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7/25/2019 O Trauma Combo Inseguranca
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4O Trauma como insegurana e as emoes nacontemporaneidade
Existem momentos na vida onde a questo de saber sese pode pensar diferentemente do que se pensae perceber diferentemente do que se v
indispensvel para continuar a olhar ou a refletir.Michel Foucault
O estado emocional das populaes afetadas por conflitos tem se tornado
uma das principais preocupaes tanto para os tomadores de deciso nos mais
diversos mbitos da poltica internacional quanto para os acadmicos de
segurana internacional. Diversos relatrios produzidos por agncias humanitrias
internacionais nas ltimas duas dcadas se referem aos refugiados por exemplo -
como permanentemente feridos em decorrncia de experincias tidas como
traumticas. Em 1990, o trauma chegou a ser tratado com maior nfase do que a
fome pelas diversas agncias de ajuda humanitria, segundo a prpria OMS.
(OMS, 2001) Em decorrncia disso, as respostas humanitrias s guerras e
desastres em todo o globo tm gradativamente assumido formas de interveno
teraputica que desafiam significativamente as fronteiras entre a dimenso pblica
e privada e trazem consigo fortes implicaes, como o caso da interveno na
Bsnia bem demonstrou. A perspectiva teraputica foi adotada, segundo observa
John Pender, at mesmo pelo Banco Mundial ao estabelecer seus objetivos de
desenvolvimento. (2002)
Dois tm sido os efeitos dessa nova onda teraputica, sendo um positivo e
outro negativo. Em termos tericos, a considerao do trauma como uma
ameaa/risco permitiu que novas leituras sobre as emoes pudessem fazer partedos debates de segurana internacional as quais ajudaram entre outras coisas- a
questionar a concepo neurobiolgica prevalecente at ento e a apontar para sua
dimenso socialmente construda. Esse movimento representa uma significativa
renovao dos debates sobre as emoes em relaes internacionais e traz consigo
importantes contribuies de outras disciplinas para uma compreenso mais
ampliada do tema. Na prtica, no entanto, sua considerao tem promovido efeitos
contraditrios, sobretudo por conta do modo segundo o qual as intervenesteraputicas tm sido desenvolvidas pelos atores internacionais em especial a
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ONU e a OMS. Ambos, como demonstraremos nos captulo 5 e 6, tm
desenvolvido aes que terminam por medicalizar o problema e, assim, acabam
dificultando ainda mais o processo de recuperao da autonomia dos povos
afetados pelos conflitos.
No que concerne aos debates tericos, vale retomarmos o tratamento do trauma
na psicologia para atravs dele buscarmos entender porque as concepes
neurobiolgicas sobre as emoes tiveram tamanha repercusso dentro da
literatura de relaes internacionais em termos gerais. Ainda, o resgate das
diversas leituras e tratamentos conferidos ao trauma na psicologia, na psiquiatria e
na sociologia importante na medida em que eles fornecem o contexto a partir do
qual o movimento de securitizao do trauma pode ser elaborado. Em outras
palavras, buscaremos investigar no presente captulo o contexto especfico que
permitiu que leituras medicalizadas sobre o trauma se tornassem predominantes
na contemporaneidade e fossem absorvidas e reproduzidas por instituies
internacionais as quais enfatizam uma concepo etnopsicolgica ocidental sobre
as emoes.
Isto posto, observamos que a palavra trauma tem sua origem na medicina e
seu primeiro significado remete a perturbaes derivadas de ferida fsica. Como
observa Ruth Leys,
Trauma was originally the term for a surgical wound, conceived on the model ofrupture of the skin or protective envelope of the body resulting in a catastrophicglobal reaction in the entire organism. Yet, as Laplanche has emphasized, it is not easyto retrace the transposition of this medicosurgical notion of a shock with a physicalbreak in and that of danger to life been the model for an allegedly psychicalsymptom that to this day psychical trauma is bound to the concept of surgical shock.(2000, p.19)
Para a psicanlise, no entanto, o trauma se refere a algo que provm de fora
do sujeito e que o atinge sem, no entanto, ser incorporado ou assimilado pelo seu
psiquismo. Conforme L. A. Mees comenta o trauma
(...) causa aturdimento e fica, na vida do sujeito, enquistado como um corpo estranho,sem sentido e sem elaborao. O trauma tem sua origem no incio da vida de cadasujeito, quando as relaes de linguagem que organizam o mundo do ser humano recepcionam o pequeno ser, o qual no tem bagagem para entender/responder quiloque lhe dito e pedido. Devido a este desamparo/despreparo, o que chega aopequeno sujeito no tem como ser incorporado por ele. Entretanto, algo fica marcado
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em seu psiquismo, de forma que, em um momento posterior, este acontecimento convocado, constituindo, agora sim, um trauma. (2001, p. 11)
Nesse campo, Freud foi o primeiro a elaborar as primeiras reflexes sobre o
trauma tendo apresentado diferentes concepes sobre o tema ao longo de sua
produo intelectual. Em um primeiro momento (1895-1920), todas as concepes
de Freud sobre o trauma se desenvolveram de modo a relacionarem-se s fantasias
inconscientes e realidade psquica. O ponto de partida das reflexes desse
primeiro momento foram os estudos desenvolvidos em parceria com Jean-Martin
Charcot em suas tentativas de entendimento da histeria, at ento muito ligada ao
estudo da anatomia do sistema nervoso. Nesse perodo, a causa da histeria foi
atribuda por Charcot a uma conseqncia de leses nos rgos sexuais femininos,
algo que logo foi contestado pelas evidncias de que a histeria tambm acometia
homens. (Freud, 1956) Com essas evidncias, as neuroses deixam de ser
explicadas por Charcot somente por fatores orgnicos e fisiolgicos e passaram a
envolver o psiquismo, sendo os afetos aflitivos (por exemplo, a angstia ou
vergonha) como observa Freud - os elementos desencadeadores dos traumas
psquicos, os quais tambm dependeriam da suscetibilidade da pessoa afetada para
se desenvolverem. O trauma aqui passa a ter um importante papel na origem da
histeria, apesar de tambm ser associada disposio congnita dos indivduos. A
histeria seria, assim, uma dissociao da conscincia decorrente da lembrana de
um acontecimento traumtico que se reproduz de forma alucinatria.
Decorrente desses estudos surgiu, ento, a noo de trauma psquico de Freud
segundo a qual transforma-se em trauma psquico toda impresso que o sistema
nervoso tem dificuldade em abolir por meio do pensamento associativo ou da
reao motora. (idem, p.222) A definio de trauma psquico de Freud implica,
ento, a idia de um choque violento em relao ao qual o indivduo no
desenvolve uma descarga emocional necessria para libert-lo do afeto ligado
recordao de um acontecimento que torna ou preserva esse afeto como algo
patognico. Nesse sentido, as memrias do trauma ficam carregadas de afeto
retido e atuam como um elemento estranho no psiquismo.
Ainda na dcada de 1890 Freud desenvolveu a teoria da neurtica segundo a
qual o trauma seria essencialmente de natureza sexual e o evento traumtico
estaria baseado em uma ao real de um adulto seduzindo uma criana. Freuddesenvolveu essa teoria com base em casos empricos de crianas que sofreram
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abusos sexuais geralmente da figura paterna- e para as quais a lembrana do
ocorrido seria to dolorosa que todos preferiam esquec-la. A ao traumtica se
desenvolveria, no entanto, em dois tempos: um seria o do evento traumtico
propriamente dito no qual a criana ainda no tem sua sexualidade desenvolvida
para ser capaz de identificar o evento como excitao sexual. O segundo ocorreria
na puberdade, evocando a primeira situao por algum trao associativo e
imputando um novo significado a essa situao. Nesse momento, mais
especificamente, ocorreriam os sintomas histricos. Ou seja, somente depois o
primeiro momento recebe o peso traumtico e esse momento deixa de ser mais
importante do que aquele em que se estabelece uma associao entre os dois
momentos, constituindo-se no trauma. Assim, no so os acontecimentos que
agem traumaticamente, mas sim sua lembrana, emergindo em um momento de
maturidade sexual do sujeito no qual ele capaz de compreender o sentido dos
eventos. (Freud, 1987)
Em 1897, contudo, Freud substitui a teoria da neurtica pela teoria da
fantasia traumtica e desse modo torna as fantasias e a realidade psquica mais
importantes para a explicao das neuroses do que o evento traumtico. J no
intervalo de 1915-1920, a ocorrncia de neuroses traumticas no ps-guerra
levaram Freud a reconsiderar suas reflexes mais uma vez, dado que essas
neuroses resultavam de acidentes dolorosos recentes e aparentemente no
associados de nenhuma maneira aos objetos sexuais. Com a ocorrncia da
Primeira Guerra Mundial (1914-1918) os debates em torno da origem traumtica
nas neuroses se intensificam, levando Freud a abordar a etiologia das neuroses de
uma forma diferente. (Freud, 1976) Os casos atendidos no front de guerra
indicavam que havia uma fixao no momento do episdio traumtico, ou seja,
esse episdio se reeditava nos sonhos e ressurgia em ataques histricos os quaistransportavam repetidamente o sujeito para a situao do trauma, como se fosse
impossvel super-la. Com freqncia, o sintoma se apresentava como uma
experincia de flashback um reviver quase alucinatrio do acontecimento
penoso. Nas palavras de Freud,
como se esses pacientes no tivessem findado com a situao traumtica, como seainda estivessem enfrentando-a como tarefa imediata ainda no executada (...) Assim,
a neurose poderia equivaler a uma doena traumtica, e apareceria em virtude da
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incapacidade de lidar com uma experincia cujo tom afetivo fosse excessivamenteintenso.( 1976,p.325)
Nas neuroses traumticas de guerra o eu defende-se das ameaas externas
incorporadas a novas formas assumidas pelo prprio eu. H, na verdade, um
conflito entre o velho eu pacfico do soldado e o novo eu blico e esse conflito se
torna agudo to logo o eu pacfico compreende que perigo corre ele de perder a
vida devido temeridade do seu recm-formado e parastico duplo. (idem, 1976,
p.261) Dessa forma, a precondio para o desenvolvimento de neuroses de guerra,
segundo Freud, estaria no fato de um indivduo civil ter se tornado integrante de
um exrcito nacional, algo para o qual ele no estava preparado. Esses indivduos
sofreriam, assim, de conflitos mentais inconscientes os quais perturbariam suavida emocional, podendo causar doenas. Soldados profissionais e mercenrios,
por outro lado, no adoeceriam, segundo Freud, da mesma maneira. Para os civis
transformados em soldados a causa imediata de suas neuroses de guerra seria,
portanto, uma inclinao inconsciente de afastar-se das exigncias, perigosas e
ultrajantes para os seus sentimentos, feitas por ele pelo servio ativo. Ou seja,
Medo de perder a prpria vida, oposio ordem de matar outras pessoas, rebeldiacontra a supresso implacvel da prpria personalidade pelos seus superiores eramestas as mais importantes fontes afetivas das quais se nutria a tendncia para seescapar da guerra. (ibidem, 1976, p. 267)
Com o estudo das neuroses de guerra h uma mudana significativa no
estudo do trauma na medida em que a repetio passou a ser compreendida como
uma forma de elaborao do trauma e o trauma no necessariamente estaria ligado
a uma experincia infantil de natureza sexual com reflexos na vida adulta do
sujeito.Sndor Ferenczi, psicanalista contemporneo de Freud, tambm se dedicou
pesquisa e ao estudo das neuroses de guerra e para ele esse tipo de neurose no
se distinguiria da histeria de angstia. Em suas observaes de cinqenta
pacientes afetados ou feridos em guerra, Ferenczi percebeu a repetio de alguns
sintomas nas neuroses de guerra como distrbios de locomoo, maior
sensibilidade visual ou auditiva, queimao, dormncia ou coceira na derme, bem
como alteraes na libido e no sono, sendo esse ltimo caracterizado por sonhosrepetidos sobre as situaes de perigo e dor vividas nas frentes de batalha. (1993)
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Aqui, o prprio psiquismo elabora para si uma representao capaz de promover
afeto penoso e esse sintoma seria desenvolvido como forma de cura espontnea.
