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FACULDADE KURIOS-FAK
INSTITUTO SUPERIOR DE ENSINO-ISE
VALIDAÇÃO DE CREDITOS EM TEOLOGIA
ANDRE RICARDO RODRIGUES SOUZA
TCC
RELIGIÃO E FILOSOFIA.
MARANGUAPE – CE
2014
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FACULDADE KURIOS-FAK
INSTITUTO SUPERIOR DE ENSINO-ISE
VALIDAÇÃO DE CREDITOS EM TEOLOGIA
TCC
RELIGIÃO E FILOSOFIA.
TCC apresentado em cumprimento às exigências
parciais do curso de Graduação em Teologia; Da
Faculdade Kurios-FAK. Para a obtenção do
grau de bacharel em teologia.
MARANGUAPE – CE
2014
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DEDICATÓRIA
Ao meu Refúgio, minha Fortaleza, meu
Socorro bem presente na hora da angústia, a Ele, O meu
Deus, por ter me resgatado e sustentado até aqui, tanto
nas horas de alegria como de angústia, Ele foi e sempre
será O meu Rochedo. Obrigado meu Deus por ter me
dado à vitória.
À minha querida mãe, que me ensinou os
primeiros passos de minha vida.
Em Fim A todos aqueles que direta ou
indiretamente contribuíram na realização desta obra. Os
meus sinceros agradecimentos.
MARANGUAPE – CE
2014
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AGRADECIMENTOS
Ao meu Refúgio, minha Fortaleza, meu
Socorro bem presente na hora da angústia, a Ele, O meu
Deus, por ter me resgatado e sustentado até aqui, tanto
nas horas de alegria como de angústia, Ele foi e sempre
será O meu Rochedo. Obrigado meu Deus por ter me
dado à vitória.
MARANGUAPE – CE
2014
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FOLHA DE APROVAÇÃO DO TCC Banca Examinadora:
_______________________________________________
Prof. Orientador: Alexsandro Alves.
_____________________________________ Prof. Dr. : Augusto Ferreira da Silva Neto.
___________________________________ Prof. Dr. : Luiz Eduardo Torres Bedoya.
___________________________________ Prof. Dr. : Marlon Leandro Schock.
____________________________________
Prof. Ms. : Ladghelson Amaro dos Santos.
_______________________________________
Graduando: ANDRE RICARDO RODRIGUES SOUZA
Este TCC Foi aprovado em:
________de________________de________
MARANGUAPE – CE
2014
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RESUMO
Este estudo é resultado de uma análise da obra de Mircea Eliade, “O Sagrado e o
Profano: a essência das religiões”; sendo que utilizou bibliografias complementares no sentido
de auxiliarem a melhor compreensão do pensamento de Eliade. O trabalho está dividido em
cinco capítulos, de modo que em cada um se desenvolve um aspecto específico do tema geral
abordado na obra base deste estudo. No primeiro capítulo faz-se uma introdução ao tema e
são definidos alguns termos utilizados pelo autor. No segundo capítulo se faz uma abordagem
referente a questão do espaço sagrado. O capítulo três traz o aspecto relativo ao tempo
sagrado. No quarto capítulo se aborda a questão voltada a sacralidade da natureza e a religião
cósmica. No quinto e último capítulo se desenvolve a existência humana e vida santificada,
onde se desenvolve o tema partindo do princípio de que o homem reencontra em si mesmo a
santidade que reconhece no Cosmo.
Palavras-chave: Sagrado. Profano. Natureza. Homem. Filosofia. Religião.
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ABSTRACT
This study is the result of an analysis of the work of Mircea Eliade, The Sacred and the
Profane: the essence of religion ", which is used ancillary publications to help it better
understand the thought of Eliade. The work is divided into five chapters, so that each one
develops a particular aspect of the general topic discussed in the work on this study. In the
first chapter is an introduction to the theme and defined some terms used by the author. In the
second chapter is an approach on the issue of sacred space. Chapter three brings the aspect of
the sacred time. In the fourth chapter addresses the question facing the sacredness of nature
and cosmic religion. The fifth chapter develops human existence and sanctified life, which
develops the theme on the assumption that man finds himself in the holiness that recognizes
the Cosmo.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 09
1 O ÂMBITO DO TRANSCENDENTE .......................................................................... 12
2 O ESPAÇO SAGRADO ................................................................................................. 21
3 O TEMPO SAGRADO .................................................................................................. 30
4 A SACRALIDADE DA NATUREZA E A RELIGIÃO CÓSMICA ......................... 34
5 EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA .................................................. 40
CONCLUSÃO .................................................................................................................... 49
REFERÊNCIAS BÍBLIOGRAFICAS ............................................................................ 53
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INTRODUÇÃO
A origem dos estudos sobre a primeira forma das religiões remonta para a metade do
século XIX. Quase na sua totalidade, todos os países europeus acompanharam o movimento e
a evolução da ciência da religião focando „as religiões primitivas‟. Aos poucos as
bibliografias, os dicionários e as enciclopédias pouco a pouco foram se multiplicando e se
tornaram as principais fontes de consulta sobre a disciplina. A difusão dos cultos orientais e
das religiões dos mistérios no Império Romano assim como o sincretismo religioso que daí
resultou favoreceu o conhecimento das religiões exóticas e as investigações sobre as
antiguidades religiosas dos diversos países, sobretudo na Alexandria.
Para os apologistas e os heresiarcas cristãos, a questão se colocava num outro plano,
pois os múltiplos deuses do paganismo eles opunham o deus único da religião agora revelada.
Por eles era necessário, demonstrar, por um lado a origem sobrenatural do cristianismo e, por
conseqüência, a sua superioridade e por, outro lado tinham que explicar a origem dos deuses
pagãos, sobretudo a idolatria do mundo pré-cristão. A eles também cabia a explicação das
semelhanças entre as religiões dos mistérios e o cristianismo, o que não era tarefa fácil.
As descobertas geográficas dos séculos XV e XVI abriram novos horizontes ao
conhecimento do homem religioso. As novas narrativas dos primeiros exploradores foram
agrupadas em pequenas coletâneas e obtiveram grande sucesso entre os eruditos europeus,
sendo publicadas pelos missionários da América. Esta era uma tentativa de comparação entre
as religiões do Novo Mundo e a Antiguidade.
Atualmente os historiadores das religiões estão divididos entre duas orientações
metodológicas diferentes, mas complementares: uns concentram sua atenção principalmente
nas estruturas específicas dos fenômenos religiosos, enquanto outros mostram interesse e
preferência pelo contexto histórico desses fenômenos.
Neste contexto se encontra Eliade, que se esforça por classificar o caráter específico
dessa experiência terrífica e irracional que é o sagrado. Ele descobriu o sentimento de pavor
diante do sagrado e uma superioridade esmagadora de poder.
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Para Eliade, o sagrado se manifesta sempre como uma realidade inteiramente diferente
das realidades „naturais‟. O autor se propõe a apresentar o fenômeno do sagrado em toda a sua
complexidade, oferecendo como primeira definição de sagrado, que ele se opõe ao profano.
E segue fazendo afirmações como a de que “O homem toma conhecimento do sagrado
porque se manifesta” (ELIADE, 1992, p. 17). Sendo que hierofania é o ato da manifestação
do sagrado. Inclusive a própria história das religiões, desde as mais primitivas às mais
elaboradas, é constituída por um número considerado de hierofanias, pelas manifestações das
realidades sagradas.
Assim, buscando realizar uma breve análise do Sagrado e do Profano expressos na
obra de Eliade é que se desenvolveu este trabalho monográfico, que se apresenta composto
por cinco capítulos desenvolvidos a partir da obra de Eliade.
No primeiro capítulo, “o âmbito do transcendente”, se faz uma abordagem geral sobre
alguns conceitos básicos para a compreensão do pensamento de Eliade, como numinoso,
mysterium tremendum, hierofanias e outros termos voltados a concepção do sagrado.
No capítulo 2, se traz o tema “o espaço sagrado”, pois segundo Eliade, num mundo
capaz de tornar-se sagrado, seria vão falar acerca do espaço sagrado sem mostrar como se
constrói um tal espaço e por que é que tal espaço se torna qualitativamente diferente do
espaço profano que o cerca.
“O tempo sagrado” é o assunto abordado no capítulo terceiro. Neste capítulo se
procura desenvolver as idéias de Eliade no que diz respeito ao tempo para o homem religioso,
o qual viveria, segundo o autor, em duas espécies de tempo, das quais a mais importante, o
tempo sagrado se apresenta sob o aspecto paradoxal de um tempo circular, reversível e
recuperável, espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela
linguagem dos ritos. Esse comportamento em relação ao tempo basta para distinguir o homem
religioso do homem não religioso.
No quarto capítulo se aborda a questão voltada “a sacralidade da natureza e a religião
cósmica”. Neste capítulo se parte da idéia de que para o homem religioso, a natureza nunca é
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exclusivamente “natural”. Ela está sempre carregada de um valor religioso. O mundo é
impregnado de sacralidade. Ele não é um caos, mas um cosmo e se revela como obra dos
deuses. O cosmo é ao mesmo tempo um organismo real, vivo e sagrado: revela as
modalidades do ser e da sacralidade.
O capítulo cinco desenvolve a “existência humana e vida santificada”, onde se
desenvolve o tema partindo do princípio de que o homem reencontra em si mesmo a santidade
que reconhece no Cosmo. É evidente que sua vida possui uma dimensão a mais: não é apenas
humana, é ao mesmo tempo “cósmica”, visto que tem uma estrutura trans-humana.
Todo este estudo está baseado na obra de Mircea Eliade, “O Sagrado e o Profano: a
essência das religiões”, sendo que utilizou bibliografias complementares no sentido de
auxiliarem a melhor compreensão do pensamento de Eliade.
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1 O ÂMBITO DO TRANSCENDENTE
Diversos autores estudaram o tema do Sagrado, especialmente a partir do século XIX;
dentre eles destacam-se F. M. Muller que iniciou o estudo dos mitos e das religiões a partir da
filologia comparada; G. van der Leeuw, que entendia a experiência religiosa como uma
experiência do poder transcendente que busca sua realização; Émile Durkheim, que mostrou o
fato religioso como uma das bases essenciais da sociedade, sendo um dos fundadores da
chamada antropologia religiosa e, de modo especial, Rudolf Otto e Mircea Eliade.
Na concepção de Rudolf Otto, pastor, teólogo, filósofo e
professor alemão (1869-1937), o Sagrado adquire um caráter
ambivalente e paradoxal; assim, ele se configura a partir de
algumas características, como a numinosidade1, o misterioso, a
majestade, o fascínio e, também, o medo, o respeito e a
reverência. Segundo Otto (apud BIRCK, 1993), o contato do
homem com a realidade do sagrado por meio das experiências
religiosas, promove o que denominamos de ambivalência do
sagrado, onde este se apresenta, ao mesmo tempo, temeroso, e
fascinante.
