Post on 24-Oct-2020
ADRIANA DA SILVA LOURO
OS SENTIDOS E SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS PELO PROFESSOR SOBRE O VALOR DE AUTONOMIA NA SUA PRÁTICA
PEDAGÓGICA
Educação: Psicologia da Educação- PUC/SP São Paulo - 2005
1
ADRIANA DA SILVA LOURO
OS SENTIDOS E SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS PELO PROFESSOR SOBRE O VALOR DE AUTONOMIA NA SUA PRÁTICA
PEDAGÓGICA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Univerdade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação: Psicologia de Educação, sob a orientação da Profa. Dra. Wanda Maria Junqueira de Aguiar.
Educação: Psicologia da Educação- PUC/SP São Paulo - 2005
2
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
3
Em memória ao meu irmão Paulo que muito contribuiu nessa minha caminhada.
4
Agradecimentos
Diversas pessoas contribuíram para a realização deste trabalho, cada uma de sua maneira e a elas agradeço.
Assim, agradeço especialmente:
- aos meus pais Ascensão e Armando pelo apoio em todas as escolhas realizadas
ao longo da vida;
- aos meus irmãos Adelino e Armando pelo apoio e companheirismo;
- às minhas amigas Celinha, Luciete e Suzana pelo carinho, companheirismo e
paciência que demostraram em todo este processo;
- à Ia pela paciência e suas orientações que tornaram possível este trabalho;
- aos amigos , Eiko, Flávia e Sandro pelo apoio, sugestões;
- ao Eduardo que surgiu no meio deste processo oferecendo carinho,
companheirismo e incentivo;
- à Christine pelas conversas e incentivo;
- à coordenadora pedagógica pela colaboração e receptividade;
- à professora pela simpatia, receptividade;
- ao apoio financeiro do CNPq.
5
RESUMO
Este trabalho buscou apreender os sentidos e significados de uma professora
de ensino fundamental acerca do valor de autonomia na sua prática pedagógica. A perspectiva utilizada é a da psicologia sócio-histórica, cujo embasamento filosófico é o materialismo histórico dialético. Nesta perspectiva, o homem é constituído nas relações sociais, ou seja, na sua relação dialética com a realidade social. Assim, o homem não é compreendido de forma dicotômica seja priorizando o aspecto biológico ou social, mas com aquele que se constitui da interrelação de ambos. O princípio fundamental do método de investigação adotado coloca a necessidade da compreensão do processo histórico do objeto, ou seja, a análise dos processos que constituem o objeto. A pesquisa é qualitativa, sendo realizada com apenas uma professora do ensino fundamental de uma escola da rede municipal de São Paulo. A escolha de um sujeito único foi por conta da complexidade existente na apreensão dos sentidos e significados constituídos pelo indivíduo. As técnicas utilizadas para obtenção das informações foram: história de vida, entrevista semi estruturada e análise de uma piada que abarcava a questão da autonomia. O procedimento de análise se deu pela organização de núcleos de significação constituídos a partir do relato da entrevistada. Os critérios utilizados para a organização dos núcleos de significação foram: os conteúdos que apareceram com alguma fequência, que se mostraram significativos para a entrevistada, e os que foram pertinentes para o objetivo da pesquisa. A negação do autoritarismo se mostrou uma questão presente no relato de Rosana, sendo um determinante importante para entender a sua constituição do valor de autonomia. O autoritarismo esteve presente em sua vida escolar e familiar de modo que constituir um sentimento de abominação em relação a este. Esse horror ao autoritarismo orienta sua prática pedagógica, pois ao longo de seu relato, sua preocupação de não agir de forma autoritária com seus alunos ficou evidente. Rosana naturaliza a autonomia, não consegue perceber-la como algo construído, mas sim como algo próprio do indivíduo. Deixou claro em seu relato que não possui um entendimento do valor de autonomia, afirmando este ser muito complexo. Este trabalho tem a pretensão de contribuir para reflexões sobre aspectos a serem discutidos nos cursos de formação de professores, como a importância destes cursos valorizarem a fundamentação teórica na formação do professor, pois essa falta de fundamentação interfere no exercício de sua prática pedagógica.
6
ABSTRACT
This work intends to grasp the senses and meanings of an elementary school teacher about the autonomy value of her pedagogical practice. It is adopted the perspective of a social and historical psicology, whose phylosophic fundament is based on the dialetic historical materialism. According to that perspective, man is built on social relations, that is, on its dialectical relation with social reality. Therefore, man is not comprehended under a dichotomy of perspective that prioritize neither biological nor social aspects, but the one which is consisted by the inter relation between both. The fundamental principle of the investigation method adopted brings on the necessity of comprehension of the historical process of the object, which means the analysis of the processes that constitute the object. The research is qualitative and made with only one teacher of a public elementary school of Sao Paulo. The choice of an only subject was due to the complexity of grasping the senses and meanings constituted by an individual. The techniques used for obtaining the information were: life history, semi structured interview and analysis of a joke involving the question of autonomy. The analysis procedure was given by the organization of signification nuclei constituted on the basis of the interviewed report. The criteria used for the signification nuclei organization were: the contents that frequently showed up, that showed some significance for the interviewed, and those with some pertinence to the research objective. The authoritarianism denial appeared to be a present question in Rosana’s report, being an important determinant for the understanding of her constitution of autonomy value. Authoritarianism was so present during her family and school life that she developed an abomination feeling towards it. Such feeling orients her pedagogical practice. Along her report, it is clear the concern that she would act in an authoritarian way with her pupils. Rosana makes autonomy seem natural and cannot notice it as something that is made up. On the contrary, she believes that autonomy is inherent in an individual. She makes clear in her report that she does not have a perfect understanding of the autonomy value due to its complexity. This work intends to contribute for the reflection of some aspects that can be discussed in teacher’s foundation courses, such as the importance of valuing the theoretical foundation in teacher’s graduation, since the lack of that theory would interfere in the pedagogical practice.
7
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................8
INTRODUÇÃO....................................................................................................11
I- PRESSUPOSTOS TEÓRICOS .......................................................................19
II- ÉTICA, VALOR E MORAL ..............................................................................30
III- FORMAÇÃO DE PROFESSORES................................................................40
3.1- Autoridade/Autoritarismo ........................................................................48
IV- PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS........................................................51
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ...........................................................54
4.1- Obtenção das Informações...................................................................54
4.2- Procedimentos de análise .....................................................................56
4.3- Características da escola ......................................................................57
4.4- Um breve histórico da entrevistada .......................................................59
ANÁLISE DOS DADOS ......................................................................................61
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................99
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................105
ANEXOS...........................................................................................................109
8
APRESENTAÇÃO
Apresenta-se aqui um breve histórico da trajetória de como se chegou ao
problema de pesquisa escolhido para este trabalho.
No início da primeira série do ensino fundamental, fui transferida para uma
sala de crianças com deficiência mental e repetentes, pelo fato de não saber ler nem
escrever. Não entendia muito bem o que acontecia, pois se estava na escola cuja
função era justamente ensinar-me a ler e a escrever, pelo quê estava sendo
punida?. O pior foi o modo como a professora agiu, sem nenhum cuidado: falou na
frente de todos que eu não teria condições de acompanhar a turma e que seria
transferida para outra sala.
Este fato foi muito doloroso, pois me senti humilhada, desrespeitada e
incapaz. Nos anos posteriores ficava tensa, com medo de ser trocada de sala por
incapacidade. Esse sentimento de incapacidade estendeu-se para todas as
atividades que realizava, dentro ou fora do ambiente escolar.
Tal episódio me deixou muito “crítica” , no sentido de observar a postura do
professor em sala de aula, ou seja, a sua maneira de lidar com os alunos, de
transmitir o conteúdo.
Pensando em todos os anos escolares até o ingresso na universidade, a
maioria dos professores teve a “mesma” postura, a de não promover o diálogo em
sala de aula, de estarem preocupados apenas em manter a disciplina e cumprir a
programação dos conteúdos. Claro que alguns professores eram menos autoritários
que outros, deixavam os alunos conversarem com mais frequência; mas, na
essência, tinham a mesma preocupação: transmitir os conteúdos de forma autoritária
e acrítica.
9
Passei todo o período escolar tentando entender o porquê da maneira como
os professores agiam em sala de aula, seja na forma de passar os conteúdos ou na
forma de lidar com os alunos. E, como não tinha condições de entender, ficava
classificando como bom ou ruim, mas nunca ótimo.
Uma outra preocupação minha era com o desenvolvimento humano dos
indivíduos, de como as formas de relacionamento influenciavam o desenvolvimento
das pessoas, e como o papel do professor era importante neste processo. Era por
isso que, ficava muito incomodada com certas posturas do professor de desrespeito,
de humilhação para com os alunos.
Ao ingressar no curso de Licenciatura e Formação de Psicólogo continuei
com estas preocupações; no entanto, tive experiências que proporcionaram
discussões e reflexões acerca do papel da educação na sociedade e a importância
do compromisso, como educador, com o desenvolvimento dos indivíduos.
