profundezas do Hades ateacute submergir ou dissolver-
se nas aacuteguas do rio Estiacutegio enquanto no relato do pastor virgiliano (vs 56-80) haacute uma
longa celebraccedilatildeo do novo status de Daacutefnis como deus []rdquo (PRADO 1992 p 56
grifo do autor)
Na visatildeo de Prado (1992 p 56-57) Virgiacutelio na ldquoV Bucoacutelicardquo distancia-se da
temaacutetica teocriteana para assim construir um novo mito calcado no discurso histoacuterico
e lendaacuterio dos feitos de Ceacutesar criando com isso uma atmosfera propiacutecia ao
Cesarismo que ficaria cristalizado posteriormente na figura de Otaviano
Segundo Prado (1992) Juacutelio Ceacutesar e Daacutefnis podem ser aproximados no
discurso poeacutetico de Virgiacutelio porque ambos podem ser vistos como heroacuteis lendaacuterios
96
aleacutem do que alguns indiacutecios da histoacuteria do general romano mostram que Ceacutesar
tambeacutem foi divinizado em 42 aC pelos triuacutenviros Aleacutem disso outro intertexto que
torna possiacutevel aliar a histoacuteria lendaacuteria de Ceacutesar com a de Daacutefnis segundo o criacutetico eacute
a sucessatildeo de eventos que se seguem apoacutes a morte do imperador mas descritos em
um texto posterior nas Geoacutergicas (Canto I hex-463-488)
Nas palavras de Prado (1992 p 57)
Quando ele morreu Virgiacutelio nos conta que o sol se escondeu e o povo julgou que fosse o fim dos tempos aleacutem do sol tambeacutem deram sinais a terra as aacuteguas do mar os catildees agourentos as aves mal astradas o Etna vomitou lava ouviram-se clamores de guerra na Germacircnia os Alpes tremeram vozes ressoaram na escuridatildeo da noite e fantasmas apareceram nos bosques animais falaram rios houve que transbordaram ou suspenderam o curso de suas aacuteguas e toda sorte de estranhos acontecimentos deram lugar agrave morte desse heroacutei de Roma
Logo segundo Prado todos esses fatos lendaacuterios quando somados deixam
entrever uma apropriaccedilatildeo de um aspecto cultural e poliacutetico do tempo de Virgiacutelio
Natildeo podemos perder de vista eacute claro que ldquoos noventa hexacircmetros datiacutelicos de
Virgiacutelio que a tradiccedilatildeo dos estudos claacutessicos nos transmite sob a designaccedilatildeo de
Eacutegloga V por vezes subintitulados Daphnis em boas ediccedilotildees satildeo como os de
qualquer uma das outras nove peccedilas da coletacircnea uma fala em liacutengua latinardquo (LIMA
1992 p 59 grifo do autor)
Na visatildeo de Lima (1992) neste canto liacuterico-pastoral de Virgiacutelio deixa-se
entrever um efeito de sentido logo no iniacutecio do primeiro hexacircmetro ndash Cur non
consedimus (Por que natildeo nos sentamos) Cur eacute responsaacutevel por causa de seu
valor latino de forma de interrogaccedilatildeo pelo efeito de sentido ldquoconversa entre
interlocutoresrsquo
com que Virgiacutelio finge poeticamente incorporar a uma simples fala de pastores aquilo que eacute mais propriamente efusatildeo liacuterica ao mesmo tempo em que se torna como que natural o prolongamento dessa efusatildeo graccedilas agrave economia simulada num jogo de pergunta e resposta entre parceiros No plano fonoloacutegico cur 1) antecipa e faz ressoarem as assonacircncias em liacutequidas intensificadas jaacute no hexacircmetro seguinte 2) acentua a oposiccedilatildeo entre a leveza da flauta ruacutestica que parece comunicar-se agrave liquidez natural do seu som simbolizada no fonema [l] e uma certa dureza das vibraccedilotildees do [r] da voz humana do pastor Menalcas tu calamos inflare leuis ego dicere uersus (LIMA 1992 p 63 grifos do autor)
97
Segundo Lima (1992) Daphnis eacute o vocaacutebulo de maior recorrecircncia na ldquoV
Bucoacutelicardquo jaacute que aparece 13 vezes pois tem um relevo especial Para o criacutetico natildeo
haacute duacutevida sobre a adesatildeo entusiasta do poeta em relaccedilatildeo agrave monarquia juliana Mas
se isso deve ser interpretado ldquocomo identificaccedilatildeo pura e simples de uma obra que eacute
produto do imaginaacuterio e do talento com a ideologia dos mortais interessados no ecircxito
de um evento poliacutetico e natildeo primeiro como transfiguraccedilatildeo poeacutetica da vida em
sociedade eacute uma questatildeo de gosto e de sensibilidaderdquo (LIMA 1992 p 63-64)
Com relaccedilatildeo aos expedientes figurativos presentes no poema podem-se
destacar ainda os hexacircmetros 83 e 84 da fala de Mopso que se emociona com o
canto de Menalcas e afirma que nem as aacuteguas que descem pelo vale o deleitam tanto
[] nec quae saxosas inter decurrunt flumina uallis
nem os rios que descem por entre vales escarpados
A distribuiccedilatildeo dos vocaacutebulos contribui iconicamente para a mimetizaccedilatildeo da
cena que estaacute sendo invocada jaacute que ldquofluminardquo rios aparece figurativamente entre
ldquouallis saxosasrdquo vales escarpados Temos dessa forma a imagem do rio construiacuteda
em meio ao vale
Ao apresentar o pastor Daacutefnis lendaacuterio inventor do canto bucoacutelico como tema
principal de toda a trama de figuras a ldquoV Bucoacutelicardquo deixa entrever o tema do ldquolouvor
ao proacuteprio gecircnero pastorilrdquo que eacute revestido por figuras que simbolizam todo o universo
campestre
O estilo pensado aqui como efeito de individuaccedilatildeo construiacutedo no poema eacute
depreendido pela coerecircncia discursiva ou seja pela rede de figuras que vatildeo criando
uma expectativa do dizer A recorrecircncia figurativa potencializa dessa forma o estilo
enunciado porque ele vai aparecer como um efeito de sentido depreendido pelo
contexto do poema Na ldquoV Bucoacutelicardquo portanto temos um estilo simples construiacutedo
como efeito a partir de um cenaacuterio campesino (com uma gruta coberta por cachos de
uvas um olmeiro uma frondosa faia) o canto alternado entre dois pastores (Mopso e
Menalcas) e a menccedilatildeo a deuses que se coadunam com o ambiente campestre
(Daacutefnis Ceres)
98
Buscou-se entender assim como o arranjo de figuras presentes no poema
contribui para a construccedilatildeo da verossimilhanccedila do cenaacuterio bucoacutelico o locus amoenus
o lugar apraziacutevel destinado ao canto e ao oacutecio dos poetas-pastores Ao destacarmos
o jogo aliterativo e posicional das palavras na produccedilatildeo de impressotildees referenciais
procuramos apreender tambeacutem a forma como Virgiacutelio trama as palavras que estatildeo em
andamento no poema remetendo-nos ao sentido poeacutetico e esteacutetico do texto
99
54 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) ldquodescriccedilatildeo do lugar adequado
para as abelhasrdquo
Protinus aerii mellis caelestia dona
exsequar hanc etiam Maecenas adspice partem
Admiranda tibi leuim spetacula rerum
magnanimosque duces totiusque ordine gentis
mores et studia et populos et proelia dicam 5
In tenui labor at tenuis non gloria si quem
numina laeua sinunt auditque uocatus Apollo
Principio sedes apibus statioque petenda
quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti
ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci 10
floribus insultent aut errans bubula campo
decutiat rorem et surgentis atterat herbas
Absint et picti squalentia terga lacerti
pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolocres
et manibus Procne pectus signata cruentis 15
omnia nam late uastant ipsasque uolantis
ore ferunt dulcem nidis immitibus escam
At liquidi fontes et stagna uirentia musco
adsint et tenuis fugiens per graminha riuos
palmaque uestibulum aut igens oleaster inumbret 20
ut cum prima noui ducent examina reges
uere suo ludetque fauis emissa iuuentus
uicina inuitet decedere ripa calori
100
obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos
In medium seu stabit iners seu profluet umor 25
transuersas salices et grandia conice saxa
pontibus ut crebris possint consistere et alas
pandere ad aestiuom86 solem si forte morantis
sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus
Haec circum casiae uirides et olentia late 30
serpylla87 et grauiter spirantis copia thymbrae
floreat inriguom88que bibant uiolaria fontem
Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis
seu lento fuerint aluaria uimine texta
angustos habeant aditus nam frigore mella 35
cogit hiems eademque calor liquefacta remittit
Vtraque uis apibus pariter metuenda neque illae
nequiquam in tectis certatim tenuia cera
spiramenta linunt fucoque et floribus oras
explent conlectumque haec ipsa ad munera gluten 40
et uisco et Phrygiae seruant pice lentius Idae
Saepe etiam effosis si uera est fama latebris
sub terra fouere larem penitusque repertae
pumicibusque cauis exesaeque arboris antro
Tu tamen et leui rimosa cubilia limo 45
unge fouens circum et raras superinice frondis
86 Na ediccedilatildeo estabelecida por Silvia Ottaviano e Gian Biagio Conte (De Gruyter 2013) encontra-se aestiuum Aquiacute optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1956 87 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se serpulla 88 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se inriguumque
101
neu propius tectis taxum sine neue rubentis
ure foco cancros altae neu crede paludi
aut ubi odor caeni grauis aut ubi concaua pulsu
saxa sonant uocisque ofensa resultat imago 50
Quod superest ubi pulsam hiemem sol aureus egit
sub terras caelumque aestiua luce reclusit
illae continuo saltus siluasque peragrant
purpureosque metunt flores et flumina libant
summa leues Hinc nescio qua dulcedine laetae 55
progeniem nidosque fouent hinc arte recentis
excudunt ceras et mella tenacia fingunt
Hinc ubi iam emissum caueis ad sidera caeli
nare per aestatem liquidam suspexeris agmen
obscuramque trahi uento mirabere nubem 60
contemplator aquas dulcis et frondea semper
tecta petunt Huc tu iussos adsperge sapores
trita melisphylla et cerinthae ignobile gramen
tinnitusque cie et Matris quate cymbala circum
ipsae consident medicatis sedibus ipsae 65
intima more suo sese in cunabula condent
Sin autem ad pugnam exierint ndash nam saepe duobus
regibus incessit magno discordia motu
continuoque animos uolgi89 et trepidantia bello
corda licet longe praesciscere namque morantis 70
89 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se uulgi
102
Martius ille aeris rauci canor increpat et uox
auditur fractos sonitus imitata tubarum
tum trepidae inter se coeunt pinnisque coruscant
spiculaque exacuunt rostris aptantque lacertos
et circa regem atque ipsa ad praetoria densae 75
miscentur magnisque uocant clamoribus hostem
ergo ubi uer nactae sudum camposque patentis
erumpunt portis concurritur aethere in alto
fit sonitus magnum mixtae glomerantur in orbem
praecipitesque cadunt non densior aere grando 80
nec de concussa tantum pluit ilice glandis
ipsi per medias acies insignibus alis
ingentis animos angusto in pectore uersant
usque adeo obnixi non cedere dum grauis aut hos
aut hos uersa fuga uictor dare terga subegit ndash 85
hi motus animorum atque haec certamina tanta
pulueris exigui iactu compressa quiescunt
Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo
deterior qui uisus eum ne prodigus obsit
dede neci melior uacua sine regnet in aula 90
Alter erit maculis auro squalentibus ardens
(nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore
et rutilis clarus squamis ille horridus alter
desidia latamque trahens inglorius aluom90
90 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se aluum
103
Vt binae regum facies ita corpora plebis 95
namque aliae turpes horrent ceu puluere ab alto
quom91 uenit et sicco terram spuit ore uiator
aridus elucent aliae et fulgore coruscant
ardentes auro et paribus lita corpora guttis
Haec potior suboles hinc caeli tempore certo 100
dulcia mella premes nec tantum dulcia quantum
et liquida et durum Bacchi domitura saporem
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt
contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont92
instabilis animos ludo prohibebis inani 105
Nec magnus prohibere labor tu regibus alas
eripe non illis quisquam cunctantibus altum
ire iter aut castris audebit uellere signa
Inuitent croceis halantes floribus horti
et custos furum atque auium cum falce saligna 110
Hellespontiaci seruet tutela Priapi
Ipse thymum pinosque93 ferens de montibus altis
tecta serat late circum quoi94 talia curae
ipse labore manum duro terat ipse feracis
figat humo plantas et amicos inriget imbris 115
91 Na estaccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cum 92 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se relinquunt 93 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se tinosque 94 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter encontra-se cui
104
55 GEOacuteRGICAS Canto IV (hex 1-115) Traduccedilatildeo e notas
Continuadamente relatarei os dons celestes do aeacutereo mel95 Considera
tambeacutem Mecenas96 esta parte Para tua admiraccedilatildeo cantarei espetaacuteculos de breves
assuntos e em ordem magnacircnimos comandantes costumes ocupaccedilotildees povos e
combates de toda naccedilatildeo Pequeno o trabalho97 mas natildeo pequena a gloacuteria Se os
deuses contraacuterios o permitem e Apolo98 quando invocado ouve
Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que
natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem
as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo
agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes
Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos99 de ouriccedilados dorsos das feacuterteis
moradas e os melharucos100 outras aves e Procne101 marcada no peito com crueacuteis
matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes102
alimento doce para agrestes ninhos
Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos um
tecircnue riacho fluindo pela relva uma palmeira ou um alto zambujeiro103 sombreie o
vestiacutebulo104 para que quando os novos reis105 conduzirem os primeiros enxames de
abelhas em sua primavera106 e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma
margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com
folhagens hospitaleiras
No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados
salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir
95O mel era visto pelos antigos como um orvalho celeste 96Mecenas o patrono das artes na eacutepoca do reinado de Otaacutevio Augusto 97Trata-se de um assunto humilde Evidencia-se aqui a modeacutestia do tema 98Apolo o deus das artes 99Diz-se que o lagarto fica agrave espreita na entrada das colmeias sendo um de seus inimigos 100Melharuco (ou abelharuco) ave do tamanho de um sabiaacute que se nutre das abelhas e outros insetos 101Procne esposa de Tereu e irmatilde de Filomela Foi transformada em andorinha apoacutes matar o filho e servi-lo ao marido Diz-se que a mancha no peito da andorinha satildeo as marcas do sangue de Iacutetis 102 abelhas 103Zambujeiro oliveira brava 104 A entrada da colmeia 105Segundo o pensamento da eacutepoca as abelhas eram governadas por reis 106O adjetivo possessivo presente em ldquoVere suordquo indica que a primavera eacute a estaccedilatildeo das abelhas sendo mais favoraacutevel a elas
105
as asas ao sol de estio se por acaso Euro107 impetuoso tiver molhado ou submergido
em Netuno108 as que tardam
Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas109 e cheirosos serpotildees110
ao longe e uma abundacircncia de segurelha111 exalando fortemente e que os canteiros
de violetas bebam a uacutemida fonte
Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas
corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas
entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos112
Uma e outra forccedila igualmente deve ser temida pelas abelhas e natildeo sem motivo
agrave porfia113 elas revestem com cera114 as pequenas fendas de suas habitaccedilotildees e
vedam as extremidades com visco e flores e reunida para esses mesmos serviccedilos
[elas] conservam uma cola mais pegajosa do que o visgo e o pez do Ida Friacutegio115
Muitas vezes tambeacutem se eacute verdadeira a fama as abelhas aqueceram o lar em
tocas sob a terra e foram descobertas no interior de pedras porosas e na cavidade
de uma aacutervore carcomida116
Tu poreacutem unta as colmeias cheias de fenda com liso limo aquecendo ao
redor e lanccedila por cima raras117 folhagens E natildeo permitas o teixo perto dos tetos natildeo
queimes ao fogo os vermelhos caranguejos118 natildeo creias em profunda lagoa ou onde
eacute forte o odor da lama ou onde cocircncavas pedras ressoam com uma batida e resulta
o eco repercutido da voz119
107Euro vento do Leste capaz de alcanccedilar as abelhas perdidas (as que tardam) 108Netuno deus romano que preside os mares aqui representa a proacutepria agua 109 Manjerona planta aromaacutetica usada como condimento 110Serpatildeo (ou serpilho) planta aromaacutetica de pequeno porte 111Segurelha erva aromaacutetica planta ornamental tambeacutem usada como condimento 112Os excessos de calor e frio danificam o mel 113 As abelhas trabalham incansavelmente 114As abelhas revestem o interior das colmeias com proacutepolis O termo cera indica a qualidade do proacutepolis substacircncia escura e dura 115Ida friacutegio o monte Ida localizado na Friacutegia antiga regiatildeo no Oeste da Aacutesia Menor 116Diz-se que as abelhas tambeacutem se alojam em esconderijos em cavadas rochas ou nos buracos de aacutervores 117As folhagens natildeo devem ser muito longas pois o ar deve circular entre os ramos 118 Haacute diferentes remeacutedios que satildeo compostos com os caranguejos em brasa mas o odor desta preparaccedilatildeo eacute nocivo agraves abelhas 119As colmeias devem ser instaladas longe do barulho onde natildeo haacute mais eco
