Post on 08-Jan-2017
Sindicatos rurais e movimentos sociais: duas tradições na luta pela representação política das trabalhadoras rurais
Caroline Araújo Bordalo (Mestranda Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade/
UFRRJ) caroline_tato@yahoo.com.br Esse trabalho tem como objetivo examinar os rumos tomados pelos Movimentos de
Mulheres Trabalhadoras Rurais a partir da recente formação do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), em 2004. Trata-se da unificação de diversos movimentos independentes surgidos na década de 1980, período marcado pela emergência e fortalecimento de diversas manifestações e ações coletivas nacional e internacionalmente. Entretanto, à exceção de uma articulação regional presente em nove estados, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR-NE), sugere a problematização desse processo de unificação. Para tanto, considero o referido processo como o lócus privilegiado para a compreensão das relações sociais e do campo político de onde emergiram e atualmente se inserem tais movimentos na luta pela representação dos trabalhadores rurais sem, contudo, considerá-lo como uma etapa mais “avançada” da luta desses movimentos buscando identificar não pontos de consenso, mas, sobretudo, pontos de rupturas entre os movimentos uma vez que o processo de formação do MMC é ao mesmo tempo o processo de exclusão do MMTR-NE.
Nesses termos, acreditamos que, para compreendermos os caminhos trilhados pelos movimentos de mulheres rurais não é suficiente analisá-los apenas através da perspectiva teórica de gênero. Assim, a partir dos dados empíricos, constatamos que é no campo de disputas pela representação política dos trabalhadores rurais que poderemos encontrar um princípio de explicação que informe sobre suas ações. No caso do presente trabalho, os movimentos sociais e o sindicalismo rural, foram entendidos enquanto tradições políticas distintas que conformam a ação política dos movimentos de mulheres rurais nos dias atuais.
A idéia desenvolvida aqui é a de que nessas últimas décadas se estabeleceu uma relação entre movimentos sociais e Estado que deve ser pensada de forma dinâmica e afastada dos discursos construídos pelos agentes políticos envolvidos. E nesse sentido, trabalho com o conceito forma movimento, que não é apenas um conceito atrelado aos movimentos em si, mas à essa relação que se construiu, fortaleceu e se legitimou nessas duas últimas décadas e é dotada de significação política para ambos os lados. E que assim, o estabelecimento dessa forma específica de ação, a forma movimento, entendida dentro dos contextos históricos de formação das bases dos movimentos, tem sido importante na efetivação de suas demandas. Trata-se também de demarcar teoricamente através deste estudo particular a distinção entre Governo e Estado. Assim, as diferenças fundamentais apontadas nesse trabalho é a da forma de ação entre eles compreendida através de suas histórias organizacionais e do encaminhamento de suas lutas entendendo que o campo dos atores políticos em que estes movimentos estavam e estão inseridos acaba por definir suas atuações.
Nesses termos, analiso os dois movimentos, MMC e MMTR-NE, a partir da concepção de que são representantes de duas tradições políticas distintas. Desse modo, e como resultado parcial de meu estudo, o argumento desenvolvido é de que há diferenças significativas entre os movimentos, fundamentalmente no que se refere aos expedientes a que cada um recorre em suas ações e, sobretudo, na sua relação com o Estado. O que significa dizer que se ambas surgiram de mobilizações que envolviam homens e mulheres, seus contextos e histórias distintas resultaram em características organizacionais, metas e estratégias significativamente diferentes.
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Sindicatos rurais e movimentos sociais: duas tradições na luta pela
representação política das trabalhadoras rurais
Caroline Araújo Bordalo*
GT Estado e Movimentos rurais
Resumo:
Esse trabalho tem como objetivo examinar os rumos tomados pelos Movimentos de Mulheres Trabalhadoras Rurais a partir da recente formação do Movimento de Mulheres Camponesas, em 2004. Trata-se da unificação de diversos movimentos independentes surgidos na década de 1980, período marcado pela emergência e fortalecimento de diversas manifestações e ações coletivas nacional e internacionalmente. Entretanto, a exceção de uma articulação regional presente em nove estados, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste, sugere a problematização desse processo de unificação. Para isso, a idéia de que se tratam de tradições distintas na luta por representação dos trabalhadores rurais será desenvolvida a partir da análise da construção das categorias de mulher camponesa e mulher trabalhadora rural, bem como das histórias organizacionais dos movimentos de mulheres no campo. A perspectiva de gênero,seja ela tal como colocada pelos movimentos ou através do recorte dado por estudos acadêmicos, articulada à dimensão da representação oferecem um panorama complexo da ação social dessas organizações.
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo analisar os caminhos trilhados pelos
Movimentos de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTRs), a partir da recente
unificação de diversos movimentos de trabalhadoras rurais em Movimento de
Mulheres Camponesas (MMC) em 2004 e das questões que concorreram para tal
unificação. Para tanto, considero o referido processo como o lócus privilegiado
para a compreensão das relações sociais e do campo político de onde emergiram
e atualmente se inserem tais movimentos na luta pela representação dos
trabalhadores rurais.
A exceção de uma articulação regional, de significativa representatividade
política, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR-NE),
* Licenciada e Bacharel em ciências Sociais pela UFF. Mestranda em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade – CPDA/UFRRJ. E-mail:caroline_tato@yahoo.com.br.