Para Ferenczi, a soma de privaes sobre-humanas e a constante tenso do estar
em guerra so os elementos que desencadeiam a neurose a qual, por sua vez,
geraria uma leso no eu, i.e, uma ferida ou doena a qual acaba remetendo o
indivduo a si mesmo, em um movimento chamado narcisismo traumtico. Toda
neurose de guerra seria uma histeria de angstia porque se caracterizaria por
freqentes tentativas de deslocamento vinculadas a uma angstia intensa que fora
o paciente a evitar certos movimentos e a transformar todo o seu modo e vida
nesse sentido. Como uma criana, esses pacientes, por angstia, regridem e se
confinam ao leito, tentando retardar com a doena de forma relativamente
inconsciente sua volta aos campos de batalha. Nas palavras de Ferenczi,
A personalidade da maioria dos traumatizados corresponde, portanto, de umacriana que, em conseqncia de um susto, ficou angustiada, mimada, sem inibies emalvola. Um elemento que completa perfeitamente esse quadro a importnciadesmedida que a maior parte dos traumatizados atribui alimentao. Quando oservio deixa a desejar, reagem com violentas exploses afetivas, podendo culminarem crises. A maioria deles recusa-se a trabalhar e gostaria de ser cuidada e alimentadacomo crianas. (1993, p.27)
Ainda, o autor argumentava que esses indivduos teriam - como ganhos
secundrios da condio de traumatizados, os benefcios materiais decorrentes do
afastamento por doena como permanecer isento do servio ativo, penso e ou
indenizaes por perdas e danos, entre outras.71O fato que as observaes de
Ferenczi ajudaram a afastar o trauma de um tratamento puramente fisiolgico,
pois at aquele momento os casos traumticos eram classificados com freqncia
pelos mdicos como doenas orgnicas, a partir da suposio da existncia degraves danos nervosos72. Ferenczi que se prope a defender fortemente a idia
de que o fator psquico era o principal responsvel por essas ocorrncias73, embora
71Esse argumento em si bastante controverso e a ele voltaremos em um momento posterior dotrabalho.72Hermann Oppenheim (1858-1919) foi um neurologista alemo que criou a terminologia neurosetraumtica e que atribua a ela um significado absolutamente organicista, tendo assim contribudopara a prevalncia dessa interpretao.73
Max Nonne (1861-1959)- outro neurologista alemo- tambm reforou a idia de que asneuroses traumticas tinham sua origem no psiquismo. Atravs do uso da hipnose e da sugesto,Nonne conseguiu provar que no havia leso orgnica em pacientes que apresentavam sintomas de
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Adolf Stmpell neurologista alemo tambm tenha se contraposto aos
entendimentos organicistas do trauma. (idem) Contudo, embora Stmpell tenha
contribudo para inverter a equao organismo > psiquismo para psiquismo >
organismo na interpretao da neurose traumtica, ele acaba desenvolvendo uma
teoria controversa sobre o trauma ao introduzir a idia de histeria com intenes
pensionistas. Essa neurose poderia ocorrer, segundo o neurologista, em tempos
de guerra e de paz e ganhou fundamento a partir das experincias observacionais
realizadas por ele com indivduos que haviam sofrido graves acidentes
ferrovirios. De acordo com Stmpell, os indivduos que desenvolviam neuroses
graves em razo de acidentes ferrovirios eram aqueles que aufeririam algum
ganho econmico secundrio em decorrncia das leses. (apud Ferenczi, 1993)
A comparao se fazia com outros indivduos que tinham enfrentado
traumas to ou ainda mais violentos, mas que no tinham perspectiva antecipada
de recebimento de indenizaes e no desenvolviam nenhum tipo de neurose. A
partir da Stmpell concluiu que as neuroses traumticas decorriam do desejo dos
indivduos de permanecer doentes para obter privilgios e, por isso, ele
recomendava que as queixas desses pacientes fossem desqualificadas e suas
penses fossem canceladas, para que os mesmos retornassem ao trabalho. (idem,
1993) O que contribua para reforar o entendimento desses indivduos como
simuladores era o fato de que os prisioneiros de guerra observados no
desenvolviam neuroses traumticas. Isso porque segundo o neurologista - os
prisioneiros de guerra no tinham nenhum interesse em ficarem doentes por muito
tempo dado que em pas estrangeiro e em cativeiro o prisioneiro no poderia
contar com compaixo, indenizao ou penses. (ibidem) Observa-se aqui que
tanto Ferenczi quanto Stmpell so referncias paradoxais no que concerne ao
tratamento do trauma, pois ao mesmo tempo em que apresentam contribuiespositivas ao valorizarem a dimenso psquica do trauma, comprometem seus
estudos com avaliaes controversas sobre a relao dos indivduos com o trauma.
Apesar dessas contribuies em favor da dimenso psquica das neuroses
traumticas, a idia de predisposio gentica acatada por Freud permaneceu
constante na psicanlise e foi retomada por Karl Abraham em sua obra
Contribution la psychanalyse des nvroses de guerrede 1918. Esse autor, no
neurose traumtica, podendo esses sintomas aparecer e desaparecer instantaneamente o quecorroborava sua natureza psquica.
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entanto, apresentou outro fator desencadeador de patologias neurticas o
narcisismo. Em um ambiente de guerra o indivduo teoricamente abriria mo de
seus privilgios narcsicos em favor do bem da nao. A situao do ambiente de
guerra bastante complexa dado que confronta os indivduos com exigncias as
quais eles no esto necessariamente preparados psicologicamente para enfrentar,
pois alm de demandar dos indivduos que se disponham a suportar perigos e o
risco da morte, ela tambm convoca os soldados a matar. Essas imposies da
guerra, para Abraham, abalariam o psiquismo dos soldados com disposio
narcsica e passiva74ao serem forados a assumir uma postura agressiva de com-
bate. (1918) O efeito freqente do trauma sobre a sexualidade desses indivduos
desencadearia uma modificao regressiva ao narcisismo, para o qual o convvio
com uma comunidade quase exclusivamente masculina tambm contribuiria para
desestabilizar a sexualidade desses indivduos. Abraham, assim, no s retoma a
idia de predisposio gentica como tambm recupera a questo da sexualidade
na anlise do trauma, agora aplicada ao estudo do trauma de guerra.
Comparando casos de soldados sem ferimentos fsicos e que apresentavam
neurose grave decorrente do enfrentamento de situaes de perigo em combate
com outros sem danos psicolgicos ou fsicos significativos, Abraham concluiu
que havia uma predisposio passiva que demonstrava uma fixao parcial da
libido na fase narcsica do desenvolvimento. Por isso, soldados com essa
predisposio seriam pessoas de pouca iniciativa, de baixa atividade sexual e com
dificuldades de cumprir as obrigaes da vida prtica. Para Abraham, portanto, o
trauma apenas um dos fatores que desencadeiam as neuroses de guerra e que -
ao se apresentar - pode ocasionar delrios com contedo sexual manifesto como
sndromes paranides de cimes e perseguio homossexual de outros soldados.
(Abraham, 1918) Essa contribuio se nos apresenta como bastante problemticauma vez que associa o passivo ao feminino reificando interpretaes
marcadamente hierarquizantes em gnero e inferiorizadoras.
Ernst Simmel, ao tratar casos de neurose de guerra durante a Segunda
Guerra Mundial constatou que a sintomatologia das neuroses continuava a mesma
daquela apresentada durante a Primeira Guerra, malgrado os avanos tecnolgicos
ocorridos entre ambas. Para esse mdico do exrcito alemo, as neuroses de-
74Para Abraham, o passivo se relaciona ao feminino e o ativo ao masculino.