106
Quanto ao mais quando o aacuteureo sol expulsou o abatido inverno sob as terras120
e abriu o ceacuteu com luz de veratildeo imediatamente as abelhas percorrem os bosques e
as florestas recolhem as purpuacutereas flores e leves libam a superfiacutecie dos rios Assim
felizes eu natildeo sei por qual doccedilura aquecem os ninhos e a progecircnie depois elas
formam com arte novas ceras e produzem os licorosos meacuteis
Aiacute quando jaacute vires uma multidatildeo saiacuteda da colmeia voar pelo liacutempido estio ateacute
os astros do ceacuteu e admirares uma nuvem escura ser trazida pelo vento contempla
buscam sempre aacuteguas doces e abrigos cobertos de folhagens Espalha tu aiacute os
aromas determinados a melissa121 triturada e a erva comum do chupa-mel122 faze
ao redor soar zumbidos123 e agita os ciacutembalos da Matildee124 As proacuteprias abelhas
pousaratildeo nos lugares preparados125 elas mesmas abrigar-se-atildeo segundo seu
costume no interior da morada126
Mas se saiacuterem ao combate (porque muitas vezes a discoacuterdia de dois reis
sobreveio com grande alvoroccedilo) de longe se podem prever os acircnimos da turba e os
coraccedilotildees que vibram pela guerra127 porque aquele som marcial do rouco bronze
estimula as morosas e a voz que imita os ruidosos sons das trombetas eacute ouvida
Entatildeo agitadas entre si confrontam-se e batem as asas e afiam os ferrotildees com os
bicos e preparam as garras numerosas misturam-se ao redor do rei e ao mesmo
pretoacuterio o inimigo invocam com grandes clamores No momento em que tenham
encontrado clara primavera e descortinados campos lanccedilam-se pelas portas
combate-se Um barulho ressoa no alto ceacuteu misturadas aglomeram-se em um grande
orbe e caem precipitadas O granizo natildeo cai mais denso do ar nem tatildeo grande nuacutemero
de bolotas chove da sacudida azinheira
Os proacuteprios [reis] insignes pelas asas128 em meio aos exeacutercitos revolvem no
pequeno peito os ingentes acircnimos obstinados em natildeo ceder ateacute que o duro vencedor
120O inverno esconde-se nas entranhas da terra 121Mellisa folha para as abelhas ou para o mel 122 Chupa-mel erva de 30 a 50 cm de altura de cor roxa ou amarela cultivada em pastagens ou solo pedregoso 123 Para Virgiacutelio o barulho atrai as abelhas 124A ldquoMatildeerdquo eacute a deusa friacutegia Cibele a grande Matildee que preside toda a natureza Muitas vezes ela eacute representada com ciacutembalos 125 As abelhas entrariam na colmeia por si proacuteprias 126 Colmeia 127 Agitaccedilatildeo que se produz no enxame com a aproximaccedilatildeo do combate 128Os reis se distinguem das demais abelhas pela luminosidade de suas asas
107
obrigou estes ou aqueles a virar as costas na fuga Estes alvoroccedilos dos acircnimos e
estes tatildeo grandes combates se apaziguam reprimidos por um jato de bem pouco
poeira
Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele
que pareceu pior para que por consumir natildeo seja prejudicial deixe que o melhor
reine na desimpedida corte
Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de
ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor
aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre
Dois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo os corpos da plebe pois
umas satildeo disformes e horrendas como o viajante sedento quando vem da espessa
poeira e cospe terra de sua garganta seca outras reluzem e cintilam com fulgor
brilhantes do ouro em corpos mosqueados de manchas iguais
Essa eacute a melhor raccedila dela na estaccedilatildeo certa do ano extrairaacutes os doces meacuteis
natildeo tatildeo doces quanto puros para corrigir o aacutespero sabor de Baco
Mas quando incertos os enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os
favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o
fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles
imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do
acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e
a tutela de Priapo129 do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua
foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado
trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor
dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele
mesmo no solo enterre as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas
129 Priapo filho de Vecircnus e Baco o deus dos jardins Juno fez com que Priapo nascesse deformado Envergonhada Vecircnus mandou-o para Lacircmpsaco cidade da Miacutesia sobre o Helesponto
108
56 FIGURATIVIDADE NO CANTO IV (hex 1-115) anaacutelise do texto
Peter Toohey em seu estudo Epic Lessons an introduction to ancient didatic
poetry (1996) debruccedila-se sobre o tema da poesia didaacutetica grega e romana
demonstrando uma possiacutevel arqueologia da esteacutetica didaacutetica O autor busca assim
por meio de uma anaacutelise comparativa de um grupo de poemas uma certa regularidade
que segundo ele eacute caracteriacutestica da poesia didaacutetica Toohey observou as
composiccedilotildees de Hesiacuteodo Xenoacutefanes Parmecircnides Empeacutedocles Arato Nicandro
Ciacutecero Lucreacutecio Virgiacutelio Oviacutedio e Horaacutecio Segundo o criacutetico todos estes poetas
apresentam alguns traccedilos comuns tais como 1) uma voz forte singular e persuasiva
jaacute que segundo Toohey a poesia didaacutetica requer a presenccedila de uma voz direcionada
a um destinataacuterio 2) um assunto que seja atraente ou sensacional 3) o tipo de verso
pois para o autor o hexacircmetro datiacutelico seria um protoacutetipo da poesia didaacutetica 4) a
simplicidade conceitual e por fim 5) a extensatildeo referindo-se aos 828 versos de O
trabalho e os dias de Hesiacuteodo que se tornou segundo Toohey um modelo para um
livro de versos didaacuteticos
Tendo em vista que ldquotoda obra supotildee o horizonte de uma expectativa ou seja
um conjunto de regras preexistentes para orientar a compreensatildeo do leitor (do
puacuteblico) e permitir-lhe uma recepccedilatildeo apreciativardquo (JAUSS apud LIMA 1983 p 268)
nossa tarefa eacute a de pensar qual seria a expectativa de um discurso que se pretende
didaacutetico
O termo ldquodidaacuteticardquo remete-nos a um contexto de ensino-aprendizagem De
origem grega o termo eacute da famiacutelia do verbo διδάσκω cujo sentido principal eacute ldquofazer
aprender ensinar instruirrdquo
Desde Hesiacuteodo (750 - 650 aC) adotou-se o hexacircmetro datiacutelico como metro
convencional da poesia de gecircnero didaacutetico Todavia Oviacutedio (43 aC -18 dC) utiliza o
diacutestico elegiacuteaco em seus poemas Ars amatoria Medicamina faciei feminae e Remedia
amoris Estes textos colocaram alguns problemas agrave criacutetica tradicional pois satildeo obras
que mesclam caracteriacutesticas que satildeo proacuteprias da poesia didaacutetica com a poesia
elegiacuteaca Haacute por isso estudiosos que apresentam duacutevidas quanto agrave categorizaccedilatildeo
dessas obras ovidianas como pertencentes ao gecircnero da poesia didaacutetica sobretudo
a Ars amatoria e Remedia amoris O que se verifica eacute que uma variada gama de
109
intenccedilotildees didaacuteticas faz com que haja diferenccedilas em maior ou menor grau entre os
diferentes poemas didaacuteticos
Houve por isso vaacuterias tentativas por parte dos criacuteticos em criar uma taxonomia
do gecircnero da poesia didaacutetica130
Seacutervio no seacutec IV dC utiliza no iniacutecio do seu comentaacuterio agraves Geoacutergicas de
Virgiacutelio uma palavra de origem grega - didascalice - para se referir agrave poesia didaacutetica
et hi libri didascalici sunt unde necesse est ut ad aliquem scribantur nam praeceptum et doctoris et discipuli personam requirit unde ad Maecenatem scribit sicut Hesiodus ad Persen Lucretius ad Memmium Estes livros [das Geoacutergicas] satildeo didascaacutelicos por isso a necessidade de que para algueacutem sejam escritos uma vez que o preceito requer a pessoa do mestre e do disciacutepulo [Virgiacutelio] escreve para Mecenas
assim como Hesiacuteodo para Perses e Lucreacutecio para Mecircmio
Assim Virgiacutelio compocircs as Geoacutergicas entre 37 e 29 aC Segundo a tradiccedilatildeo dos
Estudos Claacutessicos a obra apresenta conteuacutedo instrucional sobre agricultura segundo
os pressupostos da poesia didaacutetica Algumas caracteriacutesticas do texto virgiliano dentre
elas o caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a
presenccedila de uma voz poeacutetica didaacutetica que se presta agrave instruccedilatildeo colaboraram para a
particularizaccedilatildeo da obra como gecircnero didaacutetico (TOOHEY 1996 p 15)
Sobre os modelos literaacuterios seguidos por Virgiacutelio sabe-se que as fontes satildeo
sobretudo gregas Hesiacuteodo Xenofonte Arato e Nicandro mas se constatam tambeacutem
as fontes latinas Catatildeo Varratildeo e Lucreacutecio (SANTOS 2007 p 23)
No que concerne agrave poesia didaacutetica e agrave literatura agraacuteria latina Aguilar (2006 p
247) assim expotildee
Por Literatura Agronoacutemica o Agriacutecola en el panorama literario greco-romano se entiende el conjunto de obras que tienen por objeto la exposicioacuten preceptiva de las labores y los trabajos propios de la vida en el aacutembito rural del ager y por tanto del hombre rusticus en oposicioacuten al urbanus Desde esta perspectiva se compreende sin problemas que las obras latinas De agricultura no se circunscriben estrictamente a la agricultura entendida soacutelo en sentido moderno como arte de cultivar la tierra sino que engloben tambieacuten otros
130 Conferir A Dalzell R Martin - J Gaillard Les genres litteacuteraires agrave Rome (Paris 1990) 199-200 Peter Toohey Epic lessons An introduction to ancient didactic poetry (London-New York 1996) Roy K Gibson lsquoDidactic poetry as lsquopopularrsquo form study of imperatival expressions in Latin didactic verse and prosersquo 67-69 In Catherine Atherton (ed) Form and content in didactic poetry (Bari 1997)
110
trabajos y atividades caracteriacutesticos de la economiacutea rural (la res rustica) como la arboricultura la ganaderiacutea la avicultura la apicultura o la administracioacuten misma de la uilla la finca en suelo ruacutestico (AGUILAR 2006 p247)
No Canto I das Geoacutergicas Virgiacutelio menciona a importacircncia do trabalho e a luta
obstinada com a terra No Canto II cantam-se as aacutervores e as vinhas e eacute destacado
o campo como um lugar de felicidade tranquila A terra produz frutos em troca do
esforccedilo despendido pelo homem O Canto III apresenta a raccedila dos animais e as artes
de criaccedilatildeo do gado e no Canto IV Virgiacutelio apresenta a apicultura em um quadro
agriacutecola
Na visatildeo de Elaine C Prado dos Santos (2007 p26)
Com os quatro cantos plantas aacutervores animais e abelhas o poema permite visualizar a gradaccedilatildeo dos niacuteveis da vida diferentes e hierarquizados mostrando que as criaturas se diferenciam Essa ideia eacute compatiacutevel com a filosofia epicurista ou seja agrave medida que se sobe na escala dos seres as criaturas vatildeo se diferenciando pois os organismos ficam mais complexos e compreendem um nuacutemero maior de aacutetomos diferenciados em combinaccedilotildees mais variadas
Vale ressaltar que ao compor um poema sobre temas agraacuterios Virgiacutelio natildeo
quis apenas transmitir alguns conhecimentos teacutecnicos sobre os trabalhos do campo
Se a criacutetica da obra virgiliana se prendesse apenas a esse aspecto temaacutetico
classificaria a obra do poeta mantuano como uma espeacutecie de tratado teacutecnico de
agronomia todavia as Geoacutergicas vatildeo muito aleacutem de um simples compecircndio de
aplicaccedilatildeo praacutetica sobre meacutetodos a serem seguidos na agricultura Aliaacutes dentro dos
preceitos uacuteteis e praacuteticos em cada ramo da agricultura Virgiacutelio seleciona apenas
aqueles que se coadunam com a finalidade artiacutestica Essa seleccedilatildeo eacute portanto
significativa jaacute que estabelece a diferenccedila existente entre a poesia didaacutetica e os
tratados teacutecnicos sobre agricultura
O fiacuteloacutesofo e escritor Secircneca (4 aC-65 dC) tambeacutem opinou acerca da obra
virgiliana afirmando que ldquoO nosso poeta aliaacutes cuidava menos da verdade que da
beleza literaacuteria interessado como estava em proporcionar prazer aos seus leitores e
natildeo em dar liccedilotildees aos homens do campo rdquo (SEcircNECA 2004 p400)
O excerto do ldquoCanto IVrdquo das Geoacutergicas hexacircmetros de 1 a 115 aqui
selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise tem como tema principal a apicultura
mais precisamente a descriccedilatildeo do lugar adequado e seguro para as abelhas
111
Virgiacutelio nos hexacircmetros 1 a 7 faz uma invocaccedilatildeo a Mecenas o patrono das
letras e posteriormente nos hexacircmetros de 8 a 32 fala da situaccedilatildeo das colmeias e
da condiccedilatildeo necessaacuteria para se mantecirc-las em seguranccedila hexacircmetros 33 a 50
Menciona-se ainda o que deve ser feito pelo apicultor com a saiacuteda das abelhas para
pilhar enxamear ou combater hexacircmetros de 51 a 87 Posteriormente eacute destacada a
escolha dos reis quando duas satildeo as espeacutecies das abelhas hexacircmetros 88 a 102 e
como reter as abelhas em um jardim florido hexacircmetros 103 a 115 Seguindo o
pressuposto da poesia didaacutetica o de instruir Virgiacutelio discorre sobre o modo como se
deve cuidar das abelhas No entanto o modo como trama o texto deixa entrever um
trabalho artiacutestico primoroso com a linguagem
O estilo das Geoacutergicas eacute o meacutedio pois a obra trata de assuntos considerados
moderados destinados aos trabalhos no campo do cuidado para com as aacutervores e
plantas da criaccedilatildeo de animais de meacutedio e grande porte e por fim da apicultura Os
temas e figuras apresentados coadunam-se com um tom didaacutetico de ensinamento
Todavia o poema de Virgiacutelio natildeo se restringe apenas agrave instruccedilatildeo Haacute nas Geoacutergicas
um rico trabalho com a linguagem tanto no excerto selecionado para anaacutelise como
na segunda parte do ldquoCanto IVrdquo em que se tem a narrativa sobre Orfeu no mundo
inferior para resgatar a amada Euriacutedice (hex315-558) Deve-se levar em conta que
nas Geoacutergicas muito aleacutem de ldquoinstruirrdquo em um estilo meacutedio e portanto em um tom
didaacutetico Virgiacutelio tambeacutem se utiliza de digressotildees e procura envolvecirc-las
figurativamente em sua obra Dentre as muitas digressotildees jaacute destacamos a do ldquoCanto
IIrdquo em que Virgiacutelio faz uma pausa na descriccedilatildeo do cultivo agraves vinhas (hex259-419) para
realizar um elogio agrave primavera (315-345)
Ao mencionar o estilo meacutedio mediocris stylus fazemos alusatildeo agrave classificaccedilatildeo
feita pelos gramaacuteticos latinos em relaccedilatildeo agraves Geoacutergicas Enquanto as Bucoacutelicas
apresentam-se em um estilo simples humilis stylus tratando de assuntos destinados
ao pastor de cabra ou ovelhas as Geoacutergicas instruem o trabalho e o cultivo do campo
apresentando assuntos considerados moderados Entendemos com isso que os
temas e figuras que aparecem nas duas obras diferem quanto agrave sua funcionalidade
no texto Nos poemas bucoacutelicos encontramos quase sempre uma tematizaccedilatildeo
referente ao louvor do campo e da natureza de modo geral como vimos na ldquoBucoacutelica
Vrdquo Todas as figuras apresentadas nos poemas pastoris portanto coadunam-se com
a ideia de celebraccedilatildeo do ambiente campestre Jaacute nos poemas didaacuteticos das Geoacutergicas
o cenaacuterio ainda eacute o campo mas na tematizaccedilatildeo satildeo apresentadas a importacircncia do
112
trabalho e as diferentes teacutecnicas de cultivo As figuras didaacuteticas alinham-se assim
com o motivo da obra o de instruir
Tendo em vista que o estilo eacute um traccedilo diferencial depreensiacutevel no discurso
podemos afirmar que nas Geoacutergicas portanto a recorrecircncia figurativa que nos
transmite assuntos agriacutecolas por meio da voz de um magister deixa entrever um efeito
de individuaccedilatildeo proacuteprio da poesia didaacutetica o de instruir que permite assim a
manifestaccedilatildeo do estilo meacutedio Pensando-se na recorrecircncia figurativa presente nas
Geoacutergicas destacam-se No Canto I (hex 42-203) as figuras que nos remetem ao
trabalho para o cultivo dos cereais no Canto II (hex 9-258) destacam-se diferentes
tipos de cultivo o das plantas em geral bem como das videiras (hex 259-419) e o de
outras plantas de particular interesse como a oliveira e a macieira (hex420-540) No
