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X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
sel@assis.unesp.br
PÓS-MODERNIDADE EM CAETANO VELOSO: IDENTIDADE E INTERTEXTUALIDADE
Felipe Pupo Pereira Protta (Mestrando — MACKENZIE/SP)
RESUMO: O presente trabalho se fixa na obra de Caetano Veloso. Referência obrigatória ao tratarmos de temas como cultura e música popular brasileira e com uma obra tão vasta e plural que escapa a quaisquer rótulos ou classificações convencionais, Caetano, segundo a concepção de Hall, pode ser classificado, como “sujeito pós-moderno”, por assumir, nos mais variados momentos, as mais diferentes identidades, as quais são marcadas histórica e não biologicamente. Além disso, suas canções estabelecem relações intertextuais com outras canções, com textos literários, jornalísticos e até mesmo publicitários, de diferentes tempos e espaços. Assim, ganham enfoque neste trabalho a questão identitária e a questão intertextual presentes na obra de Caetano Veloso. PALAVRAS-CHAVE: Caetano Veloso; canção; identidade; intertextualidade
O presente trabalho tem como centro a obra de um dos mais expressivos artistas da
música popular brasileira: o cantor / compositor Caetano Veloso. Figura emblemática da cultura
brasileira, Caetano Veloso vem atravessando décadas em constante mudança e reinvenção,
escapando às classificações e aos modos de interpretação convencionais. Desde o início de sua
carreira pode ser notada uma preocupação em romper com a tradição da produção musical
brasileira, numa espécie de ataque à autonomia formal da canção.
Os resultados de tal comportamento acabam por compor a vasta obra de um artista
com mais de 40 anos de carreira, que acabou se tornando uma das mais expressivas
personalidades nacionais. Em suas canções, as temáticas abordadas são as mais diversas,
tratando desde as questões particulares, inerentes a qualquer ser humano até as mais plurais,
refletindo a ideologia de toda uma nação. É neste quesito que o artista difere do homem comum,
pela capacidade que tem de transformar em arte a percepção de uma realidade comum a todos.
Caetano, ao lado de Gilberto Gil, foi um dos fundadores do Tropicalismo, um
movimento de ruptura de caráter cultural e político, visando à modernização da canção popular
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em relação ao que se tinha na tradição musical brasileira, tanto em relação à música
propriamente dita, com a incorporação de elementos como o rock, a psicodelia, a guitarra
elétrica, como na própria letra, na qual passou a não haver uma conexão tão clara entre os
versos apesar de se tratar de um mesmo tema. Tais aspectos acabaram por moldar o processo
de composição da música popular brasileira, e podem ser encontrados na obra de muitos outros
cancionistas até os dias atuais.
Tatit (2002) afirma que Caetano Veloso acabou compreendendo todas as possíveis
dicções da canção popular brasileira. Caetano, tanto na posição de compositor quanto na de
intérprete, opta por viajar pela diversidade de dicções dos demais cancionistas, de forma a
encarnar os dons de todos eles. Assim, Tatit aponta que Caetano, dependendo do momento,
como um camaleão, pode ser João Gilberto, Jorge Ben Jor, Chico Buarque, Roberto Carlos,
Peninha, Vicente Celestino e até mesmo Carmen Miranda, incorporando, em sua dicção,
elementos característicos de cada um destes artistas, e então, no momento em que Caetano
volta a ser Caetano de fato, sua obra já foi miscigenada e fortalecida pelas diversas dicções.
Tatit ainda pontua que, somando-se a isso, não pode ser ignorada a absorção praticamente
constante da música popular internacional, de diferentes tempos e espaços, a qual já se tornou
uma marca da obra de Caetano, indo dos Beatles a Michael Jackson, percorrendo de Mick
Jagger a Prince, e passando, eventualmente, por figuras como Bob Dylan, Bob Marley, Bola de
Nieve e Stevie Wonder.
Assim, o compositor e o intérprete Caetano Veloso se configuram, segundo a
concepção de Hall (2006), como sujeitos pós-modernos, por assumirem, em diferentes
momentos, as mais diferentes identidades, que são definidas histórica e não biologicamente.