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sugere a problematização desse processo e aponta para uma dimensão que tem
merecido pouca atenção pelos estudiosos do tema: a das formas tradicionais de
representação política dessa categoria, quais sejam, o sindicalismo rural, e os
movimentos sociais rurais.
Nesse sentido, busco apontar um caminho para os estudos de movimentos
de mulheres, especialmente, os que permeiam o âmbito rural. Não é minha
intenção traçar uma genealogia política desses movimentos ad infinitum e
tampouco determinar pontos originários para tais lutas, o que seria
demasiadamente arbitrário. Limito-me a perspectiva de que essas “lutas” não são
espontâneas, ou seja, que são socialmente construídas e historicamente
determinadas devendo ser pensadas enquanto fenômenos heterogêneos.
A construção da categoria camponesa por parte do movimento é o fio
condutor para o tipo de análise proposta nesse trabalho. É importante ressaltar
que não pretendo partir do pressuposto de que tal categoria surge naturalmente
de uma tomada de consciência, sob o efeito do tempo, por parte das agentes
envolvidas de sua real condição de classe. Não se trata de deslocar para a análise
das desigualdades de gênero uma tradição marxista de análise das desigualdades
de classe. A hipótese desenvolvida é a de que o delineamento dessas categorias
se configura no bojo de disputas políticas e possibilidades de mobilização de
recursos sociais mutuamente excludentes, pelo menos no quadro das forças
políticas e posições sociais em que os movimentos referidos se encontravam
quando da proposta de fusão.
Nesses termos, analiso os dois movimentos, MMC e MMTR-NE, a partir da
concepção de que são representantes de duas tradições políticas distintas. Nesse
sentido, a principal idéia desenvolvida é a de que há diferenças significativas entre
os movimentos, fundamentalmente no que se refere aos expedientes a que cada
um recorre em suas ações. O que significa dizer que se ambos surgiram de
mobilizações que envolviam homens e mulheres, seus contextos e histórias
distintas resultaram em características organizacionais, metas e estratégias
significativamente diferentes.
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O surgimento dos movimentos1 - uma breve contextualização
“A delegação do capital político
pressupõe a objetivação em
instituições permanentes (...) em
postos e estruturas de mobilização”
(BOURDIEU, Pierre, 1989)
A década de 1980 é o marco histórico de formação de muitos movimentos
sociais, nacional e internacionalmente. É também nesse período e no bojo das
transformações políticas que, no Brasil, os movimentos de mulheres ganham força
e significativa expressão nos processos de luta no campo. A participação das
mulheres nas lutas sociais no campo não é fato novo. No entanto, datam deste
período as primeiras organizações formais com o objetivo de reivindicar o
reconhecimento político de um estatuto profissional. Segundo Deere (2004), as
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e grupos de mulheres organizados pela
Comissão Pastoral da Terra (CPT) na década anterior muitas vezes ofereceram a
experiência formativa que levou as mulheres a questionarem sua condição social.
Navarro (1996) ressalta que as mulheres rurais aumentaram lentamente
sua visibilidade política através de duas vias. Em primeiro lugar através do
sindicalismo oficial que teria percebido que o crescente debate público sobre a
condição feminina e a emergência de movimentos de mulheres poderia contribuir
para o aumento da participação nos sindicatos. Entretanto, coloca que tais
iniciativas revelaram-se bastante seletivas, uma vez que na estrutura oficial do
sindicalismo rural poucas mulheres ocupavam posições de liderança. Em segundo
lugar, através da emergência dos movimentos sociais rurais, em especial através
1 O termo está em destaque uma vez que é problematizado enquanto uma categoria chave para se entender a dinâmica de ação política dos movimentos de mulheres analisados. O sentido adotado neste trabalho para o termo advém da expressão cunhada por Rosa (2004) em tese recente, forma movimento, sobre o sentido do engajamento dos militantes de movimentos da zona canavieira de Pernambuco. Segundo o autor, a forma movimento, naquele contexto particular representou uma via importante para indivíduos que estavam, por diversos motivos, alijados das instâncias tradicionais de representação, legitimarem pontos de vista sobre suas questões específicas, tornando-se o meio de interlocução por excelência para com os órgãos governamentais.
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das oportunidades criadas com a expansão de movimentos como o MST. A esse
respeito, Stephen (1996) aponta que mulheres que chegaram a alcançar posições
de liderança na estrutura de tais movimentos frustraram-se com a inabilidade
destes em evidenciar a importância de suas reivindicações específicas.
Nesse período, desenvolveram-se em muitos estados os Movimentos de
Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTRs), que freqüentemente eram formados por
mulheres membros de sindicatos filiados à Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Agricultura (CONTAG) e à Central Única dos Trabalhadores,
dado que as principais estruturas organizacionais em áreas rurais eram os
sindicatos, ou ainda outros movimentos como, por exemplo, o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)2. Entretanto, Deere (2004) nos lembra
que durante a metade da década de 1980, nos sindicatos filiados à CONTAG,
assumiu-se que somente uma pessoa por família poderia ser membro do
sindicato, geralmente o homem chefe de família, ficando a mulher enquanto sua
dependente.
O reconhecimento de que as mulheres passam por problemas específicos
tanto pelas instâncias sindicais como pelos demais movimentos sociais foi um
processo lento. Esse é também um dos principais argumentos legitimadores da
“autonomia” 3 dos movimentos de mulheres frente a outros movimentos sociais,
uma vez que consideram que suas demandas sempre foram secundárias nesses
espaços que, por privilegiarem questões econômicas e os temas relacionados à
classe e ao mundo do trabalho, não aprofundavam a discussão sobre gênero.
