Photografia_MarcelinoPeixoto

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  • 8/3/2019 Photografia_MarcelinoPeixoto

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    photographiaA maquinaria do pensamento s pode proceder

    transformao do conhecimento,mas nunca origina-lo,

    a menos que seja alimentado por fatos da observao.Charles Sanders Peirce

    No centro da cena um homem carrega um retngulo nas costas. Para

    os que vivem ou conhecem a cidade, torna-se fcil reconhecer que o lugar

    em questo o centro de Belo Horizonte. Ao fundo, v-se a fachada de um

    dos prdios identificadores do local, o cine Brasil na praa Sete, fundado em

    1932. Quando da sua inaugurao continha na fachada trabalhadas

    molduras com cartazes das grandes produes cinematogrficas, em

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    contraste com as paredes pichadas que vemos no alto esquerda da

    imagem. O retngulo que o homem carrega um espelho, um buraco

    inaugural de tantas imagens quantas forem os olhares dirigidos a ele, uma

    janela que enquadra os olhares dos que flertam com ela. De dentro desse

    sanduche de espelhos, o homem que os carrega o nico que no pode

    se ver nem ver pelas janelas. Mas ele v os que vem. Ele v o outro

    vendo. Ele vivencia o estranhamento do outro e, de maneira privilegiada,

    vivencia de dentro o fenmeno. Como tinta, como forma, seu corpo participa

    da imagem, reconfigura o ambiente. A localizao do corpo reconfigura-se,

    inaugura, em contato com emoes, desejos, sonhos, afetos, uma

    espacialidade sentida pelos deslocamentos do corpo, portanto percebida.

    A dvida estimula o esprito a desenvolver atividade que

    pode ser ligeira ou acentuada, calma ou turbulenta. Imagens

    atravessam rapidamente nossa conscincia, uma se fundindo

    necessariamente com a outra, at que, por fim, terminado tudo numa frao de segundo, numa hora ou aps longos anos

    decidimo-nos sobre como agir em circunstncias como as que

    deram motivo nossa hesitao.

    Freqentemente as dvidas brotam de alguma indeciso, embora

    passageira, quanto forma de agir. Em trnsito, agitados e sem um modelo

    de comportamento para tal situao, as pessoas simplesmente so, diantedesse desconhecido conhecido em suas partes. De onde vm tais

    personagens? Para onde eles caminham? Essas so perguntas que ficam

    sem resposta, pois a fotografia no recorte daquele instante, funciona como

    um territrio sitiado pelas bordas do papel e do tempo. Mas o que tal recorte

    deixa ver?

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    Desde fora da cena, fechando um olho, o fotgrafo enxerga e recorta

    o mundo como um pirata cego de um olho s. Com sua viso monocular,

    sitia tal acontecimento. Constri uma configurao que dificilmente ocorrer

    novamente ao acaso. Ele est ali, testemunha nica desde o lugar em que

    se encontra, e a imagem recolhida traz para o presente o acontecimento

    que j foi em algum momento. Aquele momento. A fotografia, como registro

    espao-temporal, funciona como a inscrio de uma ausncia. Porm, como

    aponta Leonor Arfuch (1996), todo gnero narrativo, por mais testemunhal

    que se pretenda, obedece a um trabalho de ficcionalizao. O fotgrafo,

    assim como os personagens da cena, constri uma interpretao possvel

    ao acontecimento ali vivenciado. E o faz com seu sistema de valores.

    Falar de fotografias j comear a tratar de ndices. O local e as

    pessoas, cujas imagens foram capturadas na foto, de fato, existem fora e

    independentemente da foto. que a fotografia, antes de qualquer outra

    considerao representativa, antes mesmo de ser uma imagem quereproduz as aparncias de um objeto, essencialmente impresso, trao.

    Nesse sentido, pertence a uma categoria de signos chamados de ndices -

    signos que mantm ou mantiveram em determinado momento do tempo

    uma relao de conexo real com seu referente.

    Assim, a imagem que est na foto tem o poder de indicar

    exatamente aquele lugar e aquelas pessoas singulares na sua existncia.

    Para indicar um determinado stio, a foto evidentementetambm precisa ser um existente tanto quanto o stio o . Para que a

    imagem das pessoas nesse local determinado possa estar, de algum modo,

    na foto, houve uma conexo de fato entre as pessoas que passavam pelo

    local e a foto. Mas a foto no o local nem as pessoas, apenas as indica

    dentro de certos limites que so prprios da fotografia.

    Mas o que ela indica?

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    "o fenmeno a meu ver participa do 'maravilhoso' (...)

    A coisa mais transitria, uma sombra, (...)

    pode ser acorrentada pelo encanto de nossa

    'magia natural' e ser fixada para sempre".

    Talbot

    Nessa fotografia, a luz vindo do fundo e esquerda projeta todo o

    jogo de sombras para a direita, perspectivando o olhar do grupo esquerda

    para o centro da cena. direita, em contraponto, temos um grupo de quatro

    pessoas com o olhar voltado em sentido contrrio, mas igualmente olhando

    para o centro. O ponto central no espelho, a fuga. A luz, semifrontal, deixa

    na penumbra as faces dos sujeitos da cena.

