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8/7/2019 Poltica, democracia e a "questo social"
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Poltica, Democracia e a Questo Social
Fbio Wanderley Reis
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um prazer estar de volta mais uma vez FAFICH, em particular na boa
companhia de Elisa Reis. Pretendo tentar uma reflexo de alcance mais geral
com respeito ao nosso tema, em confronto com postulados problemticos
relacionados a ele, mas procurando indicar sua relevncia para o que ocorre no
Brasil.
Posso comear chamando ateno para o fato de que no tema desta
sesso, Perspectivas e Desafios da Interveno Governamental na rea
Social, bem como no do prprio seminrio, Polticas Sociais e Democracia,
temos claramente envolvido o problema geral das relaes entre a democracia
poltica e a democracia social. No creio que seja possvel, a rigor, separar
essas duas dimenses, acho que h entre elas uma articulao que no se
pode romper. Caberia falar, a propsito disso, do que tenho chamado um
problema constitucional a ser enfrentado e resolvido, o qual envolve na sua
soluo, evidentemente, a iniciativa de construo de mecanismos no plano
convencionalmente designado como poltico, mas, por outro lado, tem
fatalmente requisitos tambm no plano correspondente ao substrato que a
gente costuma designar como a esfera social. Eu diria que na verdade o
problema toca em questes bem gerais com relao anlise poltica.
Ele remete, para comear, questo da prpria definio da poltica, de
responder pergunta sobre em que consiste a poltica ou qual a natureza
da poltica. Temos a respeito a contraposio usual, nas discusses da cincia
poltica, entre duas perspectivas ou modelos, contraposio esta que se liga
com o problema da autonomia da cincia poltica como disciplina. De um
Transcrio, revista pelo autor, de conferncia proferida no seminrio Polticas Sociaise Democracia no Brasil, Departamento de Cincia Poltica da Faculdade de Filosofia eCincias Humanas da UFMG, Belo Horizonte, 23 e 24 de agosto de 2004. Publicada emTeoria & Sociedade, nmero especial sobre Polticas Sociais e Democracia no Brasil,2005.
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lado, h a perspectiva que destaca a esfera do estado e pretende que a
estariam os fenmenos polticos. A cincia poltica seria autnoma na medida
em que os fenmenos que interessam a ela pudessem se explicar por
referncia a essa esfera, dispensando o recurso ao plano social. Em
contraste, temos o modelo sociolgico de abordagem, segundo o qual agente s explicaria o que ocorre no plano do estado por referncia ao que est
l em baixo, por assim dizer, no plano geral da sociedade. possvel dizer
que temos, de um lado, uma definio concreta da poltica, que recorta um
pedao da realidade o estado e diz que a est a poltica, e, de outro lado,
uma definio mais analtica, que v a natureza do fenmeno poltico em certo
aspecto das interaes de todo tipo que se do na sociedade, a saber, o
aspecto estratgico, o fato de que h conflitos potenciais ou reais em qualquer
esfera de interao social. Desnecessrio destacar que a perspectiva clssica arespeito da poltica uma perspectiva sociolgica, atenta ao seu
condicionamento pela diversidade de interesses que se do na sociedade e
pelo seu enfrentamento. Surge da, naturalmente, a necessidade de
acomodao dos conflitos, destacando o problema das instrumentalidades e
mecanismos institucionais exigidos para essa acomodao.
Isso torna bem claro que nosso problema se desdobra tambm, no plano
doutrinrio ou normativo, na questo terica crucial da cincia poltica, a de
uma teoria adequada da democracia. Vamos aderir a uma concepominimalista de democracia poltica ou podemos falar legitimamente da
democracia social ou da democracia como modo de vida? Adam
Przeworski, por exemplo, tem proposto uma concepo minimalista que na
verdade reduz a democracia garantia dos direitos civis ou do chamado
estado de direito embora a posio de Przeworski seja inconsistente, pois
no se pode pretender que os direitos civis estejam garantidos sem os direitos
polticos (isto , em condies de ditadura) ou que os direitos polticos estejam
assegurados igualitariamente em condies de grande desigualdade social (se
os ricos podem comprar sua eleio, o direito de ser votado no est
igualmente distribudo, ainda que o direito de votar esteja). Em
correspondncia com essa ptica prezeworskiana, temos tido a propagao de
certo institucionalismo estreito, que envolve uma concepo mope e
inaceitvel das instituies polticas. claro que, se a esfera da poltica vista
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como dizendo respeito ao desafio bsico de regular e acomodar a interao
estratgica, somos imediatamente levados idia de que essa interao venha
a ganhar certa forma institucional, de que as coisas se passem de maneira a
tornar possvel processar institucionalmente, e no violentamente, os conflitos.
Mas o desdobramento importante, do ponto de vista da nossa questo de hoje,consiste em que essa acomodao se faz no apenas em termos estreitamente
polticos afins quele institucionalismo, mas contm necessariamente uma
dimenso que social: a prpria expresso institucional, se com
frequncia tomada num sentido em que se associa com o advrbio
meramente (o meramente institucional...) e a propsito do qual tenho falado
do institucional como objeto" (a elaborao mais ou menos artificial das
leis, por exemplo), na verdade s adquire a riqueza de conotaes que a
tornam de interesse poltico na medida em que as leis pegam e osmecanismos institucionais passam a ser parte efetiva do contexto relevante
nas decises e aes cotidianas das pessoas (o institucional como contexto).
De forma esclarecedora quanto aos equvocos da contraposio entre o
estado e o resto, esses temas podem ser colocados em termos de certas
concepes sobre a questo das relaes entre estado e poder. H aqui trs
perspectivas que se podem destacar. Uma, a perspectiva liberal, aponta no
estado um sujeito de poder a ser contido ou neutralizado. Outra, a crtica
marxista, v no estado um instrumento de relaes de dominao produzidasem outras esferas e eventualmente apropriado pelos titulares do poder social
ou privado de qualquer tipo e usado na promoo dos seus interesses prprios.
