Morato; Gonçalves. Observar a Prática... 2009

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    C a p ítu lo 7

    O B S E RV AR A P RÁ T IC A P ED AG Ó G IC O -M U SIC AL

    É M A IS D O Q U E V E R

    Cflllia Thais Morato

    • Lili« Neves   onç lves

    A o b se rva çã o n a le gis la çã o

    e a fo rm a çã o d e p ro fe sso re s

    Acreditou-se por muito tempo que a formação da docência

    deveria constituir-se de conhecimentos teóricos (métodos e con-

    teúdos) que seriam aplicados no exercício da profissão. Atualmente,

    quando se cuida de resgatar a importância que o conhecimento

    adquirido na prática assume nessa formação, podemos dizer que

    tem sido preocupação garantir que a fonnação da docência não

    prescinda do conhecimento construído pelo próprio licenciando.

    Na legislação sobre os cursos de formação de professores o

     conhecimento prático  aparece como um dos componentes da

    formação que, por sua vez, se completa com o componente

     conhecimento teórico . A associação entre teoria e prática é

    colocada quando menciona-se que:

    A formação de profissionais da educação, de modo a aten-

    der aos objetivos dos diferentes níveis e modalidades de

    ensino e às características de cada fase do desenvolvimen-

    to do educando, terá como fundamentos: I - a associação

    entre teorias e práticas, inclusive mediante a capacitação

    em serviço; [...] (Brasil, 1996, art. 61, inc.

    I .

    A associação entre teoria e prática como forma d prinrivm

    uma formação condizente com o qu l i profissão d e \ e I I I e d e I11 111

    tia acaba por fragmentar o

    cCl1I11l 1  i1 l1l 11111 11) 11 I 11 1111,.11

     

    111

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    cialmente dedicado à prática. O artigo 12 da Resolução CNE/ CP

    n° 1 (Brasil, 2002) menciona que todas as disciplinas e compo-

    nentes curriculares, e não apenas as disciplinas pedagógicas,

     terão a sua dimensão prática (parágrafo 3°).

    No que se refere à observação, o artigo 13 orienta para que

    essa dimensão prát ica seja ainda desenvolvida com ênfase nos

    procedimentos de observação e reflexão, visando à atuação em

    situações contextualizadas, com o registro dessas observações

    realizadas e a resolução de situações-problema  (Brasil, 2002, art.

    13, parágrafo 1°). Essa legislação sobre a formação do professor

    apega-se à prática como solução para garantir que o professor seja

    capaz de ressignificar o que lhe acontece em sua relação direta

    com a instabilidade da realidade educativa.

    O que faz a reflexão localizar-se na dimensão prática da

    formação do professor? Pautando-nos em Pimenta (2002) e Ghedin

    (2002), que procedem a uma reflexão crítica sobre epistemologia

    do professor reflexivo de Donald Schõn, é possível entender que

    a reflexão, quando localizada na dimensão prática da formação,

    alinha-se ao conhecimento enquanto aplicação. A reflexão, ao ser

    entendida como um procedimento de  superação dos problemas

    cotidianos vividos pela prática docente [...], dificulta o engajamento

    de professores em práticas mais críticas, reduzindo-as a um fazer

    técnico  (Pimenta, 2002, p.23).

    Se a reflexão sobre a prática constitui o questionamento dessa

    mesma prática, de modo a despertar a problematicidade da situa-

    ção a fim de operacionalizar soluções para uma atuação contex-

    tualizada, também não podemos esquecer que a reflexão  não existe

    isolada, mas é resultado de um amplo processo d,eprocura que se

    dá no constante questionamento entre o que se pensa (enquanto

    teoria que orienta uma determinada prática) e o que se faz  (Ghedin,

    2002, p.132-133).

    Ao reconhecer que a realidade educativa é complexa e

    imprevisível e, como tal, o exercício profissional da docência

    exige muito mais do que aplicação de conhecimentos teóricos

    (o s

    quais não oferecem respostas imediatas para os probl mas

    li  

    que surgem no devir da situação pedagógica), a observação assu-

    me uma função importante para o futuro professor poder se intei-

    rar das situações instáveis e indeterminadas que a realidade da

    sala de aula lhe reserva. Além disso, tendo consciência de que não

    há uma situação educativa igual a outra, a reflexão também torna-

    se necessária para que, dialogando com a sua própria atuação, se

    possa construir soluções possíveis para os problemas qu se apre-

    sentam no seu dia a dia.