Procurando encontrar uma forma de acesso racional ao sagrado, limitado este ao
campo do religioso, Rudolf Otto (apud BIRCK, 1993) desenvolve um extenso estudo da
construção deste conceito nas diversas religiões. Apresentado-o, portanto, como uma
categoria, de interpretação e avaliação exclusiva e complexa. O termo categoria é empregado
pelo autor em seu sentido primeiro, como noção fundamental. A complexidade do sagrado
decorre principalmente de sua composição: o elemento irracional, o numinoso, e o elemento
racional, o predicador. Somente uma imperiosa necessidade racional é capaz de estabelecer a
interconexão entre os dois termos, o que acontece pela esquematização.
Assim, ao abordar o sagrado do ponto de vista fenomenológico,
1 Numen=divindade (BIRCK, 1993).
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Otto (apud BIRCK, 1993), define-o como sendo o
sentimento de “mistério terrível e fascinante”. Não podendo
localizar a origem desse sentimento, define-o como a priori,
mas, não inato. E distingue três modalidades cognitivas de
apreensão do sagrado: os apreciadores (adeptos); os profetas
(produtores de religião) e os personificadores, aqueles que
chegam a condição de filhos da divindade.
O tremendum é o tremendo, o todo-poderoso, a energia; o misterium é o
qualitativamente diferente (vivenciado como o totalmente outro), e o fascinans. A palavra
sagrado já seria religiosa porque sugere o inefável e o belo, termos não conceituais, superando
as conotações racionais e éticas, apresentando-se como algo objetivo e externo ao eu. Não
podendo ser definido nem ensinado; deve ser evocado ou despertado no sentimento e descrito
por analogia ou metáfora. As características do sagrado são sintetizadas na palavra numinoso.
O objeto para o qual o numinoso se dirige é o mysterium tremendum, a vivência de terror
diante do poder do diferente e do fascinante, o sentimento de criatura diante do criador.
O numinoso (o sagrado) é, antes de tudo, interpretação e avaliação do que existe no
domínio exclusivamente religioso. Trata-se de categoria complexa, pois passa por vários
domínios, a exemplo da ética e da estética, mas guarda um diferencial irracional porque não
acessível à compreensão conceitual, nesse sentido o sagrado é inefável. De acordo com Otto:
(apud BIRCK, 1993), a religião não se
esgota em enunciados racionais ou no ato de
evidenciar a relação de seus elementos para
decifrá-la.
O elemento vivo em todas as religiões é a idéia de bem absoluto, que é o sagrado e o
santo como resultado final da esquematização e da saturação ética de um sentimento original
e específico, que Otto:
(apud BIRCK, 1993) chama de numinoso dizendo: falo
de uma categoria numinosa como uma categoria especial de
interpretação e de avaliação, um estado de alma que se
manifesta quando essa categoria é aplicada, isto é, cada vez que
um objeto é concebido como numinoso.
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Não se pode compreender o que é esse estado de alma, a não ser chamando a atenção
do ouvinte para a possibilidade desse sentimento, fazendo-o encontrar em sua vida íntima o
ponto onde ele surge e se torna consciente.
Conforme Birck (1993),
o extenso e completo estudo realizado por Otto centra-se
em sua concepção do sagrado como uma categoria a priori, de
base kantiana. Afirma Kant que todo o conhecimento tem início
na experiência, ao mesmo tempo em que não é possível
comprovar que todo ele seja proveniente da experiência. Há uma
diferenciação entre o conhecimento originário das impressões
sensíveis, diretas do mundo exterior, o empírico, e o que
acontece a priori, a partir de um estímulo exterior que incita uma
capacidade interna de conhecer.
Assim, para Otto esta é a uma fonte de conhecimento muito profunda que existe
originalmente na alma. Não pode ser considerada independente de dados exteriores ou
anteriores às experiências sensíveis, mas coloca-se nelas e entre elas, surge a partir delas,
indiretamente. É uma disposição, ou mais exatamente uma predisposição para o alcance de
conhecimentos através dos sentimentos, uma espécie de fonte ou princípio gerador, uma
forma de conhecimento a priori.
O numinoso bem como os sentimentos dele decorrentes pertencem à categoria de
conceitos puros do entendimento, não originários da percepção sensível, como não o são
também as idéias de perfeição, entidade, necessidade e absoluto, dentre outras. Portanto não
devem ser tomados por resultado de percepções, ou modificação de percepções em conceitos,
mas como uma faculdade da alma, um impulso interno. Afirma Otto que existe no ser humano
um instinto religioso, uma predisposição da razão humana, um princípio fundamental que o
torna propenso ao sentimento religioso. Esta predisposição para a experiência do sagrado é
própria do espírito do homem, caracteriza-se como um conhecimento a priori que o torna um
espírito impressionável, capaz de descobrir e de se deixar cativar, revelar.
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Otto (apud BIRCK, 1993) traduz esta experiência religiosa usando a expressão
“mysterium tremendum et fascinans”2. A observação do próprio Otto expressa o sentido do
Mistério na compreensão do sagrado:
O objeto realmente misterioso é incompreensível e inconcebível não
apenas porque o meu conhecimento relativo deste objeto tem limites
determinados e inflexíveis, mas porque meus limites chocam-se com
alguma coisa qualitativamente diferente, uma realidade que, por sua
natureza e essência, é incomensurável e diante da qual eu manifesto o
meu estupor (BIRCK, 1993, p. 42)
Vê-se que diante de tal qualidade afloram os dois pólos estruturantes na vivência
humana da realidade (seja esta transcendente ou imanente), a saber: o medo (mysterium
tremedum) e o desejo (mysterium fascinans).
Segundo Otto (apud BIRK, 1993),
Estes dois elementos, tremendum e fascinans, são
necessários para a verdadeira experiência religiosa, e
quando eles se dissociam não se pode mais falar de
experiência religiosa genuína.
O Sagrado, representado pela categoria do numinoso, reveste-se, igualmente, de dois
aspectos: o irracional e o racional, que, ainda que contrários, não são contraditórios. Aspecto
irracional, para Otto, não é algo contrário à razão, mas, sim, algo acima da razão: supra-
racional. O Sagrado é aquilo que transcende a razão humana e resiste a qualquer redução
racional, constituindo propriamente o numinoso ou o inteiramente outro. Já o aspecto racional
do Sagrado é tudo o que pode ser reduzido a categorias de pensamento; temos aí o âmbito dos
símbolos como manifestações sensíveis que possibilitam a vivência e a relação com o
numinoso. (BIRCK, 1993).
Esclarece que por irracional, ao contrário do que pode parecer à primeira vista,
entende o que é singular e não passível de explicação conceitual, parte de uma obscura
2 mysterium tremendum et fascinans = mistério terrível e fascinante (BIRCK, 1993).
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profundidade. Já o racional no sagrado ou divino, é o que o nosso entendimento apreende e
interpreta, o que nos é familiar e pode ser explicitado num conceito, campo de pura clareza.
Mircea Eliade (1992) aproveita-se de um
importante lastro de conhecimento produzido por tantos
estudos sobre o tema, acaba fundamentando o seu
pensamento acerca do Sagrado, baseando-se
especialmente na história das religiões, na
fenomenologia da religião.
Ao estudar o sagrado e o profano, Mircea Eliade (1992) parte do enfoque de Rudolf
Otto, em seu livro Das Heilege, em que o autor deixa de lado o lado racional e especulativo
da religião, concentrando-se sobretudo o seu lado irracional. Ou seja, a visão de Deus não
como uma idéia, uma noção, mas como um poder terrível. Nesta experiência irracional, Otto
delineia caracteres como o sentimento de pavor diante do sagrado, diante deste mysterium
tremendum, ou seja, das experiências que Rudolf Otto chama de numinosas, porque são
provocadas pela revelação de um aspecto do poder divino.
Birck (1993) observa que Otto procura trazer para a
filosofia da religião e para a teologia contemporânea o elemento
não-racional da religião distorcido pela racionalização
descomedida dos últimos duzentos anos, justamente o
componente que aponta para uma natureza supra-racional. No
entanto, não pretende ele excluir a religião do domínio racional,
mas realçar sua parte originária não-conceitual, do Deus
inefável.
Mas Eliade (1992) propõe-se a apresentar o fenômeno do sagrado, em toda a sua
complexidade, e não apenas no que ele comporta de irracional. Não é a relação entre os
elementos não-racional e racional da religião que nos interessa, mas sim o sagrado na sua
17
totalidade. O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade de uma ordem inteiramente
diferente da das realidades naturais. E a primeira definição que ele dá ao sagrado é que ele se
opõe ao profano.
Para Mircea Eliade (1992), o sagrado e o profano
designam duas modalidades de estar no mundo. Ao manifestar-
se o sagrado revela as modalidades do ser e da divindade
caracterizadas por classes de hierofanias (aparições do sagrado)
uraniana (celeste), aquática, vegetal ou antropomórfica. Ao
manifestar-se o sagrado historiciza-se, ou seja, expressa-se de
acordo com as características sócio-culturais, históricas, da
sociedade na qual se manifesta.
A sua concepção de Sagrado ganhou relevância não apenas por seu conteúdo e
fundamentos, mas, prioritariamente, pela introdução do conceito de Profano em oposição ao
Sagrado. “Ora, a primeira definição que se pode dar ao Sagrado é que ele se opõe ao Profano"
(ELIADE, 1992, p. 16-17).
O Profano é o comum, o secular, algo destituído de um significado que remeta à
realidade transcendente; enquanto o Sagrado, por outro lado, com o seu status discriminatório,
é o incomum, aquilo que está à parte, que, necessariamente, se traduz como uma ponte para a
realidade última. Dessa forma, o homem, na concepção de Eliade (1992, p. 17) "toma
conhecimento do sagrado porque este se „manifesta‟, mostra-se como qualquer coisa de
absolutamente diferente do profano".
Para esta manifestação do Sagrado, Eliade (1992) dá o nome de “hierofania”, isto é,
algo de sagrado se nos revela.
O sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações
existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história. Apresentando as dimensões
específicas da experiência religiosa, salientar suas diferenças com a experiência profana do
mundo.
Assim sendo, o Sagrado, segundo Eliade (1992), levando em consideração o exposto
por Piazza (1983, p. 133),
18
não é uma 'idéia', ou seja, uma expressão puramente conceitual do
homem que ele faz do mistério da vida e do universo, mas uma
'experiência' de algo que se manifesta e ao mesmo tempo se oculta no
mundo sensível. Tanto é assim que o sagrado permanece idêntico a si
mesmo, embora assuma vários aspectos fenomenológicos segundo as
várias condições de vida do homem – pastores, caçadores,
agricultores. [...] Ou, por outra, o homem interpreta a sua experiência
do Sagrado segundo as estruturas culturais em que vive, mas a
experiência do Sagrado apresenta-se em todas estas culturas como
algo que transcende. Assim, o animista interpreta a experiência do
sagrado como uma força vital – o mana –, enquanto o xamã vê no
sagrado a manifestação de potências celestes.