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senvolvidas pelos soldados estavam relacionadas s dificuldades que suportavam
em se deslocar do seu eu da paz para o eu da guerra, por conta das demandas
do ambiente conflituoso. (apud Alexander, 1958) Os conflitos mentais entre os
impulsos do eu e o cenrio conturbado de guerra poderiam provocar a
deteriorao do eu, levando-o a perder a segurana que ele depositava at ento na
civilizao. Embora Simmel em geral no trate de forma diferente as neuroses de
guerra das neuroses de paz uma vez que o eu busca em todos os conflitos
sempre se auto-preservar ele aponta um trao caracterstico e especfico
neurose de guerra ao observar que nela o indivduo teme um inimigo interior, i.e,
o eu de guerra. Em outras palavras, na neurose de guerra a luta entre o indivduo e
o nacional se transforma em uma luta interna do eu para preservar sua prpria
integridade psquica. (idem)
A angstia neurtica decorrente do medo da morte leva o eu da guerra a
terminar por adotar mecanismos mentais que o defendam e preservem sua
coerncia interna. Simmel observou que em grande parte dos casos os soldados
adoeciam em decorrncia do acmulo de experincias traumticas e no em
decorrncia de apenas um nico ataque catastrfico, e que o colapso mental do
soldado resultava do esgotamento fsico e mental. O diferencial analtico de
Simmel est, no entanto, em considerar que o soldado um eu que sofreu uma
alterao significativa decorrente do treinamento militar e que, atravs de um
processo educativo de disciplina, capacitou o soldado a funcionar como parte de
uma unidade militar levando-o a obedecer cegamente ordens superiores sem que
isso lhe cause angstia. Para Simmel, contudo, os efeitos psicolgicos desse
treinamento nem sempre contribuiriam para ajudar o soldado a lidar com estados
mentais contraditrios i.e, ao mesmo tempo sociais e anti-sociais como a
camaradagem entre os parceiros de corporao e a agressividade no combate aoinimigo. Ainda, embora o treinamento militar fosse capaz de afastar tem-
porariamente o medo da morte, ele no eliminaria completamente a possibilidade
de o soldado desenvolver sintomas que lhe permitissem sentir segurana e de
assim se refugiar da realidade insuportvel por ele vivenciada nos campos de
batalha. Esse seria um ganho secundrio da neurose. (ibidem)
Com o decorrer do tempo, Freud ainda desenvolveu novas reflexes sobre o
trauma. Em Moiss e o Monotesmo de 1939 ele detecta efeitos no s positivosno trauma, mas tambm negativos. (1939) Os efeitos positivos at ento apon-
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tados por ele eram o da fixao e da compulso repetio como tentativas do
sujeito de tentar assimilar o fluxo intenso de emoes ao seu psiquismo. As
repeties se fariam via narrativas insistentes pelas quais o indivduo buscaria
tornar reais determinadas experincias traumticas e o trauma seria assimilado ao
eu na medida em que sua origem histrica permanecesse esquecida (ou seja, o
primeiro momento). Por outro lado, os efeitos negativos seriam a negao, com a
no recordao ou a no repetio do trauma esquecido. Nesse caso, o indivduo
desenvolveria reaes defensivas que poderiam desembocar em inibies e at em
fobias. 75
J na obra Reflexes para os Tempos de Guerra, escrita em 1915, Freud
mostrava como o homem pulsionalmente destrutivo com base nos modos de
vida de povos primitivos os quais matavam por gosto e o faziam com
naturalidade. Os tempos de guerra, ento, representariam para ele momentos em
que os laos civilizatrios que funcionavam como freio pulso de destruio
humana se enfraqueceriam, abrindo espao para que a distino entre civis e
militares, o respeito propriedade privada e os direitos dos feridos ao atendimento
mdico fossem ignorados. (Freud, 1974, p.315) Nessa mesma obra, Freud ar-
gumenta que o medo da morte resulta de um sentimento de culpa: Nosso
inconsciente to inacessvel idia de nossa prpria morte, to inclinado ao
assassinato em relao a estranhos, to dividido (isto , ambivalente) em relao
aos que amamos, como era o homem primevo. (idem, p.338)
Em 1932, Freud, em troca de correspondncias com Albert Einstein, busca
responder indagao desse ltimo sobre o que poderia ser feito para proteger a
sociedade de ameaas de guerra e em sua resposta o autor associa a violncia
agressividade pulsional. Em outras palavras, para Freud, embora os homens
desenvolvam argumentos racionais para justificar perante sua conscincia aprtica da destruio, o motivo para os mesmos se lanarem s guerras seria sua
inclinao pulsional agresso e destruio. A violncia poderia at ser
derrotada pela unio de diversos indivduos fracos atravs da constituio de leis,
75A tendncia das pessoas traumatizadas de repetir em seus sonhos experincias traumticas levouFreud a rever suas concepes sobre o principio do prazer como elemento orientador docomportamento humano. A pulso de morte surge, ento, como o fator que se coloca para alm doprazer e em contraposio a ele. Na obraBeyond the Pleasure PrincipleFreud desenvolve a idiade existncia de um escudo protetor ou uma barreira de estmulos em relao ao mundo externo
o qual representaria uma forma de defesa contra eventos tidos como ameaas de destruio daorganizao psquica interna. (Freud, apud Leys, p.23)
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mas essa nova forma de poder para Freud tambm era uma forma de violncia que
est pronta para se voltar contra qualquer indivduo que se oponha a ela; ou seja,
funciona a partir dos mesmos mtodos e persegue os mesmo objetivos que a
violncia estabelecida pela fora superior de um s indivduo. No entanto, Freud
argumenta que a postura de rebelio dos seres humanos contra as guerras tambm
decorre de motivos orgnicos bsicos, sendo todos forados a serem pacificistas,
mesmo que no saibam justificar essa maneira de agir. (ibidem, p.247)
Antes que nos disponhamos a criticar as consideraes de Freud ainda nos
cabe mencionar outros importantes desdobramentos dos estudos psicanalticos
sobre o trauma. William Sargant foi um dos mais proeminentes psiquiatras
ingleses a atender pacientes de traumas de guerra agudos ao longo da Segunda
Guerra Mundial. Em seus atendimentos na emergncia de um hospital nos
arredores de Londres, Sargant observou que os medicamentos utilizados para
sedar os pacientes produziam duas conseqncias: a primeira era a recuperao
das atividades motoras e de fala que haviam se perdido durante a fase do choque e
a segunda era a recuperao das memrias dos eventos terrveis que haviam
causado o trauma e que haviam sido suprimidas. Ao recuperar essas memrias os
pacientes liberavam grande descarga emocional e, ao final, apresentavam segun-
do o psiquiatra significativa melhora. (1967)
O uso de drogas intravenosas, como barbitricos e sdio amital, permitiu a
Sargant - que assumia uma postura claramente oposta via psicanaltica para o
tratamento ou cura do trauma redescobrir o mtodo da ab-reao76ou catarse, j
desenvolvido por Breuer e Freud nos anos 1890 ao tratarem a histeria, reforando
a idia de que a via medicamentosa era mais rpida para o tratamento de neuroses
traumticas do que a hipnose. Nesse perodo, como veremos logo em seguida, foi
uma postura comum aos governos do ps Segunda Guerra Mundial apenasdiagnosticar como traumatizado os indivduos que apresentassem predisposio
gentica anterior para reduzir o pagamento das penses e indenizaes e
investir em medicamentos para o tratamento das neuroses traumticas, dados os
reputados resultados mais rpidos e, portanto, menos custosos.
76Ab-reao o termo usado na psicanlise para referir-se descarga emocional pela qual um
indivduo se libera do afeto associado recordao de um evento traumtico. Essa descarga seriaresponsvel pela cura ou o fim dos efeitos patognicos dessas lembranas. (Laplanche ePontialis,1991)
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Enquanto Sargant ajudou a reforar o uso de medicamentos como forma de
tratamento do trauma, Abraham Kardiner em 1941 contribuiu para biologizar a
resposta traumtica, ao desenvolver o termo fisioneurose a partir do qual ele
conferiu uma caracterstica somtica s reaes traumticas. Em outras palavras,
(c)haracterizing repetitive traumatic dreams as forms of memory disturbance typical oftraumatic neurosis, Kardiner described such dreams in ways that suggested they werealmost cinematic replays of the traumatic origin, devoid of fantasy or symbolicmeaning. (Leys, 2000, p.194)
De fato, em sua obra The Traumatic Neuroses of War (1941), Kardiner
avaliou negativamente a ab-reao hipntica como forma de tratamento
teraputico aplicada durante a Segunda Guerra Mundial, pois acreditava que amesma s funcionava em casos agudos, sendo que mesmo nesses casos nenhum
benefcio permanente poderia decorrer apenas da ab-reao, pois para ele ela
deveria ser acompanhada de medidas analticas fornecidas ao paciente para que
ele pudesse entender as relaes existentes entre o trauma e seus prprios
mecanismos defensivos77. Ou seja, Kardiner acreditava que o principal objetivo da
terapia era reeducar78o paciente, pois at a recuperao de um estado de amnsia
deveria ser subordinado finalidade de adaptao do paciente ao mundo externo.
(1941)
Desses experimentos e concluses surgiram perguntas sobre como e se a ab-
reao promovia cura do trauma as quais dividiram psicanalistas e psiquiatras
daquele perodo. Para Roy Gringer e John Spiegel os barbitricos eram usados
como forma de promoo de re-conexes emocionais com as cenas traumticas.
Em casos mais difceis, os terapeutas desenvolviam performances hipnticas,
imitando vrios papis de modo a ajudar o paciente sob efeito de narcticos a re-
experimentar o evento traumtico em sua intensidade emocional original. (1945)
Para esses terapeutas, contudo, o mais importante era que o paciente retivesse e
integrasse a memria do evento reconectado mesmo depois que os efeitos das
77 Observa-se aqui a possibilidade de interferncia do mdico ou terapeuta na interpretao dotrauma. No prximos captulo, quando tratarmos da medicalizao, apontaremos as implicaesdessa interferncia em termos de controle social.78
No captulo 6 veremos como essa preocupao de reeducao na interpretao dos sentimentos edo trauma continua presente nos programas de psicoterapia social desenvolvidos pela OMS quantos situaes traumticas e de grande stress.