Canto III menciona-se a criaccedilatildeo do gado de grande e pequeno porte (hex 49-283 e
284-566) e no Canto IV fala-se da criaccedilatildeo de abelhas e sua natureza (8-280)
No excerto selecionado para leitura traduccedilatildeo e anaacutelise (Canto IV hex 1-115)
tem-se a descriccedilatildeo de um lugar seguro para as abelhas se alojarem Descreve-se
entatildeo uma espeacutecie de paraiacuteso terrestre lugar onde os ventos natildeo sopram as cabras
e ovelhas natildeo saltam a vaca natildeo esmaga as flores e os animais nocivos lagartos e
andorinhas estatildeo distantes Aleacutem disso as colmeias satildeo construiacutedas com meticuloso
cuidado contra os excessos do clima e de outros perigos (SANTOS 2007 p 33)
Com isso nos hexacircmetros de 8 a 32 o leitor eacute conduzido ao lugar mais
adequado para que as abelhas possam fundar a colocircnia Satildeo mencionadas neste
pequeno trecho algumas providecircncias que devem ser tomadas para dar agraves abelhas
as condiccedilotildees necessaacuterias para a produccedilatildeo de mel
(hex 8-32) Principio sedes apibus statioque petenda quo neque sit uentis aditus (nam pabula uenti ferre domum prohibent) neque oues haedique petulci floribus insultent aut errans bubula campo decutiat rorem et surgentis atterat herbas Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis omnia nam late uastant ipsasque uolantis ore ferunt dulcem nidis immitibus escam At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per graminha riuos
113
palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos In medium seu stabit iners seu profluet umor transuersas salices et grandia conice saxa pontibus ut crebris possint consistere et alas pandere ad aestiuom solem si forte morantis sparserit aut praeceps Neptuno immerserit Eurus Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem
Primeiramente habitaccedilatildeo e local devem ser buscados para as abelhas em que natildeo exista entrada aos ventos (pois os ventos proiacutebem levar alimentos agrave casa) e nem as ovelhas e os bodes inquietos ataquem as flores ou a errante novilha pelo campo agite o orvalho e pisoteie as ervas nascentes Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos porque tudo devastam largamente e levam agrave boca as proacuteprias volantes alimento doce para agrestes ninhos Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames de abelhas em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras No meio quer a aacutegua se mantenha parada quer flua lanccedila atravessados salgueiros e grandes pedras para que possam deter-se em numerosas pontes e abrir as asas ao sol de estio sepor acaso Euro impetuoso tiver molhado ou submergido em Netuno as que tardam Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e cheirosos serpotildees ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte
Os cinco primeiros versos do trecho selecionado para anaacutelise (hex 8-12)
trazem a imagem dos ventos que dificultam o trabalho das abelhas pois impedem que
elas carreguem os alimentos para a colmeia aleacutem disso o excerto traz as imagens
dos animais domeacutesticos que causam perturbaccedilatildeo no habitat (as ovelhas os bodes e
a novilha) o que pode comprometer as condiccedilotildees ideais agrave produccedilatildeo de mel Em
seguida satildeo citados os lagartos e as aves predadoras (melharuco e andorinhas) que
colocam em perigo a existecircncia das proacuteprias abelhas jaacute que se alimentam delas
114
A voz poeacutetica enumera assim os elementos que podem comprometer o
trabalho e a existecircncia das abelhas apresentando-nos a partir do conteuacutedo
instrucional segundo os pressupostos do gecircnero da poesia didaacutetica um conselho
sobre apicultura Dessa forma Virgiacutelio descreve o lugar adequado e seguro para que
as abelhas possam fundar a colocircnia
Dentre os elementos que ameaccedilam a existecircncia das abelhas encontramos
Procne entre as aves predadoras
(hex 13-15)
Absint et picti squalentia terga lacerti pinguibus a stabulis meropesque aliaeque uolucres et manibus Procne pectus signata cruentis
Afastem-se tambeacutem os pintados lagartos de ouriccedilados dorsos das feacuterteis moradas e os melharucos outras aves e Procne marcada no peito com crueacuteis matildeos
De acordo com a mitologia Procne era filha de Pandiatildeo rei de Atenas casou-
se com Tereu e dessa uniatildeo ela teve um filho Iacutetis mas ao descobrir que o marido
havia violentado sua irmatilde (Filomela) ela mata o filho e o serve ao marido Tereu
Procne entatildeo foge com a irmatilde Mas quando Tereu descobre o crime persegue as
duas mulheres que imploram aos deuses que as poupem Filomela eacute transformada
em rouxinol e Procne em andorinha (Cf GRIMAL 2014 verbete Filomela) Dizem
que as manchas no peito da andorinha satildeo traccedilos do sangue de Iacutetis que foi morto
pela matildee e servido ao pai ldquoEsse detalhe mostra a ferocidade da andorinha e assim
ela eacute um perigo para as abelhasrdquo (SANTOS 2007 p 109)
No hexacircmetro de Virgiacutelio a menccedilatildeo agrave Procne deixa entrever uma condensaccedilatildeo
imageacutetica pois o poeta sintetiza toda a histoacuteria de Procne em uma uacutenica passagem
um uacutenico verso Ao nomear a andorinha predadora como Procne Virgiacutelio resgata o
mito e faz da palavra uma figuraccedilatildeo miacutetica concreta De acordo com Cassirer (1972
p 115) ldquoNa perspectiva maacutegica do mundo em particular o encantamento verbal eacute
sempre acompanhado pelo encantamento imageacuteticordquo o que nos leva a crer nos
expedientes expressivos evidenciados na linguagem poeacutetica Logo a ferocidade da
andorinha natildeo eacute descrita mas sugerida pela menccedilatildeo ao mito A instruccedilatildeo sobre as
aves predadores ganha relevo nessa passagem do texto
115
De acordo com o relato de Virgiacutelio um grande enxame de abelhas segue o rei
para procurar uma nova casa e assim fundar a colocircnia Segundo o pensamento da
eacutepoca as abelhas eram governadas por reis e natildeo por rainhas (SANTOS 2007 p
110)
(Hex 18-24)
At liquidi fontes et stagna uirentia musco adsint et tenuis fugiens per gramina riuos palmaque uestibulum aut ingens oleaster inumbret ut cum prima noui ducent examina reges uere suo ludetque fauis emissa iuuentus uicina inuitet decedere ripa calori obuiaque hospitiis teneat frondentibus arbos
Mas estejam presentes liacutempidas fontes e lagos verdejantes com musgos e um tecircnue riacho fluindo pela relva e uma palmeira ou um alto zambujeiro sombreie o vestiacutebulo para que quando os novos reis conduzirem os primeiros enxames [de abelhas] em sua primavera e divertir-se a juventude saiacuteda dos favos de mel uma margem vizinha convide a se esquivar do calor e uma aacutervore em frente retenha com folhagens hospitaleiras
O enxame assim deve pousar para se reagrupar em um lugar seguro longe
de ventos e tempestades pois a mudanccedila climaacutetica torna o trabalho das abelhas
impossiacutevel jaacute que elas natildeo satildeo adaptaacuteveis para voar no frio ou na chuva e precisam
de energia para enfrentar o mau tempo Confirmado o local seguro para abrigar a
colmeia longe da ferocidade de predadores lagartos andorinhas e outras aves o
proacuteximo passo eacute esquivar-se do calor pois o sol em excesso prejudica o trabalho
das abelhas O local ideal portanto deve ser o sombreado Eacute importante que em torno
das colmeias haja muitas aacutervores e folhas com capacidade de protegecirc-las das rajadas
fortes de vento e aleacutem disso a presenccedila de aacutegua eacute importante pois ela ajuda na
polinizaccedilatildeo das flores
De acordo com Huizinga em Homo Ludens (1971 p 149)
O que a linguagem poeacutetica faz eacute essencialmente jogar com as palavras Ordena-as de maneira harmoniosa e injeta misteacuterio em cada uma delas de modo tal que cada imagem passa a encerrar a soluccedilatildeo de um enigma
Levando em conta tais apontamentos merece destaque a seguinte passagem
116
(hex 19)
[] et tenuis fugiens per gramina riuos E um tecircnue riacho fluindo pela relva
Neste verso a ideia de que um tecircnue riacho passa pela relva fluindo por ela eacute
icocircnica jaacute que os termos ldquotecircnuerdquo (tenuis) e ldquoriachordquo (riuos) circundam a expressatildeo ldquoper
graminardquo (pela relva) deixando entrever o arranjo artiacutestico da linguagem poeacutetica
Como se vecirc haacute um jogo poeacutetico com as palavras um arranjo estrutural que nos suscita
uma imagem Com base no raciociacutenio tecido por Greimas (1975 p 12) podemos
afirmar que o significante graacutefico entra em jogo para conjugar suas articulaccedilotildees com
as do significado provocando com isto uma ilusatildeo referencial e incitando-nos a
assumir como verdadeira a proposiccedilatildeo do discurso
Tambeacutem merece destaque os trecircs uacuteltimos hexacircmetros do excerto selecionado
(hex 30-32)Haec circum casiae uirides et olentia late serpylla et grauiter spirantis copia thymbrae floreat inriguomque bibant uiolaria fontem Em torno disso floresccedilam verdejantes manjeronas e serpotildees que deitam bom cheiro ao longe e uma abundacircncia de segurelha exalando fortemente e que os canteiros de violetas bebam a uacutemida fonte
Aqui Virgiacutelio nomeia trecircs ervas aromaacuteticas as verdejantes manjeronas (casiae
uirides) os serpotildees que deitam bom cheiro ao longe (olentia late serpylla) e uma
abundacircncia de segurelha exalando fortemente (grauiter spirantis copia thymbrae)
Para cada uma dessas ervas haacute uma amplitude descritiva que reforccedila imageticamente
a extensatildeo dos aromas presentes na cena Assim procurando lidar com a face mais
sensorial da palavra o poeta o artista literaacuterio deixa entrever um estiacutemulo sensorial
suscitado pela linguagem
Sobre os materiais que devem ser empregados pelo apicultor na confecccedilatildeo das
caixas das colmeias Virgiacutelio apresenta-nos
(hex 33-36) Ipsa autem seu corticibus tibi suta cauatis
117
seu lento fuerint aluaria uimine texta angustos habeant aditus nam frigore mella
cogit hiems eademque calor liquefacta remittit
Poreacutem as proacuteprias colmeias quer tenham sido formadas por ti com cavadas corticcedilas quer tenham sido tecidas com um vime flexiacutevel que tenham estreitas entradas pois o inverno com o frio congela os meacuteis e o calor torna-os liquefeitos
Observa-se neste excerto que dois materiais satildeo indicados para a confecccedilatildeo
das caixas que abrigam as abelhas (a corticcedila e o vime) Na descriccedilatildeo virgiliana natildeo
se faz uma distinccedilatildeo qualitativa destes materiais embora se soubesse na eacutepoca que
as caixas de corticcedila eram preferiacuteveis agraves de vime Estas informaccedilotildees natildeo escapavam
aos agrocircnomos da Antiguidade greco-latina sobretudo a Varratildeo no De Re Rustica
que eacute uma das fontes de Virgiacutelio Isso deixa entrever que a poesia didaacutetica virgiliana
longe de ser um manual com teacutecnicas de cultivo e cuidado ao campo natildeo tem o
compromisso com o detalhamento minucioso das informaccedilotildees teacutecnicas mas sim com
a forma literaacuteria
Recomenda-se ainda que a entrada das colmeias seja estreita pois isso
facilitaria o controle interno da temperatura evitando com isso o excessivo frio ou
calor Aleacutem disso a entrada estreita afastaria os invasores daninhos agraves abelhas
Nos hexacircmetros de nuacutemero 88 a 94 Virgiacutelio apresenta dois tipos de reis Verum ubi ductores acie reuocaueris ambo deterior qui uisus eum ne prodigus obsit dede neci melior uacua sine regnet in aula Alter erit maculis auro squalentibus ardens (nam duo sunt genera) hic melior insignis et ore et rutilis clarus squamis ille horridus alter desidia latamque trahens inglorius aluom
Mas quando tiveres chamado do combate os dois liacutederes daacute agrave morte aquele que pareceu pior para que consumindo natildeo seja prejudicial deixa que o melhor reine na desimpedida corte Um (pois duas satildeo as espeacutecies) seraacute brilhante com manchas incrustadas de ouro Este insigne por seu aspecto e distinto por suas rutilantes escamas eacute o melhor aquele outro eacute horriacutevel por sua indolecircncia arrastando ingloacuterio abundante ventre
O termo ldquoductoresrdquo liacutederes empregado no verso sugere uma imagem militar e
monaacuterquica identificando assim os reis das abelhas aos dos homens De um lado o
melior (hex90) ldquoo melhorrdquo aquele que ardens (hex91) ldquoque brilhardquo o que regnet in
118
aula (hex90) ldquoreina na corterdquo enquanto o pior ao contraacuterio eacute aquele que arrasta
latamquealuom (hex94) ldquoabundante ventrerdquo inglorius (hex94) ldquoingloacuteriordquo Esses
termos remetem ao gecircnero eacutepico sugerindo de acordo com alguns criacuteticos da obra
virgiliana relaccedilotildees entre o mundo das abelhas e a realidade histoacuterica do poeta mais
precisamente agrave batalha do Aacutecio Mas essa alegoria natildeo eacute um consenso entre os
pesquisadores
Nos hexacircmetros seguintes 95 a 102 Virgiacutelio faz uma comparaccedilatildeo entre dois
tipos de abelhas operaacuterias identificando-as ao seu respectivo rei Vt binae regum
facies ita corpora plebis (hex95) ldquoDois satildeo os aspectos dos reis assim tambeacutem satildeo
os corpos da pleberdquo Neste verso fica assinalada a imagem humanizada das abelhas
como suacuteditos de reis
Os termos empregados neste excerto situam as duas espeacutecies de abelhas em
campos opostos as abelhas de tipo inferior turpes horrent (hex96) ldquosatildeo disformes e
horrendasrdquo e suas caracteriacutesticas apresentam-se por meio de uma comparaccedilatildeo jaacute
que elas satildeo apresentadas na descriccedilatildeo virgiliana ndash puluere ab alto quom uenit et
sicco terram spuit ore uiator aridus (hex96-98) ldquocomo o viajante sedento quando vem
da espessa poeira e cospe terra de sua garganta secardquo Com isso as abelhas de tipo
superior apresentam conotaccedilotildees positivas que as vinculam agrave figura do rei vencedor
elucent et fulgore coruscant (hex98) ldquoreluzem e cintilam com fulgorrdquo Nos trecircs
hexacircmetros finais (hex100-102) reforccedila-se a superioridade da primeira espeacutecie que
produz dulcia mella (hex101) ldquodoces meacuteisrdquo durum Bacchi domitura saporem
(hex102) ldquopara corrigir o aacutespero sabor de Bacordquo O termo mella (hex101) eacute um plural
poeacutetico O mel entre os antigos era tido como alimento celeste proveniente dos
deuses Virgiacutelio chama-o assim de aacuteereo mel aerii mellis caelestia dona (Geo IV 1)
ldquoos dons celestes do aeacutereo melrdquo pois de acordo com a crenccedila da eacutepoca o mel caiacutea
do ceacuteu com o orvalho sobre as flores de onde as abelhas o extraiacuteam No excerto o
mel atenua o sabor aacutespero do vinho de Baco pois era costume entre os antigos
preparar os vinhos amargos com mel
Nos hexacircmetros de nuacutemero 103 a 115 Virgiacutelio aconselha
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt contemnuntque fauos et frigida tecta relinquont instabilis animos ludo prohibebis inani Nec magnus prohibere labor tu regibus alas eripe non illis quisquam cunctantibus altum ire iter aut castris audebit uellere signa
119
Inuitent croceis halantes floribus horti et custos furum atque auium cum falce saligna Hellespontiaci seruet tutela Priapi Ipse thymum pinosque ferens de montibus altis tecta serat late circum quoi talia curae ipse labore manum duro terat ipse feracis figat humo plantas et amicos inriget imbris
Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu desdenham os favos de mel e abandonam ao frio os seus tetos tu proibiraacutes aos instaacuteveis acircnimos o fuacutetil divertimento Proibir natildeo eacute grande trabalho extrai as asas aos reis com eles imoacuteveis nenhuma ousaraacute ir ao alto caminho ou arrancar as insiacutegnias do acampamento Que os jardins exalando perfumes de croacuteceas flores [as] convidem e a tutela de Priapo do Helesponto o guardiatildeo contra os ladrotildees e as aves com sua foice de salgueiro [as] proteja Que aquele que tem tais coisas a seu cuidado trazendo das altas montanhas o timo e os pinheiros semeie abundantemente ao redor dos tetos (colmeias) que ele mesmo empregue as matildeos no duro trabalho que ele mesmo no solo enterre
as feacuterteis plantas e [as] irrigue com amigaacuteveis chuvas
Merece destaque deste excerto o hexacircmetro 103
At cum incerta uolant caeloque examina ludunt Mas quando os incertos enxames voam e brincam no ceacuteu
Os vocaacutebulos incerta e examina ldquoenxames incertosrdquo encontram-se entre os
vocaacutebulos uolant e ludunt respectivamente voam e brincam Tem-se assim a partir
da disposiccedilatildeo dos sintagmas no verso a imagem dos enxames de abelhas voando e
brincando iconicamente no texto Trata-se de uma construccedilatildeo expressiva em que se
revela um trabalho artiacutestico com a linguagem
Selecionamos das Geoacutergicas os hexacircmetros de nuacutemero 1 a 115
Depreendemos deste excerto de modo geral o tema do lugar apraziacutevel a ser
modelado para as abelhas Desenvolve-se neste excerto o tema da apicultura
