ARKH: CORPO, SIMBOLOGIA E ANCESTRALIDADE COMO CANAIS DE ENSINAMENTO NA EDUCAO PETIT, Sandra Hayde UFC sandra.haydee@terra.com.br CRUZ, Norval Batista UFC norvalcruz@uol.com.br GT-21: Afro-Brasileiros e Educao Nesses tempos em que os afrodescendentes vm conquistando armas legais importantes (lei

10.639/031, PL 73/99 e Estatuto da Igualdade Racial em tramitao), encontramos um

clima relativamente propcio para iniciativas de renovao curricular que venham fortalecer

o reconhecimento das contribuies dos negros sociedade brasileira. Nesse contexto,

consideramos importante realizar reflexo sobre as dimenses da cosmoviso africana no

Brasil que podem perpassar as nossas abordagens pedaggicas. Existe hoje material

bibliogrfico sociolgico, didtico e paradidtico de que se pode lanar mo para responder

em termos conteudistas s necessidades curriculares. Mas a dimenso filosfica das

abordagens e a procura por mtodos diferenciados dessas abordagens no vm merecendo

tanta ateno. O prprio documento das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao

das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e

Africana (2004:20) detm-se pouco nesse aspecto, apenas destacando, no Item Aes

educativas de combate ao racismo e a discriminaes, a valorizao da oralidade, da

corporeidade e da arte, por exemplo, como a dana, marcas da cultura de raiz africana, ao

lado da escrita e da leitura .

E ainda,

O ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana se far por

diferentes meios, em atividades curriculares ou no, em que: - se explicitem, busquem compreender e interpretar, na perspectiva de quem o formule, diferentes formas de expresso e de organizao de raciocnio e pensamentos de raiz da cultura africana.

Ora, como tratar da Histria e da Cultura Afro-Brasileira e Africana sem entender como se

processa a cosmoviso africana no Brasil? Acreditamos que se incorre no risco de 1 Sabemos que recentemente a referida lei foi substituda pela 11.465/08 que acrescenta obrigatoriedade do ensino da cultura e histria africana e afro-brasileira nos currculos da educao bsica, as culturas e histria dos ndios brasileiros, mas a nossa pesquisa refere-se exclusivamente ao teor da lei 10.639/03 que diz respeito afrodescendncia..

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folclorizao da cultura negra ou de superficialidade nas abordagens que dispensam a

apropriao da cosmoviso africana. Ser que a nossa forma de ensinar ir se diferenciar de

modo significativo dos padres ocidentais dominantes? At que ponto estaremos

condizentes com a viso de mundo que perpassa as manifestaes culturais apresentadas?

Como parte das nossas pesquisas no mbito da educao popular e das relaes tnico-

raciais, esses foram alguns dos questionamentos que nos motivaram a escolher a pesquisa-

interveno como modo de investigar os possveis subsdios que permitiriam construir

pedagogias diferenciadas no modo de abordar os contedos. Nesse trabalho, discutimos, a

partir de autores como Muniz Sodr e Eduardo D. de Oliveira e Hampat B, algumas

dimenses da cosmoviso africana que podem contribuir para esse modo diferenciado de

ensinar. Em seguida, damos alguns exemplos da experincia de pesquisa-interveno que

realizamos com alunos/as universitrios/as da Faculdade de Educao envolvidos/as em

projeto de extenso de valorizao da cultura negra. Trazemos aqui as atividades realizadas

durante a fase de interveno da pesquisa onde procuramos uma abordagem que nos

aproximasse da cosmoviso africana, da propiciando vivncias que privilegiassem o sentir

como forma de apropriao ancestral de seus ensinamentos. As descries das reaes e

dos depoimentos dos/as universitrios/as so achados significativos para avaliarmos a

relevncia de uma metodologia diferenciada, essencialmente vivencial e corporal.

