Post on 07-Apr-2018
8/3/2019 Photografia_MarcelinoPeixoto
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photographiaA maquinaria do pensamento s pode proceder
transformao do conhecimento,mas nunca origina-lo,
a menos que seja alimentado por fatos da observao.Charles Sanders Peirce
No centro da cena um homem carrega um retngulo nas costas. Para
os que vivem ou conhecem a cidade, torna-se fcil reconhecer que o lugar
em questo o centro de Belo Horizonte. Ao fundo, v-se a fachada de um
dos prdios identificadores do local, o cine Brasil na praa Sete, fundado em
1932. Quando da sua inaugurao continha na fachada trabalhadas
molduras com cartazes das grandes produes cinematogrficas, em
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contraste com as paredes pichadas que vemos no alto esquerda da
imagem. O retngulo que o homem carrega um espelho, um buraco
inaugural de tantas imagens quantas forem os olhares dirigidos a ele, uma
janela que enquadra os olhares dos que flertam com ela. De dentro desse
sanduche de espelhos, o homem que os carrega o nico que no pode
se ver nem ver pelas janelas. Mas ele v os que vem. Ele v o outro
vendo. Ele vivencia o estranhamento do outro e, de maneira privilegiada,
vivencia de dentro o fenmeno. Como tinta, como forma, seu corpo participa
da imagem, reconfigura o ambiente. A localizao do corpo reconfigura-se,
inaugura, em contato com emoes, desejos, sonhos, afetos, uma
espacialidade sentida pelos deslocamentos do corpo, portanto percebida.
A dvida estimula o esprito a desenvolver atividade que
pode ser ligeira ou acentuada, calma ou turbulenta. Imagens
atravessam rapidamente nossa conscincia, uma se fundindo
necessariamente com a outra, at que, por fim, terminado tudo numa frao de segundo, numa hora ou aps longos anos
decidimo-nos sobre como agir em circunstncias como as que
deram motivo nossa hesitao.
Freqentemente as dvidas brotam de alguma indeciso, embora
passageira, quanto forma de agir. Em trnsito, agitados e sem um modelo
de comportamento para tal situao, as pessoas simplesmente so, diantedesse desconhecido conhecido em suas partes. De onde vm tais
personagens? Para onde eles caminham? Essas so perguntas que ficam
sem resposta, pois a fotografia no recorte daquele instante, funciona como
um territrio sitiado pelas bordas do papel e do tempo. Mas o que tal recorte
deixa ver?
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Desde fora da cena, fechando um olho, o fotgrafo enxerga e recorta
o mundo como um pirata cego de um olho s. Com sua viso monocular,
sitia tal acontecimento. Constri uma configurao que dificilmente ocorrer
novamente ao acaso. Ele est ali, testemunha nica desde o lugar em que
se encontra, e a imagem recolhida traz para o presente o acontecimento
que j foi em algum momento. Aquele momento. A fotografia, como registro
espao-temporal, funciona como a inscrio de uma ausncia. Porm, como
aponta Leonor Arfuch (1996), todo gnero narrativo, por mais testemunhal
que se pretenda, obedece a um trabalho de ficcionalizao. O fotgrafo,
assim como os personagens da cena, constri uma interpretao possvel
ao acontecimento ali vivenciado. E o faz com seu sistema de valores.
Falar de fotografias j comear a tratar de ndices. O local e as
pessoas, cujas imagens foram capturadas na foto, de fato, existem fora e
independentemente da foto. que a fotografia, antes de qualquer outra
considerao representativa, antes mesmo de ser uma imagem quereproduz as aparncias de um objeto, essencialmente impresso, trao.
Nesse sentido, pertence a uma categoria de signos chamados de ndices -
signos que mantm ou mantiveram em determinado momento do tempo
uma relao de conexo real com seu referente.
Assim, a imagem que est na foto tem o poder de indicar
exatamente aquele lugar e aquelas pessoas singulares na sua existncia.
Para indicar um determinado stio, a foto evidentementetambm precisa ser um existente tanto quanto o stio o . Para que a
imagem das pessoas nesse local determinado possa estar, de algum modo,
na foto, houve uma conexo de fato entre as pessoas que passavam pelo
local e a foto. Mas a foto no o local nem as pessoas, apenas as indica
dentro de certos limites que so prprios da fotografia.
Mas o que ela indica?
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"o fenmeno a meu ver participa do 'maravilhoso' (...)
A coisa mais transitria, uma sombra, (...)
pode ser acorrentada pelo encanto de nossa
'magia natural' e ser fixada para sempre".