(STEPHEN, 1997). Através de um discurso construído a partir de conceitos como
opressão, liberdade, igualdade, justiça, emancipação, solidariedade, poder e
2 Durante uma entrevista com uma militante do MMC, em julho de 2005, esta fez questão de falar que o interesse de se criar um movimento de mulheres era anterior ao surgimento do MST. E que este por sua vez, teria se apropriado tanto das demandas (que já existiam), quanto de um ambiente favorável uma vez que a idéia de uma organização formal (inclusive a nível nacional) já existia. E que quando as mulheres se tornam lideranças, elas não tem espaço para desenvolver suas próprias demandas. E assim, o movimento consegue manter a retórica do estímulo a participação política de mulheres sem, contudo, dar importância às questões específicas de gênero. 3 O termo está em destaque por não se tratar de uma total separação em relação às demais instâncias políticas, mas, sobretudo, da construção de demandas específicas.
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dominação, os movimentos de mulheres no meio rural justificam sua existência
histórica em termos de autonomia política.
Além disso, Stephen (1996) coloca que movimentos como o MST e a CUT
rural, recrutavam deliberadamente mulheres e formavam departamentos especiais
e estruturas organizativas para as mesmas no interior de cada movimento. No
entanto, ainda que os sindicatos e movimentos tenham gradualmente incorporado
à sua estrutura instâncias específicas para o encaminhamento das reivindicações
e para o debate sobre gênero, os MMTRs estaduais mantiveram-se relativamente
independentes em relação a estes e investindo na criação de uma articulação a
nível nacional. (DEERE, 2004). E, como aponta Ricci (1999), apesar do
movimento sindical de trabalhadores rurais ser o mais vigoroso de toda estrutura
sindical nacional, os movimentos sociais permaneceram organizados ao largo da
estrutura sindical. Nesse momento, a questão colocada por tais movimentos é a
de que a estrutura sindical não comporta as demandas específicas das mulheres,
e com isso sua participação fica muito restrita e unívoca. Sendo assim, juntamente
à luta pela sindicalização das mulheres, esses movimentos passam a desenhar
novas trajetórias de participação política.
Em 1986, é realizado o primeiro encontro nacional de mulheres em Barueri,
São Paulo, apoiado pela CUT e pelo MST, com o objetivo de criar uma
organização nacional das trabalhadoras rurais. Contudo, ao final do encontro, a
formação de uma articulação nacional de movimentos de mulheres rurais foi
considerada prematura pelo conjunto de movimentos que lá estavam. Limitando-
se a resolução de que os movimentos deveriam concentrar esforços para a
criação de redes regionais. De acordo com as considerações de Deere (2004),
esse encontro foi seminal para o surgimento do Movimento de Mulheres
Trabalhadoras Rurais – Nordeste em 1986, e da Articulação das Instâncias das
Mulheres Trabalhadoras Rurais – Sul (AIMTR – Sul), em 1988. E mais
recentemente, em 1995, foi criada a Articulação Nacional de Mulheres
Trabalhadoras Rurais (ANMTR), organização que reunia os movimentos de todo o
país.
6
A necessidade de incorporar mais mulheres rurais nos sindicatos, assim
como nas posições de liderança, foi uma importante questão. Novos temas
surgiram nesse período, refletindo o crescimento do discurso feminista pelas
mulheres dentro dos sindicatos (DEERE, 2004). Pode-se dizer que, nesse
processo de construção política por parte dos movimentos, as relações de
“gênero” passam a ser vistas como centrais aos processos e organizações sociais
e ao processo de desenvolvimento. No caso específico das análises de
movimentos de mulheres rurais especialmente a que privilegia a perspectiva
feminista (SCHAAF, 2001), a idéia recorrente é de que são movimentos que
recortam esferas de pertencimento, ou seja, ela fala a partir de e identifica-se por
suas particularidades de gênero e de classe4 (STEPHEN, 1996; SCHAAF, 2001),
e ao mesmo tempo pretende tornar operacionalizáveis teórica e criticamente as
mesmas singularidades que são, simultaneamente, a condição de sua fala e
aquilo que intentam transformar.
1.2. Revisitando a categoria “gênero”: possibilidades e limites
O campo temático dos movimentos sociais surge como reflexão e análise
nas ciências sociais na América Latina, com mais intensidade, na década de 1970,
como decorrência da emergência e fortalecimento de diversas manifestações e
ações coletivas ocorridas nesse período. De modo preliminar é importante
ressaltar que grande parte da literatura tende a acentuar as potencialidades
existentes nos movimentos sociais na medida em que sua prática cotidiana teria
engendrado novos sujeitos e novos atores, ou ainda novas identidades e novas
sociabilidades. Considerado por muitos como portadores de um novo fazer
político, os movimentos e os seus partícipes seriam “sujeitos políticos”, que a partir
de sua atuação e suas lutas estariam construindo uma “nova cidadania”