Arkh da cultura negra

Sodr usa o termo grego arkh para caracterizar as culturas que, tais como a negra, se

fundam na vivncia e no reconhecimento da ancestralidade. As culturas de arkh cultuam a

Origem, no como um simples incio histrico mas como o eterno impulso inaugural da

fora de continuidade do grupo. A arkh est no passado e no futuro, tanto origem como

destino (1988:153). A arkh admite conviver com vrias temporalidades, mas no

promove a mudana acelerada de estado como quer a Modernidade. Essa viso da

ancestralidade estabelece uma continuidade entre deuses, ancestrais e descendentes,

continuidade essa que se manifesta atravs dos ritos e dos mitos, sempre reiterados mas

com lugar para variaes (como no eterno retorno tratado por Nietzche). A ancestralidade

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assenta-se na terra-me: o que d identidade a um grupo so as marcas que ele imprime na

terra, nas rvores, nos rios (op.cit p.22). Ou, no caso dos negros da dispora, em espaos

de culto como os terreiros que se tornam depositrios dos smbolos da Origem mtica.

A ancestralidade tambm a insero numa comunidade e o sentimento de pertencimento

alimentado pela capacidade de traar a genealogia e contar as histrias do coletivo: Assim,

todo africano tem um pouco de genealogista e capaz de remontar a um passado distante

em sua prpria linhagem (B,1982:211). Para os negros vtimas do escravismo criminoso

foi fundamental, diante do esfacelamento dos laos familiares e da desterritorializao

forosa, a recriao de uma linhagem para a transmisso e preservao de sua comunidade.

Tal linhagem foi providenciada sobretudo pelo terreiro de candombl, enquanto espao

ritualstico de recomposio e reelaborao dos elos fragmentados pela sociedade que

destinava o negro, quer seja ao lugar da subservincia, quer seja ao no lugar (sem direito a

terra, e na ps-abolio tambm excludo da moradia e do emprego pela preferncia dada

ao emigrante europeu).

A tradio fundamental para a cultura negra enquanto transmisso da matriz simblica do

grupo, mas no se trata de uma tradio concebida de modo esttico e sim como um elo de

permanncia dentro do movimento do tempo e dos lugares. a idia passada pelo msico

de jazz Dizzy Gillespie quando afirma que Cuba, Brasil e Estados Unidos so os filhos da

mesma me (frica) com diferentes pais; so variaes e influncias de uma matriz comum

reconhecvel nas simbologias mais fortes.

As culturas de arkh so saberes do smbolo: smbolos presentes nos orixs e rituais das

religies de matriz africana, smbolos nos elementos da natureza, smbolos nos territrios

criados em meio s adversidades da vida na dispora (dana, msica, capoeira, culinria,

praas, ruas, bairros, morros); smbolos no uso encantado da palavra.

As arkhs so ecolgicas, pois realizam a confraternizao do ser humano com as plantas,

animais e minerais. Essa dimenso ecolgica a indissociabilidade da natureza e da

cultura. o corpo integrado, diferente do corpo fragmentado que a medicina aloptica trata.

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tambm um corpo que se integra comunidade e a comunidade considerada corpo, uma

vez que o que afeta a um de seus componentes afeta a todos.

Culturas de arkh acreditam no ax enquanto lugar de onde irradia a fora. No se trata de

fora fsica nem de dominao e sim de poder de realizao, de engendramento. Nos

terreiros o ax se planta tanto na terra como nos indivduos, associando-se ambiente fsico e

humano. As pessoas recebem o ax atravs de seu corpo, pelo sangue, pelos frutos, pelas

ervas e oferendas rituais bem como pelas palavras pronunciadas. O ax fora de

fecundidade (biolgica e material), de proteo (contra os inimigos e as doenas) e de

melhoria da condio social. tambm uma fora de potencializao, que d autoridade

aos componentes da comunidade e comunidade como um todo. Acredita-se na

preeminncia dos mais velhos como detentores de ax pela sabedoria adquirida pela

vivncia. Pior do que o roubo de sua fora de trabalho, o desenraizamento imposto ao negro

levou ao roubo de sua fora vital, obrigando-o a criar para si, novos territrios de

sustentao e de multiplicao do seu ax.

Esses territrios foram investidos nos interstcios da sociedade dominante, fazendo uso do

poder de seduo e de acerto/negociao. Pelo fato da arkh permitir uma relao com o

outro mais baseada na circularidade (reciprocidade) do que na dominao (modelo

ocidental ainda prevalecente), o negro conseguiu trazer, para dentro de sua cultura, grande

parte da sociedade, singularizando-se pelo jogo e a potencializao do seu corpo.