Talbot
Nessa fotografia, a luz vindo do fundo e esquerda projeta todo o
jogo de sombras para a direita, perspectivando o olhar do grupo esquerda
para o centro da cena. direita, em contraponto, temos um grupo de quatro
pessoas com o olhar voltado em sentido contrrio, mas igualmente olhando
para o centro. O ponto central no espelho, a fuga. A luz, semifrontal, deixa
na penumbra as faces dos sujeitos da cena.
Todos os sujeitos envolvidos no plano principal da cena (o grupo da
esquerda e o grupo da direita) esto vindo em direo testemunha. A
exceo o homem que carrega o espelho. Ele est de costas, seu rosto
no est dado a ver. Espelho de no se ver, espelho de ver o outro, de no
ver nada, de ver tudo... recortado. Vemos sua cabea, seus ombros, sua
perna, seus ps.
O grupo da direta composto por quatro pessoas. No centro um
homem negro de bon, aparentando idade avanada. Ele carrega uma
sacola de plstico azul na mo direita. Na esquerda porta um relgio cinza.
Seu p esquerdo est frente. Ele olha em direo ao homem com o
espelho. direita uma senhora com vestido branco, leno igualmente
branco no pescoo, um pouco atrs do senhor. Com a mo direita ela
segura uma sacola igualmente amarela igualmente de plstico. Seus ps
esto alinhados, como que parados. Sua mo esquerda levemente para
trs. Ela tambm olha para o homem com o homem que carrega o espelho.
Seus trajes so de pessoas simples, de gente do povo. Quais tero sido as
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falas, os olhares, os apontamentos, os rumos do pensamento desse casal?
Encoberta pelo senhor de bon e sacola azul, uma mulher aparentemente
jovem olha para baixo. Na extrema esquerda desse grupo est um sujeito
de olhos baixos, desinteressado. Provavelmente caminha entre uma
burocracia e outra. Ele no olha para o centro da cena.
O grupo da esquerda composto tambm por quatro pessoas. Nele
nenhuma das figuras est avessa ao acontecimento do centro da cena.
Todos os olhares se direcionam para o homem com espelhos. esquerda
um homem de camisa amarela e brao direito dobrado. Trs quartos do seu
rosto se enunciam. Sua fisionomia de espanto. Logo sua frente, ainda
do lado esquerdo, um homem jovem de bon olha em direo ao centro da
cena. Ele est de perfil, sua boca est aberta, seu brao direito est
levantado. O que teria ele gritado para o homem que carrega o espelho? No
lado direito um senhor de meia idade, poucos cabelos, camisa branca de
mangas longas, olha para seu lado esquerdo. Seu olhar de
incompreenso.No centro desse grupo, trs ou quatro passos adiante, um outro
homem com sacola na mo caminha de frente, em direo testemunha.
Ele olha para trs, torcendo a cabea para a direita, tambm em direo ao
centro da cena. Seu rosto e suas costas so vistos refletidos no espelho
ele olha para trs! A imagem de seu corpo se prolonga nas pernas do
homem que carrega o espelho, construindo um ser hbrido que, parado,
olha para trs. esquerda e ao mesmo tempo no centro, esse homem assume papel
protagonista na imagem. O que ele v?
Ao olhar para o espelho ele no v sua imagem refletida. Ele v
algum que olha em sua direo. Ele testemunha o testemunho. V-se
sendo visto atravs do espelho, atravs das lentes do fotgrafo.
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Seus olhares, mediados, se cruzam. Ambos tm a conscincia de
terem sido descobertos. O fotgrafo apontou sua mira e disparou. Acertou o
olho do homem que caminha em sua direo, o homem que, ao se
aproximar e descobrir o jogo, pe fim s suas estratgias de invisibilidade.
Agora so duas as testemunhas.
Essa imagem o testemunho do encontro de conscincias. O ato de
produzir uma imagem carregada de intenes e o ato de perceber-se, sem
a mnima inteno de s-lo, como imagem em construo. Menos que um
fato, a fotografia um ato. Um ato consciente da manipulao do
testemunho. Sim, o fato registrado na fotografia ocorreu, mas ocorreu em
imagens distintas para cada um dos atores da cena.
Fotografia:
Denise Mansur
2004
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BIBLIOGRAFIA
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Buenos Aires: Punto de Vista/Libronauta, 2001.
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In: Rosngela Renn. O arquivo Universal e outros arquivos. So Paulo: Cosac &
Naify, 2003.
PEIRCE, Charles Santiago Sanders. Semitica e Filosofia. So Paulo: Cultrix,
Editora da Universidade de So Paulo, 1975.
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