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otamanhodossonhosL V I A F U R T A D O
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o tamanho dos sonhosL V I A F U R T A DO
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Texto Lvia Furtado
Reviso Vivian MilanoCapa e projeto grfico Lvia Furtado
Crditos das imagens
Lvia Furtado (p. 10, 18-19, 114-115, 206-207 e capa)
Alexandre DallAra (demais otos)
Fontes Calendas Plus & Finlek
Agradecimentos especiais a Alexandre DallAra, pelas otos; DeniseEloy, pela cmera; Vivian Milano pela reviso cuidadosa e a Alexan-
dre Franco e Monique Sena pelas ideias e auxlio tcnico na criao
do projeto grfico e na diagramao.
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L F F
Na biblioteca,
o tamanho dos sonhos
rabalho de concluso de cur-
so desenvolvido pela aluna LviaFernandes Furtado, do curso de
Comunicao Social Habilita-
o em Jornalismo, da Escola de
Comunicaes e Artes da Univer-
sidade de So Paulo.
Orientadora:
Pro. Dra. Cremilda Medina
S P
2014
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Ana Luiza, por tudo e pra sempreE aos Escritureiros, por me fazerem
acreditar num mundo melhor
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ResumoDesenvolvido em ormato de grande reportagem, o trabalho busca com-preender a histria da Biblioteca Comunitria Caminhos da Leitura, na
regio de Parelheiros, extremo sul da cidade de So Paulo, e a impor-
tncia de suas atividades de mediao de leitura para a comunidade. A
narrativa desenvolvida sob a tica de quatro dos seus articuladores, jo-
vens que entraram para o projeto ainda adolescentes e cresceram ali. Ao
acompanhar a vida desses garotos, hoje jovens adultos, possvel perce-
ber a influncia da literatura e da mediao em suas vidas, identidades esonhos. A reportagem apresenta tambm um aparato terico ocado no
papel transormador da literatura, baseado, principalmente, nas obras
dos escritores e pesquisadores Antonio Candido, Michle Petit, Cecilia
Bajour, Yolanda Reyes, Cremilda Medina e Katiuscia Fogaa.
Palavras-chave: reportagem, biblioteca comunitria, projeto social, me-
diao de leitura, literatura, Parelheiros, Michle Petit, Antonio Candido
ResumenDesarrollado en ormato de gran reportaje, el trabajo intenta compren-
der la historia de la Biblioteca Comunitaria Caminhos da Leitura, en
la regin de Parelheiros, extremo sur de la ciudad de So Paulo, y la
importancia de sus actividades de mediacin de lectura para la comu-
nidad. La narrativa se desarrolla bajo la ptica de cuatro de sus articula-dores, jvenes que adentraran al proyecto an adolescentes y crecieron
all. Al acompaar la vida de esos chicos, hoy jvenes adultos, es posible
notar la influencia de la literatura y de la mediacin de lectura en sus
vidas, identidades y sueos. El reportaje tambin trae un aparato teri-
co con oco en el papel transormador de la literatura, undamentado,
principalmente, en las obras de los escritores e investigadores Antonio
Candido, Michle Petit, Cecilia Bajour, Yolanda Reyes, Cremilda Me-dina y Katiuscia Fogaa.
Palabras clave:reportaje, biblioteca comunitaria, proyecto social, media-
cin de lectura, literatura, Parelheiros, Michle Petit, Antonio Candido
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Sumrio12 Apresentao
19 Abre-se a cena:
os Escritureiros vm a
31 Eixo 1: espao
53 Eixo 2: acervo79 Eixo 3: gesto compartilhada
114 Eixo 4: mediao
157 Eixo 5: incidncia poltica
189 Eplogo, ou dirio de campo
199 Agradecimentos
203 Reerncias bibliogrficas
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Imagine uma vida sem escolhas.
Imagine uma vida sem sonhos.Imagine um caminho sem desvios.
Imagine no ter caminhos.
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Apresentao
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14 Como dicil saber onde comea uma histria.
Olhando para trs, para esses cinco anos de gradua-
o, no consigo determinar o desvio exato do caminhoque me trouxe at aqui. Desvio, pois este livro no esta-
va nos meus planos no que eu tivesse muitos planos
quando ingressei na USP em 2009. Mas, definitivamen-
te, um livrorreportagem no era um deles. Sonhava, sim,
em publicar um livro: muita fico, nada de jornalismo. O
trabalho de concluso ugiria desse monstro chamado re-portagem, como tentei ugir ao longo de todo o curso, me
embrenhando nas reas de design, diagramao e reviso.
Ficaria no caminho seguro da monografia.
Penso nisso e no consigo apontar quando, o qmetrouxe at aqui. Conseguiria listar muitos atores, e talvez
o primeiro, mas no o definitivo.
alvez tudo tenha comeado quando, em busca de
matrias optativas, no meu segundo semestre de aculda-
de, me deparei com uma disciplina de nome intrigante:
Narrativas da Contemporaneidade. Estranhamente, ela
no apresentava no sistema resumo, objetivo, bibliografia,nada. Era uma pgina em branco, apenas com um nome
de reerncia: Cremilda Medina. Arrisquei e me inscrevi
na que oi, de longe, a disciplina mais gratificante desses
cinco anos de Jornalismo.
Minhas tardes s teras oram preenchidas com a con-
vivncia entre alunos de cursos completamente dierentesdo meu e com senhores e senhoras do programa USP na
erceira Idade. ive pela primeira vez meus textos real-
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15mente dtados,lidos com olhar crtico. Sa da minha zonade conorto, entendi que a comunicao uma comunho,
uma relao e troca de signos. Experimentei. Narrativasera o ensino de como azer uma grande reportagem, na
teoria e na prtica, e oi onde, pela primeira vez, descobri
que escrever uma reportagem poderia ser algo prazeroso
o parto dolorido de um filho por quem voc irremedia-
velmente se apaixona.
O segundo momento oi em 2011, quando estagiei naFlip. Expandi meus horizontes literrios e me embrenhei
no mundo da literatura de uma maneira at ento desco-
nhecida pra mim: antes leitora vida, mas pouco crtica,
aprendi ali apnsara literatura. Conheci escritores, obras,teorias, e, mais importante do que tudo isso: conheci Mi-
chle Petit. A antroploga fancesa, convidada para alar
em uma das mesas do evento, encantou-me, e comprei seu
livroA Art d Lr(2009). Parado na minha estante, lem-brei-me dele na tarde de junho, j em 2013, sentada no
so da casa da proessora Cremilda. Eu havia pedido que
ela me orientasse no trabalho de concluso e estvamosconversando sobre os possveis temas os quais eu poderia
abordar. Depois de mais de um ano tentando decidir-me
por um assunto que osse ligado literatura, mas no aca-
demicista demais, havia chegado a dois temas. A conversa
ez-me escolher alar de bibliotecas comunitrias e, che-
gando em casa, mergulhei emA Art d Lr.Apaixonei-me j na introduo. Petit, que j estudara
mediao de leitura no interior da Frana, passara anos
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16 estudando o tema na Amrica Latina, e nesse livro rela-
ta os diversos projetos de mediao com que teve contato
nos pases sulamericanos. Encantou-me a ideia de que umprojeto social em que uma pessoa l para outra pudesse
mudar minimamente a vida de algum em situao de cri-
se. De uma criana, adolescente, de um adulto que nunca
antes tivera contato com um livro de repente expandir
seus horizontes atravs do contato com a literatura.
E, pensando agora, talvez tenha sido eso desvio docaminho que me levou a Parelheiros: um livro. Aqlli-vro.A Art d Lrme transormou da mesma maneira quePetit descrevia livros de fico transormando a vida de
adolescentes em uma avela do Rio de Janeiro. Mas hou-
ve outro desvio to importante quanto esse, na orma de
uma mulher alta, negra, de cabelos cacheados cheios de
personalidade e sorriso contagiante: Isabel Santos Mayer.
Aps alguns meses de pesquisa, lendo teorias sobre lin-
guagem, tentando encontrar um caminho, ui assistir, des-
pretensiosa, a uma palestra do Conversas ao P da Pgina,
evento anual sobre leitura e mediao organizado pela Re-vista Emlia e pelo centro de estudos A Cor da Letra. L,
morrendo de sono em uma tarde fia de setembro, comecei
a ouvir a histria de uma biblioteca. De repente, me vi com-
pletamente acordada, prestando ateno em cada palavra
contada. Uma biblioteca em um cemitrio. Um projeto de
mediao de leitura com adolescentes. A histria de jovensque, sem nenhuma perspectiva de uturo, tiveram contato
com a literatura e mudaram completamente sua trajetria.
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17A descoberta da Biblioteca Comunitria Caminhos da
Leitura me permitiu unir a sugesto da proessora Cre-
milda, das bibliotecas comunitrias, com a minha vontadede estudar mais a undo o mundo da mediao de leitura.
Meu desejo, desde o incio, oi conhecer a vida desses per-
sonagens, sua relao com esse espao criado por eles, e
como o contato com a literatura mudou a maneira como
eles vivem a realidade e encaram o mundo ao seu redor.
No uma reportagem de nmeros, atos, contando maisuma histria sobre mais um projeto. Narrar histrias de
vida. Entender como eles chegaram at ali.
Foram meses em busca de um tema, pesquisando, pen-
sando, cheia de angstias, quando a resposta para tudo
isso estava parada na minha estante, esperando ser lida,
e h alguns quilmetros, esperando para ser encontrada.
Mas cada curva do caminho havia sido importante para
me levar at ali, e, todos os sbados, quando voltava de
Parelheiros depois de mais uma entrevista, passeando de
nibus por aquelas estradas da Zona Sul, eu tinha certeza:
eu no sabia onde essa histria tinha comeado, mas cadapedao do caminho tinha valido a pena.
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Abre-se a cena:
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os Escritureiros vm a
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Eduardo Alencar gestor, mediador e articulador
da Biblioteca Comunitria Caminhos da Leitura.
As duas grandes paixes do garoto de 21 anos so
Beyonc eM P d Laranja Lma ele at gostoudo filme, mas acha o livro muito melhor.
Rafael Simes conhecido pelos colegas pelas hist-
rias absurdas e engraadas que conta, mas que ele jura
ter lido no jornal. Aos 21 anos, mediador, gestor e
articulador da BCCL, alm de tcnico em Biblioteco-
nomia. Seu livro preerido: O Dro d Ann Frank.
Rodrigo de Carvalhoj ez um pouco de tudo em
seus 25 anos: cuidou de uma anarra, trabalhou nos
mais dierentes lugares e j ez uma proessora des-
maiar de susto. Atualmente, mediador, gestor e ar-
ticulador da BCCL, e est a procura do livro que vai
mudar sua vida.
