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X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
UMA LEITURA DE PARQUE INDUSTRIAL (1933) E A FAMOSA REVISTA (1945), DE
PATRÍCIA GALVÃO
Larissa Satico Ribeiro Higa (UNICAMP – FAPESP)
RESUMO: Este trabalho pretende apresentar uma leitura das duas principais obras ficcionais da escritora Patrícia Galvão: Parque Industrial (1933) e A Famosa Revista (1945), esta elaborada em parceria com o jornalista Geraldo Ferraz. O primeiro livro, que se auto-intitula “romance proletário”, aborda o tema da exploração dos trabalhadores do bairro paulistano Brás nos anos 30, com enfoque especial à parcela feminina dessa classe social. Pagu, como ficou mais conhecida a escritora, encontra na poética modernista e no discurso panfletário os elementos formais centrais para a composição de Parque Industrial. Por sua vez, A Famosa Revista traz à tona, de maneira metafórica, as violências cometidas pelo Partido Comunista Brasileiro contra seus próprios militantes e, em especial, contra as mulheres a ele filiadas. Os traumas dessa experiência da autora estão marcados formalmente no próprio texto, mais hermético e denso que o primeiro. Importante apontar que essa leitura não se quer totalizante e definitiva mas, ao contrário, consiste no primeiro momento de um trabalho de mestrado ainda em curso. A dissertação pretende uma comparação final entre as obras, considerando-se aspectos biográficos relativos ao posicionamento da autora, que ajudam a melhor situar, tanto ideológica quanto esteticamente, suas formulações literárias. PALAVRAS-CHAVE: Patrícia Galvão, Parque Industrial, A Famosa Revista.
Patrícia Galvão (1910-1962) foi escritora modernista cujas principais realizações
literárias, Parque Industrial (1933) e A Famosa Revista (1945 – esta escrita em parceria com
Geraldo Ferraz), apresentam preocupações relativas tanto à experimentação estética, dada a
busca por novas formulações na linguagem artística, quanto ao engajamento político, percebido
pela abordagem dos problemas sociais e políticos com os quais a autora teve contato. Apesar
dessas semelhanças, as obras constituem as configurações de forma/conteúdo de maneira
muito diferente. Nesse sentido, a primeira parte desse texto procurará apresentar o enredo e
abordar algumas questões, relativas à estética e ao conteúdo ideológico, julgadas pertinentes
para uma leitura de Parque Industrial. Em seguida, o mesmo será feito com A Famosa Revista.
O confronto entre as obras, crucial para o trabalho de mestrado – que se intitula Ideologia e
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Estética: uma análise comparativa entre Parque Industrial (1933) e A Famosa Revista (1945), de
Patrícia Galvão e ainda está em andamento, ficará para um outro momento.
Uma leitura de Parque Industrial
O romance proletário Parque Industrial (1933) foi escrito por Patrícia Galvão num
conturbado momento político de sua vida, quando, após ter sido presa por participar de uma
manifestação de rua, foi afastada pela primeira vez do Partido Comunista devido à política de
depuração dos elementos pequeno-burgueses empreendida pela direção stalinista do mesmo. A
autora ansiava pela aceitação nos quadros militantes da organização e, mesmo impedida
compulsoriamente, decidiu trabalhar intelectualmente e à margem do PCB, com o pseudônimo
Mara Lobo. Nesse sentido, Parque Industrial nasce, segundo relatado em Paixão Pagu, sem
pretensões literárias, mas com enfoque central na apologia ao Partido e na reafirmação da
dedicação militante de sua autora.
No entanto, não é pela pretensa centralidade concedida à matéria que o trabalho com
a fatura não se faz sentir. Muito pelo contrário: é justamente a apropriação que o livro apresenta
das técnicas de vanguarda um dos fatores que o distingue positivamente em relação a outros
romances proletários da época, e o afasta do realismo socialista imposto por Moscou. Parque
Industrial é um livro constituído por dezesseis curtos e rápidos capítulos que, com linguagem
coloquial e narrativa dinâmica, procuram apresentar diversas cenas do sofrido cotidiano da
classe social que habita o paulistano bairro operário Brás, no início dos anos 30. No interior dos
capítulos há inúmeras cenas, geralmente separadas entre si por um espaço em branco. De
acordo com o gênero ao qual reivindica pertencimento logo em sua capa, o proletário, Parque
Industrial apresenta como personagem principal a coletividade de trabalhadores, negando o
enfoque a uma personagem central burguesa e suas questões existenciais, aspectos típicos do
romance tradicional.
Os cinquenta e dois personagens são apresentados ao leitor, muitos em uma única vez
e cena em todo o livro e outros com certa frequência, porém todos de forma tipificada e plana,
sem aprofundamento psicológico, como se fossem meros autômatos, representantes da
dinâmica sócio-econômica que se quer representar. Em seu anonimato e sofrimento, os
trabalhadores se assemelham aos Operários (1933), de Tarsila do Amaral, já que têm suas
identidades pessoais apagadas e funcionam nas obras apenas a partir da composição de uma
coletividade. No livro de Patrícia Galvão, no entanto, pode-se acompanhar a precária progressão
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da vida de alguns personagens principais, ainda que a seqüência lógica entre os capítulos se dê
de maneira frágil, devido à fragmentação e à mudança de cenário. Esse é o caso da mulata e
prostituta Corina, das militantes socialistas Otávia e Rosinha Lituania, da operária Matilde, do
caixeiro Pepe, do burguês traidor de classe Alfredo, da normalista Eleonora e do aguerrido
militante operário Alexandre.
O ambiente onde se encontram esses tipos sociais é a cidade de São Paulo como um
todo – com principal recorrência ao parque industrial do Brás –, e uma atenção especial é
concedida aos diferentes espaços geográficos que demarcam a segregação pautada pela
diferença econômica dos grupos sociais. São esses espaços que constroem os diversos
cenários existentes no romance proletário. A importância da demarcação física da cidade
fragmentada para a construção narrativa foi percebida pelos estudiosos estadunidenses
Elizabeth e Kenneth D. Jackson, cuja tradução de Parque Industrial para o inglês apresenta a
reprodução visual de um mapa do Brás e suas redondezas, imagem essa ausente na versão
original e nas outras edições que se fez do livro.
O tempo da narração, que acompanha os fragmentos cênicos e a sintaxe disruptiva, é
certamente o tempo da velocidade e retrata o agitado modo de vida da população, imposto pelo
ritmo da crescente industrialização paulistana. Todos os acontecimentos narrados ocorrem no
tempo presente e todas as personagens que se pode acompanhar caminham sempre para
frente, como numa esteira fordista de produção, como se não houvesse tempo de reflexão sobre
sua precária situação de vida. A configuração do tempo contribuiria, assim, para a maior
evidência da alienação a que os trabalhadores estariam submetidos. Trata-se, portanto, de um
ritmo imposto pela sociedade capitalista moderna onde o tempo para os cidadãos acumularem e
elaborarem suas experiências não mais existe.
Assim, as configurações de tempo, espaço e enredo dão indícios do principal debate
proposto por Parque Industrial: a delação das mazelas sofridas pelas classes trabalhadoras
durante o processo de modernização conservadora1, já constatado literariamente na época.