Jogo e oralidade na cultura de arkh

O jogo enquanto lugar de trnsito e de identidade central nas culturas de arkh. Sodr

denomina jogo as linguagens no conceituais dos gestos, das imagens, dos movimentos

corporais e dos cantos. So de modo geral, espaos de reterritorializao, de singularizao

do negro.

Nas culturas de arkh o corpo ganha centralidade. Como diz Jos Gil (2001: 56): no

principio era o movimento. Ou, como ressalta Pierre.Weil (1999: 88) : O corpo fala.

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Tudo parte do corpo, o corpo referncia. Por isso, nas culturas africanas e negras em

geral, o corpo est presente em os todos os rituais. Assim, por exemplo, num ritual de

feitura de um santo, no candombl, o corpo raspado, marcado, cortado, cuidado. Tambm

dana, canta, grita, chora, sente, enfim todos os sentidos do corpo esto em interao e

ativos. Num ritual de candombl, fica clara e ntida a ntima relao entre o corpo, a dana,

o canto, a msica e o ritmo... O sensvel prevalece e tudo movimento. A dana,

particularmente a dana ritualstica no candombl, um dos corpos-territrios do jogo do

negro do qual o senhor de escravo no conseguiu se apossar, um espao prprio. Na

dana o escravo deixa de ser escravo, pois se movimenta em outro espao simblico que o

incorpora fora csmica. A dana ax, pois fora realizante. Gera um saber colado a um

corpo livre das determinaes e imposies da sociedade excludente. Os movimentos so

repetidos mas sempre abrindo para a improvisao. Os gestos produzem sensaes de

jubilo e potncia que conferem dignidade ao corpo negro. O ritmo da dana no terreiro

ritualizado, gerando um tempo diferente do cronolgico, um tempo csmico. A dana a

marca temporal do sagrado e manifestamente pedaggica:

no sentido de que expe ou comunica um saber ao qual devem estar

sensveis as geraes presentes e futuras. Incitando o corpo a vibrar ao ritmo do cosmos, provocando nele uma abertura para o advento da divindade (o xtase), a dana enseja uma meditao, que implica ao mesmo tempo corpo e esprito, sobre o ser do grupo e do indivduo, sobre arquiteturas essenciais da condio humana (ibid, p. 124).

Outro jogo-territrio a capoeira angola. A capoeira um jogo de desequilbrio e de

desconstruo dos rgidos padres corporais ocidentais. Nela o movimento j um

pensamento em ao e o pensamento j uma ao em movimento (Oliveira; 2005:186).

teatralizao, dana, graa, estratgia, malcia e seduo. A capoeira angola nasce da

ginga que uma forma de brincadeira e de fingimento: ir como quem no vai. ficar

como quem est indo (...) um embuste (...) improviso (,,,) dissimulao (...)

surpresa. (idem, p. 192). A ginga se constitui um movimento que revela uma tica e o

modo pelo qual o negro interage com a sociedade envolvente: ao mesmo tempo dentro e

fora do cenrio social. tambm uma maneira de sair de situaes difceis (...) seu modo

de responder s adversidades do mundo (...) Ela uma atitude coletiva de sobrevivncia do

grupo ao mesmo tempo em que a afirmao de seu ethos para outros grupos da sociedade

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abrangente (ibid, p. 193). Caracterstica das culturas de arkh, a capoeira angola

portadora de uma filosofia que brota do cho, pois a maioria de seus movimentos rasteira

e sua perspectiva a de um mundo s avessas (cabea abaixo). Assim, antes de entrar na

roda, o capoeirista se benze tocando o cho, em reverncia simblica me-terra enquanto

fundamento da ancestralidade africana.

