TEXTO JOSÉ FANHA ILUSTRAÇÕES ALEX GOZBLAU A minha cidade é feita de … · 2020. 4. 3. · com...

Post on 26-Apr-2021

1 views 0 download

Transcript of TEXTO JOSÉ FANHA ILUSTRAÇÕES ALEX GOZBLAU A minha cidade é feita de … · 2020. 4. 3. · com...

TEXTO JOSÉ FANHAILUSTRAÇÕES ALEX GOZBLAU

A minha cidade é feita de luz

TEXTO JOSÉ FANHAILUSTRAÇÕES ALEX GOZBLAU

A minha cidade é feita

de luz

A MINHA CIDADE É FEITA DE LUZ

Coleção: Pela Cidade ForaEdição: ©2016 EMEL

Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa, E. M., S. A.

Texto: ©José FanhaIlustrações: ©Maria RemédioDireção de arte: Pato Lógico

Design: Andreia Almeida/Pato Lógico Coordenação editorial: Inês Felisberto/Pato Lógico

Revisão: Nuno QuintasImpressão: Printer Portuguesa1.ª edição: setembro de 2016

ISBN: xxxxDepósito legal: xxxx

Pela Cidade Fora,   Educação para a mobilidade — Lisboa é uma iniciativa da EMEL — Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa, E. M., S. A. e da CML — Câmara Municipal de Lisboa, através do Departamento de Educação, orientada para a formação da cidadania das novas gerações.

www.pelacidadefora.pt

A minha cidadeé feita de luzde sóis e de luasde esquinas e ruaslençóis à janela

de gente que correno fio de uma estrelade gente que estácom pressa de serde amar e viver

de gente que passaa andar e a arderpor uns e por outrose solta sorrisose diz-lhes bom-dia

de gente vestidade dor e tristezae até de alegriade muita alegriaque solta o seu risona côdea do pãono vidro das lojasno nó dos abraçosao centro da praçado seu coração.

Pega na cidade com palavras vivas.Afaga o rumor das ruas

e das uvas.Toca as raparigas.

Lisboa pede-te que escrevasa mais bela das cartas de amor.

Entrega-lhe os teus dedos.Torna-te gaivota.

Faz-te rio.

Escrevi no papelque a minha cidadeé feita de luzporque era essa luznascida do riosubindo as calçadasque vinha lavaros olhos que eu tinha.

E agora reparoque os olhos que eu tinhavêm conversarcom os olhos que eu tenho.

Menino já fuie penso por vezesque a vida é assimpara trás e para a frentee a luz da cidadeé sempre esta linhaque leva o desenhodos olhos que eu tinhaaos olhos que eu tenho.

Desce a calçada até ficares cegopelo lume que vem do Tejo.

Agarra o nome antigodebaixo de cada pedra.

Em todas as janelas uma florespera pelo orvalho

que virá com o teu sorriso.

A minha cidadeé feita de ventode histórias do longede crimes malditoscastigos e gritosfantasmas e sombrasde frades e reis

é feita de leislamentos gemidosjuízes bedéiscaminhos perdidosem esquinas fatais

e mais muito maisé feita da dançade grandes paixõespoetas atoressecretos amoresde lenços que enxugamas lágrimas doudasdo muito chorarpor quem vai partirna volta do mar.

Desenha um peixe no chão da tua ruae respira a doçura do ar.

Acorda virado a Orientee deixa a luz subir lentamente

pelo cutelo das esquinas.

Se o teu destino é partira condenação é voltar.

A minha cidadeé feita de versosde sonhos diversospalavras sofridaspensando o caminhoque levo na vida

e nestas palavrasque escrevo rodandopor dentro do dentro

invento o meu cantocom água e com espantoternura e saudadeamigo dos maisvizinhos pardaisda minha cidade.

Segue as horas em que a luz se vai afastando ao longee o céu bordado de luzes nasce do escuro da terra.

Deixa-te então assaltar suavementepelo perfume do jasmim

quando a noite de Lisboa se estende já preguiçosapela doçura das colinas.