Como alternativa de organização e combate à situação de exploração vivida pelos trabalhadores
1 A leitura de Parque Industrial relacionada à modernização conversadora já foi apontada pela estudiosa Bianca Ribeiro Manfrini em sua dissertação de mestrado, intitulada A mulher e a cidade: imagem da modernidade brasileira em quatro autoras paulista. A dissertação foi desenvolvida na USP e defendida em 2008. Importante apontar que o conceito de modernização conversadora a que aqui nos referimos é o apresentado por Florestan Fernandes, em seu livro Mudanças Sociais no Brasil. Segundo esse conceito, rigorosamente antagônico, a modernização brasileira, empreendida fortemente a partir dos anos 50, não teria sido acompanhada por melhorias na qualidade de vida da população em geral, apesar dessa melhoria ter sido um dos motivos ideológicos de sua justificação.
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nesse contexto, Patrícia Galvão procura forjar textualmente a apologia ao Partido Comunista que
motivou a escrita dessa primeira obra ficcional.
A crítica à modernização conservadora é traçada por meio da narração de cenas de
opressão cotidiana à classe trabalhadora. Os patrões, sejam eles homens ou mulheres, em
ambiente ou privado, tratam seus subordinados de maneira violenta, com humilhação verbal,
agressão moral e assédio sexual, chegando à execução de demissões sem justa causa. Esse
tipo de relação patrão/empregado retratado por Patrícia Galvão é muito mais próximo a de
colonizador/colonizado, do que a de empresário capitalista/assalariado, pois recupera nossa
duradoura herança do passado colonial e escravista (FERNANDES, 2008). Em Parque
Industrial, os proletários têm no peito “cicatrizes de chibata” (GALVÃO, 2006, p. 56), o que
aponta também para a problemática formação de nossa classe trabalhadora, uma vez que
devido à herança escravocrata, os trabalhadores já eram vistos como coisas antes mesmo da
ordem industrial se instalar no Brasil (MANFRINI, 2008, p. 30).
Desamparada de aparato jurídico mínimo que a proteja dos abusos de poder patronal
e prejudicada pela cultura mandonista e autoritária de raízes coloniais, a classe operária como
um todo se mostra desamparada em Parque Industrial. No entanto, a opressão é sentida de
forma mais brutal pelas mulheres trabalhadoras, que são duplamente exploradas, pelo sexo e
pelo trabalho. O enfoque a essas mulheres indica o tipo de feminismo defendido pela autora.
Patrícia Galvão se mostrou partidária de um feminismo classista, criticando as feministas
burguesas, o que é expresso na seguinte cena do romance: "- O voto para as mulheres está
conseguido! É um triunfo! /-E as proletárias? /- Elas são analfabetas. Excluídas por natureza"
(GALVÃO, 2006, p.78). A fala da mulher de elite deixa evidente uma reivindicação feminista
despreocupada com as mudanças estruturais da sociedade, já que grande parte da população
não se beneficiaria do direito conquistado. Essa preocupação mostra a filiação da autora ao
debate marxista e marca a importância da defesa do comunismo para a construção do romance
em questão.
Além das relações sociais trabalhistas, outro interessante aspecto abordado por
Parque Industrial é a caracterização negativa dos símbolos da modernização: “as limousines, os
bondes e os cinemas aparecem como totens do fetiche da sociedade pela modernidade na
superfície de um mundo proletário de injustiça e de sofrimento” (JACKSON, 1993, p. 127). A
primeira evidência disso é a fábrica, nomeada como “penitenciária social”: um lugar que suga a
força de trabalho das pessoas e as aliena, desumanizando-as e roubando-lhes as identidades. O
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maquinário impõe um ritmo de vida acelerado para o qual não há descanso e isso traz como
conseqüência a “despossessão” dos trabalhadores de seu próprio tempo, de sua consciência e
sua memória (GUEDES, 2003).
Além da fábrica, as “baratinhas”, os carros, aparecem sempre associadas ao poder
burguês e o bonde recebe uma “banana” da italianinha, que parece entender os aspectos
negativos dessa modernização. Em Parque Industrial, portanto, o avanço da técnica é percebido
como opressor e a aparente superação das heranças coloniais e agrárias trazidas pela
introdução de novos aparatos tecnológicos é desmascarada pela perpetuação da exploração da
classe trabalhadora pela elite agrário-industrial. Nesse sentido, é interessante a contraposição
entre a conotação negativa do bonde feita por Patrícia Galvão em seu romance proletário e a
apresentada por Oswald de Andrade no poema “bonde” de Poesias Reunidas.2 Este concebe o
significado da presença do bonde no ambiente paulistano, de acordo com a visão de Brasil que
seu autor gostaria de implementar com o trabalho intelectual e artístico. Assim, o símbolo da
modernidade ganha contornos de funcionalidade popular e convive muito bem com as
prostitutas, mulheres excluídas do mundo do trabalho, e as famílias das mais humildes classes
sociais, ambas figuras pertencentes a nossa situação de atraso social. A fala popular mostra
com irreverência o pitoresco brasileiro pautado na convivência harmoniosa entre o moderno e o
atrasado, sem que os violentos antagonismos entre eles sejam explicitados. Noção essa que
remete à ideia de contexto “desconjunturado”, criticado por Roberto Schwarz em A carroça, o
bonde e o poeta modernista.
Outra questão importante de ser analisada é a configuração espacial presente em
Parque Industrial. Compondo o cenário do livro, as ruas citadas e os locais específicos da cidade
ganham importante dimensão porque apresentam a consequência físico-geográfica da
modernização em questão. A cidade é caracterizada negativamente e “as cem ruas do Brás,
com suas portas escuras e iguais; as vinte e cinco casas da zona de prostituição; a maternidade
miserável e a prisão imunda” (GUEDES, 2006, p.114) constroem as imagens do monstruoso
progresso da metrópole paulistana. Assim, bem definidos estão os locais frequentados pelos
trabalhadores, como o centro da cidade, para onde se deslocam para trabalhar e os bairros
operários, constituídos como espaços de necessidade dessa classe – para trabalho nas fábricas
e moradia nos insalubres cortiços.
2 O Poema intitulado “bonde” é o seguinte: “O transatlântico mesclado/ Dlendlena e esguicha luz/ Postretutas e famias sacolejam.”
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Em contraste com os espaços do proletariado se encontram os espaços da burguesia,
como os bairros Higienópolis, o Aumotóvel Club e o Hotel Esplanada “onde se gasta a mais
valia” (GALVÃO, 2006, p.55). Tratam-se de locais da cidade inacessíveis ao proletariado: a
segregação espacial da cidade é pautada pela diferença econômica entre as classes sociais.
Nesse sentido, a hostil São Paulo de Parque Industrial é bem diferente da cidade “arlequinal,
espaço de modernidade” (BOSI, 1988, p.118), ou do lugar de apagamento das contradições, que
se encontra reproduzido em outras produções artísticas, como é o caso do poema Canto de
Regresso à Pátria, de Oswald de Andrade. Na realidade, boa parte dos modernistas, além de
Oswald – como Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida e Plínio Salgado –
tratou São Paulo com ufanismo na tentativa de legitimar a cidade como principal pólo cultural do
Brasil e região mais bem preparada para se inserir na modernidade do século XX.