Mas h uma outra possibilidade, alis presente tambm como uma espcie de
contraface da crtica marxista do estado capitalista, apesar da fantasia utpica
da obteno da harmonia na sociedade sem estado. Nessa terceira perspectiva
o estado surge como possvel instrumento de conteno ou neutralizao de
relaes de poder que emergem em outras esferas (sociais), ou como
instrumento potencial de todos o que implica, naturalmente, a idia de um
estado que age e intervm em nome de um ideal solidrio e em alguma
medida igualitrio. Talvez esse ideal igualitrio possa ser entendido
inicialmente como se referindo idia de autonomia num sentido afim
chamada igualdade formal perante a lei ou em que se pretenda reduzi-lo
idia dos direitos civis. Mas nos deparamos logo com a inconsistncia do
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minimalismo democrtico, e no h como escapar da pergunta sobre como se
garantiro politica e socialmente as condies necessrias autonomia.
Bem, fcil perceber que em torno dessas questes giram muitas
disputas relacionadas ao capitalismo. Podemos lembrar, por exemplo, algo que
Claus Offe andou destacando em textos de anos atrs, isto , a tese,compartilhada no sculo 19 por conservadores e marxistas, de que a
convivncia entre o capitalismo e a democracia envolveria inevitvel
instabilidade: se h capitalismo e democracia, ou teramos a revoluo
socialista feita pelos trabalhadores por meio do voto, destruindo o capitalismo,
ou teramos a restaurao conservadora e autoritria e a destruio da
democracia. Por outras palavras, a questo social tornaria a juno
capitalismo-democracia inerentemente problemtica e fugaz. O mesmo Offe
recolocou, alm disso, a indagao sobre a natureza do prprio estado de bem-estar. H uma viso convencional a respeito do estado de bem-estar, em que
ele aparece como uma espcie de transbordamento tardio do xito e do
amadurecimento do processo de desenvolvimento capitalista. Em contraste, a
perspectiva defendida por Offe, na linha de autores como Karl Polanyi, v no
estado de bem-estar uma necessidade funcional do capitalismo como tal um
componente no-mercantil da dinmica do capitalismo que compensaria sua
lgica mercantil e seria indispensvel para garantir as condies de operao
da prpria lgica mercantil. Trata-se, naturalmente, da criao daquele sentidode comunidade de que falou a Elisa, com o estado assumindo o papel de
agente crucial da comunidade no s como contrapartida dinmica dos
interesses que caracteriza o mercado, mas tambm como algo que viabiliza
essa dinmica (alis, na anlise clssica de Max Weber, a noo de mercado
por si mesma j envolve um componente comunitrio, ao lado do
componente societrio ou de busca racional de interesses).
Mas possvel e instrutivo recuar, com respeito ao nosso problema
geral, muito alm do capitalismo moderno: possvel recuar Atenas clssica.
Pessoalmente no sou muito afeito a essa histria de voltar sempre Grcia,
mas acho que aqui h coisas de real interesse quanto ao nosso tema. O fato
que a gente pode fazer remontar prpria origem da democracia em Atenas a
presena da questo social como problema decisivo, e apontar j em Atenas a
mesma ligao entre democracia poltica e democracia social. Pode-se
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destacar o trabalho de uma autora marxista, Ellen Meiksins Wood,
especialmente os ensaios reunidos em Democracia contra Capitalismo, de
alguns anos atrs (o fato em si de ela se manter fiel ao marxismo a esta altura,
na suposio de que seja de qualidade intelectual, j a torna interessante:
como consegue, quais so os argumentos?). Ela tem, a propsito do que estouressaltando, a idia de que o trao crucial da democracia ateniense (e da Roma
republicana, em menor medida) consistiria na existncia da figura do cidado-
campons, o fato de que o campons se transforma em cidado em contraste
com o que se encontra em geral nas sociedades tradicionais, onde o que
caracterstico o estado apropriador que subjuga os camponeses. E o tema do
cidado-campons remete a outro de alcance maior, que se constituiu no
grande cavalo de batalha nas discusses sobre a democracia ateniense entre
os prprios pensadores de Atenas, a saber, o tema da relao entregovernantes e produtores. O que est expresso na existncia do cidado-
campons a idia de que os produtores (camponeses, sapateiros, ferreiros,
ou seja, trabalhadores manuais) podem ser governantes, podem ser cidados e
como cidados governar a comunidade. E essa idia, por estranho que possa
parecer diante da frequente idealizao da democracia ateniense, objeto de
disputa e fortemente contestada entre os grandes filsofos gregos.
