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8/18/2019 Poderes de Antecipação, sobre Polanyi
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Estudo sobre os Poderes de
Antecipação,em Polanyi
“At some point we shall find ourselves with no other
answer to queries than to say «because I believe so».”
Polanyi
“Different vocabularies for the interpretation of things
divide men into groups which cannot understand each
other’s way of seeing things and of acting upon them. For
different idioms determine different patterns of possible
emotions and actions.”
Polanyi
“Consider that the Copernican revolution was but a
continuation of a structuring [of reality] that had its
origins in antiquity.”
Polanyi
Trabalho realizado por:
Luís Filipe Fernandes Mendes,
Mestrando de Filosofia,
área de especialização em Filosofia Geral,
para a disciplina de:
Questões de Filosofia do Conhecimento
Docente:
Professora Doutora Luísa Couto Soares
25-06-2013
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Resumo:Para Polanyi a ciência é uma actividade na qual a pessoa está
envolvida como um todo. O cientista também é uma pessoa. Todas
as pessoas precisam de crenças para viver. Não se vive sem crenças.
Ninguém tem como tomar consciência de todas as suas crenças.
Nunca se está em situação de poder julgar livre de preconceitos. E,
se tal fosse possível, não se teria como sabê-lo. Seja qual for o
sistema de crenças que se possua, não foi racionalmente adquirido.
O processo racional é sempre posterior à crença. A crença é anterior
e fundamento. Não se pode fundamentar as crenças fundamentais –
são estas que fundamentam. Polanyi desenvolve um processocrítico incisivo, profundo, alargado, sem medos, sem
complacências. E vai para além disso. Assume os problemas. Não
os assumir seria manter a ilusão da mente virgem, a ilusão de que o
acesso é neutro, a ilusão de que se pode aceder a um núcleo de
dados virgens. O autor deste trabalho procura perceber como é que
Polanyi pode fazer um diagnóstico do humano aparentemente tãocatastrófico e não colapsar qualquer possibilidade do homem fazer
ciência, adquirir conhecimento, fazer caminho no mundo e, como
pessoa, procurar consumar-se numa visão global coerente, com
sentido e responsabilidade. Neste sentido, o autor deste trabalho
concentra os seus esforços em mostrar a resposta de Polanyi para a
situação constitutiva do humano no contexto dessa descriçãoaparentemente catastrófica – que o próprio Polanyi esboça e
aprofunda com uma acuidade e lucidez raras sem se deixar
amedrontar. Parece, pois, que só assumindo se pode superar.
Palavras-chave: antecipação, ciência, compromisso, crença, descoberta, pessoa, realidade, regime de sentido, responsabilidade, sentido.
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Índice
Resumo: ............................................................................................................................................ ii
1. Introdução ..................................................................................................................................... 1
§1. A teoria como hipótese .................................................................................................... 1
§2. Uma crítica à crítica ........................................................................................................ 2
§3. O mito do homem nu ....................................................................................................... 8
2. Os poderes heurísticos e o problema da descoberta ................................................................... 10
§1. A não indiferença do cientista........................................................................................ 10
§2. A questão do problema: o que é um problema? .............................................................. 11
3. Antecipação ................................................................................................................................. 12
§1. Um sentido adicional ..................................................................................................... 13
§2. Verdadeiro e Real.......................................................................................................... 14
α – Life, Danger and Commitment ........................................................................ 15
β – Crença e compromisso .................................................................................... 17
γ – A realidade ...................................................................................................... 18
§3. Structuring reality… ...................................................................................................... 20
4. Conclusão .................................................................................................................................... 25
Bibliografia/Webgrafia: ................................................................................................................. (a)
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1. Introdução Neste trabalho pretendemos estudar a noção de poder de antecipação, segundo Polanyi. Dada
a complexidade do que aqui está em causa o nosso estudo será parcial. Antes de mais, convém
esclarecer que não iremos discriminar os poderes de antecipação, ou as várias funções que estão em
causa no poder de antecipação, e estudá-las independentemente. Ser-nos-ia impossível realizar tal
tarefa. Na verdade, comprometemo-nos com um propósito bem mais limitado: estudar a primeira
conferência de Polanyi, na Duke University, em 1964.
A conferência em causa procura identificar os poderes antecipatórios e distingui-los do
conteúdo explícito de uma teoria científica. Por aqui já se vê que o âmbito do nosso trabalho estará
delimitado pelo contexto da história da ciência e por problemas de carácter epistemológico. Na
ciência estão envolvidas as noções de verdade e realidade de uma forma que não parecem estar na
vida do dia-a-dia do comum dos mortais que não são cientistas ou que, sendo-o, têm uma vida para
além da investigação. Assim, começaremos por uma contextualização do problema. Nessa primeira
parte procuraremos ganhar instrumentos para perceber o problema da antecipação em Polanyi. O
que tentaremos mostrar é que, ao contrário do que talvez esperássemos de um homem que vem da
Ciência fazer Filosofia, Polanyi tem um olhar bastante aguçado para os problemas filosóficos. O
nosso objectivo é mostrar que Polanyi não ignora os problemas associados às noções de verdade e
realidade e ao confinamento próprio do ponto de vista humano. Apresentar o tipo de respostas que
Polanyi apresenta sem uma apresentação da problematização prévia ao estabelecimento dessas
respostas poderia induzir em erro deixando parecer que Polanyi não viu os muitos e árduos
problemas em que se envolveu.
Depois seguiremos o plano traçado por Polanyi na conferência citada acima. Abordaremos o
problema da descoberta – o problema dos problemas procurando trazer à luz o problema da
antecipação na ciência. Finalmente, debruçar-nos-emos especificamente sobre a antecipação –
sobre o poder de antecipação procurando mostrar que Polanyi fez mais do que pensar a ciência ou
os problemas epistemológicos: ele tomou-os no contexto da pessoa humana na sua luta por sentido.
§1. A teoria como hipótese
Polanyi considera três posturas metafísicas relativamente à ciência. A de Osiander, a dos
positivistas e a de Copérnico.
Osiander sustentava que a ciência (astronomia) poderia apenas propor hipóteses de acordo
com as observações, como fundamentos para os cálculos. Estas hipóteses não precisariam de ser
verdadeiras nem prováveis. Da mesma forma, os positivistas olhavam para a ciência como uma
“convenient functional relation between observed data”1. Pretendiam retirar à ciência toda a
1 D1., p. 1. Cfr. p. 3: “Osiander’s attack on the views of Copernicus coincides with the positivist view that a scientific theory is but aconvenient description of observed facts.”
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pretensão metafísica. Segundo Polanyi, os medievais coincidem com os positivistas neste aspecto,
no entanto, enquanto os primeiros apenas consideram que não compete à ciência falar da realidade
metafísica2, os segundos rejeitam qualquer pretensão metafísica. Quer dizer, os positivistas
pretendem estabelecer um discurso científico indiferente à metafísica porque consideram que
qualquer afirmação nesse âmbito é vazia e confusa. Os medievais, pelo contrário, não rejeitam ovalor da metafísica nem a sua possibilidade, apenas consideram que não é à ciência que cabe
estabelecer o que é a verdade. Esta função seria mais adequada à Filosofia ou à Teologia. É neste
contexto que se compreende que Paul Duhem tenha declarado que foram o Cardeal Bellarmino e
Osiander que perceberam o significado preciso do método experimental: não se trata de determinar
o que é verdade, ou o que deve ser compreendido como real, mas apenas de preservar a observação
dos fenómenos em hipóteses ou, o que é o mesmo, estabelecer teorias científicas que descrevam
convenientemente os factos observados.Convém indicarmos aquilo a que Polanyi se refere quando fala de metafísica. Segundo ele,
quando alguém pretende estar a dizer algo acerca da realidade e o assume verdadeiro, então tem
uma pretensão metafísica. Neste contexto, Polanyi concorda com Copérnico e com os seus
seguidores. Copérnico reivindicava que o seu sistema era verdadeiro e não apenas uma hipótese
(adequada às observações, ou ao que alegava serem os factos) a partir da qual se poderiam fazer
cálculos. Polanyi concordava com os positivistas, segundo os quais Copérnico tinha pretensões
metafísicas, mas também concordava com os medievais que defendiam que as pretensões
metafísicas são essenciais ao verdadeiro conhecimento. Copérnico e os seus seguidores estavam
certos ao ter pretensões metafísicas. Segundo Polanyi, a ciência é e deve ser um discurso racional
que pretende proferir verdades sobre a realidade: não apenas hipóteses.
§2. Uma críti ca à crítica Deve ser sublinhado que Polanyi está a demarcar-se de uma certa epistemologia que considera
o progresso científico a partir da dúvida ou da procura de refutação3
. É neste contexto que se refereexplicitamente a Popper, a Russel, a Mill e a Kant4. Polanyi está claramente a sustentar que a
dúvida ou a refutação de um princípio ou de um axioma só podem ocorrer a partir de um
determinado sistema de convicções5. Um sistema de convicções mantém uma coerência interna que
lhe permite livrar-se de afirmações ou de convicções que possam ser incoerentes com o todo. A
dúvida, neste contexto, significa apenas que já se tem um regime de sentido, isto é, um regime de
2
D1., p. 3.3 D1., pp. 20-21.4 Cfr. PK ., pp. 283-292. 5 PK., p. 311: “So long as the reconsideration of any single belief is undertaken against an overwhelming background ofunquestioned beliefs, the beliefs forming this background cannot simultaneously be alleged to be doubtful. Though every element ofour belief can conceivably be confronted in its turn with all the rest, it is inconceivable that all should be subject simultaneously tothis operation”.