Sidineia Chagastem 23 anos e uma cozinheira de
mo cheia. Me do pequeno Octvio Henrique, nas
horas vagas acaba sendo me de todos os Escritureiros
tambm. Mediadora, gestora e articuladora da
BCCL, Neia encontrou seu livro preerido ainda na
escola: O Mnno do Pjama Litrado.
Isabel Santos Mayer, conhecida carinhosamente
como me Bel pelos garotos que, nos ltimos seis
anos, j se tornaram seus filhos, coordenadora de
Direitos Humanos do Instituto Brasileiro de Estu-
dos e Apoio Comunitrio (Ibeac). Ela tem mais li-
vros em casa do que cabem na estante, mas h trsespeciais que lhe vm mente quando algum lhe
pergunta qual o seu preerido: Cm anos d soldo,Vd sc e O alcdo Mat Pcal. Aos 47 anos, dicil escolher s um.
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21O termmetro marca quase 40C. Do lado de dentro do
prdio, pelo menos, h ar-condicionado, mas aqui ora o
sol bate no cho de cimento e az o ar subir abaado. Ospoucos visitantes da biblioteca que vm para a parte exter-
na olham, curiosos, para o grupo em crculo gesticulando
de orma estranha e azendo barulhos com a boca. So 10
adolescentes, vestidos com roupas completamente dieren-
tes do que o restante das pessoas. Na verdade, um unior-
me: as meninas de vestido de algodo comprido, listradode vermelho, azul claro, branco e preto; os meninos, cami-
seta verde com detalhes listrados nas mangas e no decote
em v ou camiseta listrada de branco, marrom e verde.
Um dos garotos lidera o grupo. um dos nicos que
no usa bon de aba reta nem tnis esportivo preere
deixar o cabelo penteado com gel e raspado nos lados da
cabea mostra; nos ps, leva papetes de couro marrom.
Eles mexem as mos, bocejam, sentem o ar entrar, ex-
pirando e inspirando, batem palmas ormando crculos no
ar. Brrrr, shhhh, mn, mn, mn, mn, shhh, ffff, ch, p.
O aquecimento serve para acalm-los. A viagem at o Ca-randiru oi longa e tensa, com brigas e caras echadas por
conta de desentendimentos e atrasos. Horrio , para eles,
uma coisa muito importante e complicada. O trnsi-
to da cidade imprevisvel, e fica dicil calcular o tempo
certo para chegar at o centro. Mas, no fim, tudo deu cer-
to: chegaram s 15h, e a apresentao s 16h.De repente, eles param. Uma mulher alta, de vestido
comprido sem mangas, o tecido leve e branco contrastando
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22 com a pele escura, se aproxima do grupo. Seu corpo compri-
do e esguio az as giraas estampadas balanarem conorme
ela anda. Ela cumprimenta todos com um grande sorriso norosto, d oi para os que no v h algum tempo. Bel a
me do grupo, e sua presena parece trazer tranquilidade a
eles. Explica que eles tero de sete a dez minutos para tocar
as msicas do Cortejo, para no atrapalhar o pblico da bi-
blioteca que veio para estudar. Eles concordam h muitas
msicas, vo separar algumas. Podem levar o tambor? Sim?Pereito. Entram, pegam os instrumentos, os estandartes,
voltam para o lado de ora, se organizam. hora de comear.
Esse apenas mais um sbado em que os Escritureiros se
aventuram pelo centro da cidade de So Paulo. Centro,
alis, como eles se reerem a qualquer lugar que no seja
na Zona Sul.
Se voc no tiver carro, o jeito mais cil de chegar
at Parelheiros, distrito onde vivem, pegar no erminal
Graja o nibus com destino a Vargem Grande, um dosbairros da regio. A viagem at o erminal Parelheiros
lembra a viagem a uma cidade do interior tanto pelo
tempo, duas a quatro horas de transporte pblico, quanto
pela mudana de paisagem. Os prdios vo ficando cada
vez mais baixos, simples e escassos. As avenidas enormes,
extensas, circundadas praticamente apenas por comrcio:supermercados, postos de gasolina, pequenas lojas. Os
bairros parecem eitos para carros, no para pessoas.
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23Seguindo os quilmetros da Avenida eotnio Vilela
at o final, ela muda de nome: Avenida Sadamu Inoue. De
repente, do lado esquerdo no h mais construes. rvo-res, barrancos, s vezes stios, s vezes pntanos. No lado
direito ainda possvel ver algumas pequenas vendas, al-
gum tipo de comrcio. As caladas so intermitentes. s
vezes esto ali. De repente, no esto mais. Pessoas andam
de bicicleta no canto da avenida, mas no h acostamento,
ciclovia, nada. assim at entrar em Parelheiros.O bairro principal vivo, com muito comrcio nas
ruas mais movimentadas e gente andando para todos os
lados. Do terminal de nibus, prximo igreja que mar-
ca o centro do bairro, sai o nico nibus que abastece
os bairros mais aastados: a linha 6L05-10, com destino
ao Barragem, um dos ltimos bairros do distrito. Quem
mora um pouco mais perto ainda pode pegar o 6073-10,
que sai do erminal Varginha, passa por Parelheiros, Var-
gem Grande e Colnia at chegar ao ponto final, no Jar-
dim Santa eresinha.
Mas se voc tiver que ir at os bairros do Nova Am-rica, Jardim Pescador, Cidade Luz, Jardim Vera Cruz ou
Barragem, o 6L05-10 sua nica opo. A linha segue
pela Estrada da Colnia, onde asalto substitudo por
terra, e pega a Estrada da Barragem at chegar Estrada
Evangelista de Souza, no incio da qual fica seu ponto fi-
nal, prximo E. E. Joaquim lvares Cruz. O caminho no dicil porque nunca h um desvio, sempre reto, reto,
reto, basta seguir os pontos de nibus azuis e aguentar os
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24 buracos cada vez mais fequentes da estrada. Mesmo os
que tm carro sofem, porque no cil dirigir por ali
e os veculos estragam muito rapidamente. Mas aquelesdependentes do transporte pblico sofem muito mais:
h que andar, s vezes, quilmetros e quilmetros por
pequenas estradas rurais de barro, com mato alto e sem
iluminao. O medo de assaltos e estupros az com que os
pais, preocupados, busquem no ponto os filhos que traba-
lham ou estudam noite e voltam tarde para casa, paraque eles no andem sozinhos, no escuro, por esses trechos.
Quando chove, diversos pedaos alagam e fica impossvel
chegar at o ponto. Quem tem sorte mora perto de algum
dos pontos. Quem no tem, caminha de 15 minutos a uma
hora para conseguir chegar em casa.
Do grupo, Rodrigo o que mora mais perto do ponto
de nibus: sua casa fica a trs minutos da Estrada da Bar-
ragem, no ponto da igrejinha (a nica Igreja Catlica
do bairro). Do lado direito da estrada, mato. Do lado es-
querdo, o bairro se estende, plano, para depois subir um
morro. A casa de Rodrigo fica na rua principal, logo emfente ao ponto: a casa dele a quarta ou quinta direita.
Raael mora um ponto fente, no ponto da Compor-
ta assim chamado pois ali oi criada a comporta que e-
chou o rio e criou a Represa Billings. Um posto da Polcia
Ambiental guarda a entrada da ponte comprida e slida
que atravessa o pedao de terra antigamente cheio dgua,mas que ainda enche nos tempos de chuva. Raael mora
em um ponto mais alto do bairro, que nunca alaga e d vis-
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25ta a toda a regio ( possvel ver desde as reservas indge-
nas prximas at So Bernardo), e anda de 10 a 15 minutos
para conseguir pegar o nibus que o levar a Parelheiros.O caminho at as casas de Sidineia e Eduardo um
pouco mais dicil. Eles descem no ponto final da linha,
atravessam um pedao de pntano por uma ponte prec-
ria, seguem por um caminho cercado de mato alto e sem
iluminao, para s ento chegar ao pedao do bairro no-
vamente habitado em que ficam suas casas, prximas E.E. Barragem II. O trajeto demora cerca de 15 minutos.
Quase todos os dias da semana, os quatro jovens acor-
dam cedo e azem seus percursos para o ponto de nibus
mais prximo. Seu destino no a escola na qual j se
ormaram h algum tempo , nem o centro da cidade.
Eles se dirigem ao Colnia, bairro prximo mas cujo aces-
so depende do nibus, pois no perto o suficiente para
que possa ser eito a p. Eles j tentaram, durante uma
poca, percorr-lo de bicicleta: a alta de espao e sinali-
zao na estrada tornou o projeto invivel. A nica sada
gastar os R$6 para ir a voltar todos os dias do cemitriono qual passam a maior parte de seus dias.
Eles se enfileiram: Bruno, Raael e Kevin assumem a fente
do Cortejo, segurando os estandartes em que esto borda-
dos desenhos representando as belezas dos bairros do Co-lnia, Nova Amrica e Barragem. amiris, Sidineia, Ketlin
e Silvani vm atrs puxando o canto. Ao final, Christian
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26 vem com o tambor, cujo batuque acompanha as canes.
Ao seu lado caminham Eduardo e Rodrigo.
Al, galrnha,O cortjo chgoTrazndo algra, mta paz amorEscrtrros traz aq pra vocsLtratra ltra otra vz
Daq, Mara, ns vamos camnharE, Joznho, vamos jntar cantar, , , o Cortjo chgo
So as vozes melodiosas das garotas que se destacam
no coro. O tc-t-tc-tdo tambor acompanhado pelaspalmas ritmadas dos Escritureiros. A primeira cano aca-
ba e a segunda vem junto, sem quebrar o ritmo, que se
torna gradualmente mais lento. Mais calma e tranquila,
comeam a cant-la assim que passam pelas portas de vi-
dro que separam a rea externa do interior da biblioteca.
Vnha comgo, d-m a sa mo,Ns tmos abrgo pra acalmar o corao s abrr o lvro comar a mdaoConto d ad pom pra vocsDes jto mai cl gostoso d azr
Locr, pro nosso mndo a gnt trazr
dia de esta na biblioteca. Enormes avies de papel
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27esto pendurados no teto do vo central, que liga o trreo
ao primeiro andar. O Menino Maluquinho sorri de um
deles para quem, passando no andar de baixo, olha paracima. Bexigas coloridas se espalham por entre as prate-
leiras de livros. No trreo, algumas se movimentam: esto
amarradas nos pulsos das crianas, que andam de um lado
para o outro, olhando, curiosas, o cortejo que entra.