Assim, tais identidades não se encontram unificadas em um “eu” coerente, mas, ao contrário,
estão sendo constantemente deslocadas e multiplicadas.
Vale ressaltar aqui que Caetano, ao assumir as diferentes identidades, assume
também um discurso ambíguo. Assim, por exemplo, o fato de assumir a identidade de uma
mulher, que na letra da canção se caracteriza como inferior ao homem, não permite afirmar que
Caetano seja machista. Ao contrário, Caetano, ao assumir as mais diferentes identidades, faz
uso de uma ironia para colocar em discussão elementos inerentes a tais identidades, a fim de
propiciar uma reflexão mais crítica acerca de tais temas e, por vezes, até mesmo criticar
comportamentos ou posicionamentos inadequados, como o machismo, por exemplo.
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Fixa-se como objetivo desse trabalho demonstrar a ocorrência do processo de
intertextualidade nas canções de Caetano Veloso, e comprovar seu caráter pós-moderno,
segundo a concepção de Stuart Hall.
Um dos aspectos que se fazem presentes na obra de Caetano Veloso é a
intertextualidade. Segundo Fávero e Koch (1985), o conceito de intertextualidade “diz respeito
aos fatores que tornam a utilização de um texto dependente de um ou mais textos previamente
existentes” (p. 28), ou seja, a intertextualidade demarca a inexistência de um texto “adâmico”,
pois vem a estabelecer as relações de um texto com os possíveis outros que foram previamente
escritos acerca de um determinado tema, fator que vem a invalidar o ineditismo de um texto.
Segundo Kristeva (1974), a “palavra literária” encontra-se num “cruzamento de
superfícies textuais”, três dimensões que correspondem, respectivamente, ao enunciador, ao
destinatário e aos textos exteriores. Horizontalmente, a palavra no texto pertence, ao mesmo
tempo, ao enunciador e ao destinatário, e verticalmente, ela está “direcionada para o corpus
literário anterior ou sincrônico” (KRISTEVA, 1974, p. 62-63).
Caetano Veloso se vale de tal recurso tanto em suas letras quanto na própria melodia.
Nas letras são estabelecidas relações com outras letras de músicas (brasileiras e internacionais),
textos literários, publicitários e até jornalísticos. Nas melodias, o arranjo, por vezes, constitui
também uma intertextualidade, como, por exemplo, a introdução de “Sampa”, uma canção de
Caetano que tem como temática a chegada à cidade de São Paulo, e o estranhamento sentido
por alguém que nunca havia visto uma cidade tão plural. Na verdade, trata-se de uma espécie de
retrato da sensação de Caetano tendo chegado a São Paulo, tendo vindo de Santo Amaro da
Purificação, na Bahia.
A introdução de “Sampa” traz as mesmas notas e acordes do verso final da canção
“Ronda”, de Paulo Vanzolini, que trata da cena da descoberta de uma traição, num bar na Av.
São João em São Paulo, constituindo também uma intertextualidade.
a) “Para que mentir” / “Dom de Iludir”
Para que mentir? (Vadico / Noel Rosa)
Para que mentir tu ainda não tens Esse dom de saber iludir? Pra quê? Pra que mentir, Se não há necessidade De me trair?
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Pra que mentir Se tu ainda não tens A malícia de toda mulher? Pra que mentir, se eu sei Que gostas de outro Que te diz que não te quer? Pra que mentir tanto assim Se tu sabes que eu sei Que tu não gostas de mim? Se tu sabes que eu te quero Apesar de ser traído Pelo teu ódio sincero Ou por teu amor fingido?
Dom de Iludir (Caetano Veloso)
Não me venha falar na malícia de toda mulher Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. Não me olhe como se a polícia andasse atrás de mim. Cale a boca, e não cale na boca notícia ruim. Você sabe explicar Você sabe entender, tudo bem. Você está, você é, você faz. Você quer, você tem. Você diz a verdade, a verdade é seu dom de iludir. Como pode querer que a mulher vá viver sem mentir
Como podemos perceber, na canção de Caetano é dado o fato de que apesar de a
mulher dizer a verdade, seria quase que inconcebível querer que ela, apenas por ser mulher,
pudesse viver sem mentir. Até mesmo porque, conforme é trazido na canção, mesmo ao dizer a
verdade, ela faz uso de seu “dom de iludir”, dando a entender que ela, de certa forma, manipula
tal verdade conforme lhe convém.