Na verdade, se h um ponto de convergncia a respeito da democracia
entre os grandes nomes da filosofia grega o destaque dado ao carterproblemtico desse acoplamento entre a condio de produtor e a condio de
governante, visto como doutrinariamente inaceitvel. conhecido aquilo que
s vezes se designa, em termos modernos, como o totalitarismo de Plato: a
concepo da sociedade orgnica, em que cada um tem o seu lugar e que foi
motivo da crtica inclemente feita por Karl Popper no volume A Sociedade
Aberta e Seus Inimigos. Mas Aristteles, por sua vez, tem como ponto
fundamental (salientado com fora por Hannah Arendt, em especial) a idia de
que preciso separar a plis e a oika, a esfera domstica ou de economia
privada, e de que para o sujeito ser cidado livre e poder ir para a gora e se
comunicar com os outros em termos igualitrios, participando das deliberaes
pblicas, a condio fundamental que ele seja um tirano na esfera privada,
quer dizer, que ele tenha o controle da famlia, noo que inclui, no contexto,
as de patrimnio e da propriedade de escravos. Para Aristteles, o cidado
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deve possuir escravos, com isso ficando livre da servido do trabalho para o
atendimento das necessidades biolgicas e podendo ir nobremente para a
praa pblica discutir com seus iguais. A idealizao da gora, portanto, tende
a esquecer um postulado que, aos nossos olhos, no pode surgir seno como
antidemocrtico.Mas mesmo o caso de Scrates envolve ao menos ambiguidades
desconcertantes a respeito do problema. Compartilhei h pouco com Bruno
Reis a leitura de um livro sobre O Processo de Scrates, de autoria de Claude
Moss, em que, no obstante toda a simpatia pela figura de Scrates e o fato
de que a autora no deixe de se empenhar em mostrar o que h de
equivocado e injusto na condenao dele pelos democratas atenienses, em
seguida Guerra do Peloponeso, o que sobressai que realmente difcil dizer
com segurana at que ponto Scrates era um democrata. E at Popper, quev em Scrates o grande heri da caminhada que Atenas teria iniciado para
ns em direo sociedade aberta, tem de admitir explicitamente que na
verdade quem fala em favor da democracia Protgoras. Certamente um
nome secundrio nos registros da filosofia grega, Protgoras figura num dos
dilogos de Plato (naturalmente, preciso no esquecer que o relato de
Plato, o que pode justificar reservas quanto autenticidade das idias de
Scrates que transparecem) formulando longo argumento em favor da
democracia em confronto justamente com Scrates alis, Ellen Wood assinalaque essa a nica argumentao sistemtica em favor da democracia a
sobreviver da Antiguidade, ao lado da pea retrica que o famoso discurso
fnebre de Pricles. Enquanto Scrates defende uma forma tcnica de
treinamento para a poltica e o governo, que supe o acesso a conhecimentos
sofisticados e valoriza a reflexo e a habilidade do filsofo como tal, Protgoras
defende a viso segundo a qual o acesso virtude cvica universal por ser
assegurado pelo aprendizado convencional na vida da comunidade, e portanto
o sapateiro e o ferreiro estariam adequadamente habilitados para participar da
deliberao pblica. De toda forma, o que interessa ressaltar que h um
elemento crucial de tenso, de natureza inequivocamente social, o qual pode
ser ligado ao fato de que, tudo somado, a experincia democrtica ateniense
acabou sendo relativamente fugaz e pode mesmo ser vista como fracassada.
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Um ponto que preciso realar a respeito das idias de Ellen Wood tem
a ver com o fato de que, no esforo de idealizao um tanto peculiar (ou
peculiarmente marxista) que faz da democracia ateniense, ela levada a
negar importncia escravido alm de negar, contra Weber, a possibilidade
de se falar de capitalismo a propsito de Atenas (o que sustentadoprecariamente por teses como a de que o campons ateniense estaria fora do
mercado). A posio de Wood a respeito da escravido em Atenas apresenta
certa convergncia tortuosa com a perspectiva conservadora de Hannah
Arendt, que no mencionada nem citada por ela. Se Arendt v a escravido,
nas pegadas de Aristteles, como a condio de que se pudesse ter a liberdade
do cidado e a gora, Wood tambm sustenta que a democracia e a escravido
estiveram unidas de forma inseparvel em Atenas: o status civil dos
camponeses e a independncia deles teria sua contrapartida na escravidopara outros. Isso no impede que ela procure sustentar, de maneira torturada
e inconsistente, que a escravido ateniense no teria importncia real (os
escravos seriam pouco numerosos, e havia cidados livres que tambm se
dedicavam a atividades manuais...). Mas tal posio, alm de chocar-se,
naturalmente, com o reconhecimento do papel da escravido como
contrapartida da independncia camponesa, choca-se ainda com o fato de que,
salientando a idia de que so muito poucos, em toda a histria, os casos de
sociedades propriamente escravagistas (caracterizadas, de acordo com M. I.Finley, pelo recurso em grande escala ao trabalho escravo tanto no campo
quanto nas cidades), Wood inclui a Atenas clssica entre eles, ao lado da Itlia
romana, as ilhas das Indias Ocidentais, o sul dos Estados Unidos e... o Brasil.
Bem, gostaria de destacar, a este ponto, duas observaes em conexo
com esse registro breve de alguns aspectos da experincia ateniense e sua
interpretao. Uma delas diz respeito ao interesse especial do tema da
escravido. Se, por um lado, a escravido surge h muito como algo que torna
problemticas as avaliaes idealizadoras da democracia ateniense, fazendo
parte dos problemas sociais subjacentes a ela (ainda que, tal como
tematizada pelos prprios atenienses, a escravido no fosse parte da tenso
produtores-governantes: ningum pretendia que os escravos governassem),
por outro lado ela tem para ns o interesse envolvido no aspecto que acabo de
mencionar, ou seja, o carter historicamente excepcional da escravido como
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algo que penetra toda a economia e toda a sociedade. Pois esse aspecto torna
o caso do Brasil um caso singular de maneira muito importante, permitindo
constatar que somos o nico pas moderno de propores significativas a
contar com um legado escravista macio no sul dos Estados Unidos, afinal, a
escravido perdeu a guerra, e os demais casos modernos so alguns pequenospases do Caribe. Essa constatao, naturalmente, compe de forma decisiva
aquilo que costumo chamar, citando Darcy Ribeiro, de ruindade brasileira.
Somos um caso singular de demorada construo de uma grande sociedade
escravista, construo que tomou vrios sculos e no perodo de um sculo e
pouco que nos separa da escravido fomos obviamente mal-sucedidos quanto
a atacar e tratar de superar a pesada herana social negativa que ela nos
legou.
A segunda observao se relaciona de perto com a primeira. Ela serefere centralidade do papel dos fatores de natureza intelectual com respeito
s ligaes entre a questo social geral e os problemas da poltica, ou da
democracia. Naturalmente, a prpria discusso na Atenas clssica sobre as
relaes entre produtores e governantes j se referia a esse aspecto como
central: em contraste com a nfase de Plato e outros, incluindo Scrates, no
conhecimento especializado ou filosfico e o anseio, ao cabo, pelo rei-filsofo,
falei antes na nfase de Protgoras na assimilao convencional dos costumes
e valores da comunidade. claro que aqui h espao para matizescomplicados: numa sociedade desigual, o convencionalismo pode redundar na
subjugao moral diante das idias e valores dos grupos socialmente
dominantes e na negao da autonomia do indivduo ou cidado, a qual pode
requerer justamente as condies intelectuais que lhe tragam a capacidade de
descentrao ou afastamento perante a sociedade, em vez da fuso acrtica
ou da efuso comunitria e dos problemas que delas derivam, como ressalta
o que h de melhor no liberalismo moderno. Seja como for, em perspectiva
moderna, a importncia do fator intelectual surge, de maneira no de todo
desligada das discusses clssicas, na ambivalncia do significado do acesso
educao. Por um lado, como outros objetos de polticas sociais (sade,
seguridade), a educao um bem a ser usufrudo. Por outro lado, contudo, ela
um instrumento crucial para a autonomia e o exerccio efetivo da cidadania.