O grupo de estudo: “Núcleo de estudos e pesquisa em psicologia social e
educação: contribuições do marxismo” e o projeto de extensão: “ Cidadania e
Direitos Humanos: projeto interdisciplinar de pesquisa e intervenção em núcleo
habitacional no município de Bauru” dos quais participei, foram fundamentais nessas
discussões e reflexões.
Durante a graduação, tive professores que foram valiosos na minha formação
profissional e pessoal. Estes docentes mostraram-se comprometidos com a
aprendizagem dos alunos, respeitosos com eles, preocupados não apenas com os
conteúdos, mas com a sua formação humana. Estes exemplos me mostraram que
existem outros modelos de ser professor, e que a formação é um determinante
fundamental.
10
Um outro elemento importante para a escolha do problema de pesquisa foi o
contato com a teoria do materialismo histórico dialético. Esta teoria proporcionou um
novo olhar sobre o homem, a sociedade, o processo ensino- aprendizagem; enfim,
o desenvolvimento humano. Conhecer a obra de Marx e Vigotski foi decisivo para
essa nova compreensão da realidade, principalmente dos aspectos psicológicos
envolvidos na formação do indivíduo.
Desta forma, minha preocupação voltou-se para a formação de professores,
a relação professor-aluno e, mais especificamente, a questão da formação dos
valores da criança. Devido à amplitude do tema, escolhi o valor de autonomia por
entender fundamental para o desenvolvimento do indivíduo.
11
INTRODUÇÃO
O processo de desenvolvimento do indivíduo está inter-relacionado com
diversas determinações e, dentre elas, a escola. Esta possui a função de possibilitar
ao aluno a apropriação dos conteúdos científicos, de forma que o aluno se aproprie
destes e amplie o conhecimento da realidade social em que está inserido. Desta
forma, afirmamos a importância da prática docente como aquela que é fundamental
para que tal processo se complete.
A relação professor-aluno é, para Aquino (1996), o cerne do processo
educativo, isto é, direciona o processo de ensino-aprendizagem. O aprendizado do
aluno é o principal objetivo a ser alcançado pelo professor; para a eficácia deste, o
relacionamento interpessoal com o aluno é fundamental. Nesta relação entre
educador e educando estão envolvidos diversos elementos como valores,
preconceitos e expectativas de ambas as partes. É na articulação dessa diversidade
que surgem os conflitos enfrentados em sala de aula.
Na sala de aula o professor expressa os seus valores políticos, morais/éticos
por meio de suas ações, na forma como lida com os alunos, como dialoga, como
trata a questão do preconceito e dos estereótipos. O docente não deve preocupar-
se apenas com a transmissão dos conhecimentos científicos, mas com a formação
do aluno, como “humano”. Na sua prática em sala de aula o professor deve, na
transmissão dos conteúdos e na forma de interagir com os alunos, ter o
compromisso de atuar de modo a contribuir no processo de humanização1 destes.
1 Estamos entendendo por humanização o processo do homem “tornar-se homem”, isto é, o processo de apropriação das objetivações humanas construídos ao longo do desenvolvimento histórico social do homem. Entendemos que este processo possibilita o desenvolvimento do indivíduo como ser humano.
12
Para Cortella (1999) o papel central da escola é possibilitar ao aluno a
compreensão e intervenção na realidade visando sua autonomia e humanização.
Dessa forma, o papel do professor torna-se essencial no processo educativo a fim
de formar alunos capazes de refletir, criticar e agir sobre sua realidade. Ele é o
principal mediador do encontro do aluno com o conhecimento, criando condições ao
educando de apropriar-se do conhecimento científico historicamente acumulado pela
humanidade. Essa apropriação não ocorre de forma espontânea pela criança,
sem nenhuma intervenção de um adulto; sendo assim, esta é a principal tarefa do
educador: ensinar os conteúdos científicos. Severino define mediação como a
[...] instância que relaciona objetos, processos ou situações entre si; a partir daí, o conceito designará um elemento que viabiliza a realização de outro e que, embora seja distinto dele, garante a sua efetivação, dando-lhe concretude (2001, p. 44).
Neste sentido o professor, por meio de sua prática, possibilita o encontro do
aluno com o conhecimento, sendo o mediador nesta relação de modo que seu aluno
se aproprie deste conhecimento. E, ao mesmo tempo que o aluno se constitui a
partir do conhecimento, o está constituindo também.
Desta forma, a intencionalidade da prática educativa é fundamental, pois é
por meio desta que o professor orienta suas ações a fim de que possa construir uma
prática transformadora. De acordo com essa idéia aponta, Severino (2001, p. 46):
[...] pela práxis que o homem opera e age. Ela é o movimento que articula dialeticamente a operação e a reflexão, a teoria e a prática. Para que a ação humana seja criadora e transformadora, precisa ser uma prática intencionalizada pela teoria e pela significação.
13
Neste sentido, a teoria mostra-se fundamental na atuação do professor em
sala de aula. Sobre este assunto também nos fala Pimenta (2002), ainda elevando
a importância da teoria na prática docente:
O papel da teoria é oferecer aos professores perspectivas de análise para compreenderem os contextos históricos, sociais, culturais, organizacionais e de si como profissionais, para neles intervir, transformando-os. Daí, é fundamental o permanente exercício da crítica das condições materiais nas quais o ensino ocorre e de como nessas mesmas condições são produzidos os fatores de negação da aprendizagem ( p.26).
A teoria é um instrumento que auxilia o professor a olhar criticamente sua
realidade e buscar elementos na resolução de seus problemas cotidianos. No
entanto, somente a teoria não possibilita o olhar crítico do docente; é necessário o
movimento da práxis de ação-reflexão-ação. É importante o educador conhecer a
realidade onde está inserido: a escola que leciona, suas particularidades e sua
comunidade.
Saviani (1996) aponta saberes que devem fazer parte na formação do
educador, como: saber atitudinal, saber crítico, saber específicos das disciplinas,
saber pedagógico e didático-curricular. Esses saberes abrangem atitudes e posturas
do educador, como: respeito, diálogo, coerência etc, no que se refere ao seu papel.
O professor deve possuir, ainda, compreensão das condições sócio- históricas do
processo educacional, o que o possibilitará um preparo mais eficaz dos educandos
para atuarem na sociedade de forma ativa. Deve ainda possuir conhecimentos
relativos à área da educação e das disciplinas específicas, formas de organização e
realização das atividades propostas.
Neste sentido, a formação dos educadores merece total atenção, pois este
processo é determinante na construção de concepções acerca de seu trabalho. A
formação do professor deve ser direcionada para a construção de concepções
14
teóricas consistentes, de compromissos éticos, sociais e políticos claros, buscando
sempre o desenvolvimento do indivíduo.
Há muita discussão em torno da necessidade de investimento na formação
do docente, seja inicial e/ou continuada, com o intuito de proporcionar ao professor
espaços de reflexão acerca de sua prática. Imbernón (2000, p.39) salienta que os
cursos de formação docente devem ser orientados no sentido de proporcionar ao
professor em formação meios de refletir sua prática pedagógica “com o objetivo de
aprender a interpretar , compreender e refletir sobre a realidade social e a docência”.
A formação inicial e continuada deve ter como objetivo central a criação do
pensamento crítico dos docentes, não apenas sobre a sua prática, mas também da
instituição escolar e da realidade social. Os problemas educacionais não devem ser
entendidos de forma individualizada sem que se realize uma análise da totalidade do
fenômeno. Desta forma o trabalho coletivo dentro da escola é de suma importância,
pois quando o professor tem a possibilidade de discutir e refletir coletivamente, além
da diminuição de sua angústia, soluções são encontradas para os conflitos
cotidianos.
A prática pedagógica é complexa e exige do docente uma constante reflexão;
no entanto, é necessário que não fique apenas no movimento de reflexão, mas que
esta se materialize em ações.
O professor está diante de uma realidade em que se vê impotente muitas
vezes, ante alunos indisciplinados e desinteressados ou com dificuldades de
aprendizagem, além de péssimas condições de trabalho. Segundo Lagôa (2002), o
professor vive um impasse: a distância entre o planejamento e a execução, o
pensamento e a reflexão, a intenção e a ação. Este impasse resulta em uma
mecanização e constante repetição de sua atividade, o que leva o docente a
15
distanciar-se da realidade. As condições de trabalho oferecidas pelas escolas
reforçam essa situação. É comum haver pouco tempo para que o professor estude,
realize o exercício da reflexão, discussão e crítica em relação a sua própria atividade
e suas dificuldades.
Pereira (1999) coloca que os novos estudos dos problemas escolares
trazem o professor como foco, pois há evidências que apontam para a dificuldades
dos docentes em apreender as necessidades dos alunos. Isso pode evidenciar o
despreparo do professor para perceber as necessidades do aluno, mostrando-se
insensível a ele. Disto decorre a necessidade de que o professor tenha tempo para
aperfeiçoamento constante e espaços que proporcionem reflexões acerca de sua
prática, a fim de que perceba as dificuldades dos alunos e possa contribuir para sua
superação. É por meio deste aperfeiçoamento que o professor pode adquirir meios
e instrumentos necessários para reflexão acerca de suas dificuldades e angústias,
repensando suas ações e concepções.
Além de aperfeiçoamento constante, segundo Lagôa (2002), o professor
necessita de apoio dos outros profissionais envolvidos no processo educacional –
diretor, coordenador pedagógico, colegas, funcionários etc. - , pois ele sente-se
solitário ao desenvolver sua função. Além destes, a desvalorização social e os
baixos salários são problemas históricos enfrentados pelo professor e que
influenciam de maneira decisiva suas ações, desmotivando-os para a reflexão de
suas práticas pedagógicas.
Todos esses elementos influenciam decisivamente a atividade docente, que
necessita de mudanças para que os profissionais atuem de modo mais efetivo e
construtivo. Para estudiosos como Vasconcelos (1997), essas mudanças na prática
pedagógica passam pela construção da participação coletiva e ativa não apenas em
16
sala de aula, mas em toda a instituição escolar. Também é preciso que o professor
adote uma postura ativa, questionando sua própria prática, e agindo de modo a
combater os diversos tipos de preconceitos . É adotando esse tipo de postura que o
professor constrói a coletividade em sala de aula e atua comprometido com a
transformação da sociedade. Também é necessário que o professor respeite as
diferenças individuais de seus alunos, e busque estabelecer com eles diálogos
constantes.
A afetividade é outra questão presente em sala de aula, para a qual o
professor deve atentar. Este é um elemento importante no processo educacional
que, se bem analisado, pode trazer ricas contribuições para a relação
professor/aluno; Leite e Tassoni (2002) pontuam em seu texto a idéia de Pino sobre
os fenômenos afetivos, os quais:
[...] revelam como cada acontecimento da nossa vida repercute no íntimo de cada sujeito. Destaca que, todos esses acontecimentos, os mais importantes são, sem dúvida, as reações e as atitudes das outras pessoas em relação ao indivíduo. [...] Embora os fenômenos afetivos sejam de natureza subjetiva, isso não os torna independentes da ação do meio sociocultural, pois é possível afirmar que estão diretamente relacionados com a qualidade das interações entre os sujeitos, enquanto experiências vivenciadas ( p.116).
Nos primeiros anos de escola o vínculo afetivo possui uma grande
importância para a vida da criança, tanto no âmbito do cognitivo como na formação
pessoal. Deste modo, a figura do professor torna-se fundamental, pois sua ação em
sala de aula é um elemento importante na experiência da criança com o
conhecimento. E não apenas com o conhecimento; sua figura contribui na formação
de valores morais, éticos, políticos da criança.
[...] mediação feita pelo professor, durante as atividades pedagógicas, devem ser sempre permeadas por sentimentos de acolhimento, simpatia, respeito e apreciação, além de compreensão, aceitação e valorização do outro; tais elementos não só marcam a relação do aluno com o objeto de conhecimento, como também afetam a sua auto imagem, favorecendo a autonomia e
17
fortalecendo a confiança em suas capacidades e decisões (LEITE E TASSONI, 2002, p.136).
Na pesquisa realizada por Munhos (1999), os professores de pré-escola
mostraram-se atentos à expressão dos sentimentos de seus alunos, que foi
considerada pela autora como um aspecto positivo da relação pedagógica. As
professoras demostraram conhecer bem seus alunos pois, por meio da observação
destes, aprenderam “a ler os sinais de estados afetivos fornecidos pela postura,
olhar, pelo movimento e mudança de comportamento das crianças” ( MUNHOS,
1999, p. 63).
As professoras compreendem que a afetividade é um fator importante para o
desenvolvimento global da criança. A concepção de afetividade que elas possuem
abarca apenas os sentimentos positivos como: respeito, carinho e diálogo,
ignorando que a afetividade engloba sentimentos positivos e negativos. Relatam que
estes sentimentos devem ser compartilhados por todas as pessoas que trabalham
na escola,
A qualidade do vínculo entre o professor e o aluno deve ser construída de
forma que se crie uma relação de respeito, diálogo e principalmente de coletividade.
Ambos os atores do processo de ensino-aprendizagem possuem contribuições
importantes na construção do conhecimento e na constituição de uma realidade que
propicie condições adequadas para o desenvolvimento humano. O professor
necessita compreender a importância que possui na vida da criança, sua
responsabilidade como educador e principalmente que suas ações em sala de aula
contribuem na formação dos valores da criança.
Desta forma o objetivo de minha pesquisa é : apreender os sentidos do
professor de ensino fundamental atribui ao valor de autonomia na sua prática
pedagógica.
18
A autonomia se constitui na relação do indivíduo com o mundo objetivo, na
relação em que o adulto cria condições para que a criança vivencie o processo de
escolha, tome suas próprias decisões, possibilitando o desenvolvimento do domínio
de sua conduta. Discutiremos mais adiante sobre essa questão do desenvolvimento
da autonomia.
O trabalho está dividido em quatro capítulos, sendo que no primeiro iremos
discutir os pressupostos teóricos em que nos fundamentamos que é da psicologia
sócio-histórica. No segundo capítulo discutiremos sobre Ética, valor e moral,
incluindo o valor de autonomia. No terceiro capítulo iremos discutir Formação de
professores, o quarto sobre os pressupostos metodológicos, análise dos dados, e
por fim as considerações finais.
Assim, esperamos contribuir para que aspectos da formação docente sejam
refletidos, ampliando as concepções cotidianas acerca das práticas pedagógicas.
19
I- PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Neste capítulo iremos pontuar aspectos relevantes para o entendimento da
perspectiva da psicologia sócio-histórica, cujo embasamento filosófico é o
materialismo histórico-dialético. Nesta perspectiva, o homem é constituído nas
relações sociais, ou seja, na sua relação dialética com o mundo social. Assim, o
homem não é compreendido de forma dicotômica em que se priorize o aspecto
biológico ou o social, mas é produto da inter-relacão de ambos.
O homem possui uma base biológica, que não se pode negar; no entanto,
esta não é o único determinante da constituição dos processos psicológicos. A
relação com a realidade histórica-social, ou seja, o contato com a cultura humana
possibilita o desenvolvimento das funções psíquicas e habilidades do indivíduo.
Estas são constituídas nas e pelas relações que estabelecem na realidade social.
Dessa forma, a singularidade do indivíduo é constituída nas condições
concretas de sua realidade, considerando a classe social, a cultura, as relações com
a família, amigos, comunidade, não se perdendo de vista a relação dialética
existente entre estes aspectos. Não é possível entender os processos psicológicos
do indivíduo sem relacioná-los aos aspectos macro da sociedade, como: o
econômico, político, cultural, social, pois se compreende que a individualidade
humana é constituída na relação dialética entre homem e sociedade.
Assim, a história humana é construída no processo de atuação do homem na
natureza , de forma que ambos se transformam. É pela atividade humana que o
homem transforma a natureza, ao mesmo tempo que se transforma, produzindo
meios para a satisfação de suas necessidades.
20
O homem é ativo e social, pois ele atua na realidade, sendo constitutivo do
processo histórico. O indivíduo não atua no meio social de forma aleatória, mas sim
com uma intencionalidade na busca da satisfação de suas necessidades, num
movimento que é processual. Deste modo, a constituição do psiquismo humano é
entendida como um processo que está em constante transformação, pois o processo
histórico é dinâmico.
Para uma melhor compreensão da constituição do psiquismo humano, é
importante apresentar algumas considerações sobre a constituição deste psiquismo.
A consciência é entendida como um processo que se desenvolve a partir da
relação dialética entre o homem e natureza. Desta forma, é através da atuação
humana na natureza (e vice-versa) que o processo de desenvolvimento da
consciência se constitui. O homem transforma a natureza e a si mesmo através da
atividade, isto é , por meio da atividade que o homem é capaz de criar meios de
satisfação de suas necessidades.
Para Marx a principal atividade humana é o trabalho; é por meio deste que o
homem constitui sua singularidade, desenvolve suas potencialidades, transforma a
sociedade e constrói a história da humanidade. Pino (2000, p. 41) coloca que :
Pelo trabalho, ao mesmo tempo em que os homens transformam a natureza para satisfazer as suas necessidades materiais e psicológicas, transformam-se eles mesmos, desenvolvendo funções e habilidades especificamente humanas [...] Na perspectiva marxiana, a atividade do trabalho implica, portanto, uma dupla produção: a dos objetos e a do ser humano.
Desta forma, o trabalho é um determinante fundamental na constituição da
existência humana pois através deste foi possível desenvolver os meios de
satisfação das necessidades humanas. Neste processo de satisfação das
necessidades o homem criou instrumentos e desenvolveu a linguagem, mediações
fundamentais para o processo de constituição da consciência humana. Esse
21
movimento só pode ser entendido considerando a relação dialética entre o homem e
a natureza.
Na comunidade primitiva o homem buscava a satisfação de suas necessidades
biológicas, ficando no imediatismo. No entanto, com a fabricação e uso de
instrumentos e o desenvolvimento da linguagem, o homem amplia seus
conhecimentos acerca de sua realidade criando outras necessidades, não se
restrigindo mais às biológicas. Desta forma a criação de novas necessidades é um
processo social, isto é, através da atuação humana na realidade objetiva (e vice
versa) criam-se novas necessidades. Marx (1989) coloca a produção dos meios de
satisfação das necessidades humanas como o primeiro ato histórico.
Neste sentido, toda produção humana é síntese da relação dialética entre o
homem e a realidade social. Os processos de objetivação e apropriação possibilitam
a compreensão dessa produção. O homem, por meio do trabalho, objetiva na
realidade social suas produções materiais e não-materiais (como linguagem,
conhecimento, etc). No entanto não podemos dissociar o processo de objetivação e
apropriação de forma dicotômica, pois ambos se inter-relacionam. Sobre esta
relação, Duarte (2000, p. 117) coloca:
[...] com base na dialética entre objetivação e apropriação como aquela que sintetiza, na obra de Marx, a dinâmica essencial do trabalho e, por decorrência, a dinâmica essencial do processo de produção e reprodução da cultura humana. O processo de apropriação surge, antes de mais nada, na relação entre o homem e a natureza. Nessa relação o ser humano, pela sua atividade transformadora, apropria-se da natureza incorporando-a à prática social. Ao mesmo tempo, ocorre também o processo de objetivação, pois o ser humano produz uma realidade objetiva que passa a ser portadora de características humanas, uma realidade que adquire características socioculturais, acumulando a atividade de gerações de seres humanos. Isso gera a necessidade de outra forma do processo do processo de apropriação, já agora não mais apenas como apropriação da natureza, mas como apropriação dos produtos culturais da atividade humana, das objetivações do gênero humano (entendidas aqui como os produtos da atividade social objetivadora).
22
Dessa forma os processos de objetivação e apropriação são essenciais na
formação da individualidade na medida em que é pelas apropriações das
objetivações humanas que o indivíduo se constitui e se insere na história. Neste
processo, os signos possuem uma função mediadora na apropriação da realidade
objetiva, isto é, contribuem na transformação do que é social em psicológico. Pino
(2000, p. 42) coloca que “ é pela mediação dos signos que a criança se incorpora
progressivamente à comunidade humana, internalizando sua cultura e tornando-se
um indivíduo cultural, ou seja, humanizado”.
Os signos possuem um significado, ou seja, referem-se a algo situado fora deles.
Assim, constituem-se no contexto cultural que, ao serem internalizados, tornam-se
instrumentos psicológicos constituintes da consciência.
O signo, como coloca Smolka (2003, p.42), “ viabiliza modos de interação e de
operação mental”. O signo possibilita ao homem indicar , nomear, planejar , orientar
ações, conhecer a realidade e a si mesmo, enfim tornar-se sujeito e construir a
realidade social e isso através da linguagem.
A linguagem possibilita ao homem apropriar-se do conhecimento construído ao
longo da história, ou seja, da experiência do gênero humano. No entanto, não
podemos dissociar o desenvolvimento da linguagem do desenvolvimento do
pensamento. A inter-relação de ambos os processos possibilita o entendimento da
complexidade do psiquismo humano.
No estágio inicial do desenvolvimento da criança, existe um estágio pré-
intelectual no processo de formação da linguagem e um estágio pré-linguagem no
desenvolvimento do pensamento. Embora a linguagem e o pensamento possuam
gêneses diferentes e não estejam ligados por um vínculo primário, “este surge,
modifica-se e amplia-se no processo do próprio desenvolvimento do pensamento e
23
da palavra” (VIGOTSKI,1998, p.396). Desta forma ambos os processos (pensamento
e linguagem) constituem-se no processo do desenvolvimento histórico da
consciência humana.
Estes processos possuem uma relação dialética entre si, não podendo ser
compreendidos separadamente, isolados um do outro. Como aponta Vigostki (1998,
p. 409), “[...] a relação entre o pensamento e a palavra é, antes de tudo, não uma
coisa mas um processo, é um movimento do pensamento à palavra e da palavra ao
pensamento.
Este movimento é complexo pois envolve várias fases e estágios, decorrentes
do desenvolvimento do processo do pensamento à palavra. Para compreender essa
transição é necessário conhecer os vários planos pelos quais passa o pensamento, “
que se materializa na palavra” (VIGOTSKI, 1998, p.410). Desta forma a linguagem
possui dois planos: o do aspecto semântico interior e o do aspecto físico e sonoro
exterior.
O aspecto semântico transcorre em seu desenvolvimento do todo para a parte, da oração para a palavra, ao passo que o aspecto externo transcorre da parte para o todo, da palavra para a oração (VIGOTSKI, 1998, p.411).
Assim, o desenvolvimento deste dois planos da linguagem ocorrem em sentidos
opostos, no entanto, constituem uma unidade de ambos os aspectos.
[...] desde o início o pensamento e a palavra não se estruturam, absolutamente, pelo mesmo modelo. (...) Por sua estrutura, a linguagem não é um simples reflexo especular do pensamento, razão por que não pode esperar que o pensamento seja uma veste branca. A linguagem não serve como expressão de um pensamento pronto. Ao transformar-se em linguagem, o pensamento se reestrutura e se modifica. O pensamento não se expressa mas se realiza na palavra (VIGOTSKI, 1998, p.412).
A palavra possui dois componentes: a referência concreta e o seu
significado. Aguiar (2001, p.130) pontua que o “significado é parte integrante da
24
palavra, mas ao mesmo tempo ato do pensamento, é um e outro ao mesmo tempo,
porque é a unidade do pensamento e da linguagem”.
Para Vigotski (1998, p.398) o significado da palavra é a “ unidade que reflete da
forma mais simples a unidade do pensamento e da linguagem [...] é uma unidade
indecomponível de ambos os processos e não podemos dizer que ele seja um
fenômeno da linguagem ou um fenômeno do pensamento ”.
A transição do pensamento à palavra passa pelo significado pois, o pensamento
não coincide apenas com a palavra, mas com o significado desta.
Uma das grandes contribuições de Vigotski foi a descoberta da mutabilidade dos
significados das palavras e do seu desenvolvimento. Isso foi possível graças à
definição da natureza do significado que:
[...] se revela antes de tudo na generalização, que está contida no momento central, fundamental, em qualquer palavra, tendo em vista que qualquer palavra já é uma generalização. Contudo, uma vez que o significado da palavra pode modificar-se em sua natureza interior, modifica-se também a relação do pensamento com a palavra (VIGOTSKI, 1998, p.408).
A mutabilidade do significado dá-se no processo de desenvolvimento do
indivíduo, não estando isolada da realidade social deste.
Vigotski (1998, p.398) pontua que “ palavra desprovida de significado não é
palavra, é um som vazio. Logo, o significado é um traço constitutivo indispensável da
palavra”. Deste modo a palavra com significado é um elemento central na
compreensão dos fenômenos psicológicos, como afirma Aguiar (2001, p. 131), “por
meio da palavra, podemos apreender os aspectos cognitivos/afetivos/ volitivos
constitutivos da subjetividade, sem esquecer que tal subjetividade e, portanto, os
sentidos produzidos pelos indivíduos são sociais e históricos”.
25
A consciência não é constituída apenas por processos cognitivos e
intelectuais mas, também afetivos. O pensamento e a emoção não podem ser
entendidos de forma dicotomizada, pois ambos estão inter-relacionados.
Vigotski, ao discutir sentidos e significados, “ evidencia a dialética da
constituição da consciência, a integração entre afetivo e cognitivo, o caráter social,
histórico e único do sujeito” (AGUIAR, 2001, p.105).
O sentido possui uma dimensão mais ampla enquanto que o significado se
remete a “elementos mais estáveis” compartilhados culturalmente. Para Vigotski
(1998, p.465) o sentido “ é a soma dos eventos psicológicos que a palavra evoca na
consciência “, idéia esta pautada no Paulhan. O sentido é mais complexo pois
envolve o significado e a experiência pessoal do indivíduo, possuindo diversas
zonas de estabilidade variada. Assim, o significado é apenas uma das zonas do
sentido, a mais estável e exata.
Leontiev (1978, p.94) também discute essa questão, colocando que a
significação é:
[...] a generalização da realidade que é cristalizada e fixada num vetor sensível, ordinariamente a palavra ou a locução. É a forma ideal, espiritual da cristalização da experiência e da prática sociais da humanidade. A sua esfera das representações de uma sociedade, a sua ciência, a sua língua existem enquanto sistemas de significações correspondentes. A significação pertence, portanto, antes de mais, ao mundo dos fenômenos objetivamente históricos.
No entanto, não se pode considerar a significação apenas no plano social
mas, simultaneamente, no plano individual. O indivíduo, ao longo de sua vida,
apropria-se dos conhecimentos acumulados historicamente pela humanidade e este
processo “realiza-se precisamente sob a forma da aquisição das significações e na
medida desta aquisição ” (LEONTIEV, 1978, p.94). Deste modo, a significação é
entendida num processo dialético entre o plano social e individual: “ a significação,
enquanto fato da consciência individual, não perde por isso o seu conteúdo objetivo;
26
não se torna de modo algum uma coisa puramente “psicológica” (LEONTIEV, 1978,
p.94).
O homem, na relação com a realidade social, apropria-se das significações
elaboradas historicamente; no entanto, essa apropriação é realizada de forma
individual, isto é, a forma como ele se apropria, o grau dessa apropriação, o como
esta irá influenciar na sua personalidade irá depender de cada indivíduo. Para
Leontiev (1978) este último aspecto depende do sentido pessoal que o homem dá a
essas significações.
O sentido é constituído na relação entre o sujeito e a atividade que este
estabelece com a realidade concreta. Do ponto de vista psicológico o sentido é a
relação “entre aquilo que o incita agir e aquilo para o qual a sua ação se orienta
como resultado imediato (LEONTIEV, 1978, p.97). Desta forma, o sentido se
expressa na relação entre o motivo e fim. O indivíduo, ao traçar um objetivo, possui
um motivo que irá orientar suas atividades para que este objetivo seja alcançado.
Assim, para entendermos o sentido de algum fenômeno para uma pessoa é preciso
descobrir o(s) motivo(s) que estão relacionados com a constituição deste sentido.
Desse modo, o sentido é constituído nas relações que o indivíduo estabelece
com a sua realidade, não perdendo de vista o caráter histórico social mais amplo. A
variabilidade do sentido está relacionada às vivências do sujeito, seja no plano
objetivo como no subjetivo.
Contudo, no processo de produção de novos sentidos não basta apenas
apropriar-se de conteúdos; é necessária uma nova configuração que modifique
antigas visões, idéias, e construa novos sentidos.
É possível um indivíduo estar num processo de apropriação da realidade,
demonstrar que está modificando seus sentidos e, no momento da ação, não
27
conseguir ser coerente com o novo sentido que surgiu. Aguiar e Bock (2003, p. 154)
pontuam que “este indivíduo vive uma situação de cisão entre o pensar, agir e sentir
[...]”. Esta cisão é constituída a partir de uma nova configuração, em que há o
“conflito” entre a possibilidade do novo e a permanência do antigo. Desta forma, as
mudanças dependem tanto das condições objetivas como subjetivas do sujeito.
As experiências pessoais permitem ao indivíduo “reorganizar” suas
necessidades, motivos, afetos, enfim, produzir novos sentidos. Assim, para a
compreensão do sentido é necessário analisar pensamentos, emoções, motivos,
necessidades do indivíduo, isto é, o processo de sua constituição. Deste modo, o
estudo da emoção é um componente importante para a apreensão dos sentidos,
visto que “ a emoção é uma condição permanente na definição do sujeito. A
linguagem e o pensamento se expressam a partir do estado emocional de quem fala
e pensa” ( REY, 2003, p.236).
O estado emocional do indivíduo mostra-se como um componente na
configuração da necessidade humana pois este possui ligação com suas ações. A
constituição da necessidade ocorre na relação do indivíduo com a realidade social; é
nas e pelas relações que são estabelecidas pelo sujeito que é produzida a
necessidade. Desta forma, a necessidade possui um caráter histórico e social e, ao
mesmo tempo, individual. E será na realidade social que o indivíduo encontrará as
formas de satisfação de suas necessidades.
Para a satisfação da necessidade é necessário que o indivíduo encontre o
seu objeto de satisfação e este processo ocorre somente pela atividade do sujeito. É
na atividade que a necessidade se objetiva, que encontra o seu objeto de satisfação.
28
A satisfação das necessidades não se dá somente através de um objeto
físico, considerando que temos necessidades materiais (comida, habitação, etc) e
não-materiais (atenção, amor, etc).
Maura coloca que a necessidade em si mesma não é capaz de produzir uma
atividade dirigida, é apenas um estado do sujeito; neste sentido, ”se limita a ativar o
funcionamento do indivíduo, funcionamento que é experimentado e configurado por
ele na forma de desejos ou tendências” (1995, p.97). Estes estados revelam a
dinâmica psicológica das necessidades, que em si mesmas não impulsionam o
indivíduo à ação. A necessidade só se torna orientadora e reguladora da atividade,
na medida em que encontra seu objeto de satisfação, ou seja, na medida em que se
converte em motivo.
O motivo constitui-se nessa relação entre a necessidade e o seu objeto de
satisfação; ao ocorrer esse movimento, o motivo é transformado em condutor da
atividade humana. Neste sentido são os motivos que orientam as ações do sujeito
na busca da satisfação de suas necessidades. Em vista disso, ao realizar uma
análise psicológica das necessidades, não é possível dissociar o estudo dos
motivos, pois a necessidade é transformada em motivos. A mudança dos motivos
implica numa mudança no(s) sentido(s) que o indivíduo atribui ao seu objeto de
desejo.
Desta forma, diversos processos estão envolvidos na constituição da
consciência humana e o seu desenvolvimento está inter-relacionado com estes
processos. Assim, para compreender a consciência do homem é necessário
conhecer os processos de constituição dos motivos, das necessidades, das
emoções e a inter-relação entre estes processos, chegando assim à produção dos
29
sentidos; contudo, para essa compreensão não se pode desconsiderar a realidade
sócio-histórica constitutiva do indivíduo.
30
II- ÉTICA, VALOR E MORAL
A prática cotidiana do indivíduo é regida, a todo momento, por valores morais,
políticos e éticos.
A vida em sociedade exige normas, regras, a fim de que possamos conviver
da melhor maneira possível no seio desta sociedade. A constituição destas regras e
normas são embasadas nos valores, isto é, são sustentadas por estes. O valor não
existe por si só, mas sua existência é relacionada a algo da realidade social.
Vázquez (1978, p.121) coloca que o valor “não é propriedade dos objetos em si, mas
propriedade adquirida graças à sua relação como ser social”. Desta forma é na
relação do homem com a realidade concreta que é histórica, que se constituem os
valores, na medida que o indivíduo dá significados para esta realidade. Estamos
constantemente valorizando sejam os objetos, as relações, as idéias, enfim, tudo
que nos cerca. Os valores mostram-se em diversos campos, como na perspectiva
lógica (verdadeiro/falso), estética (belo/feio), moral (bom/mau).
Quando o comportamento é qualificado de bom/mau entra no campo da
moral, como coloca Rios (2001, p.29) “ é no espaço da moralidade que aprovamos
ou reprovamos o comportamento dos sujeitos, que o designamos como correto ou
incorreto”.
Os conceitos de bom/mau são relativos ao momento histórico (não apenas
estes), ao modo de produção que “direciona” os valores aceitos socialmente. Em
última instância, podemos afirmar que a forma como os homens se organizam para
produzir constitui-se um determinante fundamental no que se refere à formação dos
valores. No modo de produção capitalista teremos formas próprias de pensar, sentir
e agir, as formas corretas de conduta. Por exemplo, a mídia sugestiona o modo do
31
jovem se comportar, e caso ele saia deste padrão, pode sofrer algum tipo de
preconceito.
Neste modo de produção, a idéia que se transmite é que os valores são
ditados como “naturais”, não sendo passíveis de mudança. O processo de alienação
“impossibilita” o indivíduo de perceber como os valores são criados socialmente e
de realizar uma reflexão crítica destes valores.
Os valores morais da burguesia são disseminados com a ajuda dos aparelhos
ideológicos, sendo o principal deles os meios de comunicação. A televisão com seus
programas, novelas, jornais, estão todo o tempo manipulando as formas de pensar
do indivíduo. Neste sentido, a classe dominante dissemina seus valores morais a fim
de que possa defender os seus interesses e fazer com que a classe trabalhadora
viva harmonicamente com a burguesia.
Vásquez (1978, p.69) coloca que a moral é um “[...] sistema de normas,
princípios e valores, segundo o qual são regulamentadas as relações mútuas entre
os indivíduos ou entre estes e a comunidade [...]”.
Segundo o autor, a moral nasceu com o objetivo de garantir a concordância
do comportamento de cada indivíduo com os interesses coletivos. Com o
desenvolvimento da sociedade primitiva houve a criação de deveres, estabelecendo,
desta forma, uma divisão do que é bom e mau, do ponto de vista da comunidade. O
que contribuía para o aumento da coletividade era visto como bom; mas caso
contrário, era visto como mau. Deste modo, o desenvolvimento da moral está
relacionada com os interesses coletivos.
A moral é confundida com a ética porque ambos os conceitos possuem uma
relação direta entre si. A ética, segundo Vázquez (1997, p. 12), “ é a teoria ou
ciência do comportamento moral dos homens em sociedade”.
32
A ética possui o papel de explicar uma dada realidade, não perdendo de vista
o caráter histórico desta, e elaborar conceitos. Não é função da ética prescrever
quais as medidas concretas dos indivíduos nas diversas situações. A ética é a
reflexão dos problemas morais e é caracterizada pela sua generalidade.
Rios (2001) define ética como uma reflexão crítica sobre a moral, deixando
clara a diferença entre os conceitos. A moral é entendida como um “conjunto de
valores, princípios que orientam a conduta dos indivíduos e grupos nas sociedades”
(p.105).
Para a autora a ética possui o papel de fundamentar o valor que norteia o
comportamento do indivíduo, não perdendo a historicidade deste valor.
Heller (2000), partindo das idéias de Marx, pontua a ética marxista, que é
definida como práxis. Para a autora a ética marxista só pode existir quando há uma
realização prática desta, pois não basta apenas conhecer a realidade e criticá-la de
forma passiva, é necessário atuar visando a transformação. Deste modo, a ética
marxista “só pode ser a tomada de consciência do movimento que se humaniza a si
mesmo e humaniza a humanidade” (HELLER, 2000, p. 121).
A construção da ética passa pelo desaparecimento da espontaneidade, pelo
aumento da atividade individual na comunidade e por uma consciência de si mesmo,
num processo de autocrítica. E a ética marxista é construída partindo destes
elementos, não perdendo de vista os postulados colocados por Marx, na construção
de uma sociedade socialista. Desta forma, a constituição da ética passa pelo
movimento de humanização, da apropriação dos bens culturais construídos pela
humanidade, visando uma transformação da realidade existente.
Neste sentido, a escola possui um papel importante nesse processo de
humanização, possibilitando a apropriação dos conhecimentos acumulados pelo
33
homem . Assim, a principal função do docente é a transmissão dos conhecimentos
científicos aos alunos, sendo o mediador do encontro do aluno com o conhecimento.
A apropriação dos conhecimentos escolares possibilita a criança conhecer a
realidade (inclusive a sua), e os saberes produzidos pela humanidade, de modo que
utilize esses conhecimentos para a transformação da realidade. No entanto, esse
objetivo de transformação será mais facilmente alcançado pelo aluno, se a prática
docente estiver sendo direcionada neste sentido, ou seja, se o professor possuir
essa finalidade de transformação. Deste modo é fundamental que os professores se
apropriem dos conhecimentos científicos nos cursos de formação a fim de transmiti-
los aos seus alunos. No entanto, o docente não contribui apenas na apropriação dos
saberes escolares, mas na formação da individualidade de seus alunos. Duarte
(2000) coloca que a formação da individualidade humana realiza-se em dois
processos diretamente relacionados: a apropriação das objetivações humanas e a
objetivação individual destas apropriações. O indivíduo não simplesmente reproduz
internamente as apropriações, ele as reproduz de forma individualizada, isto é,
apropria-se de forma única. Um conteúdo transmitido em sala de aula não é
assimilado da mesma forma por todos os alunos; cada um irá apropriar-se de forma
única, de acordo com sua história individual e seu modo de apreender a realidade.
A criança, ao mesmo tempo que se apropria das objetivações humanas, está
construindo a sua individualidade. Nesta constituição da individualidade, a relação
estabelecida com os adultos é fundamental, pois estes possibilitam condições para
que a criança internalize os bens culturais, inclusive os valores aceitos na sociedade.
É por isso que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores
(percepção, atenção, memória etc) mostra-se fundamental na apropriação dos
34
conhecimentos cotidianos e não cotidianos (conhecimentos referentes à ciência,
arte, filosofia etc).
O processo de formação das funções psicológicas superiores ocorre no plano
ontogenético, na medida em que a criança se apropria dos bens culturais
construídos na coletividade, sob a mediação dos adultos. A constituição das funções
psicológicas superiores se dá no desenvolvimento cultural da criança, ou seja, é nas
e pelas relações sociais que esta estabelece com a realidade social que desenvolve
suas funções psíquicas superiores. Deste modo toda função psicológica superior é
social, sua gênese se encontra nas relações sociais. Toda função psíquica aparece
no desenvolvimento cultural da criança em dois planos. Vigostski (1995, p.150)
pontua essa questão:
Toda función psíquica superior fue externa por haber sido social antes que interna; la función psíquica propiamente dicha era antes uma relación social de dos personas. El medio de influencia sobre sí mismo es inicialmente sobre otros, o el medio de influencia de otros sobre el indivíduo.
Desta forma o desenvolvimento das funções psicológicas superiores da
criança é mediada pelos adultos, ou seja, é pela comunicação entre ambos que a
criança internaliza tais funções ( percepção, memória, atenção etc). Assim, o
professor é importante no desenvolvimento das funções psicológicas superiores
pois, ao trabalhar com os alunos os conteúdos científicos, possibilita à criança criar,
no nível individual, novas estruturas mentais as quais contribuem no seu
desenvolvimento.
Em vista disso, podemos dizer que a atuação do professor, em sala de aula,
também contribui para a constituição dos valores da criança, considerando que sua
prática não se resume apenas no ensino dos saberes escolares. O docente em sua
prática transmite os seus valores morais, éticos e políticos; na sua relação com a
35
criança, esta vai internalizando tais valores. Desta forma, o professor possui um
papel crucial na constituição da individualidade da criança, contribuindo na formação
de seus valores.
Neste trabalho iremos tratar especificamente do valor de autonomia, pois
consideramos fundamental a criança aprender a realizar suas próprias escolhas a
fim de tornar-se um adulto autônomo.
Heller (1977, p.58) entende por autonomia “lo que sucede cuando, en la
elección entre alternativas, el hecho de la elcción, su contenido, sua resolución,
etcétera, están marcados por la individualidad de la persona”. Assim, autonomia
pressupõe escolhas que o indivíduo realiza conforme às situações dadas e as suas
necessidades. Deste modo, ao considerarmos o desenvolvimento da autonomia da
criança, temos a necessidade de refletir sobre o processo de escolha, isto é, o
aprendizado de tomar decisões.
O indivíduo no decorrer de vida está a todo momento realizando escolhas,
tomando decisões que, dependendo do momento, são de maior ou menor
importância. Escolhemos desde a nossa roupa até a profissão em que iremos atuar
e esse processo nos parece fácil pensando no exemplo da roupa; mas, quando nos
deparamos com uma escolha de maior relevância, destaca-se a dificuldade de
escolher.
Uma vez que para realizar uma escolha é necessário conhecer os seus
determinantes, ou seja, possuir uma visão ampla da situação que envolve a escolha.
Vigotski (1995) em seu texto “Domínio da conduta “ discute um pouco a
questão do controle da conduta que significa o indivíduo controlar sua ação, isto é,
possuir intencionalidade. Para este autor o domínio da conduta pressupõe realizar
36
escolhas (sejam elas conscientes ou não) e que o indivíduo tenha liberdade para a
tomada de decisão.
Vigotski (1995, p. 288) coloca que a liberdade humana “consiste
precisamente en que piensa, es decir, en que toma conciencia de la situaçión
creada”. A liberdade do indivíduo está pautada no conhecimento que este possui
acerca de sua realidade e, na situação de escolha, os elementos envolvidos nesta.
O autor afirma, ainda, que existe uma ilusão em relação ao livre arbítrio, pois este
depende dos motivos. Desta forma, são os motivos que impulsionam o processo de
escolha porque são os motivos que orientam a ação. Vigostski (1995, p.289) coloca
que o livre arbítrio:
“ [...] no consiste em estar libre de los motivos, sino que consiste en que el niño toma conciencia de la situaçión, toma conciencia de la necesidad de elegir, que el motivo se lo impone y que sua libertad [...] es una necesidad gnoseológica.”
O livre arbítrio é entendido como um conhecimento de sua realidade a fim de
que o indivíduo possa realizar sua escolha de forma consciente (no entanto existe
consciência alienada).
No processo de escolha os motivos desempenham um papel fundamental
porque estes direcionam a tomada de decisão. Em tal processo geralmente estamos
diante de dois motivos, e na tomada de decisão escolheremos o que nos trará maior
satisfação.
A luta dos motivos, segundo Vigotski (1995, p.296), ocorre antes do momento
em que a escolha será realizada. No processo de escolha o indivíduo terá que
avaliar antecipadamente os determinantes da situação dada, das alternativas
envolvidas; enfim, realizar uma reflexão para tomar uma decisão. Caso contrário, se
37
o indivíduo escolher de imediato entre as escolhas sem tempo para refletir, colocará
em atuação o mecanismo executivo, respondendo apenas a um estímulo.
O indivíduo, no processo de escolha, pode recorrer a motivos auxiliares, ou
seja, criação de motivos que auxiliam na tomada de decisão, como por exemplo, a
sorte. Vigostski (1995) cita o exemplo da criança que utiliza a carta para realizar uma
escolha, atribuindo um lado da carta para a possibilidade “A” e o outro lado para a
possibilidade “B”. A criança, ao utilizar a sorte para ajudar na escolha, criou um
motivo auxiliar.
Geralmente recorremos a motivos auxiliares quando nos deparamos com
motivos que se mostram equivalentes, ou seja, que possuem importância “igual”
para o indivíduo ou são muito diversificados, não sendo possível compará-los de
forma que a decisão torna-se difícil. A complexidade dos motivos dificultam a tomada
de decisão podendo o indivíduo recorrer a motivos auxiliares.
Assim, é fundamental que a criança tenha condições de desenvolver o
processo de escolha, que tome conhecimento de sua realidade, das possibilidades
de escolha e aprenda a refletir sobre o porquê de suas escolhas.
Na sala de aula, a professora possui condições de desenvolver a autonomia
na criança através de sua prática pedagógica, da forma de tratar o aluno, de
transmitir o conteúdo enfim, através de sua metodologia de ensino.
O professor , ao propor atividades em que a criança tenha que trabalhar em
grupos, que tenha de tomar decisões, estará contribuindo com a constituição da
criança. O docente deve demostrar confiança na criança, ou seja, propor atividades
em que ela tem que agir por iniciativa própria. Mello (2002), estudiosa da educação
infantil (crianças de 0 a 3 anos), coloca que:
38
Quando as crianças aprendem a entreter-se nos pequenos grupos, realizando elas próprias suas experiências e tateios com os objetos, elas estão formando as bases para a sua autonomia; isso implicará disciplina no trabalho escolar quando tiver mais idade, iniciativa em relação aos seus interesses, organização e possibilidade de aprendizagem mesmo quando a educadora não está perto.
Então, se desde o educador da creche e da pré-escola estiverem atentos à
questão do desenvolvimento da autonomia, estimulando a criança com atividades
em que aprenda a tomar decisões, do porquê destas, e houver continuidade no
ensino fundamental, médio e superior, a escola formaria indivíduos capazes de agir
de forma autônoma na sua realidade.
Paulo Freire (1996) em sua obra “Pedagogia da Autonomia”, coloca vários
saberes pertinentes à formação docente de forma que auxilie o educador em sua
prática pedagógica na constituição de uma prática educativa. Dentre os saberes
pontuados, o autor menciona o respeito por parte do educador à autonomia do
educando e coloca como entende a constituição da autonomia:
Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai e constituindo na experiência de várias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas[...] ninguém amadurece de repente , aos 25 anos. A gente vai amadurecendo todo dia ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. È neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade. (FREIRE, 1996, p. 107).
Assim, o docente contribui na constituição da autonomia de seus alunos
criando situações no espaço pedagógico em que eles tenham liberdade de escolha,
entendendo que este processo é favorecido quando o professor, em suas atividades
pedagógicas, possibilita o desenvolvimento do processo de tomada de decisão.
No entanto não é somente a escola que contribui para a constituição da
autonomia; a família, a comunidade, os amigos também estão envolvidos nesse
processo. Desta forma, é no desenvolvimento cultural da criança que o valor de
autonomia se constitui. No entanto, a realidade social em que a criança está inserida
39
pode não oferecer as condições necessárias para o desenvolvimento desse valor. E
nesta realidade a escola pode estar incluída, pois mesmo possuindo o papel de
possibilitar a apropriação do conhecimento pelo aluno, não significa que irá contribuir
para o desenvolvimento da autonomia da criança.
40
III- FORMAÇÃO DE PROFESSORES
A formação de professores é um tema complexo que está sempre em
discussão nos meios educacionais. Discute-se qual modelo de professor a ser
seguido, quais as competências necessárias para um melhor desempenho na
prática pedagógica, quais os conhecimentos importantes a serem apropriados nos
cursos de formação para que o docente saiba lidar com as situações vivenciadas em
sala de aula.
Os professores queixam-se de não saberem lidar com a desmotivação dos
alunos, com a indisciplina, enfim com a não aprendizagem dos educandos. E um dos
determinantes que se aponta pela não resolução destes problemas é a deficiência
dos cursos de formação.
O docente não aprende em sua formação a refletir criticamente e
historicamente acerca dos problemas enfrentados em sala de aula. Os problemas
são vistos, muitas vezes, de forma particular e superficial, descolados dos
determinantes sociais. Talvez os cursos de formação não estejam contribuindo para
que o professor entenda a constituição do problema e os determinantes possíveis
que estão por trás deste, o que acarreta numa investigação superficial.
As questões educacionais não estão descoladas da realidade social porque
são constituídas historicamente na inter-relação com os aspectos políticos, culturais,
econômicos, éticos. Assim, ao analisar qualquer questão relacionada à escola (não
só a esta instituição) é necessário realizar esse movimento de reflexão porém de
forma crítica porque se corre o risco de ficar apenas na descrição da análise do
problema, dificultando o conhecimento das multideterminações que o compõem.
41
Assim, os cursos de formação de professores devem preocupar-se em formar
futuros docentes críticos de sua realidade, de modo que se sintam sujeitos da
história, ou seja, capazes de atuar na realidade de forma ativa. Para tal, durante o
curso de formação, as atividades propostas devem ter como um dos objetivos o
desenvolvimento desta habilidade de reflexão.
Então vem a indagação: em que medida os cursos de formação estão
proporcionando ao professor condições para refletir acerca de sua prática de forma
crítica e, histórica visando a humanização de seus alunos?
Algumas idéias vêm sendo discutidas; uma delas é a do professor reflexivo. A
proposta do professor reflexivo vem sendo difundida nos meios educacionais
brasileiros pelos autores Schön e Shulman, entre outros. Esta perspectiva do
professor reflexivo está centrada na idéia de que é necessário o professor refletir
sobre a sua prática docente, sendo este o caminho para as mudanças na educação.
A função do docente é a de organizar as atividades para que os alunos
potencializem sua capacidade de conhecer. Deste modo, o conhecimento do aluno,
por intermédio de suas ações, deve ser o cerne do processo educativo.
Nesta perspectiva, o professor atua como um facilitador da aprendizagem do
aluno auxiliando-o na construção do saber. Desta forma, a função docente fica
esvaziada, pois a sua principal função, que é a transmissão dos conhecimentos
científicos, fica em “segundo plano”. Segundo Duarte (2003, p.617), o professor
reflexivo adota “uma pedagogia não pautada no saber escolar e concentra sua ação
nas ‘representações figurativas’ contidas no conhecimento-na-ação dos alunos (o
conhecimento cotidiano, tácito)”. Os conhecimentos dos alunos são valorizados em
detrimento dos conhecimentos escolares, de modo que a prática docente esteja
centrada nos processos de como os alunos constroem seu conhecimento.
42
Não concordamos com essa idéia do professor reflexivo, pois acreditamos
que a função primordial do professor é a transmissão dos conhecimentos científicos,
os quais são necessários para o processo de humanização do indivíduo. E o
principal desfio da escola é promover o encontro do aluno com o conhecimento
científico, possibilitar ao aluno meios de se “locomover” do conhecimento cotidiano
para o não-cotidiano (arte, ciência, filosofia e outros).
A idéia do professor reflexivo tem recebido muitas críticas e uma delas refere-
se ao tipo de reflexão que essa perspectiva propõe. De modo geral o professor
ficaria refletindo sobre sua prática, detendo-se em resolver os problemas imediatos
ocorridos em sala de aula, distanciando-se assim de uma reflexão crítica acerca de
sua profissão e da realidade escolar. Para Pimenta (2002) a reflexão proposta
refere-se a uma forma de superação dos problemas cotidianos vivenciados pelos
docentes em sala de aula. Com essa característica, o conceito professor reflexivo
pode reduzir-se a um praticismo, a um fazer técnico por parte do professor.
Duarte (2003, p. 602) aponta que Schön “adota uma pedagogia que
desvaloriza o conhecimento escolar e uma epistemologia que desvaloriza o
conhecimento teórico/científico/acadêmico”. Para Schön a formação de professores
deve pautar-se no saber prático destes, sem ênfase nos conteúdos teóricos da
formação. Schön critica as universidades por priorizar a transmissão dos conteúdos
científicos na formação de professores, em detrimento dos saberes que estes
possam utilizar em sua prática profissional. Os autores que defendem a proposta do
professor reflexivo priorizam uma formação de professores que enfatize aspectos da
própria prática, saberes que serão utilizados no cotidiano escolar, deixando “de lado”
os conhecimentos escolares.
43
Outra crítica à teoria do professor reflexivo refere-se à questão da
historicidade. Esta proposta não considera as condições sócio-históricas, culturais e
políticas da sociedade, da realidade escolar e da profissão. Parece-nos que a
reflexão acerca da prática realizada pelos docentes fica restrita àqueles problemas
cotidianos, sem uma análise mais ampla da realidade, desconsiderando a
historicidade dos fatos escolares.
Essa acriticidade da formação docente vem ao encontro das políticas de
educação neoliberais que visa a formação prática do professor.
O mundo do trabalho modificou-se com o desenvolvimento tecnológico e
concomitantemente a sua organização. Exige-se um novo tipo de trabalhador que
necessite de diversos saberes, como coloca Freitas (2001, p.91-92):
Este novo trabalhador necessita, agora, de habilidades gerais de comunicação, abstração e integração, as quais não podem ser geradas rapidamente no próprio local de trabalho. São habilidades próprias de serem aprendidas na escola, durante a instrução regular. Esta é a raiz do recente interesse das classes dominantes pela qualidade da escola, em especial da escola básica.
Assim, a sociedade capitalista vive atualmente esta contradição que está muito
mais explícita atualmente com o processo de globalização e das políticas neliberais
que se refletem diretamente na escola. Dentro desse novo padrão de trabalhador, é
necessário que os dominantes possibilitem “um pouco mais de instrução” para os
proletários a fim de que possam se adequar às novas exigências do mercado de
trabalho. No entanto, esse conhecimento oferecido pela classe dominante deve ser
limitado
[...] aos aspectos mais imediatamente atrelados ao processo de reprodução da força de trabalho, evitando-se a todo custo que o domínio do conhecimento venha a tornar-se um instrumento de luta por uma radical transformação das relações sociais de produção” (DUARTE, 2000, p.6).
44
Deste modo as políticas educacionais são permeadas pela ideologia
dominante, ou seja, a escola forma o tipo de aluno que a classe burguesa necessita.
E, os cursos de formação também estão atrelados aos interesses dessa classe que
dissemina suas idéias.
O pragmatismo é uma visão que se encontra nas políticas neoliberais de
educação, que retira da formação os conhecimentos teóricos, a reflexão crítica e
histórica da realidade e valoriza a prática, os conhecimentos advindos desta,
realizando uma análise somente das dificuldades cotidianas, descolada da realidade
social. Assim, os cursos de formação direcionam-se para uma formação docente
fragmentada, superficial e a-histórica da realidade escolar (não somente desta
realidade).
Esse tipo de formação promove o esvaziamento da função docente, como já
enfatizamos anteriormente, de transmissão dos conhecimentos científicos e da
própria escola, sendo esta considerada o espaço para tal apropriação.
Duarte (2000), ao realizar a discussão sobre o lema “aprender a aprender”,
enfatiza o quanto as pedagogias centradas nesse lema retiram da escola a tarefa de
transmissão dos conhecimentos sistematizados.
A essência do lema “aprender a aprender é exatamente o esvaziamento do trabalho educativo escolar, transformando-o num processo sem conteúdo. Em última instância o lema “aprender a aprender” é a expressão, no terreno educacional, da crise cultural da sociedade atual [DUARTE,2000, p.9].
O construtivismo, um modismo no Brasil, possui idéias que estão contidas
neste lema. Nesta perspectiva os saberes aprendidos espontaneamente pela
criança possuem maior relevância do que os conhecimentos construídos
socialmente. Os saberes transmitidos, seja pelos adultos e/ou pela escola, ficam em
segundo plano, sendo considerado fundamental para o desenvolvimento intelectual
45
da criança apenas o que ela aprende por si mesma. A escola só contribuiria para
este desenvolvimento na medida em que criasse métodos que favorecessem as
“descobertas” da criança e não com a transmissão dos conhecimentos científicos.
A Pedagogia do afeto é uma concepção que está sendo disseminada
principalmente por Gabriel Chalita, o nosso atual secretário estadual de educação,
que coloca o afeto como o cerne do processo educativo. Não é suficiente ao
professor possuir domínios dos conteúdos se, este não estabelecer uma relação de
amor com seus alunos. O afeto é entendido como solução dos problemas da
sociedade, inclusive o da educação.
O aluno precisa do humano. Em um mundo onde a violência grassa cada vez mais, onde a agressividade é absolutamente assustadora, a solução não está em mais agressividade nem em armamentos modernos. A solução está no afeto [...] Educação – o afeto é a solução. Não é possível combater a insensibilidade, o desrespeito, a falta de solidariedade, a apatia, a não ser pelo afeto [CHALITA, 2001, p.264].
É necessário tomar cuidado com esta perspectiva porque o afeto pode ser
valorizado em detrimento dos outros saberes que o docente necessita aprender em
sua prática. A reflexão crítica acerca dos problemas enfrentados em sala de aula
parece ficar em segundo plano, ou mesmo que tal atividade não é atravessada pelos
afetos.
A pedagogia histórico-crítica esboçada por Dermeval Saviani é compatível
com os princípios filosóficos em que estamos nos pautando na realização deste
trabalho.
A escola é entendida como um dos espaços de acesso ao conhecimento
histórico acumulado pelo homem e de humanização dos indivíduos. A apropriação
destes conhecimentos somente se tornará possível com a mediação do professor;
este é o principal mediador entre o educando e os saberes sistematizados.
46
As aquisições do desenvolvimento histórico das aptidões humanas não são simplesmente dadas aos homens nos fenômenos objetivos da cultura material e espiritual que os encarnam, mas são aí postas. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptidões, ‘os órgãos da sua individualidade’, a criança, o ser humano, deve entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante através doutros homens, isto é, num processo de comunicação com eles. Assim, a criança aprende a atividade adequada. Pela sua função, este processo é, portanto, um processo de educação. [LEONTIEV, 1978, p.272, grifos do autor].
Desta forma o indivíduo desenvolve suas aptidões, habilidades e capacidades
no processo educativo mediado pelos outros homens. Deste modo é pela
apropriação da cultura humana que o indivíduo constitui a sua história e a da
humanidade.
Saviani (2000, p.17) coloca que” [...] o trabalho educativo é o ato de produzir,
direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é
produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”.
Então a intencionalidade da prática docente é fundamental, a fim de que o
professor planeje suas ações, de forma a contribuir no processo do desenvolvimento
humano de seus alunos.
Por isso faz-se necessário que os cursos de formação docente fiquem
atentos para o tipo de profissional que desejam formar, buscando enfatizar aspectos
que contribuam para a reflexão e prática profissional. Nos cursos de nível superior é
necessário discutir com os professores elementos fundamentais para sua prática
como: função da escola, papel do professor, concepção de educação, de mundo e
de homem. É importante o educador conhecer a realidade onde está inserido: a
escola que leciona, suas particularidades, a comunidade, ampliando a reflexão para
o contexto histórico-social maior.
Um grande desafio que se coloca para a escola é o de encontrar formas de
ensino que possibilitem a aprendizagem do aluno, ou seja, que o professor consiga
na sua prática pedagógica “tornar compreensíveis” os conhecimentos científicos
47
para seus alunos. Mas a transmissão destes conteúdos deve ser o principal objetivo
da escola.
Na atual sociedade em que vivemos, orientada pelas políticas neoliberais, a
saída que temos é a organização em movimentos de resistência contra esse modo
de produção, contra essa educação esvaziada de conteúdos a fim de criarmos
possibilidades de superação destes modelos.
[...] não será possível revolucionar a sociedade, superar o capitalismo, sem a elevação do nível de consciência da população, questão essa que está relacionada à da formação de intelectuais e à das relações entre os intelectuais e as massas e à das relações entre filosofia e senso comum [DUARTE apud Gramsci, 2000, p.283].
Desta forma concordamos com a construção de uma pedagogia marxista,
fundamentada na psicologia de Vigotski, isto é, dos conhecimentos construídos por
este autor, Leontiev, Lúria e outros. A superação do capitalismo é crucial nesta
construção, pois nas condições atuais de produção, o indivíduo está imerso em
relações sociais alienantes.
Assim, os cursos de formação devem ter como princípio básico criar
condições de reflexão crítica da realidade social sempre pautados nos
conhecimentos construídos pelas gerações antecedentes, ou seja, olhar
historicamente a realidade de forma que o professor perceba-se e sinta-se sujeito da
história da humanidade. Outro aspecto fundamental a ser considerado nos cursos
de formação é o não esquecimento de que a prática docente é fundamental para a
constituição de alunos críticos e ativos.
A seguir discutiremos um aspecto que é muito presente na prática pedagógica
que é a questão da autoridade/autoritarismo.
48
3.1- Autoridade/Autoritarismo
No contexto da sala de aula o professor se depara a todo momento com a
complexa questão da autoridade e do autoritarismo. Essa problemática passa pelo
conceito de disciplina que está por trás da visão docente. O que entende-se por
disciplina?
O conceito de disciplina possui diversos significados; mas o preponderante,
como coloca Vianna (1989, p.13), refere-se a:
[...] ordem e respeito a normas preestabelecidas por autoridades impostas ou eleitas e que, de alguma forma, nos representam, nos lideram ou nos administram, autocrática ou democraticamente, nos diferentes contextos em que vivemos e convivemos com nossos iguais.
Essa idéia de disciplina também instalou-se na escola expressada sob a
forma da disciplina autoritária, rígida, pela qual o professor impõe as regras na sala
de aula e os alunos apenas têm que acatá-las sem questionar. O controle da sala de
aula pela manutenção do silêncio de seus alunos era a regra principal estipulada
não só pelo docente mas pela instituição escolar. Assim, “[...] a escola toma a
disciplina, como regra, e não como objetivo educacional” (ABUD,1989, p.6).
As crianças que não se adaptarem ao regime das regras da escola,
estipuladas antes mesmo de sua chegada, sofrem punições de tal forma que o
professor acaba excluindo-as da escola. Assim, a função da punição, como coloca
D’Antola (1989, p.51) “não tem sido resolver o problema do aluno, mas sim, do
professor ou da escola”.
Observa-se, contudo, que a prática utilizada em sala de aula não tem sido
eficaz para manter a disciplina; ao contrário, tem levado à indisciplina. Isso porque
os professores esperam impor a disciplina de uma forma coercitiva, impositiva, que
impede os educandos de se expressarem, de participarem efetivamente da aula, de
49
se apropriarem de conhecimentos referentes a sua realidade. Assim, o professor
está trabalhando a indisciplina e não a disciplina e o autoritarismo contribui para
essa realidade.
O autoritarismo forma alunos apáticos, inseguros, submissos e passivos, com
dificuldades de agir na sua realidade, de formar suas próprias opiniões, aceitando
passivamente os fatos ocorridos, seja em sua vida seja em sociedade. O professor
não permite o diálogo, a relação e o conhecimento são unilaterais, dificultando o
desenvolvimento de criação, criticidade, reflexão, enfim de possibilitar ao aluno
conhecer sua realidade. A figura do docente é entendida como a autoridade
“máxima” de poder e conhecimento.
Podemos dizer que a relação autoritarismo versus autoridade, nesta
concepção de disciplina não possui conflitos, pois ambos