A simples questão do gênero determinaria a presença dessa característica de mentir.
Tal caráter ‘mentiroso’ vem a ser mais um dos que compõem o estereótipo que é atribuído à
mulher.
Podemos observar também que inclusive o título da canção de Caetano Veloso
estabelece uma intertextualidade com a canção de Vadico e Noel Rosa, a qual também traz
alguns dos traços que compõem o estereótipo atribuído à mulher, de ser maliciosa,
manipuladora, tendo, entre seus traços constituintes, esse “dom” de conseguir iludir.
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Em “Para que mentir”, temos um sujeito lírico (possivelmente masculino) cobrando de
seu enunciatário (possivelmente uma mulher) algo que já lhe deveria ser inerente somente por
ser mulher: “o dom de saber iludir”. Já em “Dom de Iludir”, o sujeito lírico (também,
possivelmente masculino) declara a seu enunciatário (também uma mulher, possivelmente) que
apesar de dizer a verdade, tal verdade está diretamente ligada a um “dom de iludir”, já que seria
praticamente inviável querer que a mulher, somente por ser mulher, pudesse viver sem mentir.
b) “Eu sou o samba” / “Cinema Novo”
Cinema Novo (Caetano Veloso)
O filme quis dizer "Eu sou o samba" A voz do morro rasgou a tela do cinema E começaram a se configurar Visões das coisas grandes e pequenas Que nos formaram e estão a nos formar Todas e muitas: Deus e o diabo, Vidas secas, Os fuzis Os cafajestes, O padre e a moça, A grande feira, O desafio Outras conversas, outras conversas sobre os jeitos do Brasil Outras conversas sobre os jeitos do Brasil A bossa nova passou na prova Nos salvou na dimensão da eternidade Porém aqui embaixo "A vida mera metade de nada" Nem morria nem enfrentava o problema Pedia soluções e explicações E foi por isso que as imagens do país desse cinema Entraram nas palavras das canções Entraram nas palavras das canções Primeiro foram aquelas que explicavam E a música parava pra pensar Mas era tão bonito que parece Que a gente nem queria reclamar Depois foram as imagens que assombravam E outras palavras já queriam se cantar De ordem e desordem de loucura De alma a meia-noite e de indústria E a Terra entrou em transe E no sertão de Ipanema Em transe é, no mar de monte santo E a luz do nosso canto e as vozes do poema Necessitaram transformar-se tanto
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Que o samba quis dizer O samba quis dizer: eu sou cinema O samba quis dizer: eu sou cinema Aí o anjo nasceu, veio o bandido meterorango Hitler terceiro mundo, sem essa aranha, fome de amor E o filme disse: Eu quero ser poema Ou mais: Quero ser filme e filme-filme Acossado no limite da garganta do diabo Voltar a Atlântida e ultrapassar o eclipse Matar o ovo e ver a vera cruz E o samba agora diz: Eu sou a luz Da lira do delírio, da alforria de Xica De toda a nudez de índia De flor de macabéia, de asa branca Meu nome é Stelinha é Inocência Meu nome é Orson Antonio Vieira conselheiro de pixote Superoutro Quero ser velho de novo eterno, quero ser novo de novo Quero ser Ganga bruta e clara gema Eu sou o samba viva o cinema “Eu Sou O Samba”
(Zé Keti) Eu sou o samba A voz do morro sou eu mesmo sim senhor Quero mostrar ao mundo que tenho valor Eu sou o rei do terreiro Eu sou o samba Sou natural daqui do Rio de Janeiro Sou eu quem levo a alegria Para milhões de corações brasileiros Salve o samba, queremos samba Quem está pedindo é a voz do povo de um país Salve o samba, queremos samba
Os versos que iniciam a canção escrita por Zé Keti, “Eu sou o samba”, caracterizando
o sujeito lírico, aparecem da mesma forma em “Cinema Novo”, de Caetano Veloso. Na primeira
delas, o fato de o sujeito lírico afirmar “ser o samba”, constitui uma metonímia do homem,
brasileiro, carioca, que faz samba em morros como os do Rio de Janeiro.