Um pouco diferente também é a perspectiva de Mário de Andrade no Conto “Primeiro de
Maio”. Francisco Foot Hardman (2002) aponta os espaços urbanos como elementos decisivos na
estruturação narrativa, uma vez que a dinâmica da narração é dada pela confluência dialética
entre as ações do personagem principal, o 35, e os espaços que percorre. Durante o período de
um dia em que consiste o conto, 35, um carregador de malas da Estação da Luz resolve
comemorar o dia dos trabalhadores. No entanto, ao percorrer a cidade e passar por lugares
relacionados ao seu trabalho, às comemorações oficiais, ou às ruas cheias de policiais, 35
percebe que não há espaços possíveis na urbe para uma comemoração plena, não há para a sua
classe trabalhadora, em oposição aos espaços da necessidade, espaços da liberdade na
metrópole. Se a comemoração do 1o de maio é percebida por 35 como momento de reivindicação
trabalhista, o desejado espaço de liberdade é o espaço de luta, quase anulado pela estruturação
espacial e configuração política da cidade moderna.
A impossibilidade de existência de liberdade de reivindicação e luta da classe
trabalhadora na Paulicéia, devido à constante violência ilegal de Estado, também figura como
matéria de Parque Industrial. As greves, que segundo Hardman representam a “superação
dialética do espaço de trabalho”, por apresentarem uma disputa em sua concepção política, são
fortemente reprimidas pela presença policial nos passeios públicos. Assim, se os espaços legados
à classe a que pertencem 35 e os trabalhadores de Parque Industrial são os opressivos “espaços
da necessidade”, lhes são negados pela configuração da cidade moderna qualquer espaço de
plena liberdade de reivindicação de direitos e luta. Pode-se perceber, portanto, que tanto para o
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personagem de Mário de Andrade quanto para os de Patrícia Galvão não há na cidade moderna
espaço possível de efetiva mudança social, em prol da classe trabalhadora.
* * *
A configuração da linguagem de Parque Industrial se dá a partir da mescla de
elementos diversificados, que dependem da influência que a autora carregou dos círculos sociais
dos quais participava. Assim, percebe-se ao longo de todo o livro a composição de cena a partir
da técnica de montagem, que Patrícia Galvão aprendeu de sua convivência com o grupo de
vanguarda modernista paulistano e o discurso panfletário, menos fragmentado e cheio de
jargões político partidários, bem ao gosto da arte partidária. O contraste entre esses dois modos
de composição pode ser encontrado no seguinte trecho:
Automóvel Club. Dentro, moscas. O club da alta pede pinico pela pena decadente de seus criados da imprensa. Agora quer engazopar a prefeitura, cendendo-lhe o prédio que não pode terminar. É a crise. O capitalismo nascente de São Paulo estica as canelas feudais e peludas.
Decresce a mais-valia, arrancada por meia dúzia de grossos papa-níqueis da população global dos trabalhadores do Estado através do sugadouro do parque industrial em aliança com a exploração feudal da agricultura, sob a ditadura bancária do imperialismo (p.73)
No primeiro parágrafo ainda se percebe uma composição de cena por meio da
justaposição de frases, apesar de sua dinâmica ser menor do que em outros momentos, como o
trecho apresentado na primeira parte desse capítulo. O segundo parágrafo, por sua vez, é
constituído de um único período e o recurso da montagem é dispensado, abrindo espaço ao
discurso prolixo que pretende, mais do que apresentar uma situação que se esclarece por si só,
explicar e convencer o leitor da ideologia que abarca. Interessante notar que apesar da diferença
formal entre as passagens, o que mais importa a Parque Industrial é a denúncia social. No
entanto, é certo que as partes de narração e não “explicação” (MANFRINI, 2008) têm um melhor
efeito de choque sobre o leitor.
Esse descompasso da composição formal foi também um dos motivos que possibilitou
a ideia de que Parque Industrial foi um romance mal sucedido. Thelma Guedes (2003) apresenta
essa discussão a partir dos termos do “lugar do meio” que o romance proletário ocupa, dada a
tentativa de superação dialética do gênero romance. Nesse processo de superação, ao mesmo
tempo em que se afirma o gênero tradicional (calcado na representação da individualidade), de
origem burguesa, há o anseio por sua destruição para se chegar a um novo gênero, o romance
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proletário (pretensamente calcado na representação da coletividade). No entanto, a tensão
derivada do trabalho com o engajamento político e a experimentação estética não se resolve e a
forma do livro permanece inacabada, sem resoluções formais conclusivas.
Por ora, vale ressaltar que Thelma Guedes procura trabalhar, também dialeticamente,
com o conceito de “derrota” (tanto em seu sua acepção primeira, quanto na retomada por sua
raiz latina “de + ruptum, cujo sentido é o de abertura de caminhos” (p. 24), pois ao mesmo tempo
em que o livro é inacabado formalmente, representa a abertura de novos caminhos possíveis
para a literatura. Assim, o fracasso de Parque Industrial, que não conseguiu ser aceito pela
Organização ao qual dedicado, o Partido Comunista, mostra-se positivo, pois é parte constituinte
da elaboração de linguagem que dá contornos à obra como um todo. Nas palavras da própria
estudiosa: “O modo de construir-se é também o modo de sua desconstrução, o que lhe dá vida e
forma é sua morte. Conclui-se como forma inacabada.” (GUEDES, 2003, p. 123).
A partir das idéias de Thelma Guedes, um debate sobre o gênero romance proletário
se faz necessário. O projeto de delação de vários aspectos da modernização conservadora
proposto por Parque Industrial constitui um dos fatores pelos quais o livro não pode ser encarado
como produto exclusivo do realismo socialista. Esse gênero Stalinista de arte teve seus ditames
firmados no I Congresso de Escritores Soviéticos em 1934 pelo intelectual stalinista Zhdanov e
pressupunha histórias com enredos lineares e personagens proletários heróicos que fizessem
apologia à Revolução Socialista e à modernização russa (CLARK, 2000). Além disso, a ausência
da predominância no enredo dos heróis do trabalho também serviria para esse distanciamento
crítico de Parque Industrial à arte stalinista, uma vez que a presença marcante de excluídos do
trabalho, Pepe e Corina, que compõe a cena final do livro, ofuscariam o protagonismo de
personagens militantes.
A forma soviética do realismo socialista não é adotada por Parque Industrial, que se
liga ao gênero stalinista pela crença na revolução social. Nem mesmo a apologia ao Partido
Comunista Brasileiro, projeto primeiro de Patrícia Galvão que seria bem visto nas linhas do
realismo socialista, é efetuada de forma efetiva no romance proletário em questão. A alusão à
organização partidária aparece em dois momentos, quando Rosinha Lituana conversa com seus
colegas sobre o “Partido Comunista” (GALVÃO, 2006, p.22) e quando Alexandre apresenta aos
companheiros a possibilidade de organização no “Partido dos Trabalhadores” (GALVÃO, p.101).
No entanto, essa apologia fica secundarizada e, talvez por isso, além do conteúdo feminista que
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apresenta, a obra tenha sido negada pelo Partido Comunista, e acaba falhando também na
conquista desses potenciais leitores.
A peculiaridade da síntese que Parque Industrial acha para a relação entre forma
engajada e conteúdo experimental é o que lhe dá contornos de obra não acabada, mas ao
mesmo tempo a difere das outras produções de romances proletários da época (BUENO, 2006),
como Os Corumbas (1933), de Amando e Serafim Ponte Grande (1933), de Oswald de Andrade.