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drogas79cessassem. Gringer e Spiegel desenvolveram a abordagem teraputica da
narco-anlise e reforaram a centralidade da re-sntese mental em sua concepo
de cura, embora reconhecessem que a reintegrao psquica no era uma tarefa
fcil de se promover. Para eles, no entanto, a ab-reao no era um processo
mecnico de liberao de emoes recalcadas, mas uma prtica confessional e
interpretativa na qual o mdico/terapeuta exerceria um papel central80, pois a ele
caberia a funo de manipular o processo de transferncia de modo a estimular o
paciente a participar da cura remetendo-o memria e narrativa. (1945)
Sargant, por outro lado, se posicionava de forma dbia em relao ao papel
do terapeuta no que concerne ab-reao, pois s vezes reconhecia que a
restaurao da memria e a narrativa do evento traumtico poderiam ser
benficas. No entanto, ele reputava o uso dos barbitricos para sedar os pacientes
um elemento fundamental e o consentimento do paciente quanto ao uso dos
medicamentos no era entendido por ele como semelhante ao do paciente que
concorda em colaborar com a prpria cura, mas sim ao de um paciente que
concorda com uma cirurgia. ( idem)
Victor Horsley na obra Narcoanalysis de 1943 apresenta o mtodo
narcoanaltico em termos bioqumicos, ao promover a neurose profunda de um
indivduo de modo a facilitar o conhecimento do mdico sobre o caso. Assim,
para Horsley
It was an aid in obtaining data from the patient as quickly and efficiently as possible inemergency conditions where rapid decisions were essential. Although he admitted thatthe drug-analytic method helped restore amnesias and relieve symptoms, Horsleydefined it as essentially a crude and primitive diagnostic measure that could be used byany inexperienced medical officer as an emergency measure in the field. (Horsley apudLeys, 2000, p.198)
No entanto, Horsley tambm apresentava a narcoanlise como um tratamento
sofisticado segundo o qual psicoterapeutas experientes buscariam trazer as causas
escondidas ou reprimidas da doena para a conscincia do paciente. Horsley
reputava a si mesmo a originalidade de ter combinado a abordagem qumica aos
79 Como veremos tambm na segunda parte do prximo captulo, parte do processo demedicalizao se faz atravs do uso dos medicamentos como formas mais rpidas e para muitos mais eficazes de soluo de problemas psquicos.80
Novamente, temos uma proposio que coloca o mdico em uma posio central quanto aoprocesso de interpretao do evento traumtico e na conexo entre as emoes do paciente e suasemoes e sentimentos.
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conceitos psicodinmicos de conflito, represso e amnsia. Em seu ponto de vista,
todas as fases da narcoanlise seriam importantes, no s a fase da anlise na qual
o paciente seria questionado sob a influncia de medicamentos, mas tambm a
fase de sntese, na qual procurava- se alcanar a reintegrao psquica do paciente
a sua plena conscincia. Apesar de enfatizar a dimenso analtica do tratamento do
trauma, Hoersley observava que a principal vantagem da ab-reao medicamen--
tosa era a de no demandar especializao especfica ou experincia em tcnicas
de anlise e hipnose81. (Hoersley, 1943)
A interpretao cirrgica da ab-reao feita por Sargant reforou uma nfase
crescente na centralidade da descarga emocional para o sucesso do mtodo por ele
desenvolvido e dependente de medicamentos. Drogas como o ter seriam teis na
medida em que eram baratas, rpidas e prticas para uso em condies de servio
e seu uso, segundo Sargant, ajudaria a resolver o problema das suspeitas de
simulao das catarses observadas em tratamentos hipnticos com pacientes no
submetidos a efeitos de medicamentos. Nesse sentido, drogas como o ter
ajudariam a imergir o paciente em seu papel o qual ficaria preso em sua
performance na cena traumtica que foi trazida ao presente, permitindo que ele
atuasse de forma emotiva na cena como se a mesma estivesse ocorrendo
novamente. Sargant enfatizava a necessidade do mdico de penetrar na atuao da
cena traumtica de modo a ajudar o paciente a conduz- la de forma correta.
(1940) Em 1944 Sargant passa a entender que o excitamento emocional
promovido pelos medicamentos na ab-reao era mais crucial do que a
recuperao da memria do evento traumtico. Nesse sentido, Sargant acreditava
que a forte descarga emocional era to importante que simplesmente no
importava se a cena recuperada era fictcia ou sugerida, pois a cura decorreria da
re-experimentao emocional do evento.
In fact -(...) Sargant claimed that if the reliving of an actual incident did not bringabout relief, invented situations could be successfully employed to cure the patient:one can use fantasy to create excitement, invent false situations or distortions ofactual events when the uncovering of a true amnesia or the reliving of an actualexperience has not brought about sufficient emotional release to disrupt a deeplyingrained neurotic pattern.() In short, Sargant claimed that the abreaction of false
81 Nessa perspectiva, os medicamentos novamente so tomados como uma via mais prtica,
sobretudo em situaes de conflito, onde os atendimentos se fazem em carter de emergncia. aemergncia imposta pelo conflito que torna a psicologia e a psicanlise contraproducentes pordemandarem um tempo de tratamento do qual com freqncia no se dispe.
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memories might be more effective than the abreaction of actual memories inachieving therapeutic success.(Leys, 2000, p.203)
As consideraes de Sargant nesse sentido representaram uma grande
controvrsia para os estudos do trauma at ento, dado que o entendimento das
repeties traumticas como representaes verdicas do evento original era o
pressuposto das ab-reaes para os mdicos e terapeutas at ento. Tanto era
assim que Kardiner apresentava os pesadelos traumticos como virtualmente
exatos ou re-apresentaes cinemticas do passado. Dentro da histria da
mneumotcnica, Kardiner retomado de forma a contribuir para o entendimento
de que o trauma envolveria o registro literal do evento traumtico em uma
memria traumtica especfica que jamais poderia ser trazida lembrana ou
auto-representao82.
No entanto, no h consenso em torno dessa idia de literalidade da
memria traumtica. Isso porque os significados dos pesadelos traumticos no
so to simples e transparentes como Kardiner sugeria. Por outro lado, para os
defensores da catarse medicamentosa, os medicamentos eram a garantia contra o
problema da simulao e da falsificao das memrias, sendo mesmo entendidas
como um soro da verdade, ou seja, uma forma eficiente para se distinguir entre a
verdade e a mentira. Os opositores dessa perspectiva, por sua vez, avaliavam que
as informaes obtidas via narcoanlise eram ambguas e de validade duvidosa
para serem utilizadas como evidncia legal, por exemplo. Essas dvidas sobre
esse tipo de informao ainda pairam sobre a literatura do trauma at os presentes
dias, sobretudo porque muito dos estudos sobre stress ps traumtico se baseiam
na busca de preciso histrica e literalidade das repeties traumticas. (Kolb,
1988)Uma nova tentativa de estudar o trauma em termos fisiolgicos e corporais foi
realizada ainda por Sargant em 1944, aps a leitura da obra Conditioned Reflexes
and Psychiatry de Ivan Pavlov. Reforando sua abordagem anti-freudiana do
trauma, Sargant estende os argumentos de Pavlov desenvolvidos sobre estudos
relativos a ces para os humanos de modo a argumentar que as amnsias, parlises
e outros sintomas histricos de neuroses de guerra agudas eram exemplos de
82Sobre essa questo da representao, trataremos mais adiante.
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estados pavlovianos de excitao e inibio do crtex cerebral, ou seja, estados
nos quais os reflexos condicionados normais encontravam-se abolidos e
substitudos por reflexos patolgicos. (1940) As drogas serviriam, ento, para
liberar fortes descargas emocionais as quais seriam capazes de destruir os reflexos
patolgicos e promover a cura do paciente. A ab-reao seria, assim, um estado
artificialmente criado de excitao do crebro que repetiria o choque traumtico
de modo a quebrar os reflexos patolgicos condicionados e a restaurar a
normalidade. Nesse sentido, o choque era curado pelo choque atravs de um
processo de descondicionamento iniciado pelo uso de medicamentos. (Sargant &
Slater, 1944) Em outras palavras, novamente se estabelece um modelo que
entende a cura do trauma em termos puramente mecnicos, na medida em que
refora a crena de que a cura decorreria simplesmente da liberao automtica de
emoes dissociadas ou reprimidas. Ainda, esse modelo retoma a idia da
irrelevncia do paciente no prprio processo de cura, uma vez que o paciente fica
totalmente submisso ao mdico e aos medicamentos.
Uma dimenso importante das proposies de Sargant a considerao de
que a ab-reao em termos pavlovianos seria capaz de limpar a mente do paciente
das memrias traumticas, pois ela eliminaria das camadas corticais do crebro
hbitos passados ali instalados. Nesse sentido, suas formulaes no s contrariam
as observaes de outros mdicos e terapeutas renomados ( que afirmavam que o
combate deixava uma impresso duradoura na mente humana a qual a
transformaria de forma radical) - como tambm propunha uma teraputica que
investia no esquecimento e no na lembrana83.
O tema do esquecimento, por outro lado, no s apresenta obstculos para as
terapias at ento desenvolvidas com base em estmulos medicamentosos como
invoca questionamentos ao prprio processo de ab-reao como um mecanismocapaz de promover a cura de pacientes de neuroses traumticas. No que tange o
processo de ab-reao medicamentosa, o problema era o de que ao final dos
efeitos do medicamento, corria-se o risco de que o paciente no retivesse na
conscincia a lembrana do que ele havia acabado de recobrar em sua memria.
As solues para essa questo foram diversas: para os mdicos voltados para o
uso da psicanlise, a sada era sugerir ao paciente ao final da hipnose que ele se
83Essa uma proposio interessante e que representa um contraponto tica da memria queenvolve o tratamento do trauma na poltica contempornea.