Já em “Cinema Novo”, a “voz do morro” emerge da tela do cinema e vem a afirmar que
já não é o samba, mas o próprio cinema (“o samba quis dizer: eu sou o cinema”). Tal canção de
Caetano Veloso traz em sua letra vários dos aspectos que compõem a cultura brasileira como
um todo (“Visões das coisas grandes e pequenas/Que nos formaram e estão a nos formar”),
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desde o título, que remete à obra do cineasta brasileiro Glauber Rocha, até títulos de obras
literárias, conforme consta no verso: “Todas e muitas: Deus e o diabo, Vidas Secas, Os fuzis /
Os cafajestes, O padre e a moça, A grande feira, O desafio”.
Ao assumir a identidade do brasileiro, Caetano Veloso é um voraz defensor da cultura
brasileira como um todo, indo do que diz respeito à língua até os costumes que temos como
povo, desmistificando muitos aspectos que, muitos de nós, por vezes, seja por medo, seja por
vergonha, não admitimos e não enxergamos em nós mesmos. A visão que ele tem de sua
própria cultura está longe de ser idealizada. Caetano, assim como elogia os aspectos louváveis,
também critica veementemente todas as incoerências e injustiças.
c) “Livros / “Chão de Estrelas”
“Livros” (Caetano Veloso)
Tropeçavas nos astros desastrada Quase não tínhamos livros em casa E a cidade não tinha livraria Mas os livros que em nossa vida entraram São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso (E, sem dúvida, sobretudo o verso) É o que pode lançar mundos no mundo
Tropeçavas nos astros desastrada Sem saber que a ventura e a desventura Dessa estrada que vai do nada ao nada São livros e o luar contra a cultura
Os livros são objetos transcendentes Mas podemos amá-los do amor táctil Que votamos aos maços de cigarro Domá-los, cultivá-los em aquários, Em estantes, gaiolas, em fogueiras Ou lançá-los pra fora das janelas (Talvez isso nos livre de lançarmo-nos) Ou o que é muito pior por odiarmo-los Podemos simplesmente escrever um: Encher de vãs palavras muitas páginas E de mais confusão as prateleiras
Tropeçavas nos astros desastrada Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.
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“Chão De Estrelas” (Orestes Barbosa)
Minha vida Era um palco iluminado Eu vivia vestido de dourado Palhaço das perdidas ilusões Cheio dos guizos falsos da alegria Andei cantando a minha fantasia Entre as palmas febris Dos corações Meu barracão no morro do salgueiro Tinha o cantar alegre de um viveiro Foste a sonoridade que acabou E hoje, Quando do sol, A claridade Cobre o meu barracão, Sinto saudade Da mulher pomba-rola que voou Nossas roupas comuns Dependuradas Na corda, Qual bandeiras agitadas Pareciam um estranho festival! Festa dos nossos trapos Coloridos A mostrar que nos morros mal vestidos É sempre feriado nacional A porta do barraco Era sem trinco E a lua, furando o nosso zinco Salpicava de estrelas O nosso chão... E tu Tu pisavas nos astros distraída Sem saber que a ventura desta vida, É a cabrocha, O luar E o violão...
O verso “Tu pisavas nos astros distraída”, da canção de Orestes Barbosa, descreve a
ação da personagem que pisa o chão do barracão, cujo teto de zinco, devido aos furos, acabava
por “salpicar” de estrelas o chão, com a luz da lua. Caetano Veloso, em “Livros” faz uma
intertextualidade, trazendo o verso “Tropeçavas nos astros desastrada”, tratando de uma
personagem que não tinha o hábito da leitura por não ter livros em casa.