Enfatizando a expressão "hierofania", manifestação do sagrado, Eliade (1992) afirma
que a história de todas as religiões, desde as mais primitivas às mais elaboradas, é constituída
por um número considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas. A
partir da mais elementar hierofania, por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto
qualquer, uma pedra ou uma árvore, é a instauração do Sagrado no mundo a partir da
valoração que o homem faz de certos conteúdos de sua vivência do Cosmo.
A compreensão de Eliade sobre as formas em que eram percebidas tais hierofanias é
um bom exemplo para se ilustrar o seu caráter essencialmente simbólico. E argumenta:
Não se trata de uma veneração da „pedra como pedra‟, de
um culto da „árvore como árvore‟. A pedra sagrada e a
árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como
árvore, mas justamente porque são „hierofanias‟, porque
„revelam‟ algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas
o „sagrado, o ganz andere‟ (ELIADE, 1992, p. 18).
A hierofania exprime o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que
algo de sagrado se nos revela. O homem ocidental moderno experimenta um certo mal estar
diante de inúmeras formas de manifestações do sagrado. Por exemplo, para ele é difícil aceitar
o sagrado em manifestações em pedras ou em árvores. A pedra sagrada ou a árvore sagrada
não são adoradas como pedra ou como árvore, mas porque são hierofanis, porque revelam
algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere.
O símbolo religioso de qualquer espécie expressa essa mesma característica das
hierofanias;
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como coloca Alves (2001, p. 24), “é testemunha das
coisas ainda ausentes”. Dessa forma, não haveria experiência do
sagrado caso este não se limitasse a uma realidade sensível
vivida pelo homem religioso apenas através do símbolo, seja
este uma hierofania (elemento natural do cosmo), seja este um
objeto profano.
É bem claro no pensamento de Eliade (1992) que, mesmo manifestando o sagrado,
qualquer objeto se torna outra coisa, porém continua a ser ele mesmo. Desta forma, mesmo
uma pedra sagrada nunca deixaria de ser pedra em si, já que, se ela for vista com o olhar
profano, nada evidenciará diferença das demais pedras. Uma pedra para ser sagrada deve
cumprir o papel de mediação com o sagrado, só desse modo ela trans-significa; ou seja, “a sua
realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural" (1992, p. 18). Sendo assim,
não é qualquer objeto ou elemento da natureza que pode ter o caráter simbólico de evidenciar
uma realidade sobrenatural. Um objeto só ganha o status de símbolo quando este possui certas
características que “falam” de algum aspecto do sagrado. Em outros termos, “É a maneira de
se manifestar ou a forma de um objeto e a maneira de agir de um ser vivente (uma árvore, um
animal ou um ser humano) o que conduz a um outro aspecto do sagrado, manifestado
justamente sobre essa dimensão” (CROATO, 2001, p. 88).
Quando o sagrado se manifesta por uma hierofania qualquer, não só há rotura na
homogeneidade do espaço, como também revelação de uma realidade absoluta, que se opõe à
não realidade da imensa extensão envolvente. A manifestação do sagrado funda
ontologicamente o mundo. Na extensão homogênea e infinita onde não é possível nenhum
ponto de referência, e onde nenhuma orientação pode efetuar-se, a hierofania revela um
“ponto fixo” absoluto, um centro.
Percebe-se que, a partir da estruturação do conceito de sagrado em Eliade (1992), a
diferença entre um objeto profano ou sagrado é meramente uma questão de posicionamento
com relação a este.
A história demonstra que o sagrado e o profano são duas modalidades de ser no
mundo,
20
duas situações existenciais assumidas pelo homem ao
longo da sua história. Esses modos de ser no mundo não
interessam unicamente à história das religiões ou à
sociologia, não constituem apenas o objeto de estudos
históricos, sociológicos, etnológicos. Em última
instância, os modos de ser „sagrado e profano‟ dependem
das diferentes posições que o homem conquistou no
Cosmo, e, conseqüentemente, interessam não só ao
filósofo, mas também a todo investigador desejoso de
conhecer as dimensões possíveis da existência humana
(ELIADE, 1992, p. 20).
Deste modo, Eliade (1992) afirma que há dois modos de ser no mundo. Para a
consciência moderna, um ato fisiológico não é mais do que um fenômeno orgânico, mesmo
que ainda esteja repleto de tabus. Mas, para o primitivo, um tal ato nunca é simplesmente
fisiológico; é , ou pode se tornar um sacramento, ou seja, uma comunhão com o sagrado.
2 O ESPAÇO SAGRADO
Paralelamente à perspectiva do sagrado a partir das hierofanias, Eliade (1992)
estrutura seu conceito de sagrado também a partir da análise do espaço e do tempo sagrado.
Segundo ele, o homem religioso pensa o espaço de maneira heterogênea e o diferencia em
função de suas qualificações. Existe, portanto, o espaço sagrado, real e de forte significado, e
aquele outro espaço, indefinido, sem qualquer expressão ou consciência, o espaço profano.
Esta heterogeneidade do espaço, advinda da experiência religiosa, indica uma “experiência
primordial”, homóloga à "fundação do mundo", pois é a ação do corte espacial que descobre e
determina o "ponto fixo", o centro por meio do qual emana o sagrado como realidade
absoluta.
O espaço sagrado tem um valor existencial para o homem religioso: valor cosmológico
de orientação ritual e da construção do espaço sagrado. Porque nada pode começar, nada se
pode fazer sem uma orientação prévia; e toda orientação implica na aquisição de um ponto
fixo.
21
O espaço, para a experiência profana, é homogêneo e neutro. O espaço geométrico
pode ser cortado e delimitado seja em que direção for. O que interessa à investigação de
Eliade (1992) é a experiência do espaço tal como é vivida pelo homem não-religioso, que
assume unicamente uma experiência “profana”, purificada de toda pressuposição religiosa. O
homem que escolheu a vida profana não consegue suprimir completamente o comportamento
religioso. Até a essência mais dessacralizada conserva ainda traços de uma valorização
religiosa do mundo.
A revelação do espaço sagrado permite que se obtenha um “ponto fixo”, possibilitando
a orientação na homogeneidade caótica, a “fundação do mundo”, o viver real.
Existem locais privilegiados, qualitativamente diferentes dos outros: a paisagem natal ou
sítios dos primeiros amores, ou certos lugares na primeira cidade estrangeira visitada na
juventude; são “lugares sagrados” do seu universo privado,
como se neles um ser não religioso tivesse tido a revelação de uma outra realidade,
diferente daquela que participa em sua experiência cotidiana.
A não-homogeneidade do espaço, vivida pelo homem religioso, pode fazer apelo a
qualquer religião. Eliade (1992) escolheu como exemplo uma igreja, numa cidade moderna.
Para um crente, essa igreja faz parte de um espaço
diferente da rua onde ela se encontra. A porta que se abre
para o interior da igreja significa, de fato, uma solução
de continuidade. O limiar que separa os dois espaços
indica ao mesmo tempo a distancia entre os dois modos
de ser, profano e religioso. (ELIADE, 1992, p. 28).
Deste modo, percebe-se que toda orientação implica a aquisição de um ponto fixo. É
por essa razão que o homem religioso sempre se esforçou por estabelecer-se no centro do
mundo, e para viver no mundo é preciso fundá-lo e nenhum mundo pode nascer no caos da
homogeneidade e da relatividade do espaço profano. É preciso acrescentar também que uma
tal existência profana jamais se encontra no estado puro. Seja qual for o grau de
dessacralização do imundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana
não consegue abolir completamente o comportamento religioso. A revelação de um espaço
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sagrado permite que se obtenha “um ponto fixo”, possibilitando na orientação homogeneidade
caótica o viver real. Ao contrário, da experiência profana que mantém a homogeneidade e a
relatividade do espaço.
A porta é o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam, onde se pode
realizar a passagem do mundo profano para o mundo sagrado.
Uma função análoga é transferida para o limiar das habitações humanas, e é por essa
razão que a casa goza de tanta importância. Numerosos ritos acompanham a passagem do
limiar, da porta, doméstico: respeito ou prosternações, toques devotados com a mão entre
outros. O limiar mostra de uma maneira imediata e concreta a solução de continuidade do
espaço trata-se de um símbolo, por isso sua grande importância religiosa, e ao mesmo tempo,
de um veiculo de passagem.
“No interior do recinto sagrado, o mundo profano é transcendido” (ELIADE, 1992, p.
29).
Isso ocorre em numerosas religiões, o templo estabelece uma abertura para o alto e
assegura a comunicação como o mundo dos deuses. Desta forma, todo espaço sagrado dá a
entender uma hierofania, uma invasão do sagrado que tem como resultado destacar um
território do meio cósmico que o envolve e o torna qualitativamente diferente. Muitas vezes
nem há necessidade de uma teofania ou de uma hierofania propriamente ditas: um sinal basta
para indicar a sacralidade do lugar. É que o sinal portador de significação religiosa introduz
um elemento absoluto e põe fim à relatividade e à confusão.
Para por em evidência a não homogeneidade do espaço como ela é vivida pelo homem
religioso, pode-se fazer apelo a qualquer religião. Em algumas religiões os templos se
constituem em uma abertura para o alto e assegura a comunicação com o mundo dos deuses.
Deste modo, a teofania consagra um lugar pelo próprio fato de torná-lo aberto para o
alto, comunicante com o céu, ponto paradoxal de passagem de um modo de ser a outro,
lugares de passagem entre o céu e a terra. Existem diferentes meios pelos quais o homem
religioso recebe a revelação de um lugar sagrado e que revela um ponto fixo.
23
O sagrado é o real por excelência, ao mesmo tempo poder, eficiência, fonte de vida e
fecundidade. O desejo do homem religioso de viver no sagrado equivale, ao seu desejo de se
situar na realidade objetiva, de não se deixar paralisar pela relatividade sem fim das
experiências puramente subjetivas, de viver num mundo real e eficiente e não numa ilusão.
Para o homem religioso todo o mundo é um mundo sagrado.