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lembrasse de tudo assim que a hipnose terminasse; para os voltados para as
solues medicamentosas, as sadas variavam desde o uso de novos sedativos para
tornar mais lenta a retomada da conscincia, o reforo do esquecimento como algo
eficaz ou o uso de Coramine, um estimulante ministrado logo aps o fim da ab-
reao para garantir uma rpida reviso da lembrana recuperada dos eventos.
(Fabing,1947) No entanto, os resultados do uso dessas solues foram bastante
irregulares e muitas vezes ineficazes.
Quanto ab-reao enquanto mtodo de promoo da cura das neuroses
traumticas, as avaliaes gerais indicam que se curas foram promovidas elas no
decorreram pura e simplesmente do uso de medicamentos como forma de
promoo. Ainda, por conta das prprias condies das guerras o levantamento de
dados estatsticos sobre esse tema ficou bastante fragmentado e falho, alm do
fato de que mesmo depois dos tratamentos muitos pacientes ainda apresentavam
sensibilidades sonoras ou auditivas que os tornavam inabilitados para retomar o
servio militar. Diante dessas constataes, os tratamentos das neuroses
traumticas passaram a dividir espao com prticas preventivas, desenvolvidas em
primeiro plano pelos ingleses com resgate de lies aprendidas ainda durante a I
Guerra Mundial.
Segundo Ruth Leys, um dos resultados do desenvolvimento de mtodos
preventivos foi a normalizao das neuroses de guerra. Essas medidas
preventivas implicavam no envio de psiquiatras para os cenrios de guerra e os
mesmos eram orientados a tomar os sintomas que seriam entendidos como
anormais para os cidados em vida civil como normais em tempos de stress de
batalha84. Dessa forma, criou-se a chamada reao normal de batalha e ela
passou a ser tomada como referncia em relao a qual as respostas patolgicas
deveriam ser medidas ou avaliadas. Nesse sentido, a maioria das reaes debatalha era considerada transitria e reversvel se tratada em atendimentos de
primeiros socorros e de maneira firme.(2000)
Above all, physicians must avoid the mistake of evacuating soldiers with normalbattle stress to a hospital in the rear, for this allowed the symptoms to be associated
with the gain of being removed from combat and hence to become elaborated andfixed. (Leyz, 2000, p. 220)
84
Essa outra faceta importante do processo de medicalizao que ser tratado na segunda partedo prximo captulo, em meio s discusses sobre a classificao mdica de comportamentosnormais e comportamentos desviantes.
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A partir dessa nova proposta, at mesmo os mtodos baseados em ab-
reaes medicamentosas foram colocados em segundo plano e o tratamento
psiquitrico em campos de batalha passou a se resumir ao fornecimento dedescanso, comida quente, banhos, sedativos, exortao do moral e sugesto. Os
medicamentos passaram a ser interpretados como um risco de transformar o
soldado em um paciente confinado em uma cama de hospital, um resultado pouco
produtivo e custoso. Os casos mais graves eram tratados em centros hospitalares
com base em ab-reaes medicamentosas. No entanto, verificou-se que poucos
eram os soldados que tratados dessa forma se sentiam capazes de retornar aos
campos de batalha e suas reaes emocionais eram consideradas excessivas. Esses
resultados indicavam, portanto, a existncia de claras dvidas sobre a capacidade
de promoo de cura das ab-reaes em geral.
Albert Glass, um defensor da psiquiatria preventiva afirmava que os
princpios da preveno eram o atendimento imediato, a proximidade e a
expectativa, ou seja, o soldado devia ser tratado o mais imediatamente possvel, o
mais prximo possvel de sua unidade e segundo a expectativa de que o soldado
responderia favoravelmente ao tratamento e retornaria ao campo de batalha. Essas
diretrizes tambm refletiam no psiquiatra uma vez que a preveno significava
que ele deveria colocar o bem estar do grupo/exrcito acima do bem estar do
indivduo, em reconhecimento de uma obrigao maior de defesa contra o
inimigo. (1954)
Para Glass, diferentemente do que ocorreu nas I e II Guerras Mundiais, o
psiquiatra deveria estar imerso no cenrio de guerra para que ele pudesse avaliar
melhor a conduo dos tratamentos e as peculiaridades do cenrio. No entanto, o
maior valor da psiquiatria oferecida in loco seria o de que a experincia de
combate endureceria o terapeuta e reafirmaria seu dever de ajudar o soldado a
voltar para a guerra. Por essa razo, Glass rechaava o procedimento de
encenaes nos processos de ab-reao porque eles demandavam que o terapeuta
integrasse a performance dramtica o que o encorajaria a se identificar com o
sofrimento do soldado. Ele ia ainda mais alm, pois se opunha s anlises mais
profundas que inclussem a recuperao de memrias reprimidas para favorecer
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mtodos mais autoritrios que constrangessem os pacientes a esquecer as
experincias traumticas. Dessa forma,
(...) it became clear that the goal of the treatment for the purpose of return to combat
duty was the restoration of previous defenses instead of attempts to alter orreorganize the personality.() (F)or Glass, good suggestion was to be used to counterbad suggestion by inducing the patient to erase or forget his sorrows. (idem, p.222)
A psiquiatria preventiva foi adotada durante as guerras da Coria e do
Vietn e em ambos os casos estudos de longo prazo demonstraram que muitos de
seus veteranos tratados durante as guerras ainda apresentavam sintomas de
neuroses traumticas mesmo quinze ou vinte anos depois dos eventos que lhes
deram origem. Esses estudos se desenvolveram no final da dcada de 50 e aolongo da dcada de 60 e foram acompanhados de outros os quais comearam a
trabalhar em sintomas retardados e crnicos a partir da analise da sndrome dos
campos de concentrao.
O tratamento psiquitrico dos sobreviventes dos campos foi iniciado apenas
na primeira metade dos anos 1950 e como resultado dos esforos de retribuio
internacional da Repblica Federal da Alemanha. Segundo Wulf Kansteiner,
poucos foram aqueles que se preocuparam com as experincias ou as angstias
dos sobreviventes. Mesmo depois do comeo do pagamento das indenizaes em
1953, os sobreviventes enfrentaram uma burocracia alem pouco emptica e
recalcitrante, que permitia que os arquivos dos requerentes dos pedidos de
indenizao fossem acessados pelos mesmos mdicos que os haviam torturado
nos campos poucos anos atrs. Como observa Kansteiner,
(...) the tendency of the courts and their experts to assume a direct causal link between
physical and psychological damages proved even more detrimental. Like the Germanpsychiatric establishment during and after the First World War, their successors triedto protect the coffers of the state by adhering to an extremely narrow definition ofpsychological trauma. In their opinion the conditions in the camps caused long-termpsychological damages only for the relatively few survivors who had suffered seriousneurological damage or had already been prone to psychological complications beforetheir imprisonment. (2004, p.99)
Essa postura da burocracia alem no imediato ps - guerra ainda refletia as
dificuldades desse Estado de se desapegar da racionalidade do mal, ou seja, da
racionalidade inimiga da moralidade e inibidora de sentimentos de vergonha earrependimento pelo genocdio promovido contra os judeus e ciganos. Mais do
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que isso: ela representava as dificuldades da burocracia alem de superar a busca
em argumentos fisiolgicos85 para o estabelecimento ou implantao de suas
racionalidades86.
O desenvolvimento da perspectiva da psiquiatria preventiva acabou
provocando um profundo questionamento do papel do psiquiatra e seu
compromisso para com os pacientes no meio militar. Durante a Guerra do Vietn
desenvolveu-se uma concepo generalizada de que a psiquiatria preventiva
acabava tornando o trauma um problema crnico pelo fato de ela implicar a
desconsiderao das necessidades e experincias subjetivas dos indivduos,
sobretudo no que concerne aos efeitos retardados e o papel do ambiente externo
na construo do trauma87.
Foram preocupaes norte-americanas com seus soldados na Guerra do
Vietn que contriburam para o desenvolvimento do conceito de stress ps-
traumtico e promoveram novos questionamentos sobre o trauma e os seus modos
de tratamento. A codificao do stress ps-traumtico ocorreu em 1980 com a
insero da seguinte definio no Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorder da Associao Psiquitrica Americana:
The essential feature of Postraumatic Stress Disorder is the development ofcharacteristic symptoms following exposure to an extreme traumatic stressorinvolving direct personal experience of an event that involves actual or threateneddeath or serious injury, or other threat to ones physical integrity; or witnessing anevent that involves death, injury, or a threat to the physical integrity of anotherperson; or learning about unexpected or violent death, serious harm, or threat of
85 Nesse contexto, o desenvolvimento de discursos medicalizantes adquire tonalidades mais fortesno que concerne ao tratamento do indivduo objeto da medicalizao como inferior. Essesargumentos atendiam a determinados interesses polticos e serviram, como sabemos, para aconstruo de justificativas de medidas de eliminao da populao judaica e cigana naquele
perodo.86 Como observa Zigmund Bauman, a linguagem desenvolvida por Hitler era carregada deimagens de doena, infeco, putrefao, pestilncia. (1989) O cristianismo e o bolchevismo eramcomparados a doenas como a sfilis ou a peste e os judeus eram caracterizados como vermes.Himmler em 1942 afirmou que a batalha na qual a burocracia alem estava inserida era semelhantea que havia sido travada por Louis Pasteur e Robert Koch no sculo XIX. Em um artigo de 1941Goebbels saudou a adoo da estrela de Davi como smbolo para marcar os judeus como umamedida higinica profiltica. Para Goebbels, isolar os judeus de uma comunidade racialmentepura era regra elementar de higiene, racial, nacional e social. Ainda, como observa Bauman,Havia pessoas boas e pessoas ms, argumentava Goebbels, assim como h bons e maus animais.O fato de que o judeu ainda vive entre ns no significa que ele pertence ao meio, assim comouma mosca no vira animal domstico pelo fato de viver na casa.(Goebbels apud Bauman, p.94,1989) (...) A questo judaica, nas palavras do assessor de imprensa do Ministrio do Exterior, era
eine Frage der politischen Hygiene [uma questo de higiene poltica] (Bauman, idem)87Essa uma dimenso que pretendemos enfatizar na prxima seo do presente captulo.