apresentando um conteuacutedo instrucional segundo os pressupostos da poesia didaacutetica
valendo-se de uma linguagem rica em procedimentos estiliacutesticos
Procurou-se observar como a estrutura poeacutetica atua e assim destacamos na
anaacutelise alguns hexacircmetros que consideramos mais expressivos
120
Nossa preocupaccedilatildeo eacute a de investigar o arranjo particular da linguagem poeacutetica
a construccedilatildeo expressiva do texto a sua dimensatildeo figurativa Fundamentamo-nos
para isso no conceito semioacutetico de figuratividade e na ideia explicitada por Joseph
Brodsky (1994 p 74) a de que ldquoa poesia eacute antes de mais nada uma arte de
referecircncias alusotildees paralelos linguiacutesticos e figurativosrdquo e de que ldquocom os poetas a
escolha das palavras eacute invariavelmente mais reveladora do que aquilo que elas
contamrdquo (1994 p 97)
As Geoacutergicas pertencem de acordo com a tradiccedilatildeo ao gecircnero da poesia
didaacutetica Os traccedilos distintivos do poema didaacutetico iniciaram-se com Hesiacuteodo em O
trabalho e os dias seacuteculo VIII aC Durante os seacuteculos em que tal forma foi utilizada
algumas caracteriacutesticas contribuiacuteram para a especificaccedilatildeo do gecircnero tais como o
caraacuteter de ensinamento o enfoque em temas teacutecnicos e filosoacuteficos e a presenccedila de
uma voz didaacutetica chamada de magister Os assuntos agraacuterios presentes nas
Geoacutergicas de caraacuteter instrucional como eacute proacuteprio ao gecircnero deixam entrever um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo remetendo-nos ao estilo meacutedio
Perutelli (2010 p 309-310) retomando o conceito didascaacutelico exposto por
Seacutervio assim afirma
[] o poema virgiliano contempla dois niacuteveis didaacuteticos o superficial o agriacutecola digamos recobre uma segunda mensagem mais profunda e articulada que eacute aquela da eacutetica da nova moral Dentro da linha do gecircnero didascaacutelico verifica-se a paradoxal situaccedilatildeo de um texto que tem um fim didaacutetico declarado ndash o agriacutecola ndash menos real do que outro natildeo declarado ndash o eacutetico
Na leitura traduccedilatildeo e anaacutelise do excerto selecionado das Geoacutergicas (Canto IV
hex 1-115) procuramos entender a instruccedilatildeo acerca do lugar apraziacutevel e ideal para
as abelhas fundarem sua colmeia como parte da caracterizaccedilatildeo da poesia de gecircnero
didaacutetico e de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo Logo observou-se que a voz
didaacutetica que perpassa o excerto deixa entrever a partir de um efeito de sentido
moderado figuras que nos remetem a um espaccedilo ideal a ser construiacutedo para as
abelhas Mas o assunto moderado natildeo retira assim a grandiosidade da expressatildeo
pois como atesta Virgiacutelio eacute pequeno o trabalho (in tenui labor-hex6) natildeo pequena a
gloacuteria (tenuis non gloria -hex6)
121
57 ENEIDA Canto VIII (hex 612-731) ldquoENEIAS E AS ARMAS DE GUERRArdquo
ldquoEn perfecta mei promissa coniugis arte
munera ne mox aut Laurentis nate superbos
aut acrem dubites in proelia poscere Turnumrdquo
Dixit et amplexus nati Cytherea petiuit 615
arma sub aduersa posuit radiantia quercu
Ille deae donis et tanto laetus honore
expleri nequit atque oculos per singula uoluit
miraturque interque manus et bracchia uersat
terribilem cristis galeam flammasque minantem131 620
fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem
sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes
solis inardescit radiis longeque refulget
tum leues ocreas electro auroque recocto
hastamque et clipei non enarrabile textum 625
Illic res Italas Romanorumque triumphos
haud uatum ignarus uenturique inscius aeui
fecerat ignipotens illic genus omne futurae
stirpis ab Ascanio pugnataque in ordine bella
Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro 630
procubuisse lupam geminos huic ubera circum
ludere pendentis pueros et lambere matrem
impauidos illam tereti ceruice reflexam
mulcere alternos et corpora fingere lingua
Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas 635
consessu caueae magnis Circensibus actis
131 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se uomentem Conington em The Works of Virgil (2008) tambeacutem chama a atenccedilatildeo para o termo uomentem embora coloque em notas ao texto as duas formas (uomentem e minantem) Aqui optamos por manter a ediccedilatildeo Les Belles Lettres de 1957
122
addiderat subitoque nouom132 consuergere bellum
Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris
Post idem inter se posito certamine reges
armati Iouis ante aram paterasque tenentes 640
stabant et caesa iungebant foedera porca
Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae
distulerant (at tu dictis Albane maneres)
raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus
per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres 645
Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat
accipere ingentique urbem obsidione premebat
Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant
Illum indignanti similem similemque minanti
aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles 650
et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis
In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat
Romuleoque recens horrebat regia culmo
Atque hic auratis uolitans argenteus anser 655
porticibus Gallos in limine adesse canebat
Galli per dumos aderant arcemque tenebant
defensi tenebris et dono noctis opacae
aurea caesaries ollis atque aurea uestis
uirgatis lucent sagulis tum lactea colla 660
auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant
gaesa manu scutis protecti corpora longis
Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos
lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo
extuderat castae ducebant sacra per urbem 665
pilentis matres in mollibus Hinc procul addit
Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis
et scelerum poenas et te Catilina minaci
132 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se nouum
123
pendentem scopulo Furiarumque ora trementem
secretosque pios his dantem iura Catonem 670
Haec inter tumidi late maris ibat imago
aurea sed fluctu spumabant caerula cano
et circum argento clari delphines in orbem
aequora uerrebant caudis aestumque secabant
In medio classis aeratas Actia bella 675
cernete erat totumque instructo Marte uideres
feruere Leucaten auroque effulgere fluctus
Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar
cum patribus populoque penatibus et magnis dis
stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas 680
laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus
Parte alia uentis et dis Agrippa secundis
arduos133 agmen agens cui belli insigne superbum
tempora nauali fulgent rostrata corona
Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis 685
uictor ab Aurorae populis et litore rubro
Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum
Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx
Vna omnes ruere ac totum spumare reductis
conuolsum remis rostrisque tridentibus aequor 690
Alta petunt pelago credas innare reuolsas
Cycladas aut montis concurrere montibus altos
tanta mole uiri turritis puppibus instant
Stuppea flamma manu telisque uolatile ferrum
spargitur arua noua Neptunia caede rubescunt 695
Regina in mediis patrio uocat agmina sistro
necdum etiam geminos a tergo respicit anguis
Niligenumque134 deum monstra et latrator Anubis
contra Neptunum et Venerem contraque Mineruam
tela tenent Saeuit medio in certamine Mauors 700
133 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se arduus 134 Na ediccedilatildeo estabelecida pela De Gruyter (2009) encontra-se ominigenunque
124
caelatus ferro tristesque ex aethere Dirae
et scissa gaudens uadit Discordia palla
quam cum sanguineo sequitur Bellona flagello
Actius haec cernens arcum intendebat Apollo
desuper omnis eo terrore Aegyptus et Indi 705
omnis Arabs omnes uertebant terga Sabaei
Ipsa uidebatur uentis regina uocatis
uela dare et laxos iam iamque immittere funis
Illam inter caedes pallentem morte futura
fecerat ignipotens undis et Iapyge ferri 710
contra autem magno maerentem corpore Nilum
pandentemque sinus et tota ueste uocantem
caeruleum in gremium latebrosaque flumina uictos
At Caesar triplici inuectus Romana triumpho
moenia dis Italis uotum immortale sacrabat 715
maxima ter centum totam delubra per urbem
Laetitia ludisque uiae plausuque fremebant
omnibus in templis matrum chorus omnibus arae
ante aras terram caesi strauere iuuenci
Ipse sedens niueo candentis limine Phoebi 720
dona recognoscit populorum aptatque superbis
postibus incedunt uictae longo ordine gentes
quam uariae linguis habitu tam uestis et armis
Hic Nomadum genus et discinctos Mulciber Afros
hic Lelegas Carasque sagittiferosque Gelonos 725
finxerat Euphrates ibat iam mollior undis
extremique hominum Morini Rhenusque bicornis
indomitique Dahae et pontem indignatus Araxes
Talia per clipeum Volcani dona parentis
miratur rerumque ignarus imagine gaudet 730
attollens umero famamque et fata nepotum
125
58 Traduccedilatildeo e notas do CANTO VIII (hex 612-731)
ldquoEis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo135 Filho natildeo duvides
em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos136 ou o vigoroso Turno137rdquo
Citereia138 disse e recebeu os abraccedilos de seu filho colocou as brilhantes armas sob
um carvalho em frente Ele alegre com os presentes da deusa e com tatildeo grande honra
natildeo pocircde se satisfazer e volveu os olhos por cada coisa
[Eneias] admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus
penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze
imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios
do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro
refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo
Ali139 o deus do fogo140 que natildeo ignora os vates nem desconhece o tempo futuro
havia colocado os feitos da Itaacutelia e os triunfos dos romanos ali havia colocado toda a
origem de toda a geraccedilatildeo futura de Ascacircnio141 e sucessivamente as guerras
combatidas
E havia colocado a feacutertil loba142 deitada no antro verde de Marte143 e suspensos em
volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela
voltada para traacutes com a cabeccedila torneada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus
corpos com a liacutengua
Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas144 sem o direito na
assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se
135Vulcano o deus das forjas esposo de Vecircnus a deusa do Amor 136 Laurentinos povo de Laurento cidade da Antiga Roma situada no Laacutecio entre Ostia e Laviacutenio 137Turno heroacutei itaacutelico rei dos Ruacutetulos povo da Itaacutelia Central ldquoEacute o proacuteprio Turno quem provoca a guerra contra os troianosrdquo (GRIMAL 2014 p 457) Era noivo de Laviacutenia antes do rei Latino dar a matildeo da filha a Eneias 138 Citereia outro nome para Vecircnus 139 Refere-se agrave descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente da deusa Vecircnus 140Vulcano o deus das forjas 141Ascacircnio filho de Eneias e Creuacutesa 142Remete-se agrave histoacuteria de Rocircmulo e Remo 143Marte deus da Guerra mas tambeacutem aparece como um deus ligado agrave vegetaccedilatildeo 144 O Rapto das Sabinas eacute um dos episoacutedios lendaacuterios da origem de Roma Quando a cidade foi fundada Rocircmulo preocupou-se em povoaacute-la especialmente com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de Rocircmulo raptaram todas as jovens (TITO LIacuteVIO 1989 p 31)
126
uma nova guerra entre os Romulidas145 e o velho Taacutecio146 rei dos severos habitantes
de Cures
Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do
altar de Juacutepiter147 segurando as paacuteteras148 e faziam um tratado de alianccedila com a
porca imolada
Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio149 em sentidos
contraacuterios (mas tu oacute Albano150 natildeo manterias teus dizeres) e Tulo151 arrastava as
viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue
escorriam
E ainda tambeacutem Porsena152 mandava receber o exilado Tarquiacutenio153 e sitiava a cidade
com um enorme cerco154 Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade
Se considerares quem eacute semelhante ao indigno ameaccedilador porque Cocles155 ousara
destruir a ponte e Cleacutelia156 atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas
No alto o guardiatildeo de Tarpeia157 Macircnlio158 estava de peacute diante do templo e defendia
o alto do Capitoacutelio O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo159 E aqui
145Os Romulidas o povo que Rocircmulo havia reunido em Roma 146Titus Tatius o rei dos Sabinos Apoacutes o rapto das Sabinas diz-se que Taacutecio organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas segundo conta-nos Tito Liacutevio (cf Ab Urbe Condita) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos 147Conta-se que que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo fez um pedido a Juacutepiter o grande deus do panteatildeo romano e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse de feiccedilatildeo 148Espeacutecie de taccedila usada em sacrifiacutecios antigos 149Mettus Fufetius o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Diz-se que ele recusou ajuda a Roma em um conflito traindo-a 150Referecircncia a Meacutecio Fufeacutecio uacuteltimo rei albano que quebra o acordo com Roma 151Tullus Hostillius o terceiro rei lendaacuterio de Roma responsaacutevel pela destruiccedilatildeo de Alba Longa cidade vizinha a Roma 152Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia 153Lucius Tarquinius Superbus Tarquiacutenio o Soberbo eacute responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que quando tomou o poder no senado Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio confiscando seus bens Foi deposto em 509 aC Expulso de Roma Tarquiacutenio procurou Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para declarar guerra agrave Roma 154 Porsena no ano de 507 aC sitiou Roma cercando-a 155Com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela qual o inimigo iria atravessar o Tibre 156 Durante o cerco agrave Roma em 507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado 157Apoacutes o rapto das sabinas Tito Taacutecio liderou os sabinos contra Roma Diz-se que Tarpeia atraiacuteda pelo ouro dos sabinos traiu Roma deixando entrar os sabinos na citadela Posteriormente ela foi assassinada e o monte onde ela foi sepultada foi chamado com seu nome No texto assim Tarpeia refere-se agrave rocha Tarpeia no monte Capitolino 158 Marco Macircnlio cocircnsul da Repuacuteblica Romana defendeu Roma da invasatildeo gaulesa 159Colmo haste das gramiacuteneas palha longa usada para cobrir as casas Entende-se nesta passagem que o palaacutecio de Rocircmulo ericcedilava-se com um teto de palha
127
um ganso prateado160 voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os
gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e
ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus
cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus
pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita com a matildeo os
dardos alpinos os corpos protegidos pelos longos escudos
Aqui havia representado os saltitantes saacutelios161 e os lupercus162 nus os barretes
sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela
cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados Daqui ao longe acrescenta
tambeacutem as moradas do Taacutertaro163 a alta porta de Dite164 e os castigos dos criminosos
e tu oacute Catilina165 suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias166
e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo167 havia ditado as leis
Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe
mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata
em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas
ondas No meio viam-se as armadas de bronze a batalha do Aacutecio168 via-se todo o
Leucates169 a ferver com Marte170 preparado e as ondas resplandecerem com o brilho
do ouro
160Chama-se a atenccedilatildeo dos romamos para um ataque noturno dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno no monte Capitolino 161Os saacutelios eram sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro 162Os lupercus eram sacerdotes de Fauno divindade associada ao campo e tambeacutem agrave fertilidade Conta-se que os lupercus usavam chicotes feitos com couro de cabra (barretes sacerdotais de latilde) 163 Taacutertaro o mundo inferior 164 Dite um dos nomes de Plutatildeo deus responsaacutevel pelo mundo inferior 165Lucius Sergius Catilina militar e senador romano queria destruir o poder oligaacuterquico do senado 166Fuacuterias divindades que viviam nas profundezas do Taacutertaro e eram responsaacuteveis pela tortura das almas 167 De acordo com Seacutervio seria o Catatildeo (o Velho ou Catatildeo Sapiente) poliacutetico e escritor de Roma eleito cocircnsul em 195 aC mas para Conington (2008) Virgiacutelio teria pretendido o Catatildeo de Uacutetica (o Jovem) (95-16 aC) poliacutetico romano ceacutelebre pela sua integridade moral para destacar o contraste em relaccedilatildeo a Catilina 168 A batalha do Aacutecio em 31 aC foi um confronto naval entre Marco Antocircnio e Otaacutevio Augusto Enquanto a frota de Otaacutevio era comandada por Agripa a frota de Marco Antocircnio era apoiada pela rainha do Egito Cleoacutepatra Com a vitoacuteria de Otaacutevio inicia-se o Impeacuterio e ele passa a ser conhecido como Ceacutesar Augusto 169 O monte Leucates Conta-se que Leucates era um jovem muito amado por Apolo e que ao escapar da perseguiccedilatildeo do deus lanccedilou-se ao mar do alto de uma encosta iacutengreme A ilha recebeu assim o nome de Lecircucade (GRIMAL 2014 p 276) 170Marte o deus guerreiro