Se retomamos algo sugerido pela Elisa, que contrapunha o anseio pela
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igualdade no desigualdade, mas ao desiderato de que as diferenas se
possam afirmar, possvel dizer que certa igualdade bsica condio
indispensvel at de que possamos afirmar apropriadamente
(autonomamente) nossas diferenas e que sem os recursos intelectuais que a
educao propicia no teremos nem a igualdade nem a afirmao autnoma.W. G. Runciman, por exemplo, chamava ateno h muito tempo para o papel
cumprido pelo compartilhamento de um sentimento de igualdade bsica para
que se possa ter a presena de uma disposio autnoma e reivindicante:
preciso que eu me perceba como igual aos demais, num sentido fundamental,
para que o fato de ser tratado como desigual ou inferior surja aos meus olhos
como envolvendo injustia.
Ora, o legado escravista brasileiro tem um decisivo impacto negativo
quanto educao. Vimos h algum tempo, em evento realizado aqui mesmona FAFICH, a apresentao por David Lam, de Michigan, de dados em que o
sistema escolar brasileiro mostra suas enormes deficincias at em
comparao com o sistema escolar da frica do Sul do apartheid, cujos
avanos so muito mais significativos e de maior impacto sobre a desigualdade
social do que os nossos. provavelmente suprfluo lembrar, alm disso, que a
Argentina, por exemplo, resolveu o problema do analfabetismo j no sculo 19,
enquanto o Brasil se v s voltas com ele ainda hoje. E as razes escravistas de
nossas deficincias educacionais me parecem evidentes, resultando em que sepreserve no pas algo que se pode designar com propriedade como uma
sociedade de castas. Tenho evocado com frequncia a respeito um editorial
dO Estado de So Paulo de 1o. de janeiro de 1901, que o jornal republicou a
propsito da recente virada para o sculo 21 e cujo interesse consiste na
candura com que transparecem o eurocentrismo e o racismo da elite brasileira
do imediato ps-escravismo, donde a consequncia de que a ampla populao
negra recm-liberta obviamente no era percebida como fazendo parte, de
fato, do povo brasileiro. Ficam bem claras a as razes da duradoura falta de
sensibilidade das elites para a necessidade de investir maciamente em
educao: educar essa gente? Alis, pode-se tambm lembrar, fazendo um
pouco de antropologia, que, no Brasil de 1950 (data tomada h um par de anos
como ponto de referncia na divulgao de dados educacionais negativos pelo
IBGE), a classe mdia brasileira no se envergonhava de cantar nos sales, a
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plenos pulmes, marchinhas de Carnaval em que a ignorncia popular surge,
na verdade, como motivo de chacota e em que, mais que isso, o fato mesmo
de que houvesse certos avanos constrangedoramente precrios na educao
do povo aparece como motivo de uma enviesada irritao elitista. o caso da
marchinha, cujo autor no lembro, em que se zomba das macacas deauditrio dos programas da Rdio Nacional, descritas como se esforando
para soletrar as matrias sobre seus dolos na Revista do Rdio e
enquanto isso na minha casa ningum arranja uma empregada, vejam s! O
esprito do editorial do Estado (que, afinal, estava apenas a meio sculo de
distncia) certamente continuava vivo. A pergunta, naturalmente, se ter
morrido de todo agora.
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Bem. Temos, seja como for, a questo das condies sociais da
democracia, de acordo com o tema dos debates clssicos da sociologia e da
cincia poltica de meados do sculo 20. Nesses debates, a democracia de que
se tratava seria, em princpio, a democracia poltica. Mas, se se admite que a
democracia poltica exige condies sociais, surge fatalmente a questo de
como criar ou implantar essas condies, e a literatura pertinente sem dvida
envolvia a suposio de que seria possvel agir politicamente para cri-las. Ora,essa suposio redunda em permitir o reconhecimento de que possvel
substituir a frmula das condies sociais da democracia poltica pela das
condies polticas da democracia social (e poltica): podemos ter as
instituies polticas (o estado) agindo de forma a criar, ou ajudar a criar, as
condies sociais que a democracia poltica requer, e que acabam por se
identificar com a idia da democracia social.
Se examinamos a histria dos pases de maior tradio democrtica do
ponto de vista desse problema e abstramos as muitas peculiaridades dos
vrios casos particulares, podemos talvez falar de duas trajetrias principais.
Uma delas a da socialdemocracia europia, entre cujos traos se pode
destacar o que alguns autores chamaram de welfare state institucionalizado,
de penetrao extensa e universalizante. A outra a que se tem no caso dos
Estados Unidos, em que o individualismo exacerbado e o forte incentivo
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competio produzem um welfare state de alcance mais restrito e menor
legitimidade, com consequncias estigmatizantes. Dada a prosperidade
singular dos Estados Unidos, a psicologia de fronteira e o conjunto de coisas
que permitem falar do famoso excepcionalismo americano, a experincia
europia certamente envolve maior interesse como modelo possvel.H, por certo, uma lgica geral que comum, em seus traos
fundamentais, s duas trajetrias. Trata-se da lgica apontada, por exemplo,
por Giovanni Arrighi em O Longo Sculo XX, com base no trabalho anterior de
vrios autores, incluindo Marx e Fernand Braudel, e cujo ponto crucial consiste
na afirmao articulada dos mecanismos de mercado (ou do capitalismo) e dos
mecanismos poltico-territoriais que se consubstanciam na implantao e
consolidao dos estados nacionais. Contudo, a experincia socialdemocrtica
pode ser vista como levando a um ponto mais avanado um aspectoimportante dessa lgica geral, em que a prpria afirmao dos mecanismos de
mercado (do princpio envolvido nas relaes de mercado) acaba por corroer a
legitimidade da operao dos fatores de desigualdade social e por levar a que
o estado seja mobilizado no sentido de neutralizar ou mitigar a desigualdade.