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death or injury experienced by a family member or other close associate. (AmericanPsychiatric Association, 200, p.463)
Como observa Wulf Kansteiner, h boas razes para se questionar a
definio psiquitrica do trauma. Em primeiro lugar, a Associao Psiquitrica
Americana no uma instituio isenta e by administering the flow of patients
and experts and constructing a compelling, efficient, and affordable description of
the populations mental health, the organization exerts control over a significant
cultural and economic infrastructure. (2004, p.102)
Ainda, () the APA classificatory scheme for mental disorders appears
highly arbitrary and open to a wide range of alternative explanations and
emplotments. (Young, 1995, p.96) Em outras palavras, a crtica dos autores est
no fato de que a definio do stress ps- traumtico restrita ao considerar que as
vtimas sobreviventes de tortura, combate, estupro, aprisionamento e genocdio
so grupos apenas tendentes ao desenvolvimento dos sintomas decorrentes do
trauma. Para eles, the strategic deployment of medical, psychiatric, legal and
theoretical expertise often contradicts and competes with the interests of trauma
survivors and their families who can find support and retribution only after their
claims have been legitimized by experts88. (Kansteiner, 2004, p.102)
Vale lembrar que a definio do stress ps-traumtico tem sido controversa
desde sua criao. Inicialmente, ela sustentava que o stress representava uma
reao humana normal a eventos estressantes extraordinrios os quais causariam
problemas mentais a quase todos os que a eles fossem expostos. No entanto, esse
pressuposto acabou sendo abandonado com o tempo e por duas razes: em
primeiro lugar, grupos especficos de indivduos que experimentaram traumas
severos no apresentaram sintomas de stress ps-traumtico mesmo depois de
muitos anos89; e em segundo lugar, muitos indivduos que no contavam com
fatoresobjetivos para o desenvolvimento de problemas mentais severos passaram
a sofrer de SPT90. Como conseqncia, muitos pesquisadores do trauma acabaram
abandonando a busca por critrios objetivos que possam definir os eventos
88Um das mais fortes implicaes da medicalizao, como veremos, o controle exercido pelosprofissionais da sade no que concerne ao estabelecimento de diagnsticos e confirmao ou node doenas.89
Os sintomas listados no manual incluem medo intenso, re-experincia persistente do eventotraumtico, apatia, isolamento social. (APA, 2000)90Usaremos a abreviao SPT para o stress ps- traumtico daqui em diante.
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traumticos e passaram a se concentrar em fatores subjetivos que possam
desempenhar um importante papel no desenvolvimento do SPT.
Em uma avaliao geral, observamos que o desenvolvimento de reflexes
psicanalticas representou um ponto importante nos esforos de discernimento da
relao organismo x psiquismo na composio do trauma, sobretudo quando
contriburam para minimizar as explicaes puramente fisiolgicas e abriram
espao para a dimenso psquica em suas explicaes para os sintomas das
neuroses dele decorrentes. Contudo, conforme pontuamos ao longo do texto,
embora elas tenham colaborado significativamente para enfraquecer
interpretaes que colocam em oposio o corpo e a mente ou que consideram
dimenses puramente fisiolgicas, suas contribuies - no que concerne aos
traumas decorrentes de conflitos, sobretudo - foram, como observamos, repe-
tidamente ofuscadas por interpretaes e propostas de tratamento que
medicalizavam o problema de diversas maneiras. Essas interpretaes no s
colocavam os mdicos em condio privilegiada na definio dos diagnsticos (ou
seja, na definio do que normal ou no) como enfatizavam com freqncia a
utilidade dos medicamentos como vias teraputicas mais rpidas para auxiliar o
indivduo traumatizado a superar suas experincias de sofrimento.
Ainda, importante salientarmos que tanto psiclogos quanto psiquiatras
concentraram seus esforos no entendimento dos fatores causadores dos sintomas
decorrentes do trauma a partir de dentro, ou seja, do indivduo e de sua capacidade
de integrao e superao de experincias violentas. Nenhum dos dois campos de
estudos, no entanto, realmente voltou ateno para a dimenso externa ao
indivduo nesses cenrios e para os contextos culturais nos quais eles estavam
inseridos. No caso do envio dos psiquiatras para os cenrios de guerra, embora
eles tenham sido inseridos no prprio contexto de violncia, a atuao dosmesmos foi pautada pelas diretrizes e interesses polticos de seus pases naqueles
perodos e em relao queles conflitos, sem uma real preocupao com os
indivduos vitimados. O que poderia ter ajudado a produzir uma compreenso
mais holstica do processo de composio do trauma terminou por comprometer
ainda mais o desenvolvimento do entendimento dos fatores sociais que ajudam a
construir o trauma e os seus sintomas.
Por outro lado, como observamos mais acima, os estudos revisionistas sobreo trauma - decorrentes dos trabalhos de pesquisadores que se dispuseram a
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questionar as pressuposies do SPT - abriram espaos para a considerao dessas
dimenses at ento marginalizadas. Entre outras coisas, esses estudos permitiram
a constatao de que o discurso predominante do trauma dentro da psicologia e da
psiquiatria no permitiu que probabilidades delineadas a partir de contextos
especficos pudessem ser desenvolvidas de modo a demonstrar como
componentes simblicos- culturais so importantes para se determinar como os
indivduos percebem ou expressam suas dores e seus sentimentos. Nesse sentido,
C.M. Obermeyer observa que mesmo cientistas ocidentais esto hoje convencidos,
por exemplo, de que mulheres as quais foram submetidas ao corte genital em
vrios pases africanos no so tendentes a desenvolver sintomas ps- traumticos.
Nesses casos, o ritual popular est inserido em um contexto social e cultural que
exclui interpretaes dessa prtica como compatveis com a noo ocidental de
trauma. (1999) E questes como essa nos remetem ao importante debate sobre a
sociologia das emoes.
4.1 A sociologia das emoes e o trauma como um processo de
construo social.
Enquanto sub-rea a sociologia das emoes existe h apenas 35 anos e arazo para isso o fato de que as emoes - embora estivessem presentes nas
preocupaes de estudiosos como George Herbert Mead, Karl Marx, mile
Durkheim, Vilfredo Pareto ou Charles Horton Cooley - elas foram tratadas, assim
como nas relaes internacionais, de forma secundria, implcita ou sub-teorizada.
Somente a partir dos anos 70 um conjunto de estudiosos buscou conceituar as
emoes de uma forma mais explcita e a desenvolver teorias e programas de
pesquisa sobre esse tema. (Collins, 1975; Heise, 1979; Hochschild, 1975, 1979;Kemper, 1978; Scheff, 1979; Schott, 1979) Nas dcadas subseqentes, o estudo
das emoes na sociologia expandiu-se de modo a representar um importante
marco tanto na sociologia macro quanto na micro. Por outro lado, embora esse
campo de estudos tenha se desenvolvido de forma considervel, ele ainda mantm
alguns elementos controversos ou questes no resolvidas que so elementos
importantes a serem mencionados aqui.
Um dos elementos controversos dentro dessa sub-rea de estudos a prpriadefinio de emoo. Muito do problema de se desenvolver uma definio de
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emoo est ligado a sua complexidade uma vez que ela opera em diversos nveis
como o biolgico, o neurolgico, o comportamental, o cultural, o estrutural e o
situacional. Por essa razo, cada pesquisador acaba desenvolvendo uma definio
de emoo segundo o nvel que prioriza em seus estudos. Em geral, no entanto, h
na sociologia um estigma em torno das teorias evolucionistas na medida em que
socilogos tendem a interpretar como reducionismo qualquer esforo explicativo
de um processo social atravs da biologia. (Turner, 2009) Para essas teorias
evolucionistas, as emoes so parte da dinmica dos processos biolgicos que
organizam o funcionamento do organismo de um indivduo os quais ocorrem
antesde atingir a conscincia. Alguns tericos que deram base a essa perspectiva
chegaram mesmo a negar que as emoes fossem reguladas por centros cerebrais
especializados. Como observa Ronald de Sousa (1997), William James foi um dos
formuladores iniciais dessa perspectiva e para ele a conscincia emocional
consistia em um tipo de percepo de nossos prprios estados corporais a qual
seria capaz de discernir entre diferentes emoes. Segundo James, no havia no
crebro humano centros especializados nas emoes e para ele os sentimentos
eram causados por mudanas corporais, tanto que sua proposio se traduzia pela
frase we do not weep because we are sad, but rather we are sad because we
weep. (James apud Sousa, 1997, p.51). Os avanos nos estudos da neurobiologia
ao longo do tempo provaram, no entanto, que James estava errado em suas
proposies. As novas descobertas demonstraram que as emoes so geradas
atravs de sistemas neurolgicos abaixo do grande crtex e
(t)hus, emotions are activated in those neurological systems that evolved before thegrowth of the hominin and human neocortex that allows for complex culture.Moreover, these subcortical systems are not directly controlled by the neocortex, and
hence, they operate independently of culture. (Turner, 2009, p. 342)
Embora essas novas descobertas tenham ajudado a entender a dimenso
biolgica das emoes elas, no entanto, tendem a valorizar apenas essa dimenso,
sem considerar que h como os socilogos e antroplogos apontam - um
contexto social que ajuda a construir significados para as emoes. A prevalncia
de leituras puramente fisiolgicas ou neurolgicas para as emoes foi em grande
medida responsvel por duas dicotomizaes que socilogos e antroplogos em
geral buscam combater: a oposio entre corpo e mente e a oposio entre emoo
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e razo. No primeiro caso, embora estejam articuladas conjuntamente em cada
indivduo, essas duas dimenses so pensadas separadamente, tendo gerado
inclusive campos de conhecimento distintos para tratar ora do corpo, ora da
mente. No caso da mente, ela tambm foi dividida em duas instncias a razo e
a emoo. Esta segunda dicotomizao est relacionada com a primeira na medida
em que as emoes so geralmente associadas ao corpo enquanto que a razo
associada mente.