    Concordamos com a legislação quando esta explicita a ob-

    servação como sendo um dos procedimentos (Brasil, 2002, p.4)

    a serem utilizados na formação do professor. Contudo, questio-

    na-se a sua classificação como conhecimento que se dá na prática

    e/ou para a prática. Tal como aparece na legislação, a observação

    inscrita na dimensão prática do conhecimento do professor deixa

    de levar em conta outros aspectos envolvidos no processo de

    observar.

    A legislação parece considerar a observação como um ato

    prático pelo fato de que, ao observar, o futuro professor está ven-

    do algo acontecer. Mas, ao tomar a observação apenas na dimen-

    são prática, o texto da resolução não salienta a sua dimensão

    teórica. Para Carr e Kemmis (1988);

    Uma   prática   [. .. ] não é um tipo qualquer de comporta-

    m ento não m editado que exista sep aradam ente da   teo-

    ria   e que pode   aplicar -se   a um a teor ia. Na realidade,

    todas as prática s, c om o to das as o bse rvaçõe s, incorporam

    algo de teor ia , e i ss o é tão certo para a prática de em-

    pr ee ndirn .ru os teórico s como para a dos ernp rc md i

    ment es p ru p : i am n rc   pr âticus OIlHl o ensino , Âlllhll~

    sã atividud  S so  i lli s l Ol ll  l( 11 I 1 111 ( dl  S I llvolv(  111 1  1 11 11

    fin s concretos 11 1xliuntc ti  s lrl \, (  Pl lllI dl l1l  1 IIos cou

    eretos e à lu z de crenças c va lo r  S  011   l lo,

    (p.

    126 ).1

    I Un a   pr ác tica   [ .. . ] no es un tipo cualquiera de comportamiento no meditado

    que exista s paradamcnt v de Ia t eo ri a y ai cual pu eda  aplicnr SI  111 111

    teoria.

    Jill 1 \ l Iid lld 1111 111

    lIs

    pr (Jl li ( 1 I , ( (11110

    odJls

    Jus

    ohs

     I 111111 11

     

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    Então, tanto existe uma dimensão teórica incidindo na ob-

    servação, que se materializa na prática, quanto existe uma dimen-

    são prática incidindo na reflexão, que se materializa na teoria.

    Ambas são, portanto, indissociáveis e circunscrevem-se nos espa-

    ços socioculturais em que vivemos e nos formamos e nos quais

    aprendemos a discernir as perspectivas que nos interessam para a

    nossa atuação no mundo. São essas perspectivas que orientam as

    nossas reflexões sobre o que vemos. Por isso, observar não é só

    ver, é também pensar sobre o que se vê - e aí a observação deixa

    de ser somente da prática, instituindo-se também como dimensão

    da teoria, pois

    o

    conhecimento é sempre uma relação que se estabele-

    ce entre a prática e as nossas interpretações da mesma;

    é a isso que chamamos teoria, isto é, um modo de ver

    e interpretar nosso modo de agir no mundo (Ghedin,

    2002, p.132).

    Apesar de ser interessante a discussão sobre a concepção

    implícita e/ou explícita na legislação no que se refere à formação

    reflexiva do professor, nosso objetivo neste capítulo é discutir

    sobre a observação nos cursos de formação de professores. Qual

    seria realmente a sua Junção? Por que se defende o seu uso nos

    cursos de formação de professores? Podemos dizer que existem

    especificidades nos processos de observação envolvidos na for-

    mação de professores de música?

    Para responder essas questões utilizaremos, além da litera-

    tura pesquisada e relatos de experiências próprias, depoimentos

    de estudantes dos Cursos de Música da Universidade Federal de

    incorporan algode  teoria ,

    y

    eso es tan cierto para Iapráctica de Ias empresas

     teóricas  como para Ia de Ias empresas propiamente prácticas  como Ia

    ensefíanza. Ambas son actividades sociales concretas que se desarrollan

    para fines concretos mediante destrezas y procedimientos concretos y a Ia

    luz de unas creencias

    y

    unos valores concretos.