(SCHAAF, 2001). Essas análises têm muitas vezes incorporado o discurso nativo
sobre essa questão. E um primeiro passo nesse sentido foi ter claro que as
4 Os termos estão em destaque por estar referido às definições conceituais de outras autoras.
7
crenças dos atores não bastam para dar razão à ação, já que não são
independentes das relações nas quais os atores estão implicados.5
Uma das questões abordadas no estudo acerca dos movimentos sociais é a
categoria de “novos” para adjetivá-los. Esses movimentos foram denominados de
novos como forma de distingui-los dos movimentos organizados em torno do
processo de produção (de gênero, ecológicos, pacifistas, étnicos, etc).6 Sendo
assim, é a partir das questões teóricas expostas acima, acerca do lugar que tais
movimentos ocupam e de que estariam institucionalizando novas formas de
relações sociais, que grande parte dos estudos sobre movimentos de mulheres se
concentram. Nesse sentido, considerados como representantes desse “novo agir
social”, uma gama de teóricos preocupados em se distanciar da ortodoxia
marxista, desenvolvem suas análises através da ênfase em categorias culturais. E
no que concerne aos objetivos dessa pesquisa, a categoria “gênero” deve ser
compreendida como um desdobramento desse debate teórico. Tais debates não
surgiram isoladamente no meio acadêmico, e de modo algum estiveram
circunscritos a embates teóricos. A relação íntima estabelecida entre produção
acadêmica e a construção do discurso político por parte dos movimentos sociais
teve conseqüências para ambos os lados. Ao mesmo tempo em que tal produção
surge para além do discurso científico, como uma espécie de subsídio teórico que
legitima os movimentos sociais e seus discursos em um dado momento, por outro
lado, em uma significativa parcela da literatura sobre o tema torna-se confusa a
distinção entre a construção do objeto de análise, esteja ele referido a “gênero” ou
a qualquer outra questão, e os discursos políticos dessas organizações.
Para além da discussão acerca do que seria o papel dos movimentos
sociais dado o contexto político em que se inserem, penso que questões de ordem
sociológica devem ser colocadas. Melucci (2001) coloca que em muitos estudos a 5 A esse respeito, Melucci (2001) diz: “a definição que os atores constroem de si não é linear, mas produzida por meio da interação, da negociação, da oposição entre orientações diversas. Os atores formam um “nós” colocando em comum e ajustando laboriosamente três ordens de orientações: aquela relativa ao sentido que a ação tem para o ator, aquela relativa às possibilidades e aos limites da ação e aquela relativa ao campo no qual a ação se realiza.” 6 Cabe aqui colocar a crítica que Melucci (2001) faz a esse respeito: “Torna-se verdadeiramente difícil decidir, por exemplo, o quanto há de novo no “movimento de mulheres” contemporâneo, entendido como objeto empírico global, comparado com as primeiras mobilizações feministas do século XIX.”
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dimensão coletiva do agir social aparece como um dado, uma evidência óbvia que
não merece indagação posterior. E no que se refere aos processos de
emancipação femininos e, mais especificamente, sobre os movimentos de
mulheres no campo, penso ser fundamental uma reflexão teórica que se afaste de
concepções essencialistas e naturalizadas desses processos. Essa dupla
identidade, mulheres e camponesas, ou ainda, mulheres e trabalhadoras rurais,
indica que não podemos adotar uma perspectiva totalizante nem em termos de
gênero, tampouco em termos de classe. Por esse motivo, e como nos lembra
Melucci (2001), no plano analítico não devemos confundir a condição feminina
com os movimentos de mulheres. E se levarmos em conta as representações
sobre as duas questões, classe e gênero, podemos dizer que estas não se
articulam facilmente e que sendo assim torna-se bastante difícil partir da
discussão sobre um deles e, por acréscimo, aprofundar-se na discussão do outro,
embora no discurso dos movimentos e de algumas análises acadêmicas eles
apareçam juntos. O que só se torna possível pela elasticidade e pouca exatidão
do que sejam as “questões de gênero”.
Nesses termos, delimito o sentido da categoria “gênero” tal qual a definição
de Joan Scott (1991), uma vez que sua influência teórica nesse sentido abarca
estudos desenvolvidos por historiadores, sociólogos, antropólogos, etc. A
historiadora intenta refutar o feminismo marxista, que “devido ao fato de que este,
quaisquer que sejam as variações e as adaptações, impõe-se a exigência de
encontrar uma explicação “material” para o gênero, o que limitou ou pelo menos
retardou o desenvolvimento de novas direções de análise”. Ao significar “gênero”
necessariamente a partir das relações de poder, as questões subseqüentes a
essa proposição encontraram ecos em diversas áreas do conhecimento através
da sua conotação política.
Assim, sobre a categoria “gênero” no sentido desenvolvido por Joan Scott
(1991), e sem entrar no mérito da utilidade analítica da categoria demasiadamente
utilizada pelos estudos sobre movimentos de mulheres, acredito ser necessário
romper com a tranqüilidade teórica que sua perspectiva relacional transmite, uma
vez que no caso dos movimentos analisados tal categoria contribui pouco para a
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compreensão de outras diferenças importantes. O que significa dizer que a
questão se refere menos à construção teórica do conceito do que à apropriação
do mesmo pelos movimentos sociais rurais, ou seja, tem-se em muitas análises
que partem da perspectiva de gênero nada mais que o reflexo da explicação
nativa acerca da sua forma de ação e de organização.