Hitra, cordl, ltratraEm ca, no parq, ecola o na ra,Vva a ltranbs, praa, lvro o travssraEm ca, no parq, ecola o na ra,Vva a ltra
O batuque relativamente baixo, para tentar no atra-
palhar quem, nas mesas de estudo do andar de cima, precisa
se concentrar na leitura. Ao mesmo tempo, tentam chamar
a ateno dos pais, bebs e crianas que olham as prateleiras
de livros inantis por entre as quais o Cortejo Literrio pas-sa. O espetculo encanta e todos param para olhar: o ginga-
do no andar, as palmas batendo, os corpos balanando, dez
adolescentes de vozes doces embalando uma tarde tranqui-
la, as vozes ecoando por entre os corredores de livros.
o menor cortejo que j izeram. Dura apenas
alguns minutos, tempo de cruzar a biblioteca inteira, daentrada ao espao inantil situado ao inal do prdio. L,
o espao j est organizado para receber os mediadores:
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28 os pues coloridos oram arrumados em crculo, os livros
escolhidos j esto espalhados sobre as colchas de retalho
estendidas no cho. Os espectadores vo sentando-se aospoucos, mais ou menos 25 pessoas, entre adultos, bebs,
crianas pequenas, adolescentes. A todo o momento os Es-
critureiros cantam, nunca param. A msica muda, agora
mais agitada, quando se espalham em um meio crculo,
fente a fente com o pblico curioso.
Agora a hora, pret mta atno,Srmos a pont para a magnaoTrmos m portal mgco, vamos jntos vajar,Entrarmos nm mndo antstco sm sar do lgarE pra voc q et ovndo agoraE vo mdar
Sidineia quem avana at o centro do palco
improvisado e escolhe o primeiro ttulo a ser lido. Ela
estica os braos, mostrando a todos a capa roxa ilustrada, e
l bem alto o ttulo estampado em letras grandes: O Lvro.O grupo finaliza a cano, em coro:Pra voc aprcar.Comea a mediao.
H seis anos, nenhum desses meninos imaginaria estar aqui,
azendo mediao de leitura para crianas ao invs de apro-veitar o sbado de sol, por exemplo, em alguma das cachoei-
ras escondidas na reserva ambiental perto do Barragem.
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29H seis anos, eles no sabiam o que era mediao de
leitura. H seis anos, a maioria deles nem mesmo gostava
de ler.Quando, em 2014, receberam na biblioteca a visita do
escritor Luiz Ruffato e ele comeou a discorrer sobre as
maravilhas da sica quntica Nma mea d snca, svoc pga ma bola joga contra tod otr, nnca mail vo tr a mema configrao, nunca mais.E iso n-
crvl. Ento voc ebarra m algm, esa pesoa t joga praotro lado: voc mdo compltamnt sa vda. todos osmediadores da biblioteca sabiam exatamente do que ele
estava alando. Porque eles tinham esbarrado em algum:
Isabel Santos Mayer.
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sempre na intersubjetividade que
os seres humanos se constituem, e suas
trajetrias podem mudar de rumo de-pois de algum encontro.
Michle Petit (2009)
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Eixo 1: espao
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32 Quem desce do nibus em fente ao restaurante Leishe,
um dos poucos do bairro, e segue a rua principal sem
olhar para o lado, talvez no note, ao final da travessa logoem fente, o muro branco com proteo de arame arpa-
do, nem veja o aglomerado de tmulos escondido atrs das
grades do porto de erro antigo. Criado em 1829 e per-
tencente hoje Associao Cemitrio dos Protestantes, o
pequeno cemitrio de tmulos cor do cu abriga muito
mais do que apenas os corpos de imigrantes do sculoXIX: em seu terreno que se encontra a nica biblioteca
comunitria do bairro.
Livros e covas, porm, no ficam exatamente no mes-
mo lugar. Primeiro, as lembranas, flores, jardins e o pr-
dio que abriga a parte administrativa, recepo, enerma-
ria, banheiro e cozinha do Cemitrio do Colnia. Depois
dessa casa de paredes brancas e colunas de tijolo, o terreno
se estende, coberto de grama, at chegar a outra casa bran-
ca; essa, branca e azul. H uma entrada independente, um
porto que d para a rua. Quando se entra por ele, mais
cil perceber a onda que desenha a parede fontal da casa.Nela, os versos iniciais de um poema acolhem os visitantes:
Abnoados os q possm amgos, os q os tm sm pdr.Porq amgo no s pd, no s compra, nm s vnd.Amgo a gnt snt!
Bndtos os q sofm por amgos, os q alam com o olhar.Porq amgo no s cala, no qetona, nm s rnd.1
1 O poema Benditos da escritora Isabel Machado. Ela o escreveu
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33O poema no cabe no muro, assim como a onda do
trabalho da biblioteca no cabe ali, naquele espao sico
determinado por quatro paredes. A primeira estroe ter-mina sem o ltimo verso, como se convidasse o leitor a
cruzar a porta de entrada e a procurar nas estantes da-
quele espao a obra para termin-la. ali, aos undos do
terreno, em um espao antes abandonado, que az morada
a Biblioteca Comunitria Caminhos da Leitura (BCCL).
Foi uma provocao que levou Isabel Santos Mayer a es-
barrar com os garotos do Barragem.
Em 1997, a moa de ento 30 anos conhecida por
todos como Bel havia acabado de voltar da Itlia, onde
passara uma temporada cursando uma especializao em
Pedagogia Social na Universidade Salesiana de Roma. De
volta ao Brasil, comeara a trabalhar no Centro de Estudos
das Relaes de rabalho e Desigualdade (CEER). Nas-
cida e criada no Parque Santa Madalena, bairro da Zona
Leste de So Paulo, Bel oi a primeira de sua amlia a cur-sar o ensino superior: ormou-se em Cincias Matemti-
cas pela Universidade So Judas adeu. Envolvida desde a
em homenagem ao Dia da Amizade e o declamou em um progra-
ma que apresentava, poca, na Rdio Litoral FM, em So Vicente
(SP). Algum tempo depois, o poema comeou a ser divulgado em
correntes de e-mail, porm com autoria atribuda a Machado de
Assis. O poema completo pode ser lido no blog da autora: http://
isabelmachado10.blogspot.com.br/2012/09/poema-benditos-e-
-meu.html. Acesso em: 22/06/2014.
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34 adolescncia com projetos sociais, o trabalho no CEER
ia ao encontro de sua histria e da rea que gostaria de
seguir. Ela tinha sido convidada para criar o programa deeducao dessa organizao, que ficava localizada aos un-
dos de um terreno na Avenida Doutor Arnaldo.
O terreno pertencia, na verdade, ao Instituto Brasi-
leiro de Estudos e Apoio Comunitrio (Ibeac), cuja sede
ficava no casaro branco da entrada. Criado em 1981 pelo
ex-governador Franco Montoro, seu objetivo sempre oiunir a sociedade civil vida pblica, estimulando a par-
ticipao da comunidade na poltica, atravs da crena de
que todos os cidados tm algo a contribuir para a cons-
truo da sociedade. Apesar de trabalhar to perto do
Ibeac, Bel nunca conhecera ningum de l at que, um
dia, eles precisaram de algum para substituir um educa-
dor em um encontro que estavam organizando em Belm,
e o nome de Bel oi recomendado. Ela aceitou o convite, e
oi a que conheceu Vera Lion, que j trabalhava no Ibeac
desde 1983. Grd nla nnca mai volt.
Bel passou a trabalhar com Vera no Ibeac desde ento.Atualmente, dividem a coordenadoria de Direitos Huma-
nos do Ibeac, enquanto Solange Gois coordena o ncleo
de Educao para Jovens Adultos (EJA). Nesses 17 anos
lado a lado, diversos oram os desafios. Os primeiros seis
anos, por exemplo, oram passados indo quinzenalmente
regio norte do pas, onde aziam ormaes em direitoshumanos com lideranas de comunidades indgenas, ri-
beirinhas e do direito mulher. O projeto, que durou oito
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35anos no total, tambm ormava centros de documentao
nas capitais, pois quase no havia publicaes e material
sobre o assunto por l. A gente levava de So Paulo caixas de Constituio,
de estatuto, de livros sobre o direito da mulher
Crivamos o centro de documentao em uma ci-
dade, mas a vinha a populao ribeirinha de vrios luga-
res, viajando mais de um dia para chegar aos encontros,
ento a gente alava para eles escolherem alguns ttulosque usariam mais e a gente arrumava para eles levarem.
Ento ficava um tanto na regio central, e uns outros tan-
tos nas regies mais distantes complementa Vera.
Era uma aventura.
Foi nessa poca que houve uma provocao de um co-
nhecido da Secretaria Municipal do rabalho de So Paulo:
por q vocs s azm iso no Nort, por q no azm estpo d trabalho na prra d So Palo, com jovns?
Foi a que vocs decidiram ir pra Parelheiros?
No, a ns omos pra Cidade iradentes. O
olhar de Bel indica que ainda h muita histria pela fente.A alfinetada ez com que ossem atrs para desenvol-
ver algo na rea, e acabaram se unindo ao Fora Ativa, uma
das organizaes mais antigas do movimento hip hop, em
Cidade iradentes, onde Bel j havia dado aula. O Fora
Ativa era uma posse2que buscava, na poca, tornar-se um
2 Posse: termo da dcada de 1990, ligado ao movimento hip hop,
reerente a uma demarcao de territrio. Uma posse um terri-
trio pertencente a determinados grupos.
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36 ncleo cultural, e aceitou a proposta do Ibeac de tentar
criar algo juntos.
Elas oram recebidas pelos jovens em um domingo noite, na sala de aula da escola do bairro. Os adolescentes
compareceram armados com ideias e palavras: se de-
finiam como um grupo comunista, e diziam que drtoshmanos coia d brgs.Mas, do dilogo, surgiu um re-sultado: a criao do Centro de Documentao em Direi-
tos Humanos e Biblioteca Comunitria Solano rindade.Comeou a o que mais tarde se tornaria, de certa ma-
neira, uma prtica do Ibeac: construir bibliotecas co-
munitrias em espaos ociosos do Estado. Os projetos do
ncleo de Vera e Bel eram ocados em direitos humanos, e
a construo de centros de documentao e de bibliotecas
ia ao encontro dessa linha de atuao: as pessoas tm di-
reito a uma educao de qualidade, ao acesso cultura, ao
acesso aos livros.