    11 4

    Uberlândia (UFU)2 e excertos de relatórios de estágio elaborados

    por alunos na disciplina Prát ica de Ensino sob a Forma de Estágio

    Supervisionado' na referida universidade.

    A o bs erv aç ão n os cu rs os d e fo rm aç ão

    d e p ro f es s o re s

    o procedimento da observação tem sido muito uti lizado

    nos cursos de formação de professores como parte da Prática de

    Ensino e Estágio Supervisionado. Procurando entender a ut ili-

    zação da observação nos cursos de formação de professores,

    Estrela (1994) afirma que esse procedimento tem servido a dois

    propósitos: a observação

    sobre

    o futuro professor e a observa-

    ção feitapelo futuro professor.

    A observação sobre o futuro professor consiste num proce-

    dimento de formação que coloca as antas do professorando para

    serem avaliadas pelos seus colegas e pelo professor orientador;

    ou ainda, nas situações de estágio, pelo responsável da classe em

    que o professorando estagia. Objetiva facultar ao professor em

    formação a tomada de consciência de si próprio, proporcionando-

    lhe um feedback, principalmente quando meios mais dispendiosos

    de registro como a filmagem em vídeo não é possível. Tida como

    uma  Pedagogia Autocorretiva  ou de  Autoaperfeiçoamento , o

    autor alerta para os riscos de empregar essa técnica sem o devido

    preparo teórico e a referência de roteiros precisos, pautando-se a

    avaliação em achisrnos subjetivos, quando não em arbitrariedades

    provenientes da situação hi rárquica em que se encontram os par-

    ticipantes dessa r laçao pcda   i  H (Estr  Ia, 1994).

    A observação

    lcitup

     10 futuro professor í   uquclu que, rolo

    cados em situações ducntivus, OhSí. IVIIIHlo  oh  :ts

    '11 '1 :1 1 1 1 1 ,1 '1 1 1 1

    2

    Os depoimentos foram colludus  111( IIII( VI~111 1\ 1111:ulu 1111  11111111111

    Morato em janeiro de

    2 00(1 .

    om IJh

     1 1 IIdi I. M <

    l

    3

    Nome da disciplina na po

     U

    das

    I  PI IIIIII I I II 11111101( ()()

    I)

    4

    Como nos grupos mult iss

     fiuis dI  sllI io dll 11111 I IIllId,

    I'

    IlIdlllll d,

    Londrina (Loureiro,

    200 6) .

    j

      I

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    seus próprios professores,' os professorandos assistem a exern-

    plificações de como ser professor. Assistir às aulas de outrem

    significa que, exercitando a observação sobre condições con-

    cretas do processo de ensinar, podemos aprender com eles a ser

    professor. Estrela (1994) alerta, no entanto, que, se os modelos

    constituem pólos de referência indispensáveis, é importante, con-

    tudo, a possibilidade de eles serem analisados, 'desmontados',

    assumidos ou rejeitados de forma consciente e crí tica  (p.58).

    Embora o que se focalize possa não ser a imitação de um

    modelo tomado como único, verdadeiro, localizamos na  obser-

    vação sobre o futuro professor e pelo futuro professor  uma pre-

    ocupação para com a modificação do comportamento e da atitude

    do professor em formação. Para Estrela (1994, p.56), esse tem

    sido o principal sentido atribuído à observação nos diversos sis-

    temas de formação de professores. Porém, para além da modi-

    ficação do comportamento, perguntamos: O que o professor em

    formação, mediante o uso da observação, tem aprendido sobre a

    sua relação com a realidade educativa?

    Podemos dizer que nos dois propósitos a que tem servido, a

    observação tem sido utilizada para ver e avaliar o quê e como o

    professor ensina. Quando se trata da observação sobre o futuro

    professor, é o professor em formação quem será avaliado; em se

    tratando da observação feitapelo futuro professor, o professorando

    avaliará o professor que ele observa.

    Com que critérios avaliamos o professor? Será que o que

    vemos é realmente o que acontece? O que vemos é uma possibi-

    lidade de certeza do que acontece, mas não a única, pois outras

    pessoas observando a mesma cena podem ver  uma realidade 

    muito diferente da que eu vejo. .