A obra de Amando Fontes apresenta a história de uma família do interior de Alagoas que migrou
para capital em busca de melhores condições de vida. No entanto, as quatro filhas do casal
Corumba caem na prostituição por não conseguirem se enquadrar no trabalho nas fábricas de
tecido e o filho homem acabada foragido por questões políticas. Assim, os pais idosos vêem
como alternativa a volta à cidade do interior de onde tinham vindo. Apesar da similar descrença
com relação à modernização, Parque Industrial se diferiria de Os Corumbas pela aproximação
linguística aos modos expressionais modernistas, uma vez que o romance nordestino lança mão
da narrativa linear realista para sua elaboração formal.
Com relação ao romance de Oswald de Andrade, pode-se perceber que a distância
reside mais no conteúdo abordado do que na maneira de expressão desse conteúdo. Serafim
Ponte Grande consiste em livro que narra as etapas de formação, a vida e a viagem do
personagem principal, o burguês Serafim. Sua forma extremamente fragmentada prejudica a
acessibilidade ao conteúdo e mostra-se de difícil entendimento para o leito médio. Dessa forma,
constata-se que Parque Industrial não encontrou lugar na produção literária geral de sua época
porque se apresentou muito modernista em seu trabalho lingüístico aos escritores de 30, se
comparado a Os Corumbas, e muito engajado se comparado ao trabalho de escritores
modernistas da primeira fase do movimento, como a obra Serafim Ponte Grande.
Uma leitura de A Famosa Revista
A Famosa Revista (1945) é um livro escrito a quatro mãos, por Patrícia Galvão e o
jornalista e crítico literário Geraldo Ferraz, diferente do romance proletário da autora tanto em
termos linguísticos quanto do conteúdo abordado. Parte dessa diferença se dá pela existência da
dupla autoria, uma vez que os procedimentos formais individuais de Geraldo Ferraz
necessariamente se fazem sentir na obra. Além disso, a intensa carga biográfica apresentada
pelas personagens principais de A Famosa Revista, Rosa e Mosci, torna importante o
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conhecimento também da vida e obra desse autor - que como Patrícia Galvão permaneceu à
margem do Modernismo – para que se compreenda melhor o livro.
Antes de começar a trabalhar em jornais como intelectual Geraldo Ferraz (1903-1979)
teve outras ocupações mais humildes, como o emprego em farmácia. No entanto, fora do horário
comercial tinha o hábito de consumir avidamente literatura de primeira ordem tanto internacional,
como Dostoivéski, quanto nacional, como Machado de Assis e Lima Barreto. Quando trabalhou
em uma tipografia teve a oportunidade de conhecer Monteiro Lobato, que o convidou para ser
revisor da Revista do Brasil. A partir daí, a erudição autodidata de Geraldo Ferraz conquistou
artistas modernistas, como Oswald de Andrade, e seu nome ganhou projeção pela diagramação
da segunda dentição da Revista de Antropofagia, a mesma que Patrícia Galvão inaugurou sua
carreira artística3.
O principal livro de Geraldo Ferraz é Doramundo, lançado em 1957 e reeditado em
1959 pela José Olympio juntamente com A Famosa Revista, com o nome de Dois Romances. O
romance em questão trata da vida de uma vila ferroviária, chamada Cordilheira e localizada na
Serra do Mar, onde se vive com dificuldade e mortes sucessivas começam a acontecer. Há
tratamento da questão da modernização opressora nessa obra também, já que a população só
sofre mazelas com a ferrovia ali presente. A única possibilidade de felicidade surge com o amor
entre Dora e Raimundo e essa questão da vida em casal como proteção a um mundo hostil já
tinha sido encontrada em A Famosa Revista anos antes. No entanto, Doramundo, por trabalhar
na chave da prosa poética, tratar de questões sociais com melhor elaboração formal e não
retratar questões denunciativas com relação ao Partido Comunista foi mais bem recebido que A
Famosa Revista pela crítica da época.
O livro em co-autoria de Patrícia Galvão foi a primeira obra literária de Geraldo Ferraz
– seguida depois por Doramundo (1957) e Km 63: 9 contos desiguais (1979) – uma vez que o
autor havia se dedicado exclusivamente ao jornalismo até então. Uma das intenções declaradas
dos autores de A Famosa Revista era escrever uma literatura preocupada com a inovação
linguística de vanguarda, uma obra acabada de primeira ordem que proporcionasse sua inserção
no cânone literário brasileiro4. Esse trabalho de vanguarda artística, que mistura estilos e
3 As memórias de Geraldo Ferraz são encontradas no livro Depois de tudo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. 4 As intenções dos autores com relação à elaboração de A Famosa Revista podem ser encontradas em dois materiais específicos. O primeiro é relativo a um artigo crítico que Patrícia Galvão escreveu para A Tribuna, de Santos, em 4/10/59, no número 132 do Suplemento literário. O segundo consiste em entrevista concedida por Geraldo Ferraz a escritora Edla Van Steen, em Viver e Escrever. Porto Alegre: L&PM, 1981. Trechos de ambos materiais também podem ser encontrados na antologia de Augusto de Campos.
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apresenta voz narrativa oscilante, daria sustentação a um enredo cujo principal núcleo reside na
história das violências cometidas pela Revista, que é uma metáfora do Partido Comunista
Brasileiro. À margem da história desse partido se encontraria a vida íntima de um casal de
jornalista, os personagens principais Rosa e Mosci.
Assim, com o itinerário prévio de que cada autor produziria um capítulo, com conjuntas
e constantes revisões, a tortuosa história de A Famosa Revista vai sendo construída. O livro é
dividido em sete capítulos irregulares que apresentam os dois focos narrativos centrais já
mencionados: a história da vida pessoal do casal Rosa e Mosci, localizada nos três primeiros e
três últimos capítulos do romance, e a história de uma instituição jornalística chamada Revista,
centrada no quarto capítulo da obra. No primeiro capítulo, intitulado Paralelas I, o leitor é
apresentado ao personagem Mosci, jornalista cujo principal traço marcado nesse momento é o
da perturbação psicológica, uma vez que ele se encontra separado de Rosa. Durante todo o
capítulo, Mosci ressente-se de ter se atrasado para um encontrado marcado com companheira e
de não ter a impedido de fazer uma viagem. A questão da perda do objeto amado é fundamental
na constituição subjetiva dessa personagem, o que pode ser evidenciado na seguinte passagem:
Era tarde. Não, era cedo. Os homens iam despertar. O primeiro bonde rolava nos trilhos desgastando o aço. Sim, iriam trabalhar. Ele não. Só e cansado se arrastaria para o arrabalde distante, e talvez se esquecesse de chegar, e ficaria ao sol, dormindo no chão da grama. (GALVÃO e FERRAZ, 1959, p. 113)
Depois que não consegue se encontrar com Rosa, Mosci mostra-se desanimado e
perdido: enquanto as pessoas ao seu redor começam as atividades do dia, ele não apresenta
noção nem do tempo transcorrido, nem da determinação de seu próprio destino. Sem que haja
uma sequência lógica amarrada e explícita com relação ao que estava sendo narrado no capítulo
anterior, o segundo, intitulado Paralelas II, apresenta a forte Rosa em atividade de trabalho na
Revista. Ela está viajando e pensa em Mosci, chegando até a escrever-lhe um bilhete, mas sua
concentração na situação imediata vivida é maior, o que mostra que essa personagem se
constitui como sujeito pela maior doação aos interesses coletivos, já que a Revista para qual
trabalha é uma instituição de combate ideológico ao hostil mundo do capital e da Segunda
Guerra Mundial que é aos poucos mostrado ao leitor.