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Outro trecho intertextual na canção é o que diz respeito à “ventura dessa vida”. Em
“Chão de Estrelas”, temos, respectivamente, ”a cabrocha”, “o luar” e “o violão”. Já em “Livros”,
temos como “a ventura e desventura dessa vida”, respectivamente: “os livros” e “o luar contra a
cultura”.
d) “Sou seu sabiá” / “Canção do exílio” / “Via Láctea”
“Sou seu sabiá” (Caetano Veloso)
Se o mundo for desabar sobre a sua cama E o medo se aconchegar sob o seu lençol E se você sem dormir Tremer ao nascer do sol Escute a voz de quem ama Ela chega aí
Você pode estar tristíssimo no seu quarto Que eu sempre terei meu jeito de consolar É só ter alma de ouvir E coração de escutar Eu nunca me canso do uníssono com a vida
Eu sou Sou seu sabiá Não importa onde for Vou te catar Te vou cantar Te vou, te vou, te vou, te dar
Eu sou Sou seu sabiá O que eu tenho eu te dou Que tenho a dar? Só tenho a voz Cantar, cantar, cantar, cantar
“Canção do exílio” (Gonçalves Dias)
Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores.
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Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer eu encontro lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar – sozinho, à noite – Mais prazer eu encontro lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu'inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá.
“Via Láctea” (Olavo Bilac)
Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto, E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite enquanto A via láctea, como um pálio aberto, Cintila. E ao vir do Sol, saudoso e em pranto Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado-amigo! Que conversas com elas? Que sentido Têm o que dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e entender estrelas."
A canção “Sou seu sabiá”, de Caetano Veloso, estabelece relações intertextuais tanto
com a “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, quanto com “Via Láctea”, de Olavo Bilac.
Na canção, o sujeito lírico se caracteriza como um “sabiá”, o qual trará alegria a sua
interlocutora em possíveis momentos de tristeza (“Você pode estar tristíssimo no seu quarto /
Que eu sempre terei meu jeito de consolar”). O sabiá é justamente o elemento que remete o
sujeito lírico à sua terra natal, de que ele tanto sente falta. Tal sujeito lírico fecha o poema
pedindo a Deus que não permita que ele morra sem ter a oportunidade de estar de novo em sua
terra, “sem qu’inda aviste as palmeiras / Onde canta o sabiá”. Nesse texto, o canto do sabiá
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simboliza sua terra, tendo em vista que no lugar em que se encontra o sujeito lírico, as aves que
gorjeiam, “não gorjeiam como lá”.
Já os versos: “É só ter alma de ouvir / E coração de escutar” estabelecem uma relação
intertextual com os versos de Bilac: “Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e
entender estrelas”. O sujeito de “Via Láctea” consegue ouvir estrelas por estar apaixonado.
Conforme ele mesmo afirma, somente amando é que se pode entendê-las (“Amai para entendê-
las!”). Na canção de Caetano Veloso, o sujeito lírico afirma que “ter alma de ouvir” e “coração de
escutar” são requisitos para se poder ouvir o sabiá nos momentos de tristeza.
e) “Os Argonautas” / “Navegar é preciso”
“Os argonautas” (Caetano Veloso)
O barco, meu coração não aguenta Tanta tormenta, alegria Meu coração não contenta O dia, o marco, meu coração O porto, não
Navegar é preciso Viver não é preciso
O barco, noite no céu tão bonito Sorriso solto, perdido Horizonte, madrugada O riso, o arco da madrugada O porto, nada
Navegar é preciso Viver não é preciso
O barco, o automóvel brilhante O trilho solto, o barulho Do meu dente em tua veia O sangue, o charco, barulho lento O porto, silêncio
Navegar é preciso Viver não é preciso “Navegar é preciso” (Fernando Pessoa)
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito desta frase,
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transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade. É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
O verso, citado como uma frase gloriosa dos navegadores antigos, no poema de
Fernando Pessoa, torna-se uma espécie de refrão em “Os Argonautas”, de Caetano Veloso,
sendo repetido três vezes, durante a canção, entre as estrofes.