Assim, a despeito da pertinência teórica e política dessa perspectiva, o que
busco apontar neste trabalho é o fato de que este ponto de análise isolado, tão
comum em estudos de gênero7, talvez se constitua num obstáculo para um fato
sociológico que se refere também às questões acerca da representação política
dessas mulheres construídas ao longo de mais de duas décadas de organização.
O que significa dizer que tais estudos, ao privilegiarem “gênero” como categoria de
análise, tendem a reificar uma outra de igual importância sociológica: a categoria
“trabalho”. É nesse sentido que, a partir do diálogo necessário com a literatura
sobre “gênero”, a pesquisa revelou ser importante uma perspectiva alternativa que
desse conta de outros processos sociais. Assim, a representação política dessa
categoria apresentou-se como a entrada adequada para se compreender os
rumos tomados por esses movimentos.
O MMC e o MMTR-NE: tradições distintas de participação e representação
política
Para além da importância sociológica do processo de unificação, uma vez
que se conseguiu a unidade da quase totalidade dos MMTRs estaduais a partir
dessa definição específica da categoria camponesa(a) e sob a bandeira do MMC8,
a afirmação de uma líder do movimento de que não há mais nenhum movimento
de mulheres organizado no campo a nível nacional que não seja o MMC, com a
exceção do MMTR-NE9, indica que esse processo deve ser problematizado. De
acordo com as questões apontadas anteriormente, especialmente no que se
7 A esse respeito, e como representativa dessa perspectiva, ver: Schaff (2005), Boni (2004). 8 Refiro-me aqui à importância dos símbolos na construção de formas de ação como sugere Sigaud em seu fecundo estudo sobre a forma acampamento. (Sigaud, 2000) 9 Presente em todo o nordeste, sua sede fica em Pernambuco, no município de Serra Talhada.
10
refere aos limites da literatura que se desenvolve a partir da perspectiva de
“gênero”, o pretende-se apontar uma outra direção de análise compreendendo a
formação do MMC a partir da hipótese de que esta se refere, sobretudo, às
disputas políticas e às posições sociais em que os movimentos referidos se
encontravam quando da proposta de fusão. Ou seja, de que não se trata apenas
de se articular experiências de participação política das mulheres, mas da
construção política que se desenrolou nas últimas décadas por meio das lutas
específicas das mulheres rurais, a partir de encontros, seminários, tomadas de
posição e deliberações dos próprios movimentos. E por isso, interessa menos a
percepção de uma escala evolucionista de tais lutas, onde a tal formação
representaria por si só uma etapa mais avançada, e mais a reflexão acerca dos
espaços de socialização política dessas mulheres, sejam eles sindicatos rurais ou
movimentos sociais.
O Movimento de Mulheres Camponesas conseguiu aglutinar vários
movimentos estaduais em torno de uma forma de ação política e sob uma
definição ampla do que representaria ser camponesa.10 Contudo, é importante
observar que os diversos movimentos estaduais citados anteriormente já estavam
desde 1995 articulados nacionalmente através da ANMTR, incluindo o Movimento
de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste. Ou seja, além da mudança do
nome do movimento, o resultado desse processo é a exclusão do MMTR-NE.
Assim, longe de representar “a união das muitas experiências de luta das
mulheres”, a formação do MMC acabou por revelar formas distintas de ação
política. Sendo assim, e para além do discurso do movimento, ao alegar que a
mudança do nome do movimento se relaciona às exigências de outros
movimentos, a construção e a utilização da categoria por parte do mesmo podem
ser indicativas mais de rupturas do que de supostos consensos.
Durante a década de 70, o Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais
(CONTAG, FETAGs e STRs) conseguiu manter o monopólio da representação
política dessa categoria. No entanto, em meados da mesma década, com a
10 termo que inclui a pequena agricultora, a pescadora artesanal, a quebradeira de coco, as extrativistas, arrendatárias, meeiras, ribeirinhas, posseiras, bóias-frias, diaristas, parceiras, sem terra, acampadas e assentadas, assalariadas rurais e indígenas.
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atuação da Igreja Católica no campo e sua intenção de retomada de orientação
política, a supracitada autonomia dos STRs passa a conviver com mais um ator
social que se saudado num primeiro momento como um aliado, dado seus laços
históricos, num segundo momento levaria a divergências crescentes com
conseqüências políticas importantes para a condução da representação dos
trabalhadores rurais. De acordo com Moacir Palmeira (1998), a chamada “abertura
democrática” da década de 80 provocaria divisões que, ainda que advindas de
outra ordem de forças, que antes havia instituído o MSTR, acabariam se somando
àquelas que emergiram nas relações com a Igreja.11 O surgimento de várias
centrais sindicais, em vez de uma única entidade que unificaria as lutas de todos
os trabalhadores, acabou por cristalizar tensões e divisões entre os sindicatos de
trabalhadores rurais, separando em blocos distintos algumas de suas principais
lideranças.
Nesse contexto, e lembrando que em 1986 e 1988, definem-se
respectivamente, duas articulações regionais, o Movimento de Mulheres
Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR-NE) e a Articulação das Instâncias das
Mulheres Trabalhadoras Rurais – Sul (AIMTR – Sul), pode-se já nesse período
apontar para duas linhas distintas de ação política. Entendendo que organizar um
movimento de mulheres rurais assume significados diferenciados dados os
diferentes contextos históricos em que surgiram, o objetivo deste capítulo é
analisar dois movimentos, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do
Nordeste e o Movimento de Mulheres Camponesas, como representativos de
tradições distintas e historicamente consolidadas de representação política dessa
categoria.