Depois da Solano rindade, vieram a Livro Pra Que e
Quero, no Jardim So Savrio, e a Ler Preciso, no Cedeca
Sapopemba. Nos trs projetos trabalhou-se com o concei-to de biblioteca como lugar de armazenamento de livros
e documentos e espao para consulta de inormaes. Se-
gundo Bel, a gnt pnsava na bblotca como m acrvo dlvros q t orc contdos t proporcona ma mdan-a d vda. E elas realmente proporcionavam: na Solano
rindade, muitos dos jovens adultos acabaram ingressan-do em universidades de renome, como a Universidade de
So Paulo (USP) ou a Ponticia Universidade Catlica de
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37So Paulo (PUC-SP). Hoje, trs cursam mestrado e alguns
esto at mesmo no doutorado. E oi na biblioteca que eles
encontraram espao para crescer.A base para isso era o trip com que o Ibeac procurava
trabalhar: a biblioteca como lugar de ormao, conver-
gncia e irradiao. Onde o acesso a documentos e as ati-
vidades de ormao, aliados ao debate e troca de ideias
naquele espao de convvio comunitrio desembocassem
em intervenes e mudanas na poltica pblica. Pra gente sempre oi isso diz Bel. Quando
a gente se juntou com o Fora Ativa, eles eram um gru-
po que j pulava o muro da escola pra ler O Captal, seintitulavam como juventude comunista, se encontravam
pra estudar, pra ler, e fizeram um monte de coisa a partir
disso. A biblioteca um centro de ormao, e ns desen-
volvamos uma srie de atividades dentro dela. um lugar
pra convergir, pra juntar a comunidade, juntar as pessoas,
e onde surgiu uma srie de iniciativas.
Segundo Bel, ali que surge, por exemplo, um projeto
de lei sobre como servios de sade tinham que servir osjovens, levada pelos jovens do grupo Soninha, que na
poca estava trabalhando como vereadora. A bblotcavra smpr m cntro d rradao d propose poltc.
Foi Antonio Candido, em 2008, quem mudou a manei-
ra como elas encaravam o prprio trabalho. Ao ter contato
com o texto O direito literatura, as duas coordenado-ras passaram a refletir sobre outro lado da relao acesso
leitura/direitos humanos: o direito literatura, ao sonho
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38 e abulao. Elas, que sempre tinham trabalhado com
projetos que tentassem prevenir e reduzir a violncia e a
violao dos direitos bsicos, comearam a perceber que aliteratura poderia ser uma aliada indispensvel nessa luta.
E que ela, tambm, era um direito que, quando violado,
trazia consequncias terrveis.
Vocs acham que a literatura pode contribuir, de
alguma maneira, para a reduo da violncia?
Pra ns oi uma descoberta esse poder que a litera-tura tem revela Bel.
Candido deende que a literatura todas as criaes
de toque potico, ficcional ou dramtico em todos os n-
veis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura3
um bem incompressvel, porque nos garante a integridade
espiritual. Como impossvel viver sem abulao, ela
uma necessidade universal, que precisa ser satiseita e cuja
satisao constitui um direito.4Privar algum do direito
literatura pode causar mesmo a mutilao de sua perso-
nalidade, porque pelo ato de dar orma aos sentimentos
e viso do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos eportanto nos humaniza. Negar a fuio da literatura mu-
tilar a nossa humanidade.5Isso porque a linguagem est in-
trinsicamente ligada construo da identidade, segundo a
3 CANDIDO, Antonio. O direito literatura, n Vros ecrtos. 4a
edio, So Paulo/Rio de Janeiro, Duas Cidades/Ouro sobre Azul,2004, p. 174.
4 Ibd., p. 175.
5 Ibd., p. 186.
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39antroploga fancesa Michle Petit, e a leitura pode desem-
penhar papel importante na construo da subjetividade.
Quanto mais uma pessoa capaz de nomear o mundo, maisapta est para viver nele e transorm-lo. Mas se ela tem di-
ficuldade com a linguagem, com simbolizar o mundo em
que vive, se lhe negada a experincia plena da linguagem, a
agressividade uma sada. Quando se privado de palavras
para pensar sobre si mesmo, para expressar sua angstia, sua
raiva, suas esperanas, s resta o corpo para alar: seja o cor-po que grita com todos seus sintomas, seja o enfentamento
violento de um corpo com outro, a passagem para o ato.6
Portanto, se a literatura nos d esse poder de nomear melhor
o mundo, expandir nossos horizontes, aprimorar a lingua-
gem, ela nos torna mais aptos para viver em sociedade.
O espao ntimo que a leitura descobre, os momentos
de compartilhar que ela no raro propicia, no iro repa-
rar o mundo das desigualdades ou da violncia []. Mas
ela contribui, algumas vezes, para que crianas, adolescen-
tes e adultos, encaminhem-se no sentido mais do pensa-
mento do que da violncia. Em certas condies, a leiturapermite abrir um campo de possibilidades, inclusive onde
parecia no existir nenhuma margem de manobra.7
Bel se recorda do primeiro encontro do clube de leito-
res da Caminhos da Leitura, que ocorreu na segunda se-
mana de maro deste ano.
6 PEI, Michle. Os jovns a ltra. 2aedio, So Paulo, Editora34, 2009, p. 71.
7 Ibd., p. 12.
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40 A gente ficou l duas horas conversando sobre a pa-
lavra, sobre o que o Luiz Ruffato proporcionou pra gente
com aquele livro [Estv m Liboa Lmbr d Voc]. Issoreduz violncia. So duas horas em que voc constri a
possibilidade de refletir sobre as palavras e de no ser um
simples objeto do acaso. Ento sua vida voc escolhe, voc
constri, voc no filho s do destino. A literatura te
ajuda a pensar nisso.
Quando Petit escreve que importante ler histrias,pura e simplesmente, talvez s pelo prazer de contar, mos-
trar que se pode sonhar, que existe sada e que nem tudo
est imvel. Que inventem sua vida, que possvel inven-
tar a prpria vida,8sem saber est alando tambm dos
jovens de Parelheiros e das atividades que o Ibeac come-
ou a desenvolver na regio em 2008.
Uma situao de crise
2005 oi um ano importante para a leitura no Brasil. Es-
colhido em 2003 por Chees de Estado de pases europeuse americanos, o Ano Ibero-Americano do Livro e da Lei-
tura oi organizado pela Organizao dos Estados Ibero-
-americanos (OEI), pelo Centro Regional de Fomento ao
Livro na Amrica Latina e Caribe (Cerlalc) e pela Unes-
co (United Nations Educational, Scientific and Cultural
Organization). A pesquisadora e doutora em Cincias daComunicao, Katiuscia Fogaa, considera 2005 uma
8 Ibd.,p. 31.
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41ebulio do caldo imaginrio coletivo com ideias associa-
das ao mundo da leitura.9Essa ebulio poltica desembo-
ca em aes de mbito ederal como a criao do prmioVivaleitura pelos Ministrios da Cultura e da Educao,
voltado para ONGs, escritores, escolas e entidades que
trabalham para diundir a leitura no pas10e, em 2006, a
criao do Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL).
No mbito municipal, oi importante a criao do Siste-
ma Municipal de Bibliotecas de So Paulo, que integrou asbibliotecas municipais de cidade, pontos de leitura e pro-
jetos de extenso, como os nibus-biblioteca.
Em So Paulo, o lanamento do Ano chamado de
Vivaleitura, no Brasil oi anunciado em evereiro com
cartazes e peas de otdoorvoltados para o pblico jovem.Uma oto da cantora Wanessa Camargo com um livro equi-
librado na cabea estampava as peas publicitrias, junto
mensagem: Lvro, coloq iso na caba. A campanha, veicu-lada pela Secretaria de Cultura do Estado de So Paulo, por
meio do programa So Paulo: um Estado de Leitores, con-
tinuou no segundo semestre, agora com os atores globaisReynaldo Gianecchini e Cleo Pires em inseres no rdio e
na televiso e um novo mote: Lr gostoso. Tm q lr.
9 FOGAA, Katiuscia da Cunha Lopes. A Leitura sob o Signo da
Relao ler como ato de Comunicao Social. Percurso tericoe experimental em saraus. So Paulo, 2010, p. 155.
10 Gilberto Gil anuncia Prmio Vivaleitura em SP. Folha de S.Pau-
lo, 13/12/2005. Disponvel em: http://www1.olha.uol.com.br/sp/
ilustrad/q1312200515.htm. Acesso em: 01/05/2014.
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42 Mas, se em 2005, um jovem da regio de Parelheiros
quisesse colocar um livro na cabea, teria grande di-
ficuldade. Em uma regio onde o rendimento mdio dequem trabalha , segundo dados de 2010 do Instituto Bra-
sileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), de R$888,60,
livros so artigos de luxo e diceis de encontrar em
casa. No havia nenhuma biblioteca pblica na regio. O
Centro de Educao Unificado (CEU) Parelheiros ainda
no existia o espao oi criado em dezembro de 2008,e sua biblioteca oi inaugurada apenas em 2009. Quem ti-
vesse acesso a alguma escola municipal podia contar, pelo
menos, com as salas de leitura, obrigatrias na rede muni-
cipal desde os anos 70. No Barragem, onde s est presen-
te a rede estadual, nem isso havia. Para os estudantes da
E. E. Barragem II (hoje chamada E. E. Renata Menezes dos
Santos), exceo dos ttulos adotados no ano letivo que
a escola era obrigada a comprar, no havia muita opo,
j que a biblioteca da escola ficava permanentemente e-
chada. Como no havia quem cuidasse do espao, os livros
ficavam confinados na pequena sala sem que os alunospudessem peg-los. No mximo, visitavam a sala quando
algum proessor se disponibilizava a lev-los.
A nica coisa que havia, poca, era o Ateli Damas.
Localizado entre os bairros Nova Amrica e Barragem, a
dona do Ateli encheu o quarto do filho de livros antigos
e livros didticos e o abriu comunidade. Ela abra esepao pra qm qies r l, la ajdava na lo d ca,porq nngm tnha lvro m ca.Enquanto Bel ala, Vera
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43acena de leve com a cabea, concordando. Foi essa alta de
atuao do poder pblico e a alta de presena de outras
instituies que ez com que Bel e Vera decidissem tentarcriar algum projeto na regio.
Elas haviam participado, em 2001, do Programa Sade
da Famlia em So Paulo, oerecendo ormao em direi-
tos humanos para todos os agentes de sade do programa.
Junto Secretaria da Sade, estudaram onde havia na ci-
dade os maiores ndices de mortalidade, violncia, entreoutros, e trabalharam nas Zonas Norte, Leste e Sul, ten-
do ocado, posteriormente, mais em bairros da Zona Sul
como Jardim ngela, Jardim So Luis, Capo. Os encon-
tros peridicos que tinham com a comunidade e com os
agentes de sade, pensando tambm ormas de prevenir
violncia, fizeram surgir a ideia de tentar se fixar em um
lugar para tentar causar um impacto maior.
odos os trabalhos do instituto at ento envolviam
alguma poltica pblica especfica: sade, educao, pol-
tica. Era hora de pensar algo dierente, conta Bel.
A gente consegue perceber mudanas onde atua-mos. Voc mexe em currculo, voc mexe em prticas. Mas
a gente nunca consegue observar mudanas nos indicado-
res sociais, porque voc trabalha sempre com um pedaci-
nho da coisa.