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detecção do que é duvidável ou não. Um sistema construído a partir de certos princípios
fundamentais corresponde – isto é – determina um critério. É deste sistema coerente que a dúvida
emana e é proferida sobre aquilo que não está de acordo com esse sistema (ou com o resto do
sistema). Pode-se sujeitar à dúvida esta ou aquela crença particular – mas não todo o sistema. Quer
dizer, é possível duvidar de um sistema todo se se habita outro sistema.Duvidar de uma afirmação significa que se quer refutar a crença que essa afirmação exprime –
a favor de outras crenças que se assumem como não dubitáveis 6. Contudo, em qualquer sistema
dado verifica-se que “all fundamental beliefs are irrefutable as well as unprovable”7. Vendo bem,
prossegue Polanyi, o teste da prova ou da refutação é irrelevante para aceitar ou rejeitar crenças
fundamentais: a prova ou a refutação produzem-se nestas crenças que funcionam como critérios
perante os quais se leva os réus a prestar provas8. A circularidade é inevitável. As crenças
declaradas explicitamente pelo próprio apenas podem ser tidas por verdadeiras devido à aceitação prévia de um determinado conjunto de “deeply ingrained convictions” – em última análise
determinadas pelo idioma. Quer dizer, o regime de sentido é determinado por crenças mais
profundas do que aquelas que podemos facilmente identificar e apontar. É constituído por “implicit
believes”, sistemas de crenças inerentes ao quadro conceptual, que se reflectem na linguagem e que
não são imediatamente notificadas pelos próprios sujeitos9. Tem-se sempre um regime de sentido
em funcionamento: “an articulate framework as a dwelling place”. Neste contexto, a única dúvida
que realmente abarca o regime de sentido que se habita é a hesitação tácita: a que um poeta sente
ao hesitar num verso, ou um crente hesitante face às palavras “ Deus existe”.
Quando se pretende que não se acredita naquilo que não possa ser provado apenas se está a
esconder as crenças que já se tem. Polanyi faz notar que aqueles que admitem que não podem
provar as próprias conclusões pretendendo com isso sustentar uma imparcialidade – na verdade
apenas escamoteiam que não têm provas que as suportem. Pretendem assim sustentar uma estranha
imparcialidade por oposição à subjectividade daqueles que sustentam apenas as suas convicções
pessoais, contudo, com essa pretensão apenas disfarçam a convicção pessoal para além da qual não
têm provas.
Na verdade, a dúvida é apenas uma forma de crença, de aceitação, de afirmação. A recusa de
uma crença é a admissão do seu contrário: “‘I doubt p” significa “I believe not- p”; ou então é a
admissão de que não se tem fundamento para escolher entre uma crença e a sua contrária : “I believe
p is not proven”. Seja como for, a diferença entre “ p” e “not- p” é uma matéria de facto: em ambos
6 PK ., pp. 286: “doubting of any explicit statement merely implies an attempt to deny the belief expressed by the statement, in favour
of other beliefs which are not doubted for the time being”. 7 PK ., p. 285.8 Cfr., p. ex., PK ., p. 308. A teoria da teoria da dissociação eletrolítica, proposta em 1887, desde início registou dados discrepantesnas observações cuidadosamente anotadas pelos cientistas. No entanto, só em 1919 essas discrepâncias foram interpretadas comorefutações: o próprio Polanyi se lembra de ter ficado admirado quando ouviu a ideia de que tais observações contradiziam a teoria de1887.9 Cfr., PK ., p. ex., 302-305.
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os casos se afirma algo, ou “ p” “not- p”. Quando se suspende a crença em “ p” (afirmando que não
está provada ou não pode ser provada), suspende-se também “not- p”, de tal modo que não há, na
verdade, fundamento para aceitar ou rejeitar nem “ p” nem “not- p”. Quer dizer, mesmo que esta
indecibilidade pudesse ser provada isso apenas significaria que ambas poderiam ser aceites e a
decisão posterior por uma de entre ambas apenas significaria que outras razões, independentes dademonstração, teriam sido decisivas. A suspensão de uma crença é, também, uma tomada de
posição: por “not- p” que, se de facto derivasse de uma falta de prova relativamente a “ p”, apenas
significaria que se usara essa mesma falta de prova para admitir “not- p” – no limite, a generalização
deste procedimento, permitiria aceitar qualquer proposição compatível com “not- p”10.
Quer a refutação quer a suspensão preservam sub-repticiamente um conteúdo fiduciário –
quer dizer, um sistema de teses em que se confia e que estão em vigor suportando a acção (e a
decisão). Mesmo a suspensão agnóstica exige um regime de detecção do que é afirmável . Afirmar“I believe p is not proven”, ou “not provable” implica – quer dizer: só é possível na vigência de –
um regime de sentido (“framework”), o qual não é ele mesmo indubitável – embora a pessoa em
causa não desconfie dele – dentro do qual “ p” pode ser dito “proven or not-proven, provable or not-
provable”. Quando desconsideramos as evidências relativamente à astrologia ou rejeitamos a
veracidade dos horóscopos, isso acontece porque acreditamos que a visão científica poderá fornecer
uma explicação, segundo a qual, essas evidências astrológicas são afinal apenas acidentais. Esta
postura pode ser considerada como imparcial – mas o decisivo é compreender que ela é imparcial
apenas porque, tendo um critério, pode desconsiderar o que não é coerente com o seu próprio
conteúdo fiduciário. Este conteúdo fiduciário de suporte, no qual se confia, não é necessariamente
percebido. Ora, o que Polanyi está a dizer não é que o método da dúvida tem sido posto em
funcionamento ao longo da história da ciência e agora deve ser mudado. Não. Polanyi está a dizer
que esse método nunca foi, de facto, o que pretendeu ser. Mas não é só isso. Na verdade, o método
da dúvida, levado a sério, seria impossível de ser posto em prática11. Neste contexto, Polanyi chama
a atenção que não é a dúvida que faz avançar a ciência. Pelo contrário, a defesa enfática do método
da dúvida escamoteia que é sempre aquilo relativamente ao qual não se tem dúvidas que está
envolvido no avanço da ciência. A dúvida é, afinal, apenas marginal e o progresso científico tem
mais que ver com o relaxamento do método da dúvida, do que com a sua aplicação exaustiva.
O mito da imparcialidade permite pensar (mantém a ilusão) que o regime de sentido cada vez
constituído está livre de pressupostos. De cada vez que se abandona uma evidência e esta passa a
ser vista como superstição, na verdade já se tem outro critério de evidência que, por isso mesmo,
desconsidera as crenças diferentes12. Polanyi dá o exemplo da luta das crenças científicas contra as
10 PK ., pp. 287-288.11 Polanyi diz isto explicitamente em PK., p. 283: “I do not say that during the period of critical thought this method has been always,or indeed ever, rigorously practised —which I believe to be impossible […]”. 12 Cfr. ARENDT (1978), pp. 54-57: “Science in this respect is but an enormously refined prolongation of common -sense reasoning,[…]. The criterion in both cases is evidence which as such is inherent in a world of appearances. And […] every correction an d every
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crenças sobrenaturais durante os séculos XVII e XVIII. Poderíamos ser levados a crer que esse
movimento céptico estava, de facto, livre de preconceitos e que era totalmente razoável. Mas esta
ilusão dura apenas até percebermos os seus erros – os quais estavam fundados num conteúdo
fiduciário, tal como aqueles que praticavam artes sobrenaturais. Polanyi diz isto explicitamente:
permanecemos cegos para o conteúdo fiduciário do movimento céptico dos séculos XVII e XVIIIenquanto eles fazem os mesmos julgamentos que nós faríamos. E só quando notamos que eles
cometeram erros nos apercebemos que também eles tinham um conteúdo fiduciário13. Aquilo que é
considerado evidência (ou não) depende do regime de sentido que se tem14. Mas nós olhamos os
actos de cepticismo desses cientistas a partir das nossas próprios crenças, de tal modo é assim que
apenas os consideramos pouco razoáveis quando são incompatíveis com a nossa visão científica do
mundo.
A identificação de um erro num determinado regime de sentido passado não nos deve criar ailusão de que nós próprios estamos desprovidos de crenças15. Nós não estamos constituídos num
ponto de vista neutro relativamente a qualquer conteúdo fiduciário. De tal modo não estamos livres
de crenças que também as nossas dúvidas se poderão revelar, um dia, tão arbitrárias (“wanton”),
intolerantes e dogmáticas quanto aquelas de que nos livrámos. E isto é um aspecto a reter da análise
da dúvida: nela mesma está pressuposto um conteúdo fiduciário que se pode manter e permanecer
em funcionamento sem chamar a atenção para si, de tal modo que parece resultar de uma
imparcialidade (uma pessoa julga-se imparcial), mas esta presunção está fundada numa miopia
constitutiva do próprio ponto de vista. Quer dizer, a dúvida aponta para o agreiro no olho do
vizinho na medida em que está desprevenida (“unaware”) da trave no seu próprio olho.