Na literatura sobre desenvolvimento poltico que floresceu nos anos 60 e 70,
essa lgica geral costumava ser descrita em termos do enfrentamento
sucessivo ou parcialmente concomitante, pelos estados nacionais, de trs
problemas bsicos, a saber, o problema da identidade (envolvendo questesde cultura ou psicologia coletiva relativos nao como referncia
importante), o da autoridade (a afirmao efetiva da aparelhagem burocrtica
e simblica do estado) e o da igualdade, que tem a ver com a incorporao
poltico-social da populao, especialmente dos estratos populares. aqui,
naturalmente, que se d o problema constitucional que mencionei no incio,
cujo eixo decisivo a acomodao da questo social e da eventual ameaa
revolucionria em que o prprio capitalismo como tal se veria posto em xeque.
O que me importa ressaltar a este ponto que a soluo do problema da
igualdade e a acomodao correspondente se faziam no mbito dos estados
nacionais e dependendo da aparelhagem do estado nacional como
instrumento.
Agora, porm, com as novas condies mundiais que se criam com a
globalizao, temos a redefinio dos termos em que se colocam esses trs
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problemas. Assim, o problema da identidade continua tendo a nacionalidade
como referncia e soluo, os elementos sociopsicolgicos e culturais da
nacionalidade seguem sendo o principal condicionante do sentido pessoal de
identidade. Mas os problemas da autoridade e da igualdade so afetados
dramaticamente por fatores transnacionais, especialmente a operaotransnacional intensificada dos mecanismos de mercado. Como consequncia,
a capacidade de ao e de interveno eficiente do estado nas esferas
econmica e social fica prejudicada e, em particular, comprometido o modelo
socialdemocrtico de resposta ao problema da igualdade, com sua concepo
solidarista de uma cidadania enriquecida pelo desfrute dos direitos sociais.
Fritz Sharpf examinou, no volume Crisis and Choice in European Social
Democracy(cuja edio alem original de 1987), a crise da socialdemocracia
que ocorre mesmo antes do auge da globalizao, j em meados da dcada de70. Ela se d num quadro do qual aspectos diversos foram destacados por
diferentes autores, incluindo temas que se estendem para alm dos pases
propriamente socialdemocrticos, como o da crise fiscal do estado diante da
sobrecarga de demandas dirigidas a ele, no que Samuel Huntington andou
chamando de destempero democrtico. Mas um trao saliente do quadro
geral a prevalncia que se estabelece da economia da oferta e a crise das
polticas keynesianas orientadas para a demanda que tinham marcado a
experincia da socialdemocracia. A discusso de Fritz Sharpf recorreironicamente idia de socialismo numa s classe (em aluso s dificuldades
do socialismo num s pas que a Unio Sovitica teve de enfrentar) para
sugerir que, nas novas condies, a nica possibilidade de redistribuio seria
aquela que ocorreria entre os prprios trabalhadores, com os recursos fluindo
dos ins para os outs, ou seja, daqueles que mantm seus empregos e sua
insero econmica para aqueles que so vitimados pela nova dinmica e se
transformam em desempregados ou tm de aceitar trabalhos precrios etc. A
literatura fala tambm da substituio do neocorporativismo, em que o
estado teria patrocinado, aps a Segunda Guerra Mundial, o entendimento
entre organizaes abrangentes de trabalhadores e de empregadores, por
formas de microcorporativismo ou pela chamada japonizao das relaes
de trabalho, em que as dificuldades trazidas pela economia da oferta luta
sindical solidria induziriam os trabalhadores a deslocarem sua solidariedade
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para a prpria empresa individual, como forma de procurar garantir o
emprego.
Essas condies adversas no fazem seno agravar-se com a
intensificao da globalizao, permitindo que alguns autores falem da
brasilizao do capitalismo avanado, com o aumento da desigualdade e osurgimento de estruturas sociais duais em que conviveriam os includos e os
submetidos a graus diversos de excluso. De toda maneira, as reservas quanto
ao modelo socialdemocrtico ensejam propostas que surgem como a
alternativa talvez mais consistente a ele nos debates a respeito do tema geral,
ou seja, as relativas idia de uma democracia de proprietrios.
Sustentando que o deslocamento para a economia da oferta, em substituio
nfase keynesiana na demanda, no teria significado o favorecimento do
capital em detrimento do trabalho se os socialdemocratas se tivessemempenhado pela redistribuio da propriedade e por um capitalismo popular,
em vez de privilegiar sempre os salrios e a interveno social do estado, Fritz
Sharpf cita o caso da Alemanha Federal: em 1973, 1 por cento das unidades
domsticas daquele pas controlavam 53,8 por cento do capital produtivo,
enquanto, no outro extremo, 52 por cento das unidades domsticas
controlavam apenas 2,4 por cento dele, distribuio que se tornou ainda mais
desigual em seguida. Pode-se lembrar na mesma linha o trabalho de Hernando
de Soto, no Peru, que ganhou notoriedade (e ampla repercusso favorvel emmeios conservadores) ao propor a legalizao das precrias propriedades
controladas pelos agentes da economia informal em todo o mundo como meio
de transformar essas propriedades em capital passvel de ser investido e de
assim ensejar eventualmente o dinamismo econmico.