128
De um lado Ceacutesar Augusto171 conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e
o povo os penates e os deuses maiores172 em peacute sobre a elevada popa a que o seu
feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua
cabeccedila173
Em outra parte Agripa174 com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o
exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros175
da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas
Antocircnio176 vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho177 transporta com
ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra178 e eacute seguido pela esposa
egiacutepcia179 Ao mesmo tempo todos se precipitaram e toda a superfiacutecie do mar espuma
sob os remos e os tridentes dos rostros que o afastam Dirigem-se a alto mar creia
que as Ciacuteclades180 arrancadas flutuavam sob a aacutegua ou que as altas montanhas se
chocavam contra as outras montanhas os varotildees se aproximavam das popas
torreadas com tanta massa A chama da estopa eacute espalhada pela matildeo e o volaacutetil ferro
pelos dardos os campos de Netuno181 avermelham-se com a nova carnificina No
centro a Rainha182 invoca os batalhotildees com o sistro183 paacutetrio e ainda natildeo voltou a
vista para as duas serpentes atraacutes
171Otaacutevio Augusto que apoacutes a vitoacuteria na batalha do Aacutecio receberia o nome de Ceacutesar Augusto A vitoacuteria contra Marco Antocircnio seria o iniacutecio do Impeacuterio em Roma 172Os penates satildeo os deuses do lar adorados por romanos e etruscos Os deuses maiores satildeo os representantes do Grande Olimpo Otaacutevio contava com a proteccedilatildeo dos deuses na batalha do Aacutecio 173 Em 42 aC Otaacutevio erigiu o Templo do Divino Juacutelio adicionando o termo ldquoFilho do Divinordquo a seu nome o que fortaleceria seus laccedilos poliacuteticos com os soldados de Ceacutesar (GRIMAL 2014 cf verbete Apolo) 174Marcus Vipsanius Agrippa principal comandante de Otaacutevio guiou as frotas de Roma contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra na Batalha do Aacutecio (BOWDER 1980) 175Rostro esporatildeo colocado na proa dos navios antigos para perfurar o casco dos outros nas batalhas 176Marco Antocircnio foi aliado de Ceacutesar durante a conquista da Gaacutelia e tambeacutem na guerra civil contra Pompeu Aliou-se mais tarde a Otaacutevio e Leacutepido formando com eles o Segundo Triunvirato (BOWDER 1980) 177Marco Antocircnio venceu os habitantes da Aacutesia (ldquopovos de aurorardquo) do Egito (do famoso Nilo) e da Bactriana no Afeganistatildeo (BECHARA SPINA 1973 p 89) 178 Bactra regiatildeo da Aacutesia Central 179Marco Antocircnio alia-se a Cleoacutepatra desprezando sua esposa romana Otaacutevia irmatilde de Otaacutevio Augusto (BECHARA SPINA 1973 p 89) 180Ciacuteclades grupo de ilhas no sul do mar Egeu 181Netuno deus dos mares 182 Cleoacutepatra (69-30 aC) rainha egiacutepcia da dinastia de Ptolomeu 183Sistro antigo instrumento egiacutepcio de percussatildeo que produzia som agudo e prolongado
129
Monstros de deuses de toda espeacutecie e o ladrador Anuacutebis184 mantecircm as armas contra
Netuno e Vecircnus185 e contra Minerva186 Marte gravado em ferro enfurece-se no meio
da batalha e as crueacuteis Fuacuterias descem pelo ar e com o manto rasgado a Discoacuterdia187
alegre caminha e eacute seguida por Belona188 com seu chicote ensanguentado
Ao ver isto de cima Apolo Aacutecio189 retesava o arco Com horror todo o Egito Indianos
todos os araacutebes e todos os sabeus viravam as costas A proacutepria rainha parecia dar
velas aos invocados ventos e a soltar cada vez mais as frouxas amarras O deus do
fogo190 colocara-a entre a carnificina paacutelida pela morte futura arrastada pelas ondas
e pelo Iaacutepige191 em frente tambeacutem colocara o Nilo192 com seu vasto corpo abrindo as
pregas de todo o seu traje e chamando os vencidos para o seu colo azul e para os
seus secretos rios
E Ceacutesar193 levado pelo triacuteplice triunfo agraves muralhas romanas consagrava aos deuses
da Itaacutelia um voto imortal trezentos templos maacuteximos por toda a cidade As ruas
retumbavam de alegria com jogos e aplausos em todos os templos o coro das matildees
todos tinham altares e diante deles os novilhos imolados cobriram a terra Ele proacuteprio
sentado no limiar da neve do candente Febo194 examina os presentes dos povos e os
coloca nas soberbas portas as naccedilotildees vencidas avanccedilam em longa fila tatildeo variadas
no modo de vestir e nas armas quanto nas vaacuterias liacutenguas
Aqui Mulciacutebero195 representara a raccedila dos nocircmades196 e os africanos de vestes
soltas neste lugar os leacutelegos197 os caacuterios198 e os gelonos199 armados de setas o
184Anuacutebis deus egiacutepcio protetor e guia dos mortos comumente representado com a cabeccedila de um chacal animal de caccedila relacionado aos lobos daiacute o nome ladrador 185Vecircnus deusa do amor matildee de Eneias e protetora dos romanos 186Minerva deusa romana das artes e sabedoria tambeacutem rege as estrateacutegias de guerra 187Discoacuterdia a matildee dos males diz-se que acompanhava Marte nas batalhas 188Belona eacute a fuacuteria da guerra e carnificina deusa de origem etrusca 189O arco do deus Apolo dispara dardos letais 190Vulcano deus das forjas responsaacutevel por colocar todas as presentes histoacuterias no escudo de Eneias 191Iaacutepige filho de Deacutedalo eacute um vento que sopra de oeste-noroeste 192O rio Nilo foi o principal fator para o desenvolvimento da sociedade egiacutepcia Hapi era cultuado como o deus das aacuteguas do Nilo sendo responsaacutevel pela prosperidade advinda do rio Diz-se que este deus eacute representado segurando talos de Papiros e flores de Loacutetus 193Otaacutevio agora nomeado Ceacutesar Augusto depois da vitoacuteria na batalha do Aacutecio 194Febo deus romano equivalente ao grego Apolo representa a luz a muacutesica e as artes eacute irmatildeo de Diana 195Mulciacutebero outro nome para Vulcano o deus das forjas 196 Nocircmades gente do ocidente de Cartago 197 Leleacutegos povo do sudoeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor 198Caacuterios povo do oeste da Anatoacutelia Aacutesia Menor Caacuterios e leleacutegos eram muito proacuteximos 199Gelonos povos da Ciacutentia ou da Traacutecia
130
Eufrates200 jaacute corria mais calmo com suas ondas e os moacuterios201 os mais afastados
dos homens e o Reno202 de duas barras os indomaacuteveis dahas203 e o Araxes204
indignado com a ponte
[Eneias] admira tais coisas atraveacutes do escudo de Vulcano presente da sua matildee e
estranho aos assuntos regozija-se com a imagem carregando sobre o ombro a gloacuteria
e a fama dos seus descendentes
200 Eufrates rio que passa pela Armecircnia e Mesopotacircmia 201Moacuterios povos da Beacutelgica Os romanos chamavam-lhes de uacuteltimos porque aleacutem deles natildeo conheciam mais povos 202Reno rio da Alemanha era parte da fronteira setentrional do Impeacuterio Romano 203Dahas povo da Ciacutentia 204O rio Araxes nasce nos montes da Armecircnia e desaacutegua no mar Caacutespio Xerxes lhe fez uma ponte e Alexandre outra mas as enchentes do rio a destruiacuteram Otaacutevio entatildeo subjugou-o com outra ponte mais firme (LEITAtildeO 1819 p 75)
131
59 FIGURATIVIDADE NO CANTO VIII (hex 612-731) anaacutelise do
texto
Baseando-se nos poemas eacutepicos da Antiguidade Grimal (1992 p 185) assim
esclarece
Esses poemas satildeo ldquoeacutepicosrdquo na medida em que contam feitos de caraacuteter sobre-humano realizados por alguma das personagens pertencentes agrave ldquomemoacuteria coletivardquo das cidades que estatildeo em relaccedilatildeo com as divindades - das quais se originaram e pelas quais satildeo inspiradas - e que vivem em tempos em que o divino e o humano ainda natildeo se distinguiam claramente eacute o tempo dos ldquoheroacuteisrdquo dos semi-deuses
Para Hegel (1993 p 572-573) na Esteacutetica a epopeia propriamente dita
Representa o espiritual concreto sob uma forma individual e a epopeia quando narra alguma coisa tem por objeto uma accedilatildeo que por todas as circunstacircncias que a acompanham e as condiccedilotildees nas quais se realiza apresenta inumeraacuteveis ramificaccedilotildees pelas quais contacta com o mundo total de uma naccedilatildeo ou de uma eacutepoca Eacute portanto o conjunto da concepccedilatildeo do mundo e da vida de uma naccedilatildeo que apresentado sob uma forma objetiva de acontecimentos reais constitui o conteuacutedo e determina a forma do eacutepico propriamente dito Desta totalidade fazem parte por um lado a consciecircncia religiosa de todas as verdades profundas do espiacuterito humano e por outro lado a vida concreta a vida poliacutetica e domeacutestica e ateacute as necessidades que a vida exterior comporta e os meios de satisfazer
Assim a poesia de gecircnero eacutepico eacute uma celebraccedilatildeo narrativa da histoacuteria paacutetria
acompanhada pela glorificaccedilatildeo de heroacuteis nacionais Hegel menciona ainda outros
elementos constitutivos do gecircnero Entre eles vale destacar a objetividade e o conflito
da guerra que eacute conveniente agrave temaacutetica eacutepica e ao desenvolvimento da accedilatildeo
Segundo Montagner (2014) a eacutepica nasce na oralidade ancestral grega O
termo lsquoeacutepicarsquo proveacutem do grego eacutepos e significa de modo mais amplo lsquopalavrarsquo
lsquodiscursorsquo De modo restrito os gregos assim denominavam a poesia em hexacircmetro
a partir de epeacute plural de eacutepos Na eacutepoca claacutessica greco-latina seraacute o hexacircmetro
datiacutelico segundo o criacutetico o verso proacuteprio desse gecircnero Todavia aleacutem do verso
caracteriacutestico haacute outra marca o caraacuteter narrativo ou expositivo que assinala suas
manifestaccedilotildees
132
A Eneida a eacutepica virgiliana possui doze cantos (ou livros) escritos em
hexacircmetros datiacutelicos Em sua ceacutelebre epopeia Virgiacutelio narra os memoraacuteveis feitos
romanos Vemos as aventuras do heroacutei Eneias filho protegido da deusa Vecircnus em
luta para firmar os Penates troianos os deuses do lar em solo latino A histoacuteria
comeccedila (in medias res) com Eneias e suas naus em pleno Mediterracircneo jaacute no seacutetimo
ano apoacutes a queda de Troia O heroacutei sofre um naufraacutegio arquitetado pela deusa Juno
e eacute lanccedilado agrave costa africana Desenrolam-se a partir daiacute os acontecimentos e accedilotildees
que faratildeo de Eneias um iacutecone romano o fundador da Nova Troia Logo a personagem
Eneias bem como suas accedilotildees e portanto seu papel figurativo no texto apoia-se na
previsibilidade narrativa que fundamenta a expectativa das figuras no contexto da
poesia eacutepica Trata-se de um heroacutei cujo destino eacute grandioso pois nele repousa o futuro
da raccedila troiana Todos estes elementos seratildeo desenvolvidos por Virgiacutelio ao retomar o
quadro da lenda romana Assim no engendramento do estilo grandiloquente
encontramos recorrecircncias figurativas que nos levam a um especiacutefico efeito de
individuaccedilatildeo no texto
Segundo Pedro Paulo Funari (2001 p 66)
Apoacutes a vitoacuteria dos gregos sobre os troianos Eneias vagou pelo Mediterracircneo ateacute chegar ao Laacutecio onde reinou por alguns anos Depois de morto foi adorado como Juacutepiter Indiges Seu filho Ascacircnio fundou Alba Longa e seu descendente Numitor pai de Reacuteia Siacutelvia foi pois avocirc de Rocircmulo Por essas lendas Roma ligava-se ao deus da guerra Marte e agrave deusa da fertilidade Vecircnus
Para Antocircnio Medina Rodrigues (2005 p10) a Eneida eacute ldquoum cacircntico aos novos
tempos do Impeacuterio eacute tambeacutem a nostalgia dos tempos lendaacuterios e primeiros haacute muito
sepultados sob as guerras civis e de conquista tempos de Rocircmulo e da chegada dos
troianos aos litorais itaacutelicos tempos da fundaccedilatildeo de Romardquo Virgiacutelio mescla histoacuteria
mito e um conjunto de situaccedilotildees que jaacute eram conhecidas pelos romanos
Como marco da Literatura Latina a Eneida confere agrave naccedilatildeo romana uma
identidade cultural A obra faz parte da chamada Idade de Ouro de Augusto e
segundo Funari (2001 p 66) para os romanos era importante considerar que seu
destino estava ligado aos deuses pois estas nobres origens legitimavam seu poder
sobre outros povos e servia como propaganda de suas qualidades
No canto VIII no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise hexacircmetros 612
a 731 temos a descriccedilatildeo do escudo de Eneias presente forjado por Vulcano e
133
ofertado pela deusa Vecircnus ao heroacutei No escudo Vulcano desenhou os eventos da
futura Roma e entre estes eventos estatildeo a loba alimentando Rocircmulo e Remo o rapto
das Sabinas e no centro a batalha do Aacutecio As imagens esculpidas por Vulcano no
escudo de Eneias refletem toda a histoacuteria de Roma incluindo episoacutedios miacuteticos que
se mesclaram aos eventos histoacutericos Aleacutem disso vale ressaltar tambeacutem a figura de
Otaviano na centralidade do escudo jaacute que o governante passou a ser o centro do
cenaacuterio poliacutetico e social de Roma Segundo Pierre Grimal (1992 p 192) ldquoO heroacutei do
poema seraacute Eneacuteias claro mas este se ergueraacute antes de Roma no alto de uma
linhagem que de condutor de homens a triunfador vem dar em Otaacuteviordquo
Na descriccedilatildeo do escudo natildeo se observam detalhes das accedilotildees dos
personagens em seus respectivos cenaacuterios Ao descrever a batalha do Aacutecio por
exemplo vemos os oponentes de um lado e Otaviano de outro enquanto as
estrateacutegias beacutelicas e o combate soacute satildeo sugeridos Cabe ao leitor assim reconstituir
os eventos
As diferentes histoacuterias aludidas no escudo satildeo narrativas lendaacuterias e histoacutericas
desde a fundaccedilatildeo de Roma Pensando que o estilo eacute depreensiacutevel pelas recorrecircncias
figurativas do discurso podemos pensar nessas narrativas como parte do programa
figurativo que engendra o efeito de sentido grandiloquente
Nos hexacircmetros 619 e 625 vemos a descriccedilatildeo das armas de guerra presentes
ofertados pela deusa Vecircnus ao filho Eneias
miraturque interque manus et bracchia uersat terribilem cristis galeam flammasque minantem fatiferumque ensem loricam ex aere rigentem sanguineam ingentem qualis cum caerula nubes solis inardescit radiis longeque refulget tum leuis ocreas electro auroque recocto hastamque et clipei non enarrabile textum
admira e vira entre as matildeos e os braccedilos o tremendo capacete com os seus penachos que ameaccedila com as chamas e a fatal espada a riacutegida couraccedila de bronze imensa da cor de sangue assim como a nuvem de cor azul abrasa-se com os raios do sol e longe resplandece Depois as armaduras da perna leves de eletro e ouro refundido a lanccedila e o inenarraacutevel enlaccedilamento do escudo
O capacete de crista vermelha a riacutegida couraccedila de bronze as armaduras da
perna a lanccedila e o exuberante escudo compotildeem a imagem do guerreiro Estas figuras
contribuem para a caracterizaccedilatildeo de Eneias que desde os Poemas Homeacutericos ldquosurge
134
como um heroacutei protegido pelos deuses aos quais obedece respeitosamente estando-
lhe reservado um destino grandioso nele repousa o futuro da raccedila troianardquo (GRIMAL
2014 p 135) Diferentemente do pastor que no cenaacuterio bucoacutelico eacute representado pelo
cajado e a flauta aqui o guerreiro alia-se aos artefatos beacutelicos em um cenaacuterio de
estrateacutegias de combate Tem-se portanto a descriccedilatildeo de objetos representativos do
contexto da poesia eacutepica
Conington (2008 p145) em seus comentaacuterios ao texto de Virgiacutelio aponta para
o termo ldquobracchiardquo (braccedilos) do seguinte excerto Segundo o criacutetico a accedilatildeo de virar
entre as matildeos e os braccedilos deixa entrever o tamanho das diferentes partes da
armadura que enchem os braccedilos quando levantadas
Miraturque interque manus et bracchia uersat
e admira e vira entre as matildeos e os braccedilos
A grandiosidade dos presentes forjados pelo deus do fogo na visatildeo de
Conington (2008 p145) aparece com o vocaacutebulo ldquominantemrdquo verbo depoente que