A imparcialidade não é um mito se a entendermos como indiferença. De facto, os cientistas
mantêm-se indiferentes a um conjunto significativo de dados e de resultados experimentais –
simplesmente porque esses dados estão desenquadrados com o conjunto coerente de crenças que os
cientistas têm em funcionamento. Desta forma, certos dados registados em observações podem ser
completamente ignorados durante algum tempo até que a alteração dessas crenças permita a
integração desses dados.
dis-llusion «is the loss of one evidence only because it is the acquisition of another evidence», in the words of Merleau-Pointy. Nothing […] guarantees that the new evidence will prove to be more reliable than the discarded evidence. […] No matter how fartheir theories leave common-sense experience and common-sense reasoning behind, they must finally come back to some form of it[…]”. Quer dizer, enquanto se muda aquilo que se aceita por evidente, na verdade continua-se a não desconfiar da evidência comocritério: em cada caso aceita-se aquilo que parece evidente sem desconfiar que seja precisamente nisso que possa residir o erro. Ou,dito de outra forma, o cientista julga corrigir o defeito do olho ao utilizar o microscópio, mas tem de usar o olho para ver através domicroscópio. Se levasse a sua desconfiança a respeito do olho a sério, então teria de admitir que não sabe que tipo de correcção é preciso introduzir nas lentes para ver as coisas como elas são. De resto, o olho poderia enganá-lo também através do microscópio.Assim, a ideia de que se pode ver sem ser a olho nu é uma ilusão.13
Polanyi está, provavelmente, a referir-se a homens como Kepler, Newton ou outros que, como se sabe, também defendiam, porexemplo, a astrologia ou a futurologia a partir da interpretação bíblica.14 PK ., pp. 289-90: “When the medical profession ignored such palpable facts as the painless amputation of human limbs, performed before their own eyes in hundreds of successive cases, they acted in a spirit of scepticism, convinced that they were defendingscience against imposture”. 15 PK ., p. 290: “But other doubts, which we now sustain as reasonable on the grounds of our own scientific world view, have oncemore only our beliefs in this view to warrant them”.
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A situação do cientista é tal que não há nenhuma regra que lhe possa indicar qual o caminho
que será corajoso ou teimosia, não tem nenhum critério (senão as suas próprias crenças) – no
momento em que decide – que lhe permita distinguir entre a dúvida justa ou a dúvida dogmática. De
facto, há já sempre um conhecimento prévio, tácito, que determina o que é tido por certo à partida,
que estipula o que é relevante e o que é irrelevante, e que, desta forma, estabelece o que deverá sertido como prova. Esta circularidade fornece um regime prévio de compreensão para qualquer
experiência possível – e isto de tal modo que o regime é irrefutável. As condições de interpretação
já estão dadas por uma compreensão prévia, estipulada, sedimentada no sistema de crenças. Assim,
na verdade, pensa-se dentro do regime que se habita16 . Qualquer novo acontecimento apenas
confirmará o regime detido. Dentro de um regime está-se cego para a compreensão que se torna
possível a partir de um outro regime. Polanyi exemplifica com o caso dos Azande17: “they have no
other idiom in which to express their thoughts”. Aquilo que, para um Europeu, é uma evidênciacontra o regime de sentido Azande, será perfeitamente integrado por um conjunto de teses
secundárias e explicativas. A contradição entre uma crença e uma experiência é simplesmente
explicada por outra crença. A circularidade acaba por aumentar a confiança no próprio regime. Ora,
nós tendemos a explicar imediatamente o caso Azande a partir da sua cegueira para os factos. Eles
têm, de facto, uma confiança ingénua no seu idioma. Mas Polanyi nota que o nosso objectivismo
está repleto do mesmo tipo de crenças implícitas – tal como os Azande. E, tal como eles, o nosso
objectivismo pode permanecer igualmente cego para qualquer possibilidade de refutação. Polanyi
dá o Marxismo e a Psicanálise como exemplos.
Aquilo que está em causa aqui é um poder de antecipação do regime de sentido que lhe
permite assimilar cada nova experiência (“powers of [the] framework for assimilating the next case
which will come under its purview”). De facto, os casos possíveis da experiência estão de cada vez
determinados18. Não se trata de nenhuma incompetência da razão. Polanyi cita Evans-Pritchard:
“[Azande] reason excellently in the idiom of their beliefs” 19. A razão opera, pois, uma vez dados os
termos em que a operação deve dar-se. Mas isto não significa que não ocorra uma contínua
adaptação. O regime de sentido em funcionamento antecipa cada evento, até certo ponto novo e
sem precedentes, e, até certo ponto, adapta-se a ele, assimilando-o e enriquecendo-se 20. A
16 Ver o caso relatado em PK ., p. 306 : “The accusation appears quite natural to the soothsayer who formulates it, the prince whoorders the trial by ordeal, the crowd of bystanders and to K. himself who had been transformed into a lion, in fact to everybodyexcept the European who happens to be present”. É verdade que “[i]t is clear to us that K. had not actually experienced turning into alion and tearing S. to pieces”. O próprio começou por recusar as acusações, contudo, “confronted with an overwhelming case againsthimself” (ele próprio não acreditava na morte acidental, mas acreditava no oráculo que o denunciava), não pôde resistir às evidências e acabou por confessar ter-se transformado num leão.17 Cfr. PK., pp. 302 ss.18
Cfr. KANT (1988), p. 175-176 (nota à p. A204): “a palavra transcendental […] não aponta para o que ultrapassa toda aexperiência, mas para o que certamente a precede (a priori), com o único fim de tornar possível simplesmente o conhecimentoexperimental”. Os transcendentais ditam as condições da experiência.19 PK ., p. 303.20 Cfr. PK., pp. 108-109. Haverá diferentes matizes nesta integração. Seja como for, compreender algo é incorporar , é integrá-lo notodo com sentido. O poder de antecipação é esta faculdade através da qual o caso particular novo se torna parte de um todo previamente detido.
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circularidade permite que o sistema se expanda de tal modo que tudo cairá sobre as suas
explicações. Neste contexto, falar de ilusão é enganador. As teorias científicas têm a mesma
forma21. Os regimes de sentido fornecem um conjunto de interpretações possíveis, um sistema de
ampliação de tal modo operativo que “will cover almost any conceivable eventuality, however
embarrassing”. Os Azande (tal como os cientistas dos séculos XVII e XVIII e, concebivelmente,nós próprios)22, negam “to any rival conception the ground in which it might take root”.
O regime de sentido é, portanto, internamente coerente e fornece as condições de prova, de tal
modo que estando em funcionamento continuamente se prova a si mesmo. Qualquer novo evento
cai sobre a regência das suas crenças: nenhuma experiência o pode contradizer – justamente porque
é o regime que fornece previamente as suas condições. Simultaneamente, ignora qualquer
fundamento ou regime de sentido que pudesse dar um sentido diferente àquilo que não tem medida
segundo o regime de sentido que se tem em vigor. Aquilo que não tem um lugar no sistema éignorado. Polanyi cita William James: “We feel neither curiosity nor wonder […], concerning
things so far beyond us that we have no concepts to refer them to or standards by which to measure
them”. Desta forma, o regime de sentido compreende um mecanismo de auto-defesa preservando a
sua estabilidade. A esta força de estabilidade Polanyi chama “measure of completeness”23.
Nós tendemos a rejeitar a “measure of completeness” Azande24. Substituímos as suas
superstições por explicações naturalistas. Parece-nos que somos mais cépticos. Mas há aqui um
problema que tem que ver com as nossas crenças25. Tudo aquilo que podemos apontar ao sistema de
crenças Azande, ao Marxismo, à Psicanálise, à ciência dos séculos XVII e XVIII, pode ser apontado
ao “system which we currently accept”. O nosso sistema nega sumariamente, ou simplesmente
ignora todas as experiências que não cabem na sua bitola ou que, por esse mesmo motivo, não têm
interesse científico. Dentro da ciência a estabilidade das teorias é mantida da mesma forma que os
Azande mantêm a sua superstição – mas o que a ciência ignora pode ser, para uma mente não-
científica, o mais massivo e vital . Segundo Polanyi, estas restrições da perspectiva da ciência – isto
é, do “objectivism”26 – foram o tema recorrente do livro Personal Knowledge.
21 PK., p. 307.22 Ibidem: “The behaviour of Azande […], illustrates the kind of contemptuous indifference with which we normally regard things ofwhich we have no conception”. De resto, segundo Polanyi, a ciência comporta-se com indiferença relativamente aos casos que a poderiam refutar: toma-os um por um apenas para explicar cada um deles.23 PK ., p. 308. Passa-se aqui o mesmo que com aqueles que caíam sob o poder do fruto de lótus: esquecendo tudo o que estava paraalém do fruto e esquecendo esse esquecimento, não sentiam nenhuma falta que não se satisfizesse, justamente, por aquilo que lhesestava imediatamente disponível – i.e., o fruto de lótus.24 É o velho dilema entre felicidade e completude. Se admitirmos que Ulisses busca apenas a felicidade em Ítaca (ou em Penélope), para quê abandonar a terra do fruto de lótus onde encontraria, justamente, a felicidade (sem poder dar conta da falta ou da dor doregresso)? Não terá sido a ilusão a fazer com que tenha abandonado a terra do fruto? Se quisermos dizer que a felicidade no fruto nãoseria a verdadeira felicidade, então o que a distinguiria desta? Mais precisamente: o que distinguiria a felicidade autêntica dainautêntica para aquele que está sob o poder do fruto?25
O regime de detecção do que (não é) superstição que usamos ao eliminar a superstição tem a mesma forma do regime ao qual seestá a chamar superstição. A única diferença é ao nível do conteúdo (fiduciário). Quer dizer: formalmente, não há nenhuma diferençaentre superstição e ciência. Cfr. PK ., pp. 308 ss.: “the stability of the naturalistic system which we currently accept instead rests onthe same logical structure”. 26 Com as devidas reservas, cfr. KANT (1997), B353. As aparências transcendentais (fundadas em princípios e juízos transcendentes)resultam de “regras fundamentais e máximas” relativas ao uso da “nossa razão”, de tal modo que “possuem completamente o aspec tode princípios objectivos”. Este aspecto é determinante na natureza racional da ciência. A ciência que se afirma objectiva poderia ser,
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Os mesmos dados podem ora ser tomados como evidências, ora ser ignorados – e isso não
devido aos dados, mas ao modo como a visão científica em vigor os explica ou não explica. Não
parece haver nada nos dados que os possa transformar em evidências. Parece que sim, mas não.
