Representação em história

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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

Considerações acerca do conceito de representação e seus usos historiográficos

Rafael Guarato*

O presente texto almeja explanar os embasamentos epistemológicos em que se assenta o

tão utilizado, e também tão mal empregado, conceito de representação nos últimos anos. Para

isso, se faz necessário a análise do circuito de debates em torno da questão do sujeito e da

narrativa histórica em que tal conceito emerge com incomparável status, perpassando análises da

“Nova História”, das mentalidades, microhistória, investigações quantitativas, que para Paul

Ricoeur, todos os campos da história vão abandonando gradativamente as mentalidades, tendo

em vista que ela não suportava um papel federativo. É quando a representação se mostrou um

conceito mais articulado, dialético para comportar os jogos de escala (RICOEUR, 2007: p.228).

Certo modo, é correto afirmar que, se tratava de uma reavaliação do conceito de representação

coletiva de Durkheim, haja vista que, a macro história lidava com tal noção enquanto recepção

sobre o título de mentalidades. Nesta novíssima etapa, o conceito de “representação coletiva” foi

reelaborado, tomado como apropriação e não mais como recepção.

Com essa modificação, o foco passa a ser a história das diferenças, das identidades e dos

laços sociais, não se fala mais em estrutura, mas em estruturação, observando normas, costumes

como instâncias capazes de manter juntas as sociedades. A substituição de mentalidade para

representação foi uma necessidade, uma vez que a representação propicia a análise do local se

apropriando do global e o que embasa isso são os jogos de escala. Desta forma, o deslocamento

se dá na articulação entre práticas e representações, a justaposição do mental a outras esferas da

sociedade total não permitia a dialética íntima das sociedades. Com a variação de escalas se

desloca a ênfase para as estratégias individuais, familiares em relação à presunção de submissão

às pressões sociais.

Todo esse novo panorama no rol da história se soma às discussões em torno da crise das

ciências sociais, devido o abandono do estruturalismo / marxismo como modelo predominante de

compreensão. A história passou a focar o sujeito contra as determinações coletivas, promovendo

alguns efeitos como: recorte inédito do objeto; compreensão de que as utensilagens mentais não * Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia – UFU/MG. Pesquisador vinculado ao POPULIS (Núcleo de Pesquisa em Cultura Popular, Imagem e Som.). Autor do livro: Dança de Rua: corpos para além do movimento. Uberlândia: EDUFU, 2008.

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se apropriam somente de um conteúdo (mentalidades), apropria-se também de um saber fazer; as

práticas sociais envolvem apropriações constantes, sendo que essas apropriações enfatizam a

pluralidade dos empregos, das compreensões e a liberdade criadora dos agentes.

No cerne dessas discussões acerca das mentalidades, a crise do marxismo, estruturalismo,

a história determinável e fixa foi tida como crise, chegando alguns a situar a história como

literatura do passado (CHARTIER, 2002: p.82), pois a realidade na história não é mais captada

por aqueles trabalhos das economias e sociedades que com documentos submetidos a uma crítica

revelam a realidade. Com as representações a história lida com o que os homens pensam e como

pensam, lida com o imaginário. Daí que o conceito de representação surge, no seio dos debates da

década de 1980.

O historiador francês Roger Chartier lembra-nos que aquelas relações duais, dicotomia de

conceitos tidos como alicerce, que ele chama de delimitações essenciais, concentram na verdade

profundos problemas (CHARTIER, 1990). O que nos interessa especificamente nesta reflexão

refere-se às relações entre verdade X ficção, pois os historiadores das representações desmontam

a idéia de verdade em história, o movimento da década de 1980 assume a história como

narrativa1, mas uma narrativa na forma de trama, que não inventa, não se trata de uma ficção, mas

também não é a realidade contida no texto, trata-se de representação.

Juntamente com essa renovação, emergem críticas à recente adotada concepção de

história como narrativa. Lawrence Stone e Hayden White encabeçaram um movimento de

questionamento do estatuto de verdade para essa narrativa histórica, pois para o positivismo a

verdade existe, o historiador é um copista da verdade. Então como fica o estatuto da verdade na

história se ela é sempre uma narrativa, uma representação do acontecido? Essa discussão, que

também se insere na década de 1980, é do como se estrutura a trama, não se trata se a história é

uma ciência ou não, pois o positivismo está sendo criticado a tempo, a questão e se a história é

uma literatura ou não, uma vez que ela se dá em forma narrativa, que é um recurso literário.