    Trata-se, então, de uma avaliação externa e pontual. Exter-

    na porque a observação fica no nível do aparente. Toma-se a

    visual idade do que acontece de tal forma como verdadeira que se

    acredita conhecer o que acontece só pelo que é possível de se ver

    - pregnância da visualidade  (Barros et aI., 2004). Não fomos

    educados a pensar que o nosso modo de ver flui do nosso interior

    orientando-nos o que enxergar daquilo que vemos. E o que flui de

    dentro de nós depende de como fomos e somos instruídos social e

    culturalmente a enxergar:

    É

    o olhar e não o olho que informa a existência mundana

    das coisas. Isto quer dizer, o olho é natural, o olhar é

    socialmente desenvolvido (Teves, 1992, p.9).

    Vemos do mundo aquilo que queremos ver conforme as

    perspectivas socioculturais em que somos formados. Se isso vale

    para mim, vale também para as pessoas com quem interajo. Uma

    vez colocados em situações educativas para observar outros

    professores, não somos somente nós que os observamos, eles tam-

    bém nos observam - e o fazem conforme suas perspectivas

    socioculturais. Por isso, trata-se também de uma avaliação pon-

    tual porque descontextualiza a relação de interação que se estabe-

    lece no processo pedagógico centrando a observação apenas na

    pessoa que observa. Tanto quem observa quanto quem é observa-

    do estabelece uma interação mútua que deixa de ser considerada.

    A o bs erv aç ão n os cu rs os d e fo rm a çã o

    d e p ro fe ss or es d e M ú sica

    Alguns estudos afim iam que aprendemos a ser professores

    desde o tempo em que sentávamos nos bancos escolares, pois,

    enquanto alunos, intrinsecamente envolvidos no processo peda-

    gógico, fomos abstraindo os jeitos de

    ser professor

    daqueles que

    nos ensinavam, isto é, em experiências vividas na sala de aula

    durante a escolarização, encontram-se as raízes, ou vestígios, da

    lógica de um habitus professoral (Silva, 2003, p.105).

    I

    5

    Na Universidade Federal de Uberlândia, há casos em que, não havendo

    aula de música nas escolas regulares onde são feitos osestágios, as próprias

    professoras (orientadoras do estágio) assumem a direção da classe para que

    os licenciandos possam vivenciar a aproximação com a realidade profissional

    da docência em música.

    116

    117

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    Segundo Tura (2003), a observação é a primeira forma de

    aproximação do indivíduo com o mundo em que vive (p.184).

    Portanto, entende-se que os nossos alunos aprendem a partir

    dessas situações de aproximação primitiva com a docência de

    seus próprios professores, como relata uma estudante: mesmo

    sem você me ensinar [a ser professora], eu estava aprendendo

    (Luciana, entrevista, 18/01/2006).

    De qualquer forma, reparamos que o princípio que rege a

    assunção de que a aprendizagem profissional também se dá a

    partir da aproximação primitiva com a concretude da situação

    pedagógica é o mesmo que rege a defesa da aproximação com a

    realidade profissional como processo de preparação para a

    docência, qual seja, o princípio da observação de situações

    educativas.

    Roberto, aluno do sétimo período do Curso de Licencia-

    tura, bastante procurado para dar aulas de guitarra, se considerava

    despreparado para dar aulas por não ter didát ica . No entanto,

    diz que depois que entrou na universidade começou a observar

    seus professores , porque não tinha [ ...] o modelo . Ele ainda

    relata:  E aí eu comecei: - Ah, é por aí que se começa, tal. Ah,

    é dessa maneira que eu tenho que caminhar com meus alunos,

    assim, assado (Roberto, entrevista, 18/01/2006).

    Essa colocação, além de expor essa aprendizagem me-

    diante aproximações primitivas com o mundo pedagógico,

    ainda levanta a questão dos modelos. É possível destacar na fala

    de Roberto que o aprender a ser professor observando seus pró-

    prios professores

    também passa pela aquisição de modelos. A

    diferença está em como esses modelos são apreendidos nesse tipo

    de relação com o aprender a ser professor. Roberto adquire esse

    conhecimento na sua própria experiência como aluno e não tendo

    como modelo outros professores a quem observa em situações de

    estágio. Assim, como diria Larossa Bondiá (2002), um conheci-

    mento que nos acontece .