Também sem nenhuma ligação aparente com o tema da viagem de Rosa, o capítulo
Horos, depois de passada a apresentação individual e separada dos dois principais
personagens, constrói-se como momento de encontro e definitiva separação do casal. A
conflituosa relação dos personagens – dada pela impossibilidade de felicidade plena, problema
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que se acentua em momentos futuros da narrativa – já encontra indícios nessa parte do
romance. Rosa nega a convivência com Mosci porque não vê a relação amorosa como fonte
única de satisfação plena: prefere empregar seu tempo e vida no trabalho ideológico para
Revista, já que essa atividade voltada para a coletividade, para a “impiedade da luta” (GALVÃO
e FERRAZ, 1959, p. 130) lhe parecia mais digna de atenção. A escolha de Rosa ganha força
depois que ela passa pela traumática experiência de aborto e, por essa circunstância, o cenário
apresentado é um hospital. O capítulo finaliza com uma longa carta que Rosa endereça a Mosci,
assim como as que Patrícia Galvão havia escrito para Geraldo Ferraz do cárcere em 1940, e que
lhe solicita o distanciamento: “se receber essa carta, quero que seja o meu adeus” (GALVÃO e
FERRAZ, 1959, p. 129). A negação da vida privada, que nunca é isolada, mas perturbada
constantemente pelo “som do mundo vivo”(GALVÃO e FERRAZ, 1959, p. 130), abre espaço na
história para a segunda focalização narrativa, a da instituição jornalística da Revista.
As Cem Páginas da Revista é o nome do quarto e mais longo capítulo da obra de
Patrícia Galvão e Geraldo Ferraz. Nesse momento do texto Rosa já está totalmente ocupada
pelas demandas da Revista, e por isso, distante de Mosci. Este, animado agora pela vontade de
encontro com a amada e necessidade de protegê-la, empreende uma busca por ela e pretende,
ao mesmo tempo, desvendar algumas orientações ruins que estariam sendo adotadas pela
organização, em prejuízo de seus funcionários. Surge uma terceira importante personagem na
trama, chamada Tribi, uma jovem de quinze anos que é vizinha de Mosci e passa a se interessar
pelos assuntos da Revista, compartilhando a perspectiva negativa que o jornalista tem sobre a
instituição. Assim, Tribli encampa o projeto de Mosci de investigá-la, com o objetivo de posterior
deleção de suas mazelas. A impressão primeira dos vizinhos se comprova ao longo de Cem
Páginas, uma vez que a eles e ao leitor são expostos os abusos cometidos pela chefia da
Revista, como a espionagem, a perseguição e a execução de seus empregados, o tratamento
sexista dirigido a eles e o incentivo à obediência e não à reflexão.
Ao mesmo tempo em que esses problemas se desvendam, Rosa parece perder a
confiança na organização e desiludir-se com a militância ideológica gradativamente. Sempre
vítima das violências acima citadas, a personagem vai aos poucos se dando conta de que a
pretensa felicidade que encontraria no trabalho voltado aos interesses da coletividade não
passava de ilusão. Essa desilusão é marcada textualmente pela persistência de uma imagem
específica: a de Rosa caindo do Monte Roko, que escalara durante uma visita que fizera ao
Japão – fato que aproxima ainda mais a personagem da figura da própria Patrícia Galvão, uma
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vez que a mesma viagem foi empreendida por ela, no início dos anos 30. A imagem persistente
e que simboliza a instabilidade de sua relação com a Revista, assim como a falta de segurança
ideológica que sente com relação ao trabalho é assim simbolizada:
– Vejam vocês – lembro-me de uma excelente oportunidade para morrer que tive em minha vida.Estive sobre um abismo, pisando uma pedra solta que a cada segundo ameaçava correr...Vi a morte bem aos olhos. Tive-lhe medo. Agora eu sinto a morte debaixo dos pés...As grandes pedras estão soltas e deslizam. (GALVÃO e FERRAZ, 1959, p. 80)
Essa passagem é relembrada pelo menos mais dez vezes no romance, sempre depois
que Rosa sofre uma violência da instituição em que trabalha. Enquanto isso, a menina Tribli é já
aceita pela organização como contribuinte mirim e sua revolta contra as contradições
apresentadas pela Revista e contra as investidas sexuais que sofre do chefe Dacier se
intensifica. A expressão máxima de seu inconformismo ocorre quando funda, com outros
jornalistas dissidentes, uma instituição jornalística paralela, a Revistinha, sabotando a
propagação da Revista. Depois que a direção da mesma descobre o ocorrido, acontece o
assassinato de Tribli, a gota d’água para que Rosa queira demitir-se. Ainda nesse capítulo ela é
afastada de seu emprego, por desconfiarem de sua conduta, e acaba sendo presa, por conta de
um serviço ilegal que havia prestado à instituição. Vale lembrar que enquanto tudo isso se
passava, Mosci – cuja relação com a organização foi mais distanciada devido a não aceitação
desta por seu trabalho intelectual – mantinha-se como detetive, observando a Revista em busca
de Rosa.
Intermezzo é o hermético capítulo que se segue As Cem Páginas da Revista e
representa o momento de reencontro com Mosci e da exposição da tristeza de Rosa decorrente
da perda da ilusão política. A figura de um “argonauta niilista” (GALVÃO e FERRAZ, 1959, p.
210) aparece aí para simbolizar o esvaziamento do sentido da vida e a falta de motivação e
incentivo à continuação de qualquer atividade voltada para o campo da coletividade. Nesse
momento, a voz narrativa se modifica, já que passa momentaneamente para primeira pessoa e
os diálogos intensos entre as duas personagens perdem os travessões. O tema da conversa é a
dor sentida pela personagem, que num determinado momento afirma:
O que quiser, Mosci. Estou vazia, vazia. Apenas o invólucro caminha a teu lado do teu amor. Acabou-se as Rosas dos Ventos, só ficaram os ventos melancólicos desencontrados sem norte5 (GALVÃO e FERRAZ, 1959, p. 212)
5 O mesmo tom melancólico e desesperançoso da personagem Rosa é encontrado em outros trabalhos de Patrícia Galvão posteriores à publicação do livro escrito a quatro mãos. É o caso de Natureza Morta, publicado sob o pseudônimo de Solange Sohl no jornal “O Diário de São Paulo” em 15 de agosto de 1948. Nesse poema, o eu lírico
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Rosa apresenta um estado melancólico caracterizado pela perda da ilusão política e
medo de viver em um mundo hostil que não será superado nos próximos capítulos. O seguinte,
intitulado Compartimentos, apresenta as várias etapas da vida a dois que a desiludida Rosa
aceita ter com Mosci. O casal passa a morar junto e resolve ter um filho. Mosci trabalha em
diversos turnos de dois deferentes jornais e Rosa, com a saúde ainda comprometida pelos
ocorridos, escreve alguns artigos na própria casa. No entanto, a família não consegue ilhar-se da
negatividade do mundo, pois a todo momento chegam em seu lar notícias sobre a trágica
Segunda Guerra e sobre o destino da Revista, que fechou por falência fraudulenta, mas cujo
chefe, Dacier, fora realocado para dirigir um novo meio de comunicação, o rádio. Rosa também
não consegue ser feliz e o trauma que sofrera faz com que ela desenvolva uma espécie de
alteridade destrutiva de si, denominada Neja. Esta é a identidade suicida de Rosa, que a leva à
internação em um manicômio, o qual rejeita depois de constatado o insano tipo de controle
exercido sobre os pacientes. A parte final do capítulo, intitulada Chave, única que Patrícia
Galvão e Geraldo Ferraz declararam ter escrito período a período, apresenta um intenso diálogo
entre Rosa e Mosci sobre o questionamento da validade da vida em mundo que se mostra cada
vez mais hostil a ela. O último capítulo, Partita, serve para reforçar a desgraça mundial
provocada pela guerra e a dificuldade de continuar vivendo.