Ancorado e encorajado nesta premissa de que a história está perdendo seu prestígio entre

as disciplinas pelo abandono da verdade, Hayden White elabora um discurso calcado numa

possível bancarrota da história, pois ela carrega um fardo que está pesando em sua incapacidade

de fornecer conhecimento para o presente com base no passado. Para White, desde o início do

1 Entre os diversos personagens desse debate podemos destacar como protagonistas: Michel de Certeau, Paul Ricoeur, Paul Veyne, Carlo Ginzburg e Roger Chartier.

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século XX a história vem perdendo suas forças, ela não conseguiu prever as guerras nem seus

monstruosos andamentos, os conflitos mundiais mostraram que a história não fornece nenhuma

preparação para a vida, o passado se torna um fardo quando a história se preocupa mais com ele

com o presente (WHITE, 2001: p.45).

No que tange à história enquanto narrativa, White é mais incisivo, declarando que a

narrativa história contém elementos de interpretação, pois os documentos não fornecem tudo,

tendo os historiadores que realizar um trabalho de preencher lacunas, sendo justamente esse

trabalho de interpretação, essa ação de escolher, destacar, recortar seus documentos e fatos que

torna a história uma prática manipulável, tornando-la um texto semelhante a um artefato

literário2. White cerca o fecho quando afirma que é possível erigir diversas estórias de um mesmo

acontecimento, mas os tipos de estórias que podem ser contadas se limitam ao número de modos

de urdiduras de enredo existentes; (comédia, tragédia, romance, epopéia), sendo que as demais

variações de pontos de vista se refere à diferenciações de ordem ideológica do próprio autor, de

paradigma ou enredo.

A questão sobre a narrativa histórica e sua validade em falar o real coloca no cerne da

questão o sujeito, a subjetividade. De acordo com a filósofa americana Hannah Arendt em seu

texto: O conceito de história – antigo e moderno, o século XVIII ao vivenciar as transformações

propostas pelo movimento iluminista, com a noção kantiana de razão como inerente a todos os

homens, compartilha uma espécie de razão universal que carrega um progresso intelectual por

meio do sujeito, pois é ele que detém a razão, sendo esse progresso não no sentido de

acumulação, nem a razão é inata, ela é um fazer, uma criação do sujeito moderno.

Já no século XIX ergue-se a noção de história vinculada à noção de historicismo, Michel

Foucault ressalta que é nesse período que o sujeito desponta como importante, ele ganha status

que antes não detinha, é a historicidade que constrói esses sujeitos (FOUCAULT, 1995: p.384-

390). No entanto, o sujeito no historicismo não tem sua própria historicidade, pois existem várias

historicidades que perpassam os sujeitos, ele perde seu caráter universal. A historicidade é uma

relação de espaço e tempo onde o sujeito vive, trabalha e fala. É nesse sentido que Arendt afirma

que a noção de processo no século XIX deixa de ser um efeito da ação humana para ser algo onde

2 Para sustentar sua hipótese, White utiliza Claude Lévi-Strauss e Northop Frye. Ver em: WHITE, Hayden. Interpretação na história - O texto como artefato literário. In: Trópicos do discurso. São Paulo: EDUSP, 2001P.65-69-97-116.

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o homem se encaixa, possui vida própria, exterior e independente do homem (ARENDT, 1992:

p.95). O processo histórico passa ser subordinado a uma finalidade a ser atingida e os homens

devem servir a esse fim, daí a afirmação de Foucault que são os jogos de poder, as relações que

se instituem, e sua sobreposição é que existe o sujeito e não o contrário.

Todavia, no decurso do século XX a razão universal tendo a política como espaço da ação

– ao passo que a história permanecia no status de subordinada a uma finalidade – se mostrou

inviável, haja vista que ela não tem limite, desembocando no holocausto. É quando as teorias

estruturalistas ganham cada vez mais espaço no meio intelectual, reinando quase absolutamente,

numa concepção onde o sujeito está morto, pois as estruturas ganham autonomia do sujeito.