    A observação tem sido uti lizada nos cursos de formação de

    professores pelo menos sob dois asp ctos: um, por estar associada

     à concretude da ação pedagógica , e outro, para conhecer a

    realidade na qual o ensino e aprendizagem de música estão

    inseridos.

    O questionamento está na forma reduzida e redutora em

    que tais possibilidades de usos da observação têm sido adotadas.

    Na primeira possibilidade, a da concretude da ação pedagógica ,

    pensa-se a observação de uma situação educativo-rnusical como

    uma das formas de garantir a inserção do professorando na reali-

    dade profissional concreta, na qual se aprende a ser professor.

    Porém, isso não passa de uma situação simulada, pois o conhe-

    cimento relativo ao viver uma situação educativa é do outro ,

    daquele que o estagiário observa.

    Sobre a segunda possibilidade, a de conhecer a realidade

    em que se vai atuar, há uma preocupação em valorizar a obser-

    vação enquanto processo de abordagem do real: conhecer com

    objetividade a realidade em que se pretende intervir (Estrela,

    1994, p.21). O risco que se corre com essa possibilidade de uti-

    lização da observação é o da limitação do nosso conhecimento

    sobre a realidade na medida em que acreditamos conhecer apenas

    pelo que vemos no nível aparente. Assim, costumamos avaliar as

    situações somente com base naquilo que delas presenciamos.

    Nesse sentido, a observação implica recortar aspectos do

    que vemos acontecer e esse mecanismo de seleção opera em

    relação à experiência anterior: o

     já

    visto' observa-se mais facil-

    mente, mas o 'demasiadamente visto' corre o risco de passar des-

    percebido (Ketele e Roegiers, 1993, p.23). Desse modo, o que se

    observa vai depender de quem observa, de sua história e do olhar

    lançado para a realidade .

    Quando se fala em observação pensa-se, na maioria das

    vezes, em algo ao alcance do olhar. Percebe-se que o ver e o olhar

    têm função muito importante na apreensão e conhecimento do

    mundo em que vivemos. Embora a visão seja, dentre os cinco

    sentidos, aquela a que se recorre mais frequentemente num pro-

    cesso de observação, os outros sentidos podem ser igualmente

    utilizados: a audição, o olfato, o tato e o gosto. Para nos conven-

     

    119

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    cermos disso, basta pensar em disciplinas como a acústica (audi-

    ção), a botânica (olfato), a enologia (gosto e olfato), a cinesiterapia

    (tato), cujas técnicas de observação se apoiam noutros sentidos

    (Ketele e Roegiers, 1993, p.23).

    Essa reflexão sobre o processo da observação apoiando-

    se nos vários sentidos é muito interessante já que se, realmente,

    só olhássemos o mundo e para o mundo em que vivemos , como

    os cegos observariam? Como nós músicos apreenderíamos os

    mundos musicais que nos rodeiam?

    Diante disso, como músicos, professores de música, no

    processo de observação além de ver a realidade e olhar para

    essa realidade, que outros sentidos exercitamos nesse processo?

    Sem dúvida, como professores de música, o sentido da visão não

    é bastante para nós. Os nossos ouvidos também devem estar bem

    abertos para ouvir o mundo ao nosso redor . Não só ouvir o

    outro no sentido de sua colocação no mundo em que os observa-

    mos, mas ouvir sua música, seu som, suas produções musicais.

    Mas, ainda, ouvir sua música, seu som não é o bastante. É preciso

    prestar atenção na relação que os alunos estabelecem com a mú-

    sica e, enquanto professor, inserir-se nessa relação, buscando

    interagir com eles e com seus jeitos de fazer e de gostar de música.

    era necessário responder a fim de se poder elaborar uma proposta

    de ensino de música, a ser desenvolvida nos semestres de estágio

    subsequentes, que não estivesse tão alienada da realidade social

    desse possível espaço de atuação profissional. No entanto, foi di-

    fícil desgarrar das condições presenciadas nesse espaço. O conhe-

    cimento dessa realidade prendeu-se muito ao nível do aparente:

    Como as crianças gostam do coral, este não é um traba-

    lho descartado, mas precisa ser mais bem aproveitado.