Ainda outros espaos do jogo negro so as festas, os jantares comunitrios2 e os mltiplos

desdobramentos musicais da matriz rtmica africana tais como o samba, o jongo, o

maracatu ou ainda o gospel e o jazz nos Estados Unidos. So territrios que expressam o

que Sodr chama de lateralidade do negro, isto , a sua capacidade de libertao dos

sentidos e de recriao simblica, sempre flexibilizando as proibies e os padres

impostos a seu corpo e sua mobilidade3. Essa lateralidade envolve a alacridade ou

alegria, enquanto formas de intuio imediata que no requerem nenhuma racionalizao,

apenas a capacidade de sentir (...). No se trata de qualquer sentir, mas de uma

experincia radical, de uma comunicao original com o mundo...(Sodr, 1988: 148) Essa

forma de criao e de comunicao remete a outro aspecto importante do jogo negro, a sua

insero na tradio oral. Mas o que tradio oral?

Para Hampat B, a tradio oral a grande escola da vida que concebe a inseparabilidade

da religio, do conhecimento, da arte, da histria e do divertimento. Na tradio africana, a

fala mais do que verbo, uma percepo total: Quando Maa Ngala [O Criador] fala,

pode-se ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a sua fala (B, 1982:185). A fala um dom

divino que tanto pode criar harmonia como destruir, segundo o uso que feito dela.

sobretudo a materializao das vibraes das foras que o ser humano herdou do Criador.

Para suscitar fora, as palavras devem ser entoadas de forma rtmica, a fim de gerar

movimentos, movimentos que geram foras, foras que agem sobre os espritos que so, 2Na fase interventiva da nossa pesquisa realizamos salada de frutas juntos, como forma de encerramento e confraternizao, cada um/a contribuindo para o fazer, assim dando uma conotao bem diferente da que sugerida pela compra de coca-cola e salgadinhos prontos. Em outras circunstncias tambm procuramos realizar vivncias culinrias onde, alm de cozinharmos juntos, sentamos e comemos no cho aps rito de agradecimento pela fartura. So momentos de convivncia que nos aproximam da nossa ancestralidade e que recordam os jantares comunitrios dos nossos antepassados aqui e na frica. 3O autor refere-se a imposies tais como a proibio e perseguio aos cultos afro-brasileiros e a prtica da capoeira, a proibio de adquirir terra, a expulso de suas moradias nos centros da cidade, obrigando a ocupar morros e subrbios, dentre outras limitaes ocorridas ainda depois da Abolio.

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por sua vez, as potncias da ao (idem, p.186). Assim, nos cnticos e nas frmulas

encantatrias, a fala a materializao da cadncia.

Alm de intimamente ligada ao sagrado, a tradio oral se funda na iniciao e na

experincia, o que produz formas de aprendizagem totalmente diversas das predominantes

no ocidente. Assim os contedos da tradio oral incluem histrias, lendas, mitos,

provrbios, adgios e a genealogia da famlia e da comunidade. Esses contedos so

passados de forma assistemtica, essencialmente pela experincia e segundo as

circunstncias da vida. Como a vida no cortada em fatias, o conhecimento passado de

forma global podendo envolver simultaneamente diferentes dimenses da vida e das

cincias. A escuta e a capacidade de memorizao so muito valorizadas, todavia, o grau de

conhecimento de um sbio no medido pela quantidade de palavras aprendidas, mas pela

conformidade de sua vida a essas palavras. (...) necessrio conhecer as palavras herdadas

e viv-las (...) Pois existem coisas que no se explicam, mas que se experimentam e se

vivem (ibid, p. 193, grifo do autor).

Simbologia dos objetos e experimentaes em ambientes naturais: alguns exemplos No mbito das nossas investigaes acerca da busca de abordagens condizentes com a

cosmoviso africana em experincias educacionais que a tm por foco, realizamos projeto-

piloto com alunos/as da pedagogia participantes de um curso de extenso que aconteceu na

Faculdade de Educao de uma universidade pblica no Cear e que tinha por objetivo a

valorizao da cultura negra. Inicialmente diagnosticamos o ponto de partida da turma e

notamos que a grande maioria pouco ou nada sabia acerca da cosmoviso africana e muito

menos como poderia embasar uma abordagem pedaggica. Passamos ento a efetivar

algumas intervenes iniciais, registrando suas reaes, que ora apresentamos.