Por que no ir para um lugar em que se trabalhasse com
todas polticas? Em que o trrtroosse reerncia, noa poltica? Um projeto que conseguisse trabalhar diversos
atores e mudar todo seu entorno. Com essa ideia na cabe-
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44 a, decidiram ir para aquela que osse a regio mais carente
da cidade. Isso q gostar, n?,ri Bel. E elas gostavam.
Ganhou o extremo do extremo sul. No s pela distn-cia, mas porque Bel e Vera notaram que Parelheiros tinha
o menor capital social de todos. No havia instituio que
l permanecesse; no existiam projetos sociais. Em Pare-
lheiros, nada ficava.
A ala baixa e apressada de Bel, sua entonao e seu
carinho explcito pelas recordaes nos colocam naquelatarde. No agora j se passaram seis anos, e por causa do
desdobramento daquela escolha to importante eita em
2008 que estamos conversando aqui, em 2014. A Isabel
Santos Mayer de hoje s existe graas quele desafio. Emtodo lgar q vo, alo d Parlhros. So a maor propa-ganda q xit do barro, j lv todo mndo q conhopra l.
Decidiram-se ento por aquele distrito rural, quando
alguns dias depois toca o teleone do Instituto. Era uma
enermeira que j havia trabalhado com Bel e Vera em ou-
tros projetos, e ligava para contar que havia sido trans-erida para a regio de Parelheiros. Normalmente, cada
Unidade Bsica de Sade (UBS) tem um responsvel pela
gerncia mas, como ningum queria trabalhar na re-
gio, ela havia assumido a gerncia de trs UBSs ao mes-
mo tempo.
Pra voc ter uma ideia de como era meio largado,como o poder pblico no tinha l grande preocupao
aponta Vera. Uma gerente pra trs UBSs? J d uma ideia.
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45 E a ela ligou pra gente recorda Bel. Qandovocs tvrm m tmpo qirm azr ma ormao aq,
gostara mtoA gente tinha acabadode decidir. Soaquelas sinergias da vida.
A ideia no oi vamos l para azr ma bblotca;oi vamos l para vr o q a comndad qr. E a gentecomeou a conversar com a comunidade de trs bairros,
porque eram trs unidades bsicas de sade: Barragem,
Nova Amrica e Colnia.Primeiro, elas se sentaram com os agentes de sade da
regio, que elas conheciam porque tinham passado pelas
ormaes do programa, e pediram que eles articulassem
as lideranas dos bairros. Padres, pastores, benzedeiras,
mdicos, proessores elas queriam entender quais eram
as necessidades das comunidades, entender qual era a
realidade em que viviam. Estudos e pesquisas mostravam
uma coisa, mas elas queriam entender como era de ato a
vida daquelas pessoas. Aps diversos encontros, chegou-se
a um ponto comum: no havia nenhum projeto que envol-
vesse os jovens e essa era a maior carncia que havia ali.Aproveitando o aniversrio de 60 anos da Declarao
dos Direitos Humanos, Bel sugeriu a dois amigos um,
jornalista da Revista Virao; outra, advogada que trabalha-
va em uma comunidade no Parque Santa Madalena que
criassem um projeto: 60 jovens de So Paulo ariam uma
releitura da Declarao, 60 anos depois. Inscreveram o pro-jeto na Ashoka, uma organizao mundial sem fins lucrati-
vos da qual os trs eram empreendedores sociais, e ele oi
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46 aprovado. 60 jovens, 20 do Ibeac, 20 de Sapopemba e 20 da
Revista Virao participaram de oficinas ao longo de cinco
meses. Os jovens convidados pelo Ibeac? Os de Parelheiros.Era setembro de 2008 quando o projeto comeou. Os
20 adolescentes vinham dos trs bairros: Barragem, Nova
Amrica e Colnia, indicados por proessores e agentes de
sade. Os direitos humanos eram o fio condutor do pro-
jeto, que oereceu ormaes e oficinas diversas para os
jovens participantes, de charges criao de um jornal--mural. Os trs ncleos participaram de diversas ativida-
des ao longo dos meses seguintes, reescreveram os artigos
da Declarao dos Direitos Humanos e, finalmente, se en-
contraram no centro da cidade, na Comisso dos Direitos
Humanos, onde simularam um jri. Fo a prmra vz qmtos dese mnnos vitaram o cntro da cdad, lembraVera.Ao longo do projeto, inquietaes oram surgindoentre os adolescentes de Parelheiros, que comeavam a
questionar a alta de iniciativas culturais na regio. Os an-
seios eram ouvidos e sentidos pelas coordenadoras; quan-
do Bel e Vera ficaram sabendo que o Instituto C&A iriaabrir um edital para apoiar projetos de leitura, comearam
a imaginar uma maneira de tornar realidade as expectati-
vas dos meninos. Veio a proposta: por que no criar um
projeto de leitura, uma biblioteca? A ideia oi abraada de
cara, e juntos desenvolveram e inscreveram, em novembro
de 2008, o projeto Plulas de Leitura, que visava a criaode uma biblioteca comunitria dentro de uma UBS. Mas,
dessa vez, com um eixo a mais: a mediao.
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47Essencial para que elas comeassem a trabalhar com
a mediao oi, alm da leitura de Antonio Candido, o
contato com a obra de Michle Petit. A psicloga e an-troploga fancesa tem extensa pesquisa sobre mediao
de leitura, tanto em seu pas de origem quanto na Amri-
ca Latina. Ser um mediador servir como caminho para
que algum chegue a um livro. Escolher, levar, apresentar,
envolver, acolher. Servir de ponte entre o leitor e o livro,
crarleitores, cultiv-los. Um mediador pode ser um pai,proessor, bibliotecrio, amigo. Mas Petit estuda um re-
corte um pouco mais especfico: a mediao atravs da lei-
tura compartilhada. E, principalmente, a leitura compar-
tilhada em espaos e situaes de crise de guerra ou
de repetidas violncias, de deslocamentos de populaes
ou de vertiginosas recesses econmicas.11
Uma situao tambm pode ser considerada de risco
como sendo aquela em que as crianas e jovens no tm
seus direitos bsicos assegurados12. Se a literatura um
direito bsico, uma situao de crise seria qualquer uma
em que o acesso literatura privado aos cidados. Se a li-teratura um direito, como lev-la a quem no tem acesso
a ela? Lev-la aos lugares mais inspitos, s pessoas mais
11 PEI, Michle. A art d lr. 2a edio, So Paulo, Editora 34,2010, p. 21.
12 LEIE, Patrcia Pereira. Caminhos possveis A Cor da Letrae a ormao de mediadores e leitores. Revista Emlia. Dezembro
de 2011. Disponvel em: http://www.revistaemilia.com.br/mostra.
php?id=85. Acesso em: 29/04/2014.
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48 violentadas, a quem muitas vezes lhe oi privado o direito
bsico de saber ler? A resposta: lendo a elas.
A nova aceta tornou-se pilar de atuao da nova bi-blioteca, junto com espao, acervo, gesto compartilhada
e incidncia poltica, eixos que j vinham sendo trabalha-
dos nas outras bibliotecas que o Ibeac criara. O Plulas oi
aprovado em janeiro de 2009 e passou a uncionar em
maro. Comearam a ormar uma pequena biblioteca na
UBS do Colnia, a maior das trs e onde j havia ocorridoos encontros do projeto anterior, e a receber ormaes
de mediao de leitura, gneros literrios, construo de
acervo, conservao de livros. A ideia do projeto era que
os mdicos da UBS receitassem livros junto aos remdios,
e que os jovens mediadores fizessem leituras para as pes-
soas que estivessem na sala de espera. Entretanto, poucos
meses depois que o projeto oi idealizado, uma mudana
atrapalhou os planos. O sistema de sade passou a agen-
dar horrios, e no havia mais sala de espera nas UBSs. Os
meninos ainda tentaram: paravam as pessoas entre uma
consulta e outra, explicavam sobre o espao, convidavam.Mas, apesar de aberta a toda a comunidade, a biblioteca
acabou sendo usada prioritariamente pelos agentes de
sade e suas amlias.
Alguns meses depois de iniciado o Plulas, oi aprova-
da a criao de um consultrio odontolgico na UBS do
Colnia. A nica sala livre era, justamente, aquela em quese havia construdo a pequena biblioteca. O grupo oi avi-
sado de que teriam que sair dali, e assim comeou a busca
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49por um novo espao. Bel relembra que, por desejo, eles te-
riam construdo a biblioteca no Barragem, mas a alta de
estruturas obrigou-os a procurar outras alternativas. A gente queria, porque l era muito melhor, os me-
ninos no precisariam pegar conduo, levaria a bibliote-
ca pra parte mais carente de equipamentos. S que a no
tinha onde. No Barragem tem a escola e a UBS, s.
Foram meses de procura e conversas fustradas. At
que, conversando com o subpreeito de Parelheiros, des-cobriram que aos undos do Cemitrio do Colnia havia
uma casa abandonada. El alo, l t mo largado, no tmnngm sando, conta Vera. O espao, que j havia sidoa antiga UBS do Barragem, estava abandonado. As coor-
denadoras oram conversar com Andr Barboza, adminis-
trador do cemitrio e descobriram no carioca sorridente
um aliado. Hoje ormado em administrao e gesto am-
biental, o antigo morador da avela do Vidigal e ex-ator
Andr oi o primeiro saci-perer do Stio do Pica-Pau
Amarelo da Globo, mas mudou-se para So Paulo quan-
do a carreira no oi pra fente oi quem articulou ocontato do Ibeac com a Acempro. Foi eito um contrato
de comodato de 10 anos, dando direito ao Ibeac de usar o
terreno e a casa durante esse perodo, gratuitamente.
O acervo saiu da pequena sala na UBS composta
por cadeiras, colchonetes, bancos e mesas doados pelo
Ibeac UBS do Colnia e passou a ocupar as salas dacasa abandonada, em maro de 2010, exatamente um ano
depois de iniciado o Plulas de Leitura. Bel registra, em
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50 relatrio ao Instituo C&A, que h grande expectativa do
grupo com relao nova ase do Projeto, [] pela melho-
ria das condies de equipamento e acervo, a nova sede[] etc. Mas a biblioteca ainda demorou alguns meses
para ser aberta ao pblico: o imvel estava muito destru-
do, sem janelas, sem porta, sem banheiro. Amigos e ami-
liares se uniram para realizar as reormas necessrias, e,
enquanto o espao no ficava pronto, as ormaes conti-
nuavam e o grupo praticava mediaes na prpria escolaBarragem II. Eles estudavam de manh e, tarde, junto
com educadoras parceiras do Ibeac, realizavam sesses de
mediao com os alunos de 1 a 4 srie.