O MMC e a forma movimento
11 “A volta à vida política de antigas lideranças, sem contato com o desenvolvimento do sindicalismo de trabalhadores rurais no período e ciosas de aumentarem o espaço de suas organizações políticas nos ”movimentos populares” e a cooptação de alguns dirigentes sindicais por essas organizações iriam questionar uma certa concepção de autonomia dos sindicatos diante de movimentos políticos e religiosos, de múltipla origem, e, conseqüentemente, estimular divisões”. (PALMEIRA, 1998)
12
Temos como ponto de partida para a análise da forma movimento, o fato de
que os movimentos do Sul figuraram em todo o processo político de fortalecimento
desses movimentos durante as duas últimas décadas como uma espécie de
modelo de ação para outros através de uma crescente legitimação de diversos
movimentos como, por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra.12 Por isso, quando falamos em MMC nos referimos ao recorte possível,
identificando características de ação que se relacionam com as dos movimentos
da Região Sul. Em dois momentos da pesquisa esse argumento encontra respaldo
nas falas de suas dirigentes. Em primeiro lugar, a afirmação sobre o interesse de
se criar um movimento de mulheres antes do surgimento do MST. E o fato de que
este teria se apropriado das demandas específicas das mulheres e da idéia de
uma organização formal. Num segundo momento, uma outra dirigente me
explicava que a unificação havia sido um importante passo, mas que “o
movimento tem que ficar perto da sua base, uma vez que o Sul é sem dúvida a
região mais “avançada” no sentido da luta, do que nas outras regiões”, sendo esse
o principal motivo da secretaria ser lá.13
Considerando esse fato e relacionando-os com os caminhos tomados por
esses movimentos e com as questões abordadas no processo de unificação em
2004, a noção de movimento proposta por Rosa (2004) torna-se fundamental para
a compreensão das questões expostas neste trabalho. Ainda que essa noção
esteja referida a um contexto sócio-histórico específico, a zona canavieira de
Pernambuco, onde a forma movimento se tornou o meio de interlocução por
excelência para com os órgãos governamentais, penso que ela pode ser seminal
para se pensar os principais expedientes políticos desse movimento, bem como
do fato de o Movimento das Mulheres Trabalhadoras do Nordeste não estarem
atualmente articuladas ao MMC.
12 O que significa dizer que os expedientes utilizados para a efetivação das demandas estão intimamente associados à forma de ação política utilizada para tal fim. Para ver a questão da luta por diretos em outro contexto ver Sigaud (1979). 13 Segundo uma militante, a atuação do MMC no nordeste ainda não é efetiva, e em alguns estados existem apenas salas do movimento com trabalhos voltados para divulgação do movimento etc. No estado de Pernambuco o MMC não esta presente.
13
Dado o contexto de surgimento dos movimentos de mulheres no Sul do
país, o que me interessa tratar aqui são, sobretudo as características comuns não
apenas aos movimentos de mulheres rurais, mas também de outras organizações
políticas tais como o chamado “novo sindicalismo” e o MST. Sendo assim, o que
busco demonstrar é que a conduta política do Movimento de Mulheres
Camponesas não deve ser compreendida de forma isolada, mas em conformidade
com sua posição no campo de disputas políticas. Desse modo, podemos dizer que
as representações dos agentes dos grupos vão estar de acordo com a posição no
mundo social, ou seja:
“...as representações dos agentes variam segundo sua posição
e os interesses que estão associados a ela e segundo seu habitus
como sistema de percepção e apreciação, como estruturas cognitivas
e avaliatórias que eles adquirem através da experiência durável de
uma posição no mundo social. O principal fator responsável pelas
variações das percepções é a posição no espaço social.” (Bourdieu,
1989)
O surgimento, no campo, dos movimentos de mulheres da região Sul
coincide com o surgimento do movimento de oposição sindical. O assim chamado
“novo sindicalismo” apostava numa postura de ruptura com a agora “velha” forma
de atuação política caracterizada como assistencialista e paternalista dos
sindicatos tradicionais. Tal sindicalismo se auto-caracterizaria como “autêntico,
combativo, envolvido com as bases. Segundo Stephen (1996), tais movimentos
sociais e o “sindicalismo combativo” compartilhavam de um enfoque ideológico
que privilegia o confronto com o Estado. Entretanto, acredito que essa perspectiva
tende a reificar a figura do Estado e de certa forma, incorporar o sentido de noções
como “autêntico” e “combativo”. Ou seja, entendo que noções como “combativo”
ou ainda “autêntico”, são categorias se constroem de forma relacional e assim me
interessa menos entendê-las como expressão de uma verdade ou como
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representativas de um avanço nessas lutas e mais o que elas significam no campo
dos atores políticos em que surgem.
Palmeira (1998) observa que é necessário aprofundar a reflexão em torno
das transformações sofridas pelo Estado brasileiro e, sobretudo, como tem se
dado a ação deste no campo, analisando os meios através dos quais essa ação
tem se dado. Segundo o autor as lutas sociais nos anos 1970 e 1980 propiciaram
aos movimentos sociais, o estabelecimento da necessidade de diálogo político, do
reconhecimento de sua legitimidade e de suas reivindicações.