Nada nas coisas as prova – para dizer assim. Polanyi retira uma conclusão prática daqui: o cientista
não deve permanecer indiferente perante nenhuma pretensão que surja na sua área de conhecimento.Ao ignorar uma determinada interpretação (“claim”), na verdade já se decidiu quanto ao carácter
infundado dessa pretensão27. O decisivo é que pode acontecer que esteja apenas a ser guiado pelo
fechamento da perspectiva em determinados conteúdos fiduciários que ainda não se desocultaram –
isto é, que permanecem, desapercebidamente, a determinar as suas dúvidas e a sua compreensão.
Neste sentido, apenas quando uma pretensão cai completamente fora da investigação responsável
do cientista é que ele pode manter-se imparcial .
§3. O mito do homem nu
Não é possível suspender o todo das nossas crenças28. A dúvida por decreto – “universal
doubt” – não funciona, antes de mais, porque o conteúdo fiduciário não é um todo articulado
explícito. Uma dúvida universal só seria possível se se pudesse garantir que se tivesse explicitado o
conteúdo fiduciário inarticulado. Contudo, mesmo que isso fosse possível, não o poderíamos saber.
No limite, essa procura pelo homem nu – ou, como diz Polanyi – a procura por uma mente virgem
esbararia, finalmente, com a facto de o próprio acesso estar constituído de tal modo que envolveimplicações acerca das coisas que poderão estar erradas. Não é só o olho, o corpo, as determinações
fisiológicas, mas também a educação, a idade em que nos encontramos e até as condições externas –
tudo isto faz parte de um contexto, de um todo incorporado. “Its teachings are the idiom of his
thought”29. E o conhecimento dá-se neste contexto. É o homem todo (pessoa) que conhece. O
acesso é, portanto, um processo – ou melhor: o acesso consiste num processamento no qual estão
envolvidas diversas funções. E estas funções poderiam estar erradas: se estivessem, não teríamos
critério para sabê-lo. Visto que o acesso é um processo total da pessoa total, nunca saberemos comoé visto este preto aqui independentemente do olho, da luz ambiente, mas também da idade que
temos, etc. Na verdade, podemos nem nos importar com isso se nos morreu uma pessoa querida ou
uma dor de dentes nos amaldiçoa. Quer dizer, a mais nua forma de acesso (se tal nudez se pudesse
determinar) já implicaria um processo cujos trâmites nós desconhecemos, de tal modo que nos é
por isso, classificada como resultado da “necessidade objectiva da determinação das coisas em si”. Aqui podemos abdicar declassificar o resultado transcendental (isto é, aquilo que determina a priori as condições da experiência) como aparência ou não pois,como Kant explicitamente indica, a razão não tem nenhuma forma de refutar tais sistemas pretensamente objectivos – excepto setivesse suspendido a adesão: ora, é esta suspensão (admitida por Kant nos limites da razão pura) que Polanyi considera não ser, defacto, possível.23 Cfr. KANT (1997), BXXIII: “com respeito aos princípios de conhecimento, a razão pura 27 PK ., p. 291: “If he ignores the claim he does in fact imply that he believes it to be unfounded”. 28 PK ., pp. 311ss.29
PK ., p. 401.
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impossível determinar qual é a diferença introduzida pelo processamento 30: porque para isso seria
preciso, justamente, já ter tido acesso a um “core of indubitable virgin data”.
As dificuldades meramente esboçadas já permitem ver que o programa da dúvida universal
está votado ao colapso. Aquilo que se revela neste colapso é que toda a racionalidade está radicada
num conteúdo fiduciário31
.32
Ora, é neste contexto que, na nossa perspectiva, se insere ecompreende o nosso problema. Para provar um fundamento seria preciso sempre outro fundamento
– sem fundamento prévio não se tem como provar o que quer que seja se se exigir uma prova. A
busca por este conteúdo fiduciário, procurando torná-lo explícito, é coerente apenas porque
pressupõe as suas próprias conclusões33. Mas Polanyi não diz isto para rejeitar a circularidade: a
circularidade não pode ser rejeitada, ela está tanto na confiança dos Azande como na dúvida
cartesiana. A indagação está dependente do conteúdo fiduciário – e deve permanecer como tal.
Contudo, há diferença entre habitar uma tese sem saber e estar consciente dela. Segundo Polanyi,em vez de se pretender alcançar (ou pretender ter-se alcançado) uma imparcialidade que apenas
escamoteia a nossa verdadeira situação, deve-se indagar de forma intencionalmente circular. A não
admissão da circularidade da indagação corresponde à manutenção da mesma numa perspectiva que
permanece cega para as teses que habita tacitamente: permanece indiferente. A indagação tem,
portanto, a tarefa de ensinar o próprio sujeito a agarrar a sua crença: de tornar explícito, para si
mesmo, tanto quanto possível, o conteúdo fiduciário – sem jamais cair na ilusão de que está livre de
pressupostos ou num acesso virgem a um conteúdo virgem34. Isto não existe.
O homem pode ter sido criado nu, mas não é como tal que ele se encontra a si mesmo. Aliás, a
mente de uma “newborn child” seria incapaz de fazer o que é preciso. A tarefa de conhecer só pode
ser posta em marcha por mentes que já não são virgens, que já habitam um regime de sentido: a
ideia de uma “mind which could shape its judgment on all questions without any preconceived
opinions” é simplesmente enganadora. Polanyi acredita nas capacidades humanas mas não está cego
para os problemas que aqui estão envolvidos. A ssume-os e parte deles.
30 Não podemos, por motivos óbvios, desenvolver o assunto. Cfr., p. ex., Prefácio ao PK , p. 20: “We must always assume, therefore,that some trace of a hidden personal bias may systematically affect the result of a series of readings”. Não há como escapar destas“residual indeterminacies”. 31 PK ., p. 313. Polanyi diz explicitamente: “the programme of comprehensive doubt collapses and reveals by its failure the fiducia ryrootedness of all rationality”. 32 Neste sentido, é interessante notar a proximidade com Johannes Climacus, o pseudónimo de Kierkegaard (cfr. Johannes Climacusou De Omnibus Dubitandum est e Migalhas Filosóficas) que, tendo sido levado a crer pelos discursos dos seus professores que aFilosofia se havia de começar pela dúvida, percebeu que ela pressupõe uma tradição filosófica. A análise de Climacus é insistente: éconvencido pelos outros que o jovem cai na crença nas virtudes da dúvida. No entanto, os próprios professores parecem-lheconvencidos de que já alguém duvidou por eles, de tal modo que estão mais cheios de certezas do que ele. Como não sabe muitascoisas também não sabe como sair da dúvida se a levar a sério. Assim, duvidando é como se desmaiasse. Curiosamente, esta dúvida(diferente da dúvida como legado da tradição que se elogia e nunca se pratica) pode ser suscitada pelas coisas mais opostas: pode-se
discorrer sobre a dúvida e provocar a crença, pode-se discursar sobre a fé e provocar a dúvida. A crença e a dúvida são de tal modoque: se no momento em que se começa a prova, não estiver completamente decidido o que se pretende provar, então nunca se provará porque não se terá por onde começar. Mas ter por onde começar significa que já estava decidido. Não é a prova, mas a crença que pode provocar a adesão a uma tese.33 PK ., p. 315: “Any enquiry into our ultimate beliefs can be consistent only if it presupposes its own conclusions. It must beintentionally circular.” 34 PK ., p. 311.
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2. Os poderes heurísticos e o problema da descobertaPelo que dissemos, torna-se evidentemente problemático o progresso da ciência: cada sistema
parece estar dotado de mecanismos de fixação e estabilização. Então como é que um sistema
evolui? Polanyi é claro: isso não pode acontecer a partir dos factos, nem a partir de uma dúvida dos
sujeitos relativamente ao seu próprio regime de sentido (não podem pensar fora nem contra as suas
crenças)35. E, simultaneamente, como se pode defender a pretensão metafísica de uma teoria? As
evidências poderiam ser igualmente abalizadas sob um sistema diferente36. Segundo Polanyi,
Kepler e Galileu sentiram que o sistema de Copérnico deveria ser real , mas isso seria de esperar
também de qualquer Azande relativamente ao seu próprio sistema. Quer dizer: como podemos saber
que a conecção entre o sentimento “it must be real” e um determinado sistema não é acidental?37
Sabemos que a linguagem dos Azande não é de confiança no que respeita aos oráculos – e como
sabemos que o sistema de Copérnico é confiável relativamente ao lugar do Sol?38 Quer dizer: como
o poderiam saber Copérnico ou Kepler? Bem, foi ao confiar que o sistema heliocêntrico era real que
eles fizeram as suas maiores descobertas39.
§1. A não indiferença do cienti sta
Polanyi insiste: os seguidores de Copérnico não fizeram descobertas por duvidarem. Pelo
contrário, tanto Copérnico como Kepler sentiram que havia boas razões para que os planetas se
movessem em torno do Sol. Copérnico sentiu que a sua teoria era mais real, sentiu que havia boasrazões que sustentavam as crenças centrais (explícitas) da sua teoria. Confiou que os problemas
suscitados pela teoria heliocêntrica o encaminhavam para uma solução – e confiou nessa solução.