No dia 1 de julho de 2010, a Biblioteca Comunitria
Caminhos da Leitura oi oficialmente aberta ao pblico.
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Aqueles que escolhem
esto exercendo poder.
Aidan Chambers (P, 2012)
Eixo 2: acervo
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54 dia de esta na biblioteca e os preparativos comeam
cedo. No dia 1 de novembro de 2013, a biblioteca do
Colnia vai ser palco de dois eventos importantes: s 14hcomea o sarau do Griot. s 20 horas, o sarau do terror. As
decoraes e comidas so dierentes, o pblico tambm.
No h espao para enrolao na agenda apertada.
Sidineia, do alto de seu um metro e meio, comanda a
cozinha, que, para a ocasio, oi mudada de lugar. O ane-
xo construdo para servir de depsito aos livros ainda nocatalogados cede espao para o ogo, armrios, acas e
panelas. Os acessrios no so quaisquer uns: so as a-
cas especiais de Neia, em que s ela mexe, e as panelas de
Dona Maria. Ambos so apetrechos que s saem de casa
em casos muito especiais. Ao v-los, os garotos do grupo
logo percebem: no dia de brincadeira. A cozinheira
quem manda e eles tm que obedecer.
As panelas tm lugar especial na cozinha de Dona Ma-
ria, e s saem dali com a permisso dela e com a condio
de voltarem to pereitas quanto oram. Armrios sus-
pensos circundam o ambiente, e, em cima deles, as estrelasprateadas da cozinha. Altas, largas, baixas, estreitas, figi-
deiras, fitadeiras, panelas de arroz, de sopa, de macarro,
todas de ao muito bem polidas e cada uma em seu devi-
do lugar.Mnha m tm tant panl porq cada vz qm filho sa d ca la d algm d prent.Os filhos so
muitos: Sirlene, Sideilde, Siderlane, Sirleia, Sirlei, Silvia,Sidnei, Sidineia, Silvani, em ordem de nascimento. O mo-
tivo dos nomes? Dona Maria d risada. Nm s.Logo
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55antes de ganhar a primeira filha, ficou doente, e quem re-
gistrou a beb oi o sogro.
Comadr, t ndo l rgitrar a Srln,ele j tinha es-colhido o nome. A l vai eu. Se ps Sirlene, vamos procurar
uns nomes que tudo iguala. E assim oi indo. Coisa da
cabea da gente imaginando os nomes que iam seguir.
S Silvia e as duas mais novas ainda moram com a
me, junto com trs netos: o filho de Neia, Octvio Hen-
rique; a filha de Silvia, Lvia; e Maiara, uma das filhasde Sideilde criada por Dona Maria. Pode parecer muita
gente, mas, comparado com as condies em que viviam
quando se mudaram para o Barragem, no h do que re-
clamar: eram 15 pessoas numa casa muito menor do que
a atual. Alis, nem casa era, mas mais propriamente uma
garagem eita de quarto, com uma cama de casal, um o-go e alguns colches.
Hoj, nm ra pra vvr mai. Sof mto, mto, mto.Mineira de Vermelho Novo prto d Caratnga, d RalSoare, s voc sar daq hoj, voc chga l amanh cnco hor
da tard ,Maria Aparecida da Silva Chagas tem o ros-
to marcado pelas rugas de seu 56 anos, o cabelo castanho
comprido, fisado, a fanja cacheada de corte reto caindo
sobre os olhos. Enquanto os pais trabalhavam na roa com
o irmo mais velho, ela cuidava da casa, cozinhava e servia
de bab aos irmos mais novos. Com a rotina de todos os
dias, no conseguia estudar. Aos 14 anos, seu pai arrumouuma vaga e ela e os irmos oram cursar a 1 srie, no pero-
do da tarde. Mas, enquanto as crianas j liam e escreviam,
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56 eles tinham que aprender desde o comeo. Os insultos e
brincadeiras eram demasiados; no conseguiam azer a li-
o, no conseguiam aprender, at que a pacincia acabou,e Maria e os irmos comearam a arrumar briga todos os
dias. Por isso, logo desistiram dos estudos.
Para So Paulo, veio no final dos anos 80, quando o
filho mais novo, Sidnei, tinha seis meses todos os filhos
so mineiros, com a exceo das duas ltimas, Sidineia e
Silvani, nascidas em So Paulo, que ela no considera, porisso, mineiras legtimas, so filhas de mineiro. Ela veio de
l nova; no tinha nem 30 anos.A stao ra mto dcl,tnha es mont d filho tdo q a gnt aza no dava.Seuex-marido, Geraldo Graldo Magla d Chag, 57 anos,inorma Sidineia , com quem se casou numa tentativa
de melhorar de vida, trabalhava na roa, capinando, e um
dia alou, vo pra So Palo vr s arrmo algma coia.A amlia Silva Chagas nem sempre morou no aasta-
do bairro de zona rural. Viveram at o comeo dos anos
2000 em Interlagos, onde Seu Geraldo havia ganhado da
preeitura um pedacinho de terra e construdo um bar-raco com material dado pelo municpio dois cmodos
de madeirite antes de trazer toda a amlia para morar
junto com ele. Mas complicaes os obrigaram a sair de
l. Primeiro, a separao de Maria e Geraldo, que preca-
rizou as condies financeiras da amlia. Entre um em-
prego e outro, trabalhando como domstica, axineira eauxiliar de cozinha, Maria no conseguia pagar as contas.
rabalhando em uma casa e uma lanchonete, ganhava um
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57salrio de R$200, com o qual tinha que pagar gua, gs,
luz, material escolar dos filhos, roupas, comida. O maior
sofimento oi quando a escola pediu que comprasse umAtlas e um dicionrio para uma das crianas, le prc-sava dese lvro no tnha condo d comprar, porqo q ganhava no dava nm pra mm dar d comda prale drto. Passou por bares, restaurantes, casas. Nada erao suficiente. Quando a luz oi cortada, passaram a viver
a luz de velas. Quando a alta de comida tornava-se de-masiada, Sidineia e Sidnei s vezes tinham que sair da
aula e ir procurar nos lixos das avenidas alguma coisa que
os ajudasse a encher o estmago vazio. Enquanto isso, s
presses financeiras, juntavam-se ameaas. O segundo
marido de Sideilde tambm conhecida como Preta
havia se envolvido com drogas e sido assassinado na por-
ta de casa; a jovem, ento nos seus 20 anos e me de seis
filhos, vira tudo. Como um dos assassinos oi preso, os
traficantes desconfiavam que algum da amlia o havia
denunciado, e a amlia toda comeou a ser ameaada.
A soluo encontrada oi colocar a casa venda elevar as crianas para viver no Barragem, onde uma de
suas filhas mais velhas estava morando e onde Maria no
teria que pagar contas de gua nem luz. Ela tinha uma
garagem sobrando, um cmodo de madeira vazio na
fente da casa, e o oereceu amlia. Enquanto as crian-
as oram morar l, Maria continuava em Interlagos, so-zinha, lutando por empregos que duravam pouco e pa-
gavam menos ainda. Na casa em que trabalhava, boatos
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58 chegaram ao ouvido da patroa de que um jovem havia
sido assassinado ali perto. Mentiu patroa que no o co-
nhecia, mas, eventualmente, teve que contar a verdade:era seu genro. Foi mandada embora, por medo de que
os traficantes ossem procur-la no servio. O medo no
era inundado: no restaurante em que conseguiu empre-
go em seguida, chegou um dia ao trabalho e encontrou
a chee plida. Mara, va mbora, por avor. Uns homns
acabaram d psar aq procrando por voc. No az nmcnco mntos. Desde ento, Dona Maria nunca mais tra-balhou. Hoje, quem sustenta a casa Neia, com a bol-
sa que recebe na biblioteca, e a renda complementada
pelo dinheiro que a me recebe do Bolsa Famlia e de
algum servio eventual.
Os primeiros tempos no Barragem oram muito di-
ceis. Duas amlias viviam em uma garagem: Sideilde com
os ento seis filhos, Dona Maria com mais sete. Os mveis
eram poucos, a maioria havia ficado estragando na casa
de Interlagos, pois no havia dinheiro para uma mudan-
a extensa nem espao para acomod-los. O ogo um dos itens escolhidos e levados para a casa nova era
intil, pois no havia dinheiro para pagar o gs. iveram
que construir um ogo de lama, onde queimavam lenha
encontrada na mata prxima. A situao s melhorou
quando Dona Maria conseguiu permisso de um vizinho
para limpar o terreno desocupado que ele no usava e aliplantar. Depois de um dia inteiro capinando, ela encon-
trou uma muda de inhame, do tamanho desa sala toda.Pas-
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59saram dois anos sobrevivendo base de inhame cozido,
ma dlca, e ca bem orte.
Quando a casa de Interlagos finalmente oi vendi-da, ainda que por um preo menor do que o que valia de
verdade, conseguiu comprar a casa da fente a mesma
do terreno cujo inhame os havia salvado , reorm-la e
comear uma pequena plantao no quintal. Mandioca,
couve, inhame, planta de tudo que pode para nunca mais
passar suoco. Hoje, tambm cuida de dois porcos, que vi-vem num celeiro ao lado da cozinha. A casa maior, em-
bora simples, uma sala que acomoda dois sos, um pouco
apertados, uma estante cheia de otos da amlia e uma
televiso. Na cozinha, duas mesas de jantar so circunda-
das de cadeiras azuis. S assim para caber a amlia inteira
por ali. Os quartos so dois, e um banheiro. O cho de ci-
mento, as paredes no tm pintura e o teto precisa ser re-
ormado, porque, quando chove, as goteiras so tantas que
impossvel dormir. H que azer um malabarismo com
garraas e potes e baldes para conter a gua. Entretanto,
um lar, muito dierente da garagem em que ficaram con-finados durante dois anos. Octvio e Lvia correm o dia
inteiro pela casa, brincam com os bichinhos de pelcia,
olheiam livros que, graas a Sidineia e Silvani, inestam
a casa. Octvio tem um, especial, que insiste para que a
me leia a ele todas as noites antes de dormir: E amo voc,
m filhot m lvro para tocar sntr. A edio j estdesgastada de uso; o menino adora ver os desenhos de ani-
mais e sentir a textura dos pelos que h em cada pgina.
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60 Neia tenta oerecer ao filho o que no teve na sua in-
ncia: o contato desde cedo com os livros. O garotinho
curioso, extrovertido, az travessuras o dia inteiro e muito apegado me, a quem se agarra quando aparecem
visitas. Mas d uma olha de papel a ele e ganhar seu ca-
rinho: aos cinco anos, est aprendendo a escrever. Escreve
seu nome, em grandes letras de orma, OCVIO, onde
pode. Na olha, no caderno, no cho de terra com um gra-
veto. E, pelo carinho que tem pelos livros, a me acreditaque seguir o mesmo caminho que ela trabalhar um
dia na biblioteca.