No entanto, os homens não são livres de escolher o terreno sagrado, que os homens
não fazem mais do que procurá-lo e descobri-lo com a ajuda de sinais misteriosos. O homem
religioso recebe a revelação de um lugar sagrado. Em cada um desses casos, as hierofanias
anulam a homogeneidade do espaço e revelaram um “ponto fixo”. O sagrado é o real por
excelência, ao mesmo tempo poder, eficiência, fonte de vida e fecundidade. No desejo do
homem religioso de mover-se unicamente num mundo santificado, ou seja, num espaço
sagrado. Essa é a razão para a elaboração de técnicas de orientação, que são técnicas de
construção do espaço sagrado. Eliade afirma que não se deve crer que se trate de um trabalho
humano, que é graças ao seu esforço que o homem consegue consagrar um espaço. O ritual
pelo qual o homem constrói um espaço sagrado é eficiente à medida que ele reproduz a obra
dos deuses. “[...] então logo nos daremos conta de que o “mundo” todo é, para o homem
religioso, um „mundo sagrado‟”. (ELIADE, 1992, p. 32).
Assim, diferentemente da experiência profana, em que o espaço é homogêneo e
neutro, o homem religioso “funda ontologicamente” o seu mundo em uma definição de
centro, de um ponto fixo, revelado por uma hierofania. Nesse sentido, vê-se que o espaço
sagrado é, acima de tudo, um ponto de referência para a vivência de um “cosmo” repleto de
significações em oposição ao caos de uma realidade profana.
À primeira vista, essa rotura no espaço parece
conseqüência da oposição entre um território
habitado e organizado, portanto „cosmizado‟, e o
espaço desconhecido que se estende para além de
suas fronteiras: tem-se de um lado o „Cosmo‟ e de
outro um „Caos‟. Mas é preciso observar que, se
todo território habitado é um „Cosmo‟, é
justamente porque foi consagrado previamente,
porque, de um modo ou de outro, este território é
obra dos deuses ou está em comunicação com o
mundo deles (ELIADE, 1992, p. 33).
24
O caracteriza as sociedades tradicionais é a oposição que elas subentendem entre o seu
território habitado e o espaço desconhecido e indeterminado que as cerca: é o mundo, mais
precisamente o nosso mundo – o Cosmo; e o restante já não é um cosmo, mas uma espécie de
outro mundo, um espaço estrangeiro, povoado de espectros, demônios e outros. O ocupar de
um território já habitado por outros seres humanos, a tomada de posse ritual deve, de qualquer
modo, repetir a cosmogonia. Porque da perspectiva das sociedades arcaicas, tudo o que não é
o nosso mundo, não é ainda um mundo. Não se faz nosso um território senão criando-o de
novo ou consagrando-o. A ereção da cruz, na descoberta do Brasil, pelos portugueses equivale
a consagração da região, e portanto, de certo modo, a um “novo nascimento” (II Co. 5.17,
Bíblia Sagrada). A terra recentemente descoberta era renovada, recriada pela cruz.
Através da rotura dos níveis, terra, céu e regiões inferiores se torna possível a
comunicação. A comunicação com o céu é expressa por certo número de imagens referentes
todas elas ao Axis Mundi. E este simbolizado por vários exemplos: pilar, escada, montanha,
árvore, cipós e outros, em torno desse eixo cósmico estende-se o mundo ou “umbigo da
terra”.
Encontra-se por toda a parte o simbolismo do centro do mundo, e é ele que, na maior
parte dos casos, permite compreender o comportamento religioso em relação ao “espaço em
que se vive”. Analisando o exemplo das montanhas, que em algumas culturas são a ligação
entre a terra e o céu. As montanhas de alguma forma, tocam o céu e marca o ponto mais alto
do mundo; daí resulta, pois, que o território que a cerca, e que constitui o “nosso mundo”, é
considerado como a região mais alta e “consagrado” como sagrado. A palestina está repleta
destas montanhas “sagradas”, não só para muçulmanos mas como também para os cristãos.
Todas essas crenças um mesmo sentimento, que é profundamente religioso. “Nosso mundo, é
uma terra santa porque é o lugar mais próximo do céu, daqui podemos alcançar o céu”,
afirmam.
Conforme Eliade (1992) deve-se entender que a cosmização dos territórios
desconhecidos é sempre uma consagração: organizando um espaço, reitera-se a obra exemplar
dos deuses. Exemplifica-se isso com o dos achilpas, uma tribo indígena no México, que
cosmizou o seu território, nos tempos míticos. Numbakula, um de seus líderes, do tronco de
uma árvore da goma, moldou o poste sagrado (kauwa auwa), e depois de o ter ungido com
sangue, trepou por ele e desapareceu no céu. Esse poste representa um eixo cósmico, pois foi
25
a volta dele que o território se tornou habitável transformando-se num “mundo sagrado”. É
graças ao poste que os achilpas acreditam poder comunicar-se com o domínio celeste. Não se
pode viver no “Caos”. Uma vez perdido o contato com o transcendente, a existência no
mundo já não é possível. Os acilpas se deixam morrer no momento da perda do contato.
Quando a instalação é permanente implica numa decisão vital que compromete a existência de
toda uma comunidade.
Parece-nos que se impõe uma conclusão: o homem
religioso desejava viver o mais perto possível do Centro
do Mundo. [...] mas queria também que sua própria casa
se situasse no Centro e que ela fosse uma imago mundi.
[...] acreditava-se que as habitações situavam-se de fato
no Centro do Mundo e reproduziam, em escala
microcósmica, o Universo. [...] o homem das sociedades
tradicionais só podia viver num espaço „aberto‟ para o
alto, onde a rotura de nível estava simbolicamente
assegurada e a comunicação com o outro mundo, o
mundo transcendental, era ritualmente possível. [...]
sejam quais forem as dimensões do espaço que lhe é
familiar e no qual ele se sente situado [...] o homem
religioso experimenta a necessidade de existir sempre
num mundo total e organizado, num Cosmo (ELIADE,
1992, p. 43).
Eliade cita o que Rabbi bin Gorion afirma do rochedo de Jerusalém que “ele se chama
Pedra angular da terra, que dizer, o umbigo da Terra, pois foi a partir dali que toda a Terra se
desenvolveu” (ELIADE, 1992, p. 44). O centro é justamente o lugar onde o espaço se torna
sagrado, real por excelência.
A idéia de construir uma aldeia a partir de um cruzamento, ou seja, tendo um ponto
central, decorrer do conceito de que o Universo se desenvolve a partir de um Centro e se
estende na direção dos quatro pontos cardeais. No ponto central da aldeia, deixava-se um
espaço vazio onde posteriormente se construía a “casa cultual, cujo telhado representa
simbolicamente o Céu” (ELIADE, 1992, p. 45).
Há muitos exemplos onde se percebe a retomada do simbolismo cósmico da aldeia nas
estruturas de casas cultuais e santuários. Eliade cita o exemplo da Nova Guiné, no qual “a
„casa dos homens‟ encontra-se no meio da aldeia: o telhado representa a abobada celeste, as
quatro paredes correspondem às quatro direções do espaço” (ELIADE, 1992, p. 45). O autor
entende que “a construção ritual do espaço é sublinhada por um triplo simbolismo” (ELIADE,
26
1992, p. 45), sendo o teto a representação do Céu; o soalho representa a terra; e as quatro
portas, quatro janelas, quatro paredes e as quatro cores significam os quatro pontos cardeais,
ou as quatro direções do espaço cósmico.
Eliade não se surpreende em encontrar representação similar na Itália antiga e entre os
antigos germanos. “O mundus romano era uma fossa circular, dividida em quatro [...]
evidentemente equiparado ao omphalos, ao umbigo da Terra: a Cidade (Urbs) situava-se no
meio do orbis terrarum.” (ELIADE, 1992, p. 46). Nas cidades germânicas, encontra-se um
esquema semelhante onde “a instalação de um território equivale à fundação de um mundo.”
(ELIADE, 1992, p. 46).
Eliade entendeu que, sendo o “nosso mundo” um Cosmo, qualquer ataque exterior a
ele ameaça, “transforma-o em Caos” (ELIADE, 1992, p. 46). E, portanto, “os adversários que
o atacam são equiparados aos inimigos dos deuses, aos demônios, e sobretudo ao
arquidemônio” (ELIADE, 1992, p. 46). Por isso, muitas vezes, construíam-se defesas como
fossas, labirintos, muralhas etc; com a finalidade “de impedir a invasão dos demônios e das
almas dos mortos mais do que os ataques dos homens” (ELIADE, 1992, p. 47). Na Idade
Média, no Ocidente, “os muros das cidades eram consagrados ritualmente como uma defesa
contra o Demônio, a Doença e a Morte” (ELIADE, 1992, p. 48).
Parece simpática e conclusiva a idéia de que o homem religioso desejava viver o mais
perto possível do centro do mundo. O homem das sociedades tradicionais só podia viver num
espaço “aberto” para o alto, onde a rotura do nível estava simbolicamente assegurada e a
comunicação com o outro mundo, o mundo transcendental, era ritualmente possível.
Nas civilizações orientais, o templo recebeu uma nova e importante valorização: não é
somente uma imago mundi, mas também a reprodução terrestre do modelo transcendente. O
judaísmo herdou essa concepção paleoriental do Templo como a cópia de um arquétipo
celeste.
[...] se o Templo constitui uma imago mundi,é porque o
Mundo como obra dos deuses, é sagrado. Mas a estrutura
cosmológica do Templo permite uma nova valorização
religiosa: lugar santo por excelência, casa dos deuses, o
Templo ressantifica continuamente o Mundo, uma vez
27
que o representa e o contem ao mesmo tempo. (ELIADE,
1992, p. 56).
Os Templos, como modelos transcendentes, gozam de uma existência espiritual,
incorruptível, celeste. Geralmente os projetos são revelados por sonhos.
Os modelos do tabernáculo, de todos os utensílios sagrados e do Templo, do povo de
Israel, foram criados por Deus desde a eternidade e Deus foi quem os revelou aos seus eleitos.
Todo esse simbolismo foi retomado na basílica cristã e posteriormente na catedral. A
igreja é concebida como imitação da Jerusalém celeste e, ao mesmo tempo, reproduz
igualmente o Paraíso ou o mundo celeste. Mesmo assim, ainda se percebe a cosmologia do
edifício sagrado.
Nas grandes civilizações orientais o templo recebeu uma nova e importante
valorização, é a reprodução terrestre de um modelo transcendente. É provável que se tenha
nessa idéia uma das últimas interpretações que o homem religioso deu à experiência primária
do espaço sagrado em oposição ao espaço profano. A basílica cristã, e mais tarde a catedral,
retoma e prolonga todos os simbolismos. A estrutura cosmológica do edifício sagrado persiste
ainda na consciência da cristandade.