A busca não é desinteressada, nem imparcial . Sem interesse nenhuma busca ocorreria,
nenhuma ciência se faria. O cientista sente, acredita, está comprometido, empenha-se com um
comportamento, uma busca, uma solução (um remédio). A sua busca é focalizada – visa
explicitamente uma teoria. Quer dizer, o cientista poderia adoptar uma atitude completamente
diferente dessa: poderia, por exemplo, preservar-se numa perspectiva fechada de tal modo que não
concebesse nenhum problema ou, a concebê-lo, não aceitasse nenhuma resolução deles que
apontasse para uma revisão do sistema40. Pode-se conhecer uma teoria de um ponto de vista
puramente objectivo e histórico41.
35 Não podemos aqui analisar o confronto entre regimes de sentido diferentes, como quando dois sistemas científicos estão em vigor,ou duas culturas entram em confronto.36 D1., p. 4.37 D1., p. 4-5. Polanyi coloca explicitamente a pergunta.38
Cfr. TK ., p. 611.39 D1., p. 4.40 D1., p. 9: “ being wedded to an explanation of the planetary system in terms of steady circular motions, he would have absolutelyrejected Kepler’s Laws and Newton’s theory based on them.” Sublinhado nosso. 41 Cfr. KANT (1997), B863-865: podem ter-se na cabeça todos os princípios de um sistema de tal modo que se é mais uma cópia degesso do que um humano vivo. O problema da assimilação acrítica é complexo e não o podemos desenvolver aqui. Note-se, noentanto, que é preciso haver algum tipo de assimilação acrítica para que certas regras tácitas sejam apreendidas antes de se poder ser
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O cientista acolhe os problemas colocados pela teoria porque acredita que ela representa um
facto. Isto não indica uma suspensão. Os seguidores de Copérnico foram guiados pela teoria
heliocêntrica. Tanto assim que as suas descobertas só puderam ser concebidas precisamente na
vigência desse sistema42. E assim sucessivamente: foram as descobertas de Kepler e de Galileu que
tornaram possíveis os problemas com que Newton lidou e as descobertas a que ele chegou. Querdizer, há aqui uma integração progressiva de novas descobertas no sistema heliocêntrico, mas o
decisivo para o nosso estudo é que esse sistema colocava problemas que não estavam dados a ver
no sistema ptolemaico. Talvez nem fizessem sentido nele.
§2. A questão do problema: o que éum problema?
O problema da antecipação está relacionado com o problema dos problemas43. Quando
alguém está convencido de que sabe o decisivo não procura descobri-lo. Mas se sabe que o não
sabe, como poderá saber quando encontrou aquilo que procurava? Ou: como se pode saber que se
caçou uma lebre se nunca se viu uma lebre? Porque, aparentemente, não é igual caçar coelho ou
lebre. E como saber onde ir caçar a lebre? Mas se não se sabe como é a lebre, como saber se é uma
lebre que se quer caçar?
O problema que Polanyi pretende colocar é bem específico. Não se trata da pergunta relativa a
disposições de uma teoria. Nem se trata do problema que se pode resolver com as determinações
(explícitas) de um sistema. Nesse género de problemas, de facto, um conhecimento histórico e
objectivo bastaria, um erudito seria muito eficaz a resolvê-los. Pode-se conhecer muito bem todas asdeterminações de um sistema e – mais do que isso – habitá-lo e defendê-lo com empenho e estar-se
completamente cego para o tipo de problemas de que Polanyi pretende falar: problemas que levam
ao progresso científico, que levam à descoberta, que antecipam novas teorias.
A antecipação não tem que ver com o conteúdo factual da teoria. Duas teorias podem estar
dotadas de um conteúdo capaz de descrever os factos com igual precisão e de fornecer previsões
igualmente rigorosas – e, ainda assim, uma possuir poderes antecipatórios muito superiores à outra.
A distinção que aqui se tenta fazer não reside na funcionalidade ou no seu conteúdo técnico(medidas, símbolos, conceitos, etc.). Da mesma forma, a solução deste tipo de problemas não pode
ser encontrada apenas recorrendo ao conhecimento explícito que se tem de um sistema. Não tem
que ver com o facto de um sistema dar as condições de possibilidade da experiência em geral: pelo
contrário, trata-se da possibilidade de surgir um novo conhecimento que não estava previsto pelas
determinações explícitas anteriores. Na verdade, este novo conhecimento pode significar a inversão
(de parte) das determinações explícitas anteriores. Em causa está uma suspeita de alguma coisa
imaginativo. Portanto, não é possível – e se fosse seria inconveniente – rejeitar desde início qualquer submissão à autoridade. Cfr., p.ex., PK ., p. 55: “A society which wants to preserve a fund of personal knowledge must submit to tradition”. 42 D1., p. 5.43 Cfr. Aristóteles, Analíticos Posteriores, 71a1-b8: Aristóteles nota que para conhecer um facto particular parece ser necessário, nãosó o conhecimento adquirido no acto de conhecer, mas também um certo conhecimento prévio ( primeiro). Ver também Platão, Ménon.
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escondida que se acredita acessível – seguindo uma direcção. Um bom problema é uma suspeita: o
cientista tem uma suspeita. Sente que as determinações explícitas do sistema têm uma deficiência
ou que algo falta. A resolução desse problema aponta para algo que não está explícito no sistema –
mas de tal modo que é neste que se encontram as pistas que permitem ir até ao que está escondido.
Há, portanto, um percurso que é retirar do escondimento – quer dizer: ἀλήθεια. Uma vez resolvidoo problema, essas pistas revelar-se-ão parte da solução (o sistema heliocêntrico é um aspecto da
teoria geral da gravitação). Vendo bem, as pistas são parte da solução mesmo antes de a coisa
escondida ter sido desvelada, e é por isso mesmo que elas são pistas “pointing to a gap”44.
O que queremos reter daqui é a suspeita. Quer dizer, falar de pistas é enganador, pode sugerir
que as coisas apontam para o problema, o que não é o caso. É muito comum que tudo funcione
normalmente, que nenhum problema surja se não os que podem ser resolvidos combinando
determinações explícitas do sistema. A sólida maioria de nós não é descobridora. Um bom médiconão precisa de ser um bom investigador e não há, necessariamente, nenhum demérito em ser-se um
bom médico. Mas um bom problema é uma suspeita evocada pela imaginação do cientista –
relativamente a um conjunto de circunstâncias que são vistas como pistas. Mas que podem
igualmente ser ignoradas. Este é um ponto importante a reter: pode-se muito bem passear entre elas
sem ver nada de especial . O que é relevante aqui é o cientista e a sua imaginação.
3. AntecipaçãoA antecipação depende do significado – do sentido do sistema. Isto é, o sistema não é apenas
um conjunto de símbolos, termos técnicos, medidas, cálculos, previsões – conjunto objectivo,
quantificável, mensurável. Relativamente a este conteúdo dois sistemas podem ser idênticos e,
ainda assim, um traduzir uma nova imagem do mundo – a diferença fundamental reside no aspecto
do sistema. Neste sentido, o sistema heliocêntrico constituiu uma inovação conceptual
relativamente ao sistema ptolemaico – mesmo se ambos podiam descrever os mesmos
acontecimentos e serem funcionais para as mesmas previsões45. O regime de sentido como tal vai
para além disso. Assim, de facto, a ciência não pode ser vista como uma simples descrição
funcional de dados observados. O aspecto da teoria consiste numa inovação conceptual – é uma
nova forma que, na verdade, pode explicar os mesmos acontecimentos e disponibilizar as mesmas
previsões, mas que já veicula um ganho conceptual, um “surplus meaning”, um sentido adicional . É
o mundo que é visto numa nova “framework”: como quando um sujeito coloca óculos concebidos
para inverter a relação esquerda-direita46. Por isso mesmo, nada aqui tem que ver com dados,
44
DK ., p. 19.45 O que distingue o novo sistema não tem que ser nenhum aumento de plausibilidade ou capacidade predictiva. Isso não aconteceu, por exemplo, com a teoria de Copérnico face ao modelo ptolemaico.46 Polanyi faz esta comparação explicitamente. Cfr. D2., pp. 8-10. Basta que citemos as seguintes indicações: “the new kind of seeingis accompanied by a corresponding conceptual change […]”; “a conceptual reform accompanying perceptual innovations, must also be predominantly tacit”; “passing from perceptual to conceptual change, I can return to the subject of scientific discovery […]. The process in which relativity originated, was in fact analogous to the way one learns to see rightly with inverting spectacles”
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evidências cruas, muito menos tem que ver com mentes virgens ou humanos nus: na verdade só
perante o regime anterior é que se pode descrever o novo regime como uma inversão, só perante
um modo de ver antigo é que a esquerda trocou de lugar com a direita. O novo regime pode levar
tempo a ser assimilado, habitado pelas pessoas, mas uma vez habitado passará a ser o anterior
regime que via as coisas ao contrário. Na nova concepção pode ser possível dizer o que eraimpossível – e o que se diz com os mesmos termos significa um acrescento de sentido. Este
acrescento de sentido não tem que ver com um acrescento de dados ou aumento de instrumentos47.
§1. Um sentido adicional
O sentido adicional contido numa certa teoria científica é um conteúdo não explícito e
corresponde aos seus poderes antecipatórios. O novo aspecto é “a new framework” que sugere
novas questões que não poderiam ser formuladas ou compreendidas no sistema anterior. Foi este
“general outline” do sistema heliocêntrico que apelou à imaginação e convidou a suspeitar das suas
possíveis implicações – mais amplas do que as do sistema geocêntrico. Os novos problemas, por
sua vez, põem as mentes no encalço de descobertas futuras. Assim, reduzir a ciência ao seu
conteúdo explícito significa esterilizar o sistema.