Neia se apaixonou pela literatura muito cedo. Embora
no houvesse livros em casa, nem os pais tivessem o hbi-
to de ler Seu Geraldo estudou s at a 4 srie, e Dona
Maria mal sabe assinar o primeiro nome , a garota ado-
rava pegar livros na biblioteca da escola, quando morava
em Interlagos. Se antes suas leituras consistiam em basica-
mente romances, hoje ela l de tudo. S no gosto mto dpoea.A biblioteca ajudou-a a expandir seus horizontes,
no s os literrios. Graas ao projeto, Neia passou a tercontato com outra paixo que, hoje, sonha em transor-
mar em carreira e uturo: a culinria.
As qualidades culinrias de Neia chegam a ser lend-
rias. odo mundo se lembra de algum prato, de alguma
esta, de alguma inveno. Voc j com a comda da Na?,
Voc j provo o fango com qabo q a Na az?, Voc jxprmnto o caldo vrd da Na?. Os dotes culinrios ea preerncia pela comida mineira vieram da me, embo-
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61ra, em casa, ela no consiga cozinhar muito, pois a me
quem reina soberana no ogo. A garota comeou a desen-
volver mais suas habilidades depois de comear a traba-lhar na biblioteca ela quem cozinha para os amigos
quando vo almoar juntos e ela quem elabora e produz
os pratos que sero servidos nos eventos.
Sempre ativa na escola, Neia participava de vrias ati-
vidades extracurriculares no colgio. Voluntria no proje-
to Escola da Famlia, participava das oficinas de cabelo eutsal ela sempre oi apaixonada por utebol. Enquanto
as amigas iam assistir aos garotos jogando, ela entrava na
quadra para jogar junto. Foi por participar do Escola da
Famlia que a garota oi convidada a participar do pro-
jeto dos 60 Anos dos Direitos Humanos do Ibeac. Como
sonhava em ser advogada, mexer com direitos humanos
parecia um bom passo nessa direo. Mas, quanto mais
cozinhava no projeto, mais crescia a vontade de estudar a
gastronomia a undo. Os cursos universitrios nessa rea
eram, porm, caros demais; depois de muita procura, ela
acabou desistindo. Era o comeo de 2012. Quando aloupra Bel que no iria mais atrs disso, a coordenadora a-
lou: nm pnsar. Agora arrm m crso pra voc.Ministrado na Universidade Anhembi-Morumbi, o
curso de capacitao em gastronomia da ONG Gastromo-
tiva13era uma oportunidade boa demais para ser desperdi-
ada. Destinado a jovens adultos de 18 a 35 anos com rendaat trs salrios mnimos, era a chance de Neia comear a
13 Para mais inormaes: http://gastromotiva.org/cursos/.
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62 realizar seu sonho, mas ela teve medo. E se no conseguis-
se? Aps muita insistncia de Bel, acabou cedendo. Dos
seiscentos inscritos, apenas quarenta seriam selecionados.Quando passou na triagem e oi chamada para uma entre-
vista, a jovem j suspirou de alvio.
Para a entrevista, que seria na sede da ONG, na Lapa,
Neia arrumou-se toda. Fez chapinha nos cabelos cachea-
dos, colocou um sapato de salto e saiu cedo de casa para
chegar a tempo. Na metade do caminho, o mundo caiu.Chg no lgar toda demontada.Arrasada, pois acredita-va que a aparncia seria o mais importante para a seleo,
restou-lhe tentar ganhar a vaga atravs do carisma. Falou
de seus planos, vida, da vontade de azer o curso e vol-
tou pra casa achando que a chuva tinha estragado todas
as chances de ser selecionada para a prxima ase. Depois
de algumas semanas, a surpresa: um e-mail convidando-a
para a terceira e ltima ase do processo seletivo, a din-
mica. Quanto mais perto chegava do objetivo final, mais
tensa ficava. Mas o nervoso valeu a pena; ao final, ela oi
selecionada.Durante quatro meses, praticamente todos os dias, a
garota estava pontualmente na Anhembi-Morumbi da
Mooca s 13h. Era aqla batalha tntando chgar no hor-ro.Ela saa de casa a tempo de pegar, no mximo, o nibusdas 10h10 em direo a Parelheiros, pra estar na Mooca
altando de cinco a dez minutos para a aula comear. Oshorrios eram rgidos: se voc chegasse alguns minutos
atrasados, j no poderia entrar na classe.
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63 E a aconteceu uma vez deu chegar l, era 13:01,
todo mundo j na sala, eu peguei e voltei Depois de
demorar quase trs horas para chegar aculdade, ez opercurso de volta sem sequer ter pisado na sala de aula,
por vergonha de atrapalhar a aula que j havia comea-
do. No dia seguinte, explicou aos proessores o que havia
acontecido, e eles ficaram inconormados:
Voc az essa caminhada pra chegar aqui a tempo
pra depois ir embora? Quando acontecer isso conversacom a gente!
Dos perrengues que passou, outro tambm ficou mar-
cado. Com ameaas de greve no metr e nos trens, a garota
ficou preocupada.M, como q vo azr?, se pergunta-va. Pegou o nibus s 7:30 da manh. No meio do caminho,descobriu que trem e metr estavam uncionando. E na-qla batalha Chg l na Anhmb altava cnco pra ma.
Foi uma batalha, mas o esoro valeu a pena: assim que
acabou o curso, em agosto, j comeou a receber propos-
tas de trabalho nos restaurantes parceiros da rede. Porm,
comprometida com o seu trabalho na biblioteca e, princi-palmente, com o projeto Sementes de Leitura, criado por
ela um projeto de mediao para mes e bebs , de-
cidiu recusar. Ela j havia estagiado em vrios lugares di-
erentes ao longo do curso desde um restaurante do re-
nomado che Alex Atala, passando pelo Bar da Dona Ona,
no centro da cidade, at a quadra Camisa Verde e Branca e decidiu esperar o trmino do Sementes, em dezembro,
para depois, talvez, procurar algum emprego na rea.
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64 Eu ficava naquela dvida, n, porque so duas coi-
sas que eu amo azer: a cozinha e o projeto social. A eu
alei, como que eu posso relacionar isso? O sonho quese ormava em sua mente era a ampliao da biblioteca
em instituio cultural ampla, uma ONG. Decidida a ten-
tar relacionar o projeto social com a gastronomia, ez em
2013 um curso em um restaurante local sobre o cambuci.
L, aprendeu a azer trua, iogurte, sorvete, risoto, geleia.
E va q peso, at mema qando pgava o cambcra s pra azr sco.
A produo de diversos tipos de alimentos a partir
daquela matria-prima, abundante na regio, poderia ser
usada para gerar renda para as pessoas do bairro e para
a prpria biblioteca. Por que no multiplicar o conheci-
mento que tinha adquirido? Assim surgiu a ideia de um
novo projeto: oficinas de culinria com o cambuci para
as mulheres do Barragem. Inscreveu o projeto na Gerao
MudaMundo, plataorma de empreendedorismo social
juvenil da Ashoka, um dos parceiros do Ibeac. Com o slo-
ganJovens transormando sonhos em ao, a plataormadisponibilizava uma verba de mil reais para projetos so-ciais. O de Neia oi aprovado, mas como o recurso s caiu
em setembro, ela no conseguiu comear o projetoporqa poca do cambc agora d vrro a maro, nto tava d-
cl d consgr o cambc, dcl d consgr dar es
oficn.A ideia que o projeto acontea ainda em 2014.E, assim, a aspirante a che vai juntando, aos poucos, suas
paixes e construindo seus sonhos.
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65Na primeira sexta-eira de novembro, os pratos escolhidos
por Neia para o evento da tarde so mingau de couve e
fango com quiabo. Rodrigo explica que em todos os even-tos do grupo a comida assim, d vrdad:
A gente chegava num evento tinha uma ma, uma
bolachinha e um ca. S que assim, o grupo no disso,
a gente no acostumado assim. Se comer s uma ma,
dez minutos depois no precisa nem alar o, sua barriga
j ala por voc.A influncia mineira de Dona Maria vem em boa
hora: o sarau sobre as descendncias mineira, nordestina
e indgena do bairro. Enquanto Minas domina a cozinha,
artesanatos indgenas so expostos para que os visitantes
possam apreci-los, junto com vdeos que registram a his-
tria oral do local.
A exposio az parte do projeto Griot: De Gerao
em Gerao. Proposto por Raael, e com apoio do Progra-
ma para a Valorizao de Iniciativas Culturais (VAI), da
Secretaria Municipal de Cultura de So Paulo, o Griot oi
realizado ao longo de 2013, com o objetivo de concreti-zar o resgate cultural e tnico da regio de Parelheiros14.
Foram realizadas pesquisas e conversas com instituies
locais, entrevistas com moradores da regio, registro em
vdeo dos moradores, contando sua histria, alm de ou-
14 O Griot oi aprovado na categoria Outras linguagens do VAI2013. possvel acessar o resumo do projeto atravs do link: ht-
tps://docs.google.com/document/d/1cGJWVWdaIFgQ2KsqfG-
7Ml__4MiNZvbEY1CYg66_hQ/edit. Acesso em: 07/05/2014.
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66 tras aes que resultaram em vrios saraus para apresen-
tar comunidade os resultados do projeto.
A prpria histria do cemitrio do Colnia comeacom uma migrao. Logo aps a independncia, Dom Pe-
dro I traz para o Brasil colonos europeus com o objetivo de
ocupar e proteger terras e, em So Paulo, substituir nas la-
vouras os escravos, cujo custo de importao vinha ficando
cada vez mais alto. Por volta de 1827, 129 amlias alems, da
regio de Hunsrck, fixaram-se na regio de Parelheiros, eo assentamento recebeu o nome de Colnia. Isolados, sem
alar a lngua local, distantes do centro mais prximo (a vila
de Santo Amaro), sem mdicos, sem proessores, os colonos
viviam da venda de carvo e salsicha. Luteranos, criaram
em 1829 o que seria o primeiro cemitrio particular de So
Paulo.15A regio mais tarde recebeu migraes japonesas,
mineiras, nordestinas e aficanas, principalmente.
Os quatro articuladores so futos de migraes. Ra-
ael Raal Sme, gra a Du s tm es sobrnom no nom cho d fecr, com ph, doi l nm nada sm
, assim como Neia, filho de mineiros no caso, mi-neira. Pa no conho tambm no tnho ntres m ratrs.Ele oi criado pelos avs e pela me, Dona Jacinta,que veio do interior de Minas Gerais para So Paulo aos
17 anos. A amlia inteira mudou-se em busca de melhores
condies de vida. Em Governador Valadares, onde mora-
vam, a vida era muito dura. Instalaram-se no Barragem,
15 http://www.acempro.com.br/unidade_detalhe.cm?id=4. Acesso
em: 07/05/2014.