A minha cidadeé feita do verdedas folhas de acáciade muros bordadosde verde-limão

é feita de lumetão lume e tão verdeno verde perfumedos beijos urgentesentregues aos diasda verde ilusão

é feita do tempoque vai e que voltanas voltas da vidados velhos que jogamà bisca lambidadebaixo da sombrade um dia de verão.

Tem cuidadoporque os versos do poeta

andam perdidos pelos cantos desta cidade que os bebe.

Tem cuidadoporque as velas das fragatas

tremem de amor ao sentir a brisa do mês de junho.

Tem cuidado,tem muito muito cuidado

mas entra em todas as portas e deixa o silêncio arder.

A minha cidadeé feita de calde roupa ligeirade sol e de salda sílaba docetrazida pelo arpalavra rolandona espuma do mar

é feita de linhodo baile bailinhodos barcos que dançamde lado para lado

é feita do fadoque range e que soametade delíriometade gemidochegando mais fundoao fundo da almaali onde dóie onde ressoae sendo tão mundoé sempre Lisboa.

Talha a pedra da palavrafaz o teu nome presente no lume de cada gesto.

Um diatambém tu serás memória

e a grande lua vermelha em noites quentes de verãovirá discreta acender o desenho do teu rosto

em todas as janelas da cidade.

A minha cidadeé noiva de um rioque lança ao galopecavalos azuispelas ruas que sobemno ar da manhã

é feita do sumode frutos maduroscerejas morangoslaranjas romãs

é feita de amoresintensos pungentesde beijos ardentesde esperas demorasé feita de horasperdidas achadasde aves pousadasnos lábios da aurora.

Nos braços da menina a boneca olha em redorcom os seus olhinhos de vidro.

Feita de pano e pura emoçãoela atravessa a idade e o ar.

Deixa-a passarnalgum lugar do teu nome.

Ela partilha contigoum telhadoum pardal

o orvalho da manhã.

A minha cidadeé feita das ilhasque os homens se tornamtrocando cegueirascontando metaisbebendo o venenoque os torna venais

é feita do jeitoque embala a verdadeque rasga a mentiraque vira e revirae brilha no escuroe oferece a quem passaum gesto fraternotalvez alegriatalvez poesiatalvez o futuro.

A tua casa é uma ruauma cidade

ou um cheiro.

A tua casa é uma janelaà hora em que a música da flor acorda.

A tua casa é a história longade muitas outras casas

uma história que partilhas com toda a genteno mundo.

A minha cidadeé feita do risode muitos meninosque correm à soltaem busca de acharo grande mistériode tudo e de nada

é feita de filhosde pais e de mãesdos muitos que sofremmas tecem milagrese curam a feridaem todos os diasinventam a vidae abrem a mãooferecem a sopao canto e o sonhorepartem o pão.

Deixa a criança que já foste regressar ao espanto inicial.

Sobe ao campanário.Ouve o sino.

Guarda um nariz vermelhono teu bolso.

Inventa a mais bela estrelae leva-a contigo pela mão.

A minha cidadeé feita de velhosque vivem sozinhosnum canto da casaperdidos do lemecom a mão que lhes tremejá fria e sem brasa

é feita de históriasde bailes antigosde rezas memóriasde chás e licoresjanelas postigose olhares muito atentosa quem por lá passaa quem já passousoldados sargentosoperários fabrismarujos poetasartistas doutoresmeninos de escolae os seus professores.

A minha cidadeé feita de velhosde velhos antigosde grandes senhores.

O teu tempo querido filho

é o tempo de uma vida e de todas as demaisas que cozeram o pão

trouxeram azeitonase viveram nas paredes ao teu lado.

Foi gente que venceu dragões e dobrou os Cabos

da Esperança que há de serpara sempre

a tua.

A minha cidadeé feita de pontesde margem para margemde peito para peitode jeito para jeitode língua para línguade idade a idaderodando na rodada luz da cidade

A minha cidadefoi feita de godosde mouros judeuscristãos e marranosfoi feita de manosde muitas diferençasde idades e crençasde mitos e modasofícios e rodase cantos e cheirosmansinhos ou bravosleões ou cordeirose é isso que a faztão nova e ardenteantiga e diferente

amiga do marhermana da paz.

Desce a escada abre a porta entra na rua.

Eis a cidadea tua cidade

o lugar onde todo o abraço é possível.