Sobre A Famosa Revista, vale ainda ressaltar que o lugar em que se encontra a sede
da Revista e onde vivem Rosa e Mosci é uma cidade praieira cuja dimensão espacial não é
muito focalizada, mas que pode aludir a Santos, já que o casal de autores passou grande parte
de sua vida em conjunto lá. Além disso, uma importante característica que diferencia este livro
do romance proletário que Patrícia Galvão escreveu nos anos 30 é a profundidade psicológica
dos personagens, que ao invés de autômatos do meio social, apresentam atitude reflexiva e
sentimentos com relação à coletividade e ao meio social em que vivem. Mesmo que essas
personagens pareçam ter dificuldade em elaborar sua própria experiência, dada a necessidade
de um narrador em terceira pessoa para fazer isso, elas apresentam uma complexidade de
construção que está totalmente ausente em Parque Industrial.
* * *
se vê, impotente, como pertencente a um quadro de natureza morta.
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O quarto capítulo de A Famosa Revista, por sua extensão e focalização no projeto de
“produzir uma sátira contra o Partido”6, merece destacada importância de análise. Nas “Cem
páginas da Revista” são traçados alguns aspectos da organização interna, dos procedimentos de
conduta e da ideologia da Revista que muito se assemelham aos do Partido Comunista
Brasileiro (PCB), da época em que Patrícia Galvão militou, e às violências cometidas pela
direção Stalinista. Nesse momento a narrativa é mais clara e organizada se contrastada aos
outros capítulos, uma vez que há domínio da matéria: “Enquanto ocorria o que contamos no
capítulo precedente” (GALVÃO e FERRAZ, 1959, p. 174) e a voz narrativa se mostra muito
irônica e opinativa – “Nada mais infantil do que ter esperança” (GALVÃO e FERRAZ, 1959, p.
131) – a respeito dos acontecimentos. A clareza formal serve, nesse caso, à expressão da crítica
às violências sobre as quais o leitor não pode ter nenhuma dúvida.
A personagem Rosa aparece nas Cem Páginas pela primeira vez numa reunião com
chefe Dacier e outro funcionário: “Rosa se irritava. Para que aquela proposta controvérsia sem
sentido entre três pessoas a respeito de um plano estabelecido pela direção da Revista e que
seria sem dúvida posto em prática aprovassem ou não o que estava traçado?” (GALVÃO e
FERRAZ, 1959, p. 118). Essa primeira opinião da personagem já evidencia, logo no início da
parte da obra em questão, uma crítica aos falsos debates democráticos que caracterizavam a
instituição jornalística. Se essa questão for pensada à luz de uma metáfora PCB, constata-se
que uma das características da organização partidária era justamente sua centralização pela
Internacional Comunista (IC), que traçava estrategias de luta incompatíveis com as realidades
dos países latino-americanos. Havia “submissão organizativa das sessões nacionais à direção
centralizada de Moscou e imposição do modelo bolchevique de partido” (PINHEIRO, 1991, p. 49)
facilitadas pela regra estatutária da própria Internacional de que as sessões nacionais deveriam
realizar seus Congressos depois do Congresso da IC, para melhor aplicação das diretrizes. Além
disso, os Partidos Comunistas dos países latino-americanos poderiam receber a qualquer
momento agentes plenipotenciários do Comitê Central da Internacional Comunista (CEIC), que
no livro são representados pelos “acionistas” da Revista.
A representação metafórica da submissão do PCB à IC se repete quando um
funcionário afirma que o artigo de fundo da Revista “vem de fora em muitas línguas. Não nos
cabe aqui discutir, mas apenas aceitar a orientação” (GALVÃO e FERRAZ, 1959, p. 144), o que
indica a falta de autonomia dos funcionários e da própria organização em si. Mais tarde essa 6 Geraldo Ferraz, em entrevista sobre A Famosa Revista. Citação retirada da antologia de Augusto de Campos, Pagu Vida-obra, p. 115.
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ideia é reforçada pela reflexão de Mosci de que “o artigo principal [...] vinha pronto com a
orientação, de fora. Era só aceitar a orientação. Qualquer grão de aço atirado na enorme
engrenagem podia rebentar tudo” (GALVÃO e FERRAZ, p. 145). Há também a passagem
relativa à mudança de orientação da Revista, que reforça a dependência externa da
organização, pois a necessidade de mudança parte de um telegrama recebido repentinamente e
é “Unanimemente aprovada, cegamente aceita. Os grandes acionistas sabiam o que estavam
fazendo”. (GALVÃO e FERRAZ, 1959, p. 178)
Outras características atribuídas à instituição jornalística são o tratamento verticalizado
e altamente impositivo existente entre o chefe Dacier e seus funcionários, assim como as
censuras internas às opiniões dissidentes como meio de controle ideológico. A ortodoxia e
doutrinação da Revista são explicitadas pelos sete pecados capitais que a regem:
“desobediência, rebeldia, pusilanimidade, negligência, hesitação, traição e sátira” (GALVÃO e
FERRAZ, 1959, p. 165). A apresentação de alguma dessas características levaria à demissão
sumária de qualquer empregado e, para que se constatasse o desvio de conduta dos mesmos,
vários métodos coercitivos eram empregados. Nesse sentido, a espionagem, que se dá na obra
literária através do “Comitê de Escuta” da Revista, também aparece como metáfora de uma
característica do PCB a ser delatada. Esse comitê teria a seu serviço tanto funcionários
específicos da Revista destinados à espionagem da vida dos outros empregados, quanto
inovações arquitetônicas e aparatos tecnológicos nas instalações, como paredes de vidro,
espelhos e câmeras de monitoramento, da Revista.