Para Osiander, a ciência era um conjunto de hipóteses, uma teoria mas uma teoria apenas, não
um regime de sentido em funcionamento, habitado, determinador da abertura ao mundo. Era de
uma visão global que não era científica que Osiander considerava o aparato técnico, matemático,
funcional do modelo teórico proposto por Copérnico. Os positivistas consideram cada teoria apenasuma alegação. Cada teoria é, para eles, uma possibilidade entre outras igualmente não decisivas. E
nesta suposta indiferença metafísica já fazem um postulado metafísico. Mas o decisivo é que,
segundo Polanyi, estes modo de alguém se haver com uma teoria, de tal modo que ela é qualquer
coisa perante a qual se está – este modo encontra a teoria já morta48. Como já dissemos, isso não
significa que não se seja capaz de entender as fórmulas da teoria, aplicar as suas leis, fazer
previsões e até mesmo ensinar essa teoria que não se habita49. Todavia, quando Polanyi está a falar
de poderes heurísticos (que guiam a procura) como poderes antecipatórios (relativamente ao queestá escondido), refere-se a um sentido indeterminado da teoria que não está dado a ver
(sublinhado do autor). Segundo Polanyi, uma “conceptual innovation” ocorre, quer na solução para um problema perceptual (porexemplo, no uso de óculos que invertem a direita e a esquerda), quer quando é um problema conceptual que leva a uma nova solução(como foi o caso da teoria de Einstein) – seja como for, o decisivo é que uma reforma conceptual acompanha sempre as inovações perceptuais e vice-versa, de tal modo que o novo não é apenas um novo modo de ver, nem apenas uma nova maneira decompreender, mas sim um novo sistema em que o novo modo de ver é acompanhado por uma mudança conceptual correspondente (independentemente de qual tenha suscitado a outra).47 D1., pp.7-9. Polanyi dá o exemplo da diferença entre uma lista de localizações e um mapa: embora o mapeamento da lista nãoacrescente novos dados, o mapa transporta um entendimento bastante melhor dos mesmos dados.48
Cfr. PK., p. 319: “I may deny validity to some particular knowledge, or some particular facts, but then to me these are onlyallegations of knowledge or of facts, and should be denoted as ‘knowledge’ and as ‘facts’, to which I am not committed”. 49 D1., p. 9. Já nos referimos a isto antes. Teríamos de nos demorar aqui se o nosso intuito fosse analisar o conhecimento tácito. Masnão é. Portanto, basta fazermos notar que se pode saber fórmulas e não se saber aplicá-las, e pode-se usá-las sem ver para além delas.Usar uma ferramenta, conceptual ou não, já implica um entendimento informal , mas não necessariamente ver para além dela. Polanyiespecifica que quando se refere a “explicit content of a theory” quer dizer as aplicações da teoria que, embora sejam informais eexijam um entendimento informal , são óbvias.
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imediatamente – mas que só muito mais tarde (como os óculos que exigem um período de
habituação), através de um acto criativo da imaginação pode ser dado a ver. O decisivo a reter aqui
é que não se trata de uma diferença de acuidade (um ver mais ou menos agudamente aquilo que está
dado à vista) – justamente porque se trata de um compreender , de uma habilidade para ver para
além daquilo que está efectivamente dado à vista e que se pode revelar, justamente, contra o que
está imediatamente dado a ver segundo o sistema em vigor 50.
Ora, neste ponto começamos a perceber o que Polanyi quer dizer quando afirma que o sistema
heliocêntrico era mais real do que o sistema ptolemaico: o heliocêntrico tinha mais poderes
antecipatórios51.
§2. Verdadeiro e Real
Ora, Polanyi pretende mostrar que Copérnico ao expressar a sua crença de que o seu sistema
era real – por oposição ao ptolemaico – estava a afirmar a presença de poderes antecipatórios. De
facto não nos interessa saber se Copérnico pensava como Polanyi – ou se tinha um entendimento
bastante diferente acerca da sua própria metafísica. O que nos interessa é o modo como Polanyi lida
com as noções de verdadeiro e real . O problema é bicudo porque os poderes antecipatórios não são
óbvios – aliás, o que parece ser decisivo é o seu carácter não óbvio. Evidentemente, nós não somos
todos copérnicos ou einsteins. A maioria de nós está no mundo como os Azande52. Mas, seja como
for, nem Copérnico deveria estar já a ver que a sua teoria haveria de dar na teoria da gravidade.
Segundo Polanyi, quando Copérnico afirmou a sua crença na realidade da sua teoria estava,na verdade, a afirmar que certos recursos do seu sistema tinham potencialidades antecipatórias –
deveriam servir como pistas para além do próprio sistema53. E isto é decisivo: o carácter real do
sistema reside – não só para Polanyi, mas também para Copérnico, segundo Polanyi – nos poderes
antecipatórios de uma teoria. Não nos seus mecanismos de defesa, não na sua capacidade de
envolver as pessoas e na convicção de que o mundo é assim – mas nas potencialidades por
desenvolver que sugerem e direccionam um possível desenvolvimento numa direcção.
Na verdade, pode-se reconhecer que Copérnico falhou aqui e ali. Mas, independentementedisso, os resultados do sistema de Copérnico manter-se-ão válidos e interessantes – mesmo que
Osiander estivesse certo em reservar a metafísica à Filosofia. E, segundo Polanyi, estes resultados
estão incontestavelmente ligados ao modo como Copérnico e os seus sucessores se comprometeram
profundamente com a realidade do sistema heliocêntrico. Queremos ser muito claros no que
estamos a dizer aqui. Segundo Polanyi pode até acontecer que a maioria de nós esteja entretecida no
sistema como os Azande. O sistema pode, então, crescer – como uma planta cresce. Também é
50 Neste sentido, seria interessante comparar esta capacidade de ver para além com o νοῦς, nomeadamente, em Aristóteles. 51 D1., pp. 9ss.52 Cfr. PK., p. 194.53 D1., p. 10: “What he meant by asserting that the heliocentric system was real, must have included an anticipation of the fact t hatthese features of his system, and perhaps others too, might yet serve as clues to future problems and that such problems may lead toyet unthinkable further discoveries”.
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possível que toda a teoria seja, afinal, uma hipótese: uma alegação de alguém acerca de alegados
factos. Mas não é nem da descrição nem na previsão que Polanyi situa a validade da descoberta.
Nessas formas de olhar para a descoberta científica – desconfiando dela ou tomando-a
hipoteticamente – não se conseguirá sequer perceber de onde ela vem e apenas se conseguiria, na
melhor das hipóteses, dissecar as descobertas de outros. Seja como for, a diferença significativaentre sistemas não está em nada de explícito, óbvio ou quantificável.
α – Life, Danger and CommitmentKepler empenhou a sua vida em buscas que teriam sido sem sentido (“non sensical”)54 caso o
sistema heliocêntrico não fosse real. Mas como sabia Kepler que o sistema era real? Bem, ele não
tinha como prová-lo senão com o seu trabalho. Quer dizer, a situação de Kepler, como a de nós
todos no momento de decidir, pode ser comparada ao exército em debandada de Aristóteles55. O
problema da τροπή é complexo porque, de facto, nunca se teve a situação original (ἀρχή). O que
temos de facto é uma situação de τροπή (um estado confuso e desorganizado) em que parece haver
uma reconstituição (“ἑνὸς στάντος ἕτερος ἔστη, εἶθ' ἕτερος”) da qual se vem a ter o decisivo (ἀρχή)
– mas de tal modo que é essa reconstituição que põe, que faz vir (ἔρχομαι) aquilo que
aparentemente nunca se teve em primeira mão (a ἀρχή). Ora, o processo de reconstituição já é algo,
de per se, bastante estranho porque no momento em que um primeiro vem a parar, esse é o
princípio da presença do todo – de tal modo que na percepção (αἴσθησις) de cada um já estáenvolvida a percepção do todo (“καὶ γὰρ αἰσθάνεται μὲν τὸ καθ' ἕκαστον, ἡ δ' αἴσθησις τοῦ
καθόλου ἐστίν”) – do todo (“τοῦ καθόλου”) que, sendo o estado original (ἀρχή) nunca foi tido –
nunca esteve presente (explicitamente) – senão através e na própria reconstituição. Paradoxalmente,
não se está a olhar para o estado original enquanto se processa a reconstituição: pelo contrário, é a
reconstituição que nos põe perante o estado original. Esta estranha forma de restituição é o que está
em causa não só no problema da formação dos conceitos, mas também no problema da descoberta
científica e no modo como os sistemas de Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Einstein sesucedem.
Kepler elaborou a imagem do sistema de Copérnico – justamente nisso que este sistema tinha
de distintivo face ao modelo geocêntrico. Ou seja, baseou-se na crença de que essa imagem
distintiva representava um facto. Isto não comporta apenas aspectos explícitos. As mudanças
conceptuais são primeiramente tácitas e, de facto, é preciso uma habituação ao sistema56 . Como já
se viu, estas mudanças conceptuais são acompanhadas de mudanças perceptivas, também elas
54 D1., p. 10.55 Cfr. Analíticos Posteriores, 100a: “οἷον ἐν μάχῃ τροπῆς γενομένης […]”: “como numa batalha aconteceu uma retirada […]”(tradução nossa). Aristóteles refere-se explicitamente à formação do universal – que já sempre está presente na apresentação do particular. Esta ideia está, também, presente em Polanyi. No entanto, aqui nós pretendemos usar o poder da metáfora para mostrar oqye se passa também no problema “of scientific discovery”. 56 Cfr. D2., pp. 9-10.