indica a accedilatildeo de ldquoameaccedilarrdquo sugerindo o aceno da crista do capacete que resplandece
ao ser manuseado e admirado por Eneias
Terribilem cristis galeam flammasque minantem
o tremendo capacete que ameaccedila com suas cristas e chamas
No Canto VII Eneias chega agrave regiatildeo do Tibre onde governa o rei Latino que
havia recebido dos deuses o aviso da chegada de Eneias futuro esposo de sua filha
Laviacutenia O chefe dos troianos envia uma comitiva ao rei Latino para que seja feito um
acordo de paz mas a terriacutevel Juno envia a deusa infernal Alecto responsaacutevel pela
guerra e pelas desgraccedilas para semear a discoacuterdia entre os dois povos
No Canto VIII com agrave iminecircncia da batalha Eneias encontra-se preocupado
com o porvir Agrave noite entatildeo ao permitir-se o descanso necessaacuterio o heroacutei eacute
surpreendido pelo rio Tibre que se personifica e comeccedila a falar O Tibre conta ao
troiano quem entatildeo poderaacute auxiliaacute-lo na guerra contra Turno trata-se de Palante ndash
filho de Evandro rei dos Aacutercades Percorrendo o curso do rio e ouvindo-o Eneias
alcanccedila a regiatildeo onde Evandro lidera e tem a oportunidade de falar com o rei e
confirmar a alianccedila predestinada
135
Paralelo a isso mostra-se a preocupaccedilatildeo de Vecircnus com a iminecircncia da guerra
Por esse motivo a deusa queixa-se a Vulcano pedindo-lhe ajuda na confecccedilatildeo de
artefatos beacutelicos que seratildeo indispensaacuteveis ao filho Eneias Com o pedido da esposa
Vulcano promete confeccionar as armas e pede a seus colaboradores na forja para
que produzam uma arma de caraacuteter singular
(hex 369-385) Nox ruit et fuscis tellurem amplectitur alis At Venus haud animo nequiquam exterrita mater 370 Laurentumque minis et duro mota tumultu Volcanum adloquitur thalamoque haec coniugis aureo incipit et dictis diuinum aspirat amorem ldquoDum bello Argolici uastabant Pergama reges debita casurasque inimicis ignibus arces 375 non ullum auxilium miseris non arma rogaui artis opisque tuae nec te carissime coniunx incassumue tuos uolui exercere labores quamuis et Priami deberem plurima natis et durum Aeneae fleuissem saepe laborem 380 Nunc Iouis imperiis Rutulorum constitit oris ergo eadem supplex uenio et sanctum mihi numen arma rogo genetrix nato Te filia Nerei te potuit lacrimis Tithonia flectere coniunx Aspice qui coeant populi quae moenia clausis 385 ferrum acuant portis in me excidiumque meorum
A noite impele e abraccedila a terra com as suas sombrias asas Poreacutem
Vecircnus matildee natildeo apavorada de coraccedilatildeo perturbada com as ameaccedilas
dos laurentinos e com o duro tumulto dirige-se a Vulcano e no leito
nupcial de ouro de seu esposo comeccedila com estas palavras e infunde-
lhe o divino amor ldquoEnquanto os reis argoacutelicos devastavam Peacutergamo
com a guerra condenada e as cidadelas sucumbiam pelas inimigas
chamas nenhum auxiacutelio pedi para os infelizes nem armas do poder
da tua arte cariacutessimo esposo nem quis que tu exercesses teus
trabalhos em vatildeo e ainda que eu devesse grande quantidade de
coisas aos filhos de Priamo e muitas vezes lamentasse o duro
trabalho de Eneias Agora por ordens de Jove deteve-se agrave entrada
dos ruacutetulos por isso eu mesma suplicante venho e eu como matildee
rogo por seu veneraacutevel poder armas para o meu filho A filha de Nereu
e a esposa de Titono puderam te comover com suas laacutegrimas
Considera que os povos se reuacutenem e que muralhas com as suas
portas fechadas aguccedilam o ferro contra mim e para a destruiccedilatildeo dos
meusrdquo
Atendendo ao pedido da esposa Vulcano confecciona um instrumento beacutelico
que garantiraacute a seguranccedila de Eneias Aleacutem disso o deus representaraacute neste artefato
136
o futuro da descendecircncia do heroacutei Apoacutes a confecccedilatildeo das armas de guerra Vecircnus
presenteia o filho A passagem inicia-se com as palavras da deusa
(hex 612 ndash 614) En perfecta mei promissa coniugis arte munera ne mox aut Laurentis nate superbos aut acrem dubites in proelia poscere Turnum Eis aqui os presentes prometidos terminados pelo meu esposo Filho natildeo duvides em desafiar depois nas batalhas os soberbos laurentinos ou o vigoroso Turno
A partir dessas palavras desenham-se por meio do olhar do narrador
mesclado ao olhar de Eneias os utensiacutelios beacutelicos As armas de guerra satildeo descritas
e para cada uma delas eacute apresentada uma caracteriacutestica especiacutefica Por meio da
descriccedilatildeo das armas podemos acompanhar o olhar de Eneias e a partir desse olhar
tambeacutem admirar a arte produzida por Vulcano
A exposiccedilatildeo dos artefatos beacutelicos eacute minuciosa mas breve (hex 619 ndash 625)
Virgiacutelio mostra cada uma das armas qualificando-as O poeta apresenta cada uma o
capacete que conteacutem um penacho e que eacute responsaacutevel por despertar o terror no
oponente uma espada que leva agrave morte uma couraccedila riacutegida com uma tonalidade cor
de sangue botas de eletro feitas de metal compostas de ouro e prata uma lanccedila e
por fim um escudo que eacute inenarraacutevel
Ressalta-se para cada uma das armas apresentadas pelo poeta uma
particular estrutura descritiva nomeia-se a arma de guerra e posteriormente ela eacute
qualificada Quanto agrave essa forma de descriccedilatildeo nota-se que o uacutenico artefato beacutelico que
natildeo possui um qualificativo eacute a lanccedila A omissatildeo da caracteriacutestica da lanccedila colocaraacute
assim o escudo em um relevo especial jaacute que este utensiacutelio beacutelico eacute tatildeo importante
para o desenvolvimento da narrativa virgiliana que ganha uma descriccedilatildeo mais
detalhada
As figuras em cenaacuterio eacutepico natildeo revestem uma temaacutetica humilde mas sim uma
temaacutetica sublime por isso se reconhece na eacutepica o estilo grandiloquente Para Grimal
(1992 p 187) ldquoo tom da epopeia eacute o mais elevado possiacutevel eacute ldquosublimerdquo por
excelecircncia pois refere-se aos assuntos mais grandiosos e aos interesses mais
altos()rdquo
137
Com vistas agrave percepccedilatildeo de um estilo grandiloquente nos versos seguintes
hexacircmetros 612 a 731 procuramos analisar a descriccedilatildeo particular do escudo de
Eneias instrumento em que o deus do fogo Vulcano esculpiu os feitos da Itaacutelia e os
triunfos dos romanos No poema o escudo de Eneias eacute transformado em objeto
artiacutestico jaacute que nele se desenham os acontecimentos histoacutericos de Roma desde a
sua fundaccedilatildeo O escudo permite que o leitor veja o destino grandioso da Nova Troia
que seraacute fundada no Laacutecio Observa-se no excerto uma rede de figuras coerentes
ao contexto da poesia eacutepica porque supotildeem uma unidade do discurso levando-nos
ao entendimento de um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo o grandiloquente Vale
ressaltar tambeacutem o modo como Virgiacutelio desenhou a histoacuteria de Roma valendo-se da
palavra poeacutetica
O escudo comeccedila a ser descrito pela figura lendaacuteria da loba alimentando
Rocircmulo e Remo (hex 630-634)
Fecerat et uiridi fetam Mauortis in antro procubuisse lupam geminos huic ubera circum ludere pendentis pueros et lambere matrem impauidos illam tereti ceruice reflexam mulcere alternos et corpora fingere lingua
E havia colocado a feacutertil loba deitada no antro verde de Marte e suspensos em volta de suas tetas os meninos gecircmeos a brincar e a lamber sem medo a matildee ela voltada para traacutes de cabeccedila arredondada a acariciaacute-los um e outro e a afagar seus corpos com a liacutengua
Nesta passagem a figura da loba aparece deitada no antro verde de Marte
uma gruta destinada ao deus e que eacute recoberta por plantas Sabe-se que o deus Marte
aparece em Roma como o deus da Guerra mas ele tambeacutem eacute visto como o deus da
vegetaccedilatildeo ou seja um deus da Primavera jaacute que a eacutepoca da guerra comeccedila com o
fim do Inverno Eacute ele assim quem guia os jovens que emigram das cidades sabinas
para fundar novas cidades e encontrar novos locais para se estabelecerem (GRIMAL
2014 p 293) Ao costume de deixar o velho local em procura de outro chamava-se
ldquover sacrumrdquo ldquoa primavera sagradardquo No trajeto ao novo local os jovens eram guiados
pelo piccedilanccedilo ave passeriforme ou pelo lobo dois animais consagrados a Marte Daiacute
o papel da loba no campo verde de Marte O tempo do verbo ldquoprocubuisserdquo perfeito
ativo do infinitivo segundo Conington indica a accedilatildeo da loba que jaacute havia se deitado
quando os gecircmeos se posicionaram para beber o leite
138
procubuisse lupam geminos huic ubera circum
a loba deitada os gecircmeos ao redor das tetas
A figura da loba aleacutem de lendaacuteria mesclou-se agrave histoacuteria e tem um lugar de
destaque no pequeno excerto Nota-se ainda que a histoacuteria de Rocircmulo e Remo eacute
sugerida a partir da imagem da feacutertil loba e deve portanto ser completada pelo leitor
Trata-se de um mito acerca da histoacuteria da fundaccedilatildeo de Roma em que os gecircmeos
Rocircmulo e Remo filhos do deus Marte com Reacuteia Silvia descendente da estirpe de
Eneias foram amamentados por uma loba
A feacutertil loba passa-nos portanto a ideia de abundacircncia eacute ela que supre os
gecircmeos Na ldquoIV Bucoacutelicardquo de Virgiacutelio quando eacute mencionado o Retorno da Idade de
Ouro e o nascimento de uma crianccedila toda natureza tambeacutem aparece apta a servir
(hex 60-63)
Ipsae lacte domum referente distenta capellae Ubera nec magnos metuent armenta leones Ipsa tibi blandos fundente cunabula flores
As cabritinhas por si mesmas levaratildeo a casa as tetas cheias de leite os rebanhos natildeo temeratildeo os terriacuteveis leotildees Para ti (crianccedila) o proacuteprio berccedilo espalharaacute as delicadas flores
No pequeno excerto da ldquoIV Bucoacutelicardquo como visto acima a natureza modifica-
se para receber a crianccedila que havia acabado de nascer e paralelamente neste
pequeno excerto do ldquoVIII Cantordquo da Eneida a feacutertil loba encontra-se apta a servir
alimentar os gecircmeos receacutem-nascidos A natureza nos dois casos encanta-se com a
crianccedila que traz boas novas
Apoacutes a figura da loba mostra-se o episoacutedio do rapto das Sabinas entalhado
no escudo como marca lendaacuteria de um dos eventos que se seguiram agrave fundaccedilatildeo de
Roma Mais uma vez trata-se de um episoacutedio que eacute apenas sugerido jaacute que os
detalhes do acontecimento natildeo satildeo mencionados pois eles devem ser reconstituiacutedos
pelo leitor No excerto satildeo citadas as Raptadas Sabinas e a guerra entre os
Romulidas e o Velho Taacutecio Quando Roma foi fundada soacute existiam homens e Rocircmulo
preocupou-se em povoaacute-la com mulheres Rocircmulo decidiu entatildeo raptar as moccedilas
139
dos seus vizinhos os Sabinos e para isso organizou grandes corridas de cavalos
durante as festas de Consus A um sinal combinado durante o evento os homens de
Rocircmulo os Romulidas raptaram todas as jovens O Velho Taacutecio o rei dos Sabinos
apoacutes o rapto das Sabinas organizou um exeacutercito que marchou contra Roma Mas
segundo conta-nos Tito Liacutevio (1989 p 31) apoacutes intervenccedilatildeo das proacuteprias sabinas em
meio agrave guerra pedindo pela harmonizaccedilatildeo dos dois povos Romanos e Sabinos
assinaram um tratado de alianccedila que unia os dois povos (GRIMAL 2014 p 409)
Diz-se que durante a guerra contra os Sabinos Rocircmulo dirigiu a Juacutepiter um
pedido e prometeu-lhe edificar um templo no exato lugar em que o combate mudasse
de feiccedilatildeo Cessada a batalha foi construiacutedo o templo de Iupiter Stator (Juacutepiter que
deteacutem) edificado no local onde mais tarde foi construiacutedo o arco de Tito na Via Sacra
(GRIMAL 2014 p 409) A figura do templo de Juacutepiter bem como das paacuteteras taccedilas
usadas em sacrifiacutecios e da porca imolada deixam entrever a comunhatildeo entre
Romulidas e Sabinos com o fim da guerra Conington (2008 p147) revela-nos que
era antigo o costume de se sacrificar um suiacuteno em tratados de paz
(hex 635-641)
Nec procul hinc Romam et raptas sine more Sabinas consessu caueae magnis Circensibus actis addiderat subitoque nouom consuergere bellum Romulidis Tatioque seni Curibusque seueris Post idem inter se posito certamine reges armati Iouis ante aram paterasque tenentes stabant et caesa iungebant foedera porca
Natildeo longe dali havia reunido Roma e as raptadas Sabinas sem o haacutebito na assembleia do teatro nas grandes representaccedilotildees circenses e de suacutebito a erguer-se uma nova guerra entre os Romulidas e o velho Taacutecio rei dos severos habitantes de Cures Depois de cessada a batalha os reis entre si estavam de peacute e armados diante do altar de Juacutepiter segurando as paacuteteras e faziam um tratado de alianccedila com a porca imolada
Outro episoacutedio entalhado no escudo eacute o esquartejamento de Meacutecio No
pequeno excerto temos o vocaacutebulo ldquoMettumrdquo Meacutecio entre os vocaacutebulos ldquocitaerdquo e
ldquoquadrigaerdquo raacutepidas quadrigas remetendo-nos iconicamente agrave ideia do
esquartejamento do rei albano Reforccedila ainda esta ideia os outros vocaacutebulos que
fazem alusatildeo a Meacutecio mas que aparecem distantes espalhados nos versos
seguintes como ldquoAlbanerdquo Albano ldquouirirdquo homem ldquomendacisrdquo mentiroso e ldquouiscerardquo
140
viacutesceras levando-nos a ideia jaacute expressa nos versos a de que as raacutepidas quadrigas
esquartejaram Meacutecio em sentidos contraacuterios
(hex 642-645)
Haud procul inde citae Mettum in diuersa quadrigae distulerant (at tu dictis Albane maneres) raptabatque uiri mendacis uiscera Tullus per siluam et sparsi rorabant sanguine uepres
Natildeo longe daiacute as raacutepidas quadrigas esquartejaram Meacutecio Fufeacutecio em sentidos contraacuterios (mas tu oacute Albano natildeo manterias teus dizeres) e Tulo arrastava as viacutesceras do mentiroso homem pela floresta e os espinheiros cobertos com sangue escorriam
Meacutecio Fufeacutecio foi o uacuteltimo rei lendaacuterio de Alba Longa Conta-se que ele fez um
acordo com Tulo o terceiro rei lendaacuterio de Roma Os romanos haviam declarado
guerra contra os albanos mas Tulo e o rei de Alba Longa Meacutecio fizeram um acordo
para evitar o excessivo derramamento de sangue Como os dois exeacutercitos tinham um
conjunto de irmatildeos trigecircmeos foi decidido que esses irmatildeos lutariam entre si Os
irmatildeos Horaacutecios lutariam pelo lado romano enquanto os Curiaacutecios lutariam pelos
albanos Roma saiu vitoriosa e Alba Longa foi submetida ao Estado romano
Posteriormente quando Meacutecio se recusou a ajudar Roma em um conflito traindo-a
diz-se que foi esquartejado por duas quadrigas lanccediladas em direccedilotildees opostas
Tito Liacutevio (59 aC ndash 17 dC) historiador romano em Ab urbe condita (1989 p
60) assim registrou esse acontecimento
Tulo entatildeo prosseguiu Meacutetio Fufeacutecio se pudesses aprender ainda a respeitar os juramentos e os tratados eu te pouparia a vida e seria eu proacuteprio o teu instrutor Mas como teu caraacuteter eacute irrecuperaacutevel que ao menos teu supliacutecio ensine os homens a considerarem sagrados os compromissos que violas e assim como ontem dividias tua alma entre Fidenas e Roma hoje eacute a vez de teu corpo ser tambeacutem dividido Mandou entatildeo que trouxessem duas quadrigas agraves quais fez amarrar Meacutetio com os membros distendidos Em seguida os cavalos foram impelidos em direccedilatildeo contraacuteria o corpo se dilacerou e os dois carros arrastaram os membros neles amarrados Todos os olhares se afastaram do horriacutevel espetaacuteculo (XXVIII)
Somando-se a este episoacutedio Vulcano coloca tambeacutem dois personagens
Porsena rei da cidade etrusca Cluacutesio antiga cidade na Itaacutelia e Tarquiacutenio o Soberbo
responsaacutevel pela morte de Seacutervio Tuacutelio sexto rei de Roma Conta-se que ao tomar o
141
poder no senado romano Tarquiacutenio perseguiu os partidaacuterios de Seacutervio Tuacutelio e
confiscou seus bens Foi deposto em 509 aC Quando foi expulso de Roma Tarquiacutenio
procurou a ajuda de Porsena e pediu-lhe asilo Porsena aproveitou assim para
declarar guerra agrave Roma No ano de 507 aC Porsena sitiou Roma cercando-a Mais
uma vez os detalhes dos acontecimentos natildeo satildeo mencionados por Virgiacutelio mas
apenas aludidos atraveacutes das figuras por ele elencadas Merece destaque a imagem
do cerco agrave Roma
(hex 646-651)
Nec non Tarquinium eiectum Porsenna iubebat accipere ingentique urbem obsidione premebat Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant Illum indignanti similem similemque minanti aspiceres pontem auderet quia uellere Cocles et fluuium uinclis innaret Cloelia ruptis
E ainda tambeacutem Porsena mandava receber o exilado Tarquiacutenio e sitiava a cidade com um enorme cerco Os descendentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade Se observares aquele semelhante ao indigno e semelhante ameaccedilador porque Cocles ousara destruir a ponte e Cleacutelia atravessara a nado o rio com as correntes destruiacutedas