Para poder ver o sagrado e o profano basta confrontar o comportamento de um
homem não religioso, em relação ao espaço em que vive, com o comportamento do homem
religioso para com o espaço sagrado para perceber imediatamente a diferença de estrutura que
os separa. Isto é o mesmo que dizer que o homem religioso só pode viver num mundo sagrado
porque somente um tal mundo participa do ser, existe realmente. Essa necessidade religiosa
exprime uma inextinguível sede ontológica. O homem religioso é sedento do ser. Cada
homem religioso situa-se ao mesmo tempo no centro do mundo e na origem mesma da
realidade absoluta, muito perto da “abertura” que lhe assegura a comunicação com os deuses.
Essa nostalgia religiosa exprime o desejo de viver num cosmo puro e santo, tal como era no
começo, quando saiu das mãos do Criador.
28
3 O TEMPO SAGRADO
O tempo sagrado possui a mesma importância que o espaço sagrado tem na construção
e constituição do Cosmo para o homem religioso. Seguindo uma estrutura semelhante, o
tempo sagrado também está em oposição ao tempo profano, que é vivido continuamente e
sem volta.
O tempo para o homem religioso não é nem homogêneo e nem contínuo. Entre essas
duas espécies de tempo, existe uma solução de continuidade, mas por meio dos ritos o homem
religioso pode “passar”, sem perigo, da duração temporal ordinária para o tempo sagrado. O
homem religioso vive em duas espécies de tempo, das quais a mais importante, o tempo
sagrado se apresenta sob o aspecto paradoxal de um tempo circular, reversível e recuperável,
espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos
ritos. Esse comportamento em relação ao tempo basta para distinguir o homem religioso do
homem não religioso.
“O tempo sagrado é, por sua própria natureza, reversível, no sentido em que é [...] um
Tempo mítico primordial tornado presente.” (ELIADE, 1992:63). O tempo sagrado é de modo
indefinido recuperável, e repetível. Pode-se dizer que ele “flui”. É o tempo criado e
santificado pelos deuses. O tempo da criação era santificado pela presença da divindade.
Para o homem religioso a duração temporal profana pode ser “parada” periodicamente
pela inserção, por meio dos ritos, de um tempo sagrado, não histórico. Tal como uma igreja
constitui uma rotura de nível no espaço profano de uma cidade moderna, o serviço religioso
que se realiza no seu interior marca uma rotura na duração temporal profana: já não é o tempo
histórico atual que é presente, mas o tempo em que se desenrolou a existência histórica de
Jesus Cristo, o tempo santificado por sua pregação, por sua paixão, por sua morte e
ressurreição. Tempo sagrado em relação a outras religiões, o cristianismo inovou a
experiência e o conceito do tempo litúrgico ao afirmar a historicidade da pessoa de Cristo. A
liturgia cristã desenvolve-se num tempo histórico santificado pela encarnação do Filho de
Deus.
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O tempo sagrado, periodicamente reatualizado nas religiões pré-cristãs é um tempo
mítico, um tempo primordial, não identificável no passado histórico, um tempo original, no
sentido de que brotou “de repente”, de que não foi precedido por um outro tempo, pois
nenhum tempo podia existir antes da aparição da realidade narrada pelo mito.
Segundo Eliade (1992) é sobretudo em relação ao tempo vivido pelo homem religioso
que podemos melhor entender a dicotomia entre sagrado e profano, uma vez que aí se faz
presente, através de ritos, uma delimitação entre eles.
O homem religioso vive assim em duas espécies de Tempo, das
quais a mais importante, o Tempo sagrado, se apresenta sob o
aspecto paradoxal de um Tempo circular, reversível e
recuperável, espécie de eterno presente mítico que o homem
reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos. (ELIADE,
1992, p. 64).
A busca do tempo original é, para o homem religioso, a repetição do ato criador dos
deuses. Esse encontro se faz através de múltiplas cerimônias, as festas periódicas, nas quais,
pelo comportamento diferenciado daquele dos dias comuns, o homem busca a reatualização
com o sagrado, consciente de que em seus mínimos detalhes está executando os atos
exemplares do criador “ab origine in illo tempore”. “o Tempo mítico que o homem se esforça
por reatualizar periodicamente é um Tempo santificado pela presença divina e num mundo
perfeito [...] corresponde à nostalgia de uma situação paradisíaca”. (ELIADE, 1992, p. 82).
O homem religioso é, por excelência, um homem paralisado pelo mito do eterno
retorno. É, ao mesmo tempo, sede do sagrado e nostalgia do Ser. Esse tempo de origem diz
respeito “ao instante prodigioso em que uma realidade foi criada, em que ela se manifestou,
pela primeira vez, plenamente, o homem esforça-se-á por voltar a unir-se periodicamente a
esse Tempo original.” (ELIADE, 1992, p. 73).
O mito conta uma história sagrada. Equivale a revelar o mistério, as personagens do
mito são deuses ou Heróis civilizadores. O mito é, pois, a narração daquilo que os deuses ou
os Seres divinos fizeram no começo do Tempo. Uma vez dito, ou seja, revelado, o mito torna-
se verdade apodítica: funda a verdade absoluta. O mito é solidário da ontologia: só fala das
realidades, do que aconteceu realmente, do que se manifestou plenamente.
30
Assim, o homem religioso torna-se contemporâneo dos deuses: sai do seu tempo
histórico, constituído pela soma dos eventos profanos e pessoais, para participar de um tempo
eterno, mítico, "o tempo da origem", aquele que "não decorre" porque não está integrado à
duração temporal da existência do dia-a-dia. Satisfaz, portanto, seu desejo de aproximação
dos deuses: a sua necessidade de retorno à origem. (ELIADE, 1992).
Para o homem religioso das culturas arcaicas, o mundo renova-se anualmente, isto,
reencontra a cada novo ano a santidade original, tal como quando saiu das mãos do Criador.
Este simbolismo está claramente indicado na estrutura arquitetônica dos santuários. Visto que
o tempo é, ao mesmo tempo, o lugar santo por excelência e a origem do mundo, ele santifica o
cosmo como um todo e também a vida cósmica. A vida cósmica era imaginada sob a forma de
uma trajetória circular e identifica-se com o ano.
Visto que o ano novo é uma reatualização da cosmogonia, implica numa retomada do
tempo em seus primórdios, a restauração do tempo primordial, do tempo “puro”, aquele que
existia no momento da criação. É por essa ração que, por ocasião do ano novo, se procedem
as “purificações” e à expulsão de pecados, dos demônios ou de um bode expiatório. Pois não
se trata apenas da cessação efetiva de um certo intervalo temporal e do início de um outro
intervalo, mas da abolição do ano passado e do tempo decorrido. Todos os pecados do ano,
tudo o que o tempo havia manchado e consumido era aniquilado, no sentido físico do termo.
Participando simbolicamente do aniquilamento e da recriação do mundo, o próprio homem
criado de novo; renascia, porque iniciava uma nova existência. A cada ano novo o homem
sentia-se mais livre e mais puro, pois se libertara do fardo de suas faltas e de seus pecados.
O tempo de origem de uma realidade, o tempo fundado pela primeira aparição desta
realidade, tem um valor e uma função exemplares; é por essa razão que o homem se esforça
por reatualizá-lo periodicamente mediante rituais apropriados. O calendário sagrado repete
anualmente as mesmas festas, apresentando-se como o “eterno retorno”.
A reatualização periódica dos atos criadores efetuados pelos seres divinos ira illo
tempore constitui o calendário sagrado, o conjunto das festas. Uma festa desenrola-se sempre
no tempo original. É justamente a reintegração desse tempo original e sagrado que diferencia
o comportamento humano durante a festa daquele de antes ou depois.
31
A respeito do tempo sagrado pode-se dizer que é sempre o mesmo, que é uma
“sucessão de eternidades” (Hubert e Mauss). Seja qual for a complexidade de uma festa
religiosa trata-se sempre de um acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e que é,
ritualmente, tornado presente. Os participantes tornam-se os contemporâneos do
acontecimento mítico.
O homem religioso desemboca periodicamente no tempo mítico e sagrado e
reencontra o tempo de origem, aquele que não “decorre”, pois não participa da duração
temporal profana e é constituído por um eterno presente indefinidamente recuperável.
32
4 A SACRALIDADE DA NATUREZA E A RELIGIÃO CÓSMICA
Para o homem religioso, a natureza nunca é exclusivamente “natural”. Ela está sempre
carregada de um valor religioso. O mundo é impregnado de sacralidade. Ele não é um caos,
mas um cosmo e se revela como obra dos deuses. O cosmo é ao mesmo tempo um organismo
real, vivo e sagrado: revela as modalidades do ser e da sacralidade. A ontofania e hierofania
se unem.
Para o homem religioso, a Natureza nunca é
exclusivamente „natural‟: está sempre carregada
de um valor religioso. Isto é facilmente
compreensível, pois o Cosmo é uma criação
divina (ELIADE, 1992, p. 99).
Na estrutura do Mundo e dos fenômenos cósmicos, os deuses manifestam as diferentes
modalidades do sagrado, as quais o homem religioso descobre ao contemplá-lo. O Mundo
existe, tem uma estrutura e revela-se como criação.
O Céu revela [...] a distância infinita,a transcendência
dos deuses. A terra também é „transparente‟: mostra-se
como mãe e nutridora universal. Os ritmos cósmicos
manifestam a ordem, a harmonia, a permanência, a
fecundidade. [...] o Cosmo é ao mesmo tempo um
organismo real, vivo e sagrado [...] Ontologia e
hierofania se unem (ELIADE, 1992, p. 100).
Eliade afirma que a natureza sempre exprime algo que é transcendente, portanto, o
natural e o “sobrenatural” estão sempre ligados.
O céu revela-se infinito, transcendente. É por excelência o ganz andere diante do qual
o homem e seu meio ambiente pouco representa. O “muito alto” é uma dimensão inacessível
ao homem como tal: pertence de direito às forças e aos seres sobre humanos. Aquele que se
eleva subindo a escadaria de um santuário, ou a escada ritual que conduz ao céu, deixa então
de ser homem e passa a fazer parte da condição divina.
33
Deste modo, o Céu deixa de ser uma simples contemplação para se tornar uma tomada
de consciência da altura da finitude. "O Céu se revela, por seu próprio modo se ser, a
transcendência, a força, a eternidade. Ele existe de uma maneira absoluta, pois é elevado,
infinito, eterno, poderoso." (ELIADE, 1992, p. 101). A água resgata o símbolo da Criação,
porque ela existia antes da Terra e conservam a função de desintegrar, abolir formas, „lavar
pecados‟ e purificar; é ela que nos dá o reservatório de todas as possibilidades de existência.
A Terra é a imagem primordial da Terra Mater, é a terra na qual os homens foram paridos; "a
mãe humana não faz mais do que imitar a repetir este ato primordial da aparição da Vida no
seio da Terra". (ELIADE, 1992, p. 119).