Quando emerge as discussões acerca da verdade em história, o sujeito é novamente posto

em questão, ele é convocado de forma totalmente inovadora, com potencial jamais tido, uma vez

que as noções de mediação de Raymond Williams (WILLIAMS, 1979.), de táticas e estratégias

de Certeau (CERTEAU, 1998), mas principalmente o conceito de apropriação de Roger Chartier

desmonta o sujeito universal, promove uma abertura ao implodi-lo (CHARTIER, 1990). Isso

ocorre porque o sujeito é invocado a um papel central, não são mais as estruturas que fornecem e

o sujeito recebe, ele mesmo elabora, cria, apropria, mas não de forma universal e sim diversa,

uma dinâmica de usos; bem como o sujeito kantiano detentor de razão como meio de

compreender o mundo passa a não conseguir escavar as sensibilidades, as paixões, que

juntamente passam a compor o sujeito como um todo, é isso que passa a ser objeto de

compreensão.

É esse novo estatuto do sujeito moderno, um sujeito que atua, pressiona, confere sentido

ao mundo em que vive, e, como lidamos com diversos sujeitos, suas leituras são plurais, os

historiadores passam a lidar não mais com a verdade. Foi esse novo panorama que fez com que

Paul Ricoeur, Paul Veyne, Michel de Certeau falassem em tramas (intrigas)3, modos de

construção da narrativa histórica que a distancia da literatura convencional, pois não se trata de

invenções ou fantasias, mas sim de representações. Desta forma, os historiadores fugiram das 3 Para Ricoeur a noção de intriga se dá na relação do historiador com acontecimentos que existem, mas que passam por um processo de interpretação, atribuindo sentido a esses acontecimentos. Mais detalhes na obra: RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tomo I, II e III. São Paulo: Papirus, 1994, 1995, 1997. Já para Veyne é o próprio sujeito que confere sentido aos fatos por meio de uma trama, passando o real a ser percebido enquanto representação. Conferir em: VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. Brasília: UNB, 1998. Certeau demonstra as diversas fases que constituem a escrita da história, mostrando que esta é vinculara a um lugar, uma prática e escrita, que estão circunscritas a certas condições de produção e consumo. Cf: CERTEAU, Michel De. Operação historiográfica: In: A escrita da história. São Paulo: Forense Universitária, 2002.

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verdades rígidas do positivismo. White reconhece que a história passou a buscar não a verdade,

mas modos de revelar certos aspectos, visões corretas, cada qual com seu estilo de representação.4

Chegamos ao ponto crucial do debate, qual o estatuto dessa tão evocada representação?

Para White o surto de representações veio para mostrar que a história ainda o é permeado pela

ficção. Por outro lado, Ricoeur fala que apesar das contribuições, a noção de representação se

tornou ambígua, passou a significar muito e nada ao mesmo tempo, pois se refere tanto à

pluralidade de vivencias como o trabalho final do historiador.

Para tentar esclarecer um pouco esse nebuloso conceito de representação utilizarei dois

reconhecidos historiadores contemporâneos: o francês Roger Chartier e o italiano Carlo

Ginzburg, buscando mostrar em que consiste o conceito de representação, suas aproximações e

distanciamentos entre ambas as concepções.

Comecemos por Chartier que traz como proposta a investigação de como as práticas são

construídas e como as representações são construídas, propondo uma nova forma de abordagem,

buscando perceber as representações como construções que os grupos fazem sobre suas práticas.

Sendo que essas práticas não são possíveis de serem percebidas em sua integridade plena, elas

somente existem enquanto representações5. A proposta te Chartier desmorona a noção de história

como tradução da realidade, pois afirma que nenhum texto traduz a realidade, nenhum texto

apreende a realidade em sua totalidade.

Desta forma, “o real assume assim um novo sentido: aquilo que é real, efetivamente, não

é” (CHARTIER, 1990: p.63). Por meio de tal afirmação Chartier não dicotomiza a relação entre

verdade / ficção, a questão é que o real assume um novo sentido, mas ele está lá, ele existe. A

noção de representação é tributária dessa dualidade, pois o real existe somente como

representado, no sentido de que há uma organização, historicização de evidências. Assim, as

práticas só possuem sentido quando representadas, se existir a verdade, ela se situa entre as

práticas e as representações, sendo que esta relação não deve ser polarizada, ao oposto, é

necessário potencializar seu entrecruzamento.

4 Hayden White em seu texto: WHITE, Hayden. O fardo da História. In: Trópicos do discurso. São Paulo: EDUSP, 2001. p.59, citando o historiador da arte Gombrich em sua obra: GOMBRICH. E. H. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictória. Trad. Raul de Sá Barbosa. São Paulo: Martins Fontes, 1995.5 Mais detalhes poderá ser obtido no texto: CHARTIER, Roger. Por uma sociologia das práticas culturais. In: A História Cultural: entre práticas e representações. São Paulo: Difel, 1990. p.13-28.