Seja como for, o que prevalece, na verdade, a grande perplexidade,
sobretudo nos setores de opinio de esquerda, sobre como agir com eficincia
quanto aos problemas de poltica econmica e poltica social e sua juno.
verdade que tambm direita h perplexidade, pelo menos no sentido de que
a rombuda afirmatividade pr-mercado e anti-estado que se teve com o
chamado consenso de Washington abalada com as crises que se
sucederam em vrios pases no perodo recente. Mas as dificuldades do
receiturio convencional de esquerda e a falta de opes viveis tm ficado
bem claras na repetida capitulao neoliberal de governos em princpio de
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esquerda por toda parte: Mitterrand na Frana, Felipe Gonzlez na Espanha,
Schrder na Alemanha, alm da tentativa de Tony Blair e Anthony Giddens de
redefinir de modo mais ambicioso (e na verdade inconsistente) a velha
socialdemocracia, percebida como arcasmo oneroso, e substitu-la por uma
suposta terceira via que se situaria entre ela e o liberalismo econmico puroe simples. E o fato que mesmo um autor como Carles Boix, que se empenha
em salientar (no volume Political Parties, Growth and Equality, de 1998) as
diferenas a serem encontradas entre as polticas abertamente conservadoras
la Margaret Thatcher e as polticas de orientao em princpio socialista de
um Felipe Gonzlez, no pode evitar a caracterizao destas ltimas como
guiadas tambm pela oferta, ou como tendo a ver com o esforo de
condicionar os fatores de produo: atrair capitais e qualificar ou requalificar a
fora de trabalho. (A propsito, cabe mencionar de passagem o grandeinteresse de outro livro mais recente de Carles Boix, Democracy and
Redistribution, publicado em 2003, onde o autor, retomando uma perspectiva
ambiciosa referida ao tema geral do desenvolvimento poltico e da implantao
da democracia em mltiplas circunstncias histricas, mostra, com recurso a
material emprico rico e diversificado, o papel crucial de variveis estruturais
e sociais grau de desigualdade social, nvel de desenvolvimento econmico e
consequente flexibilidade das opes que se abrem para os capitalistas,
recursos poltico-organizacionais de que dispem os atores populares e comoelas enquadram e limitam o papel de mecanismos institucionais diversos,
corroborando a insuficincia do institucionalismo estreito de que falei antes.)
Se ocorrem essas dificuldades mesmo nos pases europeus em que a
socialdemocracia amadureceu num processo de lutas polticas mais aguerridas
(ainda que esse amadurecimento envolva justamente a eleitoralizao e a
moderao dos conflitos e a implantao de um compromisso social), que
dizer num caso como o do Brasil? Parte crucial do problema reside em que o
reconhecimento da importncia da frmula das condies polticas da
democracia social, que contrapus antes frmula clssica das condies
sociais da democracia poltica, supe, naturalmente, luta poltica; mas a luta
poltica no ser efetiva em condies sociais demasiado negativas. Lembrem-
se as crticas feitas pelo mesmo Giddens recm-mencionado sequncia
clssica que Marshall apontava no acesso aos diferentes direitos. Enquanto
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Marshall v o acesso aos direitos civis, polticos e sociais ocorrendo em
momentos sucessivos e nessa ordem, Giddens salienta que as coisas so mais
complicadas mesmo no caso da Gr-Bretanha. Da resulta que a obteno, em
algum grau, de um quadro social mais propcio condio para que os direitos
civis e polticos possam ser exercidos, h limiares sociais a seremultrapassados para que a dimenso civil-poltica da cidadania possa fazer
sentir os seus efeitos e levar os cidados disposio de tratar de obter novas
conquistas sociais.
O caso brasileiro, como caso nitidamente negativo por vrios aspectos
relacionados ao legado de uma sociedade escravista, ilustra isso de maneira
especialmente dramtica. De um lado, os direitos civis se acham
precariamente garantidos aos cidados de segunda classe e, na verdade,
como pesquisas sistemticas tm mostrado com frequncia, deixam de serpercebidos como direitos e de ser reclamados como tal especialmente entre os
estratos sociais que mais tendem a ser privados deles (vejam-se alguns dos
trabalhos que eu prprio publiquei recentemente, realizados em colaborao
com Mnica Mata Machado de Castro, ou a corroborao ainda mais recente
das mesmas constataes em anlises de dados do chamado Estudo Eleitoral
Brasileiro publicadas no nmero de outubro de 2004 da revista Opinio
Pblica). De outro lado, como os estudos de sociologia eleitoral no pas tm
mostrado h tempos, outra vez incluindo os meus prprios trabalhos, osdireitos polticos so tambm exercidos precariamente nas condies de
carncia e mesmo de destituio material e intelectual de grandes parcelas da
populao. Fica clara, nesses estudos, a mediao exercida pelo fator
intelectual entre o plano estrutural das posies socioeconmicas ou de
classe, por uma parte, e, por outra, as disposies, inclinaes ou atitudes
referidas diretamente poltica. Para sublinhar o carter limitador que essa
mediao adquire nas circunstncias gerais negativas do pas basta lembrar
uma das constataes do Latinobarmetro em pesquisas realizadas ainda h
pouco, em 2002: o eleitorado brasileiro aparece nelas, em comparao com os
eleitores dos demais pases da Amrica Latina, como o grande campeo
negativo, sendo, por exemplo, aquele em que a maior proporo de
entrevistados (63 por cento, contra 46 por cento do segundo colocado, El
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Salvador) se mostra incapaz de dar qualquer resposta pergunta sobre o que
significa a democracia...
De toda maneira, a ateno para o condicionamento social da prpria
capacidade civil de reivindicao e afirmao de direitos evidencia que no
h como escapar da demanda de certo paternalismo por parte do estado, quedeveria atender s urgncias e carncias mais importantes da populao e
viria a ser o agente principal da prpria capacitao educacional e intelectual,
e consequentemente poltica, de boa parte dos cidados. Diferentemente da
viso de alguns (ilustrada exemplarmente com as confuses de Maria Victoria
Benevides no volume A Cidadania Ativa), que entendem que os direitos tm de
ser sempre plenamente uma conquista de cidados ativos, no vejo, do
ponto de vista doutrinrio, maior problema com o reconhecimento dessa
necessidade de paternalismo estatal, pois o estado democrtico (como a crticafeita concepo minimalista de democracia e sua inconsistncia sugere) no
pode ser aquele que no faa mais do que reagir capacidade diferencial de
presso dos diversos interesses. E a prpria concepo contempornea de
cidadania, como tenho ressaltado muitas vezes, contm tanto a dimenso
civil de autonomia e auto-afirmao quanto a dimenso cvica do
sentimento de solidariedade e de responsabilidade social. Subsiste, contudo, o
problema analtico e prtico de como obter que o estado, que sim tende a ser
diferencialmente sensvel aos interesses privados e aos recursos de poder quecontrolam, adquira a adequada sensibilidade social, bem como a disposio e a
capacidade para exercitar com xito a solidariedade e o paternalismo
necessrios.