Desta forma, uma experiência religiosa pode ser desencadeada pela simples admiração
da abóbada celeste. Isso ocorre pela simples verificação da altura infinita. “O „muito alto‟
torna-se espontaneamente um atributo da divindade” (ELIADE, 1992, p. 100). “O „muito alto‟
é uma dimensão inacessível ao homem como tal; pertence de direito às forças e aos Seres
sobre-humanos” (ELIADE, 1992, p. 101). Eliade (1992) usa o exemplo de subir uma
escadaria muito alta de um templo, faz com que o homem deixe de ser homem.
O Céu, segundo Eliade (1992), mostra a transcendência, a força, a eternidade, ele
existe de maneira absoluta, é elevado, infinito, eterno, poderoso. Muitos deuses primitivos
têm nomes que designam a altura, a abóbada celeste, os fenômenos meteorológicos.
O Deus celeste não é identificado com o céu, pois foi o próprio Deus que, criador de
todo o cosmo, criou também o céu. É por essa razão que é chamado “Criador”, “Todo
Poderoso”, “Pai” e outros nomes por excelência. O Deus celeste é uma pessoa e não uma
epifania uraniana. Mas ele habita o céu e manifesta-se por meio dos fenômenos
meteorológicos: trovões, raios, tempestades e outros fenômenos.
Poderia se dizer, que os deuses, depois de terem criado o Cosmo, a vida e o home,
sentem uma espécie de “fatiga”, como se o enorme empreendimento da criação lhes tivesse
esgotado os recursos e por isso retiram-se. Isto acontece em todas as religiões. Por toda parte,
entre as religiões primitivas, o ser supremo celeste parece ter perdido a atualidade religiosa;
está ausente do culto, afastando-se cada vez mais dos homens de sua criação.
34
O “afastamento divino” traduz na realidade o interesse cada vez maior do homem por
suas próprias experiências e descobertas religiosas, culturais e econômicas. Interessado nas
hierofanias da vida, em descobrir o sagrado da fecundidade terrestre e sentir-se solicitado por
experiências religiosas mais “concretas”, o homem primitivo afasta-se do Deus celeste e
transcendente. Lembram-se somente do Deus transcendente em última instância quando
fracassam todos os esforços com os outros deuses e deusas (1 Samuel 12.10, Bíblia Sagrada).
Aquele que está “no alto”, o “elevado” continua a revelar o transcendente em qualquer
conjunto religioso. Afastado do culto, e relegado às mitologias, o céu mantém-se presente na
vida religiosa por intermédio do simbolismo. E esse simbolismo celeste infunde e sustenta
numerosos ritos, mitos e lendas. O simbolismo do “Centro do Mundo” ilustra a importância
do simbolismo religioso / efetua a comunicação com o céu. O sagrado celeste permanece
ativo por meio do simbolismo, pois um símbolo dirige-se ao ser humano integral, e não
apenas à sua inteligência.
Conforme Eliade, ao falar do Deus longínquo, “os seres supremos de estrutura celeste
têm tendência a desaparecer do culto” (ELIADE, 1992, p. 103). As descobertas religiosas,
culturais e econômicas do homem geram a idéia do afastamento divino.
Todas as vezes que os antigos hebreus viviam
uma época de paz e prosperidade econômica
relativas, afastavam-se de Jeová e tornavam a
aproximar-se dos Baals e das Astartes dos seus
vizinhos. Só as catástrofes históricas forçavam-
nos a voltarem-se para Jeová. (ELIADE, 1992, p.
107).
Descobrindo a sacralidade da Vida, o homem abandonou as hierofanias vitais e
afastou-se da sacralidade que transcendia suas necessidades imediatas e cotidianas.
Mesmo quando a vida religiosa já não é dominada pelos deuses celestes, eles
conservam um lugar preponderante na economia do sagrado. O transcendente continua sendo
demonstrado através de expressões como “aquele que está no alto”, o “elevado”, e outras.
Esse simbolismo celeste sustenta numerosos ritos, mitos e lendas. O simbolismo do “Centro
do Mundo” é onde ocorre a comunicação dom o Céu.
35
O simbolismo desempenha um papel considerável na vida religiosa da humanidade;
graças aos símbolos, o mundo se torna “transparente”, suscetível de “revelar” a
transcendência. O contato com a água comporta sempre uma regeneração, isto porque a
imersão fertiliza e multiplica o potencial da vida. Do ponto de vista da estrutura, o “dilúvio” é
comparável ao “batismo”, pois o batismo lava os pecados, purifica e regenera.
Toda água natural adquire, pela antiga prerrogativa com que foi honrada em sua
origem, a virtude da santificação no sacramento, se Deus for invocado sobre ela, a água.
As águas simbolizam a soma universal das virtualidades. A imersão na água simboliza
o regresso ao pré-formal, já que as águas existem antes da terra. Esse simbolismo implica em
morte e em renascimento. Para Eliade (1992), as águas conservam sua função: desintegram,
abolem as formas, “lavam os pecados”, purificam e regeneram.
Ao falar da Universalidade dos símbolos, Eliade afirma que: “Para os apologetas
cristãos, os símbolos estavam carregados de mensagens: mostravam o sagrado por meio dos
ritmos cósmicos” (ELIADE, 1992, p. 115). A história acrescenta continuamente significados
novos, mas esses não destroem a estrutura do símbolo.
A fé cristã está suspensa de uma revelação histórica, a encarnação do Filho de Deus,
que assegura, aos olhos do cristão, a validade dos símbolos. A história não conseguiu
modificar radicalmente a estrutura de um simbolismo arcaico. A história acrescenta
continuamente significados novos, mas estes não destroem a estrutura do símbolo. Para o
homem religioso o mundo sempre revela uma modalidade do sagrado. Para ele a sacralidade é
uma manifestação completa do ser.
A mãe terrena é apenas a representante da grande mãe, a Mãe Terra. A mãe humana
não faz mais do que imitar e repetir ao ato primordial da aparição da vida, o nascimento de
uma criança. A mãe humana deve se colocar em contato direto com a grande Mãe, a fim de
receber dela as energias benéficas e encontrar nela a proteção maternal.
A mulher se relaciona misticamente com a terra. Todas as experiências religiosas
relacionadas com a fecundidade e o nascimento de uma criança têm uma estrutura cósmica. A
sacralidade da mulher depende da santidade da terra. Os mitos e os ritos da terra, Mãe
36
exprimem as idéias de fecundidade e riqueza. Trata-se de idéias religiosas, pois os múltiplos
aspectos da fertilidade universal revelam, o mistério da geração, da criação da vida.
Para o homem religioso a morte não põe um termo definitivo à vida: a morte não é
mais do que uma outra modalidade da existência humana. O mistério da inesgotável aparição
da vida corresponde à renovação rítmica do Cosmo. É por essa razão que o Cosmo foi
imaginado sob a forma de uma árvore gigante com sua capacidade infinita de se regenerar
proporcionando eterna juventude, saúde e imortalidade. A árvore conseguiu exprimir tudo o
que o homem religioso considera real e sagrado por excelência, tudo o que ele sabe que os
deuses possuem por sua própria natureza e que só raramente é acessível aos indivíduos
privilegiados, os heróis e os semi-deuses.
Para o homem religioso, a natureza nunca é exclusivamente “natural”. A experiência
de uma natureza radicalmente dessacralizada é uma descoberta recente, acessível apenas a
uma minoria das sociedades modernas, sobretudo aos homens de ciência. Para o resto das
pessoas, a natureza apresenta ainda um encanto, um mistério, uma majestade, onde se pode
decifrar os traços dos antigos valores religiosos. Jamais assistiremos a uma total
dessacralização do mundo, pois, no Extremo Oriente, o que se chama “emoção estética”
conserva ainda, mesmo entre os letrados, uma dimensão religiosa. Mas o exemplo dos jardins
em miniatura mostra-nos em que sentido e por que meios se opera dessacralização do mundo.
A dessacralização das hierofanias (lunares, solares e outros...), inscreve-se entre tantos
outros processos similares, graças aos quais o Cosmo inteiro acaba por ser esvaziado de seus
conteúdos religiosos. A securalização definitiva da natureza é coisa adquirida apenas para um
momento limitado de modernos: aqueles desprovidos de qualquer sentimento religioso.
Apesar das mudanças profundas e radicais que o cristianismo trouxe na valorização religiosa
do Cosmo e da vida, ele não as rejeitou. Conforme Léon Bloy, quer a vida esteja nos homens,
nos animais ou nas plantas, é sempre a vida, e quando vem o minuto, o ponto imperceptível
que chamamos morte, é sempre Jesus que se retira, quer se trate de uma árvore ou de um ser
humano. (ELIADE, 1992).
40
5 EXISTÊNCIA HUMANA E VIDA SANTIFICADA
Conhecer parte da literatura sacra, familiarizar-se com algumas mitologias e teologias
orientais ou do mundo clássico, não é ainda suficiente para conseguir compreender o universo
mental do homo religiosus. Para conhecer o universo mental do homo religiosus é preciso ter
em conta os homens dessas sociedades primitivas. O comportamento religioso deles parece-
nos, hoje, excêntrico, se não francamente aberrante, muito difícil de compreender. Mas o
único meio de compreender um universo mental é situar-se dentro dele, no seu próprio centro,
para alcançar, a partir daí, todos os valores que esse universo comanda. Para o homem
religioso, o Cosmo “vive” e “fala”.
A própria vida do Cosmo é uma prova de sua santidade, pois ele foi criado pelos
deuses e os deuses mostram-se aos homens por meio da vida cósmica. O homem reencontra
em si mesmo a santidade que reconhece no Cosmo. É evidente que sua vida possui uma
dimensão a mais: não é apenas humana, é ao mesmo tempo “cósmica”, visto que tem uma
estrutura trans-humana. Poder-se-ia chamá-la uma “existência aberta”, porque não é
estritamente ao modo do ser homem.
O homem religioso vive num mundo aberto sendo que, sua existência é aberta para o
mundo. Isto é o mesmo que dizer que o homem religioso é acessível a uma série infinita de
experiências que poderiam ser chamadas de “cósmicas”. Tais experiências são sempre
religiosas, pois o mundo é sagrado. Para chegar a compreendê-las, é preciso ter em mente que
as principais funções fisiológicas são suscetíveis de se transformar em sacramentos.
A existência do homos religiosus, sobretudo do primitivo, é “aberta” para o mundo;
vivendo, o homem religioso nunca está sozinho, pois vive nele uma parte do mundo. Mas não
se pode dizer como o filósofo Hegel, que o homem primitivo está “enterrado na natureza”,
que ele não se reencontrou ainda como distinto da natureza, como ele mesmo. Uma existência
“aberta” para o mundo não é uma existência inconsciente, enterrada na natureza. A “abertura”
para o mundo permite ao homem religioso conhecer-se conhecendo o mundo, e esse
conhecimento é preciso para ele porque é um conhecimento religioso, refere-se ao ser.