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Entretanto, Chartier não para por aí, ele dá um passo a mais, talvez o passo que causa hoje

tanta confusão acerca do conceito de representação, trata-se de uma concepção presente em seu

outro texto muito conhecido: O mundo como representação, no qual o autor declara que os

conflitos e lutas para não se dão no social e sim nas representações (CHARTIER, 1991: p.173-

191). Tomando a lógica de porty-royal contida no dictionnaire universel de Furetière como base

dos estudos da representação6, o autor desfere agudas objeções à primazia do recorte social, se

posiciona contra a divisão das sociedades em classes, haja vista que as divisões da organização

social existem historicamente apenas enquanto representadas e praticadas e não apriori. O recorte

social não é capaz de fornecer dados confiáveis, uma vez que relaciona habitus culturais e

oposições sociais dadas apriori, pois as divisões sociais e culturais não se ordenam

obrigatoriamente segundo uma grade única, os produtos, idéias, obras culturais e os sujeitos

circulam.

Isto posto Chartier nega que existam práticas ou estruturas que não seja representada,

priorizando as representações e não o recorte social, pois as diferenças culturais não são

traduções de divisões estáticas e imóveis, mas sim efeito de processos dinâmicos, tornando

necessário compreender como as construções das representações se dá conflituosamente entre um

mesmo grupo ou entre grupos. Assim Chartier crítica a White, pois o “efeito produzido” não

depende somente das formas materiais que sustentam o texto, temos que dar devida atenção às

praticas e representações que não se encontram presentes nas urdiduras, o foco se encontra nas

apropriações.

O conceito de representação em Chartier se apresenta como alternativa de compreensão

do social e cultural da realidade via representação, o real como sentido, ele recebe sentido, é

representado. Entretanto, a representação abre espaço para o relativismo das representações, uma

vez que tudo só existe enquanto representado, qual é a garantia que fornece ao trabalho histórico

certo grau de confiabilidade? Para responder essa questão intimo Carlo Ginzburg e suas reflexões

acerca desse embaraçoso tema.

Logo a princípio Ginzburg diz não se interessar pelo que ele chama de “jogo de espelho”

proposto por chartier referente à lógica de Porty-Royal, que na visão do historiador italiano fez

6 O autor apresenta a via ambígua do conceito de representação que pode vir como ausência de um objeto, sendo ele substituído por uma “imagem” presente de algo ausente. A representação lida com ausência e presença ao mesmo tempo.

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com que o termo representação se vulgarizasse (GINZBURG, 2001: p.85). Enquanto para

Chartier e preciso focar as apropriações, Ginzburg ressalta que a narrativa histórica constrói um

efeito de verdade, mas para isso a narrativa deve comportar provas. Em suma, Ginzburg

privilegia a prova como meio de trazer as práticas em sua narrativa, sendo que essa prova é

assegurada pela metodologia, a descrição minuciosa, pela narrativa cuidadosamente elaborada

que não é positivista, pois apesar de produzir efeito de verdade, não é a verdade em si.

Acerca do conceito propriamente dito, Ginzburg recorre ao período conhecido como

Idade Média, utilizando-se de toda sua erudição para mostrar a importância do cristianismo com a

aparição da relíquia, pois com ela se modifica a noção de representação, que deixa de ser contato

para ser presença, ou melhor, a representação deixa de ser contato com o real para ser presença

plena, com a relíquia elimina-se a distância. Antes do cristianismo, a representação se apresenta

como substituição, contato com imagens, estátuas.

O autor apresenta o sentido duplo da representação que expressa ausência de algo e

visibilidade de algo recorrendo aos séculos XIII e XIV para mostrar como imagens de cera eram

utilizadas como representação, que ao mesmo tempo garantiam a ausência do rei já morto e sua

presença, pois o boneco é como se o rei estivesse ali. A questão para Ginzburg é se esta prática de

sobrevivência do rei à morte física via representação é algo novo ou há uma filiação? O que torna

esta pratica viável na Europa dos séculos XIII XIV? Para o autor isso foi possível pelo fato de

que o mundo medieval conseguiu abstrair a idéia de corpo de cristo como presente.