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67onde, por haver muitas granjas e azendas, havia demanda
por mo de obra agrcola. Primeiro, trabalharam em uma
azenda perto da aldeia Krucutu, at o pai comprar o ter-reno e construrem a casa em que vivem at hoje.
A casa, grande e espaosa, com paredes de alvenaria sem
pintura, fica bem no centro de um amplo terreno que tem
cada centmetro coberto por plantas dos mais variados ti-
pos. J no porto de entrada, eito com tbuas de madeira,
uma alsa vinha recobre o muro ao lado. Passa-se por umapequena garagem que abriga a Kombi usada por seu tio para
levar os produtos para o Ceasa e, logo depois dela, chega-se
ao jardim. Ele se expande at os undos do terreno e con-
torna a casa, dando, do outro lado, para a entrada da cozi-
nha. Canteiros cobertos de tela preta comportam plantas
artesanais que sero revendidas depois. Elas esto separa-
das em pequenos vasos: ali, com a olha verdinha clara com
escura, a singnia; a grama-amendoim, com suas florzi-
nhas amarelas, que tem esse nome porque sua olha igual
do p de amendoim; o azulo, chamado assim por causa
da flor, azul meio roxa. O torcontinua para alm dos can-teiros: clorofito, hera variegata, pata-de-vaca de flor branca(Mt mlhre uavam pra problm d tro, pra qm tmsangramntos dmai, explica Raael), pata-de-vaca de florrosa, q pros rns, camlia, dionela, bucho, azaleia, lrio,lrio azul, agapanto, barriga-de-sapo, barba-de-serpente,
kaizuka, hera batata, camlia japnica, grama preta, unha--de-gato, comigo-ningum-pode. Frutas no altam: h ps
de jabuticaba, podocarpo (T vndo es smntnh? Isso
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68 ma ftnha. doc. E no so mto , no.), pitanga, caqui,banana, laranja, mexerica poc, pitanga, limo, aq, xata-
mnt aq, tnha m p d acrola, m m av corto.Paraconsumo prprio h tambm diversos tipos de vegetais, le-
gumes e temperos: inhame, quiabo, couve, cebola, confeire,
abbora, hortel, cebolinha.
Nem tudo que produzem est ali. O terreno em fente,
atravessando a rua, tambm pertence amlia. Uma casa
simples, logo na entrada, alugada para um policial. De-pois da casa, tudo verde, num terreno que se expande at
chegar a um muro, descendo um pequeno declive. Alguns
tipos de planta, como banana, se repetem, mas h outros
s plantados ali: copo-de-leite, lrio, costela-de-ado, pi-
menta malagueta (E probdo d comr iso a porqtv gtrt no ano psado.), mexerica cravinho ( dss ta-manznho, o chro spr ort.), cambuci, abacate, mo-reia, caju (Nnca d porq s d m lgar qnt aq
fo. S amaa, m nnca nc.), mandioca, ca, pau--erro (Ess pa dro pra caramba pra cortar.), jil, coroa-
-de-cristo (Chama sm porq t rga todo o lt mtotxco. bom pra azr aql crc natrai.), mostarda.Ao undos, esquerda, a casa do tio.
So mais de 50 tipos plantados, e Raael os conhece
todos. Sabe a poca do ano em que nascem, pra que ser-
vem, como cuidar deles. Ele nasceu e cresceu ali, em meio
quelas plantaes, ajudando o tio a arrancar bambu tortoe azer a curvatura para vend-lo.
Voc gostava?
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69 Ah, a gente azia o que podia, n, no era uma coi-
sa, assim, que eugostava, mas era tranquilo. Mas eu no me
via azendo isso direto, pela vida inteira. No que eu novenha a trabalhar com isso no uturo, mas
Nem ele se imaginava ali, nem a amlia. Foi pelo in-
centivo da av, Maria Madalena, que Raael ingressou no
mundo do teatro e da televiso ainda novo. Aos cinco anos,
ela o inscreveu num desfile inantil das lojas Pernambuca-
nas; em seguida, colocou o neto num curso de teatro naCasa da Cultura, em Santo Amaro.
Ele era bem criana, era a av que cuidava dele; eu
trabalhava na poca, e a ele comeou por esse caminho e
eu apoiei. Para Jacinta, sempre oi importante que o
filho tivesse oportunidades e escolhas, coisas que ela no
teve. Eu no estudei, s muito pouco em Minas, s pra
conseguir seguir a vida. A gente no tinha muita escolha,
era trabalhar, trabalhar e trabalhar; as crianas tinham que
crescer trabalhando. Pra mim aquilo no era vida.
Por isso sempre incentivou que o filho estudasse,por-
q aprndr no ocpa epao, qanto mai a pesoa aprn-dr, mlhor.Raael oi agenciado mais tarde e participou como fi-
gurante de diversas novelas e da plateia de programas de
auditrio. Foi ao programa da Hebe, Celso Portioli, Elia-
na, atuou em um quadro de um programa sensacionalista
do Joo Kleber na Rede V e em pequenas peas de teatro.Viajou para o Rio quatro vezes, nessa poca, entre os 13 e
14 anos. Mas oi crescendo e deixando de lado a vida de
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70 ator a av morreu em 2004 e era quem mais o incenti-
vava a continuar at que, ao entrar no projeto do Ibeac,
em 2009, abandonou por completo essa parte de sua vida.O garoto no gostava de ler, e entrou para o projeto
porque alguns amigos j participavam e o convenceram.
Ele entrou exatamente no mesmo dia em que Eduardo,
outro dos articuladores. Eles estudavam na mesma sala
e oram juntos primeira oficina da qual participaram,
quando a biblioteca ainda estava sendo ormada na UBSdo Colnia. Foi s depois de comear a participar das ati-
vidades de ormao que Raael comeou a ter uma nova
relao com a leitura. Antes obrigao, passou a ser ati-
vidade de prazer, conhecimento e troca. O convvio com
outras pessoas o ortaleceu, e Dona Jacinta acredita que o
ajudou a lidar melhor com a perda da av e, mais recente-
mente, do av, que veio a alecer no incio de 2014.
Se antes as oportunidades eram seguir a carreira da
amlia cuidando da terra ou a vida de ator, o Ibeac abriu
ao jovem muitas outras portas. De repente, o menino que
poucas vezes havia sado de So Paulo comeou a viajar oBrasil. Braslia, Salvador, Belo Horizonte, Paraty. Andou de
avio, se hospedou em hotis, albergues, sofeu para voltar
de Guarulhos ao Barragem depois de viajar durante horas.
O adolescente esquentado que no pensava duas vezes antes
de mandar algum tomar naql lgarcomeou a amadu-
recer e pensar antes de alar. Seus sonhos tambm se trans-ormaram: o contato com outras bibliotecas ez com que
Raael decidisse aprender a catalogar os livros da Cami-
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71nhos da Leitura. O Ibeac conseguiu para o garoto uma bol-
sa integral no curso tcnico de Biblioteconomia no Senac
Consolao, onde ele estudou durante um ano, d sgndaa sxta, d 13h s 18h, d vrro d 2012 a vrro 2013.
Para aproveitar a viagem e no perder o dia, trabalhou,
durante esse perodo, na sede do Ibeac. Durante um ano e
meio, oi auxiliar administrativo, e Bel se lembra, impressio-
nada, da pontualidade do menino, que nunca chegou atrasa-
do ao servio. Hoje, ele orma junto com mais duas pessoaso grupo de biblioteconomistas do Polo LiteraSampa, rede
ormada pelo Ibeac e outras instituies que tambm tm
projetos de incentivo leitura e so apoiadas pelo Instituto
C&A. atravs do Polo que esto trazendo para a biblioteca
o Alexandria, sistema de gerenciamento de acervos que aju-
dar a catalogar de maneira mais eficiente os cerca de 3500
livros que compe atualmente o acervo da Caminhos das
Leitura. O orgulho claro na voz do garoto sempre que ele
ala do projeto, das realizaes, dos eventos. Os sonhos de
Raael no param de crescer e ele quer que a biblioteca
que se tornou sua segunda casa continue crescendo com ele.
Cerca de 130 pessoas passam pela biblioteca ao longo dia.
Mas as mais ou menos 50 que visitam o espao no comeo
da tarde, no sarau do Griot, tm uma experincia muito
dierente das que chegam noite. Quando o sarau acaba,s 17h, os garotos comeam a desmontar tudo e decorar o
espao novamente. Neia, na cozinha, no para.
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72 Precisa de ajuda?
No, no, arrumem tudo a que j t dando a hora.
s 20h, quando j escureceu, o cenrio de ilme deterror. Cruzes, bonecas aterrorizantes, teias, aranhas e
vassouras de palha se espalham por cantos, tetos e paredes,
sob a luz bruxuleante das velas que se espalham dentro da
casa e por todo o jardim. Alguns dos visitantes chegam
no s antasiados, mas com maquiagens assustadoramen-
te reais so os alunos da E. E. Lucas Roschel Rasqui-nho, parceira da biblioteca e que, nesse dia, teve a esta
de Halloween em que os alunos podiam se pintar. A mesa
de comidas oerece a sopa de abbora especial da Neia,
com bacon, couve e linguia, e um caldo verde com atum
e fango desfiado, tudo servido com grandes pedaos de
po. Os doces, para acompanhar as travessuras, so bem
brasileiros: suspiro, maria-mole, p-de-moleque, torrone.
O sarau do terror j tradicional. Na primeira edio,
em 2011, eles no esperavam um pblico muito amplo. A
biblioteca j existia h um ano e meio, e quase no via mo-
vimento. De repente, alguns adolescentes apareceram debicicleta e os nimos cresceram: visitas! Mas no: eles ti-
nham ido apenas para ver o que era e, matada a curiosida-
de, comearam a estragar a decorao, chutando as velas.
O grupo aps acalmar os nimos de alguns membros
mais exaltados, que queriam qbrar a cara dos nonh,
lembra Eduardo deixou, mas avisaram que os meninosseriam impedidos de participar de uturas atividades da
biblioteca. Depois de algum tempo, a surpresa: mais e mais
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73pessoas comearam a chegar, dessa vez realmente para par-
ticipar das atividades. Foram cerca de 50 visitantes nessa
primeira edio, e o nmero cresce a cada ano no eventoque acontece todo primeiro final de semana de novembro.
A cada edio, tentam mudar alguma coisa. Neste ano
decidiram deixar a casa inteira aberta antes, a cozinha
ficava echada e juntaram aos tradicionais mediao de
contos de terror e excurso pelo cemitrio, u