Nesses termos, a idéia desenvolvida aqui é a de que nessas últimas
décadas se estabeleceu uma relação entre movimentos sociais e Estado que deve
ser pensada de forma dinâmica e afastada dos discursos construídos pelos
agentes políticos. E nesse sentido, a forma movimento, não é apenas um conceito
atrelado aos movimentos em si, mas à essa relação que se fortalece, legitima e é
dotada de sentido político para ambos os lados nesses anos. E que assim, o
estabelecimento dessa forma específica de ação, a forma movimento, entendida
dentro dos contextos históricos de formação das bases dos movimentos, tem sido
importante na efetivação de suas demandas. Assim, ao se deslegitimar a atuação
da esfera sindical, pode-se dizer que movimento passa a ser uma categoria
importante na interlocução com Estado.
De acordo com Ricci (1999) em grande parte, as experiências inovadoras
desencadeadas pelos movimentos sociais rurais dos anos 80 foram em grande
parte catapultadas à esfera das ações governamentais e que estes teriam se
transformado numa dimensão extremamente oficial. Esse tipo de perspectiva é
ilustrativo da direção de análise que busco me afastar. Acredito que tal
constatação confunde uma certa expectativa acadêmica em torno dos movimentos
sociais, o que seria a meu ver pouco sociológico. Ou seja, acredito que o
descrédito que certas análises depositam nos movimentos sociais atualmente é
decorrente da crença em excesso depositada há alguns anos atrás e não da
conduta política do movimento propriamente dita. Assim, acredito que a forma
movimento contempla de maneira mais adequada às questões propostas nesse
trabalho enquanto um conceito que articula a trajetória de atuação política dessas
15
organizações dentro do contexto de disputas políticas dos trabalhadores rurais e
sua relação com o Estado.
Sendo assim, a conjugação das forças políticas pode ser um princípio de
explicação para a afirmação das líderes do MMC de que atualmente a
sindicalização das mulheres no campo deve ser refutada em prol da afirmação do
movimento como ferramenta de conquista de direitos14.
O MMTR-NE e a tradição sindical em Pernambuco
“Não tem nenhum movimento no Brasil que não tenha
virado MMC, só em Pernambuco que não tem, lá as
mulheres são viciadas em sindicato”
(S., uma das líderes do Movimento de Mulheres Camponesas)
A vasta bibliografia sobre a organização dos trabalhadores rurais em
Pernambuco15 nos revela que os sindicatos dessa categoria desde as décadas de
50/60 vêm se apresentando como a principal ferramenta desses trabalhadores em
seus processos de lutas, tendo sua atuação nas greves de final da década de 70 e
início da década de 80, sido uma referência nacional, mantendo sua hegemonia
até meados da década de 90. (SIGAUD, 2000; 1980; 1979; PALMEIRA, 1998,
ROSA, 2004).
Em muitos estudos sobre o sindicalismo rural no Brasil o ponto de partida é
a constatação do lento processo que ampliou direitos do trabalho aos
trabalhadores rurais. Como aponta Rosa (2003), “entre a regulamentação dos
dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que versavam sobre a
organização dos trabalhadores rurais, pelo decreto 7.038 de novembro de 1944,
14 “Queremos avançar no processo de formação e construção de nossa identidade enquanto mulher, enquanto camponesa e enquanto movimento social” (MMC, 2004) 15 O caso de Pernambuco é ilustrativo para essa questão por dois motivos. Primeiro, pelo fato de ser clássico o exemplo desse estado no que se refere ao sindicalismo rural, já amplamente analisado por diversos autores. (Sigaud, 2000, 1980, 1979; ROSA, 2004, 2003) E segundo, por esse estado ser o único do nordeste em que o MMC não atua politicamente.
16
até o reconhecimento pelo Estado brasileiro dos primeiros sindicatos, se passaram
mais de dez anos”16. (ROSA, 2003)
No caso de Pernambuco, os estudos de Sigaud (2000; 1980; 1979)
mostram que as conquistas de direitos situam-se em um sistema de compreensão
da realidade social no qual os sindicatos se constituíram historicamente como
elemento fundamental. Em tal contexto, desvincular a conquista de direitos dos
sindicatos não implica somente um rompimento com uma tradição muito forte para
os trabalhadores daquele estado, o que por si só poderia trazer dificuldades para a
compreensão do sentido de “conquista de direitos”, mas implica também no
potencial estabelecimento de uma disputa pelas bases de trabalhadores que
legitimam e reforçam a atuação das organizações.
Em termos sociológicos pode-se afirmar que não é possível tratar das
organizações de mulheres nesse estado sem estabelecer qualquer relação com
essa tradição sindical. Assumo para pensar essa relação a perspectiva apontada
por Stephen (1997), segundo a qual as formas pelas quais as mulheres dessas
organizações lutam são determinadas pela história específica de suas
organizações anteriores, o contexto político em que surgiram e também pelas
múltiplas orientações em que cada organização se apresenta no campo dos
atores políticos.