Se pomos de lado a revoluo socialista, tal como sonhada por setores
de esquerda nas turbulncias da histria poltica da maior parte do sculo 20 e
que, tendo se mostrado invivel mesmo durante a Guerra Fria, as novas
condies mundiais eliminam como opo real (sem questionar at que ponto
ela seria realmente desejvel, questionamento que a experincia do sculo 20
com o socialismo tambm autoriza...), resta, por exemplo, o que sugerido
pela perspectiva de Abram de Swaan em In Care of the State: as polticas
sociais podem acabar por surgir como imperiosas do ponto de vista dos
interesses das prprias elites, e o dilema de ao coletiva em que as elites se
vem envolvidas em torno de quem arcar com os custos dessas polticas pode
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eventualmente resolver-se na medida em que os custos da inao se tornem
grandes demais para elas mesmas. Assim, no Brasil de hoje marcado pelas
grandes concentraes urbanas, a intensa exposio geral aos meios de
comunicao de massas, especialmente a televiso, e a substituio gradativa
da psicologia conformista prpria da sociedade de castas pela difuso dosentimento de injustia , a supresso, nas novas condies, da feio
diretamente marxista do nosso problema constitucional insatisfatoriamente
resolvido no impede que ele se afirme numa nova face hobbesiana, com a
exploso da violncia e a insegurana que aos poucos penetra o pas como um
todo e se torna uma ameaa para todos, incluindo, naturalmente, as elites, e
um embarao importante para a prpria dinmica econmica (veja-se o
esvaziamento econmico por que tem passado o Rio de Janeiro, de que a
violncia sem dvida uma das razes). Por outro lado, com todas as suasprecariedades no caso brasileiro e seu componente de populismo e
manipulao, o processo poltico-eleitoral pode dar origem a experincias
como a do acesso de um PT ao poder, com o que, bem ou mal, esse acesso
tem de inegavelmente positivo. As limitaes do eleitorado com certeza
tornam infundadas tanto as tentativas de caracteriz-lo como ideolgico no
melhor sentido da palavra (exemplificadas recentemente num livro equivocado
e metodologicamente deficiente de Andr Singer, Esquerda e Direita no
Eleitorado Brasileiro) quanto a pretenso de ver na eleio de Lula o apoiopopular para polticas radicais e possvel mesmo sustentar, como tenho
sustentado, que o xito eleitoral do PT consequncia, em boa medida, dos
prprios fatores e deficincias que fazem do populismo, h muito tempo, um
trao importante do quadro poltico brasileiro. Mas isso no impede de
enxergar o que h de singular e positivo no esforo de construo institucional
no campo partidrio que se tem com o PT, bem como o compromisso social
mais intenso que se acha envolvido nesse esforo e que torna o partido, e os
governos que ele comande, alvo de maiores cobranas no plano dos resultados
sociais. Provavelmente temos a razes para esperar que se venha a ter
avanos potencialmente relevantes nesse plano, no obstante as dificuldades
de vrios tipos, incluindo inexperincia e sectarismos, e o complicado
aprendizado necessrio para que se possa eventualmente ter a superao da
perplexidade apontada antes.
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Creio que possvel encerrar com algumas ponderaes. A primeira a
de que, apesar da nota positiva contida no que acabo de dizer sobre o PT e umgoverno petista, preciso evitar a iluso de que possamos ter no curto prazo,
ou em um ou dois mandatos de qualquer presidente, a soluo real dos nossos
problemas sociais, ou a realizao mais plena dos direitos sociais. Ao contrrio,
sou da opinio de que o nosso problema constitucional continuar sem ser
resolvido adequadamente no futuro visvel, e de que precisamos encar-lo,
dado o peso da nossa herana social negativa, com perspectiva de tempo
necessariamente larga.
Um aspecto crucial que se liga a isso , naturalmente, o das relaescomplicadas entre poltica social e poltica econmica. Acho que a prpria
trajetria brasileira, em que o grande dinamismo econmico do ltimo sculo e
pouco de nossa histria redunda na continuao da desigualdade e da pobreza,
mostra os limites da perspectiva que se costuma atribuir a respeito ao
presidente Fernando Henrique, para quem (apesar do xito relativo de algumas
iniciativas na rea social) poltica social seria questo de poltica econmica: os
resultados da poltica econmica executada com sucesso terminariam por
escorrer para baixo e beneficiar aos mais carentes. Diferentemente disso,sem dvida precisamos de polticas de orientao propriamente social, que,
alm de atender s urgncias envolvidas em certas carncias mais bsicas,
tratem de compensar em alguma medida as desigualdades herdadas e de
neutralizar ou reduzir as distores da dinmica mercantil espontnea do
capitalismo. Ou seja, precisamos, sim, do paternalismo de que se falou antes.
Contudo, se no quisermos depender indefinidamente desse paternalismo e
mesmo de suas formas assistencialistas mais precrias, a poltica social no vai
poder se fazer simplesmente margem da dinmica econmica, e preciso
contar tambm com poltica econmica realista, sem a qual no vamos ter
incorporao social consistente e efetiva. E como juntar essas duas coisas
talvez o ponto decisivo da perplexidade que todos compartilhamos na
conjuntura atual.