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tácitas. O que está em causa é, portanto, justamente esse lance da vida nesse regime de sentido – o
qual só pode ocorrer porque de facto se está convencido de que esse sistema (que pode ter sido
recebido de forma explícita, através do estudo da teoria de Copérnico) 57 é real. O cientista deposita
confiança – esta confiança não é meramente hipotética, como quem joga, certamente porque
acredita que pode ganhar, mas não apostaria a sua vida nisso. A forma como Polanyi fala destaconfiança, desta crença, poderia ser, em muitos aspectos, comparada à πίστις no Novo Testamento.
Senão vejamos: Kepler enfrentou a hostilidade e o perigo que comportava aderir a essas teses,
arriscou o seu compromisso ao dedicar-se a perseguir um problema solitário levantado por essa
visão do mundo, pondo em jogo (“hazarding”) a sua existência como cientista, mas também como
pessoa – e esse jogo é tremendo precisamente porque é a sua vida como pessoa e como cientista que
está em jogo. Aqui não se trata, evidentemente, de uma teoria hipotética, ou de uma investigação
que se persegue só porque, nesse ano, é nessa direcção que o financiamento aponta. Não. Polanyinão está a falar de um erudito, como diz Fernando Pessoa: Polanyi refere-se àquelas pessoas que
empenharam de facto a sua vida, toda a sua pessoa num compromisso arriscado do qual poderiam
sair perdendo tudo. A ciência envolve a pessoa na sua totalidade.
“The belief of Copernicus in the reality of his system thus acquired an overwhelming practical
meaning for Kepler and Galileo in the form of their conviction that the problems suggested by
heliocentric image were good problems, pointing to important hidden truths” 58.
O que salta à vista é que Kepler não está a sujeitar a teoria a uma bateria de testes para ver se
ela cede. Não: o montanhista pode, de facto, arruinar-se mas não sai de casa nem sobe a montanha à
procura do desastre. Ele vai, efectivamente, à procura de alguma coisa que sente estar escondida.
Ele move-se por alguma coisa – não para fazer colapsar as suas crenças. Ele tenta, precisamente, ir
mais além até isso que ele sente estar acessível . Quando Polanyi fala de imaginação podemos ser
enganados pela palavra. Não se trata aqui de imaginar unicórnios a voar 59. Kepler foi à procura de
algo que ele acreditava estar de facto escondido, acessível para ser des-coberto: “a hidden truth”.
Trata-se de uma imaginação concreta60. E não se pode dar uma regra para a imaginação. Pode
aprender com outros a fazer ciência – mas não se pode formular uma grelha da imaginação.
57 Cfr. PK ., p. 194: “These conditions and criteria can be discovered only by taking a purely scientific interest in the matter, whichagain can exist only in minds educated in the appreciation of scientific value. Such sensibility cannot be switched on at will for purposes alien to its inherent passion”. Não podemos aqui estudar as condições de possibilidade disto. Seria necessário estudardemoradamente o PK., o que cai fora do nosso âmbito. Note-se, contudo, que a aprendizagem de uma teoria não é independente daidade, nem dos conhecimentos tácitos e explícitos que já se possam ter. Esta aprendizagem também pode ser mais ou menos acrítica,
e estar associada a uma figura que pode ser entendida como mestre. Note-se também que é preciso haver uma disposição prévia na pessoa que permita interiorizar esse sistema, diferente do que está em vigor na sociedade, por exemplo. Além disso, a descoberta e ainovação dependem de características do próprio cientista.58 D1., p. 10-11.59 Cfr. D1., p. 19: “To undertake a problem is to commit oneself to the belief that you can fill in this gap and make thereby a newcontact with reality”. 60 D1., p. 17.
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β – Crença e compromissoA crença na realidade de Copérnico tem continuidade no compromisso heurístico de Kepler.
Mas não é só isso. Vendo bem, o compromisso de Kepler é também a extensão da sua própria
crença61. Quer dizer, o compromisso é a intensificação da crença – da crença que, evidentemente,
tem de ser entendida como confiança, embora não se deva aqui presumir que o cientista estáneutralizado para o risco e para a percepção de que está a arriscar. Na verdade, é esta percepção do
perigo e do risco, esta noção de que se tem a vida empenhada que é o bastante para termos a
garantia de que o cientista está, de facto, convencido de que as suas teses e os problemas de que se
ocupa estão fundeados na realidade. O cientista não anda a brincar com tubos de ensaio.
Kepler embarcou naqueles problemas a que se dedicou porque tinha expectativas em relação a
eles: e essa expectativa não era a da ruína62. Contudo, é mais fácil entender que Kepler, na teoria de
Copérnico, tivesse os olhos já lançados para lá dela, do que entender que o próprio Copérnico
tivesse isso em vista quando afirmava que o seu sistema era mais real. Quer dizer, não é óbvio que
Copérnico quisesse dizer que a sua teoria era boa como ponto de saída para qualquer outro lado. É
mais compreensível que ele estivesse convencido que a sua teoria bastasse. Polanyi, contudo, estava
convencido de que a crença de Copérnico era do mesmo tipo da de Kepler, embora menos intensa.
A crença de Copérnico era menos dinâmica e “less pointed”63 – numa palavra, menos antecipatória
do que a crença de Kepler na solidez dos seus problemas. Mas Copérnico já antecipava vagamente
o tipo de antecipações concretas – i.e., problemas – evocados por Kepler. Os problemas são
antecipações concretas e uma modalidade da crença.
A crença na realidade de uma teoria envolve uma expectativa de que algumas das suas teses
ou determinações possam vir a ser pistas para novos problemas e descobertas 64. Assim, quando
novos problemas surgem (reificando essa expectativa) estes irão envolver ainda mais expectativas –
e esta expectativa levará o cientista a prosseguir numa determinada direcção em busca da verdade
escondida65. Ele pode de facto estar errado. A única garantia que podemos esperar é a do seu
compromisso, na medida em que ele se arrisca e é responsável. É neste compromisso em que ele
assume os riscos e a responsabilidade pelo seu envolvimento no conhecimento que podemos esperar
uma procura aproximativa à validade universal. Porque ele está comprometido com isso66 .
Sublinhe-se que Polanyi não está a dizer que uma teoria é verdadeira porque mais tarde se revelou
verdadeira. Esta evidenciação, como se disse, depende já do sistema: só porque já se acredita se
pode encontrar uma evidência. Diz Polanyi que o sistema de Copérnico não antecipou as
descobertas de Kepler acidentalmente – ele antecipou-as porque era verdadeiro. Mas Newton ainda
não podia ver que Copérnico estava certo – e apesar de poder estar errado, foi a sua paixão
61 D1., p. 11.62 Polanyi parece visar Popper – mas não nos iremos aqui ocupar disso.63 I.e., menos lançada para além dela – se nos for permitido dizer assim64 D1., p. 11.65 Note-se que Polanyi usa frequentemente este binómio: crença na realidade de uma teoria – expectativa de uma verdade escondida.66 Cfr., PK ., p. 319: “Commitment is in this sense the only path for approaching the universally valid”.
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intelectual que o mobilizou. Quando o cientista se tem de decidir acerca da verdade de um insight
ainda não pode ver os seus resultados futuros. Mas pode acreditar que ela os terá. E a única
validação que se pode esperar é a do seu compromisso com a ciência, com o conhecimento, com a
verdade, com a validade universal – é a garantia de que não está a seguir um capricho, uma
quimera, mas se está a basear naquilo que toma como um facto. Não é o facto de hoje podermos ir ao espaço e olhar para a configuração do sistema solar que
está em causa na “veridical quality” de que Kepler ou Newton estavam convencidos. A marca da
verdadeira descoberta é a intimação para os seus frutos futuros: eles acreditavam que a descoberta
de Copérnico antecipava futuras descobertas e essa crença intimava-os para a acção67. O homem
hoje pode ir ao espaço confirmar que o Sol está no centro do Sistema Solar porque, muito antes
disso, já houve homens que estavam absolutamente convictos de que isso era assim.
γ – A realidadeQue uma coisa não se dissolva como um sonho significa, para Polanyi, que se vai manifestar
em instâncias virtualmente infinitas no futuro. Quando se acredita que um objecto é real sente-se
que a sua existência se continuará a manifestar no futuro. Quando se diz que um objecto é real quer-
se dizer que ele está aí, lá fora, quer se acredite quer não se acredite, existindo independentemente
de nós, ainda que as consequências da sua existência não sejam completamente previstas ou
previsíveis. Não se trata de uma hipótese. É assim que o nosso ponto de vista está constituído. Setemos dúvidas da continuidade de algo, ou de que algo exista independentemente de nós, então
duvidamos que seja real. E acreditar na realidade de uma teoria significa que se tem a expectativa
de que essa teoria se venha a manifestar em instâncias virtualmente infinitas no futuro. Polanyi está
mesmo a referir-se à realidade da teoria: a mesma expectativa que se tem relativamente a um
objecto real (a expectativa de que ele esteja lá fora e, independentemente de acreditarmos nele ou
não, continue a manifestar-se e não desapareça como um sonho), tem-se relativamente à teoria 68.
É neste contexto conceptual que Polanyi define o real e o verdadeiro: o que se acredita ser
capaz de um número indeterminado de manifestações futuras, acredita-se ser real; acredita-se que
uma afirmação sobre a natureza é verdadeira quando se acredita que ela desoculta um aspecto de
alguma coisa capaz de um número indeterminado de manifestações futuras. Uma teoria física
verdadeira representa um aspecto da realidade (que se pode manifestar inexaurivelmente no futuro).
Portanto, uma teoria científica, enquanto imagem do mundo, não é uma fotografia dele. A mera
apresentação de factos observáveis e a consequente descrição funcional não é uma teoria científica
(não se trata apenas de ser uma má teoria). Com isto Polanyi afasta decididamente a ideia de que a
teoria possa ter que ver com demonstrações.