    Todos os sujeitos envolvidos no plano principal da cena (o grupo da

    esquerda e o grupo da direita) esto vindo em direo testemunha. A

    exceo o homem que carrega o espelho. Ele est de costas, seu rosto

    no est dado a ver. Espelho de no se ver, espelho de ver o outro, de no

    ver nada, de ver tudo... recortado. Vemos sua cabea, seus ombros, sua

    perna, seus ps.

    O grupo da direta composto por quatro pessoas. No centro um

    homem negro de bon, aparentando idade avanada. Ele carrega uma

    sacola de plstico azul na mo direita. Na esquerda porta um relgio cinza.

    Seu p esquerdo est frente. Ele olha em direo ao homem com o

    espelho. direita uma senhora com vestido branco, leno igualmente

    branco no pescoo, um pouco atrs do senhor. Com a mo direita ela

    segura uma sacola igualmente amarela igualmente de plstico. Seus ps

    esto alinhados, como que parados. Sua mo esquerda levemente para

    trs. Ela tambm olha para o homem com o homem que carrega o espelho.

    Seus trajes so de pessoas simples, de gente do povo. Quais tero sido as

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    falas, os olhares, os apontamentos, os rumos do pensamento desse casal?

    Encoberta pelo senhor de bon e sacola azul, uma mulher aparentemente

    jovem olha para baixo. Na extrema esquerda desse grupo est um sujeito

    de olhos baixos, desinteressado. Provavelmente caminha entre uma

    burocracia e outra. Ele no olha para o centro da cena.

    O grupo da esquerda composto tambm por quatro pessoas. Nele

    nenhuma das figuras est avessa ao acontecimento do centro da cena.

    Todos os olhares se direcionam para o homem com espelhos. esquerda

    um homem de camisa amarela e brao direito dobrado. Trs quartos do seu

    rosto se enunciam. Sua fisionomia de espanto. Logo sua frente, ainda

    do lado esquerdo, um homem jovem de bon olha em direo ao centro da

    cena. Ele est de perfil, sua boca est aberta, seu brao direito est

    levantado. O que teria ele gritado para o homem que carrega o espelho? No

    lado direito um senhor de meia idade, poucos cabelos, camisa branca de

    mangas longas, olha para seu lado esquerdo. Seu olhar de

    incompreenso.No centro desse grupo, trs ou quatro passos adiante, um outro

    homem com sacola na mo caminha de frente, em direo testemunha.

    Ele olha para trs, torcendo a cabea para a direita, tambm em direo ao

    centro da cena. Seu rosto e suas costas so vistos refletidos no espelho

    ele olha para trs! A imagem de seu corpo se prolonga nas pernas do

    homem que carrega o espelho, construindo um ser hbrido que, parado,

    olha para trs. esquerda e ao mesmo tempo no centro, esse homem assume papel

    protagonista na imagem. O que ele v?

    Ao olhar para o espelho ele no v sua imagem refletida. Ele v

    algum que olha em sua direo. Ele testemunha o testemunho. V-se

    sendo visto atravs do espelho, atravs das lentes do fotgrafo.

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    Seus olhares, mediados, se cruzam. Ambos tm a conscincia de

    terem sido descobertos. O fotgrafo apontou sua mira e disparou. Acertou o

    olho do homem que caminha em sua direo, o homem que, ao se

    aproximar e descobrir o jogo, pe fim s suas estratgias de invisibilidade.

    Agora so duas as testemunhas.

    Essa imagem o testemunho do encontro de conscincias. O ato de

    produzir uma imagem carregada de intenes e o ato de perceber-se, sem

    a mnima inteno de s-lo, como imagem em construo. Menos que um

    fato, a fotografia um ato. Um ato consciente da manipulao do

    testemunho. Sim, o fato registrado na fotografia ocorreu, mas ocorreu em

    imagens distintas para cada um dos atores da cena.

    Fotografia:

    Denise Mansur

    2004

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    BIBLIOGRAFIA

    ARFUCH, Leonor. Album de famlia: In: Memria , Antologia e Punto de Vista.

    Buenos Aires: Punto de Vista/Libronauta, 2001.

    GONZALES FLORES, Laura. Fotografia e Pintura: dos medios diferentes?

    Barcelona: Gustavo Gili, 2005. Captulo: La fotografia como memria.

    JEUDY, Henry-Pierre. O corpo como objeto de arte. So Paulo: Estao Liberdade,

    2002. Captulo 3: O corpo exibido.

    MELENDI, Maria Anglica. Bibliotheca ou das possveis estratgias da memria.

    In: Rosngela Renn. O arquivo Universal e outros arquivos. So Paulo: Cosac &

    Naify, 2003.

    PEIRCE, Charles Santiago Sanders. Semitica e Filosofia. So Paulo: Cultrix,

    Editora da Universidade de So Paulo, 1975.

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