    As crianças gritam muito, não há nenhum direcionamento

    das frases. O repertório tem muitas músicas religiosas e a

    maioria

    é

    dividida em duas vozes, meninos e meninas,

    mas não o tempo todo, apenas alguns trechos (Excerto do

    relatório de estágio, 20/06/2001).

      O b se rv an d o n a a u la d e M ú sica

    A observação do mundo passa pelo filtro do nosso olhar ,

    das nossas crenças, dos nossos preconceitos, enfim, pelo nosso

    imaginário do que seja aprender música, do que seja uma aula de

    música, do que seja um bom professor de música. Essas crenças,

    que foram construídas nas histórias de vida individuais durante

    todo o percurso da nossa formação musical, são importantes cons-

    tituintes de nossas experiências anteriores e fazem com que veja-

    mos o mundo pedagógico-musical que observamos a partir delas.

    Foi o que aconteceu com nossos alunos na situação antes relatada.

    Mesmo vendo e convivendo no ambiente da escola e de sua aula

    de música, foi dificil despir-se das crenças e práticas musicais com

    as quais conviveram em seus próprios trajetos de formação mu-

    sical: não se deve gritar quando se canta num coral; o repertório a

    ser trabalhado deve ser de  boa qualidade - para levantar dois

    dentre outros aspectos que emergem na citação anterior.

    Não se questionou, entretanto, a relação que as crianças

    observadas estabeleciam com a música quando cantavam no coral

    da escola. Por que elas gritavam? Poderia ser por uma questão de

    orientação musical, mas também poderia ser porque queriam se

    projetar, serem reconhecidas pelas pessoas que as observavam. E

    o repertório, se não era do gosto dos observadores, ou não fazia

    ,

    Em 2001 orientamos uma turma de Prática de Ensino sob a

    Forma de Estágio Supervisionado que queria atuar em espaços

    educacionais alternativos. Inserimo-nos, então, numa instituição

    que atendia crianças e jovens de 7 a 17 anos no contraturno esco-

    lar, em Uberlândia, MG. Como o espaço era deséonhecido tanto

    para os professorandos quanto para as professoras orientadoras, a

    proposta consistiu em conhecer, por meio da observação, que

    espaço de educação era esse que se apresentava como possibilida-

    de para atuação profissional? Que música havia nesse espaço?

    OI11 )

    ra nsinada? Quais relações, comportamentos e expectati-

    vas das  Iiun 'as jov os quanto à música? A todas essas questões

    120

    121

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    parte do acervo dito digno de se trabalhar numa aula de música,

    proporcionava um prazer enorme às crianças que o cantavam -

    considerando ainda que muitas frequentavam igrejas evangélicas,

    onde também cantavam e escutavam aquele repertório.

    Sem considerar outras perspectivas possíveis, senão as suas

    próprias, os alunos propuseram:

    Para o próximo semestre, pretendemos desenvolver al-

    guns trabalhos como o de iniciação musical com crianças

    de 7 a 10 anos, utilização de atividades lúdicas e práti-

    cas corais que estejam de acordo com a realidade dos

    alunos (Excerto do relatório de estágio, 20/0612001

    Para os futuros professores, é importante desenvolver a cons-

    ciência de que essas referências direcionam o nosso olhar e nos

    fazem deter em determinados aspectos da realidade musical, ou

    daquilo que se vê. Sem' dúvida, se não tentarmos nos despojar das

    nossas certezas e exercitar nos colocar no lugar dos nossos obser-

    vados, continuaremos a  impor a nossa maneira de entender e

    fazer música, desconsiderando as relações que nossos observados

    estabelecem com ela.

    Portanto, conhecer a realidade em que se vai atuar im-

    plica desvendar nossos olhos, implica consciência sobre as refe-

    rências do meu olhar, implica questionarmos: De onde estou

    falando ?