Segundo essa tica, assim, as emoes so pensadas como tendo, com
freqncia, origem no funcionamento do prprio corpo. Por exemplo, os hor-
mnios masculino e feminino explicariam nessa viso muitos atributos
emotivos dos gneros, ao argumentar que os homens so mais agressivos que as
mulheres por possurem mais testosterona em seu organismo. Por outro lado, as
mulheres seriam emotivamente mais instveis por causa do ciclo menstrual e das
alteraes hormonais a ele relacionados e o maior volume de estrognio. No caso
do crebro, as reaes qumicas que nele ocorrem so outros fatores entendidos
como responsveis por algumas manifestaes emotivas como o amor e a
ansiedade ou os estados emotivos que compem quadros depressivos. Essas
emoes seriam o resultado de reaes qumicas em desequilbrio as quais so
freqentemente tratadas com medicamentos. (na medida em que so interpretadas
como algo ruim ou uma doena) Nessa mesma linha de pensamento, tambm se
considera que os sentimentos possam causar reaes corporais, como, por
exemplo, as palpitaes cardacas em situaes de medo, a falta de ar em
situaes de ansiedade e as lgrimas em momentos de tristeza ou felicidade.
Dentro dessa perspectiva, est embutida tambm a idia de que as emoes
possuem vrios atributos comuns aos fenmenos corporais e, por isso, so
expresses espontneas que se manifestam independentemente da vontade dosujeito. Como observa de Sousa, porque as emoes so vista dessa forma
(t)he love potion is an ancient fantasy: emotional control by direct chemicalmeans.() The hope of control seems the more urgent because emotions aretraditionally blamed- or sought after for the loss of the mastery of mind overbody. It is an old trope: emotion as madness, as the defeat of the Real Self by something alien to itdepression as ecstasy, manic delight or psychopathic rage. In an age of engineering it isnatural to assume that if we can get to the mechanisms underlying our emotionalstates, we will thereby gain better control over our emotional lives. (1997, p. 49)
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Ainda, como depreendemos desse trecho citado acima, em muitos
contextos a mente considerada como superior ao corpo e a razo associada
mente - como superior emoo. Caberia razo como caracterstica da mente o
conhecimento, o planejamento e o domnio do mundo natural, do qual o prprio
corpo e as emoes fazem parte. Desse modo, decorre desse pensamento o
entendimento de que enquanto a razo e a mente colocariam o ser humano em um
plano hierarquicamente superior aos outros animais, as emoes e as necessidades
corporais os colocariam em um mesmo patamar. Essa viso sobre as emoes as
faz acompanhar de adjetivaes pejorativas que desqualificam os indivduos que
se dispem a expressar mais abertamente suas emoes sendo os mesmos
interpretados como instveis, vulnerveis, sem controle, imprevisveis ou at
mesmo perigosos.
Durante sculos o pensamento filosfico ocidental tem justaposto as emoes
racionalidade. No entanto, a ironia, como observa Jonathan H. Turner, est no fato
de a prpria neurologia e os estudos dessa rea terem se tornado os responsveis
pelas principais descobertas que ajudam a contestar essa oposio. Nas palavras
do autor,
(w)hen the neuronets connecting the prefrontal crtex ( the center of thought anddeliberation in the neocortex) with the amygdala are severed, individuals have greatdifficulty in engaging in rational thought and decision making. Economist who have
ventured into brain imaging of decision-making also document the active role of thatemotion centers play in rationality. A moment of reflection reveals how flawed theolder philosophical dichotomy between rationality and emotionality was: the only wayto make rational decisions is to tag cognitions denoting options with emotions thatgive the person sense for their utility. One cannot maximize utility without the abilityto load options with affect; and this loading can only occur by connecting theprefrontal cortex with the subcortical areas of the brain generating emotions.(2009, p.343)
Essas descobertas trazem implicaes no s para as consideraes
prevalecentes sobre racionalidade como tambm questionam os defensores de
abordagens construtivistas sociais extremadas que entendem as emoes como
puramente cognitivas ou culturais. Isso porque segundo essas novas descobertas
toda cognio est matizada pelas emoes, tanto ao avaliar estmulos recebidos
como ao invocar smbolos culturais relevantes. Ainda, essa matizao das
cognies no pode ocorrer a menos que a pessoa tenha redes neurais normais
conectando os centros neo-corticais e sub-corticais do crebro.
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As novas descobertas da neurologia, embora no resolvam as controvrsias
sobre a importncia da biologia nas emoes, ajudam a relativizar as proposies
extremadas tanto no eixo da biologia quanto no da construo social apontando
para uma imagem mais holstica das emoes e de suas funes. Para os
construtivistas sociais mais extremados, as emoes so atitudes culturalmente
determinadas porque so aprendidas como parte da introduo do agente aos
valores, cultura, normas e expectativas da cultura no qual ele est inserido. Nas
palavras de Claire Armon- Jones,
According to constructionism, there is a prescriptive implication embedded in thecultural situations in which emotions feature in that an emotion is not merely
warranted by the situation as culturally construed but is deemed by members of acommunity to be a response which ought to feature in that situation because itspresence would demonstrate the agents commitment to the cultural valuesexemplified in that situation. This prescriptive relation between the emotion and the
values it reflects is alleged by constructionists to have a crucial role in contributing tothe acquisition of culturally appropriate emotions and to the subsequent regulation ofthe agents responses to emotion-warranting situations. (Armon-Jones in Harr, 1986,p.33)
Essa perspectiva construtivista social das emoes tende a favorecer
argumentos da psicologia que enfatizam que as emoes no se formam at que
uma avaliao dos objetos ou eventos seja feita; ou seja, ela pressupe que as
emoes sucedem a cognio. H, ento, uma inverso da equao proposta pelos
que reforam as explicaes biolgicas e, nesse sentido, se um objeto ou evento
for visto como benfico para o alcance de determinados objetivos emoes
positivas sucedero; por outro lado, se eles forem vistos como malficos, emoes
negativas sero o resultado. Construtivistas sociais tendem a simpatizar com esse
argumento porque ele permite enfatizar que a interpretao das emoes decorrer
de rtulos culturais, vocabulrios emocionais e regras sobre as emoes a suscitare canalizar a base fisiolgica das emoes. No entanto, como observa Turner,
existem evidncias empricas de que os indivduos no esto sempre conscientes
de suas emoes expressas em seus comportamentos e que com freqncia essas
emoes s so percebidas quando apontadas por outras pessoas. Ainda,
(...) all sensory inputs to the brain are routed through the thalamus to both subcorticalemotions centers before they reach the appropriate lobe in the neocortex. (Le Doux,
1996); thus, the process of physiological activation is underway before individuals can
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take full cognizance of the events or objects causing emotional mobilization.(p.342,2009)
Essas consideraes no invalidam os argumentos construtivistas no que
concerne a importncia do processo de construo dos significados das emoes,
mas matizam, no entanto, os argumentos dos que dentro da sociologia tendem a
tomar uma postura extremada e rechaar as novas descobertas que apontam uma
mais complexa interao entre as dimenses biolgicas, neurolgicas, culturais e
situacionais das emoes. De fato, como Turner continua a argumentar,
There can be a simultaneity in (the) process, with emotions initially activated, followedby appraisal, which may arouse new emotions or channel those already activated inparticular directions. Indeed, there is no reason to take an extreme stand on the placeof cognitive forces. At times, under particular conditions, cognitive awareness of someevent may precede emotional arousal, whereas under other conditions, the reverse istrue. Once emotions are aroused and are attended to cognitively, the flow of emotionsmay chance as individuals become aware of others reactions to their actions, as theybring to bear relevant social structural conditions, or as they invoke relevant cultural
vocabularies and normative codes. (idem, 2009)
A interao entre cognio e as emoes o segundo ponto de controvrsia
nas discusses sobre as emoes na sociologia. E por conta da complexidade
mencionada acima, uma terceira controvrsia se desenrola, marcando no s os
debates de sociologia e antropologia, como os de psicologia e neurobiologia e que
remete discusso sobre se existem emoes primrias que podem ser entendidas
como universais. Muitos so os autores que apontam a raiva, o medo, a tristeza e a
alegria como emoes primrias e comuns a todos os seres humanos. As con-
trovrsias nesse sentido so de todos os tipos, com alguns argumentando que a
lista de emoes primitivas restrita e tentando ampli-la; com outros apontando
variaes de intensidade nessas emoes primrias ou entendendo que as mesmas
possuem bases fisiolgicas universais, pois seriam expressas pela face e pelo
corpo por todos os seres humanos. Outros ainda desenvolvem a idia das
chamadas emoes secundrias que seriam o resultado da combinao de
emoes primrias, embora no haja evidncias de que essas emoes outras
sejam resultado de combinaes.