Inspiramos-nos na frase clebre da Me Stela de Oxossi que diz: aqui tudo questo de

ensinamento. Levamos para a sala de aula alguns elementos (boneca loira, boneca preta,

pedra preta, caxixi, agog, xequere, marac, basto, cabaa, faco, machadinha, bola de

futebol, bola de 4 quilos, uma banana, um peneira grande). A idia era que todos tocassem

nos materiais expostos, passando de um/a para o/a outro/a e fizessem analogias para

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posteriormente refletirem sobre os possveis ensinamentos da decorrentes. As reaes

dos/as alunos/as foram as mais diversas, mas sempre de estranhamento. As bonecas, por

exemplo, suscitaram perguntas como: Qual o sentido dessas bonecas? O que tem a ver

essas bonecas? Ento perguntamos quem ainda no tinha tocado num boneco preto. At

ento, a metade dos/as alunos/as no tinha tocado em boneca de cor preta. Perguntamos:

por qu? Silncio... Aps muitas hesitaes e demonstraes de desconforto com a

temtica, algum reconheceu que esse desconhecimento est relacionado ao preconceito

racial. Reportando-nos a Sodr (1988), refletimos ento sobre a boneca negra como

smbolo do corpo negro, negado, estranho, inassimilvel. Esse racismo que rejeita o

smbolo e seu portador, que o coloca no lugar da invisibilidade, tambm o do elo perdido

com a ancestralidade, na manifestao de sua negritude.

Outro exemplo das analogias sugeridas foi a pedra negra. A mesma suscitou estranhamento

pois os alunos tenderam a perceber a sua relao com a natureza como algo sem relevncia

para a sala de aula. Acrescentamos ento que a pedra negra um smbolo de Xang, o

guerreiro, o justiceiro. A pedra negra terra, cho, me, est em plano baixo. O modelo

cartesiano mecanicista, vendendo a idia de que tudo reto, linear e ascendente como

sinnimo de crescimento e desenvolvimento, nega o cho.

Esse distanciamento se comprovou tambm quando solicitamos passar por baixo da mesa

do professor. Nessa hora, notamos uma grande resistncia dos alunos. Essa experincia fez

apontar o sedentarismo corporal inerente cultura eurocntrica, onde o destaque

racionalidade gera o preconceito com o movimento executado para baixo, para o cho, pois

para a modernidade esse plano tende a simbolizar retrocesso, atraso, queda.

Para fazermos o contraponto a essa filosofia do vertical, levamos os/as alunos/as para o

Parque do Coc, situado no centro da cidade de Fortaleza, o maior parque urbano do Brasil.

L nos apropriamos de todos os ecosistemas naturais (floresta, trilhas, lagoas, pssaros e

animais). A reao de estranhamento foi imediata. Uns ficaram com medo da floresta,

outros de encontrar cobras, mosquitos, etc. E quando perguntamos qual a ltima vez que

estiveram no parque, a maioria respondeu que nunca nem esteve no parque. Diante das

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falas que apontaram para a falta de apropriao da natureza, comentamos que a terra, as

matas, as lagoas, os rios e os animais so referncias importantes para as culturas de arkh

enquanto smbolos da ancestralidade africana. Se no interagirmos com esses elementos

porque somos separados dos elementos da natureza. Os/as alunos/as notaram que o viver na

cidade criou esse distanciamento e que em contraposio o viver nas matas traz ao corpo

outra dimenso da realidade, fazendo com que ele visite outros territrios corporais.

Acontece a um trabalho sutil, uma viagem ao mundo sensvel da conscincia corporal. As

matas, as dunas, os rios, as lagoas, as montanhas, levam os corpos a funcionarem de modo

diferente do estar sentado, em p ou deitado, posturas lineares, prprias da modernidade

racionalista.

Jijoca e Jericoacoara so pequenas comunidades do Estado do Cear, ambas rodeadas de

dunas e lagoas, pontos tursticos, hoje extremamente explorados por interesses econmicos

nacionais e internacionais. Como parte do nosso trabalho de levar os/as alunos/as a

acessarem a cosmoviso africana, realizamos uma caminhada de 20 quilmetros, em poca

de lua cheia, saindo de Jijoca at Jericoacoara, a p, noite, logo aps um ritual, onde os

cnticos, as danas, os tambores e a fogueira fazem parte do contexto. Passamos toda a

noite caminhando, nos apropriando das dunas, das lagoas e da vegetao de tipo cerrado