Nota-se que o vocaacutebulo ldquourbemrdquo cidade encontra-se entre a expressatildeo ldquoingenti
obsedionerdquo grande cerco remetendo-nos iconicamente agrave ideia de que a cidade estaacute
sitiada
ingentique urbem obsidione premebat
e sitiava a cidade com um enorme cerco
Em menccedilatildeo ao verso seguinte (hex 648)
Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant
Os descentes de Eneias corriam ao ferro pela liberdade
Conington (2008 p148) destaca a expressatildeo ldquoin ferrum ruererdquo (ldquocorrer ao
ferrorsquo) pois segundo ele desenha-se nesta passagem uma espeacutecie de espada Com
base nessa afirmaccedilatildeo observamos que a recorrecircncia do fonema vibrante r no final
142
do verso Aeneadae in ferrum pro libertate ruebant mimetiza a ideia de um ranger de
espadas remetendo-nos portanto agrave ideia da batalha
Assim com Roma cercada por Porsena Horaacutecio Cocles defendeu a ponte pela
qual o inimigo iria atravessar o Tibre Diz-se tambeacutem que durante o cerco agrave Roma em
507 aC Cleacutelia era prisioneira e conseguiu fugir atravessando o Tibre a nado A
imagem deste acontecimento tambeacutem foi aludida iconicamente
Et fluvium uinclis innaret Cloelia ruptis
E Clelia atravessara o rio com as correntes destruiacutedas
Nota-se que as correntes destruiacutedas aparecem figurativamente no verso pois
o vocaacutebulo ldquouinclisrdquo correntes estaacute apartado do vocaacutebulo ldquoruptisrdquo destruiacutedas
representando a ideia de ruptura e liberdade de Cleacutelia
O memoraacutevel escudo de Eneias traz ainda a figura de Marco Macircnlio cocircnsul
da Repuacuteblica Romana que defendeu Roma da invasatildeo gaulesa De acordo com os
comentaacuterios de Conington (2008 p 148) para os hexacircmetros 652 e 653
In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
stabat pro templo et Capitolia celsa tenebat
No alto o guardiatildeo de Tarpeia Macircnlio estava de peacute diante do templo
e defendia o alto do Capitoacutelio
O termo ldquoIn summordquo no alto refere-se ao topo do escudo de Eneias e Macircnlio
eacute representado pictoricamente ao lado da rocha Tarpeia como podemos observar
iconicamente no verso In summo custos Tarpeiae Manlius arcis
No hexacircmetro 654 Conington (2008 p 148) afirma que ao utilizar o vocaacutebulo
ldquorecensrdquo Virgiacutelio assinala a arte de Vulcano no presente ofertado a Eneias jaacute que se
trata do recente palaacutecio acabado de ser entalhado no escudo
Romuleoque recens horrebat regia culmo
O recente palaacutecio de Rocircmulo estremecia com o colmo
143
O hexacircmetro na visatildeo do criacutetico alude a renovaccedilatildeo constante da casa de
Rocircmulo nos tempos histoacutericos de Roma O termo ldquoRomuleordquo refere-se ao que se
manteve como era nos tempos de Rocircmulo Virgiacutelio usa a imagem do colmo ldquoculmordquo
a palha usada para cobrir as casas para descrever o palaacutecio de Rocircmulo e combinaacute-
lo de certa forma com o templo dourado de seu proacuteprio tempo Dessa forma constroacutei-
se para o leitor a imagem do Capitoacutelio
Ainda neste excerto chama-se a atenccedilatildeo dos romanos para um ataque noturno
dos gauleses O sinal foi dado pelos gansos que viviam ao redor do templo de Juno
no monte Capitolino
(hex 655-662)
Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat Galli per dumos aderant arcemque tenebant defensi tenebris et dono noctis opacae aurea caesaries ollis atque aurea uestis uirgatis lucent sagulis tum lactea colla auro innectuntur duo quisque Alpina coruscant gaesa manu scutis protecti corpora longis
E aqui um ganso prateado voejava sob os poacuterticos ornados de ouro anunciava os gauleses que se aproximavam da estrada Os gauleses atacavam pelas moitas e ocupavam a citadela protegidos pelas trevas por um presente da opaca noite Seus cabelos aacuteureos suas vestes aacuteureas e os sagos listrados brilham Entatildeo seus pescoccedilos laacutecteos estatildeo atados com o ouro cada um dos dois agita nas matildeos os dardos alpinos os corpos protegidos pelo longo escudo
Para Conington (2008 p149) o termo ldquouolitansrdquo particiacutepio presente que se
refere a accedilatildeo de voejar daacute-nos a imagem das asas vibrantes dos gansos
Atque hic auratis uolitans argenteus anser porticibus Gallos in limine adesse canebat
O que reforccedila essa ideia na verdade eacute a repeticcedilatildeo do fonema sibilante s nos
dois primeiros hexacircmetros que colaboram para a construccedilatildeo dessa imagem jaacute que
sugerem por meio da aliteraccedilatildeo em s a presenccedila do voo dos gansos no poema
Vulcano destaca ainda alguns elementos de cultura e entalha no escudo de
Eneias os saacutelios sacerdotes que realizavam cultos ao deus Marte o deus guerreiro
e os lupercus sacerdotes de Fauno que era uma divindade associada ao campo e agrave
144
fertilidade Os lupercus utilizavam chicotes feitos com couro de cabra que eram
chamados de barretes sacerdotais de latilde Destacam-se assim as cerimocircnias
sagradas
(hex 663-666)
Hic exsultantis Salios nudosque Lupercos lanigerosque apices et lapsa ancilia caelo extuderat castae ducebant sacra per urbem pilentis matres in mollibus [hellip]
Aqui havia representado os saltitantes saacutelios e os lupercus nus os barretes sacerdotais de latilde e os escudos caiacutedos do ceacuteu As castas matronas conduziam pela cidade nas flexiacuteveis carruagens os objetos sagrados
De acordo com Heyne Peerlkamp e Ribbeck todos citados por Conington
(2008 p150) agrave primeira vista a introduccedilatildeo das regiotildees infernais nos hexacircmetros de
nuacutemero 666 a 670 parece fora de sintonia com o resto do contexto esculpido por
Vulcano mas devemos considerar como bem aponta-nos Conington que neste
pequeno excerto assim como em outros o objetivo de Virgiacutelio eacute narrar incidentes
pictoacutericos e entre eles a posiccedilatildeo de benfeitores e criminosos nacionais
(hex 666-670)
[hellip] Hinc procul addit Tartareas etiam sedes alta ostia Ditis et scelerum poenas et te Catilina minaci pendentem scopulo Furiarumque ora trementem secretosque pios his dantem iura Catonem
Daqui ao longe acrescenta tambeacutem as moradas do Taacutertaro a alta porta de Dite e os castigos dos criminosos e tu oacute Catilina suspenso do ameaccedilador rochedo e tremendo em face das Fuacuterias e agrave parte os piedosos aos quais Catatildeo havia ditado as leis
No pequeno excerto os inimigos de Ceacutesar satildeo colocados no mundo inferior o
Taacutertaro Dite eacute um dos nomes utilizados para se referir ao deus Plutatildeo que eacute
responsaacutevel pelo mundo inferior No Taacutertaro encontra-se Catilina um militar e senador
romano que queria destruir o poder oligaacuterquico do senado bem como as fuacuterias
divindades que viviam nas profundezas e eram responsaacuteveis pela tortura das almas
Ao traidor Catilina coube a agonia de cair do abismo enquanto a Catatildeo o Jovem ou
Catatildeo de Uacutetica poliacutetico romano ceacutelebre pela sua inflexibilidade e integridade moral
145
coube os Campos Eliacuteseos Na visatildeo de Conington (2008 p151) a figura de Catatildeo
apresenta-se nesta passagem em contraste com a figura de Catilina concluindo que
o caraacuteter de Catatildeo em vida fez dele um legislador para os mortos
Vulcano prossegue nos detalhes de sua obra com a imagem de um mar que
atravessa o escudo como um tipo de fronteira
(hex 671-674)
Haec inter tumidi late maris ibat imago aurea sed fluctu spumabant caerula cano et circum argento clari delphines in orbem aequora uerrebant caudis aestumque secabant
Entre isto a aacuteurea imagem de um mar inchado espalhava-se amplamente ao longe mas o mar espumava com a onda branca e ao redor os brilhantes golfinhos de prata em ciacuterculo varriam as superfiacutecies das aacuteguas com suas caudas e fendiam as agitadas ondas
Destaca-se desta passagem a figura dos golfinhos delphines O golfinho eacute um
animal marinho consagrado a Apolo pois seu nome lembra o santuaacuterio principal de
Apolo em Delfos Se lembrarmos portanto que Apolo foi adotado por Otaviano como
seu protetor pessoal e que o imperador atribuiacutea ao deus a sua vitoacuteria na batalha naval
contra Marco Antocircnio e Cleoacutepatra a presenccedila dos golfinhos abrindo o cenaacuterio da
batalha do Aacutecio faz alusatildeo agrave figura do deus Apolo bem como agrave proteccedilatildeo do deus aos
romanos (GRIMAL 2014 p33)
Assim no centro do escudo de Eneias detalha-se a Batalha do Aacutecio e coloca-
se a figura de Otaviano em destaque
(hex 675-688)
In medio classis aeratas Actia bella cernete erat totumque instructo Marte uideres feruere Leucaten auroque effulgere fluctus Hinc Augustus agens Italos in proelia Caesar cum patribus populoque penatibus et magnis dis stans celsa in puppi geminas cui tempora flamas laeta uomunt patriumque aperitur uertice sidus Parte alia uentis et dis Agrippa secundis arduos agmen agens cui belli insigne superbum tempora nauali fulgent rostrata corona Hinc ope barbarica uariisque Antonius armis uictor ab Aurorae populis et litore rubro Aegyptum uirisque Orientis et ultima secum Bactra uehit sequiturque (nefas) Aegyptia coniunx
146
No meio via-se as armadas de bronze a guerra do Aacutecio via-se todo o Leucates a ferver com Marte preparado e as ondas resplandecerem com o brilho do ouro De um lado Ceacutesar Augusto conduzindo os iacutetalos agrave guerra com os representantes e o povo os penates e os deuses maiores em peacute sobre a elevada popa a que o seu feliz rosto lanccedila duplas chamas e a constelaccedilatildeo do seu pai abre-se sobre sua cabeccedila Em outra parte Agripa com os ventos e os deuses favoraacuteveis conduzindo o exeacutercito soberba insiacutegnia da guerra suas tecircmporas resplandecem sob os rostros da coroa naval De outra parte com forccedila militar estrangeira e armas variadas Antocircnio vencedor dos povos da Aurora e do Litoral Vermelho transporta com ele o Egito a forccedila do Ocidente e a longiacutengua Bactra e eacute seguido pela esposa egiacutepcia
Representa-se neste excerto os dois rivais de um lado Otaacutevio Augusto o
senado o povo os Penates e os grandes deuses romanos de outro Marco Antocircnio
e Cleoacutepatra acompanhados de um exeacutercito de homens baacuterbaros e figuras divinas
monstruosas Com o fim da batalha haacute o triunfo de Otaacutevio sobre Marco Antocircnio e a
Alexandria Posteriormente sentado agrave entrada do templo de Apolo Otaacutevio recebe os
presentes das naccedilotildees vencidas O fim da guerra delimita o iniacutecio da pax romana
A pax romana de Augusto natildeo era uma paz baseada na ineacutercia era a paz obtida depois de graves lutas era a paz unida agrave forccedila significava natildeo tanto a seguranccedila interna mas tambeacutem a consolidaccedilatildeo e o engrandecimento no exterior e coincidia com o ressurgimento do espiacuterito imperialista com a certeza de realizar por meio do impeacuterio uma missatildeo assinalada pelo destino missatildeo de civilizaccedilatildeo para ser propagada e imposta aos povos (LEONI 1969 p66)
O escudo de Eneias como se viu traz episoacutedios centrais da histoacuteria de Roma
a loba que alimenta Rocircmulo e Remo o rapto das Sabinas o castigo da traiccedilatildeo de
Meacutecio por Tulo Hostiacutelio a invasatildeo de Porsena os feitos heroicos de Horaacutecio Cocles e
Cleacutelia a defesa do Capitoacutelio contra os gauleses saacutelios e lupercus e no centro a
batalha do Aacutecio Haacute tambeacutem a representaccedilatildeo do mundo inferior no Taacutertaro encontra-
se Catilina inimigo da paacutetria enquanto nos Campos Eliacuteseos lugar onde habitam os
justos Catatildeo aparece ditando as leis Condensados em poucos versos estes
episoacutedios revelam um modo peculiar de medir o tempo na narrativa jaacute que a
percepccedilatildeo de grandes mudanccedilas histoacutericas satildeo condensadas em um curto periacuteodo
contrariando a mediccedilatildeo cronoloacutegica do tempo Com relaccedilatildeo ao tempo da narrativa
147
portanto no escudo figura-se o futuro de Roma pois ele mostra a Eneias
acontecimentos que ainda natildeo aconteceram
O escudo de Eneias ganha especial descriccedilatildeo na narrativa Isso se deve agrave
peculiaridade que ele carrega o futuro de Roma Levando em conta a definiccedilatildeo do
dicionaacuterio de siacutembolos para o termo ldquoescudordquo encontramos
O escudo (broquel) eacute o siacutembolo da arma passiva defensiva protetora embora agraves vezes possa ser tambeacutem mortal Agrave sua proacutepria forccedila (como objeto de metal ou de couro) ele associa magicamente forccedilas figuradas Efetivamente o escudo eacute em muitos casos uma representaccedilatildeo do universo como se o guerreiro ao usaacute-lo opusesse o cosmo ao seu adversaacuterio e como se os golpes deste uacuteltimo atingissem muito aleacutem do combatente agrave sua frente e alcanccedilassem a proacutepria realidade representada nos ornatos do broquel O escudo de Aquiles eacute um singular exemplo disso Hefestos (Vulcano) cria nele uma decoraccedilatildeo muacuteltipla fruto de seus saacutebios pensamentos Ornamenta-o com figuras da terra do ceacuteu e do mar do sol infatigaacutevel e da lua cheia bem como de todos os outros astros que coroam o ceacuteu Tambeacutem satildeo figuradas duas cidades humanas ndash duas belas cidades Numa delas veem-se nuacutepcias festins Em torno da outra cidade acampam dois exeacutercitos cujos guerreiros rebrilham sob suas armaduras Os atacantes hesitam entre duas decisotildees a destruiccedilatildeo da cidade inteira ou a partilha de todas as riquezas que guarda dentro de seus muros a apraziacutevel cidade (HOMI 18 v 478 ndash 492 508 ndash 512) Nesse broquel Hefestos potildee ainda uma terra branda um campo feacutertil domiacutenios reais um vinhedo pesadamente carregado de uvas um rebanho de vacas de chifres altos uma pastagem de cabras uma praccedila de danccedila e por fim a forccedila pujante do rio Oceano a formar a beirada do soacutelido escudo Todas as razotildees de viver todas as belezas do universo todos os siacutembolos da forccedila da riqueza e da alegria estatildeo mobilizados e concentrados nesse broquel O escudo era grande o bastante para proteger o combatente de cima a baixo e eventualmente servir de padiola para carregar um morto ou um ferido (CHEVALIER GHEERBRANT 1999 p 387)
Com isso entende-se que o ldquoescudordquo no pequeno excerto vai aleacutem de um
termo aleatoacuterio Trata-se de um artefato beacutelico de uma forccedila milenar jaacute que ele
carrega a origem de Roma a Nova Troia bem como toda a descendecircncia do heroacutei
Eneias Pensando-se no tempo da narrativa as imagens ali esculpidas separam o
tempo de Eneias e o tempo do imperador Otaacutevio Augusto revelando-nos um passado
e um futuro
Vale destacar que as figuras gravadas no escudo apenas sugerem a accedilatildeo dos
personagens que deve portanto ser reconstituiacuteda pelo leitor No que diz respeito agrave
presenccedila do mito e sua narrativa sabe-se que entre os antigos o mito era associado
148
a algo verdadeiro divino e sagrado Inicialmente o mito era um relato sobre os
primoacuterdios ou sobre as accedilotildees heroicas ou fatos que tiveram ou natildeo uma intervenccedilatildeo
divina por isso eacute uma mateacuteria predominante e caracteriacutestica do gecircnero eacutepico Com
isso a poesia eacutepica experimenta o contato com o tempo passado
Procurou-se destacar no excerto selecionado para traduccedilatildeo e anaacutelise as
figuras representativas do cenaacuterio eacutepico e portanto a construccedilatildeo do texto em um
estilo grandiloquente Partindo do princiacutepio de que o estilo eacute efeito de sentido e uma
construccedilatildeo do discurso verificamos que o efeito grandiloquente emerge de uma
recorrecircncia figurativa
Neste excerto da Eneida o efeito de individuaccedilatildeo pretendido foi o sublime e a
rede de figuras deixaram entrever uma recorrecircncia de representaccedilatildeo a de um cenaacuterio
marcado pela figura do heroacutei que eacute agraciado pelos deuses com um presente especial
um artefato beacutelico que registra a histoacuteria de sua descendecircncia
As figuras destacadas portanto com especial atenccedilatildeo ao escudo de Eneias
engendram um cenaacuterio marcado por feitos heroicos que eacute mediado pela accedilatildeo vigorosa
do heroacutei e seu povo
A poesia eacutepica virgiliana em um tom vigoroso e portanto com destaque para
temas e figuras grandiloquentes colocou em relevo agraves faccedilanhas da Itaacutelia e os triunfos
romanos
149
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Ao compreendermos o estilo como efeito de sentido produzido pelo discurso
reconhecemos a importacircncia de se analisar a recorrecircncia de procedimentos temaacuteticos
e figurativos na construccedilatildeo do sentido
Para descrever um estilo devemos compreender a rede de temas e figuras que