Todavia, Ginzburg nos alerta para que não sejamos dogmáticos o bastante para tomar

representação como presença concreta, pois devemos ter atenção às descontinuidades entre

práticas e representações, pois nem toda prática é representada. Para tanto, o historiador italiano

recorre a um historiador da arte, E. H. Gombrich, especificamente em seu texto: “Meditações

sobre um cavalinho de pau ou as raízes da forma artística” (GOMBRICH, 1999: p.1-12) como

proposta de partir das artes visuais para pensar o conceito de representação: como o termo

aparece, é usado e ganha um senso comum de representação como imagem de um referente

exterior. Em tal obra, Gombrich apresenta duas formas de produzir: a primeira ele chama de arte

ilusionista, que seria uma evocação mimética, reprodução fiel, uma figuração mais próxima

possível do que é o real. O outra substitui para o real, não representa mimeticamente, trata-se de

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uma concepção conceitual, chamada de arte conceitual, utiliza aspectos estruturais do referente, e

não os detalhes. São duas maneiras diferentes de produzir, representar o real.

Ginzburg utiliza essa reflexão para transpô-la para o debate em história, percebendo que

existem duas formas de representação, mas uma consegue obter maior expressividade,

legitimidade no ocidente. O italiano apresenta o cristianismo como principal contribuição para

fortalecer a representação mimética como ideal, o mais parecido com o que se vê. Contribuição

do culto a imagens, como algo ausente. No entanto, Gombrich ressalta que tanto a arte ilusionista

quanto a conceitual possui algo em comum, todas são criações, lidam com códigos, exigem um

fazer e um ler, uma leitura e uma feitura, todos são formas de representação da realidade. São

elaborações que possuem maneiras diferentes de produção e leitura.

Em outra obra (GOMBRICH, 1995: 383-415), Gombrich discute a representação como

problema, pois será que uma obra é a um espelho de algo que existe fora da obra? Ou melhor,

será que a narrativa histórica é um espelho da realidade? Para Gombrich tal questão poderá ser

amenizada ao se focar a feitura e a leitura, tendo em vista que, para o autor, não existe produção

nem olho inocente, o que existe é certo reconhecimento que representar bem é reproduzir bem o

mundo exterior. No entanto, as representações passam por convenções, a representação de

verdades é construída. Assim, não existe uma representação real, verdadeira e fiel da realidade. A

representação é uma construção que passa por convenções que participam das construções de

representações.

Desta forma, “não há realidade sem interpretação” (GOMBRICH, 1995: p.387), uma

acompanha a outra, a representação nunca é uma réplica. O embate que Ginzburg traz é que em

determinado momento a história criou critérios do que é verdadeiro e o que não é. Congelou-se

como verdade algo que possuía uma forma de elaboração, que não passa de uma construção, um

código elaborado com um propósito, pontuando o surgimento da eucaristia como dogma, a

questão da transubstanciação. A hóstia e o vinho como corpo e sangue de cristo, não é uma coisa

branca e o vinho em si, nem uma representação, mas o próprio cristo está ali. Trata-se de uma

abstração da representação.

Foi essa mesma capacidade de abstração da imagem que tornou possível a adoração de

imagens como representação de santos, não se adora as imagens, mas o que elas representam. A

transubstanciação é posta por Ginzburg como marco de representação de forma abstrata para o

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ocidente moderno, uma ilusão de estar ali algo que não está (GINZBURG, 2001: 102-103).

Grosso modo, para Ginzburg a representação tem como base as idéias de abstratas / conceituais e

não só como mimese / figuração fiel. Ela possui duas vertentes, que em determinados momentos

se tornam cânone, ou seja, a representação não é só presença / ausência, é importante perceber

como se dá essa representação, se ela é mimese ou conceitual.

Ginzburg define representação como substituição da coisa ausente e visibilidade da coisa

presente enquanto Chartier fala em representação como ausência do que ela representa e presença

de algo ausente via representação. Contudo, creio que a análise de Ginzburg caminha mais no

sentido de preencher lacunas contidas e Chartier do que como oposição a este, trata-se de

reflexões que juntas fornecem um amplo e irrestrito conhecimento acerca do tão falado, usado,

desgastado, mas principalmente interpretado conceito de representação.

Para tentar finalizar o presente texto, resta-nos percorrer outra ramificação das

desconcertantes questões que perdurou a década de 1980. Voltando a Hayden White que ao

declarar que quem trama não é o sujeito ou o historiador, mas as urdiduras do gênero, estruturas

inteligíveis, que ao se inscreverem num gênero a trama se faz, a história estaria presa a trópicos

de linguagem, perdendo sua matéria factual (WHITE, 2001: 97-116). É aqui que reside o grande

embate entre White e os historiadores supracitados, é o questionamento da matéria factual que faz

Ginzburg recorrer às provas. Em suma, White questiona o que distingue a história da ficção, uma

vez que os diferentes tipos de contar estórias são equivalentes, não existe matéria factual.