De acordo com Deere (2004), na composição do MMTR-NE quando da sua
fundação em 1987, predominava a presença de mulheres que atuavam também
nos STRs sendo essa relação evidenciada pelo fato de que, das 22 mulheres
trabalhadoras rurais que participaram do encontro de fundação, 20 pertenciam a
um sindicato. Nesses termos, a idéia desenvolvida neste ponto é a de que a
tradição sindical do Nordeste e, sobretudo sua forma de ação teve é fundamental
para se compreender a atuação do MMTR-NE ao longo dessas duas últimas
décadas. Segundo S., militante do MMC desde 1991, “os meios do MMC e o do
movimento de PE (no caso, o MMTR-NE), estão sendo construídos em sentidos
opostos”. Desse modo, o argumento desenvolvido aqui é que as diferenças no
16 De acordo com Ricci (1999) foi por meio dos sindicatos e da Contag que uma construção simbólico-política identitária de trabalhadores rurais se afirma nacionalmente.
17
encaminhamento de suas lutas entre os movimentos devem ser compreendidos
através das trajetórias organizacionais dos mesmos. Ou seja, no que concerne ao
entendimento de sua atuação política ajuda menos observar as supostas
“novidades” de tais movimentos do que para o modo de suas lutas são moldadas
de acordo com um campo institucional de disputas políticas.
Em contraposição ao “novo sindicalismo”, as práticas do sindicalismo oficial
são tomadas por clientelistas, porque atreladas aos Estado. Entretanto, pode-se
perceber que diferentemente dos movimentos do Sul, a atuação dos MMTRs do
nordeste se dá no sentido de estimular a presença de mulheres atuando na esfera
reconhecendo esse espaço como um importante interlocutor com o Estado. Em
estudo sobre o sindicalismo entre as mulheres Boni (2004) ressalta que os
movimentos de mulheres são vistos pelas sindicalistas apenas como uma etapa
para que as mulheres se preparem para uma militância nos espaços públicos já
existentes, como sindicatos, prefeituras e partidos, e não como tendo objetivos
próprios. Nesse sentido, ainda que seja possível estabelecer podemos pontos de
convergências entre os dois movimentos analisados, MMC e o MMTR-NE, no que
concerne às questões tidas como especificas das mulheres rurais, existem
divergências significativas em outros aspectos.
Ambas organizações se reconhecem politicamente enquanto
representantes legítimas das mulheres e enquanto canais importantes na
efetivação de suas demandas, e que por esse motivo devem buscar se fortalecer
institucionalmente. Assim, apontamos que a chamada “questão de gênero” é um
ponto que aproxima os movimentos, e que a literatura acadêmica ao partir do
mesmo recorte tal como colocado pelos mesmos, passa ao largo de outras
questões. Desse modo, concluo com a colocação de que é no campo de disputas
pela representação política dos trabalhadores rurais que poderemos encontrar um
princípio de explicação que informe sobre suas ações. No caso do presente
trabalho, os movimentos sociais e o sindicalismo rural, foram entendidos enquanto
tradições políticas distintas que conformam a ação política dos movimentos de
mulheres rurais nos dias atuais.
Conclusão
18
Acredito que, para compreendermos os caminhos trilhados pelos
movimentos de mulheres rurais não é suficiente analisá-los apenas através da
perspectiva teórica de gênero. Nesses termos, buscou-se demonstrar que muitos
estudos sobre estes movimentos refletem o discurso político destes e se
legitimam, sobretudo pela sua natureza de intervenção, dentro e fora da
academia, feita nos discursos que compõem as falas com as quais dialoga. Ou
seja, que tais análises partem do mesmo recorte dado pelos movimentos, através
do que seriam as questões específicas das mulheres no campo, da potencialidade
de suas lutas na promoção de transformações significativas das relações sociais
tidas como desiguais e opressoras. E que assim, certos aspectos são colocados
como secundários, como uma espécie de coleção de informações que apenas
ilustram um dado contexto que se queira retratar. De acordo com Melucci (2001) é
o campo das oposições que permanece constante, e não os atores. E que,
portanto, a análise deve iniciar daquilo que está em jogo nos conflitos e só então
podem ser identificados os atores, e que dessa forma nenhuma teoria a priori
assegura mais a presença de um “sujeito histórico”. Desse modo, buscamos
apontar os limites dessa abordagem, considerado-os como um obstáculo, em
certo sentido, para a análise de outros fenômenos sociológicos importantes.
Nesses termos, ao privilegiarmos a formação do Movimento de Mulheres
Camponesas como um momento importante para o entendimento da ação desses
movimentos, levamos em conta a questão da representação política dessas
mulheres. Sem considerá-lo como uma etapa mais “avançada” da luta desses
movimentos, um dos objetivos desse trabalho era o de identificar não pontos de
consenso, mas, sobretudo, pontos de rupturas entre os movimentos uma vez que
o processo de formação do MMC é ao mesmo tempo o processo de exclusão do
MMTR-NE. Assim, as diferenças fundamentais apontadas nesse trabalho é a da
forma de ação entre eles compreendida através de suas histórias organizacionais
e do encaminhamento de suas lutas entendendo que o campo dos atores políticos
em que estes movimentos estavam e estão inseridos acabam por definir suas
atuações. No entanto, ressalto que este trabalho não tem pretensões conclusivas,
restringindo-se ao levantamento de alguns temas e questões considerados
19
relevantes para a análise dos movimentos de mulheres. Inclusive, porque o tema é
demasiadamente amplo, e as proposições aqui expostas carecem de um
cuidadoso trabalho de campo. Para além das conquistas e das potencialidades de
transformação das relações sociais desses movimentos, nosso trabalho, ao se
distanciar desse objetivo, procurou contribuir para a análise de um fenômeno que
tem raízes na história da participação política dos trabalhadores rurais no Brasil.
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