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Outra ponderao a de que, na impossibilidade de um keynesianismo
ou uma socialdemocracia transnacional no horizonte que se pode descortinar
e enquanto no vem o governo mundial, ou o equivalente funcional mais
efetivo do estado nacional na escala transnacional ou planetria , no h
como escapar do reconhecimento da necessidade de solidariedade nacional,ou de algum tipo de nacionalismo, na execuo da juno eventualmente
adequada de poltica econmica e poltica social. Obviamente, sempre foi
necessrio ver com reservas o nacionalismo, mesmo o clssico nacionalismo
econmico brasileiro de algum tempo atrs, e essas reservas se impem com
muito mais razo no mundo atual da globalizao e seus correlatos. Mas trata-
se aqui de realar que no h como pretender dispensar o instrumento de
solidariedade e organicidade representado pelo estado nacional, e se as
condies trazidas pela globalizao se opem a isso, tanto pior: precisoresistir e tratar de reforar o estado nacional at porque a atuao dos
estados nacionais, com toda a sua debilidade (que naturalmente maior ou
menor em diferentes casos, o que parte do problema que defrontamos,
apontando para a face imperial da globalizao atual), indispensvel no
prprio esforo de construo de instituies efetivas na escala transnacional,
onde a possibilidade de avanos, bem ou mal, se ilustra com alguns xitos
recentes de pases como o Brasil no mbito da Organizao Mundial do
Comrcio, por exemplo.Seja como for, a reafirmao do papel do estado se ope no s
desqualificao dele que se encontra entre os adeptos mais fervorosos de
certa ortodoxia neoliberal (ou do fundamentalismo de mercado, como tem
sido chamado). Ela se ope tambm concepo idealizada de uma
sociedade civil ou um terceiro setor supostamente composto de agentes
dotados de motivao cvica e altrusta, cujos defensores com frequncia vem
o estado sob uma luz negativa e propem a idia de que os agentes da
sociedade civil venham, em ampla medida, a substituir o estado. Essa
concepo tem afinidades com a tendncia de vrios analistas brasileiros a
desqualificar o desenvolvimento da cidadania no pas pelo papel cumprido no
processo pelo estado, o que referido por expresses como estadania ou
cidadania regulada, como se a construo e o aparelhamento adequados do
estado no fossem essenciais cidadania em toda parte, at para permitir a
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regulao e o controle democrtico do prprio estado. A idealizao corrente
da sociedade civil comete erros parecidos, tendendo a esquecer que os
atores coletivos que a compem apresentam em comum com os agentes do
mercado o seu carter disperso e a busca de objetivos mltiplos e
eventualmente antagnicos. E o fato de que esses atores se percebam comobuscando no seu interesse prprio, mas alguma forma de bem pblico,
pode ser antes um fator de rigidez e intolerncia (em contraste com o
pragmatismo dos interesses e a postura tolerante que ele favorece na
sociedade autenticamente pluralista), tornando a regulao e o controle pelo
estado talvez at mais necessrios.
Mas h um complemento indispensvel, que introduzo como a
ponderao final. Trata-se de sustentar que o objetivo ltimo a ser buscado
fatalmente, tudo somado, alguma forma de socialdemocracia. E a razo paraessa recuperao da socialdemocracia que ela que melhor permite o
equilbrio entre a autonomia dispersa do mercado e a regulao e a
interveno orientadas solidariamente (incluindo o paternalismo) por parte do
estado. Se voltamos a Fritz Sharpf e defesa por ele feita da redistribuio da
propriedade, supostamente em contraste com o recurso ao estado, possvel
observar que o estado indispensvel at mesmo para redistribuir
propriedade. Mas a ateno para a necessidade de buscar o equilbrio que
acabo de mencionar leva a que se saliente com clareza que se trata, sim, defazer mercado, ou seja, de assegurar espao para a afirmao de
autonomias que so, no limite, autonomias individuais afirmao na qual,
naturalmente, os indivduos so livres para, numa sociedade necessariamente
pluralista, se associarem seja em agrupamentos e ONGs de natureza variada,
seja em iniciativas relativas ao plano econmico, que no se pode pretender
excluir do exerccio da autonomia civil sem na verdade inviabiliz-la: intil
a fantasia de que venhamos a ter gente autnoma se comearmos por priv-la
da possibilidade de agir autonomamente na decisiva esfera econmica. Por
outras palavras, o recurso ao mercado no se impe somente em nome do
realismo e da percepo das dificuldades quanto realizao de um ideal
socialista, mas tambm em nome da realizao de valores autnticos.
oportuno lembrar, a respeito, a retomada recente do tema do socialismo de
mercado por autores que, empenhados em se manterem fiis ao que h de
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melhor no ideal socialista e conscientes das distores contidas na experincia
do socialismo real do ltimo sculo, se do conta de que no possvel
prescindir do mercado. Um exemplo relevante o de John Roemer em A Future
for Socialism, de 1994, que inclui entre as idias centrais a de um socialismo
em que empresas regidas por formas flexveis de propriedade, mas baseadasna distribuio e permanente redistribuio pelo estado de ttulos que no
poderiam ser herdados, seriam geridas de maneira competitiva por
administradores contratados, tal como ocorre atualmente com as grandes
corporaes privadas do capitalismo. Note-se, porm, como o exemplo de
Roemer ilustra tambm no no que tem de bom, mas em certa deficincia
importante a outra face da medalha. Se o estado necessrio at para
redistribuir moderadamente a propriedade, como acabo de sustentar a
propsito das anlises de Fritz Sharpf, que dizer quando essa redistribuio sefizesse visando a substituir o capitalismo pelo socialismo de mercado? A
deficincia de Roemer a que me refiro diz respeito a que as dificuldades
envolvidas na indispensvel ao (revolucionria...) do estado exigida pela
eventual implantao do socialismo de mercado so omitidas, o que torna
irrealistas os supostos sobre os caminhos a serem percorridos para essa
implantao. Basta assinalar que o Brasil visto por Roemer como exemplo de
pas em que, com a vitria eleitoral do PT na disputa da Presidncia da
Repblica, seria possvel esperar a colocao em prtica de um programa desocialismo de mercado...