existente na regio. No final da caminhada tivemos a oportunidade de ver o sol nascendo e

a lua saindo de cena. Numa das verbalizaes que fizemos no dia posterior, uma das filhas

dos participantes, menina de dez anos, disse: o meu melhor momento foi quando vi o sol

olhando a lua!. O contato com essa vivncia ancestral trouxe profundas reflexes aos

participantes onde foram questionadas as formas modernas de vida, a rapidez, o

automatismo. Foi um momento que gerou ruptura e muitos confessaram que mudaram suas

atitudes. Alguns chegaram a desejar transformarem-se radicalmente, para fazer do prazer de

viver a vida, do respeito pela natureza e pelo planeta, focos permanentes de seu cotidiano.

Comentamos ento que tudo isso faz parte do processo de apropriao da conscincia

corporal e da ancestralidade africana.

A dana como corpo-territrio de ensinamento: exemplos

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Faz-se importante lembrar o conceito de corpo-territrio do Sodr:

todo individuo percebe o mundo e suas coisas a partir de si mesmo, de um campo que lhe prprio e que se resume em ltima instncia, a seu corpo. O corpo lugar zero do campo perceptivo, um limite a partir do que se define um outro, seja coisa ou pessoa (2005, 68).

Esse pensamento de Sodr leva-nos a uma reflexo sobre o corpo rgido e o corpo flexvel.

Num depoimento feito no vdeo O Afox Filhos de Gandhi, o danarino Cleyde Morgan

diz: o canto e a dana ficaram para trs no cotidiano das pessoas. Isso para ns uma

triste sentena, uma vez que as culturas de arkh, em todos os seus rituais, usam a dana e o

canto como rito. O ocidental e o europeu conquistadores descaracterizaram ou proibiram as

manifestaes culturais dos povos sujeitados, da a tentativa de castrarem o movimento dos

corpos dos negros. Reich, em seu livro O Assassinato de Cristo coloca muito bem essa

relao, onde o encouraado, preso na armadilha da modernidade, tem dio e prende todos

aqueles que querem se libertar.

A Dana e a msica podem ser muito transformadoras. Ritmo rito. O ritmo a ordenao

desse movimento transformador-expressivo. Atravs dele junta-se o que estava separado,

isto , individuo e cosmos. A dana um jogo de descentramento, uma reelaborao

simblica do espao que abole provisoriamente as diferenas com o tempo, porque no

algo espacializado, mas espacializante, ou seja, vido e aberto apropriao do mundo,

ampliador da presena humana, desestruturador do espao/tempo necessariamente

institudo pelo grupo como conteno do livre movimento das foras.

Porm, nem sempre a prtica da dana uma atividade ancestral. Em seu livro A Dana o

danarino Klaus Viana denuncia a rigidez dos corpos dos danarinos, em especial os

clssicos, diante da exigncia nos treinamentos, do excesso de objetividade e cobrana nas

coreografias pr-estabelecidas, da quantidade de apresentaes nas turns, enfim, dos

corpos tratados como objetos.

Construmos uma proposta totalmente diferente em sesses de dana que sugerimos aos

alunos/as do referido curso. A espontaneidade, a liberdade de movimentos, o rolar no cho,

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os ps descalos, o alongar-se, o toque no outro, o contato com sua prpria respirao, os

sons atravs dos cnticos, um ritual de contato com a gua de fonte acompanhado de uma

msica de Yemanj (minha sereia rainha do mar... minha sereia rainha do mar, o canto dela

faz admirar... o canto dela faz admirar... minha sereia moa bonita... minha sereia moa

bonita... nas ondas do mar aonde ela habita... nas ondas do mar aonde ela habita...), tudo

isso faz parte da apropriao da ancestralidade africana. Evitamos a correo de

movimentos, os conceitos de certo e errado, bonito e feio, de movimentos pr-

estabelecidos. No final propusemos aos/s participantes uma verbalizao dos sentimentos

e sensaes vivenciados durante a sesso. Notamos que, todos/as saram reflexivos/as,

chupando uma talhada de melancia cortada por um dos participantes. At o ato de cortar a

melancia foi ritualstico, pois quando perguntamos quem j teve a oportunidade de cortar

uma melancia, a maioria disse que no. Ficou claro nesse momento como a modernidade

cartesianiza tudo...mostra a vida em pedaos...cortada...sem o mnimo de conexo.