configuram a totalidade discursiva entendendo-as como repertoacuterio deduziacutevel do texto
mas tambeacutem como um modo especiacutefico de uso desse repertoacuterio
Na anaacutelise de um determinado estilo devemos procurar portanto os temas e
figuras que estatildeo circunscritos no discurso a fim de depreendermos um especiacutefico
efeito de individuaccedilatildeo engendrado no texto
Como jaacute vimos a Roda de Virgiacutelio especifica quais seriam as figuras desejadas
para o contexto da poesia bucoacutelica didaacutetica e eacutepica pensando cada grupo de figuras
a partir de diferentes contextos seja do estilo simples (singelo) do meacutedio e do
grandiloquente Ao mapear os trecircs estilos da Antiga Retoacuterica o esquema circular
tripartido que foi difundido a partir do seacuteculo XII atraveacutes dos estudos de Joatildeo de
Garlacircndia natildeo aponta para uma classificaccedilatildeo entre os gecircneros bucoacutelico didaacutetico e
eacutepico pensando-os do baixo ao elevado mas sim para uma ideia de continuidade
temaacutetica da carreira literaacuteria de Virgiacutelio
Se uma roda como se sabe gira em torno de um eixo central podemos pensar
em Virgiacutelio como o eixo que mobiliza movimenta trecircs cenaacuterios de atuaccedilatildeo As
Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida movimentam-se em torno do poeta que criou
diferentes cenaacuterios de atuaccedilatildeo e personagens o pastor o agricultor e o heroacutei A partir
deles desenham-se as accedilotildees e a espacialidade para o pastor o campo a sombra
de uma frondosa faia para o agricultor o cultivo o campo lavrado as aacutervores
frutiacuteferas e para o heroacutei as batalhas e suas armas de guerra O cenaacuterio das Bucoacutelicas
traz um contorno humilde pois as figuras apresentadas satildeo de um universo temaacutetico
singelo ligado agrave natureza O cenaacuterio das Geoacutergicas traz um contorno diferenciado
pois as figuras abordam o cultivo das plantas e a criaccedilatildeo de animais ou seja trata-se
de um universo temaacutetico moderado em que satildeo apresentados alguns ensinamentos
relacionados agrave agricultura No cenaacuterio da Eneida o contorno eacute o sublime
grandiloquente pois o universo temaacutetico eacute outro o das guerras e batalhas em que
satildeo descritos os feitos dos heroacuteis
150
Ao analisar os trecircs tipos de estilo descritos na Roda de Virgiacutelio partimos do
princiacutepio de que todo estilo eacute um efeito de sentido e portanto uma construccedilatildeo do
discurso Acreditamos que esse efeito eacute determinado por recorrecircncias de
procedimentos na construccedilatildeo do discurso Quando falamos em recorrecircncia
estabelecemos como objeto de anaacutelise a isotopia figurativa presente nos textos que
eacute capaz de construir um especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo
Haacute portanto nas Bucoacutelicas nas Geoacutergicas e na Eneida uma direcionalidade
previamente estabelecida uma vez que o cenaacuterio campesino do pastor na ldquoBucoacutelica
Vrdquo constroacutei-se a partir de Mopso e Menalcas personagens bucoacutelicos que cantam
sobre a morte e apoteose de Daacutefnis pastor por excelecircncia e lendaacuterio inventor do
gecircnero bucoacutelico O ambiente de atuaccedilatildeo dos personagens eacute a gruta e o campo
Percebe-se na leitura do poema uma recorrecircncia de figuras que nos remetem a uma
temaacutetica singela sobre o viver ruacutestico o oacutecio e o prazer do canto levando-nos a um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo a do estilo simples
Enquanto isso no Canto IV (hex 1-115) das Geoacutergicas com intencionalidade
instrutiva e portanto em um estilo meacutedio revela-se qual eacute o ambiente mais adequado
para o cultivo das abelhas Assim o campo os rios e as folhagens hospitaleiras
participam da construccedilatildeo deste cenaacuterio em que tambeacutem figuram andorinhas
melharucos e outras aves predadoras que segundo a voz didaacutetica que perpassa a
obra satildeo um risco para as abelhas Apresentam-se tambeacutem os materiais adequados
para a produccedilatildeo das caixas que abrigam as abelhas a corticcedila e o vime Tem-se ainda
a menccedilatildeo a Aristeu um pastor miacutetico mas que sabe teacutecnicas de apicultura Neste
excerto das Geoacutergicas eacute apresentada portanto uma narraccedilatildeo em que a voz poeacutetica
descreve qual o cenaacuterio mais adequado para a criaccedilatildeo de abelhas As figuras
presentes no fragmento revelam-nos o tema sobre os cuidados a serem tomados na
apicultura
Jaacute no Canto VIII (hex 612-731) da Eneida o estilo eacute o grandiloquente uma vez
que somos conduzidos a um cenaacuterio em que figuram o heroacutei com suas armas de
guerra Ao filho Eneias a deusa Vecircnus entrega o capacete as espadas a riacutegida
couraccedila as armaduras da perna a lanccedila e o inenarraacutevel escudo As figuras remetem-
nos ao tema das batalhas e posteriormente aos triunfos dos romanos
151
Se retomarmos as figuras presentes na Roda podemos entender que cada
estilo cria um modo individualizador de dizer gerando uma expectativa de
personagens accedilatildeo e ambientaccedilatildeo Observa-se uma recorrecircncia figurativa que resulta
em especiacuteficos efeitos de sentido Confirma-se assim que os diferentes papeacuteis
temaacuteticos presentes na constituiccedilatildeo de um estilo fundamentam a totalidade discursiva
As personagens e seus respectivos cenaacuterios de atuaccedilatildeo estatildeo pressupostos em cada
efeito de individuaccedilatildeo De cada estilo depreende-se dessa forma uma expectativa
do dizer
Pensando nos excertos das obras virgilianas aqui estudados para o humilis
stylus encontramos como personagens os pastores Mopso e Menalcas dentre os
animais representativos os cabritos aleacutem da flauta e o cajado como objetos coerentes
ao universo dos pastores Tambeacutem destacamos o campo a gruta e os olmeiros que
figuram como a espacialidade desejada para o cenaacuterio bucoacutelico descrito
Na Roda de Virgiacutelio as personagens mencionadas satildeo Tityrus e Meliboeus
figuras recorrentes nos idiacutelios de Teoacutecrito e que depois tambeacutem foram retomadas por
Virgiacutelio As outras figuras mencionadas as ovelhas o cajado o campo e a faia
tambeacutem satildeo coerentes ao universo bucoacutelico jaacute que contribuem para a previsibilidade
do cenaacuterio no contexto do humilis stylus
Para o mediocris stylus podemos destacar como personagem o pastor Aristeu
que sabe teacutecnicas de apicultura A menccedilatildeo a este personagem eacute feita nos hexacircmetros
281-294 315-558 do Canto IV das Geoacutergicas Embora ele natildeo apareccedila no excerto
aqui estudado podemos destacar sua presenccedila como personagem representativo
justamente por ser parte do contexto virgiliano Dentre os animais representativos
podem ser destacadas as abelhas pois o excerto aqui estudado aborda alguns
conselhos de apicultura colocando as abelhas portanto em maior destaque Aleacutem
disso as colmeias podem figurar como objeto representativo em uma alusatildeo agraves
caixas de corticcedila e vime destinadas ao abrigo das abelhas e que aparecem no texto
como um dos conselhos a ser seguido na apicultura Para a descriccedilatildeo do cenaacuterio vale
destacar o campo o rio e as folhagens hospitaleiras ambiente adequado para as
abelhas se alojarem
Na Roda virgiliana os personagens mencionados para o mediocris stylus satildeo
Triptolemus e Coelius (agraves vezes pode aparecer Caelius como jaacute mencionamos
anteriormente) Em Joatildeo de Garlacircndia aparece ainda Triptolemus e Ceres Segundo
152
Fowler (2012) Coelius e Triptolemus satildeo nomes comuns para a eacutepoca nomes
destinados aos proprietaacuterios da terra por exemplo embora a figura de Triptolemus
apareccedila em um dos Hinos Homeacutericos agrave Demeacuteter deusa grega da agricultura daiacute a
menccedilatildeo a Ceres equivalente romano para Demeacuteter feita por Garlacircndia Satildeo nomes
portanto que estariam dentro do contexto das Geoacutergicas mesmo natildeo sendo
personagens virgilianos seriam nomes equivalentes Logo o boi o arado o campo e
os pomares todos mencionados na Roda de Virgiacutelio figuram como elementos
previsiacuteveis neste contexto
No grauis stylus podemos destacar como personagens Eneias e Turno Como
protagonista da Eneida o heroi Eneias figura como o filho protegido da deusa Vecircnus
que eacute agraciado com artefatos beacutelicos feitos pelo deus das forjas Vulcano Turno o
seu rival na batalha aparece para fazer contraponto ao heroi Dentre os animais
representativos destacamos o cavalo que embora natildeo apareccedila no excerto aqui
estudado eacute uma figura recorrente no contexto eacutepico virgiliano Como objetos
representativos tecircm-se as espadas as armaduras a lanccedila e o escudo A accedilatildeo das
personagens remete agrave defesa das muralhas da cidade bem como agrave construccedilatildeo delas
e o louro figura como uma honraria destinada aos heroacuteis
Na Roda os personagens citados satildeo Hector e Ajax personagens recorrentes
na epopeia homeacuterica Em Homero um dos modelos utilizados por Virgiacutelio o estilo
grandiloquente portanto tambeacutem contribui para a compreensatildeo das personagens
sua atuaccedilatildeo e a espacialidade descrita
Queremos destacar assim que para cada estilo encontramos uma
homogeneizaccedilatildeo das figuras que corroboram para uma direcionalidade do discurso e
para a criaccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos
Para Norma Discini (2009 p 57) ldquoo estilo apresenta um ponto de vista sobre o
mundordquo Pensando-se nas obras de Virgiacutelio cada estilo simples meacutedio e
grandiloquente aponta para a recorrecircncia de um modo de dizer remetendo-nos a
diferentes discursos com diferentes pontos de vista
Segundo Discini (2009 p 59)
descrever um estilo eacute reconstruiacute-lo Para tanto reconstruiacutemos o ator da enunciaccedilatildeo esse sujeito cuja figura emerge como corpo como caraacuteter de uma totalidade enunciada Por isso o estilo eacute um efeito de sentido uma construccedilatildeo do discurso O efeito de estilo pressupotildee concretizada nas figuras da espacialidade temporalidade e actorialidade uma sistematizaccedilatildeo Trata-se de uma homogeneizaccedilatildeo
153
do sentido que confirma a coerecircncia global do estilo e confirma tambeacutem um equiliacutebrio necessaacuterio agrave economia geral da construccedilatildeo do sentido
Logo observa-se que esta homogeneizaccedilatildeo do sentido se apoia nas isotopias
figurativas sejam elas espaciais pensando-se na descriccedilatildeo do espaccedilo de atuaccedilatildeo
ou actoriais pensando-se nas personagens Em Virgiacutelio as personagens descritas
revelam trecircs tipos sociais (o pastor o agricultor e o heroacutei) e a partir delas constroacutei-se
um modo de ser no texto uma recorrecircncia temaacutetica e figurativa que coloca em
destaque uma identidade do discurso os especiacuteficos efeitos de individuaccedilatildeo os
estilos
Pensando-se na doutrina dos genera dicendi ou seja dos trecircs tipos de estilo
definidos pelos gramaacuteticos antigos podemos entendecirc-los como instrumentos para a
construccedilatildeo de diferentes lugares enunciativos Cada estilo daacute uma direcionalidade
para o sentido de cada discurso Haacute nas trecircs obras virgilianas diferentes
personagens que marcam assim diferentes tipos sociais com diferentes ambientes e
accedilotildees
Para cada estilo destaca-se um personagem que a partir de seu papel temaacutetico
e figurativo aspectualiza-se no texto jaacute que a sua atuaccedilatildeo esquematiza um cenaacuterio
coerente
Portanto entendemos que os estilos simples meacutedio e grandiloquente que
perpassam as trecircs obras remetem-nos a uma mudanccedila de atuaccedilatildeo levando-nos a
especiacuteficas esquematizaccedilotildees figurativas seja do cenaacuterio das personagens ou das
accedilotildees circunscritas a cada estilo
Segundo Thamos em As armas e o varatildeo (2011 p 31)
Ao fazer girar ainda que muito de leve ldquoa roda de Virgiacuteliordquo ndash essa espeacutecie de hierarquia de estilos que os comentaristas da baixa latinidade identificaram nas obras do mantuano tomando respectivamente as Bucoacutelicas as Geoacutergicas e a Eneida como paradigmas dos trecircs tipos baacutesicos de estilo reconhecidos pelos antigos quais sejam o ldquosimplesrdquo (humilis stylus) o ldquotemperadordquo (mediocris stylus) e o ldquosublimerdquo (grauis stylus) ndash percebe-se que a expressatildeo num grande autor se sujeita por completo ao domiacutenio dos recursos da linguagem []
Procurou-se destacar com isso o modo como as figuras e temas se organizam
nas trecircs obras virgilianas Para tanto valemo-nos dos diferentes estilos e a partir
154
deles articulamos os personagens e seu ambiente de atuaccedilatildeo Procurou-se entender
como cada estilo determina a figuratividade presente nos textos agindo como um
especiacutefico efeito de individuaccedilatildeo
A poesia atinge um alto grau de encantamento quando a palavra poeacutetica
alcanccedila um aacutepice de realizaccedilatildeo imageacutetica A poesia vale-se da linguagem
experimentando-a e revificando-a
Assim como proposta deste trabalho procurou-se descrever e compreender a
construccedilatildeo expressiva da linguagem artiacutestica Para isso buscou-se entender que a
palavra poeacutetica enquanto imagem soacute alcanccedila sua funccedilatildeo puramente representativa
e esteacutetica quando percebida como uma forma particular de construccedilatildeo Coube-nos a
partir destas consideraccedilotildees ler as obras de Virgiacutelio com a finalidade de reconhecer a
eficaacutecia do texto poeacutetico e a sua vocaccedilatildeo imageacutetica
Procurou-se investigar em excertos representativos das trecircs obras virgilianas
alguns dos recursos responsaacuteveis pela formaccedilatildeo do sentido esteacutetico e poeacutetico dos
textos Aleacutem disso na anaacutelise das Bucoacutelicas das Geoacutergicas e da Eneida debruccedilamo-
nos sobre os trecircs tipos de estilo reconhecidos pelos gramaacuteticos antigos a fim de
compreendecirc-los a partir da Poeacutetica e da Semioacutetica Literaacuteria
Verificou-se que a triacuteade das obras virgilianas passou a ser representativa dos
trecircs tipos de estilo descritos pela Antiga Retoacuterica Posteriormente Joatildeo de Garlacircndia
filologista do seacuteculo XIII mapeou as trecircs obras na chamada Roda de Virgiacutelio
classificaccedilatildeo medieval que seguiu assim a doutrina dos gramaacuteticos antigos
Nosso trabalho portanto com vistas agrave compreensatildeo dos estilos presentes nas
obras virgilianas procurou reconhecer nos poemas o modo de atuaccedilatildeo de cada estilo
pensando-os como efeitos especiacuteficos de individuaccedilatildeo depreensiacuteveis por diferentes
recorrecircncias figurativas
Apresentamos ainda as traduccedilotildees dos excertos das trecircs obras com as
necessaacuterias referecircncias culturais Para estas notas foram utilizados dicionaacuterios de
mitologia e os comentaristas tradicionais acerca da obra do poeta mantuano
Foi feito um levantamento da origem da Roda de Virgiacutelio e do pensamento
estruturado pelos gramaacuteticos antigos acerca dos trecircs tipos de estilo presentes nas trecircs
obras Natildeo nos prendemos agraves classificaccedilotildees de maneira exaustiva jaacute que nosso
objetivo natildeo foi catalogar mas sim entender o modo como esses estilos atuam nos
textos Pensando nisso procuramos por meio da moderna anaacutelise metodoloacutegica dar
155
ecircnfase ao entendimento do estilo como efeito de sentido partindo da compreensatildeo
da isotopia figurativa presente em cada obra
Quanto ao capiacutetulo destinado aos comentaacuterios sobre a obra de Virgiacutelio
destacamos aqueles que julgamos pertinentes para a compreensatildeo acerca da
estrutura dos textos Dedicamos tambeacutem um capiacutetulo para as definiccedilotildees de tema
figura figuratividade e os processos de estruturaccedilatildeo do texto com exemplos de
excertos da obra virgiliana
Atualizando a questatildeo dos trecircs estilos na obra de Virgiacutelio o trabalho pretendeu
contribuir assim para as reflexotildees acerca da figuratividade na poesia bucoacutelica
didaacutetica e eacutepica
156
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Estabelecimento do texto notas e glossaacuterio Luiz Alberto Machado Cabral Cotia SP Ateliecirc
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Figura 3 ndash A Roda Virgiliana de Garlacircndia In GARLAND John of The Parisiana Poetria
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Yale University Press 1974 p 40-41
Figura 4 ndash A Roda de Virgiacutelio In GUIRAUD Pierre A estiliacutestica Trad Miguel Maillet Satildeo
Paulo Mestre Jou 1970 p 26
Figura 5 ndash Mopso e Menalcas In CORTE Franceso della (org) Enciclopedia Virgiliana vol
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Figura 6 ndash O Nascimento de Vecircnus In CUMMING Robert Para entender a arte Trad Isa
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