A existência no PCB de um bureau de contra-espionagem que controlava os membros
militantes do Partido que tentavam “se opor ou que eram suspeitos de divergir da IC” (GALVÃO,
2005, p.124) é apontada no texto autobiográfico de Patrícia Galvão. Tal constatação foi
possibilitada pelo fato da autora ter feito parte do Comitê Fantasma, um órgão secreto da
Internacional no Brasil. Além disso, Patrícia Galvão relata que a todo tempo trabalhava sob a
vigilância de membros superiores do PCB, pois esses suspeitavam de sua origem pequeno-
burguesa e de sua relação com intelectuais, como Oswald de Andrade – “Ia começar o trabalho
sob controle persistente de um companheiro de Partido” (GALVÃO, 2005, p. 95). Esse esquema
de espionagem chama atenção para outra questão inerente à organização partidária: a extensão
das exigências políticas de aspecto coletivo ao ambiente da vida pessoal dos militantes. Isso
pode ser identificado historicamente nas permissões que os mesmos deveriam solicitar à cúpula
partidária para travar relações íntimas com terceiros. Assim, como apontam os historiadores
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Carlos Rangel e Cácia Cortes no texto A militância feminina no PCB – década de 30, aparelhos
era o nome dado às casas de casais militantes, unidos afetivamente ou não, mas que perante à
sociedade, mantinham aparência familiar para não criar suspeita sobre suas ilícitas atividades
subversivas. Em A Famosa Revista, Rosa, quando imersa em seu trabalho na Revista, mora
com outro funcionário, num quarto onde há duas camas de solteiro.
Outro aspecto tocado pelo enredo da obra literária em questão é a polêmica política
stalinista de rejeição dos intelectuais do Partido e exigência da proletarização de seus militantes.
A negação do trabalho intelectual é confirmada por Dacier nos seguintes termos: “as
profissões...intelectuais...deturpam o caráter das pessoas” (GALVÃO e FERRAZ, 1959, p. 141),
o que mostra o perigo de se ter na Revista pessoas reflexivas, que possam contestar a conduta
da mesma. A proletarização vivida historicamente pela autora, e sua consequente perda do
estatuto de intelectual, são fatores também bem demarcados na carta autobiográfica. Antes
mesmo de ser admitida no partido, Patrícia Galvão trabalhou como costureira, indicadora de
lugares no cinema e metalúrgica, entre outras coisas, uma vez que a organização a proibira de
ser empregada como jornalista na Agência brasileira e no Diário da Noite. Para a autora esse
processo foi muito violento porque além das várias humilhações que passou à procura de um
trabalho digno aos olhos do partido, teve de se afastar do filho Rudá, para dedicação exclusiva à
militância comunista, o que provocou um sentimento de culpa reafirmado em Paixão Pagu.
Historicamente, a comprovação da proletarização dos militantes era necessidade
estabelecida pela política obreirista, que marcou a mudança de orientação da III Internacional a
partir do final dos anos 20 e que serviu para limar os trotskistas dos cargos de poder dos partidos
comunistas 7. No Brasil, a aplicação dessa política geraria uma crise de direção, pois intelectuais
que haviam fundado a Organização, como Astrojildo Pereira, foram substituídos por
trabalhadores que não necessariamente eram tão competentes para a ocupação dos cargos,
como aponta a historiadora Tereza Freire, no já referido texto Dos Escombros de Pagu. Alguns
dirigentes dessa nova ordem, como o metalúrgico José Vilar e o padeiro Caetano Machado, que
foram da secretaria-geral do PCB, são tratados por Patrícia Galvão em sua autobiografia como
sendo seus superiores.
Esses superiores mostram em Paixão Pagu tratamento sexista voltado à militante
Patrícia Galvão e a autora expõe isso de maneira crítica. Do mesmo modo, o machismo inerente
7 De acordo com Pinheiro (1991, p. 191), “A linha ‘classe contra classe’, que marcou a IC depois do VI Congresso, contribuiu para isolar as seções latino-americanas, condenando-as a uma esterilidade política que se agravou com a ausência quase total de autonomia na elaboração de análises”.
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às condutas dos membros dirigentes da Revista é alvo de outras críticas tecidas no livro escrito a
quatro mãos. A personagem Rosa é assediada por seus colegas de trabalho e Tribli por Dacier,
que possui uma cama num compartimento de seu escritório, onde ele se reúne com as
funcionárias. No entanto, o embate fica mais claro em alguns momentos específicos do enredo.
Dado um problema financeiro, o alto escalão da Revista pede que Rosa se insinue sexualmente
a um funcionário do Tesouro, com a finalidade de apossar-se do dinheiro que ele traz: “A
funcionária Rosa é sedutora. Embarcando à noite no mesmo expresso durante a travessia
poderia entrar na cabina do nosso homem [...] É fácil, não podemos lhe dar lições de
coquetismo” (GALVÃO e FERRAZ, 1959, p. 153).
O mesmo tipo de tratamento atribuído às mulheres na ficção fora dado pelos colegas
de partido a Patrícia Galvão, como relatado no texto memorialístico. A violência máxima desse
tipo se dá no momento em que CM11, militante que pode ser uma alusão a Caetano Machado,
pede a ela que ofereça sexo em troca de algumas informações julgadas importantes à
organização. É inclusive nesse momento que a autora traça o começo do processo de desilusão,
que irá se concretizar após sua viagem a Moscou.
Apesar de em menor ênfase, outra crítica que os autores esboçam nesse livro é à arte
stalinista, ao realismo socialista. A direção da Revista se coloca contra a arte abstrata,
condenação tipicamente stalinista, e afirma que “a arte para nós é somente a tendência a favor
de nosso objetivo, tendência se manifestando através das expressões de arte, e assim a
literatura” (GALVÃO e FERRAZ, 1959, p. 145). A declaração deixa evidente a histórica
instrumentalização da arte que ocorreu no período Stalinista. A crítica aos preceitos da arte
dirigida é, em certa medida, uma crítica feita ao próprio Parque Industrial, que apresentava o
aspecto do realismo socialista de crença na Revolução Social. Dessa maneira, essa obra de
autores filiados ao trotskismo encontra-se no pólo ideológico oposto do primeiro livro de Patrícia
Galvão, que ainda apresenta a questão da apologia partidária.
* * *
Outro importante aspecto de observação em A Famosa Revista é a constituição dos
narradores no livro de Patrícia Galvão e Geraldo Ferraz, uma vez que eles se mostram como
importante elemento para a construção formal do texto. A Famosa Revista (1945) é um livro
irregular cuja narrativa aparece ora clara e objetiva, ora tomada por um intenso atrelamento da
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voz narrativa aos pensamentos das personagens que torna os fatos confusos e de difícil
entendimento. Grande parte dessa irregularidade formal se deve à posição adotada pelos
narradores (em alguns momentos do texto há referência à primeira pessoa do plural, como
“quereríamos” (GALVÃO e FERRAZ, 1959, p. 111), “enquanto ocorria o que contamos no
capítulo precedente”(GALVÃO e FERRAZ, 1959, p. 174), “estávamos” (GALVÃO e FERRAZ,
1959, p.210). Se em determinados momentos esses narradores apresentam os fatos de maneira
clara – o que é bem evidente no quarto capítulo “As cem páginas da Revista”, em que
comentário se mistura a ações ocorridas – em outros, sua perspectiva se cola à dos
personagens principais e a suposta organização se perde – o que se mostra textualmente visível
nos capítulos que antecedem e sucedem as “Cem páginas”.