67 Cfr. PK., p. 156.68 D1., p. 11-12.
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A demonstração tem que ver apenas com os factos – e então estes podem ser ou não
demonstráveis. Polanyi dá o exemplo da frase que diz dela mesma que não é demonstrável. Se se
verificasse – e seria necessário demonstrá-lo – que ela era demonstrável, então ela seria falsa.
Depois poder-se-ia alterá-la. Mas se uma frase diz que ela mesma não é verdadeira, então, se ela for
verdadeira, ela mesma tem de não ser verdadeira, mas então ela tem de ser verdadeira , … – a frasecontradiz-se a si mesma. Quer dizer, a forma demonstrativa aponta para um depósito neutro e o
estabelecimento de uma verdade implica-se a si mesmo. A afirmação de uma verdade já envolve a
afirmação verdade da afirmação. Isto encerra aquilo a que Polanyi chama “unlimited
commitment”.
Na verdade não está em causa a descrição de uma relação entre coisas que pode ser verdadeira
ou falsa. Quer dizer, pode-se produzir uma qualquer proposição sobre o que pode ser ou não o caso
– e assim o sujeito permanece neutro relativamente à verdade. Essa afirmação poderia serigualmente verdadeira ou falsa. Então comparar-se-ia o que está a ser afirmado com o estado de
coisas – mas, evidentemente, quando se trata de coisas decisivas, o que está em causa é, justamente,
o que seja o estado de coisas. Newton não poderia fazer este género de comparação. Aliás, como já
se repetiu, esta comparação já está dependente de uma compreensão prévia. É preciso já saber o
que é a verdade para saber se a proposição é verdadeira. Mas não é só isso. Neste tipo de teorias da
verdade o sujeito que profere a proposição não está vinculado à mesma, nem esta àquele. O critério
para a descoberta tem de ser outro: tem de ser justamente o vínculo da pessoa às suas convicções.
Quando se afirma que a frase “creio em Deus” nada diz sobre a existência de Deus, mas
apenas sobre a crença isso desvirtua o vínculo que a crença constitui. Não se pode crer senão em
verdades. Mesmo que se tivesse descoberto que Copérnico estava errado ele não teria acreditado em
sonhos. Quer dizer, quando alguém acredita – e não se limita a escrever frases que podem descrever
ou não determinadas relações entre objectos – essa pessoa está vinculada à realidade. Quem acredita
não está em estado neutro relativamente à existência disso em que acredita. Alguns discursos sobre
a crença sugerem que numa crença o que pode ser verdadeiro ou falso é o facto da pessoa que diz
ter essa crença a ter – como se quem diz que crê em Deus estivesse apenas a vincular-se (se tanto)
ao facto de crer. Isso não é assim para Polanyi. Quem diz acreditar em algo pode estar a mentir, ou
pode até estar enganado acerca daquilo que realmente acredita – mas quem acredita está
comprometido com isso. Neste sentido, uma crença é um compromisso, uma teoria ou um problema
em que se acredita são compromissos – ou então não são verdadeiramente problemas nem
crenças69. Este vínculo significa também que se age tendo isso como um facto – e não como uma
hipótese. A Terra era de facto redonda para Colombo 70. Quer dizer: “if, and only if, we believe in
69 D1., p. 19: “A problem which does not worry us and the prospect of which do not excite us is not a problem; it does not exist”. Cfr. PK., p. 194, nota 2: “No genuine affections can ever be produced by ulterior motives; they must discover and uphold theirsatisfaction in themselves”. 70 D1., p. 16: Polanyi insiste na “ belief in the reality of theoretical suppositions as the driven force to discovery”. Sublinhado nosso.
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God will we build churches; if we believe in master races we may exterminate Jews and Poles ”71.
Dito isto, nenhuma descoberta importante pode ser feita “in science by anyone who does not believe
that science is important – indeed supremely important – in itself”72.
§3. Structuring reality…
A crença não pode ser provada. Mas isso não significa que não se tenham crenças. Mesmo
que se pretenda suspender todas as crenças, as pessoas que o pretendam, continuarão a manter
crenças – e essa mesma pretensão depende de um conteúdo fiduciário explícito ou não. Ao eliminar
as ilusões passadas o homem não se liberta da estrutura constitutiva do processo de conhecimento, a
mesma estrutura que tanto produziu o erro como o seu esclarecimento. A busca da verdade depende
do compromisso da pessoa que se envolve nessa tarefa – e o desenrolar dessa busca depende da
imaginação daqueles que a assumem.
As verdadeiras crenças fundamentais são essas paixões que nos movem, que nos fazem
erguer igrejas e escolas, mas também campos de morte e máquinas de tortura73. A própria actuação
dos homens de ciência esteve sempre envolvida em crenças fundamentais que foram mudando ao
longo dos tempos74. Ter-se uma ou outra paixão, este ou aquele critério não é um processo racional.
Mas, independentemente disso, são essas crenças, essas paixões que estruturam a realidade.
O regime de sentido é doador de sentido, é o critério em uso pela própria pessoa que se
movimenta no mundo – e o mundo que lhe surge tem o sentido – i.e. a unidade de sentido que oregime de sentido enforma. O mundo, portanto, não é um conjunto de coisas aleatoriamente
apresentadas. O regime de sentido é a condição de possibilidade do mundo enquanto agregado
articulado significativamente: ninguém pensa fora do idioma que lhe permite pensar. O regime de
sentido em que de cada vez se habita não aparece como uma possibilidade de entre outras75. Mas
não é só isso: este poder de estruturar a realidade reside, em última análise, nos poderes de
julgamento pessoal – isso não significa que a pessoa possa decidir conscientemente sobre o critério
que está a usar, pois essa decisão dependeria sempre de um critério anterior e de uma decisãoanterior. Vendo bem, a decisão final permanecerá sempre tácita76. Cada teoria é um momento da
contínua estruturação da realidade que começou nos primórdios da humanidade. Cada descoberta é
uma instanciação da busca humana pelo sentido – de um sentido universal simultaneamente vital .
71 PK., p. 119.72 PK., p. 194. Cfr. D1., p. 19: “Such a commitment must be passionate”. 73 Cfr. PK., p. 247. Polanyi sublinha o poder das “great moral passions in Hitler’s programme” e do seu “strong moral appeal”. JáAristóteles nota que os princípios capazes de λόγος (como a medicina), tanto podem provocar a doença como a saúde, tanto expl icam
uma situação como o seu contrário, embora não da mesma maneir a (“τὸ πρᾶγμα καὶ τὴν στέρησιν, πλὴν οὐχ ὡσαύτως”). Além de oλόγος e a ciência serem possibilidades, quando em exercício podem levar a situações opostas. Ver Metafísica, 1046a 36-1047b 10.74 PK., p. 192.75 D1., p. 13: “we cannot think that it might just as well have happened differently”. Ver também PK ., p. 194: “we cannot look at ourstandards in the process of using them, […]. We atribute absoluteness to our standards, because by using them as part of ours elveswe rely on them […]”. 76 D1., pp. 14ss.
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O cientista é uma pessoa vinculada a um sentido, a determinadas expectativas, a esperanças, a
crenças, à vida. Polanyi tem o mérito de assumir a condição da pessoa na tarefa do conhecimento e
na ciência em particular. Uma tarefa em que está envolvido todo o seu ser. Nesse trabalho estão
envolvidos o seu corpo, a sua mente, a estrutura capaz de conhecer e de se iludir, a tradição, a
educação, a cultura, o passado e a inevitável projecção no futuro. O progresso da ciência estádependente das descobertas de homens. Não é um movimento necessário, mas um fruto do
empenhamento, da imaginação, da força de vontade de pessoas. Da habilidade para descobrir o
sentido.
Polanyi supera o problema do subjectivo e do objectivo. Queremos ser claros: concordamos
com as suas análises. No fundo, Polanyi reconhece que não temos outra solução senão assumir a
finitude humana – mas este reconhecimento assume também que, na finitude, o humano já está
lançado para o infinito, na verdade, para a eternidade. Polanyi é um homem da ciência mas sublinhao pessoal – a acção de conhecer . Elimina a distinção formal entre afirmações de crenças e
afirmações de factos. Polanyi não está cego para os problemas aqui em causa: ele agarra-os e
assume-os na sua responsabilidade pessoal enquanto crença pessoal. Vamos então dizer que não há
factos, mas apenas crenças? Bem, no final , se quisermos ser sérios, temos de admitir que não temos
outro fundamento para as nossas crenças senão em crermos nelas. A ciência não é mais nada senão
a firmação coerente, responsável e comprometida de determinadas crenças – o que significa tomar
uma certa visão literalmente. Insistir em perguntar se são mesmo factos, é insistir na ilusão.
Colombo tinha como facto – literalmente – que a Terra é redonda. Por isso chegou à América –
mesmo se ele se enganou ao colocar lá a Índia.
O impessoal é uma abstracção feita por uma pessoa. Em última análise são sempre pessoas
que investigam. Então, o que é preciso para podermos confiar na investigação de um cientista? É
preciso que ele esteja comprometido em ser fiel à verdade. O pessoal tem que ver com este
compromisso intelectual – isto é, com a paixão intelectual do cientista. Estas paixões não são meros
desejos subjectivos, nem meras opiniões sem compromisso. A actividade científica é guiada pelas
paixões individuais, mas enquanto a pessoa se submente às exigências do conhecimento ela
reconhece-se como independente de si mesma em busca de algo para além da sua subjectividade
(dor e prazer sensíveis). Assim, a actividade científica transcende a disjunção entre subjectivo e
objectivo77 . A distinção entre objectivo e subjectivo perde