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Eliade (1992) traz a sacralidade para vida interior do homem, o comportamento do
homos religiosus e o universo mental. Resgata a compreensão das totalidades das situações
existenciais e as entende como experiências vividas. "É evidente que sua vida possui uma
dimensão a mais: não é apenas humana, é ao mesmo tempo „cósmica‟, visto que tem uma
estrutura trans-humana." (ELIADE, 1992, p. 136). Esta „trans-humanidade‟ é o que poderia
ser chamado de „existência aberta‟, isto é, não é fechada para si mesmo, mas aberta para a
mundo.
No entanto, para o homem a-religioso as experiências vitais estão dessacralizadas,
tendo assim uma dimensão humana, desprovida de significado espiritual.
O homem deseja situar-se num centro, lá onde existe a possibilidade de comunicação
com os deuses. Para tanto, sua habitação é um microcosmo, assim como o seu corpo. A
correspondência entre corpo, casa e cosmo impõe-se desde muito cedo. Assim, ao se instalar
conscientemente na situação exemplar a que está de certo modo predestinado, o homem se
cosmiza: ele reproduz, em escala humana o sistema dos acontecimentos recíprocos e dos
ritmos que caracteriza e constitui um mundo, que define todo universo.
É importante observar que cada uma das imagens equivalentes (cosmo, casa, corpo
humano), pode apresentar uma abertura superior que possibilita a passagem para um outro
mundo. Deste modo, templo, casa, corpo são cosmo. Mas todos esses cosmo, e cada um de
acordo com seu modo de ser, apresentam uma abertura, seja qual for o sentido que lhe
atribuam às diversas culturas. De uma maneira ou de outra, o cosmo que o homem habita
(corpo, casa, território tribal, este mundo em sua totalidade) comunica-se pelo alto com um
outro nível que lhe é transcendente.
Nesta análise da existência aberta, Eliade compara o homem religioso do a-religioso
dizendo que, o religioso está aberto para o mundo, em comunicação com os deuses e participa
da santidade do Mundo, porém o a-religioso também participa disso, mas numa forma
camuflada. Afirmando que "para os modernos desprovidos de religiosidade, o Cosmo se
tornou opaco, inerte, mudo: não transmite nenhuma mensagem, não carrega nenhuma „cifra‟."
(ELIADE, 1992, p. 145). A experiência do religioso está „aberta‟, enquanto a do não-religioso
ela permanece privada e centrada nela mesma.
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Como exemplos destas situações existenciais, tanto do homem religioso quanto do a-
religioso, Eliade (1992) cita os rituais de passagem e iniciação. Estas situações adquirem
sentidos diferentes para os homens modernos. Para o homem religioso o sentido da mudança
é ontológica, a entrada numa nova situação traz uma legitimidade na nova situação para a
comunidade, enquanto para o a-religioso, estes ritos nada mas são que acontecimentos que
dizem respeito a família ou ao indivíduo.
Numa perspectiva a-religiosa da
existência, todas as „passagens‟ perderam
seu caráter ritual, quer dizer, nada mais
significam além do que mostra o concreto
de um nascimento, de um óbito ou de uma
união sexual oficialmente reconhecido.
(ELIADE, 1992, p. 151).
Outra diferença é que o homem religioso acredita na sua realidade e na transcendência
do mundo, santificando o real. Porém o a-religioso chega a duvidar do sentido de sua
existência, pois ele se reconhece como um sujeito e agente da história e rejeita a
transcendência. Nisso, Eliade (1992) aponta para a dessacralização do mundo.
Apesar desta dessacralização, Eliade (1992) traz um apontamento, na qual o homem a-
religioso ainda conserva dentro de si o homem religioso. Pois só dessacraliza-se algo que um
dia foi sagrado. "A maioria dos „sem-religião‟ ainda se comporta religiosamente, embora não
esteja consciente do fato." (ELIADE, 1992, p. 166). Citando neste contexto o Marxismo e a
Psicanálise, como portadora de uma mitologia (iniciações, rituais e sentido de existência).
Assim, quando Eliade (1992) percorre este assunto, diz que o fato de não se estar
consciente é porque ainda está no interior do homem, um interior não descoberto, ou seja,
inconsciente. Assim, estes conteúdos (míticos-vivenciais) estariam no inconsciente, frutos das
situações existenciais imemoriais. O "homem a-religioso das sociedades modernas é ainda
alimentado e ajustado pela atividade de seu inconsciente." (ELIADE, 1992, p. 173).
Diz, ainda mais,
o homem a-religioso teria perdido a capacidade
de viver conscientemente a religião e, portanto,
de compreendê-la e assumi-la; mas , no mais
43
profundo de seu ser, ele guarda ainda a
recordação dela, da mesma maneira que, depois
da primeira „queda‟, e embora espiritualmente
cego, seu antepassado, o Homem primordial,
conservou inteligência suficiente para lhe permitir
reencontrar os traços de Deus visíveis no Mundo.
(ELIADE, 1992, p. 173).
Para refletir sobre espaço sagrado é importante apontar a idéia de morte como rito de
passagem e ritos fúnebres.
Eliade (1992) apresenta que para o homem moderno o nascimento, o casamento e a
morte não passam de acontecimentos de âmbito individual ou familiar, com a exceção de
celebridades ou chefes de Estado.
Nas sociedades antigas os ritos de passagem eram um grande evento. Por exemplo, a
união sexual era sagrada. A iniciação sexual dos gregos se dava nos templos e eles chamavam
o casamento de télos, a consagração, e o ritual nupcial assemelhava-se ao dos mistérios nos
templos. Os egípcios e o maias eram iniciados nos templos através das sacerdotisas, que na
Grécia se chamavam Hieródulas e em Roma, Vestais. Nessas sociedades os jovens eram
conduzidos aos templos para sua iniciação sexual.
Tem razão Eliade (1992) ao afirmar que uma das características do mundo moderno é
o desaparecimento da iniciação. De grande importância nas sociedades tradicionais, a
iniciação é praticamente inexistente na sociedade ocidental dos dias atuais. É bem verdade
que as diferentes confissões cristãs conservam, em diferentes graus, vestígios de um Mistério
iniciático. O batismo é essencialmente um ato iniciático; o sacerdócio implica numa iniciação.
Não se deve esquecer que o cristianismo triunfou precisamente e chegou a ser urna religião
universal senão por ter se liberado dos Mistérios greco-orientais, proclamando ser uma
religião de salvação acessível a todos.
Eliade (1992) observa que os ritos de passagem desempenham um papel importante na
vida do homem religioso. É certo que o rito de passagem por excelência é representado pelo
início da puberdade, a passagem de uma faixa de idade a outra (da infância ou adolescência à
juventude). Mas há também ritos de passagem no casamento e na morte, e pode-se dizer que,
em cada um dos casos, trata-se sempre de uma iniciação, pois envolve sempre uma mudança
44
radical de regime ontológico e estatuto social. Por ocasião do casamento, tem lugar também
uma passagem de um grupo socioreligioso a outro.
O recém-casado abandona o grupo dos chefes de família. Todo casamento implica
uma tensão e um perigo, desencadeando, portanto, uma crise; por isso o casamento se efetua
por um rito de passagem. Uma outra questão que envolve a sexualidade de perto é a
fenomenologia da iniciação. Eliade (1992) comenta que a iniciação comporta uma tripla
revelação: a do sagrado, a da morte e a da sexualidade. O iniciado as conhece, assume e
integra em sua nova personalidade.
O iniciado renasce para uma nova existência, santificada. Renasce para um modo de
ser que torna possível o acesso livre ao conhecimento. É um homem que sabe, que conhece os
mistérios e que tem revelações de ordem metafísica. Em suma, a iniciação equivale ao
amadurecimento espiritual, e em toda a história religiosa da humanidade reencontra-se sempre
este tema: o iniciado, aquele que conheceu os mistérios, é aquele que sabe.
Conforme Eliade (1992), há uma correspondência estrutural entre as diversas
modalidades de passagem: das trevas à luz (sol); da preexistência de uma raça humana à
manifestação (antepassado mítico) da vida à morte; e a nova existência post mortem (a alma).
Toda existência cósmica está predestinada à “passagem”: o homem passa da pré-vida à vida e
finalmente à morte, tal como o antepassado mítico passou da preexistência à existência e o sol
das trevas à luz. A existência humana chega a plenitude ao longo de uma série de ritos de
passagem, de iniciações sucessivas. Mas são sobretudo as imagens da ponte e da porta estreita
que surgem a idéia de passagem perigosa e que, por essa razão, abundam nos rituais e nas
mitologias iniciáticas funerárias. A iniciação, como a morte, o êxtase místico, o conhecimento
absoluto, a fé, equivale uma passagem de um modo de ser a outro e opera uma verdadeira
mutação ontológica.
Os ritos de passagem desempenham um papel importante na vida do homem religioso.
Nos estágios arcaicos de cultura a iniciação desempenha um papel capital na formação
religiosa do homem, e, sobretudo, que ela consiste essencialmente numa mudança do regime
ontológico do neófito. O homem das sociedades primitivas não se considera “acabado” tal
como se encontra ao nível natural da existência: para se tornar um homem propriamente dito,
45
deve morrer para esta vida primeira (natural) e renascer para uma vida superior, que é ao
mesmo tempo religiosa e cultural.
A iniciação equivale ao amadurecimento espiritual, e em toda história religiosa da
humanidade reencontramos sempre este tema: o iniciado, aquele que conheceu os mistérios, é
aquele que sabe. Nos quadros iniciáticos, o simbolismo do nascimento acompanha quase
sempre o da morte. Nos contextos iniciáticos, a morte significa a superação da condição
profana, não santificada, a condição do homem “natural”, ignorante do sagrado, cego para o
espírito. O mistério da iniciação revela pouco a pouco ao neófito as verdadeiras dimensões da
existência: ao introduzi-lo no sagrado, a iniciação o obriga a assumir a responsabilidade de
homem. A acesso a espiritualidade traduz-se, em todas as sociedades arcaicas, por um
simbolismo da morte e de um novo nascimento.
Em períodos remotos, quer na Índia, na China, na Grécia clássica, na América
indígena, ou mesmo nos grupos pré-históricos, o simbolismo mítico presente na ritualização
das importantes etapas da vida em sociedade (nascimento, vida, morte e/ou renascimento)
representava, em todas elas, a união e reverência com o sagrado, com o ser primordial.
Segundo Eliade (1998, p. 17), “Para o homem das sociedades arcaicas [...] o que aconteceu ab
origine pode ser repetido através do poder dos ritos.”