Caetano Veloso faz uso de tais versos numa canção que, no geral, faz uma referência
direta aos portugueses. O próprio título faz referência às grandes navegações empreendidas
pelos portugueses. O verso glorioso, advindo de um poema de um dos mais famosos poetas
portugueses de todos os tempos só vem a reafirmar, conforme é dito no poema “o espírito desta
frase”, como um dos princípios que nortearam o comportamento do povo porrtuguês, não apenas
no contexto das navegações, mas na vida como um todo, a fim do engrandecimento da pátria.
g) “José” / “José”
“José” (Carlos Drummond de Andrade)
E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, Você? Você que é sem nome, que zomba dos outros, Você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José?
“José” (Caetano Veloso)
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Estou no fundo do poço Meu grito Lixa o céu seco O tempo espicha mas ouço O eco Qual será o Egito que responde E se esconde no futuro? O poço é escuro Mas o Egito resplandece No meu umbigo E o sinal que vejo é esse De um fado certo Enquanto espero Só comigo e mal comigo No umbigo do deserto
O sujeito lírico da canção de Caetano Veloso faz referência ao famoso personagem
bíblico, que foi humilhado por seus irmãos e veio, depois, a se tornar rei de seu povo.
Conforme é narrado na Bíblia, os irmãos de José, para poderem vendê-lo sem que seu
pai soubesse, o jogaram num poço e disseram ao pai que ele havia sido morto por animais. A
canção de Caetano Veloso estabelece uma relação intertextual desde seu título, e,
especificamente no primeiro verso, ao trazer a informação de que o sujeito lírico, também
chamado José, encontra-se “no fundo do poço”. Tal expressão, além da questão física de
localização do sujeito lírico, também reflete um estado de ânimo que permeia toda a canção, e é
o mesmo do personagem bíblico que foi vítima da inveja dos própios irmãos.
A canção vem a estabelecer uma relação com o poema de Drummond, pelo nome do
sujeito lírico e pela situação em que ele se encontra, conforme os versos do poema “sozinho no
escuro / feito um bicho-do-mato”, características que poderiam ser atribuídas ao José bíblico, no
momento em que ele estava no fundo do poço, aspós ter sido traído por seus irmãos e jogado no
poço para depois ser vendido.
Ao assumir a identidade masculina, Caetano foge completamente do estereótipo que
foi criado acerca do homem, ligado apenas à força física e a uma dominação em relação ao sexo
oposto. Caetano, contrariando tudo isso, vem a mostrar a pluralidade que existe dentro de tal
gênero, mostrando também as fraquezas, incertezas, revelando traços que são comumente
atribuídos apenas às mulheres, mas que, no entanto se fazem presentes de igual forma nos
homens (apesar de não serem admitidos).
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Considerações finais
Conforme se tentou provar, Caetano Veloso de fato se configura como sujeito pós-
moderno, assumindo diversas identidades que são determinadas por um caráter histórico, do
contexto em que ele vive, e não biologicamente.
Fica também provada a ocorrência do processo de intertextualidade nas canções de
Caetano Veloso. Neste trabalho, ganharam enfoque apenas as letras das canções. Sabe-se que
numa análise de canção, por se tratar de um objeto inter-semiótico (formado a partir de
elementos de diferentes naturezas, a saber, texto e música), devem ser analisados texto e
música conjuntamente. No entanto, para atender ao que se propôs como objetivo desse
trabalho, apenas a análise das letras já foi o suficiente.
A letra de canção, apesar de não ser uma poesia proptiamente dita, tem em si muitos
elementos que são comuns ao texto poético. Fica tambem marcado esse traço poético contido
nas letras das canções de Caetano Veloso, um cancionista pós-moderno por excelência.
Referências bibliográficas
FÁVERO, L. L. & KOCH, I. G. V. Critérios de textualidade. Revista Veredas 104, p. 17-34, 1985.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
KRISTEVA, J. “A palavra, o diálogo e o romance”. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
TATIT, L. O Cancionista: composição de Canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.
VELOSO, C. Letra Só. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.