Creio que grande parte desse debate já fora esclarecido com o recente explanamento do

conceito de representação, mas vale muito a pena destacar as reflexões de Hannah Arendt acerca

das evidências, da matéria factual. Para tanto desta com o texto Verdade e política (ARENDT,

1992: 282-325) como central, pois é nele em que se encontram as principais considerações de

Arendt acerca desse tema, onde a autora situa a história como representação não é a transparência

da realidade, haja vista que, ela necessita de elementos que possam afirmar que o holocausto

aconteceu, que em 1917 ocorreu algo na Rússia que não é só representação, foi real, existiu,

sendo que o sujeito está no cerne desta questão.

Para Hannah, a verdade em história não repousa naquela razão filosófica, ela se encontra

nas relações humanas, ela é factual, ou melhor, uma verdade factual, que tem como suporte a

matéria factual, o acontecido, verdadeiro, ocorreu. Desta forma a verdade com a qual a história

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trabalha não é uma verdade racional: científica, matemática, filosófica; trata-se de uma verdade

factual: acontecimento, fatos, eventos, que são vistas e testemunhada com os olhos do corpo e

não da mente. Isto posto, a história fala de eventos que várias pessoas presenciaram, logo, ela

necessita de comprovação.

O que gera tamanha insegurança acerca desse estatuto de verdade na narrativa história se

encontra no fato de que as verdades factuais serem mais frágeis por não se tratar de descobertas e

teorias, elas caminham de mão dadas com a mentira. Essa é a verdade com que a história lida.

Além disso, Arendt ressalta que a matéria factual pode ser manipulada pelo poder para fins de

uma verdade factual, coercitiva que não leva em conta outras opiniões. É aqui que se insere a

noção de representação, uma vez que todo fato é representado, mas nem toda representação é

verdadeira, os fatos não existem independentes de interpretação (ARENDT, 1992: 287-296).

Por esse viés, a noção de representação vem justamente para incluir o outro, entender o

outro, sua vida, lugar, pensamento. Representações são as compreensões da matéria factual. Daí a

impossibilidade de excluir o real, sempre existe a matéria factual: a Bélgica não invadiu a

Alemanha. Os estudos acerca das representações caminham mais no sentido de desmascarar as

verdades factuais manipuladas de forma coercitiva do que para gerar mentiras e abstrações que

nada carregam das evidencias. A questão é que os historiados lidam com esse caos de

acontecimentos, reorganizam-nos numa narrativa, mas não toca na matéria factual, não a altera.

Talvez as considerações de Paul Ricoeur nos tranqüilizem um pouco. Em sua última obra:

A memória, a história, o esquecimento (RICOEUR, 2007: 145-191) o autor recorre a Certeau

para afirmar que a escrita da história se refere a três fazes juntas, não é somente o ato de escrever,

destacando que desde a primeira fase surge a questão: até que ponto o testemunho, processo

epistemológico que parte da memória declarada, passa pelo arquivo, documento e termina na

prova documental é confiável? Sendo que desde o testemunho – aqueles documentos que se

enraízam nos arquivos, passados de oral para o escrito, tornando-se mudos e órfãos – até os

indícios de Ginzburg – testemunhos não escritos que não passaram pela reelaboração para se

tornarem documentos como: artefatos, imagens, quadros, ferramentas, mas que não estão isentos

de elaboração de seu autor – são todos eles representações (RICOEUR, 2007: 170-171).

Grosso modo, todo o trabalho do historiador é permeado por representações, mas temos

limitações das evidências e métodos que nos inviabiliza invenções descabidas. É nisso que

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consiste o laborioso e fascinante trabalho do historiador, ele busca, exige de si mesmo ir além da

construção de representação, no sentido não só de fornecer algo sobre o passado, lidamos com

uma espécie de militância em busca de atingir o inatingível.

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 3.ed., São Paulo: Perspectiva, 1992. BLOCH, Marc. Apologia da História ou Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2001.

CERTEAU, Michel De. A invenção do cotidiano. v.1, 3º ed. Trad. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

CHARTIER, Roger. A historia cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1990.

________________. A história entre narrativa e conhecimento. In: À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade / UFRGS, 2002.

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