    Mas como trabalhar isso com os professorandos? Saber

     de onde estou falando requer uma consciência mais interna do

    que externa, mais da parte de quem é o agente da observação

    ( quem sou eu que estou observando ), do que de quem é esse

    ,

    que eu observo? . Tendo consciência da própria perspectiva

    sociocul tural em que fomos e somos formados, nos ajuda a deslo-

    car de nós mesmos. Pois olhar o outro , ou os mundos musicais

    que nos rodeiam, não é fotocopiá-Io , descrevê-lo em suas ações

    visíveis, mas percebê-lo, compreendê-lo na sua intimidade .

    As certezas precisam ser questionadas com nossos alunos:

    por

    qlll

    consid ramos esse ou aquele repertório ideal? Por que a

    I I

    aprendizagem musical não pode prescindir da leitura e escritas

    musicais? Questionar os usos que os estudantes fazem da música

    é importante? Ou o foco do ensino deveria estar nas relações que

    os estudantes estabelecem com a música?

    Essas certezas construídas a partir de nossas referências e

    que nos acompanham no ato de observar uma aula de música

    selecionam o nosso olhar e direcionam as nossas ações, isto é,

    apontam para o que queremos ver e fazer .

    Enquanto professores de música, é essencial que se assuma

    uma posição diante do mundo que esteja atenta para as muitas

    músicas que se fazem presente, que ocupam os mais diversos

    lugares, momentos e que provocam diferentes relações no mundo

    em que vivemos. Assumir essa posição implica mudança de ati-

    tude, implica exercitar uma visão que esteja atenta ao outro, ao

    nosso aluno, nos vários aspectos envolvidos em sua relação com

    a música. Então, para que haja esse deslocamento, é necessário

    que os cursos de formação de professores de música desenvol-

    vam instrumentos de observação que capacitem os futuros pro-

    fessores a não só  traduzir o visível , mas excitar o invisível

    em suas aulas de  músicas .

      e f e r ê n c i a s

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    (ç ) O s a u t o r e s , 2 0 0 6

    C a p a : L e t í c i a L a m p e r t

    P r o je t o G r á f ic o : F O S F O R O G R Á F I C O /C l o S b a r d e l o t t o

    E d i t o r a ç ã o : C i o S b a r d e lo t t o

    R e v i s ã o : P a t r í c i a A r a g ã o

    E d i t o r : L u i s G o m e s

    I a re impre ssão : 2 0 0 8

    2

    a

    re im p re ssão 2 0 0 9

    D a d o s In te rn a c io n a is d e C a ta lo g a ç ã o n a P u b l i c a ç ã o C I P

    B i b l i o t e c á ri a r e s p o n s á v e l: D e n is e M a r i d e A n d r a d e S o u z a C R B 1 0 / 9 6 0

    P 9 1 2 P r á t i c a s d e e n s in a r m ú s ic a : l e g i s l a ç ã o , p l a n e j a m e n t o , o b s e r v a ç ã o , r e g is t r o ,

    o r i e n t a ç ã o , e s p a ç o s , f o rm a ç ã o / T e re s a M a t e ir o e J u s a m a r a S o u z a o rg s .   .

    - P o r to A l e g r e : S u l in a , 2 0 0 9 .

    1 9 1 p .

    I S B N : 9 7 8 - 8 5 - 2 0 5 - 0 4 6 2 - 8

    l .M ú s i c a - E n s in o . 2 . E d u c a ç ã o . 3 . M ú s ic a - P r o f e s s o r e s - F o r m a ç ã o .

    I . M a t e i r o , T e r e s a . l i . S o u z a , J u s a m a r a .

    C O O : 7 8 1 .3 7 7 . 8

    C O U : 7 8 1 . 3 0 7

    7 8 0 .7

    T o d o s o s d ir e it o s d e s ta e d iç ã o r e s e rv a d o s à

    E D I T O R A M E R I D I O N A L L T D A .

    A v . O s v a ld o A r a n h a , 4 4 0 - c o n j . 1 0 1

    C E P : 9 0 0 3 5 - 1 9 0 - P o r t o A le g r e - R S

    T e l . :   5 1 3 3 1 1 - 4 0 8 2 F a x : 5 1 3 2 6 4 - 4 1 9 4

    s u l i n a @ e d i t o r a s u l i n a . c o m . b r

    w w w .e d i t o r a s u l i n a . c o m .b r

    D e z e m b r o / 2 0 0 9

    Im p re s s o n o B ra s i l / P r i n te d in B r a z i l