Uma hipótese levantada é a de que em determinados momentos do livro os
personagens apresentam um estado melancólico, cuja instabilidade é transposta para a
construção narrativa. Isso ocorre logo no primeiro capítulo em que é apresentado o personagem
Mosci, marcado pela perda da companheira Rosa que, ao invés escolher dedicar sua vida ao
amor (interesse individual), separa-se dele para dedicar-se inteiramente ao trabalho na engajada
Revista (interesse coletivo). Assim, no quarto capítulo, em que vão ser delatadas todas as
mazelas da instituição em questão – a Revista, metáfora do PCB – a narrativa fica mais direta e
objetiva talvez porque Mosci mostra ter superado momentaneamente seu estado melancólico.
Ele tem o objetivo de enfrentar a organização e “resgatar” sua amada Rosa.
No entanto, se Mosci parece ter seu estado melancólico atenuado ao longo da
narrativa, a decepção de Rosa com a Revista, na qual havia baseado sua existência, faz com
que a personagem vá desenvolvendo um estado psíquico melancólico, que terá seu ápice na
recusa total de qualquer ambiente coletivo, no refúgio ao amor e na descrença em um futuro
melhor, traçados nos últimos capítulos. Nesse momento, a narrativa voltaria a se tornar mais
confusa, mostrando a marcação formal desse estado de desequilíbrio psíquico. O
desenvolvimento da melancolia é marcado textualmente pela repetição da imagem de iminente
queda de Rosa de um despenhadeiro8, retomando um fato passado da personagem que é
sempre associado à sua conflituosa relação com a Revista, experiência que Rosa parece não
estar apta a elaborar no momento. Nesse caso, o atrelamento da voz narrativa aos pensamentos
8 Essa imagem pode ser analisada como fantasmagoria. De acordo com o crítico Jaime Ginzburg (2004, pp. 58-59),fantasmagoria consiste na “irrupção de imagens no discurso, à revelia do esforço consciente do sujeito em organizar sua fala, com propriedades negativa e impacto atormentador. As fantasmagorias, que se comportam de acordo com a concepção benjaminiana de memória involuntária, são lembranças agônicas, pesadelos diurnos que se entrelaçam na fala”.
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e condições psíquicas dessa personagem resulta em perturbação linguística, uma vez que Rosa
não consegue raciocinar de forma coesa e não consegue atribuir sentido ao que se viveu: a
experiência traumática é responsável pelo abalo da racionalidade e pelo colapso da sustentação
do sujeito. Interessante notar ainda que o capítulo V do livro mostra uma semelhança com o
discurso “à nudez dos que voltam da guerra” (ADORNO, 2003, p.56), pois de acordo com autor:
“Basta perceber o quanto é impossível, para alguém que tenha participado da guerra, narrar
suas experiências como antes uma pessoas costumava contar suas aventuras. A narrativa que
se apresentasse como se o narrador fosse capaz de dominar esse tipo de experiência seria
recebida, justamente, com impaciência e ceticismo” (2003, p.56).
* * *
Por fim, vale a pena discutir os aspectos trotskistas relativos à elaboração do livro, uma
vez que na época de escrita, tanto Patrícia Galvão quanto Geraldo Ferraz concordavam com sua
visão de pensamento político. A relação com os preceitos de arte trotskistas é apresentada na
obra tanto de maneira explícita no conteúdo, quanto na elaboração estética. De acordo com
Kenneth David Jackson em Alienation and Ideology in A Famosa Revista (1945), o livro de
Patrícia Galvão e Geraldo Ferraz apresenta a síntese resultante da mistura de três estilos de
construção formal: as técnicas de vanguarda herdadas da década de 20, os procedimentos do
realismo social dos anos 30 e do novo romance lírico, no qual Geraldo Ferraz firmou-se como
especialista em Doramundo (1956). Essa mistura de gêneros, preocupada com o trabalho
estilístico de vanguarda e de acordo com a liberdade individual do artista encontra inspiração na
própria luta de Trotski contra a arte dirigida.
Em oposição ao pensamento stalinista já comentado nas considerações sobre o
Parque Industrial, Trotski, no ano de 1923, publicou Literatura e Revolução, explicitando suas
posições sobre o papel da arte na Rússia pós-1917. Nessa obra, o intelectual nega a vigência de
uma arte proletária, pois a ditadura do proletariado não produziria uma arte de classes, mas,
existindo apenas em fase transitória, prepararia a sociedade para a criação de uma arte humana.
Versa ainda sobre a importância do legado cultural burguês e sobre a autonomia do artista em
seu processo criativo. É enfatizando a liberdade de criação que Trotski lança o manifesto Por
uma arte Revolucionária Independente (1938), em parceria com André Breton e apoio de Diego
Rivera, para quem a tarefa suprema da arte é participar ativamente na preparação da revolução,
mas o artista deve ter extrema liberdade na elaboração de suas obras.
ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
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Dessa forma, nota-se uma aproximação de A Famosa Revista (1945) a essa
concepção artística formulada por Trotski e seus companheiros. A discordância ao então
dirigente do Partido Comunista da URSS já tinha sido explicitada em sua autobiografia, no início
dos anos 40, quando Patrícia Galvão, afirmou ironicamente: “Deixei Moscou no desfile esportivo.
O céu, era um céu de aviões e de lá adiante, na tribuna, no seio da juventude em desfile, o líder
supremo da revolução. Stálin, nosso guia. Nosso chefe” (GALVÃO, 2005, p. 150).
O projeto de delação às mazelas do Stalinismo penetra a obra da autora como um todo
posteriormente, influenciando inclusive sua produção jornalística. Patrícia Galvão foi aguerrida
combatente desse tipo de arte nas colunas “Crítica Literária” e “Crônica literária”, que manteve
no jornal A Vanguarda Socialista de 1945 a 1946. Tal periódico também recebia contribuição de
Geraldo Ferraz e tinha como um de seus dirigentes o militante trotskista Mário Pedrosa. Além
disso, o rompimento completo com o PCB e alguns de seus motivos é também expresso pela
autora no panfleto político Verdade e Liberdade. O material tinha sido escrito a propósito da
candidatura de Patrícia Galvão, em 1950, à Assembléia Legislativa do Estado, pelo Partido
Socialista Brasileiro, ao qual pertenciam muitos dos membros do Vanguarda Socialista na época.
Em A Famosa Revista, esse rompimento é representado pela morte de Tribli – que poderia
significar a morte do próprio idealismo de Rosa –, pela prisão e posterior adoecimento de Rosa.
Assim, o que resta após a desilusão militante é o niilismo, o “nada nada nada”9, o abismo. O
desinteresse total pelo ambiente coletivo, que não obstante a perturba constantemente, é a
marca final da desilusão de Rosa, cuja situação melancólica é acentuada pelo sentimento de
desamparo provocado pela Segunda Guerra Mundial. Trata-se de um quadro que se apresenta
muito diferente da apologia ao engajamento político proposto em Parque Industrial.
Apesar da caracterização negativa do engajamento político apresentada na Famosa
Revista, algumas questões ainda parecem permanecer na literatura de Patrícia Galvão. É o caso
de uma ânsia pela busca da verdade e pela delação das injustiças que a autora gostaria de
combater com sua escrita. Outra similaridade entre Parque Industrial e A Famosa Revista é a
ausência do público leitor desse livro escrito a quatro mãos, dado o prestígio que o Partido
Comunista Brasileiro tinha quando a Segunda Guerra Mundial acabou.
9 Poema de Patrícia Galvão chamado Nothing e publicado no jornal A Tribuna, de Santos.
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