Na dana pudemos fazer uma leitura dos corpos, pois os mesmos falam durante o ato de

danar, qualquer que seja o ritmo. Recorremos a ritmos africanos ou da dispora (samba,

salsa, rumba, samba-chula, reggae, samba de roda, maracatu, jongo, samba de prato, samba

de roda, etc.).

Na dana africana a postura do corpo sempre quebrado, os joelhos mantm-se fletidos,

provocando o sentimento de estar mais prximo me terra. Olhar para cima e olhar para

baixo, para os lados... sorrir...gritar..gargalhar so gestos que fazem parte da dana. pura

ludicidade. puro prazer.

Outro elemento usado na dana africana o crculo. Nos comentrios, alguns/as alunos/as

frisaram que o movimento circular nos leva ao pensar circular, inerente filosofia de matriz

africana. Na arquitetura tambm prevalece o circular. Alguns se aperceberam que a cultura

oral praticada nos crculos onde o centro pode ser uma fogueira. Outros notaram que nos

barraces de candombl as danas tambm so circulares, alm dos movimentos de 360

graus dentro do prprio eixo do corpo e da posio circular dos braos tambm circular.

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Complementamos que na capoeira tudo acontece dentro da roda, trazendo de novo o crculo

como referncia.

A dana africana um ritual. Quando levamos para o centro do circulo o pilo, a peneira, o

faco, o machado, a colher de pau, e pedimos aos/s participantes para se apropriarem

desses elementos, danando com eles, interagindo, notamos que, atravs dos ritmos

africanos, so produzidos movimentos inerentes ao cotidiano de uma aldeia ancestral.

Observamos como o movimento saiu natural, suave, fluindo com total espontaneidade,

assim comprovando a nossa ligao com nossos ancestrais, com as culturas de arkh. A

sensao de alegria, prazer, liberdade e brincadeira foram os sentimentos externados por

todos/as aqueles/as que passaram por essas vivncias.

Concluses

Acreditamos que a anedota de um pequeno incidente ocorrido com um de ns negro - na

cidade de Fortaleza nos serve de concluso:

Certa vez, estvamos correndo numa trilha do Parque do Coc (o mesmo citado acima)

quando deparamos com um grupo de aproximadamente 50 alunos de uma escola de classe

mdio-alta. As professoras ficaram muito assustadas pela viso do nosso corpo negro. Aps

falarmos bom dia, perguntamos aos/s alunos/as se estavam gostando do ambiente.

Responderam que sim. Perguntamos se j tinham tocado na terra. Responderam que no.

Ento fizemos um gesto de ccoras e tocamos no solo. Imediatamente, todos repetiram o

nosso gesto, com exceo das professoras que ficaram imveis. Em seguida discorremos

rapidamente sobre a importncia da nossa Me Terra, a que nos d alimento e da

necessidade de estarmos cuidando e preservando o ambiente como nossos avs e bisavs

nos ensinaram. Nesse momento notamos uma profunda ateno por parte dos/as alunos/as,

visivelmente sensibilizados/as com todo o acontecimento. Isso nos mostra que as crianas

de modo geral, ainda no foram contaminadas com as prticas eurocntricas que distanciam

as pessoas da ancestralidade africana.

Os resultados aqui trazidos da nossa pesquisa-interveno com universitrios/as

envolvidos/as em projeto de extenso de valorizao da cultura negra nos levam a confiar

nos caminhos da ancestralidade africana como forma de apropriao pedaggica dos

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ensinamentos da cosmoviso africana nas instituies de educao formal. Assim,

acreditamos na urgncia e premncia de incorporar nas nossas pesquisas e intervenes

pedaggicas as simbologias da cosmoviso africana, fazendo uso da seduo que a mesma

encerra e pensamos que ao fazermos isso, estaremos fornecendo instrumentos terico-

prticos que as geraes mais novas tero facilidade em se apropriar, diferentemente do que

ocorre com os professores que ainda no tiveram oportunidade de questionar seus

referenciais de modo vivencial.

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