O simbolismo e o ritual iniciático, que comportam ser engolido, por um monstro,
desempenham um papel considerável tanto nas iniciações como nos mitos heróicos e nas
mitologias da morte. O simbolismo do regresso ao ventre tem sempre uma valência
cosmológica. É o mundo inteiro que, simbolicamente, regressa com o neófito à noite cósmica
para poder ser criado de novo, regenerado. O movimento, a regeneração continuam sempre.
Para os primitivos, morre-se sempre para qualquer coisa que não seja essencial; morre-se
sobretudo para a vida profana.
Considerando a condição de “morrer para renascer”, Eliade (1992) esclarece que
efetivamente, os ritos africanos de puberdade que incluem a circuncisão podem ser reduzidos
aos seguintes elementos: os Mestres iniciadores encarnam as Feras divinas e “matam” os
noviços, circuncidando-os; esse assassínio iniciatório baseia-se num mito em que intervém
um Animal primordial, que mata os homens para fazê-los voltar à vida “modificados”; o
próprio Animal acaba sendo abatido, e esse evento mítico é ritualmente reiterado pela
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circuncisão dos noviços; “morto” pelo animal feroz (representado pelo mestre iniciador), o
noviço ressuscita a seguir, revestindo sua própria pele.
Existem processos de ritos de iniciação que poderiam ser classificados como naturais;
aqueles que à natureza compete, como nascer, viver, envelhecer e morrer. No entanto, mesmo
que esses momentos naturais inerentes ao homem estejam também presentes nos rituais
sagrados, revestidos do mito que o relê, de acordo com cada cultura, estamos aqui tratando
desse segundo aspecto.
Em quase todas as sociedades tradicionais estudadas, o simbolismo sagrado dos rituais
de iniciação seguem essa tríade. O nascimento é imposto pela natureza, resta celebrá-lo, mas
na puberdade é preciso que a criança “morra” para a sua antiga condição, através do rito, para
enfim poder renascer em uma nova vida. Isto, diferente da primeira condição, deverá ser feito
a partir de uma escolha, per se, uma iniciação consciente.
O quadro iniciático, quer dizer, morte para a condição profana, seguida do
renascimento para o mundo sagrado, para o mundo dos deuses, também desempenha um
papel importante nas religiões evoluídas, seu objetivo é alcançar o céu, após a sua morte. O
conhecimento sagrado e, por extensão, a sabedoria são concebidos como o fruto de uma
iniciação. Não era sem razão que o filósofo Sócrates se comparava a uma parteira: ele de fato
ajudava o homem a nascer para a consciência de si, dava à luz o “homem novo”. O
nascimento iniciático implicava a morte para a existência profana. De uma religião a outra, de
uma sabedoria a outra, o tema imemorial do segundo nascimento enriquece-se com novos
valores, que mudam as vezes radicalmente o conteúdo da experiência. Permanece, porém, um
elemento comum, um invariante, que se poderia definir da seguinte maneira: o acesso à vida
espiritual implica sempre a morte para a condição profana, seguida de um novo nascimento.
Conhecer as situações assumidas pelo homem religioso, compreender seu universo
espiritual é, fazer avançar o conhecimento geral do homem. É verdade que a maior parte das
situações assumidas pelo homem religioso das sociedades primitivas e das civilizações
arcaicas há muito tempo foram ultrapassadas pela história. Mas não desapareceram sem
deixar vestígios: contribuíram para que nos tornássemos aquilo que somos hoje; fazem parte
da história da humanidade.
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O homem religioso assume um modo de existência específica no mundo, e, apesar do
grande número de formas histórico religiosas, este modo específico é sempre reconhecível.
Seja qual for o contexto histórico em que se encontra, o homo religiosus acredita sempre que
existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, que aqui se
manifesta,santificando-o e tornando-o real. Crê que a vida tem uma origem sagrada e que a
existência humana atualiza todas as suas potencialidades na medida em que é religiosa, ou
seja, participa da realidade.
A maioria dos homens “sem religião” partilha ainda das pseudo religiões e mitologias
degradadas. O homem profano descende do homo religiosus e não pode anular sua própria
história, os comportamentos de seus antepassados religiosos, que o constituíram tal como ele
é hoje. O sagrado reconduz o homem a sua dignidade e a volta para o seu criador – Deus.
E termina sua exposição como historiador da religião deixando o caminho aberto para
as problematizações próprias dos filósofos, psicólogos, e teólogos.
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CONCLUSÃO
A partir das leituras realizadas para o desenvolvimento deste estudo, pode-se concluir
que para Mircea Eliade, o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se
mostra como qualquer coisa de absolutamente diferente do profano. O termo hierofania é
utilizado pelo autor para indicar o ato da manifestação do sagrado; esse termo, aliás, é prático,
porquanto apenas exprime o conteúdo etimológico, a saber que “algo sagrado se nos mostra”.
As religiões não são mais do que o encadeamento de hierofanias. Nelas, encontramo-
nos diante de algo misterioso: a manifestação de uma realidade diferente, que não pertence ao
nosso mundo, através de objetos que formam parte dele. No fato da hierofania aparece, no
sentir de Mircea Eliade, um paradoxo que ele destaca que manifestando o sagrado, um objeto
qualquer torna-se outra coisa, e contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a
participar do seu meio cósmico envolvente. Dando como exemplo que uma pedra sagrada
nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (com maior exatidão: de um ponto de vista
profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se
revela sagrada, a sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Por outros
termos, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a natureza é suscetível de
revelar-se como sacralidade cósmica.
O Cosmo na sua totalidade pode tornar-se uma hierofania. A propósito do aspecto
vivencial do sagrado, considerando Eliade, pode-se afirmar que o sagrado e o profano
constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo
homem ao longo da sua história. O escritor salienta que o estudo dessas vivências interessa
não só ao historiador das religiões, mas também a todo investigador desejoso de conhecer as
dimensões possíveis da existência humana.
Embora na caracterização das vivências do sagrado e do profano, Mircea Eliade acuda
a exemplos da história das religiões, o seu interesse inicial é identificar as feições essenciais,
arquetípicas, delas, notadamente da experiência religiosa.
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Frisando que o que lhe interessa em primeiro lugar é apresentar as dimensões
específicas da experiência religiosa, salientar as suas diferenças com a experiência profana do
Mundo. De modo que não insiste sobre os inumeráveis condicionamentos que a experiência
religiosa do Mundo sofreu no curso do Tempo
O homem religioso tem horror da homogeneidade do espaço profano. Desnorteia-se
nele. Perde ali o referencial. Assim como na própria existência do dia-a-dia, na consolidação
do mundo particular de cada um, há espaços mais significativos do que outros (a cidade dos
primeiros amores, a terra natal etc.), que permitem estruturar a orientação individual, de forma
semelhante para o homem religioso há a imperiosa necessidade de encontrar o espaço
sagrado, a partir do qual possa se orientar no universo. Ora, a experiência dessa necessidade é
arquetípica.
A esse respeito, Mircea Eliade afirma que a experiência religiosa da não-
homogeneidade do espaço constitui uma experiência primordial, homologável a uma
„fundação do mundo‟.
Não se trata de uma especulação teórica, mas de uma experiência religiosa primária,
que precede toda a reflexão sobre o mundo.
É a ruptura operada no espaço que permite a constituição do mundo, porque é ela que
descobre o „ponto fixo‟, o eixo central de toda a orientação futura.
Quando o sagrado se manifesta por uma qualquer hierofania, não só há ruptura na
homogeneidade do espaço, mas há também revelação de uma realidade absoluta, que se opõe
à não-realidade da imensa extensão envolvente.
A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo. Assim como o homem
religioso procura sacralizar o espaço, insere-se sua existência, também, no contexto de um
tempo sagrado, tempo primordial, raiz ontológica do tempo profano, do dia-a-dia. Conforme o
entendimento de Mircea Eliade, um tempo ontológico por excelência, „parmenidiano‟
mantém-se sempre igual a si mesmo, não muda nem se esgota. Com cada festa periódica
reencontra-se o mesmo tempo sagrado, o mesmo que se manifestara na festa do ano
50
precedente ou na festa de há um século: é um tempo criado e santificado pelos Deuses quando
das suas gesta, que são justamente reatualizadas pela festa.
Por outros termos, reencontra-se na festa a primeira aparição do tempo sagrado, tal
qual ela se efetuou. O que implica na criação de diferentes realidades que constituem hoje o
mundo, os Deuses fundavam igualmente o tempo sagrado, visto que o tempo contemporâneo
de uma criação era necessariamente santificado pela presença e a atividade divinas. Eliade
apresenta exemplos edificantes da permanência, na vida cotidiana, dessas experiências
primordiais.
A título de exemplo, basta referir que, no sentir de Mircea Eliade, a experiência
primeira do espaço sagrado constitui a base a partir da qual se desenvolve a arquitetura
urbana, domiciliar e religiosa.
A arquitetura sacra não faz mais portanto do que retomar e desenvolver o simbolismo
cosmológico já presente na estrutura das habitações primitivas. Por seu turno, a habitação
humana fora precedida cronologicamente pelo „lugar santo‟ provisório, pelo espaço
provisoriamente consagrado e cosmisado.
Isto é o mesmo que dizer que todos os símbolos e rituais concernentes aos templos, às
cidades e às casas derivam, em última instância, da experiência primária do espaço sagrado.
Do que se indicou precedentemente, depreende-se uma característica do conteúdo
transmitido pelo mito, que forma parte da mentalidade do homem religioso: para Mircea
Eliade, o essencial precede à existência. Isto é verdade tanto para o homem das sociedades
„primitivas‟ e orientais como para o judeu, o cristão e o muçulmano.
O homem é aquilo que é hoje porque uma série de acontecimentos ocorreram ab
origine. Os mitos contam-lhe esses acontecimentos e, ao fazê-lo, explicam-lhe como e por que
razão ele foi constituído desse modo.
Para o homem religioso, a existência real, autêntica, começa no momento em que
recebe a comunicação dessa história primordial e assume as suas conseqüências.
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Há sempre história divina, pois as personagens são os Seres sobrenaturais e os
Antepassados míticos. Finalizando, conclui-se que na visão de Eliade, o ser humano ocidental
moderno experimenta um certo mal-estar diante de inúmeras formas de manifestações do
sagrado: é difícil aceitar que o sagrado possa se manifestar em pedras ou árvores, por
exemplo. Contudo, acredita-se que a pedra e a árvore sagrada não são adoradas como tal, mas,
justamente porque são hierofanias e revelam algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas,
sagrado. A dessacralização caracteriza a experiência total do ser humano não-religioso das
sociedades modernas, que tem dificuldades em reencontrar as dimensões existenciais do ser
humano religioso das sociedades arcaicas. Sobretudo é importante considerar a afirmação que
Mircea Eliade faz de que seja qual for o grau de dessacralização que o mundo tenha chegado,
o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o
comportamento religioso.
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