De todo esse conjunto de proposies o fato controverso est justamente na
afirmao de que existem emoes primrias universais que so comuns a todos
os seres humanos. E nesse sentido, as argumentaes dos construtivistas sociais
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so bastante significativas para os propsitos da presente tese. Isso porque a
questo principal aqui, como observam Claudia Barcellos Rezende e Maria
Claudia Coelho (2010) percebermos que o modo como entendemos o corpo e o
vivenciamos est sempre mediado por formas de pensar cultural e historicamente
construdas. Embora no possamos negar que a espcie humana possui um corpo
de estrutura orgnica, a percepo que se tem sobre sua constituio e seu modo
de funcionamento variam muito. E uma vez que as idias sobre como o corpo
funciona variam, assim tambm variam as formas de relacion-lo com as
emoes. Nesse sentido,
(...) o modo como explicamos as emoes tendo origem em certos processoscorporais torna-se parte de uma viso culturalmente especfica sobre o corpo, mas no uma associao universalmente aceita. Faz parte de nossa etnopsicologia, mas no deoutras. Isso implica problematizar a qualidade da universalidade das emoes emfuno de uma unidade biolgica e psquica dos seres humanos. Novamente, se esseaparato biolgico e psquico uniforme, as percepes sobre ele no o so, oque conduz tambm a experincias corporais e psicolgicas muito variadas,posto que so sempre mediadas pela linguagem que um elemento dacultura.91(...) Fajans(2006) defende que, embora as emoes possam surgirinicialmente em um beb como reaes biolgicas a estmulos externos, elas solembradas desde cedo como parte de um contexto de interao social, e no sopensadas de forma isolada. As emoes tornam-se ento parte de esquemas oupadres de ao apreendidos em interao com o ambiente social e cultural, que sointernalizados no incio da infncia e acionados de acordo com cada contexto. Assim,
(...) o aprendizado de como, quando e por quem certo sentimento deve sermanifestado inclui a aquisio tambm de um conjunto de tcnicas corporais queincluem expresses faciais, gestos e posturas. ( p. 30/31, 2010)
Um dos questionamentos mais relevantes decorrentes dessas consideraes
a idia de que as emoes so reaes dotadas de impulsividade que fogem ao
controle dos indivduos, como os fenmenos corporais. No entanto, como vimos
acima, se as emoes so integradas em padres de ao apreendidos em interao
com o ambiente social e cultural desde a infncia, o argumento de existncia deum estado inicial no qual as emoes seriam vivenciadas em formato puro, de
maneira espontnea ou sem controle de nenhum tipo no se sustenta. Em outras
palavras, o que se percebe o desenvolvimento de um aprendizado emocional
cuja internalizao nas primeiras fases da vida dos indivduos esquecida de
modo a permitir o entendimento de que existe na vida dos indivduos uma forma
no controlada de viver os sentimentos. Essa sensao de espontaneidade mais
91nfase nossa.
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freqente em situaes em que as normas sobre como, quando e para quem
expressar as emoes so menos evidentes.
A questo do controle sobre as emoes um tema especialmente
importante para os estudos da antropologia na atualidade. Nesse campo de
estudos, os termos de compreenso da constituio das emoes permaneceram
por muito tempo igualmente marcados por representaes de natureza psicolgica
e /ou biolgica. Segundo Rezende & Coelho, os estudos das emoes deixaram de
ocupar um papel marginal dentro da antropologia apenas na dcada de 70 com o
desenvolvimento da abordagem interpretativa, nos Estados Unidos. (2010) Essa
abordagem permitiu uma reavaliao da noo de cultura de modo a promover sua
redefinio em termos de teias de significados, transmitidas por smbolos e
interpretadas de maneira especfica ou contextualizada em cada sociedade. Como
resultado dessas novas proposies, diversas esferas da vida social passaram a ser
pensadas a partir dos processos de construo cultural dos significados, inclusive
a esfera dos indivduos e de suas emoes, abrindo espao para a elaborao de
conexes entre a emoo e concepes de pessoa com esferas da moralidade, da
estruturao social e das relaes de poder.
Especificamente nos Estados Unidos, houve a prevalncia ao longo dos anos
80 de uma perspectiva relativista que tomava os sentimentos como conceitos
culturais que negociam e produzem a experincia afetiva. Desse modo, a
separao antes elaborada entre estados subjetivos e sentimentos sociais foi
problematizada, dado que as prprias idias de pessoa e de subjetividade passaram
a ser entendidas como construes culturais. Catherine Lutz uma das
propositoras mais eminentes dentro desses estudos e de acordo com ela os
conceitos de emoo implicam negociaes sobre a definio da situao e sobre
diversos aspectos da vida social, devendo os mesmos serem vistos comoelementos de prticas ideolgicas locais. Dessa forma, as emoes so por ela
entendidas como um idioma que define e negocia as relaes sociais entre uma
pessoa e outras. (idem, 2010)
Lutz juntamente com Lila Abu-Lughod acabaram desenvolvendo uma
perspectiva alternativa s principais vertentes tericas que se desenvolveram em
torno do tema das emoes dentro do campo da antropologia. s perspectivas
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tericas essencialistas, historicistas e relativistas92, as autoras propem o
contextualismo que tem por fonte inspiradora a noo de discurso de Michel
Foucault. Essa noo entende o discurso como uma fala que sustenta com a
realidade uma relao no de referncia, mas de formao. Em outras palavras, as
emoes para essas autoras no seriam apenas uma construo histrico cultural,
mas algo que existiria somente em contexto, emergindo da relao entre os
interlocutores e a ela sempre referida. Desse modo,
() nesse sentido que se pode falar de uma micropoltica da emoo, ou seja de suacapacidade para dramatizar, reforar ou alterar as macro-relaes sociais queemolduram as relaes interpessoais nas quais emerge a experincia emocionalindividual. , assim, ento, que as emoes surgem perpassadas por relaes de poder,
estruturas hierrquicas ou igualitrias, concepes de moralidade e demarcaes defronteiras entre grupos sociais (...). (Rezende e Coelho, 2010, p.78)
Esses debates esto intimamente relacionados, por outro lado, ao modo
como o indivduo visto dentro do que as autoras chamam de etnopsicologia
ocidental moderna. Nessa perspectiva, a pessoa possui uma dimenso interna e
privada e outra externa elaborada para apresentao pblica as quais se fazem
acompanhar de uma valorao especfica que toma o que sentido e pensando no
privado como verdadeiro enquanto que o que apresentado em pblico poderiaser falso. Com a distino entre o pblico e o privado ao longo do sculo XVIII, a
dimenso pblica passou a ser interpretada como a dimenso com demandas de
civilidade enquanto a dimenso privada passou a ser aquela reservada s
demandas da natureza sustentadas pela famlia e pelos amigos. Assim, a
capacidade para estar com a famlia e os amigos era vista como uma
potencialidade natural, ao mesmo tempo em que o universo pblico era
compreendido como uma questo de cultivo social, de aprendizado de regras deconvvio.
92O essencialismo definido pelas autoras como o argumento predominante nos estudos da psicologia e dapsicanlise os quais se orientam pela premissa de que a se emoes teriam um substrato universal e naturalque as fariam ser as mesmas em qualquer parte. Lutz e Abu-Lughod incluem nessa abordagem a psicanlisefreudiana na medida em que ele trata as energias pulsionais como algo a ser modelado pelas forascivilizatrias. Para as autoras, o problema aqui estaria na reificao das emoes como preexistentes aosocial. Em contrapartida, o historicismo e o relativismo rumariam em sentido oposto ao do essencialismo,compartilhando entre si a crena na construo cultural das emoes e distinguindo-se apenas quanto ao eixo
de anlise de cada um: enquanto o historicismo se dedica comparao de contextos socioculturais distintosno tempo para questionar a suposio de que as emoes possuiriam substratos universais, o relativismo fariao mesmo movimento de comparao voltado, no entanto, para culturas contemporneas entre si. (1990)
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Ainda, paralelamente a essa diviso entre o pblico e privado se
desenvolveu a idia de que o sujeito deveria ter um autocontrole sobre suas
emoes. Essa noo de um equilbrio das emoes como um ideal a ser
alcanado deriva de antigas preocupaes com o controle do corpo em termos
gerais, percebidas nos processos civilizatrios. Norbert Elias examina em sua obra
O Processo Civilizador (1993) as mudanas nas regras em relao ao corpo e s
emoes a partir da leitura de manuais de etiqueta e bons costumes do final da
Idade Mdia at o perodo inicial do sculo XX. Essas mudanas foram
responsveis por aos poucos promover uma padronizao do aparato psicolgico
de modo a articul-las a transformaes mais amplas no processo de organizao
social. Segundo o autor, nas primeiras dcadas do sculo XX duas foram as foras
que atuaram na elaborao da configurao social: a distino progressiva das
funes sociais e o monoplio do Estado sobre o controle da violncia. No
primeiro caso, a crescente diferenciao das funes gerou maior
interdependncia entre as pessoas e, por conseqncia, cada indivduo passou a se
ajustar aos outros, gerando uma necessidade de um controle mais amplo e
uniforme sobre si. Embora esse processo afete os indivduos de formas diferentes,
aos poucos ele acaba se disseminando por todos os setores da sociedade gerando
um mecanismo de autocontrole internalizado e automatizado. (Elias, 1993)
Contudo, foi o monoplio dos meios legtimos do uso da fora pelo Estado e
sua preocupao em promover a estabilidade de suas instituies centrais que
contribuiu de forma significativa para a valorizao da conteno emocional como
uma caracterstica psicolgica central.93Isso porque se somente ao Estado cabe a
primazia de uso dos aparatos de fora, cabe ao indivduo a tarefa de reprimir seus
impulsos de agresso do outro94. Por conseqncia, gerou-se uma moderao de
93Veremos no captulo 6, no entanto, que as organizaes internacionais governamentais e nogovernamentais tambm reproduzem o entendimento sobre a necessidade de controle das emoese valorao de emoes interpretadas como positivas.94O conceito de biopoder (e biopoltica) foi proposto por Michel Foucault, no primeiro volume doseu Histria da Sexualidade. A idia de biopoder veio se juntar s reflexes sobre as prticasdisciplinares, ambas tcnicas de exerccio de poder, particularmente a partir do sculo XVIII eXIX. As disciplinas se voltavam para o indivduo, e para o seu corpo, para a sua normalizao eadestramento atravs das diversas instituies modernas que esse indivduo atravessava durante asua vida (a escola, a caserna, a fbrica, o hospital, a priso, e etc.). Eram instituies quedocilizavam os corpos e os tornavam aptos produo industrial, vigente enquanto produo
central nessa fase do capitalismo. Segundo Foucault (1988, p.151), as disciplinas centravam-se nocorpo como mquina: no seu adestramento, na ampliao de suas aptides, na extorso de suasforas, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integrao em sistemas de
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afetos que colaborou para a compreenso da diviso da estrutura psicolgica em
uma parte consciente e controladora e uma parte inconsciente e impulsiva.
Ao mesmo tempo, a moderao afetiva reforou a percepo das pessoas e